Cesar Sinicio Marques - Eu Tenho Um Disco Voador Na Garagem

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  • 7/25/2019 Cesar Sinicio Marques - Eu Tenho Um Disco Voador Na Garagem

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    Eu Tenho um Disco Voador na Garagem

    Noites sem lua eram as preferidas de Thiago e aquela era uma quarta-feira particularmente especial: mostrava um cu com muitas estrelas, como

    pingos de orvalho na terra escura. Milhares de pontos brancos cruzavam onegrume do cu e ele poderia passar a noite toda observando a paisagemnoturna, a olho nu ou com seu telescpio. Thiago gostava de noites assim,quando as estrelas ficavam mais destacadas e o fenmeno mais facilmenteavistvel. Na escurido das noites de lua nova passava horas debruado najanela a esperar. Ele era um Ovnilogo, como gostava de se chamar: umcurioso estudante do ensino mdio que adorava histrias sobre seres de outrosplanetas, algum que acreditava que eles realmente podiam existir. Mais queisso, acreditava que poderia entrar em contato com essas criaturasextraplanetrias e para isso montara um clube de pesquisas sobre o assuntocom seus colegas da escola.

    O ttulo de clube de pesquisas tinha muito de clube e pouco depesquisa, verdade: ele no tinha feito muito esforo para estudar os taisobjetos e seres. No era um grande estudioso de qualquer assunto que fosse,mas a curiosidade em conhecer um mundo diferente do seu era tamanha que,dessa vez, ele tinha realmente se empenhado. O que significava dizer que liarevistas quase inteiras e ensaiara um ou dois captulos de livros que compraraem sebos. E isso era algo de se espantar!

    Na tarde do dia seguinte, dois amigos chegaram empolgados na casa deum adormecido Thiago a sede do clube onde se reuniam para trocarqualquer informao que encontrassem sobre discos voadores. Margarete,uma menina alta com o cabelo multicolorido (a cada trs semanas a cor eradiferente, embora o tom predominante fosse ruivo), a quem chamavam deMaga, trouxera seus sorrisos fceis e opinio contundente. Fernando, cabeloscompridos e pretos como suas vestes, conseguira um livro que encomendarapela Internet. O volume contava a experincia de pesquisadores russos queteriam contatado seres de outros planetas. Thiago ficou louco para descobrir atcnica que tinham utilizado e, de pronto, comeou a folhear as primeiraspginas buscando no ndice o que queria, no seu melhor estilo vamos-direto-ao-que-interessa:

    Pgina 44.Como eles se comunicaram. isso!Fernando e Maga sentaram-se no sof, enquanto Thiago revirava o livro e

    mal puderam se aconchegar quando ouviram um grito de satisfao. Com umsorriso enorme no rosto ele apontava uma foto grande mostrando os russosque conseguiram a fantstica experincia de contatar seres aliengenas. Elefolheou mais pginas, perscrutando-as como se fossem o cu noturno e, ento,seu rosto deu sinais de que no havia estrelas.

    Mano, no acredito! Esse livro o livro que escreveram sobre o livrodos caras que viveram a experincia.

    T confuso! titubeou Fernando. O livro que conta a experincia em detalhes, escrito pelo grupo de

    pesquisadores russos, nunca foi traduzido. Esse aqui tipo o Desvendando oCdigo Da Vinci dele. olhou-os desolado S uma anlise, no o texto

    original. Hmm! Pode ser que eu conhea a soluo sorriu Fernando.

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    * * *

    Treze livros em seis semanas! Eduardo tentava imaginar comoconseguiria realizar tal faanha, enquanto digitava os horrios das aulas

    optativas que faria esse ano na Faculdade de Filosofia. Sentia que perderamuito tempo no primeiro ano, tendo feito apenas as matrias bsicas eobrigatrias, e agora se inscrevera em mais uma poro delas para compensaro tempo perdido. Adorava como as diferentes culturas apreendiam o mundo, eestava planejando incluir na lista algumas aulas de japons, embora noconseguisse imaginar em que horrio poderia faz-las.

    Deixa ver... tem a aula de natao, que eu posso mudar de horrio ou,ento, posso desistir do teatro. falava consigo mesmo com a cara torcida,comendo a tampa da caneta sem perceber.

    Eduardo! Tem gente te chamando gritou sua me, do p da escada.Eduardo correu os olhos pelo quarto antes de computar exatamente o que

    a me dissera. Alm da cama bagunada, havia uma escrivaninha com umcomputador que acabara de ganhar de presente de aniversrio, um contrabaixoque acumulava poeira enquanto prometia a si mesmo arranjar mais tempo parase dedicar msica, alm dos muitos, muitos livros.

    J deso, me! Pea que entre, por favor... seja l quem for... altima parte falou baixinho.

    Salvou os arquivos em que estava trabalhando, anotou num papel o queficara pendente e desceu as escadas, colocando seus culos redondos.Eduardo, ainda da escada, olhou para a sala e reconheceu apenas um rosto,Fernando, um amigo da escola que nunca mais vira. Ao lado dele, uma meninaruiva como rosto bonito e comprido e um menino que imediatamente roubousua ateno. Olhos castanhos como uma bola de gude e um sorriso quaseassustador. Suas feies eram delicadas, embora ele tivesse certo ar rstico a pele porosa lhe pintava o rosto de um jeito charmoso e no fosse o fato deque Fernando acenava furiosamente pedindo que se aproximasse Eduardocontinuaria a explorar a viso por horas.

    Chega aqui, brother! Deixa eu apresentar dois amigos! Essa aMargarete disse, apontando para a menina, que sorria timidamente , mas agente chama ela de Maga. E esse aqui o Thiago.

    Thiago...Eduardo vidrou o olhar por tempo o suficiente para que o silncio ficasse

    constrangedor, mas o outro no pareceu se intimidar: Prazer! disse estendendo a mo.Os trs contaram a ele sobre o grupo que tinham e explicaram os motivos

    pelos quais acreditavam seriamente na existncia de seres de outros planetasvisitando a Terra. Eduardo ouvia com ateno, sem tirar os olhos de Thiagoque sorria empolgado enquanto contava sobre quantas revistas de vnis tinhaem casa (no mencionara que at pouco tempo s lia as manchetes da capa) esua teoria de que o nome certo para estudiosos de fenmenos dessa naturezano Brasil deveria ser Ovnilogo e no Uflogo.

    Olha s, UFO a sigla em ingls pra Unidentified Flying Object quequer dizer Objeto Voador No Identificado Explicou, todo senhor de si. Ora,

    a gente fala assim sobre os objetos, certo? Ningum diz: Oi, vi um ufo hoje continuou, com uma careta a gente diz que viu um vni!

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    Falando assim parece que a gente avista esses objetos todos os dias interrompeu Margarete, brincalhona.

    Ah, voc entendeu! replicou Thiago. O fato que se a palavraexiste em portugus, pra que vamos usar outra?

    O mximo que Eduardo entendia sobre extraterrestres era o que

    aprendera com os filmes de fico cientfica que tanto gostava. Os outros atdeixaram que ele falasse sobre os filmes com entusiasmo, mas recusavam-sea acreditar que seres interplanetrios se parecessem com fantoches de siliconee borracha.

    claro que eles tm forma humana Margarete discutia. Nosso corpovem evoluindo para uma melhor subsistncia em planetas como a Terra eseres que vm at aqui tm que ser parecidos com a gente, ou no teriaminteresse em vir pra c!

    Fazia certo sentido. O que no fazia sentido era o fato de que aquelestrs estavam ali falando sobre aliens havia mais de duas horas com Eduardosem que ele entendesse o por qu. E ele decidiu perguntar:

    Mas gente, por que que vocs vieram aqui me contar essas coisas?Com certeza no s porque eu gosto de fico cientfica, n? Tipo, fico fico! Vocs acreditam nessas coisas de outra forma olhou sem graa paratodos, especialmente para Thiago, e continuou me desculpem se pareogrosso, mas o Fernando sabe que no recebo visitas o tempo todo disseisso arrumando os culos no rosto. que... bem, meio esquisito vocschegarem aqui, do nada, com seus discos voadores.

    Todos olharam para Fernando, que ficou um pouco sem graa. o seguinte, Edu. Lembra quando voc ajudou minha banda num

    show que a gente tava sem baixista um tempo atrs? Eu sempre te achei umcara legal e queria te convidar pra fazer parte da turma, meio que pracompensar o favor que voc fez e tal!

