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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE – UNI-BH Gabriel Henrique Santo Fernandes OS DISCURSOS QUE JUSTIFICAM A GUERRA SANTA As motivações cristã e islâmica para o uso da força em conflitos religiosos Belo Horizonte 2014

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE – UNI-BH

Gabriel Henrique Santo Fernandes

OS DISCURSOS QUE JUSTIFICAM A GUERRA SANTA

As motivações cristã e islâmica para o uso da força em conflitos

religiosos

Belo Horizonte

2014

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Gabriel Henrique Santo Fernandes

OS DISCURSOS QUE JUSTIFICAM A GUERRA SANTA: As

motivações cristã e islâmica para o uso da força em conflitos religiosos

Monografia apresentada ao Centro Universitário

de Belo Horizonte como requisito parcial à

obtenção do título de bacharel em Relações

Internacionais.

Orientador: Professor Leandro Rangel

Belo Horizonte

2014

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RESUMO

O campo de estudos das Relações Internacionais é uma área de conhecimento

muito ampla, capaz de abordar inúmeros e variados temas, e contextualizá-los

sempre com o cenário analisado. Apesar de ser um campo relativamente novo na

academia, as Relações Internacionais são capazes de explicar fatos e fenômenos

acontecidos há séculos atrás. Tendo em vista a capacidade das Relações

Internacionais de trabalhar com inúmeros e diversos temas, e a importância da

abordagem e conhecimento dos assuntos relacionados à religião, principalmente

nos dias atuais; o presente estudo tem por objetivo trazer a discussão a respeito das

Guerras Santas, e todos os elementos por trás dessa temática. O objetivo desta

dissertação é entender o que leva aos grupos religiosos a promoverem guerras,

morais ou físicas, em nome de suas doutrinas e analisar os discursos que sustentam

tais empreitadas, comparando duas correntes em especial, o cristianismo e o

islamismo. A partir desta análise será possível identificar os verdadeiros propósitos

das guerras santas, e compreender melhor todos os fatores que envolvem a sua

composição desde seu o início até suas consequências.

Palavras-Chave: Guerra, Religião, Cruzadas, Jihad, Cristianismo, Islamismo,

Discurso, Uso da Força.

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ABSTRACT

International Relations study field is a very broad area of knowledge, able to involve

numerous and varied issues, and contextualize them always with the specific

analyzed scenario. Despite being a relatively new academic field, International

Relations are able to explain facts and phenomena that happened centuries ago.

Regarding the ability of International Relations of working with numerous and diverse

subjects, and the importance of approach and understanding issues relating to

religion, especially nowadays; this study aims to bring the discussion of Holy Wars,

and all the elements behind this theme. The objective of this dissertation is to

understand what motivates religious groups to promote the religious wars, moral or

physical, on behalf of its doctrines and analyze the discourses that support such

contracts, comparing two religious chains in particular, Christianism and Islam. From

this analysis it will be possible to identify the true purpose of holy wars, and better

understand all the factors involved in its composition since its inception to its

consequences.

Key words: War, Religion, Crusades, Jihad, Christianism, Islam, Discourse, Use of

Force.

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SUMÁRIO

1. Introdução ........................................ ................................................................... 6

2. A composição e definição da guerra ................ ................................................ 8

2.1. A evolução da abordagem da guerra e seu conceito de justeza ........... 12

2.1.1. A guerra para as primeiras civilizações ........... ................................. 13

2.1.2. O direito romano e a guerra ....................... ......................................... 15

2.1.3. A guerra justa, e santa, da Idade Média ........... .................................. 16

2.1.4. A abordagem da guerra para o novo sistema internaci onal ............ 19

3. A religião e sua importância para o sistema interna cional .......................... 21

3.1. A guerra santa e o seu discurso ................... ............................................ 26

3.1.1. O discurso cristão e a guerra ..................... ........................................ 30

3.1.2. O discurso islâmico e a jihad ............................................................. 33

4. Conclusão ......................................... ................................................................ 36

Referências Bibliográficas ........................ ............................................................. 39

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1. Introdução

Estudar mais a fundo os assuntos relacionados à religião vem se tornando cada vez

mais recorrente nas Relações Internacionais, e necessário para os dias atuais, visto

as crescentes ocorrências de conflitos relacionados a questões religiosas que vem

sendo levantadas no cenário internacional. Tendo em vista o importante papel que a

religião possui na vida dos indivíduos, e partindo de um pressuposto de que o

indivíduo exerce atividades de essencial importância para a construção e

funcionamento do sistema internacional; podemos atribuir à religião um lugar de

destaque e importância nos estudos do campo, assim como na presente

dissertação.

Em uma definição básica da palavra, encontrada comumente em dicionários e

enciclopédias, e normalmente difundida pelo senso comum dentro da nossa

sociedade; podemos considerar a religião como um conjunto de ritos e cerimônias,

ordenados pela manifestação de um culto a uma divindade (MICHAELLIS, 2009).

Porém o termo religião chega a ser ainda mais complexo do que se pode imaginar.

De acordo com Giovanni Filoramo e Carlo Prandi (1999), o termo “religião” e seus

derivados apesar de serem comumente utilizados em várias partes do globo para

expressar o mesmo significado acima descrito, não eram termos mencionados e

utilizados pelas civilizações antigas, de onde basicamente surgiram as principais

correntes religiosas (FILORAMO; CARLO, 1999). De acordo com os autores:

(...) religio indicava, no mundo latino pré-cristão, essencialmente um estilo de comportamento marcado pela rigidez e pela precisão; no máximo, evocava as modalidades de execução de um rito, que, pelo caráter da religião romana, era regido por normas muito rígidas e escrupulosas (FILORAMO; CARLO, 1999, p.255).

Portanto é possível perceber que desde os primórdios da humanidade, a religião foi

utilizada como um conjunto de normas e valores destinados a guiar as pessoas;

como uma forma de agrupar pensamentos similares, conduzir comportamentos e

também como a ponte que liga o mundo profano ao divino; a religião sempre teve

um espaço reservado na vida e no cotidiano dos indivíduos. Pessoas tendem a se

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agrupar de acordo com suas afinidades e compatibilidades de pensamentos e

interesses. Pode-se considerar, mesmo que de forma dedutiva a princípio, a religião

como um desses fatores aglutinadores visto que, ela carrega consigo fortes

ideologias que, de certa forma, confortam e atraem os indivíduos.

Desta forma, sabendo que atualmente existem diversas manifestações e correntes

religiosas espalhadas pelo mundo, pode-se também deduzir que a religião do

mesmo modo que agrupa indivíduos, em decorrência da sua compatibilidade de

pensamentos, também pode ser fator causador de diversos conflitos, por conta das

diferenças doutrinárias. É possível perceber alguns exemplos de conflitos

envolvendo questões religiosas em inúmeros momentos durante toda a história da

humanidade; inclusive alguns que, perpetuam até os tempos atuais. A partir deste

pensamento já se pode perceber a importância do estudo e acompanhamento do

tema, visto que o mesmo pode desencadear uma das maiores preocupações do

campo das Relações Internacionais: os conflitos, a guerra e a segurança dos

Estados.

O sistema internacional e os fluxos que o compõe permitem que as religiões, e os

indivíduos que as sustentam, estejam presentes em praticamente todos os cinco

continentes, e constantemente interagindo entre si. A partir do contato entre essas

pessoas de diferentes doutrinas, é possível identificar pontos semelhantes ou

divergentes entre elas e, consequentemente, debates teóricos, afinidades

ideológicas e, até mesmo, conflitos físicos e morais decorrentes. De acordo com

Scott Thomas (2000), a religião é considerada muitas vezes parte do sistema de

valores de algumas sociedades e até mesmo de países inteiros; por isso, o presente

estudo ressalta a importância do debate a respeito do assunto, assim como o

entendimento dos conflitos originários de tal temática. Partindo deste pressuposto e

sabendo que a religião é um importante elemento da composição e formação da

identidade do indivíduo, torna-se pertinente e válido analisar neste presente estudo,

o envolvimento e atuação de grupos religiosos dentro do cenário internacional,

principalmente como motivadores de conflitos; sua construção histórica, as razões e

fatores que os levam a cooperar ou não com o sistema internacional, assim como o

impacto causado por eles dentro do mesmo sistema.

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O objetivo desta dissertação é entender a razão que leva as grandes correntes

religiosas, neste caso o cristianismo e o islamismo, a utilizarem, ou terem utilizado

ferramentas bélicas como forma de alcançar alguns objetivos, sendo que, em sua

essência doutrinária, pregam valores de paz, tolerância e bondade dentre seus

seguidores. Desta forma tal dissertação visa primeiramente definir o fenômeno

guerra, analisar sua composição e suas diversas variações, como forma de,

consequentemente, introduzir e abordar o tema Guerra Santa. Após tal abordagem

inicial, serão trazidas análises específicas de dois casos que, podem ser

considerados que, foram/são, respectivamente, as maiores empreitadas bélico-

religiosas da história da humanidade: as cruzadas e a jihad1. Assim espera-se

entender um pouco melhor os discursos de tais correntes, assim como as

motivações e bases que os levaram a realizar tais empreitadas.

