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PONTO DE VISTA | ENTREVISTA João Otávio de Noronha 12 Revista Fórum CESA - ano • n. 0 • p. -9 • jan./mar. 009 Por Natália Martino No dia 3 de dezembro de 2002, João Otávio de Noro- nha tomou posse no cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça. Antes da sua posse, Noronha, natural da cidade de Três Corações, em Minas Ge- rais, trabalhou no Banco do Brasil por 27 anos. De chefe do Núcleo Jurídico dessa ins- tituição na cidade mineira de Varginha, cargo que assumiu em 1987, ele chegou a diretor jurídico em 2001. Com essa experiência, apri- morou os conhecimentos em áreas como Direito Bancário e Societário. Foi professor de Direito Processual Civil e de Direito Comercial na Facul- dade de Direito de Varginha e de Direito Bancário na Es- cola Superior de Advocacia da OAB/MG. Ensinou Direito Processual Civil também na Universidade de Itaúna, em Minas Gerais. Do seu gabine- te no Superior Tribunal de Jus- tiça, o ministro falou à Revista Fórum CESA da experiência no Departamento Jurídico do Ban- co do Brasil e da sua influência na atuação no Superior Tribu- nal de Justiça. Com o conhecimento do mer- cado financeiro adquirido nas experiências profissionais, ele fala, ainda, sobre a repercus- são da Crise dos Subprimes no Poder Judiciário e avalia as regulamentações brasileira e americana. Para ele, as regras brasileiras para o mercado financeiro são superiores às americanas e até às europeias. Não nega, porém, que exis- tem ajustes a serem feitos no mercado brasileiro e diz que o setor imobiliário pode ser o maior problema do país. “Ele pode ser o nosso subprime a longo prazo”, afirma. O instituto dos recursos repe- titivos, criado em 2008 pela Lei n° 11.672, é outro tema abordado nesta conversa. João Otávio de Noronha fala da possível resistência de de- sembargadores e juízes de primeiro grau em seguir a ju- risprudência e da necessidade de ajustes na forma de escolha dos recursos afetados. Voto vencido na Corte, o ministro apresenta, ainda, as razões pelas quais não concorda com a decisão de que as partes não mais poderão desistir do re- curso quando ele for afetado. João Queirolo

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Cesa 10 - Natália Martino

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PONTO DE VISTA |ENTREVISTA

João Otávio de Noronha

12 Revista Fórum CESA - ano � • n. �0 • p. ��-�9 • jan./mar. �009

Por Natália Martino

No dia 3 de dezembro de 2002, João Otávio de Noro-nha tomou posse no cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça. Antes da sua posse, Noronha, natural da cidade de Três Corações, em Minas Ge-rais, trabalhou no Banco do Brasil por 27 anos. De chefe do Núcleo Jurídico dessa ins-tituição na cidade mineira de Varginha, cargo que assumiu em 1987, ele chegou a diretor jurídico em 2001.

Com essa experiência, apri-morou os conhecimentos em áreas como Direito Bancário e Societário. Foi professor de Direito Processual Civil e de Direito Comercial na Facul-dade de Direito de Varginha e de Direito Bancário na Es-cola Superior de Advocacia

da OAB/MG. Ensinou Direito Processual Civil também na Universidade de Itaúna, em Minas Gerais. Do seu gabine-te no Superior Tribunal de Jus-tiça, o ministro falou à Revista Fórum CESA da experiência no Departamento Jurídico do Ban-co do Brasil e da sua influência na atuação no Superior Tribu-nal de Justiça.

Com o conhecimento do mer-cado financeiro adquirido nas experiências profissionais, ele fala, ainda, sobre a repercus-são da Crise dos Subprimes no Poder Judiciário e avalia as regulamentações brasileira e americana. Para ele, as regras brasileiras para o mercado financeiro são superiores às americanas e até às europeias. Não nega, porém, que exis-

tem ajustes a serem feitos no mercado brasileiro e diz que o setor imobiliário pode ser o maior problema do país. “Ele pode ser o nosso subprime a longo prazo”, afirma.

O instituto dos recursos repe-titivos, criado em 2008 pela Lei n° 11.672, é outro tema abordado nesta conversa. João Otávio de Noronha fala da possível resistência de de-sembargadores e juízes de primeiro grau em seguir a ju-risprudência e da necessidade de ajustes na forma de escolha dos recursos afetados. Voto vencido na Corte, o ministro apresenta, ainda, as razões pelas quais não concorda com a decisão de que as partes não mais poderão desistir do re-curso quando ele for afetado.

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cípios não estão inseridos no texto como ornamento, portanto não é lógico dizer que a jurisprudência dos Tribunais Superiores constran-ge os juízes a julgar.

Uma vez interpretada a lei, não cabe receber os recursos que estão discutindo a mesma matéria. O pa-pel do tribunal já está desempenha-do. Não é razoável termos no STJ milhares de recursos para dizer a mesma coisa. Isso é onerar o contri-buinte, é desvalorizar a decisão dos Tribunais Estaduais, dos Tribunais de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais, e é desprestigiar também, por que não, a decisão do juiz de primeiro grau, que está em confor-midade com a posição já adotada aqui pelo STJ.

RFC: Indeferir um recurso no STJ significaria dificultar o acesso aos Tribunais Superiores, inibir o di-reito ao contraditório?

JON: O recurso que é indeferi-do já passou pelo contraditório lá embaixo. Para chegar ao Superior Tribunal de Justiça, tem que passar por uma primeira instância. A parte vencida vai a um Tribunal Regional Federal, a um Tribunal de Justiça, com o contraditório amplo; e se nessa decisão for negada a vigência de uma Lei Federal, é que se alça o processo ao STJ. Quando se inde-fere o recurso especial é porque a

JON: A escolha é feita pela tese. Existem vários recursos que tem como objeto ou como fundamen-to a mesma tese. O relator escolhe um ou alguns e afeta a sessão para julgamento pela técnica do recurso repetitivo. Ao afetar, vai sobrestar todos os demais aqui e nas instân-cias ordinárias, para que se decida no STJ em definitivo qual a inter-pretação dada ao dispositivo de lei. Pode ser também que o presidente do TJ ou do TRF escolha um pro-cesso que vai sobrestar os demais, até que se julgue no STJ. Feita a in-terpretação, publica-se o acórdão para que os demais processos pos-sam ser julgados.

RFC: Como o senhor avalia essa forma de escolher os recursos afetados?

JON: É preciso ter muito cuida-do na escolha do processo típi-co, do processo que vai ser afe-tado. Ele tem que ultrapassar a fase de conhecimento para que a Corte possa se pronunciar sobre a própria tese. Senão, vai frustrar a técnica do recurso repetitivo, pois a manifestação não será sobre o mérito e, consequente-mente, não atingirá o objetivo adequado. Nós estamos tendo esse cuidado. Já se cometeu al-guns equívocos, mas é normal, já que o instituto é novo.

alteração, que ainda não foi discu-tida, mas da qual já estamos sentin-do necessidade.

RFC: Um dos temas polêmicos acerca do recurso repetitivo é a impossibilidade de desistir do recurso afetado. O que o senhor acha dessa decisão?

JON: Eu fui voto vencido; fui fra-gorosamente vencido porque fui o único na Corte Especial a sustentar a tese de que é admissível a desis-tência. Em matéria de recurso re-petitivo, o processo continua sendo um recurso especial. O fato de ter um processo afetado não pode tirar da parte a faculdade que o Código assegura de desistir a qualquer ins-tante. Se a parte desistir, cabe ao tri-bunal escolher outro processo para substituir o primeiro. Um recurso afetado continua na qualidade de recurso especial, não deixa de aten-der todos os requisitos de admissi-bilidade. O que muda é apenas a instrução e o julgamento, a eficácia para o caso concreto é idêntica se é julgada na turma ou na sessão como afetado. A lei de recurso repetitivo não derrogou em nada a faculdade da parte de desistir.

RFC: E quais são as consequências da impossibilidade de desistência?

JON: A consequência é que a par-te está vinculada à decisão. Eu não sei como a Corte vai interpretar. Parece-me que há uma proposição – a meu ver, não correta na melhor técnica jurídica – de que haverá o

Corte já se posicionou em um sen-tido contrário. Na realidade, não se está cerceando ninguém, está se fazendo prevalecer o direito fede-ral já interpretado.

RFC: Como é realizada a escolha do recurso afetado?

RFC: Já que cada ministro pode afetar uma tese, podem aconte-cer choques entre as escolhas?

JON: Eu defendo a ideia de que a afetação tem de ser aprovada pela sessão. Isso evitaria o vício de conveniência. Vou até propor essa

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“O fato de ter um processo afetado (pela técnica do recurso repetitivo) não pode tirar da parte a faculdade que o Código assegura de desistir a qualquer instante.”

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julgamento e, depois de julgada, esclarecida a tese, será homologa a desistência. Quer dizer, julga-se um recurso sem que estejam pre-sentes as condições da ação tradu-zidas pelo interesse processual, que deveriam permanecer ao longo de todo julgamento. Em boa técnica, isso não se faz, mas a Corte enten-deu que há uma relevância que transcende o interesse das partes, por isso adotou a posição de que não é possível desistir depois da afetação.

RFC: A utilização da técnica des-se recurso repetitivo vai alterar o perfil do STJ?

JON: Não, de modo algum. A lon-go prazo, vamos entender no Bra-sil que os Tribunais Superiores não constituem uma sede onde todas as ideias devem chegar, mas ape-nas aquelas que dispõem de uma matéria de largo interesse, ou seja, cuja relevância ultrapassa o caso concreto para ser reputado rele-vante em todo seio social.

RFC: O primeiro recurso escolhido para ser afetado trata de questões bancárias. O que as demandas dessa matéria representam, hoje, no STJ em termos de quantidade?

JON: No direito privado, as questões bancárias representam hoje mais de 50% dos nossos julgamentos. Elas são relevantes na medida em que há um contencioso no sistema fi-nanceiro no Brasil todo. A definição das teses que impactam nesse siste-

ma tem importância tanto para que os bancos possam refletir e até rever seus instrumentos de contratação, quanto para definir para os cidadãos quais são os seus direitos, como ele tem que se pautar para aquela ação com o sistema financeiro.

RFC: Esse recurso foi bem escolhido?

