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Novembro de 2015 CEIPC — informa Nesta edição: Edição n.º 20 CENTRO DE ESTUDOS E INTERVENÇÃO EM PROTECÇÃO CIVIL AS MIGRAÇÕES TRANSMEDITERRÂ- NICAS: O caso do Magrebe e da Itália 1/10 MISSÃO HUMANITÁ- RIA PORTUGUESA EM TIMOR LESTE 1999-2000 11/15 A AUTORIDADE MARÍ- TIMA NACIONAL NO SISTEMA DE PROTE- ÇÃO CIVIL 16 Ficha Técnica Coordenação Editorial Duarte Caldeira Paginação Gabriela Mata (continuação na página seguinte) Perdura ainda, na memória do público, um acontecimento relativamente recente no qual, em pleno ano de 2013, uma em- barcação com mais de quinhentas pesso- as naufragou junto da ilha italiana de Lampedusa, provocando uma catástrofe com mais de cento e trinta mortos (Público e Agências: 2013). Este desas- tre humanitário originou diversos deba- tes de carater político e social que ti- nham como tema principal as possíveis respostas que as entidades responsáveis da EU (União Europeia) deveriam ado- tar para lidar com este tipo de proble- mas. As implicações deste acontecimen- to tornam-se evidentes se atentarmos na seguinte frase, surgida nos textos jorna- lísticos da altura: As primeiras informa- ções indicam que a maioria dos passageiros que segui- am na embarcação era de origem africana, muitos somalis e eritreus. O ga- binete do alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados informou depois que serão, na sua maioria, eritreus, prove- nientes da Líbia (Público e Agências: 2013). AS MIGRAÇÕES TRANSMEDITERRÂNICAS: O caso do Magrebe e da Itália

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Novembro de 2015

CEIPC — informa

Nesta edição:

Edição n.º 20

CENTRO DE ESTUDOS E INTERVENÇÃO EM PROTECÇÃO CIVIL

AS MIGRAÇÕES

TRANSMEDITERRÂ-NICAS: O caso do Magrebe e

da Itália

1/10

MISSÃO HUMANITÁ-

RIA PORTUGUESA

EM TIMOR LESTE

1999-2000

11/15

A AUTORIDADE MARÍ-TIMA NACIONAL NO

SISTEMA DE PROTE-ÇÃO CIVIL

16

Ficha Técnica

Coordenação Editorial

Duarte Caldeira Paginação

Gabriela Mata

(continuação na página seguinte)

Perdura ainda, na memória do público,

um acontecimento relativamente recente

no qual, em pleno ano de 2013, uma em-

barcação com mais de quinhentas pesso-

as naufragou junto da ilha italiana de

Lampedusa, provocando uma catástrofe

com mais de cento e trinta mortos

(Público e Agências: 2013). Este desas-

tre humanitário originou diversos deba-

tes de carater político e social que ti-

nham como tema principal as possíveis

respostas que as entidades responsáveis

da EU (União Europeia) deveriam ado-

tar para lidar com este tipo de proble-

mas. As implicações deste acontecimen-

to tornam-se evidentes se atentarmos na

seguinte frase, surgida nos textos jorna-

lísticos da altura:

As primeiras informa-

ções indicam que a maioria

dos passageiros que segui-

am na embarcação era de

origem africana, muitos

somalis e eritreus. O ga-

binete do alto-comissário

das Nações Unidas para

os Refugiados informou

depois que serão, na sua

maioria, eritreus, prove-

nientes da Líbia (Público

e Agências: 2013).

AS MIGRAÇÕES TRANSMEDITERRÂNICAS:

O caso do Magrebe e da Itália

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Página 2 CEIPC — informa

Como facilmente se percebe

através desta informação, as prin-

cipais implicações desta ocorrên-

cia estão relacionadas com o fac-

to de este acontecimento não se

tratar de um episódio isolado,

mas antes de um acidente que

engloba todo um cenário mais

alargado em que a imigração ma-

ciça para os países europeus é

uma realidade impossível de igno-

rar. As discussões e os debates

mais visíveis giraram em torno

das possíveis respostas e medidas

dentre as quais os políticos pode-

riam optar para fazer frente a

este problema. Num cenário co-

mo este, foram múltiplas as inter-

pretações e visões do aconteci-

mento, variando estas da visão

populista (aproveitada por muitos

agitadores de opinião) de que os

países europeus deveriam fechar

portas aos imigrantes, e outras

com propostas de ajuda humani-

tária e melhorias no acolhimento

dos que chegam à Europa na mai-

or parte das vezes em condição

de ilegalidade. É, pois, importante

que se adote uma abordagem que

leve em conta os conceitos da

geopolítica e da geoestratégia

para analisar o tema da imigra-

ção, suas causas, bem como con-

sequências e respostas adotadas

pelos políticos dos países de aco-

lhimento. A ideia subjacente a um

trabalho como este é a de que as

teorias geopolíticas podem ser

bastante eficazes para analisar e

descortinar tanto as causas como

as consequências dos grandes

fluxos migratórios.

É necessário que se revejam, pri-

meiro, alguns dos principais con-

ceitos das teorias geopolíticas

para que se analise com mais

atenção um determinado cenário

específico. No nosso trabalho, a

escolha recairá sobre as migra-

ções transmediterrânicas, mais

precisamente sobre as correntes

migratórias que têm origem na

zona norte-africana do Magrebe

e que têm como destino a Penín-

sula Itálica. Como facilmente se

perceberá, esta decisão é justifi-

cada pela importância desta zona

como ponto de chegada para

muitos imigrantes transmediter-

rânicos, bem como pelo fato de,

nos últimos tempos, os conflitos

civis na zona da Líbia (a viver

uma grande situação de instabili-

dade política e social) terem le-

vado a um recrudescimento dos

fluxos migratórios originários

desta região africana.