    Eduardo olhou desconfiado para o sorriso amarelo de Fernando e osoutros dois desviaram o olhar. Thiago deu uma leve cotovelada no ombro deFernando e ele engoliu o sorriso.

    E tem tambm uma coisa disse, acariciando o ombro atingido. Vocchegou a aprender a ler em russo? Eu lembro que depois de ler Crime eCastigo voc comeou a se interessar e como sempre foi meio autodidata...

    Eduardo enrubesceu de raiva. Era sempre a mesma histria: na escolasempre fora desprezado por ser esquisito, mas se aproximavam dele na horade pedir cola ou pra fazer trabalho em grupo. No podia acreditar que depois

    de sair do colegial ainda teria que passar por aquela situao. Sentiu-seofendido e logo os outros perceberam. Dem-me o texto que querem que eutraduza e vo embora daqui! AGORA!

    Fernando tentou se explicar, mas Eduardo estava com cara de poucosamigos; restou aos trs fazer o que ele tinha pedido. Deixaram um pedao depapel com o nome do livro e saram pela porta da frente, acompanhados pelame de Eduardo. Dona Mara fechou a porta e voltou com um sorriso.

    Fazendo amigos, Edu? Eu sempre te disse que livros no eram amelhor companhia, ainda mais porque voc nunca estuda algo que valha apena. E voc viu aquela garota linda? Margarete o nome dela, no ? onome da sua prima que est estudando no exterior! Bom nome, sim! Eu diria

    que voc tem mesmo que conhecer melhor essa menina, porque j faz tempo

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    demais que voc fica a sozinho no seu quarto; precisa mesmo arrumar umanamorada!

    Eduardo tamborilou os dedos sobre o bilhete com o nome do livro, fechouos olhos com fora e segurou o turbilho de sentimentos que lhe invadiam ocorpo magro.

    Vou subir. Eles me pediram ajuda com isso aqui; depois, eu levo praeles.A me sorriu contente, imaginando, provavelmente, que ele levaria a

    traduo para Margarete e a pediria em casamento. Eduardo subiu cabisbaixo,os sentimentos correndo em disparada pelas suas veias, do corao para ocrebro, do crebro para o estmago, deixando-o meio tonto. Sentia saudadesdo tempo em que as cobranas e complicaes eram menores e seu maiordilema era escolher o sabor do sorvete que iria tomar.

    Na verdade, no sabia se estava triste porque lhe pediram que traduzisseo texto. Talvez Fernando realmente estivesse interessado na participao deleno grupo. O que doa mais era ver que Thiago despertara nele algo que tentava

    havia tempos esconder de si mesmo. Eduardo sempre pensara ser um caranormal. Um esquisito, verdade, nerd, CDF, caxias, e tudo o mais; no entantoum intelectual normal. At o dia em que olhou para outro garoto que jogavaxadrez durante as aulas de educao fsica e ele lhe sorrira de volta. Tentaraesquecer aquele sorriso por semanas, mas era estranho o fascnio que a cenaexercia sobre ele. Achou que estava ficando maluco, lembrando-se do sorrisode um menino enquanto alguns caras da sua idade j levavam as namoradaspara passeios ntimos em seus carros. Era certo que nunca tinha seinteressado por garotas, mas provavelmente era s uma questo de tempo atque aparecesse uma menina especial. Ou no?

    O sorriso do menino do xadrez voltara sua mente com tanta fora queele resolveu se deitar. Dormir ia fazer aquelas perguntas todas se calarem.Quando se deitou, entretanto, outra imagem mais recente e mais viva somou-se quela. Um novo sorriso, o sorriso de Thiago. Sem muita alternativa, elepegou os CDs com as trilhas sonoras da sua trilogia espacial favorita e, depoisde trancar a porta para certificar-se de que no seria interrompido, tentouadormecer ouvindo a msica instrumental regida por John Williamsdeslocando-se ao som dos violinos para o deserto duplamente ensolarado deTatooine.

    * * *

    Desde que saram da casa de Eduardo, os trs conversavam a gritos.Fernando, revoltado, dizia que acabara de perder definitivamente o contatocom um grande cara e Margarete o consolava com um abrao. Thiago, noentanto, parecia mais triste que Fernando.

    Esse carinha mesmo diferente disse, pensando em voz alta Acho que tambm teria me sentido ofendido, e no sei se traduziria o texto, sefosse ele.

    Eu t falando, ele muito gente boa. verdade que nunca sai de casae ligado demais em estudar, mas quando ele tocou com a gente e depoissamos pra comer pizza foi muito louco! No tinha um assunto que o cara no

    discutisse na boa. E ele manja todos os sons de heavy metal que a gente toca.

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    Um silncio daqueles angustiantes e interminveis invadiu a conversa,enquanto Fernando tomava a direo da sua casa, deixando o grupo, eMargarete e Thiago seguiam para o lado oposto.

    Cara, c no falaria com ele, assim, pelo menos pra no ficar essasituao tosca? perguntou Thiago.

    Tava pensando nisso agora mesmo, Thiago. Amanh, dou um pulo l econverso com ele. No sei muito bem o que posso falar, mas de repente ajuda!

    * * *

    No outro dia Margarete saiu de casa depois do almoo, tocou acampainha da casa de Eduardo e foi atendida por uma sorridente me:

    Margarete! Voc veio! a menina no sabia o que a assustava mais:se a aparente previsibilidade da sua chegada ou a me do menino, que nemvira direito no dia anterior, saber seu nome. Eu sabia que tinha gostado domeu menino! Entre, entre. Espere aqui na sala que vou cham-lo; ele est l

    em cima no computador, sabe como , sempre estudando; voc sabe que eleest na faculdade, no sabe? Est de frias agora, mas as aulas devemcomear na prxima semana. Edu ser um homem charm... e no parou atque sua voz sumisse escada acima.

    Algo no modo de como tudo aquilo era surreal lhe dizia que aquela era aprimeira visita feminina que Eduardo recebia.

    Pera! J deso! gritou ele.Eduardo desceu agitando umas folhas de papel, a cara emburrada

    olhando Margarete, que permanecia sentada no sof ao lado da me, as moscruzadas sobre as pernas e um sorriso cheio de expectativas.

    Descobri que os autores disponibilizaram o texto do livro sob a licenaCreative Commons... Eduardo notou o olhar de incompreenso das duas Hmm... tipo, o texto t disponvel para download legal e gratuito desde que nose use isso pra ganhar dinheiro! Explicou Eu comecei a explorar o texto ea linguagem no muito complicada, mas vai levar algum tempo e... Margarete percebeu certa semelhana no jeito ininterrompvel de falar queEduardo herdara da me e olhava pra ele com uma cara de me-deixa-falar-por-favor enfim, as primeiras duas pginas esto aqui.

    A menina encarou-o e, sem graa, desviou o olhar. A me de Eduardodisse que ia deixar-los a ss e saiu, ficando espreita.

    Olha Edu, posso te chamar de Edu? Ela sequer lhe deu tempo de

    responder, antes de continuar Eu e o Thiago conversamos e a gente achouque foi meio grosseira a nossa apario aqui ontem, mas nossa inteno noera usar voc. A gente poderia ter feito uma vaquinha e achado um tradutor, ouusar o santo Google! Mas o Fernando ficou falando do baixista legalzo que eleconhecia e que aprendia lnguas sozinho e que adorava fico. Achamos queseria legal ter algum culto de verdade no clube, pra variar.

    Eduardo apreciou-a desconfiado. Aquela conversa ainda cheirava ainteresse, mas pelo menos ela no viera s para buscar a traduo. A mepassava de vez em quando por trs do sof e lanava olhares sorridentes paraMargarete, que corava.

    Quer ver minha coleo de Blu-rays? perguntou, de repente, ao que

    a menina, ainda meio sem jeito, aceitou.

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    Os dois subiram at o quarto enorme de Eduardo, que ocupavapraticamente todo o segundo andar da casa.

    Aqui est o meu refgio. Eu tenho um amigo na internet que diz quequando se precisa fugir do mundo basta ir ao cinema. Bom, eu criei o meu aqui disse, apontando orgulhoso para o equipamento digital de ltima gerao.

    Uau! Margarete tinha quase certeza de que j vira um quartodaqueles em algum desenho animado e imaginava que se apertasse algumdaqueles livros ou discos no lugar certo abriria um compartimento secreto. Eo que voc tem de filmes legais por aqui?

    Olha s, aqui tem alguns europeus do circuito alternativo. difcilencontrar essas coisas com legendas em portugus. Dublagem, ento, nem sefala!

