Cesário Verde. Antologia Poética

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Ilustrações de José Manuel Saraiva Cesário Verde ANTOLOGIA POÉTICA

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Faktoria K de Livros. Treze Luas

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Ilustrações de José Manuel Saraiva

Cesário VerdeANTOLOGIA POÉTICA

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Cesário Verde

Ilustrações de José Manuel Saraiva

Edição literária de Margarida Noronha e José Manuel Saraiva

ANTOLOGIA POÉTICA

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ÍNDICE

CONTRARIEDADES

NUM BAIRRO MODERNO

CRISTALIZAÇÕES

DE VERÃO

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL

I – AVE MARIAS // NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER,

II – NOITE FECHADA // TOCA-SE AS GRADES, NAS CADEIAS. SOM

III – AO GÁS // E SAIO. A NOITE PESA, ESMAGA. NOS

IV – HORAS MORTAS // O TETO FUNDO DE OXIGÉNIO, D’AR,

NÓS

I // FOI QUANDO EM DOIS VERÕES, SEGUIDAMENTE, A FEBRE

DESLUMBRAMENTOS

ARROJOS

DE TARDE

LÚBRICA

HUMILHAÇÕES

MERIDIONAL

A DÉBIL

Autor: CESÁRIO VERDE

Ilustrador: JOSÉ MANUEL SARAIVA

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Treze poemas em cada livro,treze poemas como treze luas, como os treze poemas do calendário lunar.

A lua, esse ser cambianteque muda a sua face de espelho circular.Senhora das marés, astro da fecundidade.Ritmos lunares para dar medida ao tempo,ao tempo poético.

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Cesário Verde

ANTOLOGIA POÉTICA

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Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;

Nem posso tolerar os livros mais bizarros.

Incrível! Já fumei três maços de cigarros

Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:

Tanta depravação nos usos, nos costumes!

Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes

E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora

Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;

Sofre de faltas d'ar, morreram-lhe os parentes

E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco, entre as nevadas roupas!

Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.

Lidando sempre! E deve a conta na botica!

Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;

Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,

Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,

Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta

No fundo da gaveta. O que produz o estudo?

Mais duma redação, das que elogiam tudo,

Me tem fechado a porta.

CONTRARIEDADES

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A Crítica segundo o método de Taine

Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa

Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa

Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.

Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,

Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho

Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,

Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.

Independente! Só por isso os jornalistas

Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,

Se forem publicar tais cousas, tais autores.

Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores

Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,

Obtém dinheiro, arranja a sua «coterie»;

E a mim, não há questão que mais me contrarie

Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;

Eu raramente falo aos nossos literatos,

E apuro-me em lançar originais e exatos,

Os meus alexandrinos...

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E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!

Ignora que a asfixia a combustão das brasas,

Não foge do estendal que lhe humedece as casas,

E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.

Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,

Oiço-a cantarolar uma canção plangente

Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.

Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,

Conseguirei reler essas antigas rimas,

Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;

Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,

E esta poesia pede um editor que pague

Todas as minhas obras…

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?

A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?

Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...

Que mundo! Coitadinha!

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Dez horas da manhã; os transparentes

Matizam uma casa apalaçada;

Pelos jardins estancam-se os nascentes,

E fere a vista, com brancuras quentes,

A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,

Abriram-se, nalguns, as persianas,

E dum ou doutro, em quartos estucados,

Ou entre a rama dos papéis pintados,

Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,

E a sua vida fácil! Eu descia,

Sem muita pressa, para o meu emprego,

Aonde agora quasi sempre chego

Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,

Notei de costas uma rapariga,

Que no xadrez marmóreo duma escada,

Como um retalho de horta aglomerada,

Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:

Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos,

E abre-se-lhe o algodão azul da meia,

Se ela se curva, esguedelhada, feia,

E pendurando os seus bracinhos brancos.

NUM BAIRRO MODERNO

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A Manuel Ribeiro

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Do patamar responde-lhe um criado:

«Se te convém, despacha; não converses.

Eu não dou mais.» E muito descansado,

Atira um cobre lívido, oxidado,

Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente, – que visão de artista! –

Se eu transformasse os simples vegetais,

À luz do sol, o intenso colorista,

Num ser humano que se mova e exista

Cheio de belas proporções carnais?!