Os fluxos migratórios e os

principais conceitos geo-

políticos

Se se entender a geopolítica como

o estudo das relações internacio-

nais através da análise de variáveis

geográficas (Devetak, 2012), é en-

tão possível analisar e, dentro de

certos limites, prever o tipo de

decisões e estratégias pelas quais

as elites políticas podem optar, isto

tendo em conta posições geográfi-

cas, extensões territoriais, dimen-

sões populacionais, localizações

estratégicas relevantes, recursos

naturais, etc. As relações entre a

geografia, a demografia e as deci-

sões políticas, bem como as formas

de legitimação de poder, manifesta-

das por boa parte das elites políti-

cas e pelos diferentes estados, en-

contram-se entre os assuntos mais

abordados nestes estudos (Ibid.).

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Página 3 CEIPC — informa

xar de estar relacionado com

um conjunto de fatores que di-

zem respeito ao cenário nacional

ou internacional que se vive. Co-

mo já expusemos na introdução,

tanto as causas (a ocorrência de

conflitos civis que dão origem à

fuga por parte de populações

indefesas) como as consequên-

cias (as respostas por parte dos

agentes políticos) dos fluxos mi-

gratórios podem, pelo menos

numa grande parte dos casos,

ser analisados através de concei-

tos geopolíticos.

Tendo em conta a distinção, an-

teriormente apontada, entre as

teorias geopolíticas mais conven-

cionais e as teorias críticas que

as põem em causa, vejamos as

principais visões acerca do tema

da migração na última década.

Uma destas visões, preponde-

rante em países como os Esta-

dos Unidos (tendo sido adotada

por uma boa parte das elites

seja capaz de questionar o poder

político e a forma como as suas

decisões geopolíticas e discursos

se alicerçam numa vontade de

preservar privilégios elitistas.

Apesar de ser bastante comum

que as correntes da teoria crítica

cometam exageros de interpre-

tação e de criticismo, o tema que

nos interessa (o da imigração)

não pode deixar de ser analisado

tendo em conta uma perspetiva

que seja devedora (pelo menos

em alguns aspetos) das aborda-

gens deste tipo de teorias.

No que diz respeito ao tema da

migração, é a opinião de Jennifer

Hyndman que “Migration has

long been a barometer of geopo-

litics, from human displacement

generated by war to containment

practices in particular territories

or camps” (2012:243). Assim,

segundo a opinião desta autora, a

migração é um tema central para

a geopolítica, não podendo dei-

Uma parte substancial das teorias

geopolíticas (desde os seus pri-

mórdios ainda no século XIX) tem

dado bastante relevância às rela-

ções de poder entre os estados

que manifestam ambições expansi-

onistas e aos territórios chave que

lhes era necessário controlar. São

importantes nomes como o de

Mahn e Mackinder, tendo ambos

escrito sobre a forma como po-

tências mundiais poderiam manter

e legitimar o seu poder de acordo

com os territórios que dominavam

(Evans & Newnham, 1998). Contu-

do, já no século XX, é fulcral que

se apontem novas tendências e

abordagens vindas da teoria crítica

que, adaptadas ao contexto da

geopolítica, vieram pôr em causa

alguns dos conceitos que eram

tidos como inquestionáveis por

esta disciplina de estudos (Penter

& Jeffrey, 2009). De acordo com

estes teóricos, é importante que

se tenha uma atitude crítica, que

(continuação na página seguinte)

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políticas deste e de outros paí-

ses), tende a ver a migração co-

mo algo que põe em perigo a

segurança dos estados que aco-

lhem os imigrantes (Hyndman,

2012). Assim, as principais estra-

tégias adotadas pelos estados

devem ir no sentido de conter

os perigos da migração descon-

trolada, colocando-se especial

enfase no controlo apertado de

fronteiras, nas restrições à imi-

gração, ou outras medidas se-

melhantes como uma maior vigi-

lância e policiamento de comu-

nidades estrangeiras (Mountz,

2010). Este paradigma de zelo

pela segurança saiu reforçado

(apesar de não ter sido criado)

com as medidas tomadas pelo

governo americano depois dos

atentados terroristas do 11 de

Setembro, uma vez que, depois

deste acontecimento, a Adminis-

tração Bush se aproveitou de

todos os meios legais para ins-

taurar um conjunto de medidas

que tenderam a tornar-se cada

vez mais repressivas, e que ti-

veram como ponto mais céle-

bre a criação do Campo Delta

na prisão de Guantánamo

(Gregory, 2007; Hyndman,

2012).

A par desta visão, foi crescendo

também a contestação por par-

te dos teóricos críticos daquilo

que viam como um exemplo de

violência exercida pelo estado

no controlo das populações

num tipo de política que alguns

chamariam de “securitização da

migração”. Como se sabe, os

proponentes da teoria procu-

ram questionar e perscrutar

atentamente os desígnios, nem

sempre declarados, que estão

implícitos nas decisões geopolí-

ticas. Assim, para Hyndman

(2012), é fundamental que a

análise geopolítica englobe

componentes da biopolítica e

se foque, não tanto nas frontei-

ras e políticas de controlo des-

tas, mas antes nos indivíduos que

passam estas fronteiras, ou seja,

nos imigrantes e problemas por

eles enfrentados. Seria essa uma

maneira de englobar uma com-

ponente mais prática e eficaz no

contacto com os seres humanos

que vivem num país estrangeiro,

pois dessa forma eles seriam

olhados como mais do que uma

potencial ameaça a um conceito

abstrato como é o de espaço

nacional. O espaço territorial

deixaria assim de ser analisado

como uma metáfora, pois seria

capaz de englobar também aque-

les que habitam esse mesmo es-

paço (Sparke: 2005).

Outros teóricos críticos

(Tesfahuney, 1998) vão ainda

mais longe, pretendendo questi-

onar uma grande quantidade de

noções e conceitos com a inten-

ção de apontar a discriminação e

a repressão que estão presentes

em discursos que abordam os

temas do espaço, da mobilidade

e da integração.