    Conheo muito pouco sobre filmes alternativos, mas tem umaslegendas de filmes que eu vi ultimamente que deixaram muito a desejar...

    E comearam a discutir quando era apropriado ou no ter legendas oudublar filmes e emendaram com um interessante papo sobre o cinema

    brasileiro, enquanto Margarete vasculhava o resto do lugar, notando que shavia uma poltrona no quarto todo.

    Voc nunca trs ningum pra c, n?Eduardo corou e cuidou de voltar a falar de cinema, desviando

    instintivamente o olhar do da menina. Como ela permanecesse sria e quieta,ele resolveu falar.

    Ficar sozinho bacana! Como voc vai ler um livro, por exemplo, comalgum te olhando, entende?

    E foi por isso que voc ficou chateado com a gente ontem, no foi? Agente vem aqui e invade seu mundo, voc conversa e de repente parece queera s interesse.

    Se desde que ela fizera a primeira pergunta Eduardo j no a olhava,agora grudara de vez os olhos no piso liso, enquanto arrastava os ps emantinha as mos nos bolsos da cala sem nem perceber.

    Olha Edu, eu confesso que quando o Fernando me falou de voc, omeu verdadeiro interesse era s o de traduzir o texto de graa e pronto. Masontem, enquanto a gente conversava, eu achei voc um cara legal e hoje eutenho mais certeza disso. Por que voc no vem amanh pra reunio na casado Thiago?

    As palavras soaram doces e pareciam sinceras! E, alm disso, havia umaestranha melodia ressoante no trecho casa do Thiago que dizia ainda mais a

    Eduardo. Embora ainda confuso com aquela histria e sem saber ao certo segostava da ideia de participar de um grupo de garotos que acreditavam emETs, Eduardo comeava a gostar de ter com quem conversar sobre suasideias. Podiam no ser estudantes de filosofia ou nerds assumidamentefanticos por Guerra nas Estrelas, mas pulsava nele a vontade de v-losnovamente.

    Claro! Quer dizer... sim, tudo bem. Eu... hmm... como eu fao? Me d seu MSN que eu te passo o endereo. A gente normalmente

    leva pipoca ou refri, mas no se preocupe com nada dessa vez, no.Depois de trocarem e-mail, Margarete foi para casa. Ligou para Thiago e

    contou que conseguira o incio do texto e que o restante viria at a reunio da

    semana seguinte. Embora Thiago perguntasse a cada cinco minutos se

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    Eduardo tinha ou no ficado chateado, Margarete quis manter segreddo emanteve-se firme e sria e disse que no teve chances de descobrir.

    * * *

    Fernando, seu besta! Abaixa esse som! a voz da irm chegavafraquinha atravs da porta trancada do quarto, embora ela gritasse. Faziahoras ele estava l dentro, cantando alto. Sentia-se mal por tudo queacontecera e nem andava muito animado com a perspectiva de ir prximareunio.

    TEM GENTE NO TELEFONEEEEEE! EU VOU DIZER QUE VOCMORREU! AAAH! POR QUE EU TENHO UM IRMO TO CRETINO?! continuava ela, aos berros, cada vez mais alto. Fernando desligou o som umpouco contrariado e abriu a porta, dando de cara com sua irm, vestida comsua costumeira cara de se-eu-no-fosse-sua-irm-te-mataria, que praticamentearremessou o telefone sem fio nele.

    Margarete, do outro lado da linha, teve um bom trabalho para convenc-loa ir prxima reunio. Fernando queria ir at a casa de Eduardo se desculpar,mas ela lhe disse que seria melhor deixar as coisas esfriarem e ele acabou porceder e concordar. A prxima semana seria cheia de surpresas.

    * * *

    Eduardo preparara uma mochila com uma srie de revistas emquadrinhos sobre invases aliengenas apesar de ter sempre preferido osmutantes e esquisites da Marvel aos enviados de outros planetas da DC.Feito isso, recheou o iPhone com trilhas de filmes e sries de fico cientfica,para no se sentir completamente deslocado. No caminho ainda passouestrategicamente por uma banca de jornal onde encontrou um sugestivo DVDcom o ttulo: Preparem-se para a chegada! Os tipos, raas e as intenes dosextraterrestres e acabou incluindo-o na lista de coisas na mochila. Levou-a nafrente, como quem usa uma armadura. L dentro, ainda estavam algumaspginas a mais do texto que passara as ltimas noites traduzindo. A mesugerira que levasse algo para impressionar Margarete, mas Eduardo fingiuno ouvir a sugesto.

    O caminho que indicava o mapa tirado do Google Maps no era muitodistante e caminhadas eram corriqueiras para Eduardo. Embora fosse bastante

    ligado aos estudos, ele nunca deixava de caminhar ou andar de bicicleta ou irs aulas de natao, o que o fazia ficar sempre em forma alm, claro, davigilncia quanto os excessos de carboidratos e calorias, exercida de formasutil por sua me. De fato, se tirasse os culos redondos, colocasse roupasmais modernas, no falasse tanto de livros e no emendasse em discussesfilosficas ao conversar sobre qualquer tpico trivial... bem, ele tinha tudo paraser popular, mas era nerd por opo.

    Seguiu o mapa impresso e avistou uma casa bastante simples com umporto de madeira gasto pelo tempo, entreaberto. A descascada pinturaamarela dava uma aparncia ao mesmo tempo velha e aconchegante e a lajeera plana, com uma grade baixa ao redor. Procurou por uma campainha, mas

    no encontrou. Meio sem graa, comeou a se perguntar se deveria baterpalmas ou ligar do celular, quando ouviu seu nome.

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    Edu! Que bom que te encontrei primeiro! Os meninos ainda no sabemque voc vem! O Nando j deve estar aqui, ento, hora do show!

    Eduardo comeava a gostar daquela menina. Caminharam juntos,passaram pelo porto de madeira e ela bateu na porta cinco vezes.

    Agora voc sabe a senha do clube. No conte a ningum, ok?

    Eduardo viu a porta se abrir e seus olhos cruzaram com os de um Thiagoespantado, do outro lado. Voc... veio aqui... grunhiu E nem t com cara de chateado! Eu venho em paz! brincou ele Leve-me ao seu lder!Fernando correu at ele e deu um monte de socos leves no ombro do

    antigo colega de classe. Era o seu jeito de menino de dizer que sentia muito eque estava feliz por v-lo ali.

    Cara, foi mal eu... comeou. Nada de explicaes. Eu j entendi e no teria vindo se visse algum

    problema. Menos conversa e mais da tal pipoca que a Margarete contou. No fala Margarete, Maga disse Thiago, indicando o sof com

    semblante tranquilo. Espera que vou l aprontar!Pipoca pronta, as cpias nas mos de cada membro do clube e olhares

    ansiosos. A nica pessoa que tinha de fato lido aquilo era Eduardo. E, emboratodos olhassem para as folhas de papel em suas mos, havia uma urgnciapara que ele dissesse algo a respeito.

    A experincia desses pesquisadores russos foi bastante ousada, eudiria. Talvez at... enfim, dois dos membros tinham grande ligao comparapsicologia, que pra mim no exatamente uma cincia. Mas, de qualquerforma, eles eram um grupo de sete ou oito universitrios que queria fazercontato teleptico com seres extraplanetrios.

    Contato teleptico? gritaram os trs em coro. Pois , eu tambm achei bem esquisito. Parece mais fico cientfica

    que meus quadrinhos, mas nas pginas seguintes da introduo, quando elesdetalham a experincia, parece que eles realmente conseguiram algo. Eupreciso confessar que estou ansioso por traduzir o restante!

    Mas ser que eles descrevem como fizeram a experincia? perguntou Thiago, os olhos brilhantes de curiosidade.

    D uma olhada na ltima pgina a disse Eduardo, apontando paraas folhas soltas.

    O barulho das pginas era tudo o que se ouvia e, em seguida, estavamtodos analisando um diagrama que descrevia uma espcie de passo-a-passo

    da experincia que havia sido realizada em Moscou. Tem algumas palavras que eu no consigo entender, mas d pra pegarmais ou menos o que eles fizeram e acho que depois de ler mais do livro, acoisa vai fazer mais sentido! Se a gente olhar aqui...

    Mas eles no chegaram a olhar para o papel, pois a porta se abriu derepente, deixando entrar um vento forte que espalhou a papelada por toda asala. Thiago levantou-se para fech-la e parou, os olhos espantados, na frentea poucos passos da entrada. Quando a porta se abriu por completo, l estavaela:

    ME? disse Eduardo, com voz rasgada. O que voc t fazendoaqui? E justo AGORA?