Boiam aromas, fumos de cozinha;

Com o cabaz às costas, e vergando,

Sobem padeiros, claros de farinha;

E às portas, uma ou outra campainha

Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,

Um novo corpo orgânico, aos bocados.

Achava os tons e as formas. Descobria

Uma cabeça numa melancia,

E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,

Negras e unidas, entre verdes folhos,

São tranças dum cabelo que se ajeite;

E os nabos – ossos nus, da cor do leite,

E os cachos d’uvas – os rosários d’olhos.

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Há colos, ombros, bocas, um semblante

Nas posições de certos frutos. E entre

As hortaliças, túmido, fragrante,

Como d'alguém que tudo aquilo jante,

Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,

Vi nos legumes carnes tentadoras,

Sangue na ginja vívida, escarlate,

Bons corações pulsando no tomate

E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,

Como vendera a sua fresca alface

E dera o ramo de hortelã que cheira,

Voltando-se, gritou-me prazenteira:

«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;

E, pelas duas asas a quebrar,

Nós levantámos todo aquele peso

Que ao chão de pedra resistia preso,

Com um enorme esforço muscular.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»

E recebi, naquela despedida,

As forças, a alegria, a plenitude,

Que brotam dum excesso de virtude,

Ou duma digestão desconhecida.

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E enquanto sigo para o lado oposto,

E ao longe rodam umas carruagens,

A pobre afasta-se, ao calor de agosto,

Descolorida nas maçãs do rosto,

E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira

Duma janela azul; e, com o ralo

Do regador, parece que joeira

Ou que borrifa estrelas; e a poeira

Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,

Ouço um canário – que infantil chilrada! –

Lidam ménages entre as gelosias,

E o sol estende, pelas frontarias,

Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,

O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,

Duma desgraça alegre que me incita,

Ela apregoa, magra, enfezadita,

As suas couves repolhudas, largas.

E como as grossas pernas dum gigante,

Sem tronco, mas atléticas, inteiras,

Carregam sobre a pobre caminhante,

Sobre a verdura rústica, abundante,

Duas frugais abóboras carneiras.

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Cesário Verde

Lisboa, 1855 - Paço do Lumiar, 1886

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José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa no dia de São Cesário, a 25 de fevereiro

de 1855. Nesse ano, Baudelaire publicava na Revue des Deux Mondes 18 poemas que

posteriormente seriam incluídos em As Flores do Mal, obra cuja influência viria a ser

relevante em Cesário e em O Livro, não só pela sua temática, simbólica e imagística,

como também pela sua própria estrutura. Oriundo de uma família burguesa, desde

jovem que Cesário se repartiu entre a loja de ferragens da baixa lisboeta de que o seu

pai era proprietário e a quinta da família de Linda-a-Pastora; satisfazendo, margi-

nal e simultaneamente, o seu gosto pelas letras. Aos 18 anos, em 1873, matriculou-se,

por breves meses, no Curso Superior de Letras, começando a frequentar os meios

literários e as tertúlias intelectuais da capital. É por essa época que, pela primeira vez,

se publicam poemas seus no Diário de Notícias, passando o poeta a colaborar dora-

vante em jornais e revistas. A partir de 1875, escreve alguns dos seus melhores poe-

mas, vindo a lume, em 1880, «O Sentimento dum Ocidental», que seria mal rece-

bido e incompreendido pela crítica de então. Cesário, desiludido, passa a dedicar-se

em exclusivo aos negócios familiares e só quatro anos depois, em 1884, é que volta a

publicar o longo e pungente poema narrativo autobiográfico – «Nós» –, cuja

primeira parte apenas é reproduzida nesta antologia, e onde o poeta evoca a morte de

uma irmã e de um irmão, ambos de tuberculose, doença que o viria igualmente a viti-

mar aos 31 anos, a 19 de julho de 1886, numa quinta no Paço do Lumiar, às portas de

Lisboa.