2. A composição e definição da guerra

Durante séculos estudiosos buscaram entender os motivos que levam os povos e

civilizações a fazerem guerra. Como dito anteriormente neste estudo as guerras e

demais conflitos, físicos ou não, representam umas das principais preocupações das

Relações Internacionais, assim como dos Estados em si, tendo em vista que um dos

principais assuntos tratados em suas agendas é a segurança nacional. Esse

fenômeno possui inúmeras facetas e perspectivas, e é importante entender todas as

suas variações, assim como ter a capacidade de projetar suas inúmeras

consequências e impactos. Para que seja possível abordar com maior consistência a

temática das guerras santas, será necessário entender primeiramente os conceitos e

definições de guerra, assim como a evolução do termo e da sua abordagem durante

os séculos.

De acordo com Carl Von Clausewitz “a guerra é [...] um ato de força para obrigar

nosso oponente a fazer nossa vontade” (CLAUSEWITZ, 1984, p.75). Tal definição

ainda é bastante utilizada nos dias atuais, salvo novas interpretações, e serve para

1 Conceito islâmico que, de acordo com Marco Meschini (2007), significa esforço ou luta para a manutenção dos ensinamentos e preceitos islâmicos.

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que se possa entender o fenômeno bélico em suas diversas variações. É

interessante ressaltar que o ato de força citado pelo autor resume-se não apenas à

força física, mas também à psicológica, quando usadas para compelir, ou seja,

obrigar pela força o outro indivíduo a fazer as vontades daquele que detêm o poder,

ou está em vantagem (CLAUSEWITZ, 1984). Será possível entender melhor a

definição do termo nas futuras explanações do presente estudo, mas é importante

destacar desde o presente momento que a visão clausewitziana possui um enfoque

realista, que será importante ao atual estudo apenas com o propósito de introduzir o

fenômeno da guerra. Desta forma, pode-se concluir que, a partir deste primeiro

conceito de Clausewitz, para que haja uma guerra é necessário, no mínimo, dois

atores; sendo que um deles deve estar motivado a impor suas vontades e desejos

sobre o outro. Também é implícito na presente definição que, além dos atores

envolvidos, é necessário que haja um confronto entre eles, seja ele físico ou não.

Aprofundando-se um pouco mais no conceito, entende-se por “guerra” não somente

o fenômeno bélico envolvendo dois ou mais atores. Apesar do conflito físico e

armado ser a primeira imagem a ser associada ao termo, a guerra pode-se também

estar associada a outros fenômenos como, por exemplo: um embate moral, teórico e

diplomático; um embargo comercial ou econômico; ou até mesmo embates físicos

indiretos, como foi o caso da Guerra Fria, onde as duas potências que disputavam

entre si não atingiam diretamente uma à outra, mas se utilizavam de outras

estratégias e táticas a fim de compelir o oponente.

De acordo com seus estudos, Clausewitz (1984) considerava a natureza do ser

humano divida em duas faces: uma física e outra intelectual/moral 2. O lado físico

refere-se propriamente ao significado da palavra, ou seja, a tangibilidade do ser

humano (tronco, membros, cabeça, número de indivíduos, capacidade física, etc); já

a parte moral refere-se ao psicológico humano, o seu lado intangível, o que não

pode ser contado (ânimo, motivação, coragem, saúde mental, etc.). Essas

2 O vocábulo “moral”, tal como utilizado por Clausewitz, requer maiores esclarecimentos: “O termo ‘forças morais’ resgata um entendimento de moral no sentido de estado de ânimo, disposição, fervor ou coesão (...)”. (DINIZ, PROENÇA JÚNIOR, 2004, nota de rodapé 14).

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dimensões do indivíduo, de acordo com o autor, são inseparáveis e possuem grande

influência uma sobre a outra, como se pode constatar com o seguinte trecho:

Os efeitos dos fatores físicos e psicológicos formam um todo orgânico que, diferentemente de uma liga metálica, não pode ser separada através de processos químicos. Ao formular qualquer regra com relação aos fatores físicos, o teórico deve ter em mente a influência que os fatores morais poderão exercer sobre ela. Se não, ele poderá ser levado erroneamente a fazer afirmativas categóricas que serão tímidas e limitadas demais, ou então demasiadamente radicais e dogmáticas. (CLAUSEWITZ, 1984, pp. 208-209).

A partir do trecho acima citado, pode-se perceber a importância de se levar em

consideração, dentro de um cenário de guerra, a composição física e psicológica,

dos indivíduos, relativa a tal cenário e contexto. Uma dimensão tem influência direta

sobre a outra, e tais influências são importantes para as táticas e estratégias dentro

do ambiente da guerra (CLAUSEWITZ, 1984).

A influência de um fator sobre o outro pode ser percebida na, hipotética, decisão de

um Estado em não entrar em conflito com outro, por falta de motivação da sua tropa

ou por reconhecer sua possível derrota, por exemplo. Ao se render, considera-se

automaticamente o seu oponente como no papel de vitorioso, mesmo que não tenha

ocorrido embate físico real entre as partes. Não é correto afirmar, nesse caso, que

não houve a guerra de forma real; mas sim que, a mesma, ocorreu num plano

virtual, pois o Estado, ao se render utilizou-se de ferramentas de análise e

prospecção de cenários, cálculo de ganhos e custos, e outras ferramentas para

tomar sua decisão, e de acordo com suas análises, caso houvesse um embate

físico, existia a possibilidade de sair como o derrotado. Neste caso o embate

ocorreu, porém projetado virtualmente pelo lado desertor.

Desta forma destacam-se dois tipos de força dentro de um conflito: a força física e a

força moral (CLAUSEWITZ, 1984). A força física entende-se pelo contato físico,

como por exemplo, uma facada, um tiro ou um soco; já a força moral entende-se

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pela coerção, ameaça, intimidação, etc.3 Assim como as duas dimensões do

indivíduo, esses dois tipos de força utilizadas na guerra também podem influenciar

uma à outra, e são de essencial importância para a composição do fenômeno bélico

(CLAUSEWITZ, 1984).

Portanto, como visto anteriormente, a guerra, como ato de força descrito por

Clausewitz (1984), resume-se na utilização das forças físicas e morais, sempre

utilizadas de forma conjunta, visto a também convergência das duas dimensões

humanas. Ainda, podemos concluir que o ato de força de Clausewitz (1984), parte

de uma equação entre força física e moral, e suas possíveis potencialidades,

resultando assim num embate direto, ou não, entre as partes componentes da

guerra. O especialista em direito internacional, Hermes Marcelo Huck, em seus

estudos sobre a guerra, afirma que “nenhum Estado ingressa na incerta aventura

das batalhas somente para obter uma vitória militar” (HUCK, 1996, p.11). Essa

afirmação apenas reforça o fato de o ato de força depender da combinação entre as

dimensões físicas e psicológicas de um Estado, ou do seu governante; e de também

resultar de uma análise de ganhos absolutos ou relativos por parte dos mesmos,

resultando em ganhos tangíveis e também intangíveis para o Estado.

Porém não se pode entender a guerra apenas tendo como referência os lados e as

forças que a compõe. De acordo com os professores Rafael Ávila e Leandro Rangel,

“o estudo da guerra pressupõe (...) um amplo conhecimento dos principais eventos

históricos no qual o uso da força é o instrumento principal de interação política”

(ÁVILA; RANGEL, 2009, p.29). É importante entender como tais eventos

aconteceram, o que os motivou, como se desenvolveram e quais os impactos

causados após o seu término. O levantamento desses fatores é o que auxilia os

estudiosos do campo dos estudos estratégicos a entenderem e terem a capacidade

de analisar o fenômeno bélico de forma mais completa e precisa. É importante

entender o contexto no qual a guerra está inserida, e a sequência de fatos que, ao

serem somados, resultam no combate propriamente dito, seja ele real ou virtual.

3 Ver Campos (2008) “A teoria do uso da força em Clausewitz e Brittner: Uma unidade teórica fundamental dos Estudos Estratégicos”, páginas 14 e 15.

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De acordo com Clausewitz, “a guerra não é meramente um ato de política, mas um

verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas realizada

com outros meios” (CLAUSEWITZ, 1984: 91). Huck ainda acrescenta que “a guerra

é um ato social que pressupõe um conflito de vontades entre coletividades

politicamente organizadas, cada uma delas buscando prevalecer sobre a outra”

(HUCK, 1996, p. 9). Porém é também importante perceber que o pensamento

realista e tradicional a respeito da guerra e demais questões de segurança, foram

incorporados a pensamentos mais amplos a respeito de tais fenômenos (BUZAN et

al., 1998). Nos dias de hoje, estuda-se que a segurança não está somente ligada ao

poderio militar. Com o surgimento de novos atores no cenário internacional e novos

campos de estudos, esta se vincula e pode ser analisada por diferentes áreas, tendo

cada uma seu conceito e aplicação de forma particular (BUZAN et al., 1998). A partir

daí Buzan (1998) destaca a importância de se analisar o discurso como forma de se

securitizar, e com isso, deduz-se a importância de melhor analisar o discurso da

guerra como meio para entendê-la melhor ou evitá-la.

Sendo a guerra uma significativa preocupação para os Estados; sabendo de suas

roupagens políticas, sociais, ou quaisquer outras que possam surgir; e entendendo

um pouco melhor a respeito de algumas variáveis que a compõe e a importância do

seu discurso; é interessante entender então a construção do discurso a respeito da

legalidade da guerra assim como a maneira como esse fenômeno era enxergado ao

longo dos séculos Essas questões serão abordadas ainda, de forma mais detalhada

e específica, nas próximas etapas do presente estudo e servirão para entender

melhor a construção e o embasamento dos conflitos bélico-religiosos, popularmente

conhecidos como guerras santas.