    Eu s vim saber se voc tinha chegado bem e ver quem estava comvoc, filho. No estou acostumada a ver voc sair sozinho, afinal, voc sempre

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    fica trancado no seu quarto, o que eu j falei que no uma coisa boa. Seu paiconcorda, mas nunca fala isso diretamente pra voc, o que, alis, horrvelpara sua criao, porque eu insisto em dizer que ele precisa passar maistempo conosco e...

    Isso! Interrompeu-a Eduardo Agora termine de contar nossos

    dramas familiares na frente deles. e s ento ela olhou para o filho, queparecia frustrado. Eu estraguei alguma coisa? Ah, claro que no. Alis, convenhamos

    que no era bem esse tipo de encontro que eu esperava que voc viesse a tercom...

    Eduardo cruzou a sala em segundos e saiu sem olhar para trs. Com umacara de detesto-quando-ele-me-deixa-falando, a me foi atrs dele. Os outrosficaram mudos por um longo tempo.

    No caminho de volta, ao contrrio, o falatrio prosseguiu. Se ao menosvoc me ouvisse e conversasse logo com a Margarete sobre o que sente porela, voc no seria obrigado a andar com esses moleques. Eu acho que voc

    poderia se declarar de uma vez e no precisar ficar fingindo que gosta... Me! O que que voc sabe sobre mim, sobre o que eu gosto ou

    sinto? Alguma vez voc j perguntou antes de decidir por mim? Eduardovociferou, olhando para trs, mas sem se deter.

    Ela ficou estarrecida por um instante, mas logo arremedou: Ah, l vem voc com essa histria de eu-no-sou-como-os-outros-

    garotos de novo. verdade que voc fica isolado em casa com um monte deaparelhos eletrnicos e essas revistas e livros, mas dizer que no estinteressado na menina subestimar meus instintos maternos. Eu tenho certezade que voc a ama e...

    Tem razo, me. Eduardo parou e sorriu.Dona Mara estancou, esbaforida, um sorriso vitorioso comeando a

    preencher seu rosto, quando Eduardo arrematou: Eu no sou como os outros meninos, nesse ponto a senhora tem toda

    razo. S que eu no estou interessado na Margarete. Alis, nunca estiveinteressado em menina nenhuma em toda a minha vida e nem acho que um diaeu v estar! E, de repente, o medo sobreps-se raiva e Eduardo disparoumais uma vez, deixando uma me atnita para trs.

    * * *

    Al, Edu? Aham a voz era a de quem havia chorado. Olha, eu sei que talvez no seja uma boa hora e tal, mas queria que

    soubesse que foi muito legal voc ter aparecido e que semana que vem agente quer muito que voc venha.

    Valeu, Thiago. Eu te ligo pra confirmar, ok? Fica bem, t? Fica bem!Do lado de fora do quarto, sua me batia na porta com fora. Eduardo

    tinha ligado o som um pouco alto para no ter que ouvir as batidas e opalavreado sem fim, mas resolveu abaixar o volume e aproximar-se da porta.

    Eu sei que est me ouvindo e eu vou te dizer uma coisa, se voc disse

    pra mim o que eu acho que voc disse pra mim ns vamos ter uma conversamuito sria, rapazinho. E o seu pai vai participar, ah se vai! Eu sempre disse a

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    ele, sempre disse que o filho dele era muito esquisito, esse jeito estranho de sficar em casa. Isso, isso ... uma monstruosidade, uma aberrao. Faculdadede filosofia, onde j se viu?, e seu pai dizia: deixa que ele decida o prpriobem. E eu aqui dizendo que bem o que no cheirava. E eu tinha razo.Alis, ele deve chegar a qualquer momento e ns vamos colocar essa porta

    abaixo e voc vai ter que explicar direitinho essa histria de no gostar demeninas ela trotou escada abaixo, ainda murmurando sozinha.Eduardo aumentou o volume do som e ligou para Margarete, para avisar

    que no achava uma boa ideia ir reunio seguinte. Sentia que nemsobreviveria at a semana seguinte.

    Oi Maga! Eu s t ligando pra avisar que no vou na prxima reunio.O Thiago me ligou e eu disse que confirmaria. Voc pode avisar pra ele queno vou?

    Bom... posso... mas, o que foi? Tem a ver com o que aconteceu hoje? Ah, minha me assim preocupada mesmo. Sabe como , ela quer o

    meu bem. Acho que ela tem razo sobre algumas coisas. No fim das contas,

    essa histria de reunies nem muito minha cara. Desculpa te contrariar, Edu, mas eu vi bem a sua cara de empolgao

    hoje na casa do Thiago. Se no quiser falar tudo bem, mas acho que tem maiscoisa a do que voc t me dizendo.

    No nada mesmo, Maga. Eu s no quero ir na casa do Thiago naprxima reunio...

    Tem alguma coisa a ver comigo? Essa implicao da sua me e... Tem... tipo, no! Olha... voc pode vir aqui em casa? Eduardo

    estava confuso, mas precisava compartilhar aquilo que a menina podiaentender que ele sentia.

    T indo pra!

    * * *

    A campainha tocou e uma ansiosa Dona Mara correu at a portaesperando ver seu marido que no costumava tocar a campainha, mas elano se lembrou disso. Ao abrir, ficou surpresa, confusa e muda o queconstitua evento raro em sua constelao de reaes possveis. Margaretedesejou boa noite e pediu licena para subir at o quarto de Eduardo.

    ABRE! gritou, tentando ser ouvida debaixo dos violinos que soavamdas caixas acsticas.

    Eduardo abriu a porta e deixou-a entrar. Nem sabia por onde comear. Amenina sentou-se ao lado dele na cama e afagou seus cabelos. Voc j se apaixonou, Maga? comeou, sem saber exatamente

    como comear. Acho que sim. difcil dizer, porque essas coisas so to nicas pra

    cada um, n? Mas eu j gostei muito de um cara... suspirou Foram bonsmomentos. Tem a ver com estar apaixonado voc no querer ir no Thiago?

    Eduardo respirou fundo e virou-se repentinamente para a amiga,sussurrando um apelo quase desesperado:

    Eu t afim de voc!Margarete estranhou a declarao repentina e afastou-se gentilmente,

    enquanto Eduardo forava um sorriso.

  • 7/25/2019 Cesar Sinicio Marques - Eu Tenho Um Disco Voador Na Garagem

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    Isso srio, Edu? Olha, eu no gosto de brincadeiras desse tipo e... naboa...

    Desculpa, eu... no quis dizer isso. Queria at poder dizer, porquevoc a menina mais legal que eu conheo. Mas, a verdade que no devoc que eu t afim. Tipo, na reunio...

    Tava eu, o Fernando e o Thiago l, ento...Eduardo no sabia se ria ou chorava diante da expresso de eu-sempre-soube-porque-eu-sou-mesmo-muito-intuitivada menina.

    Mas, s isso? MAGA! gritou em desespero. Eu t morrendo aqui e voc vm

    dizer que Sisso? No, pera. Eu no quis dizer s nesse sentido. Deve t sendo tenso.

    Agora entendi porque sua me tava com aquela cara de irada l embaixo. Voccontou pra ela, n?

    Ele acenou que sim. Hey, relaxa, cara!

    que, meu, eu nunca estive com ningum em toda minha vida. Ento,eu nem sei o que t acontecendo. Eu deveria estar apaixonado por voc, n?

    Eu sei que sou maravilhosa! retorquiu a menina, fazendo pose. Mas, srio. No tem nada errado nesse seu gostar. A gente se amarra emquem o corao escolhe.

    Eu acho que o meu t escolhendo o Thiago. E eu acho o Thiago uma boa escolha!E os dois se abraaram e ficaram ali, colados um bom tempo. Enquanto

    isso, no p da escada, Mara tentava juntar as peas do quebra-cabea que seformara em seus pensamentos. Por via das dvidas, decidiu que o filho estavato apaixonado pela menina que ficou confuso e acabou inventando aquelahistria s para deix-la preocupada, mas que em breve se casariam.

    Est na hora de eu ir pra casa, Edu. E acho que no vou mais precisarfalar que voc no vai na prxima reunio, n?

    Voc acha que eu devo ir? Mas, e minha me? Depois da minha passagem por aqui tantas vezes em to pouco tempo

    e do tanto que ficamos aqui trancados, acho que ela no vai te pedirexplicaes por algumas semanas! falou, piscando.