JON: Nós não fomos felizes na es-colha desse recurso. Algumas teses não puderam ser apreciadas, como a da Comissão de Permanência. Isso importou em uma obrigação de afetar outro recurso para julgar as tese que nós não pudemos apre-ciar no primeiro.

RFC: Mudando um pouco de as-sunto, quais serão as repercus-

grande na indústria automobilís-tica. Com o impacto econômico, nos agentes econômicos, há reper-cussão no sistema judicial. Haverá um aumento da inadimplência, um descumprimento de contratos, ou seja, conflitos surgirão em razão da crise. Quem pacifica esses conflitos é o Poder Judiciário. No Brasil, o problema imobiliário é o nosso cal-canhar de Aquiles. Preocupa-me de certa forma o financiamento de casas, que pode ser o nosso subpri-me a longo prazo.

RFC: Essa crise começou no mer-cado financeiro norte-americano e falou-se muito que o mercado bra-sileiro era mais estruturado, mais prudente. O senhor concorda?

sões da Crise dos Subprimes no Poder Judiciário?

JON: Essa crise já está no mundo todo e está a olho nu. Nós estamos sentindo isso no Brasil. A indústria do aço perdeu mais de �0% do seu faturamento, o desemprego já é

JON: Inegavelmente, as regras es-tabelecidas aqui a partir das crises passadas, no governo Fernando Henrique, fizeram com que o nosso sistema financeiro fosse muito mais bem regulado que o europeu e, principalmente, que o americano.

“No Brasil, o problema imobiliário é o nosso calcanhar de Aquiles. Preocupa-me de certa forma o financiamento de casas, que pode ser o nosso subprime a longo prazo.”

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Nós temos apenas um agente regu-lador enquanto os Estados Unidos têm mais de seis. O nosso proble-ma é diferente, não é de regulação, é de ausência de capital. Os bancos captavam recursos com o prazo de três meses, seis meses, um ano e emprestavam a três, quatro, cinco anos. Enquanto o dinheiro circula-va no mercado, esses financiamen-tos funcionavam. No momento em que o dinheiro desaparece, não é mais possível, como dizem os ban-queiros, “pedalar a bicicleta”. O nosso problema foi esse, o desapa-recimento de recurso, de liquidez. Houve um descasamento entre a captação e o empréstimo.

Mas o sistema brasileiro também tem que passar por uma revisão muito séria. Há compensação diá-ria, o que não existe nos EUA nem na Europa. Isso importa em um ele-vado custo do sistema financeiro. Os bancos têm que manter malo-

que precisará ser feito pra superar essa crise e evitar novos problemas?

JON: Primeiro, é preciso mudar o sistema de regulação, o que o go-verno americano já está fazendo. Quando se tem seis órgãos regula-tórios, ninguém regula nada e eles já estão atentos a isso. Segundo, os americanos sempre trabalharam alavancados. Agora, eles precisa-rão ter uma postura mais conser-vadora. Terceiro, os EUA têm um comprometimento com gastos pú-blicos. Os gastos do governo Bush com guerras foram elevadíssimos e isso fez com que dinheiro fosse drenado do setor privado para o setor público, comprometendo a liquidez do primeiro. Agora, o se-tor público vai emprestar, vai de-volver, mas para minorar a crise, não para resolvê-la. A solução virá do próprio setor privado.

RFC: Os EUA trabalham mais ala-vancados que o Brasil. É a regula-ção brasileira que diminui a ala-vancagem de capital no país?

JON: Diminui. Nós aplicamos o índice mais conservador da Basi-leia. Na medida em que se dimi-nui a alavancagem, os bancos em-prestam menos do que poderiam, mas ficam com mais recursos para honrar os seus compromissos. Com grande alavancagem, diminui-se a possibilidade de solvabilidade. Isso é importante perceber.

RFC: Decorre daí o problema de falta de capital no Brasil que o se-nhor citou anteriormente?

JON: Nos EUA também faltou ca-pital, na medida em que as pessoas

tes rodando no país em aviões dia-riamente e, em alguns casos, mais de uma vez por dia. Temos um sistema on-line de transferência, o que significa que os bancos preci-sam manter recursos em caixa de prontidão para atender eventuais saques. Nenhum banco do mundo é mais avançado em informatiza-ção do que os do sistema brasileiro. Isso importa em gastar mais de um milhão, quase dois milhões, com o sistema de segurança para impedir fraudes. Nós temos ainda algumas coisas lamentáveis. Por exemplo, um banco não pode transportar seu dinheiro, ele tem que se valer de uma companhia transportado-ra. Isso importa em custos, o que faz com que a taxa de juros suba. A questão é mais complexa do os agentes tendem a perceber.

RFC: O senhor avaliou rapidamen-te quais são os problemas da regu-lamentação brasileira. E os EUA? O

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“Nós temos apenas um agente regulador enquanto os Estados Unidos têm mais de seis. O nosso problema é diferente, não é de regulação, é de ausência de capital.”

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não conseguiram mais pagar, de-volver o que pegaram emprestado. Aqui, faltou capital não porque as pessoas não estavam mais pagando, mas porque não existia mais recur-so para manter o financiamento de longo prazo. Quem aplica dinheiro no Brasil quer uma coisa, liquidez, quer sacar a qualquer dia. Isso tem um custo. Ninguém nos EUA aplica para sacar no mesmo dia. Liquidez não é diária, é semestral, é anual, de dez anos, de �5 anos. Quando se sabe que o dinheiro recolhido hoje só será pago daqui a dez anos, pode-se emprestar em nove. O que acontece atualmente no Bra-sil é que o prazo é de seis meses, mas caso o cliente queira ele pode sacar com dois. Se isso acontecer, o banco tem que ter recurso e aca-ba cobrando mais caro porque não consegue fazer um planejamento financeiro. O fluxo de caixa é uma tensão diante da liquidez diária.

RFC: A primeira reação à crise foi estatizar empresas, injetar di-nheiro na economia. Trata-se de uma crise do modelo neoliberal?

JON: Não. O neoliberalismo é um sistema de liberdades econômicas, mas com regulação do Estado. Isso não desacredita o modelo, mas sim a ausência de regulamentação. É preciso entender que os EUA estão injetando dinheiro e com-prando empresas provisoriamente. Eu tenho certeza, os EUA voltam a privatizar esses bancos. Aliás, para se falar em crise do neoliberalismo, temos que lembrar que antes dele quebrou o Estado intervencionista, comunista. Eu só acredito no regi-

me de liberdade econômica com o Estado regulando. Se não for assim, o que nós teremos é a falência do Estado, como já ocorreu. Eu desa-fio alguém a me apontar um Estado socialista que tenha causado bem-estar social à sua população. Na história do mundo eu não conhe-ço. O capitalismo tem longa dura-ção. Sofreu por descuido, por des-mazelo de regulação, por políticas irresponsáveis em termos de gastos públicos. É preciso apenas corrigir essas falhas.

RFC: Um dos assuntos que está na pauta política do Brasil já há alguns anos é a Reforma Tribu-tária. O senhor concorda com a necessidade dessa reforma?

pesadamente, inclusive os menos favorecidos.

No Brasil, primeiro se estabelece quanto se pretende gastar, para de-pois decidir quanto precisa arreca-dar. Como se gasta muito todo ano, aumenta-se imposto todo ano. Essa equação é uma inversão. Nós pre-cisamos mudar, precisamos saber quanto podemos receber para saber quanto o Estado deve gastar. Mas eu não sei se os políticos querem mes-mo uma Reforma Tributária.

RFC: O Judiciário poderia contri-buir para que essa Reforma efeti-vamente acontecesse?

JON: A Reforma é no campo po-lítico. Nós somos aplicadores das

JON: Eu prefiro falar em uma Re-forma Fiscal-Tributária. É mais am-plo. Eu não conheço país em que o sistema fiscal-tributário seja tão complicado quanto o nosso. Há um grande número de impostos e de leis. Isso dificulta o próprio con-tribuinte a calcular e a pagar o im-posto. Muitas dessas leis são decla-radas inconstitucionais. O sistema atual é perverso. Ele onera muito

leis formuladas pelo Legislativo. Podemos contribuir dando suges-tões, participando dos debates. Mas toda atitude tem que partir do Legislativo e do Executivo.

RFC: E o Judiciário tem sido convi-dado a participar desses debates?

JON: Eventualmente. A nossa parti-cipação não tem que se centrar no enfoque político, mas no enfoque

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“Eu não conheço país em que o

sistema fiscal-tributário seja tão

complicado quanto o nosso.”

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técnico. Na realidade, não é esse o principal papel do Judiciário. Nós podemos e, eventualmente, somos chamados a nos manifestar sobre alguns pontos. É assim que tem que ser.

RFC: O senhor poderia nos falar, agora, sobre a sua experiência na assessoria jurídica do Banco do Brasil?

JON: Foi uma experiência que eu reputo das mais ricas. Primeiro porque advoguei em comarcas pe-quenas, médias e grandes, atuei em praticamente todos os tribunais do Brasil. Trabalhei na área propria-mente do Direito Bancário, como também do Direito Societário, na medida em que participava das estruturações societárias do Ban-co. Por ser um órgão de governo, o Banco do Brasil também tem sua in-serção no campo público, de onde entramos no Direito Administrativo. Enfim, foi uma experiência de uma riqueza enorme, inestimável.

RFC: Quais são os principais pro-blemas jurídicos que um banco enfrenta?

JON: Um banco enfrenta proble-mas em várias direções. Primeiro, no campo do Direito Bancário, tem-se uma quantidade enorme de demandas relativas ao consumi-dor. Depois, trabalha-se constante-mente com a reorganização socie-tária do próprio banco. Há, ainda, um problema pouco visível para quem está de fora do sistema, que é a regulação. Os bancos se depa-ram com uma quantidade enorme

de normas regulatórias. Além do Banco Central, tem a CVM para a questão societária. Se for um banco público, tem o Tribunal de Contas. Existe ainda a fiscalização interna. Isso gera uma demanda enorme de pareceres, interpretações. O banco tem mais de um balanço. Ele tem um balanço societário, um fiscal, um segundo regras da CVM. Cada um com uma espécie regulatória. E é extremamente penosa a regu-lação tributária. Além das leis, exis-tem várias portarias da Secretaria da Receita Federal. Os problemas jurí-dicos de um banco são muito mais complexos do que possam parecer.