2.1. A evolução da abordagem da guerra e seu concei to de justeza

Não se pode considerar que a guerra tenha mantido a mesma roupagem e

configuração desde as primeiras civilizações da humanidade, muito menos que, hoje

em dia, ela apresenta características totalmente diferentes das de antigamente. O

fenômeno da guerra é composto de evoluções e adaptações, assim como as

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questões de segurança em geral. O objetivo desta seção é tentar traçar um

comparativo evolutivo a respeito do discurso sobre a legalidade da guerra, assim

como seu do seu entendimento através dos séculos e as justificativas para que a

mesma fosse feita e apoiada pelos indivíduos. Através a análise dessa evolução

conceitual ao longo dos séculos será possível perceber onde nasce cada discurso

religioso como forma de fornecer suporte para o conflito bélico.

2.1.1. A guerra para as primeiras civilizações

A guerra, mesmo que não na mesma proporção conhecida dos dias atuais, ocorre

desde as mais primitivas civilizações, a partir do momento em que certo grupo de

indivíduos quis se impor por sobre outro, como visto anteriormente, de acordo com

as teorias de Clausewitz (1984). Os professores Rafael Ávila e Leandro Rangel

(2009) 4 afirmam que mesmo ocorridas em menores proporções e provavelmente

envolvendo um número menor de indivíduos, as guerras ditas como “primitivas”

poderiam ser consideram tão brutais quanto as atuais, pois refletiam no extermínio

de povos e até mesmo nações.

Hermes Marcelo Huck (1996) afirma que:

No princípio, a guerra era apenas o conflito entre o bem e o mal. Não havia espaço, no estudo da guerra, para a moral ou o direito; o que estava em jogo era a vida, reduzindo-se a natureza humana às formas mais primitivas, onde afloravam os interesses egoístas e o instinto de sobreviver. (HUCK, 1996, p. 1).

Desta forma, entende-se que, durante a sociedade primitiva, as guerras eram

basicamente instrumentos dos quais os povos se utilizavam para combater aquilo

que não lhes convinha, que não julgavam como certo ou que lhes impedia de atingir

seus objetivos principais. “Os povos selvagens são levados pela paixão, os povos

civilizados pela mente” (CLAUSEWITZ, 1984, p. 76). Não existiam ainda estudos,

àquela época, a respeito do uso da força, sua composição e legalidade; ele era

4 Ver: Ávila, R; Rangel, L (2009). “A guerra e o direito Internacional”, páginas 34 e 35.

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simplesmente considerado algo inerente à natureza humana, à essência do

indivíduo. O estado de natureza de Thomas Hobbes explica muito bem a justificação

da guerra nos tempos das sociedades primitivas. De acordo com Hobbes (2002),

uma vez inexistente um poder comum dentro de uma sociedade, todos os indivíduos

são portadores de direitos e condições iguais. Porém, sendo impossível que todos

os indivíduos usufruam igualmente de todos os seus direitos, e não havendo regras

que os limitem para que alcancem tal usufruto, surgem as competições e os

conflitos, na mais variadas proporções, para que os mesmos atinjam seus objetivos.

A natureza deu a cada um direito a tudo; (...) o direito de natureza permite que sejam feitas ou havidas aquelas coisas que necessariamente conduzem à preservação da vida e dos membros – de tudo isso decorre que, no estado de natureza, para todos é legal ter tudo e tudo cometer. (HOBBES, 2002, págs. 32-33)

Desta forma, de acordo com Hobbes (2002), os fins justificam os meios. E desta

forma pode-se entender que, para as primeiras civilizações, se a guerra fosse o

caminho para se alcançar seus objetivos, ela seria justa. Huck (1996) ainda afirma

que a detenção do uso da força era também a maior justificativa da guerra à época

dos gregos e demais civilizações antigas. Ou seja, tinha direito de guerrear aquele

que fosse mais forte, ou que detinha o uso da força e se colocasse em posição de

vantagem. Esses eventos bélicos ocorridos nos primeiros séculos de civilização,

como dito anteriormente, foram de extrema importância para o crescimento ou

extinção de alguns povos antigos. Grupos étnicos, religiosos; fronteiras e territórios

eram modelados, construídos ou modificados como consequência de conflitos

bélicos primitivos.

“A guerra é uma atividade humana responsável por mudanças sociais, políticas e

econômicas” (ÁVILA; RANGEL, 2009, p.35). Essa afirmação traz a verdadeira

importância da guerra, e também uma intensa reflexão sobre a extrema delicadeza

desse fenômeno, principalmente para as Relações Internacionais. A história e a

geografia do mundo foram intensamente modificadas pelos fenômenos bélicos, e ao

longo dos anos começou-se a perceber a necessidade de tratar de tal assunto não

somente relacionado ao seu caráter físico, mas também moral. Como visto

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anteriormente, tal faceta do fenômeno bélico também se mostra muito importante

para sua análise e melhor entendimento.

2.1.2. O direito romano e a guerra

O Império Romano pode ser considerado como a primeira civilização a tratar a

guerra não somente como parte do instinto humano com a justificativa única e

absoluta da detenção do uso da força, muito menos levou em consideração apenas

seu caráter físico. O Império também pode ser considerado, de acordo com Ricardo

Seitenfus (2003), a origem da atual sociedade internacional.

Dentro de suas fronteiras, o Império Romano possuía uma série de normas e

procedimentos a serem seguidos para que a guerra pudesse acontecer; dessa

forma, pode-se dizer que havia um “protocolo” de guerra. Da mesma forma, pode-se

considerar o Direito Romano como o primeiro a abordar a justeza da guerra e suas

condições. De acordo com Dinstein (2004), para ser justa a guerra deveria ser

precedida de um requisito oficial e de uma declaração formal. Nesta formalização

citada acima eram descritos os motivos do anúncio da guerra por Roma e a

sugestão para que o oponente cedesse sem que houvesse o embate físico (ÁVILA;

RANGEL, 2009). Percebe-se então, que nesta época o conceito de guerra justa era

basicamente relacionado à formalização ou não do conflito. Informar ao oponente de

que ele seria atacado era considerado uma forma de prepará-lo para o conflito, e dá-

lo a oportunidade de se defender, atacar ou ceder. Nestes termos era considerado

de que, caso houvesse o embate físico, o mesmo seria justo, pois foi informado

anteriormente.

De acordo com Huck (1996) havia quatro casos os quais Roma considerava como

motivos justos para a declaração de uma guerra. Eram eles:

i. A violação do território romano. ii. A violação pessoal ou insulto aos embaixadores de Roma. iii. A violação de tratados firmados com Roma.

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iv. O apoio ao inimigo por uma nação considerada amiga de Roma.

(HUCK, 1996, p. 28).

Durante muitos anos, as práticas romanas eram consideradas as mais adequadas a

serem aplicadas na guerra. De acordo com Rafael Ávila e Leandro Rangel (2009):

Essa prática, tanto pela importância histórica dos romanos, quanto por seu sucesso, ou seja, sua extensa utilização ganhou destaque e passou com o tempo, a ser utilizada por outros. Mesmo com o fim do jus fetiale5, a ideia de guerra justa permaneceu e cativou gerações vindouras. (ÁVILA; RANGEL, 2009, p. 35).

Pode-se identificar essa prática de anunciar o uso da força bélica até mesmos nos

dias atuais, quando um Estado ameaça o outro com uma intervenção militar caso o

mesmo não cumpra com certo acordo firmado, esteja infringindo os direitos

humanos, não acabe com uma guerra ou conflito civil, ou outros motivos

considerados pertinentes pelo sistema internacional por exemplo.

2.1.3. A guerra justa, e santa, da Idade Média

À medida que o cristianismo foi crescendo, e dominando a Europa, inclusive o

Império Romano; os pensamentos a respeito da guerra justa começam a se

modificar. Os primeiros cristãos a debater sobre o assunto desaprovavam a guerra

como um todo, e a participação da Igreja na mesma; tornando a guerra injusta, ilegal

e ilegítima. Teoricamente essa corrente se mostrava coerente aos ensinamentos da

bíblia cristã, que prega a paz e harmonia entre os povos, repudia a violência, a

traição e a covardia. Porém a partir do século IV podemos notar certo desvio na

linha de raciocínio cristã em relação à guerra e sua justeza, com os escritos de

Santo Agostinho (HUCK, 1996).

Santo Agostinho, e alguns séculos depois São Tomás de Aquino, trata a guerra

como um mal necessário para a manutenção da paz. Desta forma, uma guerra; 5 Direito concedido aos sacerdotes romanos que compreendia o poder declarar guerras (ÁVILA; RANGEL, 2009).

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como no caso do Império Romano e das antigas civilizações, que fosse feita por

motivos de vinganças, acertos de conta ou simplesmente a fim de dizimar um povo;

era considerada como injusta para tais teóricos. Se o fenômeno bélico não

buscasse, exclusivamente, a restauração da paz; não era considerado adequado e

justo pelos cristãos. Percebe-se claramente, neste caso que a guerra era um

instrumento de “combate ao mal”, Huck mesmo afirma que:

A guerra justa, fundada numa justa causa, deveria ser destinada à reparação de um dano sofrido e não deflagrada por mera vingança. Servia ainda para atacar uma nação que se recusasse a punir um mau ato, ou quando se recusasse a restituir algo que fora injustamente subtraído a outra nação. (HUCK, 1996, p. 31).