    Voc no vai contar para o Thiago, vai? Bobo! Isso uma coisa que s voc pode fazer! Mas no se apresse,

    deixa o tempo fluir... Fui!

    Ela destrancou a porta, saiu e a deixou aberta.* * *

    Na quinta-feira, Thiago ligou para Margarete, que ligou para Fernando,que pegou sua mochila e encheu de saquinhos de suco e um pacote de pipoca.Encontraram-se mais cedo para preparar tudo e assim que Eduardo chegasse,comeariam a reunio. Ningum tinha comentado nada sobre o incidente dareunio anterior, mas pela cara dos trs se percebia que queriam falar algumacoisa.

    Eu no entendi nada do que aconteceu, sabiam? arriscou Fernando.

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    A me do Edu superprotetora, meninos. E no sempre que ele saiassim de casa para encontrar um monte de gente que, na verdade, ela s viuuma vez!

    Fernando j tinha ido casa do Edu algumas vezes, mas resolveu ficarquieto, pois a amiga no gostava de ser interrompida em seus discursos.

    Eu conversei com ele e t tudo bem! Ele vem hoje pra reunio. arrematou a garota.Passaram os prximos minutos tentando organizar tudo para a reunio e

    falavam excitados de como se sentiram ao ouvir Eduardo contando sobre otexto. Thiago comentou que sentia que alguma coisa estava para acontecer., o Objeto Voador Identificado como Me do Edu realmente aconteceu! zombou Fernando.

    Mais tarde, Eduardo bateu cinco vezes, como combinado, e os trsapareceram na porta para cumpriment-lo. Estavam loucos para comear, eele louco por um gole de suco com gelo. Foram at a sala e Edu sesurpreendeu com a organizao que tinham feito para a reunio. Depois de se

    ajeitarem, ele comeou. A experincia original dos russos aconteceu com oito estudantes que

    faziam parte do projeto. Em linhas gerais, eles deixaram um computador prontopara receber texto e, juntos, comearam a se concentrar e a enviar ondas depensamentos para possveis naves que estivessem ao redor.

    Estavam reunidos na sala, sentados ao redor da mesa de centro. Ossofs tinham sido afastados e as almofadas estavam por todo o cho. Ficaramfolheando e lendo as pginas traduzidas at que finalmente:

    Isso moleza, gente! pelos olhares de todos, Thiago era o nicoque no desconfiava da aparente ingenuidade do experimento cientfico D o seu iPhone aqui, Edu!

    Ele abriu um aplicativo de texto, o cursor piscando na tela em branco, e ocolocou sobre a mesa.

    Vamos l, gente. O que que custa? pediu.Sentaram-se confortavelmente ao redor da mesa, com risos entre os

    dentes. Mesmo Thiago parecia estar mais se divertindo do que de fato tentandouma experincia de comunicao. Mas, mesmo assim, fecharam os olhos parase concentrarem na tentativa de contato.

    De acordo com os escritos russos, dizia Eduardo, com os olhosentreabertos se conseguirmos o contato o cursor dever mudar de posio.Foi assim no comeo da experincia dos caras, at que comeasse a

    realmente escrever algo.O tempo passou e, no silncio constrangedor de uma experinciacompletamente fora do comum, mesmo o empolgado Thiago acabou por ceder.

    Que saco! disse, enquanto comeava a abrir os olhos Coisa demaluco esperar que um cursor ande sozinho no equipamento... Acho que agente endoid...

    Nesse momento, o aparelho sobre a mesa vibrou, fazendo com que todomundo subitamente olhasse para a mesa.

    Thiago parecia ter deslocado a mandbula que permanecia largamenteaberta enquanto olhava encantado para o iPhone com um olhar de meu-primeiro-contato-aliengena.

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    O que foi isso? perguntou Eduardo, espantado. Caraco... eu quasenunca recebo ligao e... olhando nos registros recentes no encontrounada isso no faz o menor sentido!

    Olha eu... talvez algum tenha esbarrado na mesa, afinal, estvamoscom os olhos fechados.

    Eu nem sei como reagir... aconteceu mesmo o que eu acho queaconteceu?Ficaram comentando o acontecido por um longo tempo. Eduardo, vidrado

    na expresso de vitria de Thiago, nem percebeu quando ele se aproximou edeu-lhe um abrao apertado.

    Valeu, Edu! Poxa, sem voc a gente ainda estaria analisando revistase lendo esses livros enormes! Te adoro, cara!

    Eduardo ficou por algumas horas em completo xtase, no tanto pelavibrao do seu pequeno aparelho eletrnico, mas por uma pulsao quasedolorida no corao. Margarete, claro, percebeu que ele ficara mais vermelhoque de costume quando o menino o abraou e deu-lhe uma piscada de canto

    de olho.Passada a excitao inicial, os quatro olharam para o equipamento e

    nada mais havia l. Eles sequer podiam dizer onde estava o cursor inicialmentee, ento, decidiram por tentar de novo, dessa vez observando o estado inicial.Mas antes que pudessem comear, a me de Thiago chegou com mais pipocae o cheiro lhes tirou totalmente a concentrao.

    Desculpem a interrupo, mas pela cara, vocs parecem terdescoberto um novo planeta! disse dona Irene.

    quase isso, me! Se for o que a gente t pensando, o seu filho vaiaparecer em revistas e programas de TV do mundo inteiro!

    S no vale fazer reality showda baguna do seu quarto! Me... disse frustrado tem que me lembrar, n? Olha, est ficando tarde, melhor vocs continuarem depois. Mas...E ela sorriu, e o filho entendeu.J no porto, eles se despediam enquanto, falando alto, reviviam a cena

    anterior j com recheios fantasiosos de todos os tipos.

    * * *

    As semanas se passaram e outras experincias aconteceram, enquanto

    Eduardo prosseguia a traduo. Ningum acreditava muito que a mudana deposio do cursor e mesmo as ocasionais vibraes do equipamentosignificassem alguma coisa. A ideia de um contato genuno parecia cada vezmenos real, mas um dia:

    Concentrao pessoal! hora de colocar esse negcio pra funcionar! disse Thiago.

    No passaram mais que dois minutos, durante os quais os pensamentosde Fernando j tinham se esvado para o stio na cidade vizinha onde naquelemomento ocorria um festival de bandas de heavy metal, quando um pequenobrilho apareceu sobre o aparelho. Thiago arregalou os olhos, mas tentou nofazer nenhum barulho para no desconcentrar os amigos. Caractere a

    caractere, as palavras se desenharam na tela: Estamos na escuta e Thiago,ao l-las, quase desmaiou.

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    Eduardo arriscou abrir os olhos e, primeiro, olhou para a cara de eu-no-acredito-que-isso-est-acontecendo de Thiago e, em seguida, para seuaparelho celular. Baixinho, ele chamou os outros colegas. Ao que parecia, elestinham conseguido contato... e mesmo quando os outros abriram os olhos, opequeno brilho metlico pairava bem prximo do equipamento.

    O que a gente faz agora? perguntou Margarete, assustada.O cursor se mexeu na tela, como se pudesse ouvir a pergunta, e aspalavras surgiram: Estao espacial prxima, encontro pode ser marcado.

    Cs to lendo isso, galera? Fernando perguntou Eu t lendo,mas no t acreditando! Eles to chamando a gente para encontrar com elesv-los pessoalmente?

    Serra Azul, sbado, 9, 23:00, escreveram os caracteres antes de obrilho desaparecer e a tela ser apagada por completo.

    Serra azul? onde t tendo o festival de bandas! Eu tava pensandonisso agora mesmo!

    Se estou entendendo direito, isso um encontro, ou algo parecido, n?

    perguntou uma espantada Margarete, enquanto pegava o aparelho paratentar lig-lo novamente.

    E o dia sbado que vem! comentou Fernando. Mano! A gentevai ter que se preparar para passar a noite na serra!

    Vocs esto pensando mesmo em ir? Perguntou Eduardo Gente,na boa. T certo que vimos uma coisa impressionante, mas... bem... isso deveter alguma explicao! Ele tentava disfarar o nervosismo e ao mesmotempo impedir que sua emoo o fizesse acreditar no que sua razo serecusava a crer possvel.

    Thiago estava silencioso, srio, mas com um brilho intenso no olhar.Parecia estar fora dali, meio longe, inacessvel. Lgrimas brotaram dos cantosdos seus olhos. Mas ele sorria.

