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1 LUIZ FERNANDO BARRÉRE MARTIN CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob orientação do Prof. Dr. Marcos Lutz Müller Campinas DEZEMBRO/2009

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LUIZ FERNANDO BARREacuteRE MARTIN

CETICISMO E DIALEacuteTICA ESPECULATIVA

NA FILOSOFIA DE HEGEL

Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob orientaccedilatildeo do Prof Dr Marcos Lutz Muumlller

Campinas

DEZEMBRO2009

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FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Por Sandra Ferreira Moreira CRB nordm 085124

Tiacutetulo em inglecircs Skepticism and speculative dialectic in Hegelrsquos philosophy

Palavras chaves em inglecircs (keywords)

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Filosofia Titulaccedilatildeo Doutorado Banca examinadora

Data da defesa 04122009 Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Hegel Georg Wilhelm Friedrich 1770-1831 Dialectic Skepticism Sextus Empiricus Idealism German Criticism Philosophy German Knowledge Theory of

Roberto Bolzani Filho Eduardo Brandatildeo Joseacute Eduardo Marques Baioni Hans Christian Klotz

Martin Luiz Fernando Barreacutere M364c Ceticismo e dialeacutetica especulativa na filosofia de Hegel Luiz

Fernando Barreacutere Martin - - Campinas SP [s n] 2009 Orientador Marcos Lutz Muumlller Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas

1 Hegel Georg Wilhelm Friedrich 1770-1831 2 Dialeacutetica 3 Ceticismo 4 Sexto Empiacuterico 5 Idealismo alematildeo 6 Criacutetica 7 Filosofia alematilde 8 Teoria do conhecimento I Muumlller Marcos Lutz II Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo

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RESUMO

Trata-se inicialmente de neste trabalho analisar a leitura hegeliana da filosofia ceacutetica

especificamente o ceticismo pirrocircnico Dessa maneira seraacute possiacutevel comeccedilar a avaliar em

que medida o ceticismo eacute importante para a filosofia de Hegel em geral e em particular para

a constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico especulativo Percorreremos textos de vaacuterias fases da

filosofia de Hegel no qual o ceticismo ou eacute tema central ou aparece dentro de um contexto

que tambeacutem nos interessa a saber a discussatildeo acerca do meacutetodo No que respeita a este

uacuteltimo objeto da segunda parte da tese examinaremos na Ciecircncia da Loacutegica os momentos

onde podemos observar de modo privilegiado a constituiccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico hegeliano a

saber a seccedilatildeo dedicada na Doutrina da Essecircncia agraves determinaccedilotildees de reflexatildeo e a seccedilatildeo

intitulada Ideacuteia Absoluta uacuteltimo capiacutetulo do livro A partir desse estudo da Ciecircncia da

Loacutegica poderemos entatildeo julgar com maior exatidatildeo no que o meacutetodo filosoacutefico hegeliano eacute

devedor da filosofia ceacutetica isto eacute como esse meacutetodo eacute formulado de modo que o ceticismo

seja integrado a ele A ideacuteia central eacute mostrar que natildeo haacute da parte de Hegel uma simples

refutaccedilatildeo do ceticismo mas antes que o ceticismo eacute a filosofia incontornaacutevel da qual se

deve partir para que a filosofia natildeo caia viacutetima das aporias ceacuteticas Essa eacute a via que Hegel

encontra para natildeo se tornar ceacutetico pirrocircnico e ao mesmo tempo natildeo ser alvo da criacutetica ceacutetica

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ABSTRACT

First it means to analyse Hegelrsquos reading of the skeptical philosophy specifically

pyrrhonian skepticism Thus it will be possible to assess to what extent the skepticism is

important to Hegelrsquos philosophy in general and in particular for the formation of his

speculative dialectical method We will cover texts from many phases of Hegelrsquos philosophy

in which skepticism is focus or appears within a context that also interests us namely the

discussion of the method Regarding this last one subject of the second part of the thesis we

examine in Science of Logic the moments where we can observe in a special way the

formation of hegelian dialectical method the section in Doctrine of Essence that is dedicated

to the determinations of reflection and the section entitled Absolute Idea the last chapter of

the book From this study of Science of Logic we can judge more accurately what the

Hegelian philosophical method is liable to the skeptical philosophy which means how this

method is formulated in a way that skepticism is a part of it The main idea is to show that

Hegel does not try a simple refutation of skepticism more than this he shows that skepticism

is the philosophy unavoiable which preserves the philosophy from fall victim of skepticals

aporias This is the way that Hegel finds to not become skeptical pyrrhonian and also the

subject of skeptical criticism

9

Para a Luciana

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Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos

pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel

Hegel

A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia

de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades

Hegel

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver

intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de

pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua

amizade

Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no

meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste

trabalho

Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou

da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade

Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo

deste trabalho

Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu

pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e

tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden

Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien

Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt

Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane

Agrave minha famiacutelia

Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha

Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante

em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo

A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-

UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa

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SUMAacuteRIO

LISTA DE ABREVIATURAS p 17

INTRODUCcedilAtildeO p 19

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49

Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65

II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101

Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131

CONCLUSAtildeO p 161

BIBLIOGRAFIA p 163

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LISTA DE ABREVIATURAS

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische

Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em

diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968

Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980

Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre

vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978

Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom

Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981

Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W

Bosiepen e H -C Lucas 1992

Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre

vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984

Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M

Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993

Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp

1986

Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp

2003

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Introduccedilatildeo

Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o

filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1

Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave

filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar

que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3

O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para

Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia

hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira

1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)

2 Cf GW 4 pp 197-238

3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007

4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

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filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O

diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de

sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra

No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo

nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho

explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans

Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o

tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do

conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente

escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por

uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa

filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6

De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo

antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de

constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a

filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como

algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo

pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo

natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega

em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)

A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que

Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos

dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira

de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se

tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que

novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar

atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que

5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado

6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana

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comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa

postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se

fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave

mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na

assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo

Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao

dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de

Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma

vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras

seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no

cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em

responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa

Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria

por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e

dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi

atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la

A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse

dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta

outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado

nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico

poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De

fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em

ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta

representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o

ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da

filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o

fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se

esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente

avaliara no ceticismo 7

7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da

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Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser

formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo

acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que

almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo

Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico

como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos

limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este

trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do

ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz

(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que

comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do

pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu

sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos

quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo

desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e

anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o

ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana

e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos

observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de

negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que

mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute

isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que

impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo

Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo

hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de

reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados

obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo

tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente

assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a

linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo

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filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-

lo reformulado a si proacutepria

Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de

acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o

ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o

lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do

ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas

aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente

natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica

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I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico

Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato

dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas

E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar

por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos

por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma

filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas

por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O

que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema

filosoacutefico exposto8

Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com

verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema

qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de

qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua

filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende

dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser

essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por

filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia

Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui

doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no

nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis

Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos

referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por

8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]

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Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de

ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9

Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o

ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo

doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o

tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o

que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo

filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o

ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma

menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso

Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante

Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a

filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele

Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de

Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo

natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples

tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de

relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute

nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo

Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma

breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto

Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa

filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver

9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss

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rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se

incorpora agrave filosofia hegeliana

Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela

descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute

declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas

Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo

com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em

virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros

declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a

investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum

resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram

capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma

suposta verdade filosoacutefica

Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como

resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade

inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se

dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica

Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o

ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que

ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a

investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum

resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o

uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros

filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa

10 A esse respeito veja-se HP I 1-4

28

investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com

frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente

Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa

que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz

Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece

a noacutes no momentordquo11

Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o

afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo

mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da

filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a

impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da

filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato

concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da

descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar

de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro

Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se

inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com

receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e

sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro

momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo

e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo

mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de

se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria

Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a

esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma

questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a

possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se

trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou

negativamente ndash naquilo que investiga

11 Cf HP I 4

12 Cf HP I 12

29

Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que

encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do

que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se

distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade

a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade

ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do

mesmo fim a saber a ataraxiacutea

Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute

inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se

eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte

Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo

que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se

tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)

anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em

detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se

mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um

objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas

satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante

E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se

encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do

que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico

terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou

falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se

portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14

A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim

chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre

as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na

opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que

13 Cf HP I 12

14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5

30

acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto

(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16

Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira

dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude

deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute

suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado

de intelecto suspensivordquo17

Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do

conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se

diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de

qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho

e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas

Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista

do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia

(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-

credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender

o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)

Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da

tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de

argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica

A agogeacute ceacutetica

A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o

ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas

15 Cf HP I 7 10 26 165

16 Cf HP I 10

17 Cf HP I 8

31

as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)

assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida

a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18

Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da

filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto

apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de

igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19

Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal

atitude (agogeacute) um tal modo de proceder

Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a

adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o

ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc

diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele

com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira

podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de

caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito

A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe

contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da

igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute

declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real

verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do

verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute

o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a

atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito

nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica

Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a

temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz

18 Cf HP I 8

19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8

20 Cf HP I 8

32

entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue

um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a

fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que

Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um

argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na

contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de

que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O

que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao

contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos

conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao

outro quanto a ser mais digno de creacutedito23

Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes

entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave

maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito

nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o

ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso

cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido

como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves

afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe

parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele

sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo

exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando

21 Cf HP I 9

22 Cf HP I 33

23 Cf HP I 10

24 Cf HP I 12

25 Cf HP I 13

33

De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por

fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de

dogmatizarrdquo

Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo

expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance

de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o

ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das

coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo

restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o

caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute

mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem

em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente

ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27

Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo

dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de

controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas

exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada

espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas

Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do

ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas

maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a

fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante

26 Cf HP I 13

27 Cf HP I 13

28 Cf HP I 182

29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo

34

Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece

indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a

quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma

amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31

Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica

foi alvo de muita incompreensatildeo

A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar

dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem

ceacutetica

Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees

natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do

ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se

expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem

ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma

A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de

instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as

30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37

31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica

32 Cf HP I 4

35

coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam

a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um

caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se

expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira

dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar

que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico

Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em

nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de

expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu

discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele

sempre evitar dogmatizar

Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver

nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar

Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das

coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer

dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que

natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese

filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo

dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos

ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece

Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-

evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de

foacutermulas que expressam essa incapacidade

33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo

34 Cf HP I 14

35 Cf HP I 203

36

Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo

absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de

que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se

de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas

ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas

satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas

Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo

existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa

ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos

dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a

respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37

Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas

quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-

evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame

finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais

conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade

ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras

foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter

natildeo-dogmaacutetico das mesmas

Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas

foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se

no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser

de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a

respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude

filosoacutefica

A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para

esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas

36 Ver a respeito HP I 187-209

37 Cf HP I 198

38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198

37

ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes

natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente

verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se

ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas

purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com

os humores se expelemrdquo40

Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas

expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no

qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu

juiacutezo

Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico

estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter

absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma

atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo

dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea

O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem

apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma

de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo

A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir

antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento

que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro

visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a

isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo

Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a

concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o

39 Cf HP I 14-15 206

40 Cf HP I 206

38

conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas

teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no

uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa

instrumentalidade dos argumentos utilizados

ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma

escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua

lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no

mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42

Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio

entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado

decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a

serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo

poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses

adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de

que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a

persuasividade desses argumentos eacute aparente43

41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159

42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2

43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)

39

Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os

argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos

ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios

juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44

Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente

do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do

verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra

tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que

determinada tese dogmaacutetica seja posta

Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo

possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas

satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele

mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim

como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o

compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana

ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras

(expressotildees)rdquo46

E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-

dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico

A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas

ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees

quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai

desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico

passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-

44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)

45 Cf HP I 207

46 Ibidem I 207

40

dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio

segundo o qual ele se conduz

Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das

forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado

que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A

respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-

filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo

Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de

vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico

quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a

aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na

incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra

reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes

um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso

pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a

paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral

Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa

decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum

criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de

outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos

qualquer forma de decisatildeo

De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e

que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando

decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser

inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica

A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o

ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da

41

falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo

como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente

doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia

quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como

proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute

verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente

natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade

das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo

Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui

caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de

criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos

elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos

pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a

essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem

significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como

obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou

daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico

em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de

se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo

Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido

como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de

qualquer coisardquo48

Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute

como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe

permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da

vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49

Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age

de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie

47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79

48 Cf HP I 21

49 Cf HP I 21

42

de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe

aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute

constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se

ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I

13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As

decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele

por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que

lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio

aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa

direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel

(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do

fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer

asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio

da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo

A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se

refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as

aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem

estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo

as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos

discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou

menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra

eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave

suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar

Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute

supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do

discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar

ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν

παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os

fenocircmenosrdquo52

50 Cf HP I 22

51 Cf HP I 19

52 Cf HP I 19-20

43

Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo

se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno

inquestionaacutevel

Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira

afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do

ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia

minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse

aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente

natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo

isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse

caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto

a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente

de minha vontade

Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu

agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende

dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53

O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento

que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e

determina seu agir54

Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda

acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de

pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais

aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o

domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual

poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem

ser observadas no domiacutenio sensiacutevel

53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)

54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo

44

O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e

que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem

de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou

epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir

apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele

sem opinar (adoxaacutestos)55

Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas

afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56

Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-

se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em

princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas

accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele

viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que

ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa

se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo

elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua

realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer

algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que

aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade

O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer

de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque

estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa

afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da

mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas

aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute

aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva

dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia

pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente

coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada

que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal

55 Cf HP I 23

56 Cf HP I 23

45

comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que

hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente

Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura

agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com

respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a

coisas inevitaacuteveis57

Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por

essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo

conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar

contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre

argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a

tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58

Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que

o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos

entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa

haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato

natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o

sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude

dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa

em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo

Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se

propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como

ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver

de acordo com dogmas

57 Cf HP I 25

58 Cf Ibidem I 26

59 Cf Ibidem I 27

60 Cf Ibidem I 29

46

Os tropos ceacuteticos

Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico

consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo

seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse

modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por

diante62

Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e

assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63

Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os

homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas

circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo

nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou

raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees

dogmaacuteticas

Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de

todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos

apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao

qual todos os outros nove podem se referir64

Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que

se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia

controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na

61 Ver a respeito pp 30-32

62 Cf HP I 31

63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259

64 Cf HP I 39

47

hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os

tropos de Agripa65

Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel

de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas

comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de

opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave

suspensatildeo do juiacutezo66

Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova

prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E

essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma

regressatildeo que natildeo tem fim67

O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente

numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que

o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo

relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista

natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo68

O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma

demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou

essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma

demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo

haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69

65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303

66 Cf HP I 165

67 Cf HP I 166

68 Cf Ibidem I 167

69 Cf Ibidem I 168

48

Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute

objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo

acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70

Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a

filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a

filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto

diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que

empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma

possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo

da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana

do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia

70 Cf Ibidem I 169

71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica

49

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel

No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros

objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo

nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga

medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico

das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de

uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel

a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo

teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo

Teremos o quecirc entatildeo

No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel

para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute

um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento

de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o

que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo

mais minuciosa do significado desses termos

Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema

filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele

72 GW 4 pp 197-238

73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2

74 GW 4 pp 5-92

50

que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que

nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na

filosofia75

Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias

formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado

do significado de entendimento e razatildeo

Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua

eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees

hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica

da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma

insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da

criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa

tarefa criacutetica hegeliana

Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na

sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade

especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade

absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre

essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo

desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua

75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila

76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136

77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104

51

accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a

fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma

cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja

um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade

natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do

combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida

No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado

pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as

oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica

fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma

em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)

E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa

como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste

momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia

perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico

hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma

possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico

Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do

absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir

do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir

dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos

talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um

conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao

absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de

finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst

78 Ibidem p 14 trad p 88

79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90

80 Cf Ibidem p 14 trad p 88

81 Ibid p 12 trad p 86

82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87

52

spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo

postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid

p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo

finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao

fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a

todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo

absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se

consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa

totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar

que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito

A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do

entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como

expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento

arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como

uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a

maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa

da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a

formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante

a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e

mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir

novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)

Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que

natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a

realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua

condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se

83 Cf Ibid p 13 trad p 87

84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)

85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)

86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)

53

segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o

ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito

ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento

que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa

carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo

Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o

entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da

limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva

apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar

origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo

com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e

condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de

uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas

regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento

completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na

qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o

trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade

reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um

outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de

dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do

entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o

determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)

Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de

modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o

entendimento87

87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von

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Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas

caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o

complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica

por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem

I 175-7)

Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute

igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento

estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e

possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de

relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com

ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)

As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui

de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade

formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute

contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-

25)

Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa

posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da

desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade

se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da

desigualdade

Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996

55

Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que

estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo

diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B

Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do

entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra

Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A

posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto

do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A

(objeto)

ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo

que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)

O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute

diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo

podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila

Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio

Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como

absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4

p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se

manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto

O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a

contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo

admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo

tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste

no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se

articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O

que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo

posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de

um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo

pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao

infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois

56

se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as

premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo

possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)

Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no

entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo

exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e

portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela

precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo

(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo

do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo

ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que

uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser

suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die

blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do

entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute

dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos

contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem

igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a

antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem

sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute

um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor

atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele

A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do

ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi

posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz

com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que

cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se

88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)

57

sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como

escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem

Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse

domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias

surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas

Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se

realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo

seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo

entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele

compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo

Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor

und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento

anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma

atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer

como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que

resultaria numa antinomia

A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees

postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa

pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo

entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4

p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute

deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E

assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do

entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc

conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma

promessa natildeo passiacutevel de se cumprir

58

Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas

determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de

justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele

chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90

Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees

(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso

ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao

libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)

A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa

forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A

rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto

refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a

reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo

entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A

reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a

faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela

somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo

ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao

absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91

89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)

90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)

91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees

59

A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute

segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo

tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como

absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e

natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como

limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute

posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto

Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo

permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na

reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila

todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de

todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse

processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a

reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a

razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto

eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo

entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento

unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)

92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66

93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99

60

Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro

que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o

absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se

deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de

conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o

absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as

outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante

sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)

Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao

absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95

as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao

absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter

abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma

antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente

adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro

afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro

com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo

eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado

destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera

dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos

aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da

especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a

antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende

Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O

reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se

conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir

aleacutem desse lado negativo

94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)

95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir

61

O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-

aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da

reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se

contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o

racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da

contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que

preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos

opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos

portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez

realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a

intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber

Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia

pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a

identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97

No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo

entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a

ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por

meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado

das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute

96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)

97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)

98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)

62

o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside

nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos

chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo

ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)

Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees

passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de

serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao

estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica

Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo

Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute

ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude

do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite

As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas

permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A

contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave

filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica

baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem

(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100

Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo

unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em

qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da

mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)

estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos

(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos

99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36

100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)

63

uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de

entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma

identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a

antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja

suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos

(aufgehoben)103 na unidade do racional

Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em

duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen

laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em

cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila

igualrdquo104

A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a

filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas

antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti

logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao

levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem

levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada

A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada

na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova

siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW

4 p 31)105

101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)

102 Ibidem p 27 trad p 101

103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar

104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12

64

105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)

65

Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel

Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo

nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a

ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e

18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira

ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees

sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no

veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e

182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da

filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de

Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder

concluiacute-la

Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo

antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos

em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos

observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de

caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes

Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107

que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um

filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas

106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478

107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809

66

No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte

afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da

subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no

saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber

sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108

E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser

o acabamento da maneira de ver subjetivista

Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao

ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma

filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a

mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como

verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110

Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que

eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o

estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser

instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que

dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos

aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo

que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens

e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo

que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a

108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)

109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272

110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266

111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266

112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)

67

determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade

a filosofia ceacutetica

Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo

com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa

haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre

os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista

acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114

De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu

acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes

houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de

teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do

dogmatismo

Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem

positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo

chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O

113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)

114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)

115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1

68

que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista

conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo

como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a

expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por

ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E

esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se

esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem

a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico

substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa

atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa

em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no

horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute

desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia

encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de

se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117

Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos

em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto

de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de

outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo

Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que

sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de

mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais

terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118

Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao

fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram

116

Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica

117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45

118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)

69

essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma

maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim

subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119

No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica

de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que

poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma

desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse

reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee

Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que

devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a

elerdquo120

O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna

forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva

de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz

junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que

natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer

perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se

ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma

filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade

de se conseguir vencer ao ceacutetico

Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio

extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele

nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato

Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que

independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima

palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele

realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa

119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)

120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)

121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

70

ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a

seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja

favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado

Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a

filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por

que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a

criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a

ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa

estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo

do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano

incorpora-se o mesmo a ela

Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na

sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de

qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma

contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa

suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o

outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os

contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute

pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo

Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta

apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute

basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se

encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar

122 Ver cap 2

123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10

124 Cf HP I 10

71

que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as

mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato

Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute

assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir

do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se

restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa

possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma

contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal

moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo

formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele

sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a

contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126

Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava

restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas

formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro

objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o

fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em

todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128

Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos

adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que

Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica

soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela

125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776

126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)

127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120

128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)

129 Ver o cap 1

72

postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a

ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar

uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma

decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo

que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo

Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a

suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor

delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor

Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no

momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o

efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto

plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo

O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a

uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a

primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade

qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto

que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso

seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a

que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o

assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio

se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico

gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos

ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do

uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo

Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute

caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma

atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas

coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por

outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute

isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o

130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)

73

resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos

nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131

O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da

perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a

tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico

ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e

aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua

decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo

haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de

que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma

decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se

refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas

ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se

131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)

132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14

74

decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto

Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos

descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma

discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado

tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no

opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133

Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se

caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre

um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute

levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o

que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o

fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados

com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso

nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude

com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos

completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila

perante os opostos

133 Cf HP I 12

134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)

135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)

75

Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo

refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este

filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se

apresenta com valor de verdade

Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do

entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente

eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter

uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter

limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque

estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por

exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute

aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo

consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao

mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua

unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a

limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo

aqui natildeo eacute um mal a ser evitado

O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre

entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da

afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com

efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido

a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele

exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute

136 Ver o cap 2

137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91

138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87

76

possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento

natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro

domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a

contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a

agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo

entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila

Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel

quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja

dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel

filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo

ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse

ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo

determinado como o absolutordquo140

Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso

filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia

se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142

Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de

pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas

determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante

os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo

que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados

finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja

De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma

determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o

mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa

afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como

impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse

139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798

140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)

141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss

142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90

77

modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel

quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo

resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na

filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta

filosofia eacute a filosofia especulativa

Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de

pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta

esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular

proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de

predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a

forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma

unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se

pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse

absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas

que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve

ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese

de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos

opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do

entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o

mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse

contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento

dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco

do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias

143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)

144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)

145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94

146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95

78

Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria

o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana

esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de

entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo

admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se

eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo

tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra

procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o

absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses

determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva

ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto

podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma

abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo

poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam

ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado

do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute

dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal

denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo

A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo

tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo

e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia

em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa

147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss

148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94

79

Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os

tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses

chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos

antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo

Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez

tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos

empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os

tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele

que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma

forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma

consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154

Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do

dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de

elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a

intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem

imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a

mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos

animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes

149 Ver Cap 1 pp 46-48

150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778

151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss

152 Cf HP I 3135 e 36

153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss

154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779

155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)