Assumindo que estes últimos

exemplos se enquadrem entre

os exageros da perspetiva crítica,

é possível ainda assim apontar a

validade e importância dos seus

questionamentos e dúvidas le-

vantadas. Identificamos, assim,

dois grandes grupos de teorias e

visões, cada um deles capaz de

chegar a exageros ou extremos

inadequados, mas que merecem

ser tidos em conta na discussão,

isto porque um prima pela aten-

ção dada ao direito de os esta-

dos garantirem a sua segurança;

o outro pelo questionamento

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deste tipo de medidas que são

vistas como repressivas.

Esta divisão teórica será bastante

importante agora que nos volta-

mos para a análise do tema que

nos propusemos abordar em

concreto, isto é, a migração do

Magreb africano para a Península

Itálica.

A imigração do Magrebe

para Itália

No início do século XX, 3,5 % da

população da UE era imigrante,

tendo uma boa parte desta nasci-

do fora do continente Europeu

(Aubarell & Aragall, s.d.). Oriun-

dos de nações que até então ha-

viam tido apenas o estatuto de

colónias, estes imigrantes dirigi-

am-se, acima de tudo, para os

países que outrora haviam domi-

nado a sua terra natal. Assim,

não é de estranhar que, por

exemplo, uma boa parte dos imi-

grantes no Reino Unido tenha

origem indiana ou paquistanesa.

Já nos países mais a sul da Euro-

pa, grande parte dos imigrantes é

originária da região conhecida

por Magrebe (Aubarell & Aragall,

s.d.; Rodrigues & Ferreira, 2011).

Refira-se que por Magrebe se

entende uma região africana situ-

ada no noroeste deste continen-

te, próxima do mar Mediterrâ-

neo, e que engloba os seguintes

países: Marrocos, Sahara Ociden-

tal, Líbia, Argélia e Tunísia. A sua

localização geográfica leva a que

as populações que saem do país

se desloquem acima de tudo para

a Península Ibérica (sobretudo os

motivo a degradação gradual das

terras de cultivo, originando as-

sim a migração voluntária, obri-

gando as populações a fugirem

de um local tornado insalubre e

inóspito, sofrendo de stress psi-

cossocial, absoluta ausência de

rendimentos, fontes de subsis-

tência, falta de renda, rutura so-

cial e na maioria das vezes sem

documentos de identidade.

Aliado a toda esta situação dos

desastres ambientais, ainda exis-

tem os conflitos políticos, econó-

micos, sociais e a violência, que

resultam em, roubos, crimes de

agressão, violência sexual, escra-

vatura e, no caso do Corno de

África, terrorismo, pirataria,

alem de raptos e captura de re-

féns.

Todos estes fatores provocam as

chamadas migrações de trânsito,

ou como são apelidadas “rotas

da morte”

Estas migrações de trânsito diri-

gem-se preferencialmente de Sul

para Norte em direção aos Paí-

ses existentes junto à bacia me-

diterrânica, e é a partir destes

diversos Países que iniciam a tra-

que vêm de Marrocos), França

(da Argélia) e Itália (da Líbia, isto

para referir apenas alguns exem-

plos (Aubarell & Aragall, s.d).

Mas qual a razão para estas migra-

ções?

Estas migrações são o resultado

de vários fatores dos quais pode-

mos citar alguns, a saber:

Países onde existem conflitos

armados (casos da Líbia, Somá-

lia e Síria);

Países onde as alterações cli-

máticas provocam escassez de

chuva, com a consequente ari-

dez dos terrenos de cultivo

(Djibuti, Etiópia, Quénia). Paí-

ses estes que estão a enfrentar

a pior seca dos últimos 60

anos, não chove nesta zona do

corno de África há cerca de

dois anos, com graves conse-

quências para uma população

castigada também por décadas

de conflitos armados.

A seca, um dos fatores mais signi-

ficativos para a migração ambien-

tal forçada, é considerada um de-

sastre natural não repentino

(como por exemplo um sismo) e

que pode ter trazido por esse

(continuação na página seguinte)

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vessia do Mediterrâneo rumo

aos Países Europeus com os

quais sentem uma maior afinida-

de, seja histórica, cultural ou

linguística.

De Marrocos dirigem-se para

Espanha pois este destino já é

conhecido desde o sec. VIII

quando os árabes ocuparam os

reinos da Península Ibérica e

criaram o califado conhecido

como Al-Andaluz ou o Muslim

Spain.

Da Argélia (antiga colónia) e da

Tunísia (antigo protetorado)

rumam a França, e da Líbia diri-

gem-se para a também antiga

potência colonial a Itália.

No entanto, não se pense que

que esta é uma viagem fácil, pois

os perigos de uma travessia do

mar Mediterrâneo, muitas das

vezes em condições nada dignifi-

cantes, constituem um risco que

nem sempre se ultrapassa com

vida.

O fato de a tragédia de Lampe-

dusa ter contribuído para cha-

mar a atenção para este tema

justifica que se escolha a Itália

como tema principal desta pes-

quisa, que se centrará nas análises

e consequências desta migração

tendo em conta alguns dos con-

ceitos e teorias que já abordámos

bem como outros que ainda dis-

cutiremos. Comecemos pelas

causas desta imigração.

As causas da imigração

do Magrebe: o Choque

Geopolítico

Além da localização geográfica,

que representa uma razão óbvia

para os fluxos migratórios com o

destino ao sul da Europa, a análise

de mobilidades populacionais

inesperadas deve incluir um con-

ceito que pode ser referido como

“choque geopolítico” (Ruhs &

Van Hear, 2014). Este choque

pode ser definido como “a sud-

den and relatively unexpected

event or a series of events that

has the potential to, and often

does, lead to a destabilisation of

regional and/or international poli-

tics and security” (Ruhs & Van

Hear, 2014: 2). A resposta a este

tipo de choque geopolítico por

parte das populações que residem

nas zonas afetadas pode muitas

vezes traduzir-se em deslocações

e fluxos migratórios, voluntários

ou involuntários, dentro do pró-

prio país ou adquirindo um

carater internacional.