De qualquer forma, apesar de a guerra a essa época ser justificada por bons

motivos, em virtude do bem e da paz; de acordo com tais teóricos a justiça em

relação ao resultado da guerra, como afirma Huck (1996), cabia única

exclusivamente à Deus e a seu julgamento. A Igreja Católica Romana teve

importante papel na definição e caracterização da guerra durante esse período;

contribuindo tanto com pensadores quanto com fatos históricos. De acordo com

Ricardo Costa e Armando Alexandre dos Santos (2010), uma das primeiras ações

após a conquista de Jerusalém no século XI foi a criação de ordens bélico-religiosas.

De acordo com os autores:

Entendia-se que, obrigando-se por voto e desempenhando suas atividades militares por dedicação religioso, a prática da vida militar era consagrada, era santificada. A guerra, portanto, era um fato que não excluía a santificação do guerreiro de Deus. (COSTA; SANTOS, 2010, p.146)

A partir deste ponto o conceito de guerra cruza-se com o objetivo do presente

trabalho, a abordagem e noção do conceito de “guerra santa”. Foi através da Igreja

Católica que tal termo vem à tona; entendia-se por guerra justa aquela feita em

nome de Deus. Ao passar dos anos tal conceito de guerra justa ia sendo cada vez

mais desenvolvido pela igreja, apesar de que o “cristianismo, no seu início, tenha

sido uma religião eminentemente pacifista” (COSTA; SANTOS, 2010, p.147).

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São Tomás de Aquino, no século XIII, dá prosseguimento aos pensamentos de

Santo Agostinho, de forma um pouco mais lapidada. De acordo com Huck (1996),

para São Tomás havia alguns requisitos para que uma guerra fosse considerada

justa: a autoridade do príncipe, representante de Deus e autoridade pública legítima;

causa justa e combate à injustiça; e propósitos bons e retos de combate ao mal.

Percebe-se que a linha de raciocínio não se modifica em relação ao uso da guerra

como arma contra o mal, porém, o estabelecimento de requisitos, mais uma vez,

esboça certos protocolos para se praticar a guerra.

Contextualizando um pouco a linha de pensamento de tais teóricos é necessário

remeter à situação Europeia da época. Por volta do século IV, a Europa vivia uma

fase de grandes mudanças. Como Jean Flori (2013) afirma, o antigo Império

Romano estava se convertendo ao cristianismo, e a partir de então deveria lidar com

questões ideológicas antes nunca abordadas como, por exemplo, o repúdio ao

alistamento militar e a adoração a líderes, divindades e imagens pagãs. Os antigos

deuses romanos não repudiavam a guerra, ao contrário, existiam deuses específicos

que abençoavam e protegiam os guerreiros. A partir do momento que o Império

começa a se cristianizar, os romanos se deparam com a presença de Deus e sua

pregação à não violência. Porém, nos séculos decorrentes, a constante invasão de

terras pertencentes ao clero foi tão intensa que era necessário encontrar meios que

protegessem a Igreja, e o cristianismo, de alguma forma (FLORI, 2013). Desta

forma, visto a necessidade de se proteger e combater o mal, aos poucos a Igreja

começa a se militarizar e de acordo com Ricardo Costa e Armando Alexandre dos

Santos, “Tomás de Aquino também justifica a existência de ordens religiosas

destinadas à luta armada” (COSTA; SANTOS, 2010, p. 152).

É muito claro perceber que durante todo esse período a guerra era um instrumento

utilizado para garantir o bem da Igreja, sua segurança acima de tudo, manutenção

da paz e também o combate ao mal.

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2.1.4. A abordagem da guerra para o novo sistema in ternacional

Após São Tomás de Aquino, e seus longos estudos a respeito da justeza da guerra;

vieram alguns outros pensadores e teóricos abordando o tema, trazendo assim

ainda mais substância ao que no futuro, seria um objeto tão importante para as

Relações Internacionais. Com a Paz de Westphalia, em 1648, de acordo com Huck

(1996), a ligação entre Estado e Igreja se dissolveu bastante e as ideias de

soberania começaram a mudar os rumos da guerra. O Direito Internacional começa

a ser moldado e assim a guerra passa e ser tratada de forma mais racional, no que

se refere às suas motivações e justificações. Desta forma começa-se a discutir

questões relacionadas ao porque dos Estados recorrerem do uso da força para

alcançar seus objetivos e às formas com que tal força era utilizada. Percebe-se que

não é necessário entender somente as motivações e legalidades prévias à guerra,

mas também suas considerações e características durante sua ocorrência. Huck

(1996) mostra que esses fatores trazem ao cenário internacional os primeiros

conceitos filosóficos relacionados aos direitos e à justeza da guerra: ius ad bellum6 e

ius in bello7. Esses dois conceitos começam a trazer uma melhor lógica para o

fenômeno guerra, e também trazem certa normatização e direcionamento para

algumas questões relacionadas ao mesmo. A partir deles começa-se a referir,

academicamente, à também legalidade da guerra e consequentemente sua justeza

(HUCK, 1996).

Conforme Vicente Marotta Rangel8 (1979, apud HUCK, 1996, p.3), “o ius belli de

Grócio se biparte no ius ad bellum, ou o complexo de normas referentes à licitude ou

ilicitude do recurso à guerra, e no ius in bello, ou o conjunto de normas

regulamentadoras da própria guerra”. Dessa forma, a recente soberania dos Estados

Nacionais pós Westphalia e a intensa pesquisa e dedicação de pensadores a fim de

entender e analisar melhor a guerra trás um novo olhar a respeito da interligação

entre direito e moral, conceitos que anteriormente eram considerados e vistos

separadamente, conforme (ÁVILA; RANGEL, 2009). A guerra passou a ter uma nova

6 Termo jurídico que significa “direito da guerra” (HUCK, 1996). 7 Termo jurídico que significa “direito na guerra” (HUCK, 1996). 8 RANGEL, Vicente Marotta. Direito Internacional e Leis da Guerra. In Segurança e Desenvolvimento, ano 28, nr. 174,1979, p.21.

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roupagem, e ferramentas vinham sendo criadas para normatizá-la, de alguma forma

impedi-la, e também trazer um entendimento mais uniforme ao cenário internacional

a respeito da guerra, visto que agora os Estados são soberanos e independentes, e

convivem em um ambiente anárquico.

Como informa Rafael Ávila e Leandro Rangel, “nos anos 1800 diversos textos

normativos foram criados para regulamentação dos temas, tais qual a Convenção de

Genebra (1864), a Declaração de São Petersburgo (1868) e as Convenções de Haia

(1899, 1907)” (ÁVILA; RANGEL, 2009, p. 117). Tais textos buscavam regulamentar

a guerra, e trazer ao ambiente internacional certa tranquilidade e maior

previsibilidade das ações dos demais atores deste cenário, a fim de promover um

ambiente menos hostil. Desfortunadamente, tais ferramentas não se apresentaram

tão eficazes como se imaginava para conter o avanço bélico. Em decorrência disso

o mundo se assusta com a dimensão que a guerra poderia tomar, e de fato tomou

em julho de 1914 com a Primeira Guerra Mundial; conflito forçou com que o cenário

internacional repensasse o fenômeno da guerra (HUCK, 1996).

Após a Primeira Grande Guerra cria-se a Liga das Nações (1919), e

consequentemente seu Pacto, que em síntese propunham aos Estados signatários

um protocolo de comportamento relativo a não violência e manutenção da paz

mundial; uma tentativa de evitar que tal fenômeno ocorresse novamente. Além do

pacto da Liga, houve também o Pacto de Briand-Kellogg (1928), que trazia mais

uma discussão ao sistema: a condenação do uso da força (ÁVILA; RANGEL, 2009).

Porém tais ferramentas se mostram de certa forma falhas, e em 1939 eclodiu a

Segunda Guerra Mundial, que teve maior dimensão que a primeira e se estendeu

até 1945.

Após o fim da Segunda Guerra em 1945, surge a Organizações das Nações Unidas

e sua carta numa tentativa de retrazer ao sistema todos os preceitos e propósitos

dos tratados anteriores (HUCK, 1996). A Carta das Nações Unidas é o modelo atual

de normatização utilizado no sistema internacional, e através do qual os Estados se

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baseiam no que se tratar da manutenção da paz e cooperação do sistema. De

acordo com Rafael Ávila e Leandro Rangel:

A primeira das evoluções perceptíveis se dá na terminologia. O uso da palavra guerra é deixado de lado em prol de um conceito mais amplo, de uso da força, que abarca o anterior. Além disso, a ameaça do uso da força passa a ser tratada, ganhando, a coação, caráter ilegal. (ÁVILA; RANGEL, 2009, p.129).

Como tal texto é a atual carta normativa relativa ao uso da força e interação entre os

Estados no sistema internacional, cabe ao presente estudo tratá-la especificamente

em um futuro tópico. Porém, vale a pena ressaltar que, como poderá ser analisado

futuramente, ainda existem questões que trazem dúvidas e lacunas ao tema da

guerra, melhor dizendo, uso da força. Essas questões se referem aos demais tipos

de uso da força e consequentemente as variações e diferentes tipos de guerra,

como por exemplo, as guerras santas.