156 Cf HP I 40-78

80

representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das

diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees

visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas

nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de

certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer

por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a

outro natildeo

Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade

daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma

falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses

dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)

Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo

todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158

Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove

como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo

da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por

meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar

extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar

que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar

abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados

modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais

distante e irrealizaacutevel

Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia

nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso

dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato

Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que

157 Cf HP I 79-91

158 Cf HP I 39

159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790

160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)

81

eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce

Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante

portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e

assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute

refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio

do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas

outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo

Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante

apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des

gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o

ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute

verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que

imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que

possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos

161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779

162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790

163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1

164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375

165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

82

tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute

nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez

tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da

perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes

aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece

serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo

possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez

tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma

rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado

uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para

ele por meio dos dez tropos

Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o

visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso

dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para

mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma

verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes

de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo

antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do

texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o

procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que

Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a

uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave

primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da

166 Cf GW 4 p 204

167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775

168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)

83

Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte

Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante

a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute

noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades

insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169

O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue

Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma

aacutervore mas antes uma casa

Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade

de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que

se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente

natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu

acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer

o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora

eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser

contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser

dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite

natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele

natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer

o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser

que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele

A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela

linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso

alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos

169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76

170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77

171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76

172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma

84

apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel

singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este

pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco

de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente

o universalrdquo174

Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo

conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo

de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a

verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do

saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo

Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os

fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber

imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido

concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido

dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados

agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder

afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de

verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67

173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68

174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82

175 Cf HP I 19-20

85

pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no

ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que

aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto

estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa

ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos

impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de

verdade

O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de

um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que

vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico

tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o

faz de uma outra perspectiva

Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja

obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos

portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa

discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo

podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir

entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano

ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir

dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na

dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute

visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal

Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para

Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a

respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele

continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que

acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de

verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo

teacutetico concernente a esse aparecer

176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo

86

Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo

dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica

impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos

referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo

dogmaacutetico

O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de

compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do

ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma

incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o

exemplo mais gritante da mesma

Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do

ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de

solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a

criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco

vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica

presente na certeza sensiacutevel

De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos

tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas

nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do

ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do

ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica

observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos

refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e

completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo

177 Cf HP I 36

178 Cf HP I 164

179 Cf HP I 177

87

de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo

que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os

dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos

de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a

ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez

tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia

forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva

ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio

julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros

Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez

tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da

relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem

reduzidos

Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo

esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo

antigo

Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de

Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o

alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de

Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado

tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior

imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente

180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica

88

diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as

formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181

O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos

mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um

dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura

nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o

da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de

uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de

que se trata

Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater

natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E

por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de

filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)

Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute

na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a

aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou

proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com

que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico

Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o

primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185

Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter

determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais

181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790

182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)

183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2

184 Cf HP I 12

185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2

89

contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes

elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de

entendimento187

Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do

entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em

uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se

simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o

negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de

acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo

arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal

princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro

princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da

mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por

diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma

regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)

Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a

falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as

oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia

(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo

favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de

acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja

e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa

proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era

enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo

186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799

187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799

188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799

189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2

190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo

90

Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por

essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado

encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo

entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica

ceacutetica

A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais

do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie

de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia

Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se

retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash

como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade

que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta

dogmaticamente

Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude

filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela

qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado

dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua

levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados

pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada

para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193

191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800

192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o

91

O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada

quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo

qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado

por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa

coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma

preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno

O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal

que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento

loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196

Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do

que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num

argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas

ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado

Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que

eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua

conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54

194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800

195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)

92

proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que

eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria

excluiacutedo da investigaccedilatildeo

Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel

referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele

modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197

O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte

na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que

saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus

possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a

coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica

implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a

linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo

algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do

que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que

num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das

palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis

Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o

caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas

descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua

unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo

dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa

amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila

da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua

proacutepria operaccedilatildeo

197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800

198 Cf HP III 4

199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades

200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800

93

No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo

um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos

diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas

Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as

determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o

seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel

critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie

uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves

determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer

dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas

Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do

relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo

ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo

(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o

um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser

espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a

negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa

negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em

si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203

Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se

determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento

201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)

94

que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute

o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo

eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo

A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou

como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que

natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da

dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento

natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se

determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute

uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que

ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre

ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como

jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender

porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na

liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do

ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico

especulativordquo205

Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele

natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o

204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37

205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776

95

espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave

suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada

Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a

limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a

ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa

contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem

no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se

dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma

nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em

face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207

O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se

empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute

conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente

falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo

que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da

contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada

ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai

daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada

mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209

206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761

207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als

Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761

208 Ibidem p 360 trad cit p 761

209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo

96

O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo

unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos

iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se

determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da

Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de

criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se

desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o

quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica

Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de

Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo

como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como

seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia

especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute

contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em

sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213

Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar

de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana

Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da

alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si

210 Cf E sect86 e ss

211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34

212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243

213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776

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mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer

um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de

dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada

sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que

por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute

igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que

no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia

dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja

necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que

transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto

diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que

ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento

Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um

outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo

jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que

nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio

dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com

as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa

sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo

214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803

215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761

217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo

218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo

98

como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa

sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219

Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste

domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O

que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se

contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado

natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente

negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si

mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela

mesmardquo220

Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa

do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua

unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega

Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que

por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste

estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que

algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade

que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se

contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade

A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da

mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser

219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802

220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo

221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798

222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4

223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)

99

contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A

natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225

A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente

(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do

ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude

filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz

assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento

224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5

225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761

101

II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa

Natildeo eacute muito bom para a filosofia

ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo

apenas poder dizer isto eacute ou isto

natildeo eacute

Hegel226

Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees

de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto

limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de

eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que

comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua

concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos

importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o

entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia

natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229

226

Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974

227 GW 11 pp258-290

228 A ser tratado no capiacutetulo 5

229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216

102

A identidade

Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do

entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino

quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa

Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de

proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do

pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e

indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11

p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem

como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma

negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230

Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual

apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto

eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras

categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual

se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma

quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e

determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados

(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel

chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute

aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233

E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que

fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam

tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias

230 GW 11 p 258 trad p 34

231 Cf Ibidem p 259 trad p 34

232 Cf Ibidem p 259 trad p 34

233 Ibidem p 259 trad p 34

103

A resposta de Hegel eacute a seguinte

Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a

negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como

determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra

Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo

aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a

mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234

Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute

Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria

estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das

determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de

proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas

Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a

influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em

decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel

apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais

proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este

pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual

valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de

identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias

234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)

235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1

236 Cf HP I 12

104

Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de

acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas

que por direito a elas se relacionam

Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees

reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de

reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser

contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich

gegenseitig auf)238

Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de

identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais

proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo

A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um

exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse

princiacutepio enquanto tal

Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade

implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261

trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente

a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute

expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que

agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo

eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute

aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele

nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma

reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas

uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240

237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)

238 Ibidem p 260 trad p 36

239 Cf Ibidem p 260 trad p 36

240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38

105

Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta

que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um

diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso

dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua

natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241

A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone

o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui

de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica

Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento

que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre

mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale

insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata

estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a

contradiz

Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja

interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele

natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar

nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)

Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma

planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de

maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer

com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa

declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente

ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do

que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado

essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma

conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito

da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio

do que era esperado a saber nada

241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)

106

Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash

A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena

apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas

um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p

264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em

seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele

movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se

sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas

afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a

diferenccedilardquo243

Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de

contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que

havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente

se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que

aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa

como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244

Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de

identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais

princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e

como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute

que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve

expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei

do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm

242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43

243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228

244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)

107

mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245

Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de

natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender

apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta

identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato

desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute

ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246

A diferenccedila

Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um

duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si

Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de

diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por

si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248

Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro

ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas

apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma

diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os

diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo

O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no

acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o

245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)

246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)

247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45

248 Ibidem p 266 trad p 44

108

simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um

ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta

Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a

si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a

identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da

diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas

relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se

possa ter o todo da diferenccedila

Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois

momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser

uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel

chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada

um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem

distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro

A diversidade

Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois

momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de

serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma

diversidade (Verschiedenheit)

Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma

quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A

identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi

dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma

sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a

249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache

Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)

250 Ibidem p 266 trad p 44

109

identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do

diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o

idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da

identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca

Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo

assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute

relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo

que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um

em face do outro252

Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel

apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto

algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa

diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253

Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade

(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e

diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute

apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade

Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que

Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade

oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta

de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o

251 Ibidem p 267 trad p 45

252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)

253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)

254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila

110

ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a

identidade

De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente

exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada

uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores

isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo

satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do

Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal

constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa

determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade

assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse

ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo

da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela

mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua

determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel

afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de

que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo

unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a

determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao

mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque

negam a sua oposta e natildeo de modo exterior

Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas

qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente

positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente

positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute

uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a

negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente

positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute

255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)

256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186

257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187

258 GW 11 p 268 trad p 46

111

abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-

de-consistecircnciardquo259

Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro

de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo

denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em

si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute

ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo

exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo

sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261

E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo

como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O

estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que

se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a

identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como

igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)

Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa

Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262

Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo

que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que

temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da

diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca

entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de

afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave

destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que

259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan

denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)

260 GW 11 p 268 trad p 47

261 Ibidem p 268 trad p 47

262 Ibidem p 268 trad p 47

112

haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que

rege o entendimento eacute isto o que ocorre264

Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa

diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo

consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave

desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato

eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim

como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide

fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da

desigualdade mesma tal como resultourdquo265

263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente

264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento

265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt

den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]

113

Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa

identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um

diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar

refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se

determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de

si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele

mesmo o igualrdquo266

Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados

mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267

A oposiccedilatildeo

Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa

oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte

Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268

Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos

precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no

relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre

identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da

diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era

como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade

em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava

acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo

exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O

266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)

267 Ibidem p 270 trad p 50

268 Ibidem p 272 trad p 53

269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108

114

tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou

poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos

Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo

estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem

A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute

seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a

Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua

completude

Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e

diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora

como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo

Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute

apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel

chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como

ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo

exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-

posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada

momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece

no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-

de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa

diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como

apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da

desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada

O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a

determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro

270 GW 11 p 272 trad p 53

271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175

272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo

115

ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua

carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-

determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo

natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a

carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto

o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido

nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o

comeccedilordquo273

Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto

refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade

como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa

unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de

modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e

diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois

momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em

si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade

que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo

que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-

posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute

refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo

273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)

274 Cf GW 11 p 272 trad p 53

275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)

276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)

116

como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o

positivo)277

Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se

tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que

fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-

ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem

ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e

negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem

relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279

Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o

positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir

retomamos280

Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica

reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto

seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas

exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os

opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum

natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em

relaccedilatildeo ao outrordquo281

277 Cf Ibidem p 273 trad p 54

278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar

Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90

279 Cf GW 11 p 273 trad p 54

280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56

281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)

117

Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o

outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a

determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa

indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que

consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma

indiferenccedila dos opostos

Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com

seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das

determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal

espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o

negativordquo282

De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em

geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente

numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em

nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas

um outro em geral

Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo

azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem

conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como

seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284

Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da

indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se

282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)

283 Ibidem p 273 trad p 55

284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)

118

faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute

negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se

estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286

Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a

todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo

estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem

entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287

Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo

quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas

positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o

que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro

enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une

natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288

285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275

286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234

287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235

288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das

119

Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e

justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo

agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica

Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute

ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O

trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele

tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se

determina o positivo ou o negativo289

A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou

ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo

indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291

Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235

289 GW 11 p 276 trad p 58

290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234

291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo

Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)

Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se

120

Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados

apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um

se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada

um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua

relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o

positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e

negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um

puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto

Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como

tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si

contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo

Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo

Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)

Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida

292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)

121

A contradiccedilatildeo

Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro

Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam

cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse

relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro

Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a

oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse

conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute

exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees

reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo

reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela

de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo

conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e

assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo

relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295

Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela

se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que

eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua

autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)

realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro

que excluo de mim e assim me suspendo296

Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o

positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz

negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o

inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo

293 Ibidem p 279 trad p 62

294 Ibidem p 279 trad p 62

295 Ibidem p 279 trad p 62

296 Ibidem p 279 trad p 62

297 Cf Ibidem p 280 trad p 63

122

se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu

outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de

ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo

O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do

determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade

O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e

simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles

mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299

Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado

meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado

(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301

Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como

se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto

298 Cf Ibidem p 280 trad p 63

299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64

300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185

301 GW 11 p 281 trad p 64

123

cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da

oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o

contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina

de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee

como momento distinto do outro302

A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro

reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um

como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten

sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o

negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304

Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se

potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo

ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto

primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente

aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e

suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o

suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de

um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia

eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si

mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305

302 Ibidem p 281 trad p 64

303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65

304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)

305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)

124

Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e

simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam

mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se

aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e

assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu

fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a

suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que

significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de

fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se

(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das

determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada

contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307

O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo

autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua

suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)

eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309

Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a

autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)

306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66

307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)

308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo

309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)

125

no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que

fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no

fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo

das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa

relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode

ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se

relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada

ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma

resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no

fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo

negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si

ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento

somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo

mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e

se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se

consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute

antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314

310 Ibidem p 282 trad p 67

311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)

312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230

313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)

314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)

126

De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo

deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que

algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315

Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo

deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade

negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o

jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva

O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma

sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica

claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um

nada vazio vale ser lembrado

Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se

furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre

pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em

uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue

reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo

discurso dogmaacutetico

Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura

sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de

Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com

um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse

algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto

determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma

determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter

finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo

relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva

devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir

eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um

absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse

315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)

127

considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si

mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser

evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia

Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se

constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a

contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto

horror causam no pensamento natildeo-especulativo

316 Ibidem p 290 trad p 77

128

O finito e o infinito

Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a

categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317

Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318

Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro

(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da

qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo

pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute

estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa

limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se

compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo

limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto

em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite

O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por

consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas

o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer

como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo

perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu

fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai

aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam

317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss

318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186

319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166

320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)

129

negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser

(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321

Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse

outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo

entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o

finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo

seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo

finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito

surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse

processo322

ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-

aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a

negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito

pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao

seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se

deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda

conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323

De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O

finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito

que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a

321 Ibidem p 116 trad p 166

322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189

323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)

130

conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa

sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito

Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de

seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado

natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja

outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem

Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente

pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o

efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas

exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo

que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve

positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e

abstrato

Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da

contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele

com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a

si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326

324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167

325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)

326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a

131

Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo

O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral

Hegel327

Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia

mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito

absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa

do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente

por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no

contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos

mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo

meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave

investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia

especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser

aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa

forma filosoacutefica

Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que

poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que

o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas

mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo

Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico

da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui

resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190

327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13

132

retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do

meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de

continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que

Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que

segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer

imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse

mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica

mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos

remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o

capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que

dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica

Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a

partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito

Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira

parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia

respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do

Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o

conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada

e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da

mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala

em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito

eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a

328 Cf GW 12 pp 236-253

329 Cf HP I 170-172

330 Cf HP I 173-174

133

verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o

conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331

A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro

momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos

dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute

um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia

Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o

conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o

fundamento somente venha a aparecer ao final

Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma

ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio

e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um

argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos

vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa

estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos

Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo

perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da

Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave

dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo

imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que

Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma

331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249

332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)

134

pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e

assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada

arbitraacuteria

Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da

Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se

vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333

apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento

necessita ter-se feito como fundamento334

O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como

fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute

justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse

meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica

mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser

justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide

no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-

filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e

raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o

mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335

Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que

jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra

afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo

notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do

333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado

334 Cf GW 12 p 11 trad p 249

335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)

135

exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a

todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336

A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a

filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico

que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz

Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser

natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo

portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a

condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto

Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e

que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor

um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute

completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e

nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e

externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver

Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser

criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma

determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de

um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente

um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado

e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica

Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto

Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se

derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos

filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada

pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro

336 Cf HP I 12

337 Cf GW 12 p 22 tr p263

338 Cf GW 21 59 tr p 94

339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa

136

ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao

mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa

unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a

autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia

especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao

mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do

entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica

Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da

Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da

fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque

na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico

de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser

e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse

com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel

ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a

condensar-se na unidade do conceitordquo341

O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso

da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a

ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de

justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o

sistema do loacutegico342

mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94

340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94

341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)

342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367

137

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a

exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora

tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de

compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que

almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo

De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais

precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo

consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute

vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no

decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico

objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume

no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda

que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se

determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma

Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e

simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo

como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se

relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem

diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se

na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu

conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do

processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do

343 Cf GW 12 p 237 trad p 561

344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366

345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)

346 Cf Ibidem p 237 trad p 561

138

conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na

mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como

determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia

absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que

impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute

como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma

exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida

justamente que existerdquo349

Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua

entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do

meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que

natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu

conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de

determinaccedilatildeo dessa forma

Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido

como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem

maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo

determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais

que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados

conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o

absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do

conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351

347 Cf Ibidem p 237 trad p 560

348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562

349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)

350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)

351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)

139

Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder

um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito

e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da

Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim

ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o

conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo

seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a

atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352

Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do

conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e

na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender

porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que

poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito

Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos

universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou

diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua

determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse

processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio

conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355

Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse

sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo

352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)

353 Ibidem p 44 trad p 294

354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292

355 GW 12 p 25 trad p 267

140

A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa

diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo

da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta

identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de

universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o

que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal

pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade

absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo

Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos

constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim

o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se

particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua

vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual

surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal

superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute

relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de

si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do

conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que

adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361

356 Ibidem p 33 trad p 279

357 Ibidem p 33 trad p 279

358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283

359 Ibidem p 35 trad p 281

360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297

361 GW 12 p 38 trad p 285

141

A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si

mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito

esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na

realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de

sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse

modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja

nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva

penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito

O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia

ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do

proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo

Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo

elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra

parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366

E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe

agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia

O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que

a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do

conceito como ideacuteia

362 Ibidem p 51 trad p 303

363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada

364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)

365 Ibidem p 36 trad p 283

366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)

142

O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si

e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que

o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que

ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do

conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367

A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um

objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade

eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito

torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa

negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a

ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente

se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade

e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar

perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido

vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo

dialeacutetico imanente

O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do

conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da

ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples

conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se

separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente

essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A

identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369

367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)

368 GW 12 p 176 trad p 475-476

369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects

143

A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-

se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do

conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira

perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de

sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo

pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370

Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise

daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se

realiza

Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo

Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e

suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo

As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o

que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo

A universalidade

Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que

compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito

como ideacuteia absoluta

No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um

imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade

abstratardquo372

zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)

370 Ibidem p 238 trad p 562

144

Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja

arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo

implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado

e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para

com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico

Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou

inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa

relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo

absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um

comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica

quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um

imediato

O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse

seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel

que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no

entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e

o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra

nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o

imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o

comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma

sem nenhum conteuacutedordquo374

Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada

possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo

o significado do ser376

371 Cf Ibidem p 239 trad p 563

372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)

373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137

374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo

375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101

145

Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem

considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e

ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do

puro ser

Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do

fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na

Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o

imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria

segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente

e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e

essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o

percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o

fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato

que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao

mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel

faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser

Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele

eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a

nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo

absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte

como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo

preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378

O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche

os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a

contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito

loacutegico

376 Cf GW 12 p 239 trad p 564

377 Ver a respeito pp 132-137

378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)

146

E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si

mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de

toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se

relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta

de determinaccedilatildeo

Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de

realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e

a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380

Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente

indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o

conceito se realiza

Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude

dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente

que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se

conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381

Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do

seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por

sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que

tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se

apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma

que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o

universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser

379 Cf GW 12 p 239 trad p 564

380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)

381 Cf Ibidem p 240 trad p 565

382 Ver a respeito pp 139-141

383 Cf GW 12 p 24 trad p 267

384 Cf Ibidem p 240 trad p 565

385 Cf Ibidem p 239 trad p 564

147

como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute

somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se

torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio

natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que

somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo

com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o

meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387

De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do

processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O

iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o

conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente

singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389

Do universal para o particular

Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o

universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado

relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega

esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro

no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo

ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo

386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)

387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)

388 GW 12 p 241 trad p 566

389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)

390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)

391 Ibidem p 245 trad p 571

148

subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o

nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por

exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado

para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto

dessa determinaccedilatildeo do universal como particular

Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada

ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos

mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular

Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos

aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel

indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido

Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento

(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda

determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior

como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com

seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute

num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si

natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo

entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute

o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse

392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51

393 Cf GW 12 p 245 trad p 572

394 Cf Ibidem p 245 trad p 572

395 Cf Ibidem p 245 trad p 572

149

relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si

proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396

Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada

pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem

notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta

Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no

conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico

presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)

conteacutem em si nele estaacute postardquo397

Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico

consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a

unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a

suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo

da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si

mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela

negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal

soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente

concreto

Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a

primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao

momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo

do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo

o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda

396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88

397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)

398 Cf Ibidem p 246 trad p 572

399 Cf Ibidem p 246 trad p 573

400 Cf Ibidem p 49 trad p 300

401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573

150

como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas

denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro

o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo

Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu

universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele

(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu

objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele

proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403

Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo

estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse

mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute

absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu

proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a

esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual

a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao

caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode

significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou

melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo

de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que

eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se

(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global

Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a

si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio

determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute

constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva

402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)

403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)

404 Cf Ibidem p 16 trad p 255

151

atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no

movimento da dupla negaccedilatildeo

O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua

das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse

movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si

mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do

processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque

1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da

universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da

singularidade

Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma

ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com

o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma

relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel

dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste

justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407

Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo

consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como

singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa

premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse

apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica

405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259

406 Cf GW 12 p 246 trad p 574

407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572

408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113

152

a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo

de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito

aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute

particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato

contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como

suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade

A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo

imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da

diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o

ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade

absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410

A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao

imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal

imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se

determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a

negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro

409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574

410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575

153

apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de

um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411

O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema

Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca

entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez

ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a

principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico

inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que

permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico

Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que

chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se

condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir

desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa

determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na

forma de um sistema413

Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao

seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do

meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa

determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um

determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e

deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de

pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se

411 Ibidem p 247 trad p 574

412 Ibidem p 248 trad p 576

413 Ibidem p 248 trad p 576

414 Ibidem p 249 trad p 577

154

contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de

uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415

Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim

possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da

filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em

relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa

de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta

acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que

aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso

infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o

conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416

O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do

comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se

na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A

determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se

por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o

que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo

Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o

meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um

determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a

mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto

E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma

coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta

da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira

indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal

somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele

Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e

415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578

416 Ibidem p 249 trad pp 577-578

417 Ver a respeito pp 143-147

418 Cf GW 12 p 250 trad p 579

155

dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade

que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela

convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente

justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo

em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo

dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior

ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua

particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente

a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu

progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e

se condensa dentro de sirdquo420

Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao

fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos

novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do

comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da

determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo

tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E

419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)