É preciso ter em conta que este

choque se refere sempre a um

acontecimento impactante, na

maior parte das vezes violento,

que deixa as populações afetadas

sem saber que ações devem to-

mar ou que caminhos seguir. As-

sim, a título de exemplo, se a que-

da do Muro de Berlim levou a

mudanças geopolíticas ordeiras e

pacíficas na maior parte dos países

europeus, o mesmo já não se po-

de dizer da ex-Jugoslávia, cujos

conflitos levaram, entre outras

catástrofes humanitárias, à deslo-

cação forçada de populações

(Ruhs & Van Hear, 2014).

Assim, tendo em conta esta noção

de choque geopolítico, é impor-

tante que se analise a situação

atualmente vivida na zona do Ma-

grebe. Há poucos anos, as mudan-

ças de regime e as manifestações

provocadas por aquilo a que ficou

conhecido como Primavera Árabe

deram origem a situações bastante

díspares entre os diferentes paí-

ses1. Se em muitos casos as mu-

danças de governo tiveram lugar

de forma relativamente ordeira e

não causaram conflitos de dimen-

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Page 7 CEIPC — informa

(continuação na página seguinte)

sões catastróficas (como a queda

do ditador Ben Ali da Tunísia), o

mesmo já não se pode dizer do

país que mais nos interessa neste

estudo, a Líbia, uma vez que, des-

de a deposição do antigo ditador

Khadafi, o país mergulhou numa

situação de guerra civil que tem

estado na origem de uma grande

catástrofe humanitária (Tomás,

2013).

As últimas informações surgidas

nos media apontam para um au-

mento dos conflitos armados e

para a atividade de milícias e gru-

pos terroristas que aterrorizam a

população (Rocha, 2015). A che-

gada de refugiados às regiões cos-

teiras de Itália tem sido cada vez

maior, tendo levado já a que o

ministro dos Negócios Estrangei-

ros Italiano expressasse a sua pre-

ocupação e necessidade de res-

ponder devidamente a este cená-

rio preocupante. Segundo os da-

dos disponíveis, o número de imi-

grantes que teriam chegado à Itá-

lia no primeiro mês do ano de

2015 perfaziam um número de

3528, mais de 40% quando com-

parado com os números do mes-

mo mês do ano anterior (Ibid.).

Se é certo que estas situações de

conflito não explicam, na íntegra,

todas os motivos que levam à

imigração das populações do Ma-

grebe, servem, pelo menos para

compreender o porquê de os

fluxos terem aumentado nos últi-

mos anos, desde que a Primavera

Árabe veio tornar a situação in-

terna da Líbia mais perigosa do

que até então havia sido. Resta-

nos, portanto, explorar com mais

detalhe as consequências e estra-

tégias políticas adotadas em Itália

como resposta a esta situação.

Consequências e respos-

tas políticas a este tipo

de migração

É importante que recordemos

aquilo que foi dito no enquadra-

mento teórico, recuperando as

noções sobre políticas de segu-

rança bem como as críticas a es-

se tipo de posições. Assim, como

apontam diversos críticos

(Collinson, 1996), as políticas

migratórias da UE das últimas

décadas têm sido baseadas num

conceito de segurança extrema,

como que partindo do princípio

de que os fluxos migratórios re-

presentam uma ameaça para o

bem-estar das nações de acolhi-

mento. O fato de estas políticas

já terem sido implementadas an-

tes dos atentados do 11 de Se-

tembro demonstra que a lógica

subjacente a medidas repressivas

não necessita de ser influenciada

por uma potencial ameaça terro-

rista para ser posta em prática.

Até aos dias de hoje, os imigran-

tes que são suficientemente afor-

tunados para não perecerem na

travessia do Mediterrâneo e que

são ajudados por guardas costei-

ros das ilhas italianas vêm-se

confrontados com leis e imposi-

ções que os obrigam a permane-

cer em campos de refugiados

cujo pretenso carater temporá-

rio se pode prolongar por vários

meses (De Haas, 2008).A par

destas imposições e controlos

sobre as populações que conse-

guem chegar ao país, o governo

italiano, já desde os tempos do

Primeiro-Ministro Berlusconi,

tem primado por um conjunto

de medidas que procura prote-

ger ao máximo as suas fronteiras

e impedir a entrada de imigran-

tes ilegais, concedendo diversos

subsídios a países de origem co-

mo forma de tentar compensar

os seus governos por estas leis

pouco benevolentes (Collinson,

1996).

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Page 8 CEIPC — informa

Segundo De Haas (2007), aquilo

que predomina nas relações en-

tre Itália e os países de origem

dos seus imigrantes é uma visão

que leva a ver a chegada destas

pessoas como uma invasão, re-

cuperando dessa maneira antigos

mitos sobre invasores vindos de

regiões árabes. Apesar de a mão-

de-obra estrangeira ser encarada

como algo de necessário e bené-

fico (tendo em conta o envelheci-

mento populacional) por parte de

empresários e entidades contra-

tadoras (Handoussa & Reiffers,

2003), a verdade é que o receio

sentido por grande parte da po-

pulação (que vê os imigrantes

como uma ameaça para os seus

postos de trabalho) e uma réstia

de orgulho nacionalista por parte

de algumas elites fazem com que

a migração seja olhada negativa-

mente. Os fluxos migratórios são

vistos, portanto, como uma po-

tencial fonte de perigo, como

algo que vai destabilizar a ordem

do país colocar em risco a sobre-

vivência dos seus habitantes. É,

pois, esta a lógica que tem estado

por trás de muitas das tomadas

de decisão por parte, não só de

Itália, mas de toda a União Euro-

peia.

Apesar de no nosso entendimen-

to este problema humano e social

não se resolver com subsídios, a

UE tem que tomar medidas que

minimizem este flagelo, e que de-

vem englobar penalizações aos

traficantes de seres humanos,

apoio técnico e humano que vise

o desenvolvimento destes Esta-

dos, investimento nas economias

dos Países do Magreb, e o mais

importante de tudo, estabilizar e

consolidar um governo credível

na Líbia de modo a que as popula-

ções não sintam a necessidade de

ir em busca de segurança e me-

lhores condições de vida noutros

Países.