RFC: O senhor falou que atuou em comarcas pequenas, médias e grandes. Qual a diferença?

JON: Na comarca pequena tem-se contato maior com o juiz. Eu come-

cei no sul de Minas, depois fui para uma capital menor, Vitória, depois para uma maior, Belo Horizonte. Em seguida, vim para Brasília como diretor jurídico do Banco do Brasil, e o trabalho tomou uma dimensão nacional. Conheci todas as fases, todos os escalões da Justiça.

RFC: Como esse contato direto com o juiz afeta a decisão final?

JON: O advogado tem uma missão que ninguém pode esquecer. Seu grande papel é defender interesses. Ao defender interesses, ele instrui o juiz, leva informações a ele com as petições, a sustentação oral, os despachos. O advogado é o grande informador do Judiciário, que aco-lhe ou rejeita a tese submetida. Ao receber o advogado, o juiz ganha muito em termos de informação, principalmente nos campos fático e técnico.

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“O advogado é o grande informador do Judiciário, que acolhe ou rejeita a tese submetida. Ao receber o advogado, o juiz ganha muito em termos de informação, principalmente nos campos fático e técnico.”

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técnico. Na realidade, não é esse o principal papel do Judiciário. Nós podemos e, eventualmente, somos chamados a nos manifestar sobre alguns pontos. É assim que tem que ser.

RFC: O senhor poderia nos falar, agora, sobre a sua experiência na assessoria jurídica do Banco do Brasil?

JON: Foi uma experiência que eu reputo das mais ricas. Primeiro porque advoguei em comarcas pe-quenas, médias e grandes, atuei em praticamente todos os tribunais do Brasil. Trabalhei na área propria-mente do Direito Bancário, como também do Direito Societário, na medida em que participava das estruturações societárias do Ban-co. Por ser um órgão de governo, o Banco do Brasil também tem sua in-serção no campo público, de onde entramos no Direito Administrativo. Enfim, foi uma experiência de uma riqueza enorme, inestimável.

RFC: Quais são os principais pro-blemas jurídicos que um banco enfrenta?

JON: Um banco enfrenta proble-mas em várias direções. Primeiro, no campo do Direito Bancário, tem-se uma quantidade enorme de demandas relativas ao consumi-dor. Depois, trabalha-se constante-mente com a reorganização socie-tária do próprio banco. Há, ainda, um problema pouco visível para quem está de fora do sistema, que é a regulação. Os bancos se depa-ram com uma quantidade enorme

de normas regulatórias. Além do Banco Central, tem a CVM para a questão societária. Se for um banco público, tem o Tribunal de Contas. Existe ainda a fiscalização interna. Isso gera uma demanda enorme de pareceres, interpretações. O banco tem mais de um balanço. Ele tem um balanço societário, um fiscal, um segundo regras da CVM. Cada um com uma espécie regulatória. E é extremamente penosa a regu-lação tributária. Além das leis, exis-tem várias portarias da Secretaria da Receita Federal. Os problemas jurí-dicos de um banco são muito mais complexos do que possam parecer.

RFC: O senhor falou que atuou em comarcas pequenas, médias e grandes. Qual a diferença?

JON: Na comarca pequena tem-se contato maior com o juiz. Eu come-

cei no sul de Minas, depois fui para uma capital menor, Vitória, depois para uma maior, Belo Horizonte. Em seguida, vim para Brasília como diretor jurídico do Banco do Brasil, e o trabalho tomou uma dimensão nacional. Conheci todas as fases, todos os escalões da Justiça.

RFC: Como esse contato direto com o juiz afeta a decisão final?

JON: O advogado tem uma missão que ninguém pode esquecer. Seu grande papel é defender interesses. Ao defender interesses, ele instrui o juiz, leva informações a ele com as petições, a sustentação oral, os despachos. O advogado é o grande informador do Judiciário, que aco-lhe ou rejeita a tese submetida. Ao receber o advogado, o juiz ganha muito em termos de informação, principalmente nos campos fático e técnico.

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“O advogado é o grande informador do Judiciário, que acolhe ou rejeita a tese submetida. Ao receber o advogado, o juiz ganha muito em termos de informação, principalmente nos campos fático e técnico.”

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RFC: Como essa experiência in-fluencia sua atuação no STJ?

JON: Não diria que influencia di-retamente minha atuação no STJ. É inegável que eu trouxe comigo uma bagagem muito grande em matéria de Direito Privado, Direito Socie-tário, Direito Bancário. Isso me dá uma tranquilidade para aplicar aqui-lo tudo que eu conheci e ter tempo de estudar outras matérias. Às ve-zes, defendo posições contrárias ao sistema. O fato de eu ter sido advo-gado não significa que eu assimilei todas as teses que defendi. O advo-gado tem uma posição de defesa de interesses, hoje minha posição é de fazer justiça, dar uma interpretação correta da lei. Atualmente, o meu juízo é axiologicamente neutro. No tempo de advogado, era um juízo de interesse.

RFC: Como foi essa transição, de um perfil para outro?

JON: Isso decorre da maturidade profissional. Saber o papel que se

está desempenhando. Eu, desde que tomei posse no STJ, tive plena convicção de que estava mudando de lado. Meu papel não era mais o de defender as posições que eu havia defendido ao longo dos anos. Minha posição era de ser um in-térprete desinteressado da norma jurídica. Posso lhe confessar com toda honestidade que não tive di-ficuldade nenhuma em trocar de papel.

RFC: A sua atuação como advoga-do influencia hoje o seu relaciona-mento com esses profissionais?

JON: Eu recebo todos os advoga-dos que marcam audiência. Isso é uma filosofia que eu trouxe porque eu sempre tive necessidade de fa-lar com o juiz e, algumas vezes, tive dificuldades em ser recebido. Aquilo que eu não gostava, procu-ro não fazer hoje.

RFC: Essa é uma postura constan-te entre os ministros do STJ?

JON: Acredito que sim. Eu sempre dizia, antes mesmo de ser nomea-do, que nesta Casa os advogados são bem recebidos, de maneira geral.

RFC: O STJ tem a alcunha de Tri-bunal Cidadão. Ele está cumprin-do esse papel?

JON: Cumpre. Quando falamos Tribunal da Cidadania, é preciso entender que julgamos as teses que mais diretamente repercutem na vida do cidadão. A população vive, de modo geral, no plano da legalidade, não da constituciona-lidade. A Constituição é primeira-mente dirigida ao legislador para editar normas. Evidentemente que, em pleno regime democrático, de-vemos cumprir com os preceitos constitucionais. Mas as teses que mais são veiculadas no Judiciário são as que exigem interpretação das leis, são causas de família, de contratos, de sucessão, de tributos.

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Regulamentação do mercado financeiro

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CAPA |

A história da economia mundial oscilou, durante os séculos, entre momentos de grande interferên-cia dos Estados nos mercados e outros de intervenção quase nula, sendo os Estados Totalitários e os Estados Liberais as manifestações máximas desses dois momentos. A recente quebra de várias institui-ções financeiras norte-americanas e a crise que se seguiu nos merca-dos mundiais colocou novamente na pauta dos dirigentes dos países a regulamentação da economia como um todo – e mais especifi-camente do mercado financeiro, fonte irradiadora da atual crise.

Chefes de estado começaram a se mobilizar para conter os efeitos da crise e até para evitar novas de-

A evolução dos mercados financeiros representou avanços na sua regulamentação, mas a atual crise dá sinais de que novos progressos ainda precisam ser alcançados

sestabilizações da economia mun-dial. No dia �5 de novembro de �008, por exemplo, líderes das �0 nações mais importantes econo-micamente, o G-�0, se reuniram em Washington para discutir a cri-se que se agravava e concluíram que seria necessário criar novas normas de regulamentação e mo-nitoramento de mercado. No dia 8 de dezembro, líderes da China e da Europa discutiram os passos que dariam para recuperar a es-tabilidade dos seus mercados. A essas, seguiram-se várias reuniões, encontros e manifestações isola-das sobre o rumo que deveria ser dado à economia mundial.

Modesto Carvalhosa, ex-profes-sor de Direito Comercial da USP

e ex-consultor jurídico da Bo-vespa, acredita que a atual crise tem as mesmas origens da Crise de �9�9, as quais ele exemplifi-ca como especulação, ganância, produtos falsos e falsas cotações de bolsa. A diferença fundamen-tal entre as duas, segundo ele, é que em �9�9 o Estado só come-çou a injetar dinheiro na econo-mia anos depois de o problema ter emergido. Desta vez, os Esta-dos Unidos, a União Europeia e outros países estão dando recur-sos ao sistema financeiro e aos bancos para incentivar a econo-mia. “Os governos estão tratan-do da crise soltando dinheiro. O Estado não está omisso. Se isso tivesse sido feito nos anos sub-

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CAPA |

A história da economia mundial oscilou, durante os séculos, entre momentos de grande interferên-cia dos Estados nos mercados e outros de intervenção quase nula, sendo os Estados Totalitários e os Estados Liberais as manifestações máximas desses dois momentos. A recente quebra de várias institui-ções financeiras norte-americanas e a crise que se seguiu nos merca-dos mundiais colocou novamente na pauta dos dirigentes dos países a regulamentação da economia como um todo – e mais especifi-camente do mercado financeiro, fonte irradiadora da atual crise.

Chefes de estado começaram a se mobilizar para conter os efeitos da crise e até para evitar novas de-

A evolução dos mercados financeiros representou avanços na sua regulamentação, mas a atual crise dá sinais de que novos progressos ainda precisam ser alcançados

sestabilizações da economia mun-dial. No dia �5 de novembro de �008, por exemplo, líderes das �0 nações mais importantes econo-micamente, o G-�0, se reuniram em Washington para discutir a cri-se que se agravava e concluíram que seria necessário criar novas normas de regulamentação e mo-nitoramento de mercado. No dia 8 de dezembro, líderes da China e da Europa discutiram os passos que dariam para recuperar a es-tabilidade dos seus mercados. A essas, seguiram-se várias reuniões, encontros e manifestações isola-das sobre o rumo que deveria ser dado à economia mundial.