420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)

421 Cf Ibidem p 251 trad p 580

422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist

156

contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para

aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto

Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa

via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o

universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e

no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que

tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein

gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro

que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar

Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto

a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso

Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo

esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar

adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse

processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao

meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf

GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio

dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem

criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e

seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta

pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute

dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse

procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos

Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2

423 Ibidem p 252 trad p 581

424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)

425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299

157

opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta

que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o

comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o

processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber

alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427

Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do

meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da

integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia

especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia

negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido

seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado

na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente

examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento

absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente

por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do

ceticismo stricto sensu

No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma

afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e

conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas

426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)

427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)

428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82

429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)

158

configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse

reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como

forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no

meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs

aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de

autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam

naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do

entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou

positivamente-racional433

O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e

limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado

pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que

atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo

entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as

limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua

oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das

mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que

conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung

Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a

modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado

continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional

do meacutetodo437

430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560

431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169

432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159

433 Ibidem p 118 trad p 159

434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156

435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)

436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70

437 Cf Ibidem p 70

159

Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute

justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento

agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem

era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse

novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que

seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas

determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio

dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma

vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese

de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato

cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os

advogados da duacutevida terminem por concordar com ele

161

CONCLUSAtildeO

Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel

procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-

investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia

Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o

iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito

sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo

Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a

preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a

elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe

apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o

ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por

Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma

exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o

ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades

pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um

discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila

Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute

fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente

em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica

para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto

porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia

O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no

domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse

domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do

entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das

determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas

com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se

162

chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como

avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo

Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o

procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de

seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as

oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se

termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a

negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de

conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica

antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo

ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo

e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do

procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia

163

OBRAS DE HEGEL

HEGEL G W F Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie

In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix

Meiner 1968 Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992

Gesammelte Werke vol 20

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede

Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner

Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer

Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817

Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften

und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein

(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen

(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978

164

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die

Lehre vom Begriff (1816) Gesammelte Werke vol 12 Hamburg Meiner 1981

Traduccedilotildees

HEGEL G W F Ciencia de la Logica (I e II ) trad de Augusta e Rodolfo Mondolfo

Ciencia de la Loacutegica Buenos Aires Ediciones Solar 1993

______________ Diffeacuterence des systegravemes philosophiques de Fichte et de Schelling traduccedilatildeo

de Marcel Meacutery In Premiegraveres Publications 2ordf ed Paris Ophrys-Gap 1964

______________ Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas em compecircndio (1830) I ndash A Ciecircncia

da Loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Henrique C de Lima Vaz coleccedilatildeo Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1974

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Paulo Meneses Petroacutepolis Vozes 2a

ed 1992

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um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp

Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003

VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der

Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches

Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002

___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des

Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels

Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974

Page 2: CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL€¦ · CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia

2

FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Por Sandra Ferreira Moreira CRB nordm 085124

Tiacutetulo em inglecircs Skepticism and speculative dialectic in Hegelrsquos philosophy

Palavras chaves em inglecircs (keywords)

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Filosofia Titulaccedilatildeo Doutorado Banca examinadora

Data da defesa 04122009 Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Hegel Georg Wilhelm Friedrich 1770-1831 Dialectic Skepticism Sextus Empiricus Idealism German Criticism Philosophy German Knowledge Theory of

Roberto Bolzani Filho Eduardo Brandatildeo Joseacute Eduardo Marques Baioni Hans Christian Klotz

Martin Luiz Fernando Barreacutere M364c Ceticismo e dialeacutetica especulativa na filosofia de Hegel Luiz

Fernando Barreacutere Martin - - Campinas SP [s n] 2009 Orientador Marcos Lutz Muumlller Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas

1 Hegel Georg Wilhelm Friedrich 1770-1831 2 Dialeacutetica 3 Ceticismo 4 Sexto Empiacuterico 5 Idealismo alematildeo 6 Criacutetica 7 Filosofia alematilde 8 Teoria do conhecimento I Muumlller Marcos Lutz II Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo

5

RESUMO

Trata-se inicialmente de neste trabalho analisar a leitura hegeliana da filosofia ceacutetica

especificamente o ceticismo pirrocircnico Dessa maneira seraacute possiacutevel comeccedilar a avaliar em

que medida o ceticismo eacute importante para a filosofia de Hegel em geral e em particular para

a constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico especulativo Percorreremos textos de vaacuterias fases da

filosofia de Hegel no qual o ceticismo ou eacute tema central ou aparece dentro de um contexto

que tambeacutem nos interessa a saber a discussatildeo acerca do meacutetodo No que respeita a este

uacuteltimo objeto da segunda parte da tese examinaremos na Ciecircncia da Loacutegica os momentos

onde podemos observar de modo privilegiado a constituiccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico hegeliano a

saber a seccedilatildeo dedicada na Doutrina da Essecircncia agraves determinaccedilotildees de reflexatildeo e a seccedilatildeo

intitulada Ideacuteia Absoluta uacuteltimo capiacutetulo do livro A partir desse estudo da Ciecircncia da

Loacutegica poderemos entatildeo julgar com maior exatidatildeo no que o meacutetodo filosoacutefico hegeliano eacute

devedor da filosofia ceacutetica isto eacute como esse meacutetodo eacute formulado de modo que o ceticismo

seja integrado a ele A ideacuteia central eacute mostrar que natildeo haacute da parte de Hegel uma simples

refutaccedilatildeo do ceticismo mas antes que o ceticismo eacute a filosofia incontornaacutevel da qual se

deve partir para que a filosofia natildeo caia viacutetima das aporias ceacuteticas Essa eacute a via que Hegel

encontra para natildeo se tornar ceacutetico pirrocircnico e ao mesmo tempo natildeo ser alvo da criacutetica ceacutetica

7

ABSTRACT

First it means to analyse Hegelrsquos reading of the skeptical philosophy specifically

pyrrhonian skepticism Thus it will be possible to assess to what extent the skepticism is

important to Hegelrsquos philosophy in general and in particular for the formation of his

speculative dialectical method We will cover texts from many phases of Hegelrsquos philosophy

in which skepticism is focus or appears within a context that also interests us namely the

discussion of the method Regarding this last one subject of the second part of the thesis we

examine in Science of Logic the moments where we can observe in a special way the

formation of hegelian dialectical method the section in Doctrine of Essence that is dedicated

to the determinations of reflection and the section entitled Absolute Idea the last chapter of

the book From this study of Science of Logic we can judge more accurately what the

Hegelian philosophical method is liable to the skeptical philosophy which means how this

method is formulated in a way that skepticism is a part of it The main idea is to show that

Hegel does not try a simple refutation of skepticism more than this he shows that skepticism

is the philosophy unavoiable which preserves the philosophy from fall victim of skepticals

aporias This is the way that Hegel finds to not become skeptical pyrrhonian and also the

subject of skeptical criticism

9

Para a Luciana

11

Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos

pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel

Hegel

A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia

de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades

Hegel

13

AGRADECIMENTOS

Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver

intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de

pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua

amizade

Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no

meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste

trabalho

Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou

da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade

Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo

deste trabalho

Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu

pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e

tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden

Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien

Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt

Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane

Agrave minha famiacutelia

Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha

Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante

em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo

A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-

UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa

15

SUMAacuteRIO

LISTA DE ABREVIATURAS p 17

INTRODUCcedilAtildeO p 19

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49

Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65

II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101

Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131

CONCLUSAtildeO p 161

BIBLIOGRAFIA p 163

17

LISTA DE ABREVIATURAS

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische

Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em

diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968

Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980

Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre

vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978

Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom

Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981

Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W

Bosiepen e H -C Lucas 1992

Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre

vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984

Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M

Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993

Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp

1986

Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp

2003

19

Introduccedilatildeo

Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o

filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1

Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave

filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar

que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3

O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para

Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia

hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira

1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)

2 Cf GW 4 pp 197-238

3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007

4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

20

filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O

diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de

sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra

No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo

nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho

explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans

Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o

tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do

conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente

escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por

uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa

filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6

De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo

antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de

constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a

filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como

algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo

pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo

natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega

em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)

A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que

Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos

dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira

de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se

tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que

novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar

atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que

5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado

6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana

21

comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa

postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se

fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave

mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na

assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo

Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao

dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de

Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma

vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras

seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no

cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em

responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa

Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria

por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e

dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi

atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la

A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse

dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta

outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado

nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico

poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De

fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em

ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta

representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o

ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da

filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o

fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se

esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente

avaliara no ceticismo 7

7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da

22

Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser

formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo

acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que

almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo

Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico

como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos

limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este

trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do

ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz

(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que

comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do

pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu

sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos

quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo

desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e

anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o

ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana

e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos

observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de

negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que

mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute

isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que

impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo

Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo

hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de

reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados

obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo

tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente

assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a

linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo

23

filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-

lo reformulado a si proacutepria

Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de

acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o

ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o

lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do

ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas

aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente

natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica

25

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico

Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato

dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas

E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar

por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos

por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma

filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas

por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O

que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema

filosoacutefico exposto8

Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com

verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema

qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de

qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua

filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende

dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser

essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por

filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia

Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui

doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no

nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis

Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos

referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por

8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]

26

Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de

ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9

Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o

ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo

doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o

tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o

que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo

filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o

ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma

menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso

Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante

Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a

filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele

Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de

Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo

natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples

tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de

relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute

nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo

Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma

breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto

Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa

filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver

9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss

27

rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se

incorpora agrave filosofia hegeliana

Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela

descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute

declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas

Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo

com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em

virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros

declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a

investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum

resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram

capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma

suposta verdade filosoacutefica

Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como

resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade

inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se

dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica

Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o

ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que

ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a

investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum

resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o

uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros

filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa

10 A esse respeito veja-se HP I 1-4

28

investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com

frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente

Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa

que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz

Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece

a noacutes no momentordquo11

Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o

afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo

mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da

filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a

impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da

filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato

concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da

descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar

de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro

Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se

inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com

receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e

sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro

momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo

e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo

mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de

se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria

Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a

esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma

questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a

possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se

trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou

negativamente ndash naquilo que investiga

11 Cf HP I 4

12 Cf HP I 12

29

Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que

encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do

que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se

distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade

a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade

ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do

mesmo fim a saber a ataraxiacutea

Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute

inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se

eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte

Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo

que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se

tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)

anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em

detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se

mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um

objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas

satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante

E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se

encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do

que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico

terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou

falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se

portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14

A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim

chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre

as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na

opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que

13 Cf HP I 12

14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5

30

acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto

(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16

Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira

dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude

deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute

suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado

de intelecto suspensivordquo17

Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do

conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se

diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de

qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho

e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas

Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista

do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia

(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-

credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender

o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)

Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da

tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de

argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica

A agogeacute ceacutetica

A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o

ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas

15 Cf HP I 7 10 26 165

16 Cf HP I 10

17 Cf HP I 8

31

as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)

assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida

a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18

Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da

filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto

apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de

igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19

Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal

atitude (agogeacute) um tal modo de proceder

Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a

adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o

ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc

diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele

com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira

podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de

caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito

A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe

contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da

igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute

declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real

verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do

verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute

o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a

atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito

nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica

Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a

temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz

18 Cf HP I 8

19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8

20 Cf HP I 8

32

entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue

um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a

fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que

Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um

argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na

contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de

que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O

que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao

contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos

conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao

outro quanto a ser mais digno de creacutedito23

Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes

entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave

maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito

nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o

ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso

cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido

como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves

afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe

parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele

sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo

exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando

21 Cf HP I 9

22 Cf HP I 33

23 Cf HP I 10

24 Cf HP I 12

25 Cf HP I 13

33

De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por

fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de

dogmatizarrdquo

Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo

expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance

de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o

ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das

coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo

restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o

caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute

mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem

em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente

ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27

Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo

dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de

controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas

exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada

espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas

Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do

ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas

maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a

fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante

26 Cf HP I 13

27 Cf HP I 13

28 Cf HP I 182

29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo

34

Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece

indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a

quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma

amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31

Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica

foi alvo de muita incompreensatildeo

A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar

dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem

ceacutetica

Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees

natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do

ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se

expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem

ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma

A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de

instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as

30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37

31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica

32 Cf HP I 4

35

coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam

a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um

caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se

expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira

dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar

que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico

Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em

nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de

expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu

discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele

sempre evitar dogmatizar

Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver

nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar

Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das

coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer

dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que

natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese

filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo

dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos

ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece

Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-

evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de

foacutermulas que expressam essa incapacidade

33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo

34 Cf HP I 14

35 Cf HP I 203

36

Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo

absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de

que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se

de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas

ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas

satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas

Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo

existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa

ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos

dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a

respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37

Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas

quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-

evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame

finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais

conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade

ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras

foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter

natildeo-dogmaacutetico das mesmas

Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas

foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se

no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser

de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a

respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude

filosoacutefica

A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para

esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas

36 Ver a respeito HP I 187-209

37 Cf HP I 198

38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198

37

ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes

natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente

verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se

ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas

purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com

os humores se expelemrdquo40

Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas

expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no

qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu

juiacutezo

Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico

estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter

absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma

atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo

dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea

O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem

apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma

de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo

A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir

antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento

que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro

visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a

isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo

Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a

concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o

39 Cf HP I 14-15 206

40 Cf HP I 206

38

conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas

teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no

uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa

instrumentalidade dos argumentos utilizados

ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma

escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua

lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no

mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42

Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio

entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado

decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a

serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo

poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses

adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de

que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a

persuasividade desses argumentos eacute aparente43

41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159

42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2

43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)

39

Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os

argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos

ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios

juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44

Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente

do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do

verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra

tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que

determinada tese dogmaacutetica seja posta

Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo

possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas

satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele

mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim

como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o

compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana

ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras

(expressotildees)rdquo46

E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-

dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico

A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas

ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees

quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai

desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico

passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-

44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)

45 Cf HP I 207

46 Ibidem I 207

40

dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio

segundo o qual ele se conduz

Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das

forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado

que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A

respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-

filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo

Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de

vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico

quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a

aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na

incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra

reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes

um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso

pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a

paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral

Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa

decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum

criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de

outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos

qualquer forma de decisatildeo

De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e

que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando

decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser

inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica

A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o

ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da

41

falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo

como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente

doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia

quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como

proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute

verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente

natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade

das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo

Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui

caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de

criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos

elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos

pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a

essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem

significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como

obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou

daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico

em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de

se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo

Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido

como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de

qualquer coisardquo48

Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute

como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe

permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da

vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49

Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age

de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie

47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79

48 Cf HP I 21

49 Cf HP I 21

42

de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe

aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute

constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se

ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I

13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As

decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele

por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que

lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio

aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa

direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel

(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do

fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer

asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio

da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo

A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se

refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as

aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem

estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo

as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos

discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou

menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra

eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave

suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar

Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute

supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do

discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar

ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν

παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os

fenocircmenosrdquo52

50 Cf HP I 22

51 Cf HP I 19

52 Cf HP I 19-20

43

Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo

se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno

inquestionaacutevel

Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira

afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do

ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia

minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse

aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente

natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo

isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse

caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto

a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente

de minha vontade

Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu

agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende

dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53

O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento

que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e

determina seu agir54

Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda

acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de

pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais

aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o

domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual

poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem

ser observadas no domiacutenio sensiacutevel

53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)

54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo

44

O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e

que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem

de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou

epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir

apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele

sem opinar (adoxaacutestos)55

Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas

afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56

Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-

se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em

princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas

accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele

viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que

ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa

se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo

elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua

realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer

algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que

aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade

O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer

de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque

estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa

afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da

mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas

aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute

aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva

dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia

pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente

coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada

que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal

55 Cf HP I 23

56 Cf HP I 23

45

comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que

hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente

Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura

agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com

respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a

coisas inevitaacuteveis57

Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por

essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo

conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar

contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre

argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a

tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58

Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que

o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos

entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa

haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato

natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o

sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude

dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa

em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo

Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se

propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como

ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver

de acordo com dogmas

57 Cf HP I 25

58 Cf Ibidem I 26

59 Cf Ibidem I 27

60 Cf Ibidem I 29

46

Os tropos ceacuteticos

Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico

consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo

seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse

modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por

diante62

Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e

assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63

Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os

homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas

circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo

nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou

raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees

dogmaacuteticas

Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de

todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos

apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao

qual todos os outros nove podem se referir64

Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que

se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia

controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na

61 Ver a respeito pp 30-32

62 Cf HP I 31

63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259

64 Cf HP I 39

47

hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os

tropos de Agripa65

Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel

de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas

comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de

opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave

suspensatildeo do juiacutezo66

Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova

prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E

essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma

regressatildeo que natildeo tem fim67

O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente

numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que

o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo

relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista

natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo68

O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma

demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou

essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma

demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo

haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69

65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303

66 Cf HP I 165

67 Cf HP I 166

68 Cf Ibidem I 167

69 Cf Ibidem I 168

48

Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute

objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo

acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70

Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a

filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a

filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto

diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que

empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma

possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo

da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana

do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia

70 Cf Ibidem I 169

71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica

49

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel

No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros

objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo

nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga

medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico

das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de

uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel

a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo

teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo

Teremos o quecirc entatildeo

No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel

para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute

um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento

de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o

que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo

mais minuciosa do significado desses termos

Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema

filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele

72 GW 4 pp 197-238

73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2

74 GW 4 pp 5-92

50

que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que

nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na

filosofia75

Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias

formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado

do significado de entendimento e razatildeo

Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua

eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees

hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica

da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma

insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da

criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa

tarefa criacutetica hegeliana

Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na

sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade

especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade

absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre

essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo

desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua

75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila

76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136

77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104

51

accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a

fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma

cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja

um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade

natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do

combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida

No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado

pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as

oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica

fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma

em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)

E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa

como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste

momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia

perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico

hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma

possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico

Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do

absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir

do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir

dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos

talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um

conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao

absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de

finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst

78 Ibidem p 14 trad p 88

79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90

80 Cf Ibidem p 14 trad p 88

81 Ibid p 12 trad p 86

82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87

52

spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo

postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid

p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo

finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao

fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a

todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo

absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se

consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa

totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar

que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito

A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do

entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como

expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento

arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como

uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a

maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa

da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a

formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante

a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e

mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir

novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)

Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que

natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a

realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua

condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se

83 Cf Ibid p 13 trad p 87

84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)

85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)

86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)

53

segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o

ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito

ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento

que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa

carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo

Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o

entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da

limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva

apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar

origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo

com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e

condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de

uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas

regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento

completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na

qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o

trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade

reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um

outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de

dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do

entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o

determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)

Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de

modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o

entendimento87

87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von

54

Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas

caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o

complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica

por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem

I 175-7)

Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute

igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento

estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e

possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de

relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com

ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)

As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui

de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade

formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute

contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-

25)

Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa

posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da

desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade

se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da

desigualdade

Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996

55

Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que

estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo

diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B

Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do

entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra

Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A

posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto

do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A

(objeto)

ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo

que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)

O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute

diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo

podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila

Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio

Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como

absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4

p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se

manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto

O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a

contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo

admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo

tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste

no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se

articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O

que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo

posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de

um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo

pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao

infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois

56

se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as

premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo

possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)

Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no

entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo

exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e

portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela

precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo

(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo

do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo

ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que

uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser

suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die

blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do

entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute

dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos

contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem

igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a

antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem

sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute

um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor

atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele

A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do

ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi

posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz

com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que

cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se

88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)

57

sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como

escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem

Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse

domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias

surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas

Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se

realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo

seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo

entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele

compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo

Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor

und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento

anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma

atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer

como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que

resultaria numa antinomia

A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees

postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa

pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo

entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4

p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute

deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E

assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do

entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc

conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma

promessa natildeo passiacutevel de se cumprir

58

Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas

determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de

justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele

chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90

Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees

(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso

ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao

libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)

A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa

forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A

rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto

refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a

reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo

entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A

reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a

faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela

somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo

ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao

absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91

89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)

90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)

91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees

59

A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute

segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo

tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como

absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e

natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como

limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute

posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto

Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo

permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na

reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila

todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de

todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse

processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a

reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a

razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto

eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo

entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento

unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)

92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66

93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99

60

Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro

que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o

absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se

deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de

conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o

absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as

outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante

sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)

Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao

absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95

as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao

absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter

abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma

antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente

adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro

afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro

com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo

eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado

destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera

dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos

aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da

especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a

antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende

Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O

reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se

conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir

aleacutem desse lado negativo

94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)

95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir

61

O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-

aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da

reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se

contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o

racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da

contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que

preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos

opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos

portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez

realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a

intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber

Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia

pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a

identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97

No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo

entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a

ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por

meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado

das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute

96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)

97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)

98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)

62

o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside

nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos

chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo

ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)

Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees

passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de

serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao

estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica

Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo

Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute

ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude

do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite

As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas

permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A

contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave

filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica

baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem

(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100

Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo

unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em

qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da

mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)

estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos

(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos

99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36

100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)

63

uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de

entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma

identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a

antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja

suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos

(aufgehoben)103 na unidade do racional

Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em

duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen

laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em

cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila

igualrdquo104

A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a

filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas

antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti

logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao

levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem

levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada

A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada

na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova

siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW

4 p 31)105

101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)

102 Ibidem p 27 trad p 101

103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar

104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12

64

105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)

65

Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel

Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo

nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a

ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e

18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira

ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees

sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no

veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e

182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da

filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de

Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder

concluiacute-la

Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo

antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos

em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos

observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de

caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes

Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107

que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um

filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas

106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478

107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809

66

No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte

afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da

subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no

saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber

sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108

E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser

o acabamento da maneira de ver subjetivista

Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao

ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma

filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a

mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como

verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110

Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que

eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o

estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser

instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que

dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos

aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo

que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens

e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo

que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a

108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)

109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272

110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266

111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266

112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)

67

determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade

a filosofia ceacutetica

Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo

com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa

haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre

os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista

acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114

De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu

acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes

houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de

teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do

dogmatismo

Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem

positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo

chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O

113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)

114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)

115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1

68

que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista

conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo

como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a

expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por

ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E

esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se

esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem

a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico

substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa

atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa

em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no

horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute

desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia

encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de

se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117

Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos

em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto

de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de

outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo

Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que

sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de

mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais

terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118

Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao

fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram

116

Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica

117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45

118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)

69

essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma

maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim

subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119

No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica

de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que

poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma

desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse

reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee

Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que

devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a

elerdquo120

O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna

forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva

de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz

junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que

natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer

perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se

ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma

filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade

de se conseguir vencer ao ceacutetico

Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio

extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele

nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato

Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que

independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima

palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele

realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa

119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)

120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)

121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

70

ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a

seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja

favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado

Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a

filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por

que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a

criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a

ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa

estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo

do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano

incorpora-se o mesmo a ela

Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na

sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de

qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma

contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa

suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o

outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os

contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute

pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo

Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta

apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute

basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se

encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar

122 Ver cap 2

123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10

124 Cf HP I 10

71

que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as

mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato

Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute

assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir

do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se

restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa

possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma

contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal

moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo

formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele

sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a

contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126

Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava

restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas

formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro

objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o

fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em

todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128

Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos

adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que

Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica

soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela

125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776

126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)