    Vocs so demais, caras! Vocs so demais! Disse ele, enquantoabraava todos os amigos ao mesmo tempo.

    Ok, ok! Eu tenho uma barraca grande e nunca a usei. Eduardodisse, desistindo de vez do ceticismo.

    * * *

    Fernando no teve muitos problemas para convencer os pais, afinal, eletinha sua banda e de vez em quando faziam shows de noite. Alm disso, j

    sara para tocar com seus amigos no interior. Difcil foi convencer o pessoal dabanda a ficar sem guitarrista por um fim-de-semana inteiro. Mas a gente temshow semana que vem, argumentavam. E Fernando respondia: uma boaoportunidade para vocs entenderem o que aconteceria se eu ficasse doenteno dia do show.

    * * *

    Margarete chegou de mansinho: Pai! Eu estou marcando com os meninos do colgio de ir num

    acampamento na serra, pode ser?

    Ah, conversa com a sua me.Segundos depois:

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    Manh! Eu estou marcando com os meninos do colgio de ir numacampamento na serra, pode ser?

    Fala com teu pai, ele que sabe dessas coisas. Ele me pediu pra falar com a senhora! Olha, os meninos so o Thiago,

    o Nando, que voc conhece, e o Eduardo, aquele menino que faz filosofia, do

    clube, lembra? E as meninas? retrucou. Bem, na verdade eu sou a nica menina do grupo... mas isso

    realmente faz alguma diferena, me?Margarete sentiu a me investigar sua alma com os olhos. Pensou,

    pensou, e por fim disse: Eu no posso tomar as decises importantes no seu lugar. Se voc

    sabe o que est fazendo e tomar cuidado, eu deixo... Mas convena o seu pai. Me, valeu!Margarete ainda passaria mais algumas horas tentando convencer o pai,

    que s concordou depois dela insistir muito e combinar de levar os meninos

    para que o pai os conhecesse.

    * * *

    Eduardo no sentiu que precisaria de autorizao, mesmo assim resolveuavisar aos pais, aproveitando que os dois estavam em casa:

    Eu vou acampar com uns amigos na serra no prximo final de semana! disse, sorrindo.

    Com quem? perguntou uma mal-humorada Mara. Thiago, Nando e Margarete, meus amigos. Ento, essas reunies esto rendendo resultados, filho? disse

    Alexandre, pai do menino, com um sorriso no rosto. Sim, senhor! Vamos levar lunetas e equipamentos para ver se

    conseguimos avistar as naves! Eu vou levar minha barraca, acho que cabemtodos l!

    Ah, o que meu filho no faz para estar perto da sua namoradinha! disse, sonhadora, sua me.

    Eduardo corou, pigarreou e disse que precisava acertar uns detalhes,correu para o seu quarto e foi arrumar as coisas. Vasculhando no canto ondeguardava sua barraca percebeu que ela no estava por ali. Pra quem euposso ter emprestado... Ah, meu primo Danilo.

    Me, j venho disse ao sair pela porta, apressado.Parecia que ia chover.

    * * *

    Thiago correu para casa, mas seus pais no estavam. Fomos ao cinema,tem pizza no forno, Te amamos, dizia um bilhete na cozinha. Thiago queriacontar logo para os pais aquela experincia incrvel, mas saiu de casa, mesmoo tempo no estando muito convidativo para um passeio. Andou pelosquarteires, fazendo curvas inesperadas sem muito se preocupar com ocaminho, mas sim com os prprios pensamentos.

    Uma garoa leve comeou a cair e Thiago pensou em voltar, mas logo seviu gostando da sensao da gua caindo sobre o rosto. Os noticirios e

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    alguns amigos diziam que a chuva das cidades grandes era cida e fazia mal.Chegaria um tempo em que realmente o prazer de cantar na chuva deixariade existir? Thiago, mergulhado em pensamentos e radiante de felicidade,quase nem percebeu quem vinha do outro lado da rua.

    Edu? O que voc t fazendo, correndo na chuva?

    Eu estava indo pra casa do meu primo. Acho que deixei a barraca l epreciso pegar antes do grande dia! disse sorrindo, enquanto a garoacomeava a se transformar em chuva pesada. Abriu o guarda-chuva.

    muito longe? perguntou Thiago Pouco mais de dois quarteires daqui. Quer carona no guarda-chuva?

    caminho pra sua casa!Eduardo, ainda que sem jeito, abraou Thiago para que coubessem

    ambos embaixo do guarda-chuva. A verdade que no adiantava muito, pois achuva aumentou muito em intensidade e os carros passavam fazendo as poasde gua espirrarem nas pernas dos dois, que se divertiam ao tentar se desviar.

    Acho que esse guarda-chuva no est servindo para muita coisa...

    notou Eduardo. Mas divertido tentar andar com quatro pernas! Fecha o guarda-chuva

    e vamos ver quem chega menos seco!A competio resultaria em empate tcnico: Eduardo era bom em chutar a

    gua das poas pra molhar Thiago, que por sua vez pulava alto e puxava osgalhos das rvores fazendo cair sobre o outro a gua acumulada. Riram juntossem pensar no possvel resfriado que poderia se seguir e celebraram,danando na chuva, um dia de vitrias compartilhadas.

    A chuva lavou caladas e ruas e passou s depois da madrugada,quando Thiago, empolgado, j tinha contado aos pais sobre a experincia eEduardo j arrumara as coisas para a viagem. O barulho dos pingos no telhadoos fez dormir facilmente.

    * * *

    Foi uma semana corrida, aquela. Eduardo no checara as salas em queteria aula naquele ano na faculdade e corria de um lado para o outro docampus. Nada de reunio na quinta-feira, era preciso ajeitar tudo para opasseio no final de semana e ainda tinha um trabalho importante de FilosofiaOriental II para entregar e o clima esquisito com a me. A verdade que pormais que tentasse evitar, o abrao de Thiago naquela noite de chuva tinha

    inspirado os sonhos mais felizes de sua vida e era s olhar para qualquer lado,ouvir qualquer som, sentir o vento no rosto, para que a lembrana dele voltasse sua mente.

    Na cabea de Eduardo circulavam pensamentos que misturavam paixo edvida. J no estava mais preocupado por gostar de um garoto, mas nosabia se Thiago poderia, ou iria, corresponder ao que ele sentia e isso era umanova tortura. Pretendia dar fim a essa confuso assim que conseguisseresolver tudo na faculdade, mas eram tantas coisas que o final de semanachegou mais cedo que o final das tarefas e ele teve que aguentar um poucomais.

    * * *

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    Estava tudo preparado. Barraca, cordas, luneta, telefones celulares, ummonte de pacotes de bolacha. Os quatro membros do clube encontraram-se nacasa de Thiago no comeo da tarde do sbado. Eduardo pegara emprestada acaminhonete do pai, deixando-a estacionada do outro lado da rua, ajeitaramtodas as coisas na caminhonete e Fernando queria ir surfando na carroceria,

    mas Eduardo no queria perder a carteira de motorista que sequer eradefinitiva. Tudo pronto, pegaram a estrada e seguiram rumo ao localcombinado na mensagem. Deixaram a caminhonete no p do morro, j que aestrada a seguir era de terra no dava para seguir adiante sem sujar o carro, ecaminharam at anoitecer. A subida era cansativa. A chuva dos dias anterioreshavia castigado a regio e o solo estava lamacento e escorregadio. Com aspesadas mochilas nas costas, os quatro subiam devagar e paravam de temposem tempos para descansar. No comeo, ainda arriscaram cantar, como haviamfeito na estrada, mas aos poucos at mesmo conversar j era um desafio.

    Sabem que... eu no... estou acreditando... que isso est...acontecendo? soltou um esbaforido Thiago H algumas semanas... a

    gente era... um bando de gente... sonhadora e agora somos um bando... degente andando pela serra... atrs de ET! Caraca... Vocs so demais! E...poxa, ufa... vamos dar aquela salva de palmas bsica para o Edu, nosso...passaporte para os aliengenas.

    E motorista particular! brincou Fernando Fala srio, valeu, velho! Ok, ok, do que mais que vocs esto precisando? Eduardo entrou

    na brincadeira Que eu os leve nas costas?E subiam lentamente, enquanto o sol aos poucos ia abaixando no

    horizonte, deixando pra trs um tom laranja-violeta no cu. Pararam em um dospontos altos do caminho e olharam para aquela bela paisagem. Era umadaquelas situaes que, caso fossem diretores de um filme que contasse suasprprias vidas, eles gostariam de mostrar sob vrios ngulos, afinal, estavamali, quatro amigos vivendo uma grande aventura, com o cu presenteando-oscom um cenrio dos mais belos. Mas ainda havia um longo trecho pela frente eo cansao pairava nos rostos de todos eles. Cansados, porm cheios deempolgao, comearam a subir um trecho em linha reta.