Modesto Carvalhosa, ex-profes-sor de Direito Comercial da USP

e ex-consultor jurídico da Bo-vespa, acredita que a atual crise tem as mesmas origens da Crise de �9�9, as quais ele exemplifi-ca como especulação, ganância, produtos falsos e falsas cotações de bolsa. A diferença fundamen-tal entre as duas, segundo ele, é que em �9�9 o Estado só come-çou a injetar dinheiro na econo-mia anos depois de o problema ter emergido. Desta vez, os Esta-dos Unidos, a União Europeia e outros países estão dando recur-sos ao sistema financeiro e aos bancos para incentivar a econo-mia. “Os governos estão tratan-do da crise soltando dinheiro. O Estado não está omisso. Se isso tivesse sido feito nos anos sub-

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sequentes à Crise de �9�9, tudo teria sido amenizado”, afirma.

Colocar dinheiro na economia e estatizar grandes instituições de crédito imobiliário têm sido, então, a reação dos países. Assim, a Fan-nie Mae e a Freddie Mac, criadas pelo Estado americano em �9�8 e �970, respectivamente, e depois privatizadas com o objetivo de di-minuir os gastos públicos e aumen-tar a concorrência setorial, volta-ram às mãos do Estado.

“A regulamentação do mercado financeiro nos Estados Unidos foi um modelo adotado por vários países, mas, não obstante, ficou parado no tempo, enquanto di-versas outras nações desenvol-veram suas normas”, diz Marcos Barbosa Pinto, diretor da Comis-são de Valores Mobiliários (CVM). Marcos Pinto cita como exemplo da deficiência da regulamentação americana a falta de transparên-cia no mercado de balcões. Essas operações são realizadas dentro de uma instituição financeira ou entre duas dessas instituições. O registro das operações nos Esta-dos Unidos se dá apenas na con-tabilidade das partes envolvidas. Além disso, os limites a operações de empréstimo são estabelecidos pelas próprias instituições. Essas características limitam a supervi-são da atividade, já que as transa-ções estão dispersas entre as insti-tuições, e dificulta a identificação do volume de operações de um mesmo investidor, uma vez que não existem informações centra-lizadas sobre ele.

O Brasil apresenta uma regulamen-tação mais prudente nesse sentido. O empréstimo de títulos é feito de forma centralizada, por entidades de compensação e liquidação au-torizadas pela CVM. Atualmente, a única entidade autorizada é a Companhia Brasileira de Liquida-ção e Custódia (CBLC), que detém o registro de todas as operações de empréstimo realizadas. O serviço é supervisionado pela CVM, que pos-

sui, ainda, a identificação de cada investidor que toma títulos empres-tados. A transparência é tão valori-zada pela regulamentação brasileira nessa área que a informação sobre o volume total alugado por ativo é pública e é atualizada a cada �5 mi-nutos. Há também limites máximos para os empréstimos que podem ser mantidos em aberto.

Marcos Pinto diz que essa falta de transparência no mercado de bal-cão americano dificulta a coibição de comportamentos que podem ocasionar prejuízos ao investidor e diminui a confiabilidade no merca-do como um todo. “A transparên-cia é o melhor modo de regular conduta. Sem transparência, em um ambiente opaco, diversos pro-cedimentos que poderiam ocasio-nar prejuízos para os investidores podem ocorrer”, diz. Para ele, essa opacidade foi uma das grandes causas da crise atual.

O diretor da CVM aponta, ain-da, outros problemas da regula-mentação americana. Para ele, existem brechas de competência entre a Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regula-dor do mercado de capitais, e o Federal Reserve System (FED), o Banco Central americano. A re-gulamentação dos bancos de in-vestimento está, segundo ele, em uma dessas brechas. A competên-cia para regular tais bancos é da SEC, mas, como lembra Marcos Pinto, esse órgão não dispõe do arsenal que o Banco Central te-ria para enfrentar uma crise ban-cária. Não seria possível à SEC lançar mão de medidas como emprestar dinheiro aos bancos, já que não há orçamento dispo-nível para isso. No Brasil, o Ban-co Central e a CVM regulam os bancos de investimento enquan-to bancos, o que significa que, se houver alguma crise nessas ins-tituições, o Banco Central pode atuar com medidas tradicionais, como se as instituições atingidas fossem bancos comerciais.

“Os governos estão tratando da crise soltando dinheiro. O Estado não está omisso. Se isso tivesse sido feito nos anos subsequentes à Crise de 1929, tudo teria sido amenizado”

Modesto Carvalhosa, ex-professor de Direito Comercial da USP e ex-consultor jurídico da Bovespa.

“(O) mercado financeiro nos Estados Unidos (...) ficou parado no tempo, enquanto diversas outras nações desenvolveram suas normas”

Marcos Barbosa Pinto, diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

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Francisco Munia Machado, ex-procurador do Banco Central, diz que o mercado financeiro do Brasil foi muito inspirado no americano, que já existia de forma amadure-cida quando o mercado brasileiro começou a se desenvolver. Apesar disso, ele ressalta que atualmente os dois mercados são muito dife-rentes. “Por mais que se inspirem em algo feito anteriormente, as coisas depois se modificam”, diz. Ele afirma que os Estados Unidos acreditam nas forças de mercado, apesar da esperada intervenção go-vernamental que a atual crise pos-sivelmente causará. “Em tese, pelo menos o que nos ensinaram, é que o mercado americano é construído pelas forças de mercado. No Brasil não é assim, muito menos foi as-sim na época de sua implantação, no governo militar. Era tudo muito controlado”, completa.

Modesto Carvalhosa não acredita que existam tantas diferenças en-

tre as regulamentações brasileira e americana. De acordo com ele, o modelo norte-americano foi di-fundido pelo mundo por meio das Conferências de Bretton Woods, realizadas em �9��. Foram nessas conferências que os 7�0 delega-dos de todas as �� nações alia-das se reuniram para reorganizar o capitalismo no fim da Segunda Guerra Mundial. Esses delegados estabeleceram o Banco Internacio-nal para a Reconstrução e Desen-volvimento (International Bank for Reconstruction and Development, ou BIRD) e o Fundo Monetário In-ternacional (FMI). O Sistema Bret-ton Woods determinou, ainda, que cada país deveria adotar uma política monetária que mantivesse a taxa de câmbio de suas moedas dentro de um determinado valor indexado ao dólar que, por sua vez, estaria ligado ao ouro.

Precedentes históricos

A regulamentação que está em vigor atualmente nos Estados Uni-dos tem suas origens na década de �9�0 e é fruto da crise econômica que o país viu estourar em �9�9. É, portanto, uma legislação criada para diminuir práticas de especu-lação de ações e significou o au-mento da intervenção estatal na economia. Foi nesse momento que surgiu, por exemplo, a SEC. Déca-das depois, porém, no governo de Ronald Reagan (�98�-�989), essa regulamentação perdeu parte do seu valor e deixou de ser priorida-de diante da ideia dominante na época, e compartilhada pelo então presidente, de que a intervenção governamental na economia era indesejável.

Em �00�, com a descoberta de ma-nipulações contábeis em duas das

“Em tese, pelo menos o que nos ensinaram, é que o mercado americano é construído pelas forças de mercado. No Brasil não é assim.”

Francisco Munia Machado, ex-procurador do Banco Central.

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com medidas tradicionais nos casos de crises nos bancos

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gras de governança coorporativa estabelecidas. O objetivo de tais empresas, ao observar as normas da Lei Sarbanes Oxley, é alinhar suas práticas corporativas com as tendências do mercado global, já que a lei acabou se tornando uma referência mundial.

No Brasil, porém, o mercado de ca-pitais se configurou de forma diver-sa até como resultado do momento no qual ele se estruturou, já que as práticas desse mercado só se mos-traram recorrentes no país a partir da década de �960 (ver quadro). A consolidação de tal mercado, entretanto, se deu a partir do final da década de �980. Aloísio Araújo, professor do curso de pós-gradu-ação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, diz que o Brasil é mais prudente que os Estados Uni-dos e que um dos motivos para isso é a crise bancária pela qual o país passou depois da implantação do Plano Real. “Alguns bancos tive-ram problemas e foi preciso fazer várias intervenções. Foram criados

O mercado de capitais brasileiro teve seu início apenas a partir de �96�, no governo militar. Até então, os inves-timentos dos brasileiros eram voltados principalmente para os ativos reais (imóveis), como consequência de um ambiente de grande inflação e uma legislação que li-mitava constitucionalmente os juros reais a ��% ao ano. “A redação original da Constituição previa uma carga mais pesada em termos de mercado financeiro, inclusi-ve com limites aos juros praticados no mercado. Isso é um desprezo à magnitude da Constituição e quem colo-ca isso lá está vendendo promessas irrealizáveis”, avalia Egon Bockmann, da Universidade Federal do Paraná.

Já em �96�, foi iniciado um programa de grandes refor-mas na economia nacional. Entre as leis editadas nessa

O desenvolvimento do mercado financeiro no Brasil

maiores empresas do país, a Enron e a Worldcom, a maior crise de confiança desde a quebra da bolsa de Nova York em �9�9 teve início. Com o objetivo de recuperar a cre-dibilidade do mercado de capitais, foi, então, promulgada a Lei Sarba-nes Oxley, que se configurou como a maior reforma na legislação desse mercado desde a quebra da bolsa. A detalhada lei, que conta com �� títulos e �.�07 artigos, aumenta o grau de responsabilidade do presi-dente e da diretoria das empresas, assim como das auditorias e dos advogados contratados. A lei intro-duz, ainda, regras bastante rígidas de governança corporativa, na ten-tativa de dar maior transparência e confiabilidade aos resultados das empresas. Há também a previsão de severas punições contra fraudes empresariais.

Tal lei incide sobre as empresas brasileiras com ações negociadas nos EUA e mesmo aquelas que não possuem ações nos mercados americanos tendem a seguir as re-

época que tiveram maior impacto para o mercado fi-nanceiro estão a Lei n° �.�80/6� e a Lei n° �.595/6�. A primeira instituiu a correção monetária nos con-tratos imobiliários e de interesse social, enquanto a segunda reformulou todo o sistema nacional de inter-mediação financeira, criando o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. Em �965, foi editada a Lei n° �.7�8, que disciplinou o mercado de capitais e estabeleceu medidas para seu desenvolvimento.