3. A religião e sua importância para o sistema inte rnacional

A religião nos dias atuais ocupa um importante papel para as sociedades e para as

Relações Internacionais. É perceptível que o atual sistema, composto por uma

diversidade identitária incalculável, serve de palco para inúmeros conflitos sendo

que uma grande parcela deles envolve questões religiosas. Tal pensamento reforça

a necessidade e importância de se estudar a religião e seus impactos dentro da

sociedade internacional dando a devida importância à sua agenda e também a sua

possível politização e securitização em determinados casos; não somente tratando o

tema como mero assunto de low politics9. Como Buzan (et al., 1998) mesmo afirma,

uma ameaça real é um dos pilares para levar à possível politização de uma agenda.

A ameaça de possíveis conflitos religiosos já serve como chamado ao sistema

internacional da importância de se encarar a religião como uma peça chave para a

harmonia e funcionamento do próprio sistema.

9 Conceito referente a todos os assuntos que não são de vital importância para o Estado como, por exemplo, questões econômicas e sociais. Ver (KEOHANE; NYE, 1977, p. 20-32) para melhor conhecimento a respeito do conceito.

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De acordo com Scott Thomas:

Estudiosos das Relações Internacionais têm abordado a religião como se fosse uma parte de um problema maior de como entender a força das ideias, sistemas de crenças ou ideologias nas relações internacionais. As ideias das pessoas, suas crenças, o que elas consideram ser certo ou errado, poderosamente molda o seu comportamento. Isto é particularmente verdadeiro em relação à religião, porque a religião é considerada em uma sociedade - ou mesmo em um país – o núcleo do sistema de valores em muitas partes do mundo (THOMAS, 2000, p.1. tradução nossa) 10.

Muitas vezes o sistema religioso é a base de sustentação de toda uma nação, como

mencionado por Thomas (2000); e levar em consideração essas questões para as

agendas dos países e organizações internacionais é de extrema importância para a

resolução de conflitos, um convívio harmônico e para práticas de cooperação entre

os Estados. A religião é encarada pelos indivíduos de várias maneiras de acordo

com Thomas (2000); dentre elas: como forma de ideologia, na qual baseiam seus

princípios, ideias e pensamentos; e como forma de identidade individual e social,

através da qual os indivíduos identificam-se como parte de um todo, de uma

comunidade. Essa identificação por meio da religião deve-se principalmente à carga

de simbolismo, analogias e metáforas que o discurso religioso possui e que é capaz

de agrupar indivíduos em grupos por meio de afinidades (THOMAS, 2000). Michael

Walzer (1967) ainda acrescenta que conjuntos simbólicos possuem o importante

papel de promover unidades pensamentos e sentimentos, capazes de se conectar

com outras estruturas como, por exemplo, a religião. “O símbolo religioso (...) pode

unir o homem com o homem, e o homem com algo maior que ele, a sociedade ou

Deus” (WALZER, 1967, p. 194, tradução nossa) 11.

A religião muitas vezes funciona como o alicerce, a sustentação de certos grupos;

Mark Juergensmeyer (2003) chama atenção aos judeus, que tem como parte da sua

história inúmeras diásporas ao redor de todo o mundo, e mesmo assim mantiveram

10 “International Relations scholars have approached religion as if was a part of the larger problem of how to understand the force of ideas, belief systems, or ideologies in international relations. People's ideas, their beliefs, what they consider to be right or wrong, powerfully shape their behaviour. This is particularly true in regard to religion, because religion is considered to be at the core of a society's - or even a country's - value system in many parts of the word” (THOMAS, 2000, p.1. texto original). 11 “The religious symbol, (…), can unite man with man and man with something greater than he, society or God” (WALZER, 1967, p. 194, texto original).

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seu povo unido somente por causa da sua religião: “Talvez nenhuma tradição

religiosa tenha tido uma existência sustentada por tanto tempo sem uma origem

geográfica como o Judaísmo” (JUERGENSMEYER, 2003, p.6. tradução nossa) 12.

Apesar da atual existência do Estado de Israel, e da fixação e determinação de um

Estado para o povo judeu, a presença judaica ao redor do mundo ainda é muito

nítida e com ela a existência de um sentimento global de nação judia.

Contanto, tal observação não cabe somente ao judaísmo, mas também ao

cristianismo, islamismo outras grandes religiões globais que servem não somente

como uma ideologia de vida, mas sim como a identificação de um grande grupo,

onde indivíduos se encontram em, e compartilham de, um grande sistema de

crenças (JUERGENSMEYER, 2003). E assim podemos perceber a força que a

religião possui dentro da construção identitária de um povo ou nação e de como tal

tema deve ser cuidadosamente estudado e trabalhado pelas Relações

Internacionais. Porém, pensar em religião nos dias atuais não significa pensar

apenas em um mapa com zonas de influência religiosa muito bem delimitadas e

definidas de acordo com posicionamentos geográficos e registros históricos e

socioculturais (JUERGENSMEYER, 2003).

De acordo com Mark Juergensmeyer (2003) ao longo da história da humanidade,

grupos étnico-religiosos migraram de um lugar a outro do planeta fazendo com que

seus hábitos, culturas e manifestações religiosas se espalhassem por todo o globo;

e mesmo distantes de seu ponto de origem tais religiões se sustentavam e eram

renovadas à medida que os anos e gerações se passavam.

Quase nenhuma região do globo hoje é composta unicamente por membros de uma única vertente da tradicional religiosa. Em uma era de globalização o ritmo de interações culturais e mudanças aumentaram por aparentes expansões de grau exponencial (JUERGENSMEYER, 2003, p. 4, tradução nossa) 13.

12 “Perhaps no religious tradition has had such a long-sustained existence without a geographic homeland as Judaism” (JUERGENSMEYER, 2003, p.6. texto original) 13 “Scarcely any region in the globe today is composed solely of members of a single strand of traditional religion. In an era of globalization the pace of cultural interaction and change has increased by seemingly exponential expansions of degrees” (JUERGENSMEYER, 2003, p. 4, texto original).

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Essa característica transnacional da religião faz um chamado a um novo

pensamento e olhar internacional a respeito do tema. A atual facilidade de trânsito

de pessoas entre Estados, os fluxos migratórios e essa crescente globalização

comercial e social traz ao sistema uma ideia da religião como um fator de extrema

importância e influência no sistema internacional contemporâneo, tanto de forma

global quanto local (JUERGENSMEYER, 2003).

Desta forma, levando em consideração a importância que a religião possui para

determinados povos e indivíduos, e também as constantes migrações de pessoas de

um país para outro dentro do sistema internacional; identifica-se o atual contexto em

que todas as religiões encontram-se atualmente, presentes em praticamente todos

os continentes e em convívio direto umas com as outras. Considerando a religião

como parte da cultura de um povo é compreensível que tais elementos culturais se

moveriam à medida que os indivíduos se movem, e que eles iriam interagir e mudar

assim como as pessoas fizeram (JUERGERNSMEYER, 2003). Portanto o autor

ainda acrescenta que o atual contexto não retrata apenas a migração de povos e

consigo de culturas religiosas, mas também que depois de fixados em um novo

ambiente, tais povos podem promover mudanças e transformações dos seus

próprios costumes, surgindo assim novas formas ou demonstrações de uma mesma

religião (JUERGERNSMEYER, 2003).

Há várias décadas atrás, cartógrafos gostavam de fornecer mapas que supostamente demarcavam a localização espacial das religiões do mundo. Uma grande mancha vermelha se estenderia do Tibete até Japão, envolvendo China, para mostrar onde o Budismo estaria. O Oriente Médio seria de cor verde para o terreno do Islã, uma Índia amarela para o hinduísmo, a cor laranja para as religiões africanas, enquanto cor do Cristianismo - muitas vezes azul, eu me lembro - foi brilhantemente estampada na Europa e no Hemisfério Ocidental. [...]. Nunca foi realmente assim, é claro. Embora existam regiões do mundo que sirvam como densos centros de gravidade de certas tradições religiosas, grande parte do mundo é menos certa quanto à sua identidade religiosa, e sempre foi. (JUERGENSMEYER, 2003, p. 3, tradução nossa) 14.

14 “Several decades ago, cartographers were fond of providing maps that allegedly demarcated the spatial location of world religions. A great wash of red would stretch from Tibet to Japan, engulfing China, to show where Buddhism was. The Middle East would be tinted green for the terrain of Islam, a yellow India for Hinduism, an orange for African religion, while Christianity's color - often blue, I recall - Was brightly emblazoned on Europe and the Western Hemisphere. [...]. It has never really been like that, of course. Although there are regions of the world that serve as dense centers of gravity for

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Desta forma, de acordo com o próprio autor, essa representação cartográfica das

religiões não traduz o que realmente é o mapa religioso mundial, se assim pode ser

chamado ou criado. Apesar de existirem regiões do globo onde há uma maior

concentração de certas religiões; os numerosos fluxos internacionais, a facilidade de

acesso à informação, a atual paz dentro do sistema e a forte interação entre os

Estados e nações trazem para a atual realidade do mundo, mulçumanos

caminhando ao lado de garotas de biquíni no Brasil, ou até mesmo budistas de terno

e gravata tratando de negócios em Nova Iorque. Juergensmeyer (2003) ainda afirma

que nos dias atuais todo mundo está em todo lugar, ou seja, é possível encontrar

diversas manifestações religiosas dentro de uma única comunidade e isso se reflete

em todo o globo. A partir dessa constatação pode-se deduzir que se torna difícil

definir, estudar e analisar as religiões separadamente, sem que uma influencie a

outra e sem considerar que exista certo tipo de interação entre as mesmas.