127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120

128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)

129 Ver o cap 1

72

postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a

ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar

uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma

decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo

que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo

Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a

suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor

delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor

Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no

momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o

efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto

plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo

O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a

uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a

primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade

qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto

que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso

seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a

que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o

assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio

se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico

gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos

ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do

uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo

Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute

caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma

atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas

coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por

outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute

isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o

130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)

73

resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos

nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131

O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da

perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a

tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico

ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e

aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua

decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo

haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de

que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma

decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se

refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas

ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se

131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)

132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14

74

decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto

Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos

descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma

discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado

tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no

opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133

Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se

caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre

um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute

levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o

que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o

fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados

com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso

nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude

com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos

completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila

perante os opostos

133 Cf HP I 12

134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)

135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)

75

Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo

refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este

filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se

apresenta com valor de verdade

Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do

entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente

eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter

uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter

limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque

estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por

exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute

aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo

consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao

mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua

unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a

limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo

aqui natildeo eacute um mal a ser evitado

O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre

entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da

afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com

efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido

a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele

exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute

136 Ver o cap 2

137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91

138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87

76

possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento

natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro

domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a

contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a

agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo

entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila

Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel

quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja

dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel

filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo

ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse

ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo

determinado como o absolutordquo140

Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso

filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia

se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142

Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de

pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas

determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante

os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo

que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados

finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja

De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma

determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o

mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa

afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como

impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse

139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798

140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)

141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss

142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90

77

modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel

quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo

resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na

filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta

filosofia eacute a filosofia especulativa

Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de

pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta

esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular

proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de

predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a

forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma

unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se

pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse

absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas

que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve

ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese

de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos

opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do

entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o

mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse

contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento

dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco

do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias

143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)

144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)

145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94

146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95

78

Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria

o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana

esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de

entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo

admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se

eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo

tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra

procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o

absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses

determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva

ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto

podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma

abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo

poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam

ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado

do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute

dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal

denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo

A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo

tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo

e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia

em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa

147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss

148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94

79

Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os

tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses

chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos

antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo

Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez

tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos

empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os

tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele

que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma

forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma

consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154

Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do

dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de

elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a

intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem

imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a

mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos

animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes

149 Ver Cap 1 pp 46-48

150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778

151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss

152 Cf HP I 3135 e 36

153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss

154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779

155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)

156 Cf HP I 40-78

80

representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das

diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees

visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas

nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de

certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer

por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a

outro natildeo

Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade

daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma

falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses

dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)

Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo

todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158

Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove

como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo

da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por

meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar

extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar

que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar

abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados

modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais

distante e irrealizaacutevel

Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia

nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso

dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato

Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que

157 Cf HP I 79-91

158 Cf HP I 39

159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790

160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)

81

eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce

Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante

portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e

assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute

refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio

do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas

outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo

Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante

apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des

gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o

ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute

verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que

imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que

possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos

161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779

162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790

163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1

164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375

165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

82

tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute

nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez

tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da

perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes

aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece

serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo

possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez

tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma

rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado

uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para

ele por meio dos dez tropos

Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o

visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso

dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para

mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma

verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes

de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo

antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do

texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o

procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que

Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a

uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave

primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da

166 Cf GW 4 p 204

167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775

168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)

83

Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte

Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante

a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute

noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades

insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169

O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue

Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma

aacutervore mas antes uma casa

Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade

de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que

se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente

natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu

acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer

o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora

eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser

contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser

dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite

natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele

natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer

o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser

que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele

A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela

linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso

alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos

169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76

170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77

171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76

172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma

84

apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel

singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este

pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco

de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente

o universalrdquo174

Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo

conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo

de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a

verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do

saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo

Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os

fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber

imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido

concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido

dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados

agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder

afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de

verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67

173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68

174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82

175 Cf HP I 19-20

85

pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no

ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que

aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto

estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa

ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos

impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de

verdade

O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de

um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que

vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico

tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o

faz de uma outra perspectiva

Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja

obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos

portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa

discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo

podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir

entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano

ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir

dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na

dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute

visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal

Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para

Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a

respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele

continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que

acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de

verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo

teacutetico concernente a esse aparecer

176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo

86

Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo

dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica

impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos

referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo

dogmaacutetico

O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de

compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do

ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma

incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o

exemplo mais gritante da mesma

Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do

ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de

solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a

criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco

vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica

presente na certeza sensiacutevel

De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos

tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas

nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do

ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do

ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica

observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos

refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e

completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo

177 Cf HP I 36

178 Cf HP I 164

179 Cf HP I 177

87

de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo

que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os

dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos

de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a

ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez

tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia

forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva

ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio

julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros

Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez

tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da

relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem

reduzidos

Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo

esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo

antigo

Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de

Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o

alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de

Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado

tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior

imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente

180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica

88

diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as

formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181

O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos

mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um

dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura

nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o

da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de

uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de

que se trata

Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater

natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E

por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de

filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)

Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute

na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a

aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou

proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com

que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico

Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o

primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185

Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter

determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais

181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790

182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)

183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2

184 Cf HP I 12

185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2

89

contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes

elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de

entendimento187

Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do

entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em

uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se

simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o

negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de

acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo

arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal

princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro

princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da

mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por

diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma

regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)

Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a

falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as

oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia

(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo

favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de

acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja

e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa

proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era

enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo

186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799

187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799

188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799

189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2

190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo

90

Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por

essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado

encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo

entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica

ceacutetica

A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais

do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie

de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia

Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se

retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash

como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade

que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta

dogmaticamente

Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude

filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela

qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado

dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua

levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados

pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada

para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193

191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800

192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o

91

O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada

quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo

qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado

por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa

coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma

preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno

O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal

que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento

loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196

Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do

que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num

argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas

ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado

Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que

eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua

conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54

194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800

195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)

92

proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que

eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria

excluiacutedo da investigaccedilatildeo

Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel

referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele

modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197

O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte

na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que

saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus

possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a

coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica

implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a

linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo

algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do

que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que

num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das

palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis

Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o

caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas

descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua

unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo

dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa

amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila

da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua

proacutepria operaccedilatildeo

197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800

198 Cf HP III 4

199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades

200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800

93

No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo

um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos

diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas

Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as

determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o

seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel

critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie

uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves

determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer

dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas

Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do

relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo

ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo

(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o

um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser

espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a

negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa

negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em

si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203

Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se

determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento

201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)

94

que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute

o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo

eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo

A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou

como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que

natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da

dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento

natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se

determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute

uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que

ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre

ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como

jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender

porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na

liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do

ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico

especulativordquo205

Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele

natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o

204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37

205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776

95

espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave

suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada

Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a

limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a

ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa

contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem

no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se

dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma

nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em

face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207

O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se

empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute

conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente

falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo

que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da

contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada

ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai

daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada

mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209

206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761

207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als

Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761

208 Ibidem p 360 trad cit p 761

209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo

96

O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo

unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos

iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se

determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da

Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de

criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se

desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o

quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica

Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de

Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo

como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como

seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia

especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute

contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em

sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213

Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar

de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana

Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da

alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si

210 Cf E sect86 e ss

211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34

212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243

213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776

97

mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer

um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de

dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada

sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que

por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute

igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que

no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia

dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja

necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que

transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto

diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que

ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento

Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um

outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo

jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que

nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio

dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com

as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa

sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo

214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803

215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761

217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo

218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo

98

como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa

sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219

Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste

domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O

que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se

contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado

natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente

negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si

mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela

mesmardquo220

Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa

do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua

unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega

Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que

por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste

estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que

algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade

que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se

contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade

A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da

mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser

219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802

220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo

221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798

222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4

223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)

99

contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A

natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225

A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente

(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do

ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude

filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz

assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento

224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5

225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761

101

II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa

Natildeo eacute muito bom para a filosofia

ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo

apenas poder dizer isto eacute ou isto

natildeo eacute

Hegel226

Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees

de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto

limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de

eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que

comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua

concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos

importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o

entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia

natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229

226

Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974

227 GW 11 pp258-290

228 A ser tratado no capiacutetulo 5

229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216

102

A identidade

Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do

entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino

quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa

Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de

proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do

pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e

indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11

p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem

como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma

negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230

Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual

apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto

eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras

categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual

se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma

quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e

determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados

(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel

chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute

aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233

E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que

fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam

tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias

230 GW 11 p 258 trad p 34

231 Cf Ibidem p 259 trad p 34

232 Cf Ibidem p 259 trad p 34

233 Ibidem p 259 trad p 34

103

A resposta de Hegel eacute a seguinte

Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a

negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como

determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra

Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo

aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a

mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234

Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute

Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria

estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das

determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de

proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas

Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a

influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em

decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel

apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais

proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este

pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual

valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de

identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias

234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)

235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1

236 Cf HP I 12

104

Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de

acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas

que por direito a elas se relacionam

Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees

reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de

reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser

contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich

gegenseitig auf)238

Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de

identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais

proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo

A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um

exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse

princiacutepio enquanto tal

Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade

implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261

trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente

a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute

expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que

agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo

eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute

aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele

nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma

reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas

uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240

237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)

238 Ibidem p 260 trad p 36

239 Cf Ibidem p 260 trad p 36

240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38

105

Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta

que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um

diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso

dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua

natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241

A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone

o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui

de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica

Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento

que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre

mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale

insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata

estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a

contradiz

Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja

interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele

natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar

nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)

Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma

planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de

maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer

com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa

declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente

ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do

que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado

essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma

conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito

da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio

do que era esperado a saber nada

241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)

106

Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash

A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena

apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas

um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p

264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em

seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele

movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se

sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas

afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a

diferenccedilardquo243

Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de

contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que

havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente

se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que

aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa

como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244

Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de

identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais

princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e

como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute

que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve

expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei

do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm

242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43

243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228

244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)

107

mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245

Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de

natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender

apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta

identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato

desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute

ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246

A diferenccedila

Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um

duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si

Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de

diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por

si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248

Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro

ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas

apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma

diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os

diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo

O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no

acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o

245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)

246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)

247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45

248 Ibidem p 266 trad p 44

108

simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um

ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta

Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a

si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a

identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da

diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas

relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se

possa ter o todo da diferenccedila

Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois

momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser

uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel

chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada

um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem

distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro

A diversidade

Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois

momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de

serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma

diversidade (Verschiedenheit)

Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma

quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A

identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi

dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma

sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a

249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache

Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)

250 Ibidem p 266 trad p 44

109

identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do

diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o

idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da

identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca

Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo

assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute

relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo

que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um

em face do outro252

Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel

apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto

algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa

diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253

Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade

(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e

diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute

apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade

Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que

Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade

oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta

de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o

251 Ibidem p 267 trad p 45

252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)

253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)

254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila

110

ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a

identidade

De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente

exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada

uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores

isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo

satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do

Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal

constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa

determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade

assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse

ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo

da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela

mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua

determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel

afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de

que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo

unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a

determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao

mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque

negam a sua oposta e natildeo de modo exterior

Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas

qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente

positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente

positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute

uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a

negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente

positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute

255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)

256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186

257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187

258 GW 11 p 268 trad p 46

111

abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-

de-consistecircnciardquo259

Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro

de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo

denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em

si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute

ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo

exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo

sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261

E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo

como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O

estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que

se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a

identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como

igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)

Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa

Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262

Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo

que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que

temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da

diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca

entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de

afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave

destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que

259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan

denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)

260 GW 11 p 268 trad p 47

261 Ibidem p 268 trad p 47

262 Ibidem p 268 trad p 47

112

haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que

rege o entendimento eacute isto o que ocorre264

Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa

diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo

consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave

desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato

eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim

como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide

fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da

desigualdade mesma tal como resultourdquo265

263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente

264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento

265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt

den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]

113

Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa

identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um

diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar

refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se

determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de

si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele

mesmo o igualrdquo266

Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados

mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267

A oposiccedilatildeo

Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa

oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte

Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268

Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos

precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no

relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre

identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da

diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era

como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade

em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava

acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo

exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O

266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)

267 Ibidem p 270 trad p 50

268 Ibidem p 272 trad p 53

269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108

114

tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou

poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos

Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo

estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem

A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute

seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a

Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua

completude

Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e

diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora

como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo

Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute

apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel

chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como

ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo

exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-

posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada

momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece

no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-

de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa

diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como

apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da

desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada

O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a

determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro

270 GW 11 p 272 trad p 53

271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175

272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo

115

ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua

carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-

determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo

natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a

carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto

o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido

nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o

comeccedilordquo273

Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto

refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade

como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa

unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de

modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e

diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois

momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em

si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade

que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo

que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-

posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute

refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo

273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)

274 Cf GW 11 p 272 trad p 53

275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)

276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)

116

como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o

positivo)277

Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se

tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que

fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-

ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem

ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e

negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem

relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279

Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o

positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir

retomamos280

Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica

reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto

seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas

exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os

opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum

natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em

relaccedilatildeo ao outrordquo281

277 Cf Ibidem p 273 trad p 54

278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar

Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90

279 Cf GW 11 p 273 trad p 54

280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56

281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)

117

Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o

outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a

determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa

indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que

consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma

indiferenccedila dos opostos

Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com

seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das

determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal

espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o

negativordquo282

De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em

geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente

numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em

nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas

um outro em geral

Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo

azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem

conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como

seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284

Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da

indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se

282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)

283 Ibidem p 273 trad p 55

284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)

118

faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute

negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se

estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286

Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a

todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo

estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem

entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287

Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo

quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas

positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o

que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro

enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une

natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288

285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275

286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234

287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235

288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das

119

Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e

justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo

agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica

Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute

ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O

trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele

tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se

determina o positivo ou o negativo289

A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou

ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo

indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291

Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235

289 GW 11 p 276 trad p 58

290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234

291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo

Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)

Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se

120

Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados

apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um

se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada

um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua

relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o

positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e

negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um

puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto

Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como

tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si

contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo

Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo

Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)

Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida

292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)

121

A contradiccedilatildeo

Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro

Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam

cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse

relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro

Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a

oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse

conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute

exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees

reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo

reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela

de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo

conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e

assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo

relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295

Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela

se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que

eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua

autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)

realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro

que excluo de mim e assim me suspendo296

Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o

positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz

negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o

inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo

293 Ibidem p 279 trad p 62

294 Ibidem p 279 trad p 62

295 Ibidem p 279 trad p 62

296 Ibidem p 279 trad p 62

297 Cf Ibidem p 280 trad p 63

122

se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu

outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de

ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo

O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do

determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade

O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e

simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles

mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299

Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado

meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado

(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301

Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como

se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto

298 Cf Ibidem p 280 trad p 63

299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64

300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185

301 GW 11 p 281 trad p 64

123

cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da

oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o

contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina

de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee

como momento distinto do outro302

A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro

reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um

como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten

sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o

negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304

Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se

potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo

ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto

primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente

aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e

suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o

suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de

um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia

eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si

mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305

302 Ibidem p 281 trad p 64

303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65

304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)

305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)

124

Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e

simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam

mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se

aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e

assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu

fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a

suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que

significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de

fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se

(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das

determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada

contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307

O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo

autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua

suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)

eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309

Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a

autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)

306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66

307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)

308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo

309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)

125

no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que

fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no

fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo

das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa

relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode

ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se

relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada

ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma

resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no

fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo

negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si

ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento

somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo

mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e

se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se

consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute

antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314

310 Ibidem p 282 trad p 67

311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)

312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230

313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)

314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)

126

De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo

deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que

algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315

Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo

deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade

negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o

jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva

O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma

sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica

claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um

nada vazio vale ser lembrado

Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se

furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre

pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em

uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue

reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo

discurso dogmaacutetico

Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura

sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de

Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com

um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse

algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto

determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma

determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter

finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo

relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva

devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir

eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um

absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse

315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)

127

considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si

mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser

evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia

Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se

constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a

contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto

horror causam no pensamento natildeo-especulativo

316 Ibidem p 290 trad p 77

128

O finito e o infinito

Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a

categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317

Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318

Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro

(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da

qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo

pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute

estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa

limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se

compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo

limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto

em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite

O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por

consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas

o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer

como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo

perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu

fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai

aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam

317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss

318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186

319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166

320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)

129

negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser

(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321

Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse

outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo

entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o

finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo

seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo

finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito

surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse

processo322

ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-

aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a

negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito

pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao

seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se

deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda

conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323

De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O

finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito

que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a

321 Ibidem p 116 trad p 166

322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189

323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)

130

conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa

sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito

Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de

seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado

natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja

outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem

Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente

pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o

efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas

exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo

que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve

positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e

abstrato

Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da

contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele

com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a

si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326

324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167

325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)

326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a

131

Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo

O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral

Hegel327

Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia

mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito

absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa

do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente

por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no

contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos

mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo

meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave

investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia

especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser

aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa

forma filosoacutefica

Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que

poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que

o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas

mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo

Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico

da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui

resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190

327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13

132

retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do

meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de

continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que

Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que

segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer

imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse

mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica

mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos

remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o

capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que

dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica

Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a

partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito

Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira

parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia

respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do

Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o

conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada

e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da

mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala

em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito

eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a

328 Cf GW 12 pp 236-253

329 Cf HP I 170-172

330 Cf HP I 173-174

133

verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o

conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331

A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro

momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos

dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute

um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia

Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o

conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o

fundamento somente venha a aparecer ao final

Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma

ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio

e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um

argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos

vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa

estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos

Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo

perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da

Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave

dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo

imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que

Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma

331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249

332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)

134

pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e

assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada

arbitraacuteria

Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da

Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se

vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333

apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento

necessita ter-se feito como fundamento334

O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como

fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute

justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse

meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica

mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser

justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide

no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-

filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e

raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o

mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335

Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que

jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra

afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo

notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do

333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado

334 Cf GW 12 p 11 trad p 249

335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)

135

exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a

todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336

A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a

filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico

que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz

Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser

natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo

portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a

condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto

Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e

que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor

um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute

completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e

nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e

externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver

Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser

criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma

determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de

um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente

um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado

e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica

Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto

Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se

derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos

filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada

pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro

336 Cf HP I 12

337 Cf GW 12 p 22 tr p263

338 Cf GW 21 59 tr p 94

339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa

136

ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao

mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa

unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a

autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia

especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao

mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do

entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica

Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da

Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da

fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque

na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico

de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser

e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse

com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel

ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a

condensar-se na unidade do conceitordquo341

O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso

da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a

ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de

justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o

sistema do loacutegico342

mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94

340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94

341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)

342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367

137

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a

exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora

tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de

compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que

almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo

De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais

precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo

consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute

vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no

decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico

objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume

no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda

que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se

determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma

Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e

simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo

como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se

relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem

diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se

na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu

conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do

processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do

343 Cf GW 12 p 237 trad p 561

344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366

345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)

346 Cf Ibidem p 237 trad p 561

138

conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na

mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como

determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia

absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que

impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute

como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma

exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida

justamente que existerdquo349

Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua

entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do

meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que

natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu

conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de

determinaccedilatildeo dessa forma

Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido

como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem

maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo

determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais

que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados

conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o

absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do

conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351

347 Cf Ibidem p 237 trad p 560

348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562

349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)

350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)

351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)

139

Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder

um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito

e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da

Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim

ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o

conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo

seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a

atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352

Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do

conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e

na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender

porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que

poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito

Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos

universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou

diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua

determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse

processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio

conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355

Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse

sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo

352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)

353 Ibidem p 44 trad p 294

354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292

355 GW 12 p 25 trad p 267

140

A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa

diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo

da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta

identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de

universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o

que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal

pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade

absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo

Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos

constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim

o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se

particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua

vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual

surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal

superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute

relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de

si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do

conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que

adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361

356 Ibidem p 33 trad p 279

357 Ibidem p 33 trad p 279

358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283

359 Ibidem p 35 trad p 281

360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297

361 GW 12 p 38 trad p 285

141

A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si

mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito

esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na

realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de

sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse

modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja

nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva

penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito

O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia

ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do

proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo

Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo

elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra

parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366

E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe

agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia

O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que

a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do

conceito como ideacuteia

362 Ibidem p 51 trad p 303

363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada

364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)

365 Ibidem p 36 trad p 283

366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)

142

O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si

e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que

o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que

ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do

conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367

A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um

objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade

eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito

torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa

negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a

ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente

se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade

e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar

perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido

vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo

dialeacutetico imanente

O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do

conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da

ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples

conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se

separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente

essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A

identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369

367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)

368 GW 12 p 176 trad p 475-476

369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects

143

A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-

se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do

conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira

perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de

sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo

pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370

Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise

daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se

realiza

Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo

Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e

suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo

As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o

que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo

A universalidade

Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que

compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito

como ideacuteia absoluta

No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um

imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade

abstratardquo372

zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)

370 Ibidem p 238 trad p 562

144

Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja

arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo

implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado

e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para

com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico

Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou

inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa

relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo

absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um

comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica

quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um

imediato

O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse

seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel

que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no

entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e

o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra

nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o

imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o

comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma

sem nenhum conteuacutedordquo374

Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada

possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo

o significado do ser376

371 Cf Ibidem p 239 trad p 563

372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)

373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137

374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo

375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101

145

Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem

considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e

ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do

puro ser

Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do

fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na

Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o

imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria

segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente

e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e

essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o

percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o

fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato

que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao

mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel

faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser

Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele

eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a

nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo

absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte

como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo

preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378

O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche

os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a

contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito

loacutegico

376 Cf GW 12 p 239 trad p 564

377 Ver a respeito pp 132-137

378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)

146

E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si

mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de

toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se

relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta

de determinaccedilatildeo

Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de

realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e

a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380

Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente

indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o

conceito se realiza

Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude

dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente

que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se

conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381

Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do

seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por

sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que

tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se

apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma

que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o

universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser

379 Cf GW 12 p 239 trad p 564

380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)

381 Cf Ibidem p 240 trad p 565

382 Ver a respeito pp 139-141

383 Cf GW 12 p 24 trad p 267

384 Cf Ibidem p 240 trad p 565

385 Cf Ibidem p 239 trad p 564

147

como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute

somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se

torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio

natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que

somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo

com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o

meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387

De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do

processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O

iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o

conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente

singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389

Do universal para o particular

Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o

universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado

relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega

esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro

no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo

ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo

386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)

387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)

388 GW 12 p 241 trad p 566

389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)

390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)