    Sabiam que nessa semana mais um navio petroleiro desapareceu nomeio do Oceano Pacfico? perguntou Margarete, entre respiraesentrecortadas.

    E se tiver a ver com os vnis? Thiago arriscou Saiu na revistaDiscos da semana passada uma matria falando sobre isso.

    O que os caras iriam querer com... Hey! E aquele lance de energia queum dia voc falou, Maga? Ser que eles precisam do petrleo para abasteceras naves?

    Margarete levantou as sobrancelhas, contente que Fernando tivesseprestado ateno a ela.

    Talvez, embora eu suspeite que petrleo no seja uma fonte deenergia boa o suficiente para fazer viagens espaciais.

    Faltava pouco do caminho para percorrer; Margarete e Fernando estavamentusiasmados numa conversa sobre energia quando Eduardo pediu um tempopara que ele pudesse descansar. A gente vai na frente, mas vamos devagar,pode ficar a e depois voc nos acompanha.

    Thiago ofereceu-se para ficar com ele.

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    O silncio era cortado somente pela respirao dos dois; a trilha, estreitanesse ponto, tinha duas pedras altas nas laterais e ambos estavam encostadosnelas, um de frente para o outro, exibindo o sorriso satisfeito de estarem acaminho da realizao daquilo que parecera to distante at bem pouco tempo.

    Eduardo, no entanto, sentia um n na garganta e precisava fazer algo a

    respeito. Comeou a falar e engasgou. Thiago lhe ofereceu gua do cantil. Valeu, Thi! Cara, por que to difcil a gente falar as coisas maissimples? comeou Eduardo.

    Como o qu? Ah, como quando voc quer pedir gua e o mximo que consegue

    respirar ofegante e olhar com cara de vontade para o dono do cantil, coisasassim... ou como... como falar de sentimentos tambm?

    Acho que sim. Eu no sou muito bom com essas coisas desentimentos disse Thiago, srio Acho que meninas que sabem falardisso, a gente diferente.

    ...

    Eduardo desistiu da tentativa de contato. Era torturante ouvi-lo falandodaquele jeito. Parecia, para ele, que quando Thiago falava que isso ou aquiloera coisa de menina ele estava tentando afast-lo. Por vezes, parecia at quesabia de algo.

    Eu nem sei direito o que sinto e, s vezes, acho que sou esquisito, queno sou como os outros. queria cortar o assunto, terminar de vez comaquilo, mas sua fala o traa.

    Tipo...? Ah, sei l, desencana! Agora desembucha, j que comeou! E se eu te dissesse que... e parou. P Edu, fala velho. Eu confio pra caraca em voc. Pode confiar em

    mim, cara.Eduardo suava frio. No tinha certeza de quanto tempo se passara e no

    quo longe estariam os dois amigos frente. Tambm no tinha certeza sequeria ou no falar o que sentia ali, naquela hora, naquele lugar. Alis, sentiaque tudo aquilo no passava de imaginao, que deveria estar mesmo ficandomaluco. Engoliu em seco. E, como em todos os momentos em que ficavaperdido, Eduardo falou exatamente o que tentava esconder:

    E se eu te disser que curto caras e no garotas? e baixou o rosto.Thiago ficou em silncio, o semblante meio distante, como se pensativo,

    enquanto Eduardo procurava um lugar entre as pedras para se esconderdaquele olhar. Sua emoo, entretanto, falou mais alto que seu controle e elesoltou, de uma vez:

    E se eu te disser que estou a fim de voc?Eduardo agradecia o fato de a iluminao crepuscular ser pouca quela

    hora e, assim, evitar que o vermelho em seu rosto denunciasse que ele sentiraque falara demais. O olhar de Thiago ainda vagava perdido no horizonte,enquanto Eduardo queria desaparecer dentro da prpria camiseta.

    Sua testa franziu-se e nesse momento Eduardo quase teve um colapsonervoso. Pensou em todas as coisas que todo mundo iria dizer, nas risadasdesdenhosas do garoto falando sobre o viadinho que estava a fim dele para os

    amigos do colgio e no desespero de sua me ao saber de tudo.

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    Fechou os olhos como quem espera a exploso de uma bomba em festajunina, ou, pelas batidas do seu corao, uma bomba atmica, e j ia comeara se desculpar quando Thiago comeou a rir:

    Caraca! Por que demorou tanto pra dizer, cara? falou isso indo emsua direo.

    Eduardo no sabia muito bem como agir, pensando que aps a risadaviria uma reao violenta, um soco, um chute ou qualquer coisa assim, emanteve-se encostado pedra, enquanto os braos de Thiago o envolviam emum abrao. Quando seu peito encostou-se ao dele, Eduardo sentiu as batidasaceleradas do corao do garoto baterem ritmadas com as do seu prpriocorao e no teve dvidas de que ele tambm estava nervoso. No entendiaainda o que estava acontecendo, se o nervoso era de raiva ou de tenso, masarriscou deixar seus braos enlaarem as costas de Thiago. Suas mostremiam, enquanto ele tentava organizar o pensamento.

    Voc no t bravo? balbuciou. BRAVO? Agora que sei que no sou s eu que t sentindo esse troo

    esquisito? Eu t aliviado.Nem em todos os sonhos acordados mais otimistas que tivera, Eduardo

    chegara a cogitar essa possibilidade. Bem certo era que ele queria que Thiagocorrespondesse ao que sentia, mas no imaginava que ia acontecer assim, tonaturalmente. Empurrou-o de leve para trs e olhou em seus olhos molhadospelas lgrimas que haviam brotado enquanto se abraavam. O suor dacaminhada desarrumara seus cabelos, mas ele parecia ainda mais belo agora.Os olhares cruzaram-se por apenas alguns segundos, brilhantes na pouca luz,mas o suficiente para eternizar a imagem daquele momento em cada umadaquelas duas vidas que finalmente se encontravam.

    Os dois rostos curvaram-se em direes opostas, tocaram-se a pele dasfaces e um calor nico invadiu-os ao mesmo tempo. Os lbios roaram-se deleve e o beijo veio natural, sem medo. Ficaram por ali, se abraando, por umtempo infinito, aconchegando-se na compreenso e corpo um do outro.

    Quando Thiago desencostou sua cabea do peito de Eduardo e olhou-ode novo, sua mirada atravessou-o. Seus olhos brilharam radiantes, ao mesmotempo em que ele o empurrava para trs com fora. Eduardo sentiu-sepssimo, pensando ter feito algo errado. Thiago, entretanto, sorria cada vezmais e olhava fixamente para frente.

    O que... quando Eduardo virou-se na direo em que Thiago olhavaele tambm avistou as luzes. Eram quatro fortes brilhos com movimentos

    ritmados.Thiago comeou a gritar de alegria. Eu no acredito. Eu no acredito, Edu! Olha s o que... e, enquanto

    falava, corria em direo s luzes. Mas ao olhar para elas esqueceu-se docho. E caiu pelo barranco, desaparecendo na lateral da trilha.

    Eduardo entrou em pnico e gritou desesperado, enquanto tentava, emvo, segurar sua mo. Eduardo gritava, chamando-o, e os amigos que jvoltavam viram quando ele comeou a se esgueirar e tentar descer pelaencosta. Fernando segurou-o.

    O que aconteceu? A gente tava voltando porque vocs demoraram. O Thiago caiu. Eu vou descer.

  • 7/25/2019 Cesar Sinicio Marques - Eu Tenho Um Disco Voador Na Garagem

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    Voc no vai conseguir, Edu. Olha como o barranco ngreme,precisamos pedir ajuda. Margarete tentava manter a calma, mas estava empnico.

    Vo vocs, eu vou tentar achar ele. Eu vou devagar, no vou memachucar. Vo! VO!

    E os dois correram de volta pela trilha, enquanto Eduardo amarrava acorda que estava no meio dos seus equipamentos a uma rvore na ponta datrilha e tentava descer pela encosta. No havia corda suficiente e ele precisavade um meio de descer sem se machucar muito.