Essa acelerada dinâmica que a globalização trás ao mundo moderno pode ser

considerada saudável e ao mesmo tempo nociva no que diz respeito às

comunidades religiosas. Juergensmeyer (2005) afirma que a globalização pode

auxiliar o entendimento e tolerância entre comunidades, e isso pode trazer um

convívio mais harmônico visto que um lado começa a entende melhor o outro. O

autor ainda reforça a ideia com o argumento de uma maior cooperação entre as

partes, pois em tal convivência entre religiões ocorre o compartilhamento de valores

que:

(...) fornece a base cultural para as leis transnacionais e regulamentos, agências de responsabilização econômica e social, e um sentimento de cidadania global. Em alguns casos, ajuda a aliviar as dificuldades culturais vividas nas sociedades multiculturais, fornecendo os valores compartilhados que permitem aos povos de culturas diferentes a viver juntos em harmonia (JUERGENSMEYER, 2005, p.5, tradução nossa) 15.

certain religious traditions, much of the world is less certain as to its religious identity, and always has been”. (JUERGENSMEYER, 2003, p. 3, texto original). 15 “(…) provide the cultural basis for transnational laws and regulations, agencies of economic and social accountability, and sense of global citizenship. in some cases it helps to ease the cultural difficulties experienced in multicultural societies by providing the shared values that allow peoples of divergent cultures to live together in harmony” (JUERGENSMEYER, 2005, p.5, texto original).

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Contanto, de acordo com Scott Thomas (2000), podemos considerar também alguns

núcleos religiosos como resistentes, de certa forma, às mudanças propostas pelo

atual sistema e fluxos internacionais; e isso acarreta uma constante competição

entre tais religiões envolvendo ódio e hostilidade; a fim de acabar com aquele lado

que julgam ser infiel ou errado. O fato de algumas correntes religiosas terem caráter

universal faz com que seus seguidores e pregadores entendam a sua ideologia

como verdade absoluta gerando assim um sentimento de repúdio ao diferente.

As religiões são, portanto, por vezes, consideradas a fornecer a base para as identidades incompatíveis, e isso se pode dizer que é a razão pela qual a religião se tornou uma fonte de conflito internacional. Identidades ajudam a determinar quem as pessoas consideram ser seus amigos e quem elas veem como seus inimigos. A identidade compartilhada produz uma sensação de afinidade psicológica, enquanto identidades conflitantes produzem uma sensação de distância psicológica. (THOMAS, 2000, p. 4-5, tradução nossa) 16.

Surgem assim os conflitos religiosos, atos xenofóbicos, e demais embates

ideológicos que envolvam a religião; sendo esses temas principais do presente

artigo. A principal fonte de tais conflitos baseia-se na importância da religião para

determinadas sociedades, como tais enxergam tais diferenças e se se

comprometem, ou não a conviver e aceitar grupos diferentes. Quando a resposta é

negativa a este ultima questionamento, surge então o conflito religioso, baseado na

intenção de um lado em impedir que o outro interfira no seu ou continue pregando

ideologias que são consideradas blasfêmia ou heresia (THOMAS, 2000).

3.1. A guerra santa e o seu discurso

Após a abordagem de diversos conceitos e temas relativos ao uso da força e à

religião; se chega ao momento em que o presente trabalho deve reunir ambos os

termos em um só. O termo “Guerra Santa” durante centenas de anos e ainda

16 “Religions are, therefore, sometimes considered to provide the basis for incompatible identities, and this may be said to be the reason why religion has become a source of international conflict. Identities help determine whom people consider to be their friends and whom they see as their enemies. A shared identity produces a sense of psychological affinity, while conflicting identities produce a sense of psychological distance” (THOMAS, 2000, p. 4-5, texto original).

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atualmente é abordado sob vários tipos de interpretações. Alguns teóricos

consideram exclusivamente como guerras santas as Cruzadas17 da Idade Média,

outros as empreitadas bélicas islâmicas (jihad) no Oriente Médio, e ainda existem

aqueles que consideram qualquer outro levante violento motivado por preceitos

religiosos. A questão é que nenhum teórico chegou a uma definição específica do

termo o que induz ao presente texto a utilizar a sua própria definição de Guerra

Santa, como forma que deixar as futuras análises de discurso mais claras.

Como visto anteriormente com os conceitos apresentados por Clausewitz (1984), a

guerra é um ato utilizado para obrigar alguém a fazer as vontades daquele que

detém o uso da força, podendo ser ela física ou psicológica. Ainda identificou-se

com Scott Thomas (2000) que dentre os motivos que englobam os conflitos

religiosos está a intenção de determinado grupo em converter ou eliminar aquele

outro que considera herege ou errado, por seguir uma doutrina ou professar uma

religião diferente da sua. Por final acrescenta-se o pensamento de Jean Flori (2013)

que observa a importância do apoio ou suporte das organizações ou grupos

religiosos para que uma guerra santa possa ter sucesso. Desta forma, para o

presente estudo, considerar-se-á esses três conceitos básicos para se analisar a

guerra santa: uso da força como formar de compelir o oponente, associação do

inimigo à imagem de herege ou ameaça, e apoio de grupos e organizações

religiosas em suas empreitadas.

Desta forma é importante procurar entender por qual motivo tais eventos

conflituosos acontecem, e de que forma são sustentados. De acordo com Scott

Thomas (2000) a religião possui algumas formas de manifestação e influência dentro

das Relações Internacionais tal como forma de ideologia, forma de identidade, forma

de transnacionalismo, como forma de soft power, entre outras (THOMAS, 2000). De

acordo com o autor, o caráter transnacional que as religiões vêm assumindo pode

ser um dos principais motivos para a insurgência de conflitos religiosos ou, para o

presente estudo, guerras santas. A globalização, através dos seus avanços

tecnológicos e na comunicação, da fácil mobilidade entre os países e da rápida

17 Peregrinações armadas incentivadas pela Igreja Católica durante a Idade Média (FLORI, 2013).

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passagem de informação por entre eles faz com que as religiões e grupos religiosos

se consolidem, dando assim às religiões um caráter transnacional (THOMAS, 2000).

Ideias são ditas "transnacionais", quando as pessoas em muitos países diferentes sustentam para um sistema de crença semelhante, concepção de moralidade, ou acreditam em leis internacionais particulares ou normas internacionais (THOMAS, 2000, p.5, tradução nossa) 18.

Thomas (2000) ainda afirma que tal transnacionalismo religioso pode ser

considerado a base dos conflitos entre os Estados atualmente. Isso se explica pelo

fato de, atualmente, as ideias poderem ser facilmente passadas dentro dessa

grande comunidade religiosa, e muitas vezes tais ideias podem ser de repúdio ou

coerção a outros grupos religiosos, nações ou Estados. Um bom exemplo é a

empreitada “contra” os Estados Unidos (ou mundo ocidental), defendida por

inúmeros grupos religiosos muçulmanos em diferentes regiões do Oriente Médio.

Desta forma torna-se fácil, a partir de um sentimento comum de contradição

determinado grupo ou nação, incentivar empreitadas bélico-religiosas a fim de

acabar com o “mal” ou “inimigo” (THOMAS, 2000).

Sabendo-se que dentre as motivações do conflito religioso encontra-se o combate

aos hereges, ou o que pode ser considerado mal e perigoso à sua religião; é

importante entender e analisar em quais argumentos tal tipo de discurso se baseia

para que seja possível compreender melhor a motivação e o início do conflito

religioso e, em seu ápice, o conflito bélico-religioso.

O discurso é a ferramenta principal para a disseminação de tais ideias, e possui um

papel importante para as Relações Internacionais. De acordo com Nicholas Onuf (et

at., 1998) através do discurso, o indivíduo ou grupo é capaz de expressar seus

objetivos e intenção, além de estabelecer regras e jogos políticos. Por isso essa

ferramenta se torna tão importante para as Relações Internacionais, pois através

dela é possível até mesmo politizar ou securitizar determinados assuntos, como por

18 Ideas are said to be 'transnational' when people in many different countries hold to a similar belief system, conception of morality, or believe in particular international laws or international norms (THOMAS. 2000, p.5, texto original).

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exemplo, a religião e qualquer tema relacionado a ela. De acordo com Jef Huysmans

(2002) a “linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação utilizada para

falar de um mundo real fora da linguagem; é uma força definidora, integrando as

relações sociais” (HUYSMANS, 2002, pp.44-45, tradução nossa) 19. Podemos

entender então como através das palavras e a construção de um discurso as

articulações políticas e bélicas podem conduzir o atual cenário a certo objetivo ou

resultado; através dessa construção é que se consegue moldar e definir as relações

sociais e políticas, e definir as regras de um jogo.