Veja-se, a título de exemplo, as

decisões e medidas tomadas pelos

ministros italianos depois de os

acontecimentos em Lampedusa se

terem tornado conhecidos. A

operação Mare Nostrum, como

ficou conhecida, é o perfeito

exemplo de uma medida aparen-

temente capaz de responder ao

problema de forma humanitária,

mas que uma análise crítica re-

vela ser insuficiente e capaz de

perpetuar ideias preconcebidas

sobre os imigrantes (ou não

fosse o próprio nome desta

operação uma repescagem da

forma como os antigos romanos

se referiam ao mar Mediterrâ-

neo, que dominavam com o seu

império). Promovida pelo Pri-

meiro-ministro Enrico Letta e

pelo Ministro do Interior Ange-

lino Alfano, esta operação foi

assente em três eixos de ação

(RFI: 2013): a cooperação com

os países de origem destes imi-

grantes (que, como já se viu,

pode servir como uma forma de

compensar os seus governos de

maneira a manter laços comer-

ciais), um controlo mais aperta-

do de fronteiras (assente numa

lógica de securitização e comba-

te à imigração ilegal nem sem-

pre de forma suficientemente

humanitária), e uma tentativa de

melhorar o acolhimento aos

recém-chegados. Apesar de esta

última medida parecer mais efi-

caz na resposta ao problema, é

importante lembrar que muitas

vezes ela se traduz apenas na

retenção (pretensamente tem-

porária) em abrigos provisórios

em que os imigrantes são deti-

dos por tempo indeterminado.

Que decisões como esta sejam

insuficientes é notado por vários

autores desde há já vários anos

(Hyndman, 2012; Collinson,

1996). As próprias elites políti-

cas começam a aperceber-se

deste fato, como fica patente no

apelo lançado pelo Ministro dos

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Page 9 CEIPC — informa

Negócios Estrangeiros Italiano,

Paolo Gentiloni, que parece aca-

lentar a opinião de que é precisa

uma lógica de solidariedade, e não

de securitização, no que diz res-

peito à relação com a imigração

(Rocha, 2015). O que se deve en-

tão fazer num contexto como es-

te, em que a UE se vê confrontada

com fluxos migratórios que muitos

vêm como indesejados, mas acerca

dos quais muitas elites políticas

parecem já manifestar uma opinião

diferente?

Em jeito de conclusão, refiram-

se as quatro soluções apontadas

por Ruhs e Van Hear (2013), que

os políticos podem tomar em con-

ta no que diz respeito à resposta à

imigração em massa causadora de

catástrofes humanitárias:

Acolher e dar proteção perma-

nente aos imigrantes, seguindo

desta maneira o que fica pres-

crito na Convenção de Genebra

no que diz respeito ao estatuto

de refugiado.

Dar um acolhimento temporá-

rio, admitindo um número limite

de refugiados.

Fechar fronteiras e não permitir

a entrada de refugiados ou imi-

grantes.

Escolher não fazer nada.

Se esta última opção se nos afigura

como irresponsabilidade completa

por parte das elites políticas, a

penúltima insere-se claramente na

lógica de securitização de que te-

mos vindo a falar e que tem sido a

predominante em muitos países. Já

as duas primeiras aproximam-se

mais da lógica de solidariedade,

que o Ministro Paolo Gentiloni

parece conceber como necessária.

Estas opções inserem-se, portan-

to, nas duas grandes visões que

temos vindo a analisar, uma que

vê a migração como invasão e

ameaça, a outra que a concebe

como um fenómeno que precisa

de encontrar as devidas respostas

humanitárias.

Mas com uma visão mais política/

humanitária lembramos o artigo

14º da Declaração Universal dos

Direitos Humanos que diz o se-

guinte:

“Toda a pessoa sujeita

a perseguição tem o direito

de procurar e de beneficiar

de asilo em outros países”.

A Convenção Relativa ao Estatuto

dos Refugiados reconheceu a di-

mensão internacional da questão

dos refugiados e a necessidade da

cooperação internacional. Entre-

tanto, a legislação internacional

reconhece o direito ao asilo, mas

não obriga os países a aceitá-lo.

O futuro da EU em geral, e da

Itália em particular, com a grande

quantidade de refugiados que tem

vindo a conhecer nas últimas dé-

cadas, deverá ser analisado de-

vidamente através das soluções

que estão ao seu alcance bem

como a União que pretendem

construir e as políticas de mi-

gração que mais se lhe ade-

quam.

Segundo dados da Guarda Cos-

teira Italiana desde Janeiro de

2015 já morreram em naufrá-

gios cerca de 900 pessoas, das

cerca de 11000 que efetuaram a

travessia desde o inicio do ano.

O Primeiro-ministro Italiano,

Senhor Matteo Renzi já solici-

tou uma reunião extraordinária

dos estados membros da EU a

fim de se estudarem soluções

para este gravíssimo problema.

Sabemos pela comunicação so-

cial que a reunião de emergên-

cia da EU deliberou 10 medidas

de combate ao problema da

migração do Magreb, espera o

autor que mais uma vez as deci-

sões da EU não se fiquem ape-

nas pela ajuda económica, mas

que se tomem medidas eficazes

de combate a este flagelo e a

toda a desumanização existente

nesta zona do globo.

(continuação na página seguinte)

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Page 10 CEIPC — informa

Conclusões:

É mais necessário do que

nunca que a EU responda de

maneira adequada, aumentan-

do a solidariedade e partilhan-

do a responsabilidade ao nível

europeu

Palavras do Ministro dos

Negócios Estrangeiros Italia-

no, Paolo Gentiloni, numa

carta à chefe da diplomacia

europeia2.