391 Ibidem p 245 trad p 571

148

subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o

nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por

exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado

para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto

dessa determinaccedilatildeo do universal como particular

Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada

ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos

mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular

Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos

aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel

indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido

Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento

(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda

determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior

como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com

seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute

num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si

natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo

entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute

o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse

392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51

393 Cf GW 12 p 245 trad p 572

394 Cf Ibidem p 245 trad p 572

395 Cf Ibidem p 245 trad p 572

149

relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si

proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396

Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada

pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem

notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta

Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no

conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico

presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)

conteacutem em si nele estaacute postardquo397

Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico

consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a

unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a

suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo

da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si

mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela

negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal

soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente

concreto

Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a

primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao

momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo

do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo

o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda

396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88

397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)

398 Cf Ibidem p 246 trad p 572

399 Cf Ibidem p 246 trad p 573

400 Cf Ibidem p 49 trad p 300

401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573

150

como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas

denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro

o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo

Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu

universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele

(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu

objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele

proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403

Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo

estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse

mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute

absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu

proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a

esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual

a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao

caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode

significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou

melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo

de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que

eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se

(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global

Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a

si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio

determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute

constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva

402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)

403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)

404 Cf Ibidem p 16 trad p 255

151

atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no

movimento da dupla negaccedilatildeo

O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua

das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse

movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si

mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do

processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque

1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da

universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da

singularidade

Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma

ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com

o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma

relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel

dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste

justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407

Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo

consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como

singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa

premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse

apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica

405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259

406 Cf GW 12 p 246 trad p 574

407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572

408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113

152

a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo

de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito

aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute

particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato

contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como

suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade

A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo

imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da

diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o

ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade

absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410

A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao

imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal

imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se

determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a

negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro

409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574

410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575

153

apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de

um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411

O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema

Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca

entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez

ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a

principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico

inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que

permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico

Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que

chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se

condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir

desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa

determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na

forma de um sistema413

Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao

seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do

meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa

determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um

determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e

deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de

pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se

411 Ibidem p 247 trad p 574

412 Ibidem p 248 trad p 576

413 Ibidem p 248 trad p 576

414 Ibidem p 249 trad p 577

154

contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de

uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415

Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim

possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da

filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em

relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa

de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta

acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que

aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso

infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o

conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416

O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do

comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se

na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A

determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se

por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o

que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo

Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o

meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um

determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a

mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto

E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma

coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta

da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira

indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal

somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele

Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e

415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578

416 Ibidem p 249 trad pp 577-578

417 Ver a respeito pp 143-147

418 Cf GW 12 p 250 trad p 579

155

dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade

que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela

convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente

justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo

em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo

dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior

ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua

particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente

a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu

progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e

se condensa dentro de sirdquo420

Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao

fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos

novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do

comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da

determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo

tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E

419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)

420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)

421 Cf Ibidem p 251 trad p 580

422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist

156

contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para

aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto

Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa

via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o

universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e

no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que

tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein

gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro

que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar

Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto

a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso

Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo

esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar

adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse

processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao

meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf

GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio

dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem

criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e

seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta

pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute

dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse

procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos

Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2

423 Ibidem p 252 trad p 581

424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)

425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299

157

opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta

que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o

comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o

processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber

alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427

Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do

meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da

integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia

especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia

negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido

seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado

na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente

examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento

absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente

por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do

ceticismo stricto sensu

No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma

afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e

conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas

426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)

427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)

428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82

429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)

158

configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse

reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como

forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no

meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs

aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de

autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam

naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do

entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou

positivamente-racional433

O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e

limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado

pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que

atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo

entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as

limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua

oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das

mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que

conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung

Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a

modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado

continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional

do meacutetodo437

430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560

431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169

432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159

433 Ibidem p 118 trad p 159

434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156

435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)

436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70

437 Cf Ibidem p 70

159

Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute

justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento

agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem

era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse

novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que

seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas

determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio

dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma

vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese

de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato

cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os

advogados da duacutevida terminem por concordar com ele

161

CONCLUSAtildeO

Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel

procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-

investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia

Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o

iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito

sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo

Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a

preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a

elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe

apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o

ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por

Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma

exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o

ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades

pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um

discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila

Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute

fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente

em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica

para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto

porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia

O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no

domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse

domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do

entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das

determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas

com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se

162

chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como

avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo

Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o

procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de

seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as

oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se

termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a

negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de

conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica

antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo

ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo

e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do

procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia

163

OBRAS DE HEGEL

HEGEL G W F Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie

In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix

Meiner 1968 Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992

Gesammelte Werke vol 20

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede

Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner

Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer

Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817

Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften

und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein

(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen

(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978

164

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die

Lehre vom Begriff (1816) Gesammelte Werke vol 12 Hamburg Meiner 1981

Traduccedilotildees

HEGEL G W F Ciencia de la Logica (I e II ) trad de Augusta e Rodolfo Mondolfo

Ciencia de la Loacutegica Buenos Aires Ediciones Solar 1993

______________ Diffeacuterence des systegravemes philosophiques de Fichte et de Schelling traduccedilatildeo

de Marcel Meacutery In Premiegraveres Publications 2ordf ed Paris Ophrys-Gap 1964

______________ Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas em compecircndio (1830) I ndash A Ciecircncia

da Loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Henrique C de Lima Vaz coleccedilatildeo Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1974

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Paulo Meneses Petroacutepolis Vozes 2a

ed 1992

______________ Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Traduccedilatildeo notas e apresentaccedilatildeo de

Marcos Lutz Muumlller IFCH-UNICAMP 2005

______________ La relation du scepticism avec la philosophie trad de B Fauquet 2ordf ed

Paris Vrin 1986

______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 2

trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1971

______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 4

trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1975

165

BIBLIOGRAFIA

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FFLCH-USP 1992

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003

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in Guzzoni Ute (ed) Der Idealismus und seine Gegenwart ndash Festschrift fuumlr Werner Marx

Hamburg Meiner 1976

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LEBRUN G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000

MARTIN L F B ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir

da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo in Revista Dois Pontos UFSCARUFPR

vol 4 nuacutemero 2 2007

MUumlLLER M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou

radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3

2005

PORCHAT PEREIRA O Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Unesp 2006

____________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993

SCHAumlFER R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik In Hegel-

Studien Beiheft 45 Hamburg Felix Meiner 2001

SCHULZE G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

SEXTO EMPIacuteRICO Outlines of Pyrrhonism vol I trad de RG Bury Cambridge Harvard

University Press 2000 Grundriszlig der pyrrhonischen Skepsis trad de Malte Hossenfelder

Frankfurt a M Suhrkamp 1985

SEXTO EMPIacuteRICO Adversus Mathematicos trad de RG Bury The Loeb Classical

Library in four volumes Cambridge Harvard University Press 1985

168

VIEWEG K e BOWMAN B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in

hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der

Philosophie Band 10 2006

_________________________________ Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte

um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp

Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003

VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der

Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches

Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002

___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des

Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels

Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974

Page 3: CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL€¦ · CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia

5

RESUMO

Trata-se inicialmente de neste trabalho analisar a leitura hegeliana da filosofia ceacutetica

especificamente o ceticismo pirrocircnico Dessa maneira seraacute possiacutevel comeccedilar a avaliar em

que medida o ceticismo eacute importante para a filosofia de Hegel em geral e em particular para

a constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico especulativo Percorreremos textos de vaacuterias fases da

filosofia de Hegel no qual o ceticismo ou eacute tema central ou aparece dentro de um contexto

que tambeacutem nos interessa a saber a discussatildeo acerca do meacutetodo No que respeita a este

uacuteltimo objeto da segunda parte da tese examinaremos na Ciecircncia da Loacutegica os momentos

onde podemos observar de modo privilegiado a constituiccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico hegeliano a

saber a seccedilatildeo dedicada na Doutrina da Essecircncia agraves determinaccedilotildees de reflexatildeo e a seccedilatildeo

intitulada Ideacuteia Absoluta uacuteltimo capiacutetulo do livro A partir desse estudo da Ciecircncia da

Loacutegica poderemos entatildeo julgar com maior exatidatildeo no que o meacutetodo filosoacutefico hegeliano eacute

devedor da filosofia ceacutetica isto eacute como esse meacutetodo eacute formulado de modo que o ceticismo

seja integrado a ele A ideacuteia central eacute mostrar que natildeo haacute da parte de Hegel uma simples

refutaccedilatildeo do ceticismo mas antes que o ceticismo eacute a filosofia incontornaacutevel da qual se

deve partir para que a filosofia natildeo caia viacutetima das aporias ceacuteticas Essa eacute a via que Hegel

encontra para natildeo se tornar ceacutetico pirrocircnico e ao mesmo tempo natildeo ser alvo da criacutetica ceacutetica

7

ABSTRACT

First it means to analyse Hegelrsquos reading of the skeptical philosophy specifically

pyrrhonian skepticism Thus it will be possible to assess to what extent the skepticism is

important to Hegelrsquos philosophy in general and in particular for the formation of his

speculative dialectical method We will cover texts from many phases of Hegelrsquos philosophy

in which skepticism is focus or appears within a context that also interests us namely the

discussion of the method Regarding this last one subject of the second part of the thesis we

examine in Science of Logic the moments where we can observe in a special way the

formation of hegelian dialectical method the section in Doctrine of Essence that is dedicated

to the determinations of reflection and the section entitled Absolute Idea the last chapter of

the book From this study of Science of Logic we can judge more accurately what the

Hegelian philosophical method is liable to the skeptical philosophy which means how this

method is formulated in a way that skepticism is a part of it The main idea is to show that

Hegel does not try a simple refutation of skepticism more than this he shows that skepticism

is the philosophy unavoiable which preserves the philosophy from fall victim of skepticals

aporias This is the way that Hegel finds to not become skeptical pyrrhonian and also the

subject of skeptical criticism

9

Para a Luciana

11

Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos

pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel

Hegel

A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia

de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades

Hegel

13

AGRADECIMENTOS

Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver

intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de

pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua

amizade

Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no

meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste

trabalho

Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou

da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade

Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo

deste trabalho

Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu

pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e

tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden

Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien

Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt

Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane

Agrave minha famiacutelia

Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha

Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante

em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo

A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-

UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa

15

SUMAacuteRIO

LISTA DE ABREVIATURAS p 17

INTRODUCcedilAtildeO p 19

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49

Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65

II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101

Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131

CONCLUSAtildeO p 161

BIBLIOGRAFIA p 163

17

LISTA DE ABREVIATURAS

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische

Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em

diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968

Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980

Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre

vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978

Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom

Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981

Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W

Bosiepen e H -C Lucas 1992

Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre

vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984

Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M

Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993

Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp

1986

Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp

2003

19

Introduccedilatildeo

Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o

filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1

Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave

filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar

que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3

O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para

Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia

hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira

1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)

2 Cf GW 4 pp 197-238

3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007

4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

20

filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O

diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de

sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra

No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo

nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho

explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans

Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o

tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do

conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente

escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por

uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa

filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6

De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo

antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de

constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a

filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como

algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo

pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo

natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega

em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)

A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que

Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos

dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira

de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se

tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que

novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar

atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que

5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado

6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana

21

comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa

postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se

fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave

mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na

assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo

Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao

dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de

Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma

vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras

seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no

cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em

responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa

Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria

por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e

dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi

atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la

A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse

dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta

outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado

nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico

poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De

fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em

ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta

representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o

ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da

filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o

fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se

esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente

avaliara no ceticismo 7

7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da

22

Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser

formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo

acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que

almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo

Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico

como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos

limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este

trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do

ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz

(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que

comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do

pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu

sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos

quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo

desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e

anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o

ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana

e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos

observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de

negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que

mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute

isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que

impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo

Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo

hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de

reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados

obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo

tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente

assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a

linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo

23

filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-

lo reformulado a si proacutepria

Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de

acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o

ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o

lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do

ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas

aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente

natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica

25

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico

Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato

dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas

E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar

por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos

por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma

filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas

por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O

que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema

filosoacutefico exposto8

Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com

verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema

qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de

qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua

filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende

dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser

essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por

filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia

Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui

doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no

nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis

Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos

referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por

8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]

26

Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de

ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9

Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o

ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo

doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o

tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o

que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo

filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o

ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma

menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso

Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante

Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a

filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele

Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de

Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo

natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples

tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de

relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute

nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo

Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma

breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto

Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa

filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver

9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss

27

rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se

incorpora agrave filosofia hegeliana

Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela

descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute

declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas

Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo

com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em

virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros

declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a

investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum

resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram

capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma

suposta verdade filosoacutefica

Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como

resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade

inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se

dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica

Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o

ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que

ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a

investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum

resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o

uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros

filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa

10 A esse respeito veja-se HP I 1-4

28

investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com

frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente

Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa

que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz

Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece

a noacutes no momentordquo11

Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o

afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo

mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da

filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a

impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da

filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato

concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da

descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar

de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro

Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se

inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com

receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e

sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro

momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo

e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo

mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de

se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria

Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a

esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma

questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a

possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se

trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou

negativamente ndash naquilo que investiga

11 Cf HP I 4

12 Cf HP I 12

29

Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que

encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do

que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se

distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade

a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade

ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do

mesmo fim a saber a ataraxiacutea

Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute

inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se

eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte

Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo

que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se

tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)

anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em

detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se

mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um

objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas

satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante

E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se

encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do

que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico

terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou

falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se

portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14

A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim

chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre

as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na

opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que

13 Cf HP I 12

14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5

30

acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto

(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16

Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira

dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude

deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute

suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado

de intelecto suspensivordquo17

Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do

conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se

diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de

qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho

e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas

Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista

do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia

(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-

credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender

o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)

Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da

tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de

argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica

A agogeacute ceacutetica

A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o

ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas

15 Cf HP I 7 10 26 165

16 Cf HP I 10

17 Cf HP I 8

31

as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)

assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida

a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18

Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da

filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto

apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de

igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19

Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal

atitude (agogeacute) um tal modo de proceder

Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a

adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o

ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc

diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele

com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira

podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de

caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito

A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe

contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da

igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute

declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real

verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do

verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute

o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a

atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito

nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica

Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a

temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz

18 Cf HP I 8

19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8

20 Cf HP I 8

32

entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue

um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a

fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que

Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um

argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na

contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de

que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O

que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao

contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos

conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao

outro quanto a ser mais digno de creacutedito23

Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes

entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave

maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito

nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o

ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso

cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido

como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves

afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe

parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele

sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo

exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando

21 Cf HP I 9

22 Cf HP I 33

23 Cf HP I 10

24 Cf HP I 12

25 Cf HP I 13

33

De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por

fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de

dogmatizarrdquo

Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo

expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance

de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o

ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das

coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo

restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o

caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute

mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem

em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente

ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27

Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo

dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de

controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas

exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada

espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas

Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do

ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas

maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a

fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante

26 Cf HP I 13

27 Cf HP I 13

28 Cf HP I 182

29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo

34

Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece

indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a

quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma

amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31

Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica

foi alvo de muita incompreensatildeo

A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar

dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem

ceacutetica

Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees

natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do

ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se

expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem

ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma

A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de

instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as

30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37

31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica

32 Cf HP I 4

35

coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam

a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um

caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se

expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira

dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar

que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico

Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em

nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de

expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu

discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele

sempre evitar dogmatizar

Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver

nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar

Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das

coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer

dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que

natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese

filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo

dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos

ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece

Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-

evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de

foacutermulas que expressam essa incapacidade

33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo

34 Cf HP I 14

35 Cf HP I 203

36

Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo

absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de

que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se

de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas

ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas

satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas

Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo

existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa

ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos

dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a

respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37

Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas

quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-

evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame

finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais

conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade

ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras

foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter

natildeo-dogmaacutetico das mesmas

Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas

foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se

no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser

de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a

respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude

filosoacutefica

A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para

esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas

36 Ver a respeito HP I 187-209

37 Cf HP I 198

38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198

37

ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes

natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente

verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se

ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas

purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com

os humores se expelemrdquo40

Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas

expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no

qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu

juiacutezo

Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico

estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter

absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma

atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo

dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea

O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem

apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma

de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo

A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir

antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento

que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro

visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a

isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo

Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a

concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o

39 Cf HP I 14-15 206

40 Cf HP I 206

38

conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas

teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no

uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa

instrumentalidade dos argumentos utilizados

ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma

escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua

lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no

mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42

Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio

entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado

decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a

serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo

poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses

adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de

que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a

persuasividade desses argumentos eacute aparente43

41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159

42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2

43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)

39

Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os

argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos

ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios

juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44

Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente

do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do

verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra

tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que

determinada tese dogmaacutetica seja posta

Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo

possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas

satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele

mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim

como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o

compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana

ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras

(expressotildees)rdquo46

E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-

dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico

A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas

ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees

quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai

desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico

passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-

44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)

45 Cf HP I 207

46 Ibidem I 207

40

dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio

segundo o qual ele se conduz

Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das

forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado

que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A

respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-

filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo

Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de

vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico

quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a

aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na

incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra

reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes

um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso

pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a

paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral

Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa

decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum

criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de

outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos

qualquer forma de decisatildeo

De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e

que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando

decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser

inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica

A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o

ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da

41

falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo

como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente

doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia

quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como

proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute

verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente

natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade

das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo

Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui

caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de

criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos

elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos

pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a

essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem

significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como

obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou

daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico

em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de

se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo

Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido

como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de

qualquer coisardquo48

Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute

como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe

permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da

vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49

Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age

de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie

47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79

48 Cf HP I 21

49 Cf HP I 21

42

de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe

aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute

constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se

ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I

13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As

decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele

por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que

lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio

aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa

direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel

(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do

fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer

asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio

da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo

A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se

refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as

aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem

estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo

as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos

discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou

menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra

eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave

suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar

Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute

supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do

discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar

ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν

παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os

fenocircmenosrdquo52

50 Cf HP I 22

51 Cf HP I 19

52 Cf HP I 19-20

43

Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo

se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno

inquestionaacutevel

Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira

afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do

ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia

minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse

aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente

natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo

isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse

caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto

a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente

de minha vontade

Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu

agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende

dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53

O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento

que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e

determina seu agir54

Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda

acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de

pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais

aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o

domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual

poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem

ser observadas no domiacutenio sensiacutevel

53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)

54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo

44

O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e

que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem

de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou

epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir

apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele

sem opinar (adoxaacutestos)55

Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas

afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56

Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-

se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em

princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas

accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele

viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que

ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa

se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo

elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua

realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer

algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que

aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade

O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer

de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque

estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa

afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da

mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas

aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute

aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva

dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia

pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente

coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada

que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal

55 Cf HP I 23

56 Cf HP I 23

45

comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que

hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente

Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura

agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com

respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a

coisas inevitaacuteveis57

Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por

essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo

conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar

contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre

argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a

tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58

Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que

o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos

entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa

haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato

natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o

sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude

dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa

em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo

Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se

propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como

ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver

de acordo com dogmas

57 Cf HP I 25

58 Cf Ibidem I 26

59 Cf Ibidem I 27

60 Cf Ibidem I 29

46

Os tropos ceacuteticos

Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico

consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo

seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse

modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por

diante62

Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e

assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63

Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os

homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas

circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo

nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou

raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees

dogmaacuteticas

Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de

todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos

apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao

qual todos os outros nove podem se referir64

Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que

se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia

controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na

61 Ver a respeito pp 30-32

62 Cf HP I 31

63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259

64 Cf HP I 39

47

hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os

tropos de Agripa65

Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel

de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas

comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de

opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave

suspensatildeo do juiacutezo66

Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova

prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E

essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma

regressatildeo que natildeo tem fim67

O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente

numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que

o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo

relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista

natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo68

O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma

demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou

essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma

demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo

haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69

65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303

66 Cf HP I 165

67 Cf HP I 166

68 Cf Ibidem I 167

69 Cf Ibidem I 168

48

Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute

objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo

acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70

Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a

filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a

filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto

diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que

empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma

possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo

da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana

do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia

70 Cf Ibidem I 169

71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica

49

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel

No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros

objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo

nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga

medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico

das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de

uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel

a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo

teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo

Teremos o quecirc entatildeo

No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel

para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute

um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento

de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o

que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo

mais minuciosa do significado desses termos

Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema

filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele

72 GW 4 pp 197-238

73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2

74 GW 4 pp 5-92

50

que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que

nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na

filosofia75

Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias

formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado

do significado de entendimento e razatildeo

Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua

eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees

hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica

da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma

insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da

criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa

tarefa criacutetica hegeliana

Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na

sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade

especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade

absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre

essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo

desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua

75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila

76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136

77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104

51

accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a

fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma

cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja

um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade

natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do

combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida

No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado

pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as

oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica

fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma

em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)

E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa

como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste

momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia

perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico

hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma

possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico

Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do

absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir

do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir

dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos

talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um

conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao

absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de

finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst

78 Ibidem p 14 trad p 88

79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90

80 Cf Ibidem p 14 trad p 88

81 Ibid p 12 trad p 86

82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87

52

spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo

postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid

p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo

finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao

fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a

todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo

absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se

consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa

totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar

que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito

A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do

entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como

expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento

arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como

uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a

maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa

da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a

formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante

a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e

mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir

novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)

Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que

natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a

realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua

condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se

83 Cf Ibid p 13 trad p 87

84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)

85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)

86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)

53

segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o

ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito

ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento

que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa

carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo

Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o

entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da

limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva

apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar

origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo

com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e

condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de

uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas

regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento

completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na

qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o

trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade

reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um

outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de

dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do

entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o

determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)

Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de

modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o

entendimento87

87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von

54

Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas

caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o

complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica

por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem

I 175-7)

Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute

igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento

estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e

possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de

relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com

ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)

As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui

de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade

formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute

contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-

25)

Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa

posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da

desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade

se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da

desigualdade

Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996

55

Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que

estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo

diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B

Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do

entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra

Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A

posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto

do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A

(objeto)

ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo

que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)

O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute

diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo

podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila

Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio

Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como

absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4

p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se

manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto

O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a

contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo

admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo

tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste

no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se

articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O

que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo

posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de

um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo

pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao

infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois

56

se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as

premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo

possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)

Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no

entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo

exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e

portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela

precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo

(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo

do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo

ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que

uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser

suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die

blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do

entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute

dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos

contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem

igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a

antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem

sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute

um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor

atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele

A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do

ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi

posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz

com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que

cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se

88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)

57

sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como

escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem

Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse

domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias

surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas

Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se

realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo

seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo

entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele

compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo

Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor

und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento

anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma

atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer

como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que

resultaria numa antinomia

A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees

postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa

pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo

entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4

p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute

deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E

assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do

entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc

conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma

promessa natildeo passiacutevel de se cumprir

58

Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas

determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de

justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele

chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90

Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees

(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso

ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao

libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)

A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa

forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A

rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto

refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a

reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo

entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A

reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a

faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela

somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo

ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao

absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91

89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)

90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)

91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees

59

A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute

segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo

tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como

absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e

natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como

limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute

posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto

Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo

permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na

reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila

todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de

todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse

processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a

reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a

razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto

eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo

entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento

unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)

92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66

93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99

60

Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro

que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o

absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se

deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de

conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o

absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as

outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante

sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)

Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao

absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95

as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao

absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter

abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma

antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente

adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro

afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro

com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo

eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado

destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera

dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos

aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da

especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a

antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende

Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O

reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se

conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir

aleacutem desse lado negativo

94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)