Ficou estabelecido na exposição de motivos dessa última que o objetivo era reorganizar o mercado fi-nanceiro diante das deturpações sofridas devido ao processo inflacionário. A partir da promulgação da nova legislação, a emissão de haveres financeiros e sua negociação somente poderiam ser feitas por meio de instituições autorizadas a trabalhar no Sis-tema Financeiro Nacional. A legislação sobre Bolsa de Valores foi reformulada, as corretoras de fundos públicos foram transformadas em Sociedades Cor-retoras e se profissionalizaram, os bancos de investi-mento foram criados.

“Quando se está fazendo uma transição monetária daquela magnitude é melhor ser mais prudente”

Aloísio Araújo, professor do curso de pós-graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas.

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alguns mecanismos, alguns que na realidade já existiam nos Esta-dos Unidos. O Fundo Garantidor de Crédito (FGC) é um exemplo. Ele tinha muitas semelhanças com o Federal Deposit Insurance Cor-poration (FDIC), que existia nos Estados Unidos desde a Grande Depressão. Mas também se optou por criar mecanismos de contro-le para não ter tantos problemas depois. Quando se está fazendo uma transição monetária daquela magnitude é melhor ser mais pru-dente”, afirma.

As diferenças entre as regulamen-tações americana e brasileira têm, para Egon Bockmann Moreira, doutor em Direito Econômico e professor do departamento de Direito Público da Universidade

Federal do Paraná, origens ante-riores a todo esse desenvolvimento do mercado de capitais. Para ele, “os Estados Unidos, desde a guerra da independência americana, no século XVIII, é um país eminente-mente liberal, que preza pela não presença do Estado na economia. O Brasil é o contrário, segue a tra-dição europeia continental, que é de uma grande presença do Estado na economia.”

Egon Bockmann lembra que mes-mo bens de interesse nacional, como energia elétrica, são tratados

como commmodities nos Estados Unidos, enquanto no Brasil cabe ao Estado prestar tais serviços di-retamente ou por meio de conces-sões. “Lá a regulação se presta ba-sicamente a coibir excessos e para efeitos concorrenciais. No Brasil, não. O Estado brasileiro sempre teve uma mão pesada”, explica.

Posteriormente, o governo passou a conceder incen-tivos para a aplicação no mercado acionário, como os Fundos �57, criados pelo Decreto Lei n° �57/67. Os contribuintes poderiam utilizar parte do imposto devido em aquisição de quotas de fundos de ações de companhias abertas. Com os incentivos, a deman-da por ações cresceu rapidamente, mas a emissão de ações pelas empresas não acompanhou tal crescimen-to, o que gerou o boom na Bolsa do Rio de Janeiro. O início da década de �970 foi, então, marcado por uma forte onda especulativa.

O “boom de �97�”, como ficou conhecido esse mo-vimento especulativo, teve curta duração, mas gerou grandes prejuízos, e a falta de confiança no merca-do acionário se prolongou por vários anos. A partir de �975, as cotações começaram a melhorar devido principalmente aos novos aportes de recursos, prove-nientes, por exemplo, da criação das Sociedades de Investimento pelo Decreto Lei n° �.�0�, que objetiva-va captar recursos externos e aplicar no mercado de ações. Outros incentivos foram adotados ao longo do tempo, como a isenção fiscal dos ganhos obtidos em bolsa de valores.

Foi nesse contexto de tentativa de recuperação do mercado acionário que, em �976, foram criadas duas novas leis, que ainda estão em vigor. Foram elas: a Lei n° 6.�0�/76, que versa sobre as Sociedades Anôni-mas, e a Lei n° 6.�85/76, sobre o mercado de capitais. Foi essa segunda que criou a Comissão de Valores Mo-biliários (CVM). Todos esses incentivos geraram, em

alguns momentos, aumento na quantidade de com-panhias com capital aberto, mas o mercado ainda não teve o crescimento esperado.

Só no final da década de �980 é que o capital es-trangeiro começou a entrar em maior volume no mercado de capitais brasileiro, notadamente a partir da edição da Resolução do Conselho Monetário Na-cional n° �.�89/87 e seus anexos. A resolução apro-va os regulamentos que disciplinam a constituição, o funcionamento e a administração de Sociedade de Investimento, Capital Estrangeiro e Carteira de Títu-los e Valores Mobiliários. O aumento de volume de investidores estrangeiros no início da década de �990 é acompanhado também pela oferta de ações de em-presas brasileiras em bolsas de valores estrangeiras.

A partir daí, as companhias abertas brasileiras precisa-ram seguir as regras impostas pela SEC e começaram a ter contato com investidores mais exigentes, acos-tumados a investir em mercados com práticas de go-vernança corporativa mais avançadas. Foi quando o mercado de capitais brasileiro começou a se especiali-zar. A falta de proteção ao acionista minoritário e a au-sência de instrumentos adequados de supervisão das empresas, porém, fizeram o mercado brasileiro perder espaço para outros mercados.

Mais recentemente, algumas iniciativas institucionais e governamentais foram implementadas com o objetivo de revitalizar o mercado brasileiro de capitais a par-tir do aperfeiçoamento da regulamentação, da maior proteção ao investidor e da melhoria das práticas de governança. Pode-se destacar a Lei n° �0.�0�/0�, que alterou e acrescentou dispositivos à Lei n° 6.�0�/76, que dispõe sobre as Sociedades de Ações, e à Lei n° 6.�85/76, que dispõe sobre o mercado de valores mo-biliários. Foram, ainda, criados o Novo Mercado e os níveis � e � de governança corporativa na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa).

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Francisco Munia Machado, ex-pro-curador do Banco Central, concor-da com a afirmação de que o Brasil segue uma tradição mais europeia. Ele diz que, como a Europa, o país tem a cultura do direito positivo, enquanto os Estados Unidos se-guem a tradição do direito costu-meiro. “Quem manda mais que a lei são os juízes. As autoridades de fiscalização e supervisão bancária são uma espécie de Judiciário no mercado financeiro, eles criam as regras de uma determinada situa-ção”, diz Machado sobre a tradi-ção americana.

Ele exemplifica afirmando que, quando o Banco Bamerindus faliu, a filial de Nova Iorque precisou se-guir as regras impostas pelo Estado de Nova Iorque para fechar o ban-co. “Eles trabalham com as condi-ções de momento do mercado e da empresa, a capacidade de pa-gamento do dono do banco. Eles fizeram exigências duras no caso

tual presidente. Nos Estados Uni-dos, o currency já tem uma liturgia que confere independência maior ao FED”, completa.

Há, porém, quem não encontre tantas diferenças entre as regula-mentações brasileira e americana. “Não vejo no Brasil um controle rígido ou diferente dos Estados Unidos. Lá existe um controle pseudorrígido sobre os bancos, como aqui também há”, diz Mo-desto Carvalhosa. O ex-professor da USP explica que ele considera o controle dos dois países pseu-dorrígido por não fiscalizarem os produtos oferecidos pelos bancos aos investidores. A falta dessa fis-calização permite, segundo ele, uma alavancagem muito grande dos bancos e pode culminar em uma crise como a atual.

Bamerindus”, diz. Machado afir-ma que não existem, por exemplo, proteções trabalhistas, tudo se dá a partir de convenções feitas com os sindicatos.

O ex-procurador do Banco Cen-tral aponta, ainda, outra diferença entre a regulamentação brasileira e a norte-americana. “O FED tem uma extraordinária autonomia em relação às políticas de governo. Eles conseguem realmente cuidar da moeda. Nós fazemos isso aqui dependendo da personalidade do presidente do Banco Central”, ob-serva. Segundo ele, o atual presi-dente da entidade consegue agir com certa independência, mas nem todos conseguem. “A verdade é que o Banco Central não tem au-tonomia, quem a tem é seu even-

“Lá a regulação se presta basicamente a coibir excessos e para efeitos concorrenciais. No Brasil, não. O Estado brasileiro sempre teve uma mão pesada”

Egon Bockmann Moreira, doutor em Direito Econômico e professor do departamento de Direito Público da Universidade Federal do Paraná.

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O que diferencia o Brasil dos Es-tados Unidos, para Modesto Carva-lhosa, não é, portanto, a regulamen-tação. “A diferença é que os bancos brasileiros são mais prudentes que os americanos, no sentido de mais conservadores. Não ingressaram nessa alavancagem total de criação de produtos de terceira geração, produtos piramidais, especulação de imagens e criação de alavanca-gem absolutamente inimaginável com referência a seus próprios de-pósitos e seu capital”, avalia.

Intervencionismo e liberalismo

Modesto Carvalhosa lembra que o liberalismo predomina nos Estados Unidos e no Brasil desde o Con-senso de Washington, firmado no encontro de diversos economistas latino-americanos de perfil liberal, funcionários do FMI, do Banco Mundial, do Banco Interamerica-no de Desenvolvimento (BID) e do governo norte-americano, em �989. No encontro, foram esta-belecidos dez pontos consensuais entre os participantes (ver quadro), que se tornaram diretrizes para a economia mundial. Esses dez pon-tos passaram, posteriormente, a ser impostos pelas agências internacio-nais para a concessão de créditos. “No Consenso de Washington, o Estado é um empecilho, é uma entidade burocrática, que impede o desenvolvimento dos mercados. Então, o mercado é absolutamente autorregulável, no sentido de que encontra nele mesmo o seu equilí-brio. O mercado prevalece sobre o Estado”, explica Carvalhosa.

Adotar um modelo mais ou menos intervencionista tem efeitos bem palpáveis. Aloísio Araújo, da Fun-dação Getúlio Vargas, diz que o Brasil é mais prudente do que os Estados Unidos, mas que quando o país fez essa escolha acabou optan-do também por alavancar menos capital. Ele lembra, porém, que o Brasil tomou esse caminho porque era necessário para o mercado do país, que apresenta riscos maiores

O encontro realizado em Washington em �989 pretendia ava-liar as reformas econômicas em curso na América Latina e o tema do evento foi “Latin Americ Adjustment: How Much has Happened?”. O encontro foi promovido pelo Institute for Inter-national Economics e o diretor desse instituto, John Willianson, foi quem sistematizou os dez pontos considerados consensuais entre os participantes. Posteriormente, tais pontos passaram a ser prerrogativas para a concessão de crédito em instituições internacionais. A seguir, as regras do Consenso de Washington:

�. Disciplina fiscal, através da qual o Estado deve limitar seus gastos à arrecadação, eliminando o déficit público;

�. Focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infraestrutura;

�. Reforma tributária que amplie a base sobre a qual incide a carga tributária, com maior peso nos impostos indiretos e menor progressividade nos impostos diretos;

�. Liberalização financeira, com o fim de restrições que im-peçam instituições financeiras internacionais de atuar em igualdade com as nacionais e o afastamento do Estado do setor;

5. Taxa de câmbio competitiva;

6. Liberalização do comércio exterior, com redução de alí-quotas de importação e estímulos à exportação, visando impulsionar a globalização da economia;

7. Eliminação de restrições ao capital externo, permitindo investimento direto estrangeiro;

8. Privatização, com a venda de empresas estatais;

9. Desregulação, com redução da legislação de controle do processo econômico e das re-lações trabalhistas;

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Consenso de Washington

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que o mercado norte-americano. Ele ressalta, ainda, que o país veio de uma hiperinflação e tem uma oferta de crédito muito menor. Se-gundo Araújo, os Estados Unidos têm mais de três vezes o PIB em crédito, e o Brasil não tem nem uma vez. “O crédito é bom para o crescimento, no entanto, talvez te-nham exagerado nos Estados Uni-dos”, avalia.