Como vimos, este trabalho voltou

-se para um tema bastante atual e

importante, ou não fosse a tragé-

dia de Lampedusa apenas um entre

muitos casos, tendo os conflitos

recentes na Líbia contribuído para

que estes se fossem repetindo, em

maior ou menor escala, até ao

presente ano de 2015. Uma cuida-

da análise geoestratégica e geopo-

lítica, que abarque várias visões e

conceitos, é capaz de analisar devi-

damente tanto as causas e origens

como as consequências e possíveis

respostas políticas que estão dispo-

níveis para os políticos de cada pa-

ís. Colocar em diálogo as duas

principais visões, a que vê nas me-

didas de segurança a resposta mais

correta, e a que vê a lógica de soli-

dariedade como a mais necessária,

é um primeiro passo para compre-

ender na totalidade a complexidade

deste tema e para ser possível che-

gar-se a conclusões e respostas que

façam frente a um problema de tão

grandes dimensões.

Recentemente, a falta de apoio por

parte da União Europeia à ope-

ração Mare Nostrum, levou a

que o governo italiano optasse

pelo seu cessamento, e desse

início à operação Tritão(que

irá terminar em Dezembro de

2015), desta vez com ajuda da

agência Europeia Frontex

(Rocha, 2015), e cujos resulta-

dos estão ainda por avaliar. É

possível que o futuro da EU

passe, em parte, pelo tipo de

resposta que conseguir dar a

este problema humanitário e

os próximos anos serão, sem

dúvida, bastante importantes.

1Para ler mais sobre a Primavera

Árabe, consulte-se a coletânea de

artigos jornalísticos da autora Ma-

ria João Tomás, Da Primavera aos

Invernos Árabes.

2Ver Rocha (2015)

Américo Henriques

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Page 11 CEIPC — informa

(continuação na página seguinte)

MISSÃO HUMANITÁRIA PORTUGUESA EM TIMOR LESTE

1999-2000

Antecedentes

Na sequência da consulta popular

realizada em 30 de agosto de

1999, que contou com a partici-

pação de 95% dos eleitores, num

total de mais de 447.000,o povo

timorense recusou a subjugação

às autoridades indonésias

Em reação a este resultado milí-

cias pró-integração, por vezes

com o apoio de elementos das

forças de segurança indonésias,

lançaram uma brutal campanha de

violência por todo o território,

incluindo mortes, violações, sa-

ques e incêndios.

Respondendo à solicitação da

ONU, Portugal organizou uma

Missão Humanitária de emergên-

cia e apoio ao povo irmão de Ti-

mor Leste.

Balanço da missão

A Missão partiu para Darwin

(Austrália), no dia 16 de setem-

bro de 1999. Não tendo autoriza-

ção das forças da ONU para se-

guir diretamente para Díli, só no

dia 26 de Setembro foi possível

iniciar a deslocação para o terri-

tório timorense.

Durante a nossa estadia e Darwin

os relatos que chegavam à Aus-

trália e ao Mundo davam conta

de uma tragédia humana de pro-

porções incalculáveis.

A ausência de meios aéreos dis-

poníveis para transporte de todo

o material e equipamento para

além de 92 passageiros com dife-

rentes missões no terreno deter-

minou o fretamento de uma aero-

nave de carga de grande capacida-

de (Antonov 214) e um “Lockeed

Tristar L -101.

Neste último avião embarcaram

92 pessoas, nomeadamente 62

elementos do Serviço Nacional de

Proteção Civil -SNPC e Serviço

Nacional de Bombeiros - SNB,

cinco do Ministério da Saúde, três

membros de ONG, um do Minis-

tério da Defesa, o representante

residente do Comissário em Ti-

mor, uma diplomata do MNE des-

tacada para a célula de ligação e o

Chefe da Delegação da Organiza-

ção Internacional das Migrações -

OIM em Lisboa, para além de 19

jornalistas.

Com a delegação portuguesa se-

guiram para Timor cerca de 5.000

rações de combate, peças sobres-

salentes para os automóveis que

viriam a ser utilizadas pela Mis-

são, 600 quilos de material médi-

co consumível que se iria juntar a

70 toneladas de material (um

hospital de campanha, cinco to-

neladas de medicamentos, ali-

mentos, tanques flexíveis, gerado-

res elétricos, quadros elétricos,

equipamento de canalização e de

apoio administrativo), e oito via-

turas de auxílio humanitário (três

ambulâncias, três prontos-

socorros e dois de apoio), que

ostentavam o dístico com a pala-

vra “Portugal”.

A Missão, foi preparada para,

nesta primeira fase, trabalhar de

forma mais ativa em três áreas:

1) Socorro de emergência e as-

sistência médica de urgência;

2) Distribuição de alimentos;

3) Apoio aos refugiados e deslo-

cados.

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Page 12 CEIPC — informa

A Missão chegou a Díli nesse

mesmo dia , tendo-se instalado no

Colégio das Freiras Canossianas,

em Balide e de imediato, abriu um

posto de atendimento à popula-

ção.

O cenário que encontrámos era

dantesco. Uma cidade totalmente

destruída e saqueada com ruas

inteiras pejadas de lixo e não se

via um único Timorense porque

todos tinham fugido. Confirma-

mos depois que este era o cená-

rio de todo o território de Timor

Leste.

Ao fim de duas semanas em Díli,

dois grupos instalaram-se em Er-

mera, cerca de 40Km de Dili e na

ilha de Ataúro.

Em Ermera, localidade nas monta-

nhas a cerca de duas horas de

viagem da capital, treze elementos

da Missão Humanitária portugue-

sa prestaram assistência a uma

população carenciada de tudo.

Na ilha de Ataúro, em frente a

Díli, um grupo mais reduzido,

apenas sete elementos, encontrou

uma situação diferente da que se

verificava no território, os cerca

de sete mil e quinhentos habitantes

da ilha sofriam essencialmente das

consequências de uma situação de

isolamento, já que ali não se regis-

taram as cenas de barbárie que

marcaram dramaticamente aquele

período em Timor-Leste.

No próprio dia da chegada foram

atendidas mais de cem pessoas,

com alguns casos de lepra e diver-

sos tipos de tuberculose, no entan-

to, o número de consultas diminu-

iu consideravelmente e não se jus-

tificava a presença permanente da

equipa portuguesa na ilha.