    Olhava para baixo, tentando definir os contornos de Thiago em meio ssombras, quando viu um brilho intenso e ouviu um barulho que no soubedefinir exatamente o que era. Tudo, a partir de ento, aconteceu de modoautomtico, sem controle. Aps vencer o barranco, ele correu at ondeimaginava que Thiago pudesse estar, mas ele no estava l. Gritou por ele,procurou em todo lugar, mas ele tinha desaparecido.

    THIAGO, pra onde eles te levaram? Cad voc? gritava ao vento.

    E, caminhando a esmo, as pernas bambas de cansao e nervosismo,ajoelhou-se a tempo de ver um brilho subindo de perto de onde achava terouvido aquele som.

    Os olhos queriam fechar-se, o mundo girava ao seu redor, mas eleresistia. Viu algo se aproximando, um brilho intenso chegando mais perto, umcorpo esguio e braos longos que vinham em sua direo. Eles o seguraram eda, nada.

    * * *

    Edu! Eduardo! O... oi... abrindo os olhos lentamente, ele tentava reconhecer quem

    estava ali. Mano! Mano! Mano! Mano! a repetio, o barulho, uma dor

    repentina... Eduardo tentava ouvir a voz de Fernando, buscando dar forma umpensamento que, no entanto, no vinha por inteiro.

    Ao focalizar o olhar, viu-se cado no pequeno trecho descampado. A suafrente, seu amigo com ambas as mos no rosto, Margarete com o olhar maissrio que j tinha visto e mais frente um objeto que, mesmo na pouca luzdaquela noite sem lua, parecia prateado e brilhante. Saindo dali, encaminhava-se uma figura na direo deles.

    O sorriso naquele ser que se aproximava era surreal e ao mesmo tempoencantador, mas que despertava nele um milho de perguntas.Thiago fez questo de ajud-lo a se levantar, abraar-lhe com um carinho

    quase esmagador e dar-lhe um beijo. Os outros, ainda perplexos, olhavamambas as cenas e no conseguiam esboar qualquer reao.

    Mano! Olha isso, Maga! Tem um disco voador ali do lado, e essesdois... eles, mano!

    Thiago, Eduardo! Meu, a gente ouviu um barulho horrvel, achamos umjeito de descer pra c e chegamos a tempo de no deixar o Edu cairdesmaiado. O que t acontecendo?

    Eu tambm no sei! gritou Eduardo, espantado, ainda segurando

    Thiago pelas mos e olhando para ele em busca de resposta.

  • 7/25/2019 Cesar Sinicio Marques - Eu Tenho Um Disco Voador Na Garagem

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    Eu ca. Mas nem doeu e naquela hora olhou para as pernas, umamancha vermelha escorria por toda a extenso do lado esquerdo, visvel porum rasgo na cala jeans, sua camiseta, avermelhada dos ferimentos, tambmestava em pedaos prximo barriga Eu s queria ver o que tavaacontecendo. Eu andei o mximo que pude e vi quatro naves. Elas estavam

    fazendo manobras estranhas e uma delas... uma delas caiu e eu fui at lcorrendo...Parou e, apoiando-se em Eduardo, sentou-se no cho e comeou a olhar

    o ferimento, aumentando o rasgo na cala. Mano! Tem alguma coisa l? Eu no vi nada, s a nave, eu no consegui correr muito, pra dizer a

    verdade. e ele sorria, contrastando com o desespero do amigo. Thiago! Eu sei que era o que voc queria, mas voc t machucado, a

    gente t longe de casa, e tem uma nave espacial a menos de cem metros dagente. A gente precisa sair daqui.

    No! manifestou-se Eduardo pela primeira vez Cuidem dele aqui.

    Eu vou l ver o que .A expresso resoluta no deu margem a que os amigos questionassem.

    Ele acariciou de leve os ombros de Thiago, levantou-se e foi em direo aoobjeto que j no voava. O inslito da situao fez com que seu crebrorecorresse a pensamentos aleatrios. Decidiu que leria mais DC do que Marveldali por diante, que trancaria a disciplina de Estudos Antropolgicos, decidiuque no importasse o que acontecesse nunca mais deixaria Thiago sozinho.Seu corao extraa coragem da vitria que tivera ao mostrar seussentimentos.

    Mais cinco passos e estaria l. Olhou para trs; Thiago o encaravafixamente, franzindo a testa enquanto Margarete ajudava-o a limpar o ferimentoda perna, mas tentando sorrir mesmo assim, encorajando-o. No parecia muitogrande, o objeto. De fato, Eduardo perguntou-se se havia possibilidade dealguma coisa estar ali dentro, pois no parecia haver espao para mais do queuma pessoa agachada.

    Ele tirou o celular do bolso; a iluminao do aparelho ajudou-o aidentificar os contornos do objeto, andou em volta procurando por aberturas,fissuras, qualquer coisa que lembrasse uma entrada. Nada encontrou. Nosentia cheiro de queimado, nem ouvia qualquer barulho. Tocou o objeto, jimaginando sentir o frio do metal. Era morno. E ao seu toque ele pareceuestremecer por um instante. Continuou a dar a volta e, ento, notou um feixe

    de luz. Hey! Espera. No vamos deixar voc a sozinho.Thiago vinha caminhando, com um galho sob o brao para apoiar a perna

    machucada. Fernando e Margarete vinham logo ao lado, com olhar de no-me-culpe-foi-ele-quem-saiu-andando-sem-nos-consultar.

    O pequeno feixe de luz, diante de todos, aumentou de espessura,contornou por cima e pelos lados, formando uma espcie de moldura.Vagarosamente, uma espcie de painel luminoso revelou-se por detrs de umapequena placa que descia em diagonal. A parte frontal mostrava caracteresque nenhum deles conseguiu entender, nem mesmo o letrado Eduardo. Thiagoaproximou-se e tocou a placa. A nave iluminou-se, deu sinais de movimento,

    mas em seguida perdeu todo o brilho e mesmo o painel se apagou.

  • 7/25/2019 Cesar Sinicio Marques - Eu Tenho Um Disco Voador Na Garagem

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    No cabe gente a dentro! Fernando foi o primeiro a manifestar-se. A no ser que os aliens sejam anezinhos.

    Eu acho que esse negcio deve ser controlado de fora. disse Thiagoolhando para cima.

    E s ento eles pareceram lembrar-se onde tinham avistado as naves no

    comeo de tudo.Ao longe, um ponto de luz brilhou mais forte por cinco vezes. Edesapareceu.

    * * *

    Isso insano, mano! disse Fernando, com as mos para cima. Olha, agora com a luz do sol surgindo d pra ver que esse negcio

    pequeno. A gente pode cobrir com a barraca e ningum vai ver a gentelevando! sugeriu Thiago.

    Uma hora a gente vai ter que contar pra algum Eduardo interveio.

    Sim, mas at l precisamos entender o que isso. Esses... caras, ouseja l o que for isso, marcaram um encontro com a gente, mandaram essaespcie de sonda aqui, no foi? Talvez a gente consiga voltar a falar com elesusando isso!

    Eu concordo com o Edu! disse Margarete, pensativa Olha, sejacomo for, a gente t nisso at o pescoo. O Eduardo t literalmente coberto delama e o Thiago t com um machucado assustador na perna...

    Nem t doendo... Eu acho que a gente tem que levar essa histria at o fim. No

    podemos deixar como est, no depois de tudo pelo que passamos.E discutiram ainda por um longo tempo, at que a luz do sol comeou a

    surgir fazendo tudo parecer muito menos assustador. Enquanto no chegavama um consenso, Thiago e Eduardo se esbarravam o tempo todo, de propsito,com sorrisos to grandes que brilhavam mais que o objeto que haviamencontrado, sorrisos que Margarete parecia estar adorando ver. J Fernandose mostrava mais assustado com aquela situao do que com a apario danave e, por fim, tambm resolveu que levar o objeto na caminhonete seria amelhor opo.

    Eu vou tentar trazer a caminhonete mais pra cima na trilha. Vocs disse, apontando para Maga e Fernando tentem arrastar isso pro lugar deonde desceram pra nos achar. Vem comigo, Thiago?

    E foram. Desceram a trilha felizes, as mos resvalando-se comfrequncia, por vezes trocando olhares demorados. E conversaram, entre risoscomplacentes, sobre o que tudo aquilo poderia significar para ambos, dali parafrente. No sabiam o que viria a seguir, o que teriam de enfrentar, mas sabiamque suas vidas jamais seriam as mesmas, no depois de tudo o queacontecera, no depois de terem um disco voador na garagem.