Araújo afirma, ainda, que Alan Greenspan – ex presidente do FED –, Robert Rubin – ex-ministro da fazenda e ex-secretário do Tesou-ro no governo de Bill Clinton – e Henry Paulson – secretário do Te-souro norte-americano e membro da Assembleia de Governadores do FMI – têm o ponto de vista dos bancos de investimento, sendo que

os dois últimos foram executivos do The Goldman Sachs Group, um dos maiores bancos de investimento do mundo. Com essa perspectiva, querem mais risco, mais alavanca-gem, o que traz agilidade para o mercado financeiro. Foi esse perfil que moldou, segundo Araújo, o mercado americano.

Os efeitos dependem, porém, mais da qualidade do que da quantida-de de normas para Marcos Pinto, da CVM. Segundo ele, regras bem feitas permitem que o sistema ope-

re de maneira mais eficiente e com menos riscos. Ele concorda que al-gumas normas podem levar a uma diminuição do tamanho do merca-do e provocar uma alavancagem menor, ou seja, gerar resultados piores do que se tais normas não existissem. O diretor da CVM acre-dita, porém, que é possível ter re-gras que reduzem o risco do siste-ma sem prejudicar sua eficiência. “Quer dizer, os ativos podem ser usados da melhor maneira possí-vel sem comprometer a solidez do mercado. Desenhar essas regras é um grande trabalho dos regulado-res depois dessa crise”, diz.

Os possíveis efeitos adversos de regras nem tão bem feitas podem surgir por excesso ou por deficiên-cia de regulamentação. Segundo Egon Bockmann, no caso de ex-cesso de regulamentação, inibe-se a atuação dos agentes econômicos, e esses tendem a procurar alternati-vas mais fáceis, como se instalar em outro mercado. Por outro lado, ele completa, se o Estado não intervém,

A Bolsa de Valores de Nova Iorque é uma das mais

importantes do mundo. Foi uma das primeiras a

sentir os efeitos da atual crise econômica.

“Nos Estados Unidos nem

existia autorregulação,

eram o mercado e os

agentes econômicos

se comportando da

forma que melhor

lhes aprouvessem.”

(Egon Bockmann)

“(...) temos uma política

ortodoxa de juros altos,

contenção da moeda no

mercado, retirada de

incentivos. (...)

A política é eminentemente

conservadora”

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que o mercado norte-americano. Ele ressalta, ainda, que o país veio de uma hiperinflação e tem uma oferta de crédito muito menor. Se-gundo Araújo, os Estados Unidos têm mais de três vezes o PIB em crédito, e o Brasil não tem nem uma vez. “O crédito é bom para o crescimento, no entanto, talvez te-nham exagerado nos Estados Uni-dos”, avalia.

Araújo afirma, ainda, que Alan Greenspan – ex presidente do FED –, Robert Rubin – ex-ministro da fazenda e ex-secretário do Tesou-ro no governo de Bill Clinton – e Henry Paulson – secretário do Te-souro norte-americano e membro da Assembleia de Governadores do FMI – têm o ponto de vista dos bancos de investimento, sendo que

os dois últimos foram executivos do The Goldman Sachs Group, um dos maiores bancos de investimento do mundo. Com essa perspectiva, querem mais risco, mais alavanca-gem, o que traz agilidade para o mercado financeiro. Foi esse perfil que moldou, segundo Araújo, o mercado americano.

Os efeitos dependem, porém, mais da qualidade do que da quantida-de de normas para Marcos Pinto, da CVM. Segundo ele, regras bem feitas permitem que o sistema ope-

re de maneira mais eficiente e com menos riscos. Ele concorda que al-gumas normas podem levar a uma diminuição do tamanho do merca-do e provocar uma alavancagem menor, ou seja, gerar resultados piores do que se tais normas não existissem. O diretor da CVM acre-dita, porém, que é possível ter re-gras que reduzem o risco do siste-ma sem prejudicar sua eficiência. “Quer dizer, os ativos podem ser usados da melhor maneira possí-vel sem comprometer a solidez do mercado. Desenhar essas regras é um grande trabalho dos regulado-res depois dessa crise”, diz.

Os possíveis efeitos adversos de regras nem tão bem feitas podem surgir por excesso ou por deficiên-cia de regulamentação. Segundo Egon Bockmann, no caso de ex-cesso de regulamentação, inibe-se a atuação dos agentes econômicos, e esses tendem a procurar alternati-vas mais fáceis, como se instalar em outro mercado. Por outro lado, ele completa, se o Estado não intervém,

A Bolsa de Valores de Nova Iorque é uma das mais

importantes do mundo. Foi uma das primeiras a

sentir os efeitos da atual crise econômica.

“Nos Estados Unidos nem

existia autorregulação,

eram o mercado e os

agentes econômicos

se comportando da

forma que melhor

lhes aprouvessem.”

(Egon Bockmann)

“(...) temos uma política

ortodoxa de juros altos,

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incentivos. (...)

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conservadora”

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ou intervém de forma acanhada, a atuação dos agentes econômicos fica sujeita às livres forças de mer-cado e à ganância dos agentes, o que pode, segundo Bockmann, gerar crises como a que tomou os noticiários no segundo semestre de �008. “Se o Estado atua com excessos ou com muito pouca in-tervenção, os efeitos podem ser perversos. Quando o Estado con-segue encontrar um ponto ótimo da intervenção – o que é muito di-fícil –, ele tende a gerar resultados positivos não só para o mercado em que ele intervém, mas para o país como um todo, em termos ge-rais”, completa.

Bockmann avalia que os Estados Unidos tratavam seu mercado com pouca regulamentação e que a crise já era, por isso, detectável. “Nos Estados Unidos nem existia autorregulação, eram o mercado e os agentes econômicos se com-portando da forma que melhor lhes aprouvessem. Autorregulação é um termo que usamos para de-signar setores econômicos que têm uma regulação.”, explica.

Para ele, porém, muita intervenção estatal também pode gerar crises. O problema, segundo Bockmann, está em detectar as falhas, e, res-salta, quanto mais liberado, mais difícil é identificar o que está erra-do. “Ninguém sabe o que acontece do outro lado do balcão”, afirma. Bockmann diz, ainda, que os pro-blemas enfrentados atualmente pelo mercado de capitais america-no forçarão os Estados Unidos a to-mar medidas mais conservadoras e intervenientes, assim como o Brasil, segundo ele, fez com o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Finan-ceiro Nacional (PROER).

Quando lançado no Brasil, em me-ados de �995, menos de um ano depois da implantação do Plano Real, o PROER foi um socorro a bancos privados brasileiros que custou cerca de �,5% do PIB do país. “Os tradicionais bancos fami-liares brasileiros, quando a moeda se estabilizou na década de �990, não puderam mais fazer a maquia-gem inflacionária nos balanços”, diz Egon Bockmann sobre as causas da crise bancária que gerou o PROER. O programa foi, para Modesto Car-valhosa, um precedente importante de segurança jurídica no mercado financeiro do Brasil. “Os depositan-tes não perderam um tostão devido ao PROER”, explica.

O Plano Real e a crise que se seguiu formaram, então, o cenário para o PROER e para a implantação de várias regras do mercado brasileiro. Para Bockmann, o caos financeiro vivido nessa época foi determinante para que a postura do Banco Central fosse mais conservadora. Ele lembra que a volatilidade dos mercados

não é controlada pelo Banco Cen-tral, existem outras questões, como a eleição do futuro presidente, que influenciam nos mercados. É tal instabilidade que, segundo Bockm-man, determina o conservadorismo brasileiro. “Nós já tentamos algu-mas políticas heterodoxas, como o Plano Bresser e o Plano Collor, que não deram certo. Agora temos uma política ortodoxa de juros altos, contenção da moeda no merca-do, retirada de incentivos. Ainda que esteja tentando compensar um pouco com moeda pública via BNDES ou outros bancos públicos, a política é eminentemente conser-vadora”, avalia. O cenário america-no, ao contrário, não teve caos se-melhante ao brasileiro, a não ser o crash de �9�9, lembra Bockmann. Essa é a razão de os Estados Uni-dos regularem o mercado de for-ma menos intervencionista. “Se o Alan Greenspan estivesse aqui e o Henrique Meirelles estivesse lá, as coisas seriam feitas basicamente da mesma forma”, afirma.

A Bovesta é Bolsa de Valores mais importante do Brasil. Ela já sentiu

os efeitos da atual crise, embora de forma mais branda que a Bolsa

de Nova Iorque.

Ham

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Pen

na

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Órgãos de regulação

Os modelos americano e brasileiro de regulação do mercado financei-ro são mantidos por diferentes ór-gãos. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve System (FED), o Securities and Exchange Commission (SEC), o Commodity Futures Tranding Co-mission (CFTC), o Office of the Comptroller of the Currençy Office (OCC) e o Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) são os regulado-res. No Brasil, os órgãos de regula-ção são o Banco Central, a Comis-são de Valores Mobiliários (CVM), a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) e a Secretaria de Previdência Complementar (SPC).

Diante de todos esses órgãos re-gulatórios, Modesto Carvalhosa diz que o problema é a ineficácia

dos mesmos, tanto no Brasil quan-to nos Estados Unidos. “Se aqui os bancos tivessem entrado nessa ci-randa de alavancagem e de colo-cação de produtos heterodoxos e alavancagem desses produtos, nós estaríamos em uma situação ban-cária tão ruim quanto a americana e a europeia”, diz.