A ilha passou a ser visitada sema-

nalmente pela equipa portuguesa

para acompanhamento de alguns

casos a necessitar de cuidados mé-

dicos periódicos.

Em 15 de novembro, outro grupo

da Missão Humanitária foi para o

enclave do Oe-Cusse, situado na

parte ocidental da ilha de Timor.

Esta equipa portuguesa foi a pri-

meira a chegar a Oe-Cusse, onde

as condições de vida da população,

nalguns casos ainda sujeita à violên-

cia das milícias, se degradavam

dia-a-dia. Ali apoiamos o resgate

de aproximadamente 40 000 Ti-

morenses que se encontravam

no lado da fronteira Indonésia.

A Missão, desenvolveu um traba-

lho intenso na recuperação do

hospital do enclave (com a preci-

osa ajuda do pessoal da Fragata

Vasco da Gama), nomeadamente

na cobertura do telhado total-

mente destruído pelas chamas. A

Missão participou também, ativa-

mente, na recolha de refugiados

(cerca de 60.000, com base nos

números da OCHA – Office of

Coordination of Humanitarian

Aid), através das fronteiras de

Bobometo, Citrana, Passabe e

Nitibe.

Por todo o território a Missão

Humanitária Portuguesa colabo-

rou no restabelecimento da

energia elétrica com o apoio de

pessoal da EDP, com a distribui-

ção de água, com o apoio de ele-

mentos das Aguas de Portugal,

dos Correios Comunicações

com o apoio de elementos dos

CTT e da PT, com a reconstru-

ção do Porto de Díli com a pre-

sença de técnicos Portugueses e

dos Aeroportos de Dili e de Bau-

cau com a liderança de técnicos

da ANA.

Foi a Missão Portuguesa que ins-

talou a normalidade dos serviços

Postais com o Apoio dos CTT e

o serviço Bancário, com a recu-

peração do edifico do BNU, que

tinha sido totalmente destruído e

a presença de técnicos e vários

funcionários da Caixa Geral de

Depósitos

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Page 13 CEIPC — informa

(continuação na página seguinte)

Os serviços de Saúde foram rea-

valiados e totalmente reestrutura-

dos com a presença do Dr. Cipria-

no Justo, representante do Minis-

tério da Saúde de Portugal que

permaneceu em Timor varias se-

manas e orientou a sua reconstru-

ção, conjuntamente com outros

responsáveis internacionais.

Só na fase inicial de emergência a

Missão Humanitária distribuiu por

todo o território:

350 toneladas de arroz

1000 litros de Combustível às Fa-

lintil

2000 cobertores

6 000 rações de combate

4000 litros de óleo vegetal

Ao longo da Missão distribuímos

ainda:

50 000 chapas de zinco, pregos e

madeiras

400 camas articuladas

4 Aparelhos esterilizadores

1 Purificador de agua

40 toneladas de livros escolares

30 toneladas de peças de vestuá-

rio e calçado ( porta das Igrejas)

Milhares de pás, enxadas e picare-

tas

500 televisões, geradores e ante-

nas parabólicas

Em três meses a Missão de Portu-

gal apoiou a recuperação da vida

normal da sociedade Timorense,

através da Igreja, da sociedade

Civil, dos equipamentos referidos,

no apoio às Falintil e das ONG

num montante de investimento

superior a 4,5 milhões de euros.

Atuação da equipa de bom-

beiros

O grupo de bombeiros que in-

tegrou a missão tinha na esfera

das suas atribuições o ónus es-

pecifico de prestar socorro à

população (nas áreas do socor-

rismo e combate a incêndios) e

na formação técnica e organiza-

cional dos Corpos de Bombei-

ros nas localidades definidas de

Díli, Aileu e Baucau. Os bombei-

ros colaboraram no abasteci-

mento de água às populações,

lavagem de pavimentos, repara-

ções diversas, distribuição de

roupas; alimentos, chapas de

zinco, madeiras, ferramentas,

esteiras, brinquedos, eletrodo-

mésticos, livros, material didáti-

co, e até no transporte funerá-

rio (por não existir nenhum

serviço do género no territó-

rio).

À equipa de bombeiros foram

cedidos os espaços convenien-

tes para os futuros quartéis de

bombeiros em Díli, Baucau e

Aileu, tendo-se iniciado a for-

mação de bombeiros recrutas

timorenses (cerca de 90 e pro-

venientes das forças da FALIN-

TIL).

Esta nossa atuação levou a que

as UN tomassem consciência

da necessidade da existência

dessas forças de proteção de

pessoas e bens e em

2000/2001 já sob a égide das

Nações Unidas, instalamos

definitivamente 5 CB por todo

o pais.

Com uma equipa totalmente

composta por responsáveis

portugueses tive a honra de

coordenador essa Missão das

Nações Unidas e no final a

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Page 14 CEIPC — informa

atuação dos bombeiros portugue-

ses, antes e depois da instalação

dos Corpos de Bombeiros foi

enaltecida e alvo de louvor publi-

co pela INTERFET e pela UNTA-

ET e pelas Nações Unidas

Dada a importância desta equipa,

e a dimensão do trabalho presta-

do, a Missão, coordenada e com o

apoio financeiro do Comissário

para o apoio à transição em Ti-

mor-Leste, decidiu enviar um ca-

mião de transporte com uma

equipa de salvamento e uma am-

bulância com uma enfermeira pa-

ra Oe Cusse onde acompanha-

mos o resgate e regresso a Timor

de mais de 60 000 mil Timorenses

que tinham fugido das represá-

lias .

O trabalho humanitário foi execu-

tado em conjunto com as ONG´s

Médicos do Mundo, AMI, Saúde

em Português, Oykos entre ou-

tras .

A partir de Dezembro, a equipa

começou a ser progressivamente

rendida, findo o período de 90

dias da Missão Humanitária Timor

99, sendo substituída por outra.