95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir

61

O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-

aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da

reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se

contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o

racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da

contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que

preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos

opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos

portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez

realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a

intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber

Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia

pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a

identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97

No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo

entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a

ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por

meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado

das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute

96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)

97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)

98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)

62

o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside

nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos

chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo

ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)

Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees

passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de

serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao

estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica

Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo

Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute

ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude

do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite

As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas

permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A

contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave

filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica

baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem

(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100

Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo

unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em

qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da

mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)

estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos

(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos

99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36

100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)

63

uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de

entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma

identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a

antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja

suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos

(aufgehoben)103 na unidade do racional

Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em

duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen

laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em

cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila

igualrdquo104

A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a

filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas

antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti

logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao

levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem

levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada

A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada

na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova

siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW

4 p 31)105

101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)

102 Ibidem p 27 trad p 101

103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar

104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12

64

105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)

65

Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel

Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo

nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a

ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e

18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira

ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees

sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no

veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e

182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da

filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de

Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder

concluiacute-la

Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo

antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos

em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos

observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de

caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes

Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107

que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um

filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas

106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478

107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809

66

No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte

afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da

subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no

saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber

sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108

E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser

o acabamento da maneira de ver subjetivista

Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao

ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma

filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a

mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como

verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110

Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que

eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o

estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser

instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que

dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos

aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo

que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens

e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo

que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a

108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)

109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272

110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266

111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266

112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)

67

determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade

a filosofia ceacutetica

Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo

com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa

haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre

os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista

acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114

De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu

acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes

houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de

teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do

dogmatismo

Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem

positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo

chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O

113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)

114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)

115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1

68

que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista

conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo

como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a

expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por

ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E

esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se

esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem

a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico

substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa

atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa

em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no

horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute

desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia

encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de

se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117

Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos

em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto

de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de

outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo

Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que

sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de

mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais

terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118

Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao

fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram

116

Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica

117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45

118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)

69

essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma

maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim

subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119

No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica

de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que

poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma

desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse

reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee

Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que

devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a

elerdquo120

O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna

forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva

de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz

junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que

natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer

perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se

ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma

filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade

de se conseguir vencer ao ceacutetico

Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio

extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele

nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato

Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que

independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima

palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele

realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa

119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)

120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)

121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

70

ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a

seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja

favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado

Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a

filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por

que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a

criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a

ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa

estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo

do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano

incorpora-se o mesmo a ela

Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na

sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de

qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma

contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa

suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o

outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os

contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute

pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo

Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta

apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute

basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se

encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar

122 Ver cap 2

123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10

124 Cf HP I 10

71

que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as

mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato

Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute

assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir

do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se

restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa

possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma

contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal

moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo

formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele

sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a

contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126

Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava

restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas

formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro

objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o

fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em

todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128

Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos

adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que

Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica

soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela

125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776

126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)

127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120

128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)

129 Ver o cap 1

72

postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a

ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar

uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma

decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo

que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo

Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a

suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor

delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor

Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no

momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o

efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto

plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo

O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a

uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a

primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade

qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto

que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso

seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a

que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o

assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio

se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico

gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos

ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do

uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo

Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute

caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma

atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas

coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por

outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute

isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o

130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)

73

resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos

nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131

O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da

perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a

tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico

ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e

aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua

decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo

haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de

que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma

decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se

refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas

ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se

131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)

132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14

74

decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto

Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos

descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma

discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado

tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no

opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133

Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se

caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre

um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute

levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o

que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o

fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados

com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso

nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude

com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos

completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila

perante os opostos

133 Cf HP I 12

134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)

135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)

75

Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo

refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este

filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se

apresenta com valor de verdade

Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do

entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente

eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter

uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter

limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque

estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por

exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute

aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo

consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao

mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua

unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a

limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo

aqui natildeo eacute um mal a ser evitado

O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre

entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da

afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com

efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido

a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele

exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute

136 Ver o cap 2

137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91

138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87

76

possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento

natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro

domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a

contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a

agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo

entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila

Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel

quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja

dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel

filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo

ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse

ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo

determinado como o absolutordquo140

Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso

filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia

se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142

Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de

pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas

determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante

os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo

que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados

finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja

De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma

determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o

mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa

afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como

impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse

139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798

140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)

141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss

142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90

77

modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel

quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo

resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na

filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta

filosofia eacute a filosofia especulativa

Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de

pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta

esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular

proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de

predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a

forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma

unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se

pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse

absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas

que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve

ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese

de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos

opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do

entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o

mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse

contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento

dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco

do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias

143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)

144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)

145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94

146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95

78

Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria

o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana

esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de

entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo

admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se

eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo

tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra

procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o

absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses

determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva

ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto

podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma

abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo

poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam

ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado

do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute

dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal

denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo

A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo

tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo

e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia

em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa

147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss

148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94

79

Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os

tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses

chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos

antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo

Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez

tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos

empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os

tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele

que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma

forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma

consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154

Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do

dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de

elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a

intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem

imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a

mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos

animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes

149 Ver Cap 1 pp 46-48

150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778

151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss

152 Cf HP I 3135 e 36

153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss

154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779

155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)

156 Cf HP I 40-78

80

representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das

diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees

visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas

nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de

certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer

por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a

outro natildeo

Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade

daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma

falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses

dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)

Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo

todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158

Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove

como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo

da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por

meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar

extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar

que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar

abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados

modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais

distante e irrealizaacutevel

Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia

nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso

dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato

Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que

157 Cf HP I 79-91

158 Cf HP I 39

159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790

160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)

81

eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce

Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante

portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e

assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute

refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio

do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas

outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo

Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante

apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des

gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o

ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute

verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que

imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que

possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos

161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779

162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790

163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1

164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375

165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

82

tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute

nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez

tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da

perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes

aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece

serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo

possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez

tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma

rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado

uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para

ele por meio dos dez tropos

Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o

visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso

dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para

mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma

verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes

de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo

antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do

texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o

procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que

Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a

uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave

primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da

166 Cf GW 4 p 204

167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775

168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)

83

Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte

Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante

a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute

noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades

insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169

O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue

Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma

aacutervore mas antes uma casa

Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade

de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que

se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente

natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu

acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer

o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora

eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser

contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser

dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite

natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele

natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer

o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser

que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele

A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela

linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso

alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos

169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76

170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77

171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76

172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma

84

apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel

singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este

pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco

de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente

o universalrdquo174

Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo

conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo

de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a

verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do

saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo

Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os

fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber

imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido

concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido

dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados

agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder

afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de

verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67

173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68

174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82

175 Cf HP I 19-20

85

pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no

ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que

aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto

estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa

ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos

impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de

verdade

O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de

um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que

vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico

tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o

faz de uma outra perspectiva

Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja

obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos

portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa

discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo

podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir

entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano

ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir

dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na

dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute

visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal

Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para

Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a

respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele

continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que

acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de

verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo

teacutetico concernente a esse aparecer

176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo

86

Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo

dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica

impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos

referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo

dogmaacutetico

O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de

compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do

ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma

incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o

exemplo mais gritante da mesma

Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do

ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de

solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a

criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco

vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica

presente na certeza sensiacutevel

De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos

tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas

nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do

ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do

ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica

observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos

refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e

completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo

177 Cf HP I 36

178 Cf HP I 164

179 Cf HP I 177

87

de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo

que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os

dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos

de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a

ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez

tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia

forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva

ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio

julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros

Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez

tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da

relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem

reduzidos

Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo

esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo

antigo

Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de

Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o

alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de

Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado

tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior

imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente

180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica

88

diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as

formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181

O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos

mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um

dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura

nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o

da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de

uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de

que se trata

Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater

natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E

por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de

filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)

Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute

na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a

aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou

proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com

que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico

Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o

primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185

Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter

determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais

181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790

182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)

183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2

184 Cf HP I 12

185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2

89

contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes

elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de

entendimento187

Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do

entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em

uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se

simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o

negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de

acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo

arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal

princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro

princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da

mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por

diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma

regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)

Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a

falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as

oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia

(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo

favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de

acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja

e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa

proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era

enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo

186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799

187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799

188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799

189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2

190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo

90

Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por

essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado

encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo

entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica

ceacutetica

A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais

do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie

de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia

Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se

retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash

como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade

que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta

dogmaticamente

Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude

filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela

qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado

dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua

levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados

pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada

para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193

191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800

192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o

91

O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada

quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo

qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado

por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa

coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma

preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno

O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal

que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento

loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196

Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do

que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num

argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas

ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado

Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que

eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua

conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54

194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800

195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)

92

proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que

eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria

excluiacutedo da investigaccedilatildeo

Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel

referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele

modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197

O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte

na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que

saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus

possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a

coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica

implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a

linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo

algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do

que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que

num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das

palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis

Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o

caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas

descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua

unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo

dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa

amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila

da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua

proacutepria operaccedilatildeo

197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800

198 Cf HP III 4

199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades

200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800

93

No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo

um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos

diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas

Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as

determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o

seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel

critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie

uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves

determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer

dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas

Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do

relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo

ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo

(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o

um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser

espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a

negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa

negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em

si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203

Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se

determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento

201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)

94

que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute

o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo

eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo

A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou

como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que

natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da

dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento

natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se

determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute

uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que

ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre

ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como

jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender

porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na

liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do

ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico

especulativordquo205

Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele

natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o

204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37

205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776

95

espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave

suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada

Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a

limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a

ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa

contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem

no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se

dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma

nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em

face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207

O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se

empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute

conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente

falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo

que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da

contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada

ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai

daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada

mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209

206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761

207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als

Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761

208 Ibidem p 360 trad cit p 761

209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo

96

O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo

unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos

iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se

determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da

Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de

criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se

desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o

quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica

Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de

Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo

como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como

seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia

especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute

contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em

sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213

Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar

de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana

Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da

alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si

210 Cf E sect86 e ss

211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34

212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243

213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776

97

mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer

um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de

dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada

sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que

por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute

igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que

no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia

dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja

necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que

transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto

diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que

ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento

Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um

outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo

jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que

nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio

dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com

as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa

sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo

214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803

215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761

217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo

218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo

98

como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa

sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219

Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste

domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O

que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se

contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado

natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente

negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si

mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela

mesmardquo220

Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa

do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua

unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega

Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que

por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste

estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que

algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade

que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se

contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade

A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da

mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser

219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802

220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo

221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798

222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4

223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)

99

contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A

natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225

A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente

(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do

ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude

filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz

assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento

224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5

225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761

101

II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa

Natildeo eacute muito bom para a filosofia

ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo

apenas poder dizer isto eacute ou isto

natildeo eacute

Hegel226

Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees

de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto

limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de

eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que

comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua

concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos

importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o

entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia

natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229

226

Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974

227 GW 11 pp258-290

228 A ser tratado no capiacutetulo 5

229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216

102

A identidade

Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do

entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino

quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa

Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de

proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do

pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e

indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11

p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem

como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma

negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230

Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual

apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto

eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras

categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual

se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma

quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e

determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados

(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel

chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute

aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233

E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que

fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam

tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias

230 GW 11 p 258 trad p 34

231 Cf Ibidem p 259 trad p 34

232 Cf Ibidem p 259 trad p 34

233 Ibidem p 259 trad p 34

103

A resposta de Hegel eacute a seguinte

Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a

negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como

determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra

Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo

aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a

mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234

Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute

Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria

estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das

determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de

proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas

Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a

influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em

decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel

apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais

proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este

pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual

valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de

identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias

234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)

235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1

236 Cf HP I 12

104

Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de

acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas

que por direito a elas se relacionam

Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees

reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de

reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser

contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich

gegenseitig auf)238

Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de

identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais

proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo

A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um

exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse

princiacutepio enquanto tal

Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade

implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261

trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente

a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute

expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que

agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo

eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute

aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele

nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma

reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas

uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240

237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)

238 Ibidem p 260 trad p 36

239 Cf Ibidem p 260 trad p 36

240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38

105

Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta

que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um

diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso

dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua

natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241

A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone

o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui

de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica

Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento

que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre

mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale

insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata

estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a

contradiz

Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja

interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele

natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar

nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)

Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma

planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de

maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer

com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa

declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente

ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do

que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado

essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma

conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito

da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio

do que era esperado a saber nada

241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)

106

Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash

A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena

apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas

um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p

264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em

seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele

movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se

sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas

afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a

diferenccedilardquo243

Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de

contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que

havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente

se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que

aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa

como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244

Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de

identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais

princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e

como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute

que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve

expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei

do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm

242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43

243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228

244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)

107

mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245

Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de

natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender

apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta

identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato

desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute

ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246

A diferenccedila

Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um

duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si

Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de

diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por

si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248

Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro

ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas

apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma

diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os

diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo

O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no

acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o

245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)

246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)

247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45

248 Ibidem p 266 trad p 44

108

simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um

ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta

Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a

si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a

identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da

diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas

relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se

possa ter o todo da diferenccedila

Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois

momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser

uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel

chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada

um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem

distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro

A diversidade

Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois

momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de

serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma

diversidade (Verschiedenheit)

Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma

quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A

identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi

dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma

sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a

249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache

Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)

250 Ibidem p 266 trad p 44

109

identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do

diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o

idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da

identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca

Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo

assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute

relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo

que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um

em face do outro252

Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel

apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto

algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa

diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253

Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade

(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e

diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute

apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade

Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que

Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade

oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta

de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o

251 Ibidem p 267 trad p 45

252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)

253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)

254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila

110

ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a

identidade

De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente

exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada

uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores

isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo

satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do

Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal

constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa

determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade

assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse

ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo

da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela

mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua

determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel

afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de

que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo

unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a

determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao

mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque

negam a sua oposta e natildeo de modo exterior

Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas

qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente

positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente

positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute

uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a

negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente

positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute

255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)

256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186

257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187

258 GW 11 p 268 trad p 46

111

abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-

de-consistecircnciardquo259

Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro

de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo

denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em

si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute

ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo

exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo

sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261

E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo

como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O

estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que

se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a

identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como

igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)

Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa

Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262

Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo

que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que

temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da

diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca

entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de

afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave

destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que

259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan

denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)

260 GW 11 p 268 trad p 47

261 Ibidem p 268 trad p 47

262 Ibidem p 268 trad p 47

112

haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que

rege o entendimento eacute isto o que ocorre264

Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa

diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo

consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave

desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato

eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim

como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide

fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da

desigualdade mesma tal como resultourdquo265

263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente

264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento

265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt

den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]

113

Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa

identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um

diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar

refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se

determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de

si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele

mesmo o igualrdquo266

Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados

mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267

A oposiccedilatildeo

Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa

oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte

Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268

Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos

precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no

relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre

identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da

diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era

como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade

em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava

acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo

exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O

266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)

267 Ibidem p 270 trad p 50

268 Ibidem p 272 trad p 53

269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108

114

tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou

poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos

Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo

estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem

A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute

seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a

Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua

completude

Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e

diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora

como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo

Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute

apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel

chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como

ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo

exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-

posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada

momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece

no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-

de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa

diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como

apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da

desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada

O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a

determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro

270 GW 11 p 272 trad p 53

271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175

272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo

115

ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua

carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-

determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo

natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a

carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto

o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido

nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o

comeccedilordquo273

Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto

refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade

como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa

unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de

modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e

diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois

momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em

si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade

que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo

que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-

posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute

refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo

273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)

274 Cf GW 11 p 272 trad p 53

275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)

276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)

116

como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o

positivo)277

Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se

tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que

fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-

ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem

ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e

negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem

relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279

Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o

positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir

retomamos280

Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica

reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto

seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas

exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os

opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum

natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em

relaccedilatildeo ao outrordquo281

277 Cf Ibidem p 273 trad p 54

278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar

Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90

279 Cf GW 11 p 273 trad p 54

280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56

281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)

117

Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o

outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a

determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa

indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que

consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma

indiferenccedila dos opostos

Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com

seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das

determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal

espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o

negativordquo282

De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em

geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente

numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em

nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas

um outro em geral

Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo

azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem

conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como

seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284

Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da

indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se

282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)

283 Ibidem p 273 trad p 55

284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)

118

faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute

negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se

estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286

Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a

todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo

estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem

entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287

Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo

quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas

positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o

que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro

enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une

natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288

285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275

286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234

287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235

288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das

119

Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e

justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo

agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica

Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute

ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O

trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele

tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se

determina o positivo ou o negativo289

A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou

ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo

indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291

Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235

289 GW 11 p 276 trad p 58

290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234

291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo

Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)

Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se

120

Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados

apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um

se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada

um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua

relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o

positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e

negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um

puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto

Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como

tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si

contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo

Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo

Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)

Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida

292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)

121

A contradiccedilatildeo

Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro

Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam

cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse

relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro

Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a

oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse

conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute

exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees

reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo

reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela

de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo

conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e

assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo

relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295

Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela

se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que

eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua

autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)

realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro

que excluo de mim e assim me suspendo296

Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o

positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz

negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o

inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo

293 Ibidem p 279 trad p 62

294 Ibidem p 279 trad p 62

295 Ibidem p 279 trad p 62

296 Ibidem p 279 trad p 62

297 Cf Ibidem p 280 trad p 63

122

se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu

outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de

ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo

O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do

determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade

O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e

simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles

mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299

Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado

meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado

(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301

Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como

se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto

298 Cf Ibidem p 280 trad p 63

299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64

300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185

301 GW 11 p 281 trad p 64

123

cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da

oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o

contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina

de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee

como momento distinto do outro302

A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro

reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um

como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten

sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o

negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304

Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se

potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo

ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto

primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente

aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e

suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o

suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de

um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia

eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si

mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305

302 Ibidem p 281 trad p 64

303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65

304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)

305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)

124

Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e

simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam

mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se

aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e

assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu

fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a

suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que

significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de

fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se

(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das

determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada

contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307

O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo

autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua

suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)

eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309

Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a

autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)

306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66

307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)

308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo

309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)

125

no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que

fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no

fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo

das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa

relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode

ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se

relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada

ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma

resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no

fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo

negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si

ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento

somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo

mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e

se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se

consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute

antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314

310 Ibidem p 282 trad p 67

311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)

312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230

313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)

314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)

126

De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo

deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que

algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315

Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo

deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade

negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o

jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva

O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma

sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica

claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um

nada vazio vale ser lembrado

Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se

furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre

pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em

uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue

reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo

discurso dogmaacutetico

Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura

sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de

Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com

um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse

algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto

determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma

determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter

finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo

relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva

devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir

eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um

absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse

315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)

127

considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si

mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser

evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia

Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se

constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a

contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto

horror causam no pensamento natildeo-especulativo

316 Ibidem p 290 trad p 77

128

O finito e o infinito

Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a

categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317

Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318

Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro

(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da

qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo

pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute

estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa

limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se

compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo

limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto

em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite

O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por

consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas

o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer

como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo

perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu

fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai

aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam

317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss

318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186

319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166

320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)

129

negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser

(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321

Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse

outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo

entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o

finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo

seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo

finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito

surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse

processo322

ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-

aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a

negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito

pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao

seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se

deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda

conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323

De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O

finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito

que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a

321 Ibidem p 116 trad p 166

322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189

323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)

130

conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa

sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito

Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de

seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado

natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja

outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem

Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente

pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o

efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas

exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo

que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve

positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e

abstrato

Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da

contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele

com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a

si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326

324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167

325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)

326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a

131

Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo

O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral

Hegel327

Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia

mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito

absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa

do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente

por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no

contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos

mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo

meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave

investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia

especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser

aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa

forma filosoacutefica

Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que

poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que

o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas

mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo

Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico

da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui

resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190

327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13

132

retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do

meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de

continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que

Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que

segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer

imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse

mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica

mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos

remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o

capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que

dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica

Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a

partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito

Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira

parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia

respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do

Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o

conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada

e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da

mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala

em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito

eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a

328 Cf GW 12 pp 236-253

329 Cf HP I 170-172

330 Cf HP I 173-174

133

verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o

conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331

A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro

momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos

dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute

um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia

Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o

conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o

fundamento somente venha a aparecer ao final

Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma

ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio

e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um

argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos

vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa

estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos

Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo

perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da

Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave

dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo

imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que

Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma

331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249

332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)

134

pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e

assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada

arbitraacuteria

Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da

Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se

vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333

apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento

necessita ter-se feito como fundamento334

O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como

fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute

justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse

meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica

mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser

justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide

no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-

filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e

raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o

mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335

Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que

jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra

afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo

notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do

333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado

334 Cf GW 12 p 11 trad p 249

335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)

135

exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a

todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336

A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a

filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico

que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz

Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser

natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo

portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a

condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto

Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e

que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor

um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute

completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e

nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e

externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver

Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser

criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma

determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de

um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente

um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado

e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica

Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto

Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se

derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos

filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada

pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro

336 Cf HP I 12

337 Cf GW 12 p 22 tr p263

338 Cf GW 21 59 tr p 94

339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa

136

ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao

mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa

unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a

autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia

especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao

mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do

entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica

Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da

Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da

fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque

na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico

de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser

e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse

com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel

ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a

condensar-se na unidade do conceitordquo341

O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso

da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a

ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de

justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o

sistema do loacutegico342

mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94

340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94

341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)

342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367

137

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a

exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora

tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de

compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que

almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo

De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais

precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo

consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute

vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no

decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico

objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume

no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda

que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se

determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma

Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e

simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo

como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se

relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem

diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se

na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu

conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do

processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do

343 Cf GW 12 p 237 trad p 561

344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366

345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)

346 Cf Ibidem p 237 trad p 561

138

conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na

mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como

determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia

absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que

impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute

como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma

exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida

justamente que existerdquo349

Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua

entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do

meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que

natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu

conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de

determinaccedilatildeo dessa forma

Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido

como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem

maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo

determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais

que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados

conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o

absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do

conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351

347 Cf Ibidem p 237 trad p 560

348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562

349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)

350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)

351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)

139

Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder

um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito

e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da

Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim

ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o

conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo

seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a

atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352

Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do

conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e

na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender

porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que

poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito

Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos

universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou

diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua

determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse

processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio

conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355

Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse

sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo

352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)

353 Ibidem p 44 trad p 294

354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292

355 GW 12 p 25 trad p 267

140

A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa

diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo

da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta

identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de

universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o

que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal

pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade

absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo

Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos

constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim

o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se

particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua

vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual

surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal

superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute

relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de

si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do

conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que

adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361

356 Ibidem p 33 trad p 279

357 Ibidem p 33 trad p 279

358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283

359 Ibidem p 35 trad p 281

360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297

361 GW 12 p 38 trad p 285

141

A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si

mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito

esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na

realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de

sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse

modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja

nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva

penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito

O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia

ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do

proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo

Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo

elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra

parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366

E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe

agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia

O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que

a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do

conceito como ideacuteia

362 Ibidem p 51 trad p 303

363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada

364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)