O discurso religioso pode ser facilmente encaixado nesse tipo de análise, pois com

pode ser observado nas falas de Scott Thomas (2000) e de Michael Walzer (1967), a

religião é repleta de simbolismo através dos quais são construídos inúmeros

diálogos, analogias e metáforas. Através do discurso religioso, grandes religiões

como o cristianismo e o islamismo conseguiram mobilizar seus seguidores a respeito

do que é certo ou errado e o que deve ser seguido ou combatido (THOMAS, 2000).

Assim surgem muitos dos conflitos e mais uma vez a necessidade de se levar a

religião como um assunto de importância para análises de segurança para os

Estados.

Barry Buzan e Lene Hansen (2012) também afirmam que as articulações de

segurança podem ser construídas através do discurso, por meio de analogias,

adjetivos e outras ferramentas linguísticas. Segundo Buzan (et al., 1998) segurança

é o movimento que leva a política para além das regras do jogo previamente

estabelecidas e enquadra o problema como um tipo especial de política ou como

acima da política. Pode-se retomar o exemplo anteriormente citado dos grupos

radicais islâmicos, no Oriente Médio, que associam aos Estados Unidos e outros

países do ocidente termos como “inimigo” ou “mal eminente”, e assim incentivam o

ataque armado contra esses países. Assim, percebe-se como que o discurso na

forma um chamado à segurança pode ser a justificativa para o uso da força (BUZAN

et al., 1998). Desta forma é importante conseguir identificar dentro dos discursos de

19 “Language is not just a communicative instrument used to talk about a real world outside of language; it is a defining force, integrating social relations” (HUYSMANS. 2002, p. 44-45, texto original).

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cada grupo religioso, neste caso cristianismo e islamismo, as referências e

ferramentas utilizadas por cada um para que seja possível mobilizar os demais

indivíduos do grupo à empreitada bélica em função de uma mesma causa ou

objetivo.

3.1.1. O discurso cristão e a guerra

Quando as palavras cristianismo e guerra são colocadas juntas, remete-se

automaticamente, quase que de forma involuntária, aos arredores dos séculos IX e

X assim como às famosas Cruzadas. Realmente tais correlações estão certas de

serem feitas, pois basicamente, é durante essa época que o uso da força começa a

ser abordado com maior ênfase e praticado pela Igreja Cristã e seus devotos através

das Cruzadas, empreitadas cristãs para retomada da Terra Santa (FLORI, 2013).

Porém, na realidade o cristianismo muito antes disso já estaria envolvido com atos

de violência e uso da força de acordo com o professor e historiador Philip Jenkins

(2013), e não somente contra outros grupos religiosos, mas também dentro de seu

próprio grupo de seguidores.

A partir do século V através de grandes concílios20 a intolerância da igreja, e aqui se

lê igreja cristã, aumentou tornando-a bem violenta (JENKINS, 2013). À proporção

que a comunidade cristã vinha tomando à época, crescendo e se difundindo por toda

a Europa, de certa forma induzia que a Igreja se tornasse controladora para que sua

doutrina fosse difundida de forma heterogenia; e como dito anteriormente,

comportamentos diferentes ou contrários ao que fosse pregado, poderiam ser vistos

como hereges (JENKINS, 2013).

A violência tampouco ficou limitada às lutas entre cristãos. Frequentemente, os historiadores comentam a respeito do aumento da intolerância da Igreja após a mesma alcançar o status oficial de império; e de como a Igreja ficou cada vez mais hostil contra heréticos, pagãos e judeus (JENKINS. 2013, p. 52).

20 Concílio de Selêucia em 410 e Concílio da Calcedônia 460 (JENKINS, 2013).

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A intolerância ao diferente era o principal motivo para os conflitos à época, no que

diz respeito à comunidade cristã. Porém, apesar da violência ser basicamente

contrária aos ensinamentos bíblicos cristãos, como afirmam Ricardo Costa e

Armando Alexandre dos Santos (2010), não podemos associar o comportamento

violento da época a questões exclusivamente religiosas.

A grande maioria das pessoas daquele tempo, instruídas e ignorantes, acreditava em visões de mundo providenciais. Elas acreditavam que a conduta incorreta ou crença herética enraivecia Deus, e que essa raiva se manifestaria em termos muito materiais, em terremoto e fogo, invasão e derrota militar, fome e peste. A menos que os malfeitores ou crentes equivocados fossem suprimidos, a sociedade poderia perecer com completo (JENKINS, 2013, p. 52-53).

De acordo com Jenkins (2013) é importante saber separar bem os fatos, pois

existiram ocasiões onde a violência era motivada por crenças religiosas, como o

medo da ira de Deus e o combate a heresias; mas também houveram situações

onde o uso da força era advindo apenas por questões políticas. De acordo com Jean

Flori (2013), as cruzadas representavam bem essa dupla abordagem do conflito

bélico-religioso. O autor ressalta a época onde a empreitada ainda era utilizada

como artefato político; e como confirmado por Michael Walzer, o discurso e o

simbolismo muitas vezes estão ligados à politica como ferramenta e associação e

agrupamento (WALZER, 1967). Identifica-se um exemplo:

(...) quando Carlos Magno e seus sucessores tentam ressuscitar a antiga ficção de um império romano confundido com a cristandade, a ficção de uma cristandade teocrática concebida segundo imagem bíblica do reino de Israel (FLORI, 2013, p.17).

Por outro lado as cruzadas também representavam o ápice da sacralização do

conflito, de forma que para os cristãos da época a violência era um mal necessário

para a manutenção e proteção dos locais sagrados, berço da fé cristã, que estava

sendo ocupada por povos “pagãos” de acordo com os clérigos da época (FLORI.

2013). Huck (1996) ainda afirma que à época a guerra era considera como uma

forma de enfrentamento do bem contra o mal. Além disso, se sacrificar em um

combate por Deus era um ato a ser reconhecido como heroico e santo. Como já

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tratado anteriormente neste trabalho, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino eram

filósofos que em seus trabalhos justificavam o uso da força contato que feito em

nome de Deus, da cristandade e como forma de manutenção da paz e harmonia

(COSTA; SANTOS, 2010).

Desta forma, ser guerreiro não compreendia apenas em ser um bom combatente,

mas também ser um servo de Deus, seguir sua palavra e seus ensinamentos, e

dedicar suas vitórias a Ele; guerrear era considerado um ato sacro (COSTA;

SANTOS, 2010). É muito comum identificar a partir dessa época o surgimento de

rituais litúrgicos como a benção das armas e bandeiras de guerra, preces e orações

antes e durante os combates e também a adoração aos santos guerreiros, estes que

ganharam força e destaque a partir daí, como por exemplo, São Jorge, São Paulo,

São Sebastião, Santo Expedito, São Miguel Arcanjo, entre outros (FLORI. 2013). De

acordo com Ricardo Costa e Armando Alexandre dos Santos (2010), se o ofício

militar, assim como o envolvimento bélico, fosse considerado impróprio para a

santidade cristã, não haveria tantos santos que tivessem tido envolvimento militar

em suas vidas terrenas. Mais uma vez percebe-se o uso de analogias, neste caso

dos santos às armas, como forma de construção de um discurso e fundamentação

de uma verdade (WALZER, 1967).

De qualquer forma a belicosidade do cristianismo não se estende muito após a idade

média, pois com a dissociação da Igreja e Estado, as empreitadas bélicas passam a

ser associadas ao poder político e não mais religioso (FLORI, 2013). Porém, em

suma, Jean Flori (2013) afirma a respeito das cruzadas:

Pode-se dizer que ela foi a guerra santa por excelência. Pela primeira vez, uma operação militar sacralizada, pregada por um pontífice romano, conseguia não só proteger ou aumentar o patrimônio de São Pedro, retomar alguns territórios dos “pagãos”, libertar algumas igrejas na Espanha ou em outros lugares, como também reconquistar a Cidade Santa e o túmulo de Cristo (FLORI, 2013, p. 352).

Com tais afirmações identifica-se um pouco mais o embasamento cristão para o

emprego da força bélica; mesmo que limitadas a um período específico de tempo as

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guerras santas cristãs representaram de forma mais completa e literal o conceito de

guerra santa, pelo fato de serem verdadeiros empreendimentos, apoiados pela

comunidade cristã em sua generalidade, possuíam o objetivo de combater os

hereges e “inimigos” que haviam ocupado as terras sagradas e utilizam de força

física para alcançar seus propósitos.

Porém não é só o cristianismo que possui seu discurso a favor do uso da força, o

islamismo também apresenta diversas justificativas para tal; o que será tratado na

próxima seção do presente estudo.

3.1.2. O discurso islâmico e a jihad

O islamismo pode ser considerado a mais nova grande corrente monoteísta de

salvação a surgir na história da atual sociedade internacional (JUERGENSMEYER

et al., 2003). De acordo com Marco Meschini (2007) os primeiros seguidores do

profeta Maomé se deram em seu entorno, incluindo principalmente familiares e

amigos próximos, no início do século VII. Como parte da mesma raiz histórica, ou

mesma “tradição abraâmica”, que o cristianismo e o judaísmo; de acordo com

Tamara Sonn (2011) os mulçumanos acreditam que o surgimento tardio do

islamismo serve para que sejam “concertadas” algumas interpretações e ações

equivocadas vindas das outras duas religiões precursoras (SONN, 2011).