Atuação da equipa da saúde

A equipa da saúde enviada a Ti-

mor, no âmbito da Missão Huma-

nitária Timor ´99, era formada

por 3 médicos e 3 enfermeiros do

INEM, 3 enfermeiros da Cruz

Vermelha Portuguesa, 1 enfermei-

ra da organização não governa-

mental CIC e 3 técnicos de emer-

gência médica da Cruz Vermelha

Portuguesa integrados na equipa

do INEM.

No dia 26 de Setembro de 1999,

chegaram a Díli, os primeiros ele-

mentos da equipa da saúde da Mis-

são Humanitária Timor 99 (um

médico e um enfermeiro),que rapi-

damente puseram em funciona-

mento uma unidade médica.

Informados entretanto pela UNI-

CEF, entidade responsável pela

coordenação das organizações hu-

manitárias presentes em Timor, de

que à Missão Humanitária Timor

99, tinha sido destinado o antigo

hospital português, Dr. António

Carvalho, transformado em hospi-

tal militar durante a ocupação in-

donésia, foi feita uma primeira ava-

liação das instalações.

Encontrou-se um edifício mais ou

menos preservado na sua estrutu-

ra, mas muito danificado no inte-

rior e com todo o equipamento

total e intencionalmente destruído.

Recuperamos a sua quase totalida-

de, constitui-se uma unidade de

internamento pediátrico, recons-

truiu-se e equipou-se uma sala de

pequena cirurgia e iniciamos uma

consulta de Planeamento Famili-

ar, algo que não existia em Ti-

mor há duas décadas e meia .

Das reuniões diárias com os res-

ponsáveis da UNICEF, e tendo

em conta as especialidades dos

médicos presentes na Missão, foi

acordado que o trabalho desen-

volvido por esta equipa médica

seria mais importante na verten-

te cirúrgica, sem prejuízo das

outras solicitações da população .

Face às dificuldades de transpor-

te de doentes/vítimas que acorri-

am ao centro médico, e por

acordo com as autoridades de

segurança em Díli, as três ambu-

lâncias desta Missão passaram a

deslocar-se com frequência a

vários pontos da cidade e perife-

ria, recolhendo doentes com

dificuldade de locomoção, e rea-

lizando transferências de doen-

tes/vítimas para este ou outras

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Page 15 CEIPC — informa

unidades hospitalares.

Os casos cirúrgicos devido a feri-

das por arma branca e/ou fogo, na

sua maioria Infetadas, os trauma-

tismos por quedas com fraturas, e

os casos de desidratação e desnu-

trição foram as situações que mais

frequentemente foram registadas

nesta unidade.

Considerou-se urgente melhorar

as condições de salubridade da

água, e iniciar um plano geral de

vacinação , orientado e coordena-

do pela UNICEF e OMS e estabe-

leceram-se protocolos de trata-

mento da tuberculose pulmonar, a

serem acordados com a OMS e

UNICEF, no sentido de se atingir

uniformidade entre todas as orga-

nizações empenhadas nos cuida-

dos de saúde.

Desde o dia 25 de Outubro, a

Missão tinha em funcionamento

seis centros de atendimento médi-

co em diversas localidades de Ti-

mor-Leste (Maubisse, Hato- Buili-

ko, Ermera e em Díli), com dez

médicos e sete enfermeiros.

Foram contratados 31 outros

elementos, todos timorenses,

entre quais enfermeiros, técnicos

de raio X e pessoal de apoio.

O Hospital Dr. António Carva-

lho parcialmente recuperado

encontrava-se a funcionar em

Dezembro de 1999 com 28 ca-

mas, essencialmente de pediatria.

Para reforçar as equipas de saú-

de da Missão, partiram no dia 18

de Novembro para Timor-Leste,

mais quatro enfermeiros prove-

nientes do Hospital Pediátrico D.

Estefânia, em Lisboa.

Não tenho estatística correta

sobre a assistência prestada por-

que acho que não seria possível

fazê-la, dado que os médicos e

enfermeiros portugueses come-

çavam a dar consultas as 7 horas

da manha e terminavam noite

fora à luz de velas e geradores.

À porta da Missão Portuguesa

nas Madres Canossianas junta-

vam-se, diariamente, centenas de

pessoas que pediam ajuda para

lhes localizarmos os seus familia-

res, transportamos os seus fami-

liares falecidos ( ninguém ajudava

a população neste processo),

para as suas localidades no inte-

rior do território pediam agua ,

arroz ou farinha, medicamentos

para a suas maleitas, consultas

para as suas crianças ou simples-

mente uma palavra amiga dita na

língua que eles não quiseram

esquecer: o Português.

Nos dias a seguir á nossa chega-

da, chegavam a Dili vindos das

montanhas , cerca de 200 pesso-

as por hora e todos queriam

chegar à Missão Portuguesa ins-

talada em Balide.

O regresso ocorreu a 9 de De-

zembro de 1999, no mesmo avi-

ão em que chegou para uma visi-

ta oficial a Portugal, o Coman-

dante das Falintil, Taur Matah

Ruak (actual Presidente da Repú-

blica de Timor Leste).

A Missão foi substituída por no-

vos elementos que ficaram até

Março de 2000 em continuação

de um trabalho e dedicação ím-

par que conduziu á recuperação

de um território totalmente des-

truído e de uma população que

sofreu um genocídio terrível mas

sempre se soube manter fiel ás

suas tradições e á sua história

onde, nos seus corações Portu-

gal teve e continua a ter sempre

um papel destacado.

Rui Silva

Coordenador da Missão Humanitá-

ria em Timor Leste 1999/2000

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CENTRO DE ESTUDOS E INTERVENÇÃO EM PROTECÇÃO CIVIL

“O CEIPC tem por

objetivo a produção

e divulgação de infor-

mação, bem como a

realização de estudos

e trabalhos de inves-

tigação que contribu-

am para a construção

de uma cidadania

responsável e inter-

ventiva, no âmbito da

proteção civil”

Artigo 3.º dos Esta-

tutos

[email protected]

fff

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