Aloísio Araújo, da Fundação Getú-lio Vargas, aponta, porém, diferen-ças fundamentais entre os órgãos de regulação dos dois países. Para ele, o sistema americano é muito pulve-rizado, o que exemplifica dizendo que os bancos menores não são re-gulados pelo FED, como os demais bancos comerciais. “Nos Estados Unidos, existe uma fragmentação muito grande, até por razões histó-ricas. Eles começaram a ter regula-

mentações mais cedo e mantiveram vários ângulos”, explica. Araújo diz, ainda, que o sistema inglês unificou até mesmo a regulamentação do mercado de seguros, o que ele jul-ga positivo. “No Brasil, o mercado não é tão unificado quanto o inglês, existem quatro grandes órgãos regu-ladores, mas, dentro da parte ban-cária, toda regulação é feita pelo Banco Central”, afirma.

Francisco Munia Machado, ex-pro-curador do Bacen, lembra que no Brasil o Banco Central é a autori-dade monetária, enquanto nos Es-tados Unidos o FED trabalha com juros e liquidez, mas não com fis-calização e supervisão bancárias. “Essa fiscalização é distribuída para cada Estado. Há uma auto-ridade monetária em Nova Iorque e outra na Califórnia, por exem-plo. Cada um tem seu Office of the Currency, que cuida da moe-da especificamente naquele lugar e faz a supervisão bancária”, diz Munia sobre a dispersão do siste-ma norte-americano.

No Brasil, segundo Machado, já hou-ve a tentativa de tirar a responsabili-dade de supervisão do Banco Cen-tral. “Um grupo de São Paulo propu-nha isso. Eram professores de Direi-to. Faziam parte desse grupo o Ives Gandra, o Hamilton Dias de Souza, o Paulo Rabelo de Castro. Eles todos eram a favor de um Banco Central puro”, diz. O grupo não atingiu o ob-jetivo, e, na avaliação do ex-procura-dor do Banco Central, é possível que tenha sido melhor assim, pois, para ele, é preciso ter um Banco Central forte para se impor perante os técni-cos do Ministério da Fazenda. “O mi-nistro e seus secretários são pessoas que estão lá seguindo determinado partido, determinada ideologia. São absolutamente transitórios. No Ban-co Central existe também uma di-retoria volátil, mas há uma estrutura burocrática de carreira. Essa solidez talvez seja fundamental para impedir que a coisa vire bagunça”, explica.

O ex-procurador do Banco Cen-tral avalia, porém, que nos Esta-

Órgãos regulatórios:Federal Reserve System (FED)

Securities and Exchange Commission (SEC)

Commodity Futures Tranding

Comission (CFTC)

Office of the Comptroller

of the Currençy

Office (OCC)

Federal Deposit

Insurance

Corporation (FDIC)

Órgãos regulatórios:

Banco Central

Comissão de Valores Mobiliários (CVM)

Superintendência de

Seguros Privados (SUSEP)

Secretaria de Previdência

Complementar (SPC).

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dos Unidos essa separação fun-ciona. Ele ressalva, entretanto, que o fato de país ser muito rico ajuda a esconder erros estrutu-rais. “O dinheiro realmente é um grande remédio para muita coi-sa. Nós estamos vendo agora a quantidade de dinheiro que estão investindo lá para acabar com a crise. É um absurdo. Nem pensa-mos em chegar perto. Isso aí tudo é para pagar os erros estruturais que eles têm”, avalia.

Nos países onde foi estabelecido um único supervisor para todas as atividades financeiras, ele é, em geral, distinto da autoridade monetária, o que coloca o pro-blema da coordenação entre os dois. Por exemplo, o Banco Cen-tral, que em última instância faz os empréstimos, exige informa-ções detalhadas sobre a situação de liquidez e solvência de cada instituição financeira. Quando a autoridade monetária não exer-ce as funções de supervisão, es-sas informações podem não estar disponíveis com a confiabilidade e urgência necessárias.

Por outro lado, quando há maior divisão de tarefas, o problema é a coordenação entre elas, princi-palmente quando se trata de su-pervisão de conglomerados finan-ceiros, que oferecem mais de um e, às vezes, todos os serviços de competência dos diferentes su-pervisores. No Brasil, existe o Co-mitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiros, de Ca-pitais, de Seguros, de Previdência e de Capitalização (Coremec), que coordena as atividades de supervisão, ou seja, coordena as atividades do Bacen, da CVM, da Susep e da SPC. Além disso, há o convênio entre o Banco Central e a CVM, que instituiu reuniões mensais para a discussão de as-suntos comuns.

Marcos Pinto, da CVM, afirma que a divisão de tarefas na regulamen-tação brasileira é bem feita e que ela dá sustentação ao mercado

para enfrentar crises como a atu-al, embora alguns pontos possam ser aperfeiçoados. “Falando espe-cificamente da relação da CVM com o Banco Central, a divisão de competências é muito boa. O Banco Central atua no mercado financeiro em todos os aspectos prudenciais e sistêmicos – então olha todos os bancos e todas as instituições –, e a CVM cuida da relação com os investidores, quer dizer, exige transparência, práti-cas equitativas e leais”, afirma.

O diretor da CVM avalia bem a regulamentação brasileira. “Te-mos hoje um sistema bancário forte, um mercado de capitais di-nâmico, órgãos reguladores que têm a confiança dos investidores. O Brasil não tem nem de perto a situação de medo e pânico que ocorreu nos Estados Unidos”, diz. Marcos Pinto acredita que o país sentirá os efeitos da crise, mas es-tará bem preparado para enfren-tá-la, pois existem instrumentos que a CVM e o Banco Central po-dem utilizar para combater essa crise de maneira adequada.

Egon Bockmann, da Universida-de Federal do Paraná, ressalta que estamos vivendo �5 anos de estabilidade de legislação e te-mos obtido alguma estabilidade financeira. “A legislação brasilei-ra, devido às experiências nega-tivas que tivemos, é sim uma das melhores legislações em vigor. Em termos de experiência, em termos de normas, em termos de contenção, é uma das legislações mais adequadas que existem hoje no planeta”, avalia. Para Bock-mann, o grande problema do se-tor bancário e do setor financeiro privado no país é a tentativa de controle da concorrência entre as instituições. Existe, como ele exemplifica, uma grande discus-são sobre quem controla a fusão em bancos. “O Banco Central, a AGU (Advocacia Geral da União) e o Presidente da República di-zem que quem controla a fusão em bancos é o Banco Central. E

o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), o órgão de defesa da concorrência, diz que quem controla é ele”, afirma.

O Congresso Nacional conta com um Projeto de Lei trami-tando sobre o tema desde �00�. Dentre as mudanças que o PL n° �.9�7/�00� prevê, está a defini-ção de um prazo mínimo de dois meses de análise para o Sistema Brasileiro de Defesa da Concor-rência (SBDC) dar seu parecer sobre a operação de fusão, an-tes de as empresas a efetuarem definitivamente, o que evitaria a cartelização. Após esse perí-odo, se não houver manifesta-ção de qualquer uma das duas secretarias (Secretaria de Direi-to Econômico e Secretaria de Acompanhamento Econômico), ratificada pelo CADE, ou ma-nifestação do próprio CADE, a operação pretendida poderá ser concretizada sem restrições. So-bre o projeto, Egon Bockmann diz que “a legislação está em trâmite sem que seja instalado um debate, está simplesmente parada”.

Mudanças

Com exceção das alterações que con-sidera necessárias no sistema de defe-sa econômica, Bockmann diz que não vê necessidade de muitas mudanças legislativas em relação ao mercado fi-nanceiro do Brasil. “Os instrumentos legislativos de que o governo dispõe são aptos para resolver os problemas que vierem com a crise, só precisa de ação com rapidez”, afirma.

Atualmente, grande parte do Siste-ma Financeiro é regulada pela Lei n° �.595, de �96�. “Essa lei criou o mercado financeiro brasileiro, na forma que ele tem atualmente. Lógi-co que existiam negócios bancários antes, mas não tínhamos a forma moderna de se fazer intermediação bancária, e tudo isso foi inspirado na forma americana”, afirma Francisco Munia Machado, ex-procurador do Banco Central.

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Marcos Pinto lembra, porém, que toda crise mostra que ainda há o que ser melhorado, apesar da boa avaliação geral da regulamentação brasileira. A CVM tem, segundo seu diretor, uma agenda ambicio-sa para �009. Nessa agenda consta desde a regulamentação de todas as informações que as companhias abertas prestam para o mercado até a regulamentação de vários agentes que ajudam a proteger a integridade do mercado, como Bancos de Investimento, custo-diantes e corretores.

Para Modesto Carvalhosa, ex-pro-fessor da USP, porém, não há mais trabalho legislativo em relação ao mercado financeiro a ser feito no Brasil. “A base jurídica do merca-do financeiro brasileiro é a Lei n° �.595/6� e as demais que se segui-ram, que criaram a figura dos ban-cos múltiplos, depois da liquidação extrajudicial, da qual pode convo-lar, inclusive, a Lei de Falências. Te-mos, ainda, as leis que foram feitas na década de �970, absolutamente convenientes e que provaram sua eficácia. Não vejo a necessidade de modificação de lei nem nada nesse aspecto”, afirma.

Aloísio Araújo diz, entretanto, que a crise trará mudanças, embora essas tendam a ser muito maiores nos Estados Unidos, onde o pro-blema foi muito maior. Ele salien-ta, porém, que o Brasil segue certa orientação internacional, então provavelmente vai adotar algumas propostas que aparecerem. “Uma ideia de que se tem falado e que eu acho muito importante é se fazer menos mercado de balcão e mais operações por bolsa de valores”, diz. Araújo diz que se foi longe demais no modelo de autorregula-mentação e que é razoável agora ir em outra direção. “Ninguém quer tomar esse risco de novo, ninguém quer outra crise dessas”, afirma. Para ele, é artificial dizer que a re-gulamentação do mercado norte-americano se aproximará da brasi-leira, já que os Estados Unidos têm um mercado muito mais sofistica-do. Mas haverá, segundo Araújo, ajustes que o farão mais parecido com o mercado europeu.