365 Ibidem p 36 trad p 283

366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)

142

O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si

e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que

o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que

ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do

conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367

A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um

objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade

eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito

torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa

negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a

ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente

se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade

e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar

perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido

vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo

dialeacutetico imanente

O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do

conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da

ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples

conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se

separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente

essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A

identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369

367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)

368 GW 12 p 176 trad p 475-476

369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects

143

A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-

se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do

conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira

perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de

sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo

pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370

Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise

daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se

realiza

Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo

Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e

suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo

As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o

que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo

A universalidade

Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que

compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito

como ideacuteia absoluta

No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um

imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade

abstratardquo372

zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)

370 Ibidem p 238 trad p 562

144

Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja

arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo

implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado

e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para

com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico

Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou

inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa

relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo

absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um

comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica

quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um

imediato

O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse

seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel

que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no

entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e

o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra

nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o

imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o

comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma

sem nenhum conteuacutedordquo374

Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada

possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo

o significado do ser376

371 Cf Ibidem p 239 trad p 563

372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)

373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137

374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo

375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101

145

Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem

considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e

ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do

puro ser

Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do

fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na

Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o

imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria

segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente

e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e

essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o

percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o

fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato

que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao

mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel

faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser

Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele

eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a

nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo

absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte

como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo

preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378

O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche

os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a

contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito

loacutegico

376 Cf GW 12 p 239 trad p 564

377 Ver a respeito pp 132-137

378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)

146

E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si

mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de

toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se

relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta

de determinaccedilatildeo

Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de

realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e

a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380

Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente

indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o

conceito se realiza

Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude

dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente

que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se

conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381

Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do

seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por

sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que

tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se

apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma

que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o

universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser

379 Cf GW 12 p 239 trad p 564

380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)

381 Cf Ibidem p 240 trad p 565

382 Ver a respeito pp 139-141

383 Cf GW 12 p 24 trad p 267

384 Cf Ibidem p 240 trad p 565

385 Cf Ibidem p 239 trad p 564

147

como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute

somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se

torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio

natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que

somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo

com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o

meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387

De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do

processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O

iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o

conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente

singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389

Do universal para o particular

Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o

universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado

relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega

esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro

no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo

ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo

386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)

387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)

388 GW 12 p 241 trad p 566

389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)

390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)

391 Ibidem p 245 trad p 571

148

subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o

nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por

exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado

para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto

dessa determinaccedilatildeo do universal como particular

Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada

ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos

mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular

Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos

aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel

indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido

Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento

(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda

determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior

como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com

seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute

num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si

natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo

entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute

o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse

392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51

393 Cf GW 12 p 245 trad p 572

394 Cf Ibidem p 245 trad p 572

395 Cf Ibidem p 245 trad p 572

149

relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si

proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396

Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada

pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem

notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta

Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no

conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico

presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)

conteacutem em si nele estaacute postardquo397

Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico

consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a

unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a

suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo

da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si

mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela

negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal

soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente

concreto

Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a

primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao

momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo

do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo

o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda

396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88

397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)

398 Cf Ibidem p 246 trad p 572

399 Cf Ibidem p 246 trad p 573

400 Cf Ibidem p 49 trad p 300

401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573

150

como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas

denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro

o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo

Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu

universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele

(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu

objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele

proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403

Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo

estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse

mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute

absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu

proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a

esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual

a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao

caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode

significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou

melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo

de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que

eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se

(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global

Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a

si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio

determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute

constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva

402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)

403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)

404 Cf Ibidem p 16 trad p 255

151

atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no

movimento da dupla negaccedilatildeo

O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua

das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse

movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si

mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do

processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque

1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da

universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da

singularidade

Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma

ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com

o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma

relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel

dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste

justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407

Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo

consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como

singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa

premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse

apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica

405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259

406 Cf GW 12 p 246 trad p 574

407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572

408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113

152

a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo

de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito

aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute

particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato

contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como

suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade

A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo

imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da

diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o

ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade

absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410

A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao

imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal

imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se

determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a

negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro

409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574

410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575

153

apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de

um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411

O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema

Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca

entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez

ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a

principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico

inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que

permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico

Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que

chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se

condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir

desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa

determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na

forma de um sistema413

Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao

seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do

meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa

determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um

determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e

deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de

pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se

411 Ibidem p 247 trad p 574

412 Ibidem p 248 trad p 576

413 Ibidem p 248 trad p 576

414 Ibidem p 249 trad p 577

154

contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de

uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415

Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim

possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da

filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em

relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa

de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta

acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que

aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso

infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o

conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416

O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do

comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se

na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A

determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se

por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o

que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo

Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o

meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um

determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a

mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto

E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma

coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta

da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira

indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal

somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele

Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e

415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578

416 Ibidem p 249 trad pp 577-578

417 Ver a respeito pp 143-147

418 Cf GW 12 p 250 trad p 579

155

dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade

que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela

convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente

justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo

em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo

dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior

ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua

particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente

a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu

progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e

se condensa dentro de sirdquo420

Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao

fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos

novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do

comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da

determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo

tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E

419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)

420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)

421 Cf Ibidem p 251 trad p 580

422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist

156

contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para

aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto

Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa

via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o

universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e

no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que

tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein

gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro

que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar

Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto

a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso

Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo

esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar

adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse

processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao

meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf

GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio

dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem

criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e

seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta

pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute

dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse

procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos

Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2

423 Ibidem p 252 trad p 581

424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)

425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299

157

opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta

que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o

comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o

processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber

alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427

Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do

meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da

integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia

especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia

negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido

seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado

na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente

examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento

absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente

por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do

ceticismo stricto sensu

No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma

afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e

conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas

426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)

427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)

428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82

429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)

158

configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse

reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como

forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no

meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs

aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de

autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam

naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do

entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou

positivamente-racional433

O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e

limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado

pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que

atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo

entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as

limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua

oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das

mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que

conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung

Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a

modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado

continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional

do meacutetodo437

430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560

431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169

432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159

433 Ibidem p 118 trad p 159

434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156

435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)

436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70

437 Cf Ibidem p 70

159

Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute

justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento

agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem

era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse

novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que

seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas

determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio

dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma

vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese

de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato

cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os

advogados da duacutevida terminem por concordar com ele

161

CONCLUSAtildeO

Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel

procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-

investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia

Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o

iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito

sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo

Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a

preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a

elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe

apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o

ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por

Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma

exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o

ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades

pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um

discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila

Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute

fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente

em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica

para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto

porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia

O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no

domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse

domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do

entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das

determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas

com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se

162

chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como

avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo

Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o

procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de

seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as

oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se

termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a

negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de

conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica

antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo

ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo

e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do

procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia

163

OBRAS DE HEGEL

HEGEL G W F Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie

In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix

Meiner 1968 Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992

Gesammelte Werke vol 20

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede

Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner

Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer

Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817

Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften

und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein

(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen

(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978

164

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die

Lehre vom Begriff (1816) Gesammelte Werke vol 12 Hamburg Meiner 1981

Traduccedilotildees

HEGEL G W F Ciencia de la Logica (I e II ) trad de Augusta e Rodolfo Mondolfo

Ciencia de la Loacutegica Buenos Aires Ediciones Solar 1993

______________ Diffeacuterence des systegravemes philosophiques de Fichte et de Schelling traduccedilatildeo

de Marcel Meacutery In Premiegraveres Publications 2ordf ed Paris Ophrys-Gap 1964

______________ Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas em compecircndio (1830) I ndash A Ciecircncia

da Loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Henrique C de Lima Vaz coleccedilatildeo Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1974

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Paulo Meneses Petroacutepolis Vozes 2a

ed 1992

______________ Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Traduccedilatildeo notas e apresentaccedilatildeo de

Marcos Lutz Muumlller IFCH-UNICAMP 2005

______________ La relation du scepticism avec la philosophie trad de B Fauquet 2ordf ed

Paris Vrin 1986

______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 2

trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1971

______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 4

trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1975

165

BIBLIOGRAFIA

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1985

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ARANTES P E Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996

ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des VernunftBegriffs Hamburg

Meiner 1994

BOLZANI F R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado

FFLCH-USP 1992

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003

BROCHARD V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969

BUCHNER H Zur Bedeutung des Skeptizismus beim Jungen Hegel In Hegel-Studien

Beiheft 4 Bonn Bouvier 1969 ( tambeacutem em Hegel-Tage Urbino 1965 )

DUumlSING K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen

Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130

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FORSTER M N Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts London England

Harvard U P 1989

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FULDA H F e HORSTMANN R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der

Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996

GEacuteRARD G Critique et Dialectique litineacuteraire de Hegel agrave Iena ( 1801-1805 ) Bruxelas

Publications des Facultes Universitaires Saint-Louis 1982

HEIDEMANN D Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die

pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung BerlinNew York Walter de Gruyter

2007

HENRICH D ldquoHegels Grundoperation ndash Eine Einleitung in die ldquoWissenschaft der Logikrdquo

in Guzzoni Ute (ed) Der Idealismus und seine Gegenwart ndash Festschrift fuumlr Werner Marx

Hamburg Meiner 1976

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Heidelberg Winter 2006

JAESCHKE W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003

KANT I Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005

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LEBRUN G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000

MARTIN L F B ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir

da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo in Revista Dois Pontos UFSCARUFPR

vol 4 nuacutemero 2 2007

MUumlLLER M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou

radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3

2005

PORCHAT PEREIRA O Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Unesp 2006

____________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993

SCHAumlFER R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik In Hegel-

Studien Beiheft 45 Hamburg Felix Meiner 2001

SCHULZE G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

SEXTO EMPIacuteRICO Outlines of Pyrrhonism vol I trad de RG Bury Cambridge Harvard

University Press 2000 Grundriszlig der pyrrhonischen Skepsis trad de Malte Hossenfelder

Frankfurt a M Suhrkamp 1985

SEXTO EMPIacuteRICO Adversus Mathematicos trad de RG Bury The Loeb Classical

Library in four volumes Cambridge Harvard University Press 1985

168

VIEWEG K e BOWMAN B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in

hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der

Philosophie Band 10 2006

_________________________________ Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte

um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp

Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003

VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der

Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches

Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002

___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des

Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels

Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974

Page 4: CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL€¦ · CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia

7

ABSTRACT

First it means to analyse Hegelrsquos reading of the skeptical philosophy specifically

pyrrhonian skepticism Thus it will be possible to assess to what extent the skepticism is

important to Hegelrsquos philosophy in general and in particular for the formation of his

speculative dialectical method We will cover texts from many phases of Hegelrsquos philosophy

in which skepticism is focus or appears within a context that also interests us namely the

discussion of the method Regarding this last one subject of the second part of the thesis we

examine in Science of Logic the moments where we can observe in a special way the

formation of hegelian dialectical method the section in Doctrine of Essence that is dedicated

to the determinations of reflection and the section entitled Absolute Idea the last chapter of

the book From this study of Science of Logic we can judge more accurately what the

Hegelian philosophical method is liable to the skeptical philosophy which means how this

method is formulated in a way that skepticism is a part of it The main idea is to show that

Hegel does not try a simple refutation of skepticism more than this he shows that skepticism

is the philosophy unavoiable which preserves the philosophy from fall victim of skepticals

aporias This is the way that Hegel finds to not become skeptical pyrrhonian and also the

subject of skeptical criticism

9

Para a Luciana

11

Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos

pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel

Hegel

A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia

de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades

Hegel

13

AGRADECIMENTOS

Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver

intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de

pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua

amizade

Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no

meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste

trabalho

Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou

da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade

Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo

deste trabalho

Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu

pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e

tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden

Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien

Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt

Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane

Agrave minha famiacutelia

Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha

Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante

em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo

A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-

UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa

15

SUMAacuteRIO

LISTA DE ABREVIATURAS p 17

INTRODUCcedilAtildeO p 19

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49

Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65

II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101

Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131

CONCLUSAtildeO p 161

BIBLIOGRAFIA p 163

17

LISTA DE ABREVIATURAS

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische

Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em

diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968

Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980

Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre

vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978

Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom

Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981

Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W

Bosiepen e H -C Lucas 1992

Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre

vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984

Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M

Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993

Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp

1986

Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp

2003

19

Introduccedilatildeo

Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o

filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1

Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave

filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar

que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3

O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para

Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia

hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira

1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)

2 Cf GW 4 pp 197-238

3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007

4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

20

filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O

diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de

sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra

No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo

nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho

explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans

Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o

tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do

conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente

escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por

uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa

filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6

De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo

antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de

constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a

filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como

algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo

pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo

natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega

em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)

A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que

Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos

dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira

de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se

tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que

novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar

atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que

5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado

6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana

21

comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa

postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se

fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave

mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na

assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo

Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao

dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de

Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma

vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras

seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no

cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em

responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa

Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria

por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e

dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi

atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la

A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse

dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta

outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado

nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico

poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De

fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em

ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta

representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o

ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da

filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o

fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se

esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente

avaliara no ceticismo 7

7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da

22

Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser

formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo

acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que

almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo

Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico

como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos

limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este

trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do

ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz

(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que

comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do

pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu

sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos

quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo

desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e

anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o

ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana

e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos

observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de

negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que

mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute

isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que

impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo

Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo

hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de

reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados

obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo

tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente

assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a

linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo

23

filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-

lo reformulado a si proacutepria

Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de

acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o

ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o

lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do

ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas

aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente

natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica

25

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico

Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato

dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas

E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar

por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos

por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma

filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas

por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O

que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema

filosoacutefico exposto8

Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com

verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema

qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de

qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua

filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende

dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser

essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por

filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia

Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui

doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no

nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis

Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos

referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por

8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]

26

Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de

ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9

Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o

ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo

doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o

tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o

que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo

filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o

ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma

menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso

Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante

Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a

filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele

Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de

Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo

natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples

tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de

relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute

nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo

Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma

breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto

Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa

filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver

9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss

27

rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se

incorpora agrave filosofia hegeliana

Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela

descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute

declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas

Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo

com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em

virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros

declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a

investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum

resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram

capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma

suposta verdade filosoacutefica

Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como

resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade

inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se

dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica

Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o

ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que

ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a

investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum

resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o

uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros

filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa

10 A esse respeito veja-se HP I 1-4

28

investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com

frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente

Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa

que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz

Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece

a noacutes no momentordquo11

Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o

afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo

mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da

filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a

impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da

filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato

concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da

descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar

de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro

Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se

inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com

receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e

sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro

momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo

e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo

mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de

se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria

Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a

esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma

questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a

possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se

trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou

negativamente ndash naquilo que investiga

11 Cf HP I 4

12 Cf HP I 12

29

Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que

encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do

que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se

distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade

a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade

ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do

mesmo fim a saber a ataraxiacutea

Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute

inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se

eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte

Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo

que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se

tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)

anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em

detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se

mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um

objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas

satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante

E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se

encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do

que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico

terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou

falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se

portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14

A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim

chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre

as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na

opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que

13 Cf HP I 12

14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5

30

acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto

(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16

Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira

dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude

deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute

suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado

de intelecto suspensivordquo17

Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do

conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se

diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de

qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho

e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas

Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista

do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia

(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-

credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender

o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)

Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da

tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de

argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica

A agogeacute ceacutetica

A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o

ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas

15 Cf HP I 7 10 26 165

16 Cf HP I 10

17 Cf HP I 8

31

as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)

assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida

a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18

Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da

filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto

apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de

igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19

Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal

atitude (agogeacute) um tal modo de proceder

Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a

adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o

ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc

diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele

com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira

podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de

caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito

A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe

contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da

igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute

declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real

verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do

verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute

o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a

atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito

nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica

Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a

temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz

18 Cf HP I 8

19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8

20 Cf HP I 8

32

entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue

um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a

fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que

Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um

argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na

contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de

que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O

que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao

contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos

conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao

outro quanto a ser mais digno de creacutedito23

Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes

entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave

maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito

nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o

ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso

cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido

como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves

afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe

parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele

sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo

exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando

21 Cf HP I 9

22 Cf HP I 33

23 Cf HP I 10

24 Cf HP I 12

25 Cf HP I 13

33

De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por

fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de

dogmatizarrdquo

Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo

expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance

de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o

ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das

coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo

restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o

caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute

mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem

em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente

ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27

Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo

dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de

controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas

exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada

espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas

Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do

ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas

maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a

fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante

26 Cf HP I 13

27 Cf HP I 13

28 Cf HP I 182

29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo

34

Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece

indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a

quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma

amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31

Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica

foi alvo de muita incompreensatildeo

A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar

dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem

ceacutetica

Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees

natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do

ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se

expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem

ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma

A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de

instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as

30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37

31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica

32 Cf HP I 4

35

coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam

a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um

caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se

expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira

dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar

que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico

Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em

nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de

expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu

discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele

sempre evitar dogmatizar

Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver

nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar

Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das

coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer

dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que

natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese

filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo

dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos

ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece

Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-

evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de

foacutermulas que expressam essa incapacidade

33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo

34 Cf HP I 14

35 Cf HP I 203

36

Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo

absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de

que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se

de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas

ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas

satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas

Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo

existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa

ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos

dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a

respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37

Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas

quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-

evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame

finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais

conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade

ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras

foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter

natildeo-dogmaacutetico das mesmas

Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas

foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se

no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser

de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a

respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude

filosoacutefica

A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para

esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas

36 Ver a respeito HP I 187-209

37 Cf HP I 198

38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198

37

ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes

natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente

verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se

ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas

purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com

os humores se expelemrdquo40

Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas

expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no

qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu

juiacutezo

Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico

estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter

absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma

atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo

dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea

O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem

apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma

de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo

A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir

antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento

que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro

visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a

isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo

Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a

concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o

39 Cf HP I 14-15 206

40 Cf HP I 206

38

conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas

teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no

uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa

instrumentalidade dos argumentos utilizados

ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma

escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua

lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no

mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42

Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio

entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado

decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a

serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo

poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses

adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de

que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a

persuasividade desses argumentos eacute aparente43

41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159

42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2

43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)

39

Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os

argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos

ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios

juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44

Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente

do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do

verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra

tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que

determinada tese dogmaacutetica seja posta

Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo

possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas

satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele

mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim

como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o

compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana

ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras

(expressotildees)rdquo46

E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-

dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico

A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas

ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees

quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai

desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico

passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-

44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)

45 Cf HP I 207

46 Ibidem I 207

40

dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio

segundo o qual ele se conduz

Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das

forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado

que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A

respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-

filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo

Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de

vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico

quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a

aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na

incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra

reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes

um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso

pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a

paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral

Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa

decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum

criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de

outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos

qualquer forma de decisatildeo

De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e

que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando

decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser

inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica

A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o

ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da

41

falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo

como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente

doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia

quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como

proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute

verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente

natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade

das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo

Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui

caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de

criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos

elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos

pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a

essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem

significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como

obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou

daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico

em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de

se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo

Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido

como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de

qualquer coisardquo48

Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute

como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe

permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da

vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49

Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age

de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie

47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79

48 Cf HP I 21

49 Cf HP I 21

42

de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe

aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute

constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se

ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I

13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As

decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele

por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que

lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio

aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa

direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel

(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do

fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer

asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio

da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo

A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se

refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as

aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem

estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo

as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos

discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou

menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra

eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave

suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar

Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute

supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do

discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar

ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν

παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os

fenocircmenosrdquo52

50 Cf HP I 22

51 Cf HP I 19

52 Cf HP I 19-20

43

Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo

se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno

inquestionaacutevel

Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira

afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do

ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia

minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse

aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente

natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo

isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse

caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto

a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente

de minha vontade

Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu

agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende

dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53

O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento

que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e

determina seu agir54

Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda

acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de

pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais

aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o

domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual

poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem

ser observadas no domiacutenio sensiacutevel

53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)

54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo

44

O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e

que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem

de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou

epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir

apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele

sem opinar (adoxaacutestos)55

Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas

afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56

Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-

se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em

princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas

accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele

viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que

ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa

se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo

elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua

realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer

algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que

aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade

O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer

de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque

estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa

afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da

mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas

aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute

aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva

dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia

pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente

coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada

que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal

55 Cf HP I 23

56 Cf HP I 23

45

comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que

hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente

Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura

agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com

respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a

coisas inevitaacuteveis57

Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por

essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo

conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar

contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre

argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a

tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58

Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que

o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos

entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa

haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato

natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o

sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude

dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa

em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo

Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se

propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como

ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver

de acordo com dogmas

57 Cf HP I 25

58 Cf Ibidem I 26

59 Cf Ibidem I 27

60 Cf Ibidem I 29

46

Os tropos ceacuteticos

Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico

consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo

seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse

modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por

diante62

Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e

assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63

Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os

homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas

circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo

nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou

raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees

dogmaacuteticas

Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de

todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos

apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao

qual todos os outros nove podem se referir64

Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que

se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia

controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na

61 Ver a respeito pp 30-32

62 Cf HP I 31

63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259

64 Cf HP I 39

47

hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os

tropos de Agripa65

Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel

de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas

comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de

opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave

suspensatildeo do juiacutezo66

Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova

prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E

essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma

regressatildeo que natildeo tem fim67

O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente

numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que

o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo

relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista

natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo68

O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma

demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou

essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma

demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo

haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69

65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303

66 Cf HP I 165

67 Cf HP I 166

68 Cf Ibidem I 167

69 Cf Ibidem I 168

48

Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute

objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo

acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70

Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a

filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a

filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto

diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que

empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma

possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo

da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana

do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia

70 Cf Ibidem I 169

71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica

49

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel

No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros

objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo

nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga

medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico

das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de

uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel

a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo

teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo

Teremos o quecirc entatildeo

No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel

para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute

um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento

de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o

que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo

mais minuciosa do significado desses termos

Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema

filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele

72 GW 4 pp 197-238

73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2

74 GW 4 pp 5-92

50

que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que

nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na

filosofia75

Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias

formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado

do significado de entendimento e razatildeo

Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua

eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees

hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica

da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma

insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da

criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa

tarefa criacutetica hegeliana

Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na

sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade

especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade

absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre

essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo

desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua

75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila

76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136

77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104

51

accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a

fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma

cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja

um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade

natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do

combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida

No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado

pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as

oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica

fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma

em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)

E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa

como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste

momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia

perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico

hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma

possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico

Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do

absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir

do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir

dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos

talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um

conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao

absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de

finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst

78 Ibidem p 14 trad p 88

79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90

80 Cf Ibidem p 14 trad p 88

81 Ibid p 12 trad p 86

82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87

52

spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo

postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid

p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo

finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao

fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a

todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo

absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se

consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa

totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar

que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito

A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do

entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como

expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento

arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como

uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a

maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa

da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a

formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante

a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e

mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir

novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)

Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que

natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a

realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua

condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se

83 Cf Ibid p 13 trad p 87

84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)

85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)

86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)

53

segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o

ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito

ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento

que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa

carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo

Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o

entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da

limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva

apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar

origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo

com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e

condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de

uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas

regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento

completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na

qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o

trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade

reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um

outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de

dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do

entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o

determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)

Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de

modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o

entendimento87

87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von

54

Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas

caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o

complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica

por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem

I 175-7)

Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute

igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento

estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e

possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de

relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com

ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)

As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui

de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade

formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute

contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-

25)

Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa

posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da

desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade

se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da

desigualdade

Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996

55

Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que

estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo

diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B

Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do

entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra

Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A

posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto

do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A

(objeto)

ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo

que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)

O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute

diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo

podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila

Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio

Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como

absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4

p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se

manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto

O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a

contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo

admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo

tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste

no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se

articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O

que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo

posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de

um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo

pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao

infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois

56

se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as

premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo

possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)

Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no

entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo

exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e

portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela

precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo

(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo

do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo

ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que

uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser

suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die

blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do

entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute

dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos

contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem

igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a

antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem

sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute

um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor

atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele

A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do

ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi

posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz

com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que

cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se

88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)

57

sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como

escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem

Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse

domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias

surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas

Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se

realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo

seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo

entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele

compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo

Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor

und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento

anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma

atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer

como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que

resultaria numa antinomia

A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees

postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa

pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo

entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4

p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute

deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E

assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do

entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc

conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma

promessa natildeo passiacutevel de se cumprir

58

Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas

determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de

justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele

chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90

Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees

(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso

ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao

libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)

A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa

forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A

rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto

refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a

reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo

entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A

reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a

faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela

somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo

ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao

absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91

89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)

90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)

91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees

59

A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute

segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo

tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como

absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e

natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como

limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute

posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto

Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo

permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na

reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila

todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de

todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse

processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a

reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a

razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto

eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo

entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento

unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)

92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66

93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99

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Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro

que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o

absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se

deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de

conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o

absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as

outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante

sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)

Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao

absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95

as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao

absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter

abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma

antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente

adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro

afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro

com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo

eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado

destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera

dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos

aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da

especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a

antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende

Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O

reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se

conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir

aleacutem desse lado negativo

94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)

95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir

61

O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-

aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da

reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se

contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o

racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da

contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que

preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos

opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos

portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez

realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a

intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber

Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia

pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a

identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97

No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo

entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a

ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por

meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado

das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute

96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)

97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)

98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)

62

o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside

nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos

chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo

ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)

Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees

passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de

serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao

estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica

Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo

Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute

ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude

do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite

As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas

permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A

contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave

filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica

baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem

(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100

Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo

unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em

qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da

mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)

estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos

(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos

99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36

100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)

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uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de

entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma

identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a

antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja

suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos

(aufgehoben)103 na unidade do racional

Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em

duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen

laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em

cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila

igualrdquo104

A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a

filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas

antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti

logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao

levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem

levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada

A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada

na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova

siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW

4 p 31)105

101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)

102 Ibidem p 27 trad p 101

103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar

104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12

64

105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)

65

Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel

Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo

nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a

ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e

18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira

ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees

sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no

veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e

182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da

filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de

Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder

concluiacute-la

Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo

antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos

em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos

observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de

caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes

Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107

que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um

filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas

106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478

107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809

66

No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte

afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da

subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no

saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber

sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108

E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser

o acabamento da maneira de ver subjetivista

Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao

ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma

filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a

mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como

verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110

Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que

eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o

estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser

instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que

dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos

aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo

que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens

e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo

que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a

108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)

109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272

110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266

111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266

112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)

67

determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade

a filosofia ceacutetica

Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo

com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa

haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre

os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista

acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114

De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu

acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes

houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de

teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do

dogmatismo

Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem

positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo

chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O

113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)

114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)

115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1

68

que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista

conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo

como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a

expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por

ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E

esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se

esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem

a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico

substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa

atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa

em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no

horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute

desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia

encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de

se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117

Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos

em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto

de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de

outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo

Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que

sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de

mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais

terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118

Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao

fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram

116

Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica

117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45

118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)

69

essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma

maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim

subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119

No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica

de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que

poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma

desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse

reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee

Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que

devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a

elerdquo120

O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna

forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva

de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz

junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que

natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer

perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se

ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma

filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade

de se conseguir vencer ao ceacutetico

Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio

extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele

nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato

Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que

independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima

palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele

realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa

119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)

120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)

121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

70

ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a

seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja

favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado

Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a

filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por

que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a

criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a

ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa

estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo

do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano

incorpora-se o mesmo a ela

Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na

sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de

qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma

contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa

suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o

outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os

contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute

pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo

Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta

apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute

basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se

encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar

122 Ver cap 2

123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10

124 Cf HP I 10

71

que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as

mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato

Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute

assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir

do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se

restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa

possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma

contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal

moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo

formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele

sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a

contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126

Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava

restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas

formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro

objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o

fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em

todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128

Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos

adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que

Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica

soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela

125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776

126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)

127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120

128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)

129 Ver o cap 1

72

postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a

ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar

uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma

decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo

que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo

Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a

suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor

delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor

Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no

momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o

efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto

plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo

O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a

uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a

primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade

qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto

que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso

seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a

que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o

assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio

se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico

gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos

ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do

uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo

Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute

caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma

atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas

coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por

outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute

isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o

130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)

73

resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos

nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131

O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da

perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a

tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico

ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e

aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua

decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo

haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de

que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma

decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se

refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas

ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se

131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)

132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14

74

decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto

Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos

descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma

discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado

tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no

opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133

Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se

caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre

um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute

levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o

que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o

fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados

com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso

nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude

com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos

completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila

perante os opostos

133 Cf HP I 12

134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)

135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)

75

Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo

refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este

filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se

apresenta com valor de verdade

Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do

entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente

eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter

uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter

limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque

estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por

exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute

aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo

consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao

mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua

unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a

limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo

aqui natildeo eacute um mal a ser evitado

O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre

entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da

afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com

efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido

a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele

exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute

136 Ver o cap 2

137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91

138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87

76

possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento

natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro

domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a

contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a

agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo

entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila

Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel

quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja

dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel

filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo

ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse

ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo

determinado como o absolutordquo140

Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso

filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia

se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142

Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de

pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas

determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante

os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo

que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados

finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja

De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma

determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o

mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa

afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como

impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse

139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798

140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)

141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss

142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90

77

modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel

quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo

resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na

filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta

filosofia eacute a filosofia especulativa

Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de

pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta

esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular

proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de

predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a

forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma

unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se

pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse

absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas

que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve

ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese

de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos

opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do

entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o

mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse

contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento

dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco

do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias

143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)

144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)

145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94

146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95

78

Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria

o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana

esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de

entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo

admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se

eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo

tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra

procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o

absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses

determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva

ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto

podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma

abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo

poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam

ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado

do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute

dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal

denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo

A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo

tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo

e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia

em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa

147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss

148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94

79

Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os

tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses

chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos

antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo

Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez

tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos

empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os

tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele

que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma

forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma

consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154

Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do

dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de

elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a

intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem

imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a

mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos

animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes

149 Ver Cap 1 pp 46-48

150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778

151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss

152 Cf HP I 3135 e 36

153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss

154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779

155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)

156 Cf HP I 40-78

80

representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das

diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees

visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas

nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de

certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer

por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a

outro natildeo

Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade

daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma

falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses

dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)

Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo

todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158

Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove

como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo

da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por

meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar

extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar

que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar

abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados

modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais

distante e irrealizaacutevel

Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia

nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso

dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato

Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que

157 Cf HP I 79-91

158 Cf HP I 39

159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790

160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)

81

eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce

Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante

portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e

assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute

refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio

do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas

outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo

Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante

apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des

gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o

ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute

verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que

imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que

possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos

161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779

162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790

163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1

164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375

165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

82

tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute

nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez

tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da

perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes

aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece

serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo

possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez

tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma

rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado

uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para

ele por meio dos dez tropos

Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o

visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso

dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para

mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma

verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes

de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo

antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do

texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o

procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que

Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a

uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave

primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da

166 Cf GW 4 p 204

167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775

168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)

83

Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte

Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante

a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute

noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades

insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169

O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue

Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma

aacutervore mas antes uma casa

Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade

de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que

se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente

natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu

acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer

o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora

eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser

contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser

dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite

natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele

natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer

o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser

que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele

A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela

linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso

alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos

169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76

170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77

171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76

172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma

84

apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel

singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este

pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco

de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente

o universalrdquo174

Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo

conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo

de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a

verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do

saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo

Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os

fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber

imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido

concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido

dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados

agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder

afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de

verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67

173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68

174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82

175 Cf HP I 19-20

85

pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no

ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que

aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto

estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa

ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos

impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de

verdade

O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de

um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que

vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico

tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o

faz de uma outra perspectiva

Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja

obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos

portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa

discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo

podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir

entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano

ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir

dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na

dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute

visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal

Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para

Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a

respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele

continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que

acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de

verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo

teacutetico concernente a esse aparecer

176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo

86

Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo

dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica

impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos

referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo

dogmaacutetico

O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de

compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do

ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma

incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o

exemplo mais gritante da mesma

Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do

ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de

solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a

criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco

vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica

presente na certeza sensiacutevel

De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos

tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas

nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do

ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do

ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica

observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos

refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e

completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo

177 Cf HP I 36

178 Cf HP I 164

179 Cf HP I 177

87

de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo

que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os

dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos

de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a

ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez

tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia

forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva

ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio

julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros

Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez

tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da

relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem

reduzidos

Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo

esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo

antigo

Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de

Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o

alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de

Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado

tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior

imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente

180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica

88

diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as

formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181

O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos

mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um

dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura

nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o

da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de

uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de

que se trata

Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater

natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E

por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de

filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)

Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute

na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a

aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou

proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com

que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico

Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o

primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185

Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter

determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais

181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790

182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)

183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2

184 Cf HP I 12

185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2

89

contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes

elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de

entendimento187

Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do

entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em

uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se

simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o

negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de

acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo

arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal

princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro

princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da

mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por

diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma

regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)

Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a

falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as

oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia

(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo

favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de

acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja

e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa

proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era

enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo

186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799

187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799

188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799

189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2

190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo

90

Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por

essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado

encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo

entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica

ceacutetica

A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais

do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie

de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia

Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se

retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash

como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade

que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta

dogmaticamente

Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude

filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela

qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado

dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua

levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados

pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada

para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193

191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800

192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o

91

O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada

quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo

qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado

por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa

coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma

preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno

O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal

que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento

loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196

Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do

que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num

argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas

ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado

Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que

eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua

conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54

194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800

195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)

92

proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que

eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria

excluiacutedo da investigaccedilatildeo

Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel

referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele

modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197

O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte

na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que

saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus

possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a

coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica

implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a

linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo

algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do

que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que

num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das

palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis

Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o

caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas

descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua

unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo

dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa

amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila

da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua

proacutepria operaccedilatildeo

197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800

198 Cf HP III 4

199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades

200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800

93

No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo

um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos

diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas

Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as

determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o

seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel

critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie

uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves

determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer

dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas

Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do

relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo

ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo

(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o

um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser

espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a

negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa

negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em

si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203

Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se

determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento

201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)

94

que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute

o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo

eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo

A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou

como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que

natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da

dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento

natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se

determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute

uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que

ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre

ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como

jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender

porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na

liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do

ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico

especulativordquo205

Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele

natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o

204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37

205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776

95

espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave

suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada

Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a

limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a

ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa

contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem

no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se

dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma

nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em

face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207

O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se

empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute

conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente

falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo

que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da

contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada

ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai

daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada

mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209

206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761

207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als

Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761

208 Ibidem p 360 trad cit p 761

209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo

96

O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo

unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos

iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se

determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da

Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de

criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se

desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o

quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica

Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de

Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo

como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como

seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia

especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute

contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em

sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213

Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar

de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana

Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da

alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si

210 Cf E sect86 e ss

211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34

212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243

213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776

97

mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer

um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de

dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada

sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que

por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute

igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que

no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia

dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja

necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que

transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto

diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que

ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento

Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um

outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo

jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que

nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio

dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com

as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa

sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo

214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803

215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761

217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo

218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo

98

como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa

sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219

Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste

domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O

que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se

contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado

natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente

negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si

mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela

mesmardquo220

Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa

do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua

unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega

Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que

por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste

estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que

algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade

que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se

contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade

A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da

mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser

219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802

220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo

221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798

222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4

223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)

99

contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A

natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225

A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente

(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do

ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude

filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz

assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento

224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5

225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761

101

II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa

Natildeo eacute muito bom para a filosofia

ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo

apenas poder dizer isto eacute ou isto

natildeo eacute

Hegel226

Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees

de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto

limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de

eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que

comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua

concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos

importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o

entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia

natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229

226

Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974

227 GW 11 pp258-290

228 A ser tratado no capiacutetulo 5

229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216

102

A identidade

Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do

entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino

quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa

Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de

proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do

pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e

indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11

p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem

como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma

negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230

Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual

apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto

eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras

categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual

se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma

quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e

determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados

(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel

chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute

aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233

E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que

fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam

tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias

230 GW 11 p 258 trad p 34

231 Cf Ibidem p 259 trad p 34

232 Cf Ibidem p 259 trad p 34

233 Ibidem p 259 trad p 34

103

A resposta de Hegel eacute a seguinte

Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a

negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como

determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra

Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo

aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a

mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234

Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute

Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria

estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das

determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de

proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas

Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a

influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em

decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel

apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais

proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este

pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual

valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de

identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias

234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)

235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1

236 Cf HP I 12

104

Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de

acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas

que por direito a elas se relacionam

Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees

reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de

reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser

contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich

gegenseitig auf)238

Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de

identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais

proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo

A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um

exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse

princiacutepio enquanto tal

Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade

implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261

trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente

a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute

expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que

agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo

eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute

aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele

nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma

reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas

uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240

237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)

238 Ibidem p 260 trad p 36

239 Cf Ibidem p 260 trad p 36

240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38

105

Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta

que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um

diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso

dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua

natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241

A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone

o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui

de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica

Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento

que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre

mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale

insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata

estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a

contradiz

Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja

interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele

natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar

nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)

Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma

planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de

maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer

com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa

declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente

ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do

que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado

essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma

conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito

da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio

do que era esperado a saber nada

241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)

106

Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash

A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena

apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas

um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p

264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em

seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele

movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se

sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas

afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a

diferenccedilardquo243

Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de

contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que

havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente

se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que

aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa

como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244

Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de

identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais

princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e

como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute

que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve

expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei

do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm

242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43

243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228

244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)

107

mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245

Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de

natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender

apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta

identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato

desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute

ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246

A diferenccedila

Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um

duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si

Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de

diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por

si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248

Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro

ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas

apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma

diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os

diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo

O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no

acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o

245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)

246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)

247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45

248 Ibidem p 266 trad p 44

108

simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um

ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta

Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a

si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a

identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da

diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas

relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se

possa ter o todo da diferenccedila

Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois

momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser

uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel

chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada

um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem

distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro

A diversidade

Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois

momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de

serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma

diversidade (Verschiedenheit)

Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma

quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A

identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi

dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma

sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a

249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache

Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)

250 Ibidem p 266 trad p 44

109

identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do

diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o

idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da

identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca

Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo

assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute

relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo

que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um

em face do outro252

Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel

apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto

algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa

diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253

Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade

(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e

diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute

apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade

Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que

Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade

oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta

de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o

251 Ibidem p 267 trad p 45

252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)

253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)

254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila

110

ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a

identidade

De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente

exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada

uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores

isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo

satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do

Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal

constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa

determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade

assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse

ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo

da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela

mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua

determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel

afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de

que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo

unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a

determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao

mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque

negam a sua oposta e natildeo de modo exterior

Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas

qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente

positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente

positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute

uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a

negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente

positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute

255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)

256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186

257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187

258 GW 11 p 268 trad p 46

111

abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-

de-consistecircnciardquo259

Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro

de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo

denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em

si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute

ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo

exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo

sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261

E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo

como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O

estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que

se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a

identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como

igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)

Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa

Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262

Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo

que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que

temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da

diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca

entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de

afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave

destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que

259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan

denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)

260 GW 11 p 268 trad p 47

261 Ibidem p 268 trad p 47

262 Ibidem p 268 trad p 47

112

haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que

rege o entendimento eacute isto o que ocorre264

Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa

diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo

consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave

desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato

eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim

como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide

fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da

desigualdade mesma tal como resultourdquo265

263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente

264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento

265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt

den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]

113

Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa

identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um

diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar

refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se

determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de

si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele

mesmo o igualrdquo266

Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados

mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267

A oposiccedilatildeo

Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa

oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte

Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268

Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos

precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no

relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre

identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da

diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era

como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade

em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava

acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo

exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O

266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)

267 Ibidem p 270 trad p 50

268 Ibidem p 272 trad p 53

269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108

114

tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou

poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos

Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo

estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem

A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute

seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a

Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua

completude

Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e

diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora

como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo

Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute

apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel

chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como

ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo

exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-

posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada

momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece

no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-

de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa

diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como

apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da

desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada

O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a

determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro

270 GW 11 p 272 trad p 53

271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175

272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo

115

ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua

carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-

determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo

natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a

carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto

o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido

nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o

comeccedilordquo273

Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto

refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade

como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa

unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de

modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e

diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois

momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em

si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade

que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo

que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-

posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute

refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo

273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)

274 Cf GW 11 p 272 trad p 53

275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)

276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)

116

como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o

positivo)277

Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se

tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que

fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-

ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem

ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e

negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem

relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279

Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o

positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir

retomamos280

Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica

reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto

seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas

exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os

opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum

natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em

relaccedilatildeo ao outrordquo281

277 Cf Ibidem p 273 trad p 54

278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar

Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90

279 Cf GW 11 p 273 trad p 54

280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56

281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)

117

Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o

outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a

determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa

indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que

consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma

indiferenccedila dos opostos

Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com

seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das

determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal

espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o

negativordquo282

De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em

geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente

numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em

nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas

um outro em geral

Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo

azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem

conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como

seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284

Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da

indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se

282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)

283 Ibidem p 273 trad p 55

284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)

118

faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute

negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se

estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286

Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a

todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo

estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem

entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287

Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo

quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas

positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o

que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro

enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une

natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288

285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275

286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234

287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235

288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das

119

Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e

justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo

agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica

Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute

ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O

trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele

tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se

determina o positivo ou o negativo289

A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou

ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo

indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291

Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235

289 GW 11 p 276 trad p 58

290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234

291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo

Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)

Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se

120

Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados

apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um

se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada

um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua

relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o

positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e

negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um

puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto

Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como

tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si

contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo

Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo

Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)

Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida

292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)

121

A contradiccedilatildeo

Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro

Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam

cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse

relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro

Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a

oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse

conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute

exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees

reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo

reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela

de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo

conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e

assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo

relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295

Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela

se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que

eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua

autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)

realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro

que excluo de mim e assim me suspendo296

Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o

positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz

negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o

inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo

293 Ibidem p 279 trad p 62

294 Ibidem p 279 trad p 62

295 Ibidem p 279 trad p 62

296 Ibidem p 279 trad p 62

297 Cf Ibidem p 280 trad p 63

122

se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu

outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de

ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo

O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do

determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade

O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e

simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles

mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299

Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado

meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado

(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301

Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como

se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto

298 Cf Ibidem p 280 trad p 63

299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64

300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185

301 GW 11 p 281 trad p 64

123

cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da

oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o

contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina

de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee

como momento distinto do outro302

A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro

reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um

como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten

sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o

negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304

Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se

potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo

ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto

primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente

aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e

suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o

suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de

um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia

eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si

mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305

302 Ibidem p 281 trad p 64

303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65

304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)

305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)

124

Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e

simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam

mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se

aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e

assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu

fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a

suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que

significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de

fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se

(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das

determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada

contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307

O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo

autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua

suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)

eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309

Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a

autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)

306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66

307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)

308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo

309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)

125

no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que

fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no

fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo

das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa

relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode

ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se

relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada

ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma

resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no

fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo

negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si

ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento

somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo

mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e

se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se

consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute

antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314

310 Ibidem p 282 trad p 67

311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)

312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230

313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)

314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)

126

De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo

deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que

algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315

Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo

deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade

negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o

jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva

O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma

sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica

claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um

nada vazio vale ser lembrado

Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se

furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre

pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em

uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue

reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo

discurso dogmaacutetico

Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura

sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de

Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com

um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse

algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto

determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma

determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter

finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo

relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva

devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir

eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um

absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse

315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)

127

considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si

mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser

evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia

Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se

constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a

contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto

horror causam no pensamento natildeo-especulativo

316 Ibidem p 290 trad p 77

128

O finito e o infinito

Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a

categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317

Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318

Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro

(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da

qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo

pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute

estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa

limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se

compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo

limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto

em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite

O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por

consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas

o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer

como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo

perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu

fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai

aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam

317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss

318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186

319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166

320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)

129

negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser

(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321

Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse

outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo

entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o

finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo

seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo

finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito

surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse

processo322

ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-

aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a

negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito

pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao

seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se

deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda

conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323

De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O

finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito

que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a

321 Ibidem p 116 trad p 166

322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189

323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)

130

conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa

sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito

Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de

seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado

natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja

outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem

Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente

pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o

efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas

exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo

que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve

positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e

abstrato

Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da

contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele

com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a

si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326

324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167

325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)

326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a

131

Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo

O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral

Hegel327

Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia

mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito

absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa

do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente

por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no

contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos

mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo

meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave

investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia

especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser

aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa

forma filosoacutefica

Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que

poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que

o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas

mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo

Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico

da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui

resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190

327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13

132

retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do

meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de

continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que

Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que

segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer

imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse

mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica

mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos

remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o

capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que

dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica

Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a

partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito

Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira

parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia

respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do

Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o

conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada

e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da

mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala

em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito

eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a

328 Cf GW 12 pp 236-253

329 Cf HP I 170-172

330 Cf HP I 173-174

133

verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o

conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331

A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro

momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos

dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute

um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia

Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o

conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o

fundamento somente venha a aparecer ao final

Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma

ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio

e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um

argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos

vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa

estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos

Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo

perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da

Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave

dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo

imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que

Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma

331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249

332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)

134

pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e

assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada

arbitraacuteria

Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da

Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se

vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333

apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento

necessita ter-se feito como fundamento334

O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como

fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute

justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse

meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica

mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser

justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide

no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-

filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e

raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o

mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335

Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que

jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra

afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo

notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do

333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado

334 Cf GW 12 p 11 trad p 249

335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)

135

exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a

todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336

A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a

filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico

que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz

Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser

natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo

portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a

condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto

Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e

que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor

um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute

completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e

nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e

externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver

Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser

criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma

determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de

um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente

um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado

e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica

Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto

Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se

derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos

filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada

pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro

336 Cf HP I 12

337 Cf GW 12 p 22 tr p263

338