Eis o primeiro ponto do discurso islâmico, que por sinal identifica-se com os

discursos cristãos no que diz respeito ao combate a todas as doutrinas e

comunidades que professam ideologias diversas, consideradas erradas, ou

equivocadas em seu ponto de vista; sendo a sua o caminho certo a ser seguido por

todos. Porém esse é um dos poucos argumentos convergentes com o discurso

cristão, ainda mais quando o assunto é referente aos textos originais e aos

ensinamentos primários de cada corrente. Jean Flori (2013) reforça essa análise ao

dizer que em sua essência a Igreja cristã é pacifista “ao contrário do islã que, desde

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a origem, imitando seu fundador, admitia o uso da guerra e destinava-lhe um espaço

nada desprezível em sua própria doutrina” (FLORI, 2013, p.16).

O termo jihad é a principal base para a afirmação do uso da força nos textos

sagrados islâmicos; de acordo com Marco Meschini a jihad “significa em uma última

análise ‘luta por Deus’ ou ‘sob o caminho de Deus” (MESCHINI, 2007, p.54,

tradução nossa) 21. O autor ainda afirma a possibilidade de duas acepções para a

palavra: a grande e a pequena jihad. A grande jihad representa a luta interna do

individuo para se manter como um bom muçulmano, seguindo os ensinamentos e

palavras de Deus. É basicamente uma luta interna ou espiritual, e a principal luta do

povo muçulmano. Já a pequena jihad representa a luta física, e seu caráter militar; e

da mesma força reforça a necessidade de se proteger a fé e se empenhar pela

manutenção do islamismo (MESCHINI, 2007).

É possível encontrar em vários trechos do Alcorão, afirmações que respaldam tanto

a luta interna da grande jihad, quanto as empreitadas bélico-religiosa muçulmanas

representadas pela pequena jihad. Um dos versículos que suporta tal discurso

belicoso e deixa clara a possibilidade de uma guerra defendida por um Deus, e a

necessidade de dizimar os inimigos/hereges encontra-se na sura de nome

Muhammad, número 47:

Quando, no campo de batalha, enfrentardes os que descreem, golpeai-os nos pescoço. Depois, quando tiverdes prostrado, apertai os grilhões. Depois, outorgai-lhes a liberdade ou exigi deles um resgate até que a guerra descarregue seus fardos. Se Deus quisesse, Ele mesmo os teria derrotado. Mas ele assim determinou para vos provar uns pelos outros. E não deixará perder-se o mérito dos que morreram por Sua causa. (O Alcorão 47, 4)

Essa sura expressa claramente que os descrentes devem ser combatidos, e que

Deus recompensará aqueles que lutarem e defenderem o Islã. E então se apresenta

aí a principal diferença entre a guerra santa cristã e mulçumana como afirma Jean

Flori (2013); pois ao contrário do cristianismo, o islamismo possui em seus textos

21 “(...) la parola jihad significa in ultima analisi “lotta per Dio” o “sul caminho di Dio (MESCHINI, 2007, p.54, texto original)

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sagrados afirmações que lhes dão direito a guerrear, contanto que seja em nome da

sua fé e do seu Deus. O Alcorão ainda afirma a prescrição da guerra ao povo

mulçumano: “A guerra foi-vos prescrita, e vós a detestais. Mas quantas coisas

detestais que acabam vos beneficiando, e quantas coisas a mais que vos acabam

prejudicando! Deus sabe, e vós não sabeis” (O Alcorão 2, 216). Ressalta-se ainda a

possibilidade de se fazer guerra nos meses santos apesar do mesmo ser

considerado um ato de transgressão, porém pior ainda seria ser conivente com o

mal e os descrentes, “o erro é pior que a matança” (O Alcorão 2, 217). Por isso a

luta para a manutenção da fé é apoiada por Deus, pois ela é o meio para se

combater e livrar o mundo do mal de acordo com a doutrina islâmica. O livro sagrado

mulçumano ainda afirma que “os que creram e emigraram e lutaram na senda de

Deus receberão misericórdia d’Ele” (O Alcorão 2, 218).

Além do caráter heroico dado à guerra santa islâmica, é importante reforçar que o

Alcorão ainda menciona a recompensa àqueles que se sacrificarem em uma luta por

Deus e pela fé islâmica: “Mas o mensageiro e os que creram lutaram com seus bens

e sua vida. A abundância e a vitória lhes pertencerão. Para eles, Deus preparou

jardins nos quais correm os rios onde permanecerão para todo o sempre. Tal será a

grande vitória” (O Alcorão 9, 88-89).

Outro ponto importante ressaltado por Jean Flori (2013) é que o próprio profeta

Maomé participou de incursões bélicas durante os primeiros anos do Islã, outro fator

que suporta e reforça o uso da força, já que o principal exemplo da fé islâmica

também utilizava dos mesmos métodos. Além disso, Marco Meschini (2007) nos traz

outro pensamento, pois apesar de praticarem a violência, os indivíduos eram apenas

meios com que Deus manifestava suas vontades. “Na realidade não fostes vós

quem matastes: foi Deus quem os matou, e não fostes tu quem atirastes as flechas

quando atiraste: foi Deus quem atirou. Fê-lo para conferir aos crentes um justo

benefício. Ele ouve e sabe tudo” (O Alcorão 8, 17).

Deste modo, Marco Meschini (2007) conclui que a guerra, ou jihad, acontece no

mundo islâmico, pois é a vontade de Deus; e se é a vontade de Deus, é santa

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(MESCHINI, 2007). “Dos adeptos do Livro, combatei os que não creem em Deus

nem no último dia e não proíbem o que Deus e Seu Mensageiro proibiram e não

seguem a verdadeira religião – até que paguem, humilhados, o tributo” (O Alcorão 9,

29).

A jihad teve grande força durante a expansão territorial do islã, logo no surgimento

de tal corrente religiosas e com o tempo foi perdendo sua força até o aparecimento

das cruzadas cristãs (FLORI, 2013). Hoje em dia percebe-se movimentos muito

parecidos com a jihad, provenientes de grupos específicos e não de uma

comunidade maior; de qualquer formas tais grupos se baseiam nos mesmos

argumentos a fim de combater o inimigo comum, aquele que se acordo com sua

doutrina é considerado descrente (JUERGENSMEYER, 2003).

4. Conclusão

Após a abordagem de tantos teóricos e estudiosos do campo das Relações

Internacionais e outros campos afins, e após a compreensão da dimensão que a

religião e seus temas relacionados possuem dentro do cenário internacional e nas

relações entre Estados e indivíduos, é possível chegar a algumas conclusões a

respeito da presente dissertação.

A segurança ainda é uma das principais preocupações do atual cenário internacional

e as religiões, assim como o convívio e contato entre elas, podem representar uma

ameaça para o bem estar do sistema e dos indivíduos. Como percebido nos casos

analisados a pouco neste trabalho, um dos principais motivos que acarretaram

conflitos bélicos entre doutrinas religiosas durante a história da humanidade, e talvez

ainda acarretem nos dias atuais, é a intolerância e não aceitação de outras correntes

religiosas como válidas. Cada doutrina se vê como única e legítima considerando

aquelas diferentes de si como equivocadas, erradas ou falhas. A partir dessa

percepção podemos identificar a criação de discursos e sistemas simbólicos,

utilização de ferramentas de linguagem e de engajamento coletivo para que

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empreitadas conflituosas possam ser sustentadas e daí surge os conflitos religiosos,

ou comumente chamados de guerras santas.

Basicamente o cristianismo e islamismo tiveram seus eventos bélico-religiosos com

muitas características comuns, assim como divergentes também. Ambos os eventos

utilizaram-se da construção de discursos para incentivar suas empreitadas bélicas;

apesar de o islamismo possuir um facilitador já que muitos os argumentos utilizados

encontram-se escritos nos textos sagrados do Alcorão. Ambas as guerras também

buscavam a soberania de seu Deus, designavam um caráter heroico para aqueles

que lutavam por elas e ofereciam recompensas divinas aos merecedores. Também

possuíam uma mobilização em massa, mesmo que não presente durante todo o seu

desenvolvimento. O cristianismo em particular possui um apoio maior da Igreja no

papel de instituição durante o suporte e incentivo ao conflito bélico, mesmo que

exclusivo à época das cruzadas.

Apesar das semelhanças entre tais empreitadas é possível perceber algumas

divergências como, por exemplo, que as guerras santas cristãs tinham um objetivo

mais voltado para a proteção do seu império e reconquista dos seus territórios

tomados, ou seja, um caráter um pouco mais defensivo; sendo que as guerras do

Islã tinham um sentido quase que contrário, de conquista e expansão.

A intolerância religiosa, o fanatismo, a possibilidade de embasamento para a

afirmação e defesa da guerra por meio dos discursos vistos no presente texto

reforçam a questão levantada durante toda a dissertação: a importância da

abordagem religiosa dentro do cenário das Relações Internacionais, pois mesmo

com a existência de ordenamentos jurídicos e políticos que buscam a prevenção e

contenção do fenômeno da guerra ainda é possível construir discursos com

argumentos válidos para que a mesma possa ser usada com motivações religiosas.

Atualmente vive-se um conflito que envolve tais motivações e que está chamando

bastante atenção de todo o sistema, que são as manifestações violentas do grupo

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terrorista Estado Islâmico; o que reforça mais uma vez a delicadeza do assunto

dentro do nosso atual sistema, assim como a necessidade de se aprofundar e

desenvolver ainda mais pesquisas e análises sobre o comportamento das religiões

nos dias atuais.

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