A atual crise, segundo Francisco Munia Machado, ex-procurador do Banco Central, mostra que exis-tem falhas legislativas e de atuação de autoridade no sistema norte-americano. Ele avalia, porém, que os Estados Unidos apresentam van-tagens em relação ao Brasil. Era garantido, exemplifica Machado, �00 mil dólares para qualquer cor-rentista americano. “Suponha que quebrou o banco Lehman Brothers. Se alguém tivesse �50 mil dóla-res lá, o prejuízo seria apenas de 50 mil”, explica. Recentemente, o Congresso americano impôs, para aprovar o pacote econômico do Bush para combater a crise, que a garantia fosse aumentada para �00 mil dólares. “Aqui no Brasil não dá para fazer isso. São raras as contas com esse dinheiro”, diz. A garan-tia brasileira é de �0 mil reais. Em

contrapartida, a legislação ameri-cana é, na avaliação de Machado, muito liberal e tende, agora, a se tornar mais rigorosa.

Os Estados Unidos, no entanto, também não precisam de mudan-ças na legislação, de acordo com Modesto Carvalhosa. “Lei não fal-ta, regulamento não falta no siste-ma americano. Simplesmente não há aplicação das normas, exata-mente pela ideia de que o Estado não deve interferir na economia”, diz. Para Carvalhosa, a forma de solucionar a crise é nacionalizar os bancos e demitir as administrações atuais, que, para ele, são as causa-doras da crise devido a seus com-portamentos imprudentes nas ala-vancagens. Ele acredita, ainda, que seja necessário abrir um inquérito para julgá-los. “Não adianta fazer uma nova legislação e deixar os

Garantia de crédito para correntistas:

$ 100 mil até 2008

$ 200 mil a partir de 2008

Garantia

de crédito para

correntistas:

R$ 20 mil

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Enquanto o mercado financeiro mundial se desenvolvia, foram feitas tentativas para unificar o máximo possível as práticas de supervisão bancária e aperfeiçoar as ferramentas de fiscalização internacional-mente. Tais tentativas foram feitas pelo Comitê de Supervisão Bancária de Basileia (BCBS), organização estabelecida em �975 e formada pelos presidentes dos Bancos Centrais de Bélgica, Canadá, França, Alema-nha, Itália, Japão, Países Baixos, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos, além de Luxemburgo e Espanha. O nome é uma alusão à cidade suíça que abriga as assembleias do Comitê.

Em �988, esse comitê publicou um documento que ficou conhecido como Acordo de Basileia ou Basileia I. O acordo foi ratificado por mais de �00 países e teve como objetivo criar exigências mínimas de capital para serem respeitadas por bancos comerciais. Até �988, os padrões internacionais de requerimento de capital eram baseados na fixação de índices máximos de alavancagem. Depois do acordo, passou a ser baseado em risco.

A década de �990, porém, contou com inúmeras falências de institui-ções financeiras em todo o mundo e as recomendações de Basileia I se mostraram deficientes. O Comitê lançou, então, um novo documento, o Basileia II, em substituição às premissas de �988. O novo acordo se baseou nos pilares requerimento de capital, supervisão bancária e transparência de mercado. As novas recomendações incorporaram maior flexibilidade e deram mais espaço para as metodologias internas dos bancos. De acordo com as premissas de Basileia II, o Banco Cen-tral deveria deixar de ser, progressivamente, formulador de política de gestão de riscos para apenas validar essas políticas.

Os dois principais avanços do segundo encontro em relação ao pri-meiro foram a introdução do tratamento de risco operacional e a permissão para que as instituições utilizem sistemas de mensuração internos para o cálculo do capital regulamentar para risco de crédito, o que até então era feito somente por meio de abordagem padronizada. Em dezembro de �00�, o Banco Central, por meio do Comunicado n° ��.7�6, anunciou o cronograma para a implementação das diretri-zes da Basileia II no Brasil, posteriormente alterados pelo Comunicado n° �6.��7, de �007.

Assim, a partir de �006 foram editadas normas que tratam de orienta-ções e melhores práticas relacionadas à gestão de riscos. Em julho de

�008, entraram em vigor as abordagens padronizadas para os riscos de mercado, crédito e operacional.

As abordagens avançadas serão implementadas gradualmente: risco de mercado em �009, risco

de crédito (IRB) até �0�� e risco operacional (AMA) em �0��.

Recentemente, em razão da crise e da análise de suas possíveis causas, o Comitê de Basileia

elaborou um conjunto de documentos que visam fortalecer as diretrizes de Basileia II. Tais

documentos tratam primordialmente do risco de mercado, incluindo

produtos complexos e ilíquidos, securitizações

e exposições a itens fora do balanço das instituições.

executivos que são absolutamente viciados nas direções desses ban-cos. É preciso torná-los o que eles são realmente. Pessoas que come-teram crimes contra a economia mundial”, completa. Segundo ele, a dificuldade em se fazer isso é que os norte-americanos tem uma cultura anti-intervencionista. “É inacreditável que os diretores que estavam na direção dos bancos há �0 anos continuem lá, recebendo dinheiro para administrar o rombo que eles fizeram”, diz.

A legislação americana nem mes-mo precisaria de adaptações para isso, de acordo com Carvalhosa. “A Lei n° �.595/6�, que permite a intervenção no Brasil, é toda de inspiração americana”, afirma. Além disso, o ex-professor da USP lembra que os Bancos Centrais es-taduais americanos já intervieram em bancos várias vezes, abrindo os precedentes. Ele diz, porém, que a base constitucional para a intervenção é maior no Brasil, de-vido ao princípio da função social da propriedade e do contrato, típico do direito brasileiro, com base na legislação europeia. Os bancos falidos, por exemplo, es-tariam, segundo Carvalhosa, em disfunção social.

Egon Bockmann ressalta, no entan-to, a dificuldade em prever as mu-danças no setor a partir da crise. Ele diz que os agentes econômicos são muito mais sagazes na vontade de ganhar dinheiro do que o Esta-do na vontade de conter. “Toda e qualquer tentativa de diminuir ris-cos é um exercício de futurologia. Tenta-se diminuir os riscos do futu-ro com a experiência do passado, mas esse não se repete”, afirma. Para ele, haverá um ciclo de inten-sificação das restrições e depois a tendência é afrouxar a regulamen-tação novamente. Isso porque, se-gundo ele, não há Estado nos dias de hoje que, com pretensões de se colocar no contexto mundial, pos-sa fazer uma restrição muito forte para qualquer mercado. Modesto Carvalhosa é ainda menos otimista e diz que independentemente do que se faça, outras crises virão. “É cíclico. Daqui a alguns anos vamos ter uma nova crise”, afirma.

Basileia

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Regulamentação do mercado financeiro - Legislação CorrelataLegislação Descrição Formal

Lei nº ��.�0�, de 09.0�.�005 Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

Decreto nº �.�00, de �5.07.�00� Regulamenta o art. 6º da Lei nº 6.�85, de 7 de dezembro de �976, que dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.

Lei nº �0.�0�, de 0�.��.�00�Altera e acrescenta dispositivos na Lei nº 6.�0�, de �5 de dezembro de �976, que dispõe sobre as Sociedades por Aações, e na Lei nº 6.�85, de 7 de dezembro de �976, que dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.

Decreto nº �.995, de 0�.��.�00� Altera e acresce dispositivos à Lei nº 6.�85, de 7 de dezembro de �976, que dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários, nas matérias reservadas a decreto.

Lei nº �0.�98, de �6.0�.�00� Dispõe sobre a regulação, fiscalização e supervisão dos Mercados de Títulos ou Contratos de investimento coletivo, e dá outras providências.

MPV �.0��-�6, de ��.�0.�000 Dispõe sobre a regulação, fiscalização e supervisão dos Mercados de Títulos ou Contratos de investimento coletivo, e dá outras providências.

Decreto nº �.���, de 0�.05.�000

Delega competência ao Ministro de Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior para autorizar o funcionamento no Brasil de empresa ou sociedade estrangeira, na forma prevista nos arts. 59 a 7� do Decreto-Lei nº �.6�7, de �6 de setembro de �9�0, mantidos pelo art. �00 da Lei nº 6.�0�, de �5 de dezembro de �976.

DELIBERAÇÃO/MF/CVM Nº �9� - D.O. DE �0.0�.�999, P. �05

Dispõe sobre o tratamento contábil dos ajustes de ativos e passivos em moeda estrangeira.

Lei nº 9.6��, de 0�.0�.�998Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências.

Lei nº 8.��7, de �8.��.�990 Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências.

Del nº �.�98, de ��.��.�986 Dispõe sobre mercado de títulos e valores mobiliários incentivados. Comissão de Valores Mobiliários, criada pela Lei 6�85, de 07/��/�976.

Lei nº 7.�9�, de �6.06.�986 Define os crimes contra o sistema financeiro nacional, e dá outras providências. (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional).

Decreto nº 9�.96�, de �0.��.�985 Dispõe sobre a diretoria do Banco Central do Brasil - BACEN.

Lei nº 6.6�6, de �9.��.�978 Acrescenta artigos a Lei nº 6.�85, de 7 de dezembro de �976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.

Lei nº 6.���, de �0.06.�977 Altera a Lei nº 6.�85, de 7 de dezembro de �976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários

Lei nº 6.�0�, de �7.��.�976 Dispõe sobre as Sociedades por Ações.

Lei nº 6.�85, de 09.��.�976 Dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.

Del nº �.�0�, de 07.05.�975 Dispõe sobre a isenção do imposto de renda das sociedades de investimento de cujo capital social participem pessoas físicas ou jurídicas, residentes ou domiciliadas no exterior, regula o regime fiscal dos rendimentos de aplicações em ações dessas sociedades e dá outras providências.

Del nº �57, de ��.0�.�967 Concede estímulos fiscais a capitalização das empresas; reforça os incentivos a compras de ações; e facilita o pagamento de débitos fiscais. - FUNDO �57.

Lei nº 5.0�5, de �5.06.�966 Dispõe sobre o intercâmbio comercial com o exterior, cria o Conselho Nacional de Comércio Exterior, e dá outras providências.

Lei nº �.7�8, de �6.07.�965 Disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento.

Lei nº �.595, de ��.��.�96� Dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, Cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências.

Lei nº �.�80, de ��.09.�96�Institui a correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social, o sistema financeiro para aquisição da casa própria, cria o Banco Nacional da Habitação (BNH), e Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e dá outras providências.