Só no ano seguinte, em 1887, é que viria a ser organizada, postumamente, e por ini-

ciativa do seu amigo Silva Pinto, uma compilação dos seus poemas, a que se deu o

nome de O Livro de Cesário Verde, de acordo com um plano que constava entre os ma-

nuscritos oferecidos àquele por Jorge Verde, irmão do poeta. Não isento de polémi-

ca, O Livro de Cesário Verde tem conhecido até à data diferentes fixações e edições.

Poeta de um só livro, como Pessanha, a quem influenciou, Cesário, naturalista e sim-

bolista, edificou-se sob a égide do realismo e do parnasianismo literários e impôs-

-se, sobretudo, pela sua oposição ao lirismo tradicional e pela exploração de uma lin-

guagem do concreto e de um tom natural, abrindo assim caminho ao modernismo e

ao neorrealismo, ao mesmo tempo que marcava, no século XIX, uma renovação sin-

gular na estilística poética portuguesa. Os seus versos, prosaicos, de pinceladas

impressionistas, sugestivos, condensando sensações físicas e morais, retratam a

temática do amor e da mulher, da cidade e do campo, seus cenários prediletos, e re-

velam uma visão extraordinariamente plástica do mundo, por parte daquele que é

conhecido como o poeta da cidade de Lisboa, mas também da natureza antiliterária:

«A mim o que me rodeia é o que me preocupa», escreveu ele em carta a Silva Pinto,

e muito justamente, quiçá!

Margarida Noronha

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José Manuel Saraiva

Porto, 1974

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Ilustrar Cesário é acrescentar, preencher, rechear, esvaziar, fender, divagar

entre o poeta e as suas palavras, entre o que se lê e o que se quer ler.

Parti de Contrariedades, escritas por um Cesário fiel, até ao fim, à integridade

do seu projeto estético, recusando afundar-se nas violentas críticas que o

acossaram em vida. E segui, vislumbrando uma imagística surrealista na

recomposição do corpo, cidades que se ergueram do suor dos homens do

campo, o labor das gentes campestres, sentimentos num passeio por uma

Lisboa em decadência, o contraste entre o vigor do campo e a enfermidade

da cidade, a revolta contra uma mulher enquanto símbolo de uma classe

soberba, o poder do olhar feminino, a serenidade de uma tarde ao relento, a

entrega ao desejo erótico, a ilusão pela amada altiva que humilha a alma, o

submergir em busca da sensualidade libertadora e a inocência da débil mu-

lher acossada.

Ilustrar Cesário é ter o privilégio de estudar a fundo o poeta disfarçado de

comercial que geriu o negócio da família sem nunca abandonar a sua escrita,

nascida da análise do real, o seu real. O poeta de um único livro póstumo, de

uma obra que resiste. Hoje e sempre.

José Manuel Saraiva

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«Não quero nada, deixa-me dormir.»

Foi com estas palavras, proferidas ao único irmão que lhe sobreviveu,

que Cesário Verde se despediu da vida.

E este livro, que saiu do prelo em novembro de 2011,

pretende muito simplesmente homenagear

este poeta de versos tão intensos quão singulares.

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Coleção: Treze Luas

© do texto: Cesário Verde, 2011

© das ilustrações: José Manuel Saraiva, 2011

© desta edição: Kalandraka Editora Portugal Lda., 2011

Rua Alfredo Cunha, n.º 37, Salas 34 e 56

4450-023 Matosinhos - Portugal

Telefone: (00351) 22 9375718

[email protected]

www.kalandraka.pt

Faktoria K de Livros é uma chancela da Kalandraka Editora

Edição literária: Margarida Noronha e José Manuel Saraiva

Impresso em Gráficas Anduriña

Primeira edição: novembro, 2011

ISBN: 978-989-8205-74-2

DL: 334080/11

Reservados todos os direitos

(Os poemas e os textos desta obra foram fixados e compostos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.)

Este livro convida-o a ler um poema por dia,

ou por semana,

ou mês lunar.

Depois, pode deixá-lo a repousar numa estante,

aberto na ilustração que quiser,

que é, nem mais nem menos,

a leitura que José Manuel Saraiva fez das palavras da poeta,

para deleite dos nossos olhos e do nosso olhar mais pessoal.

Desfrute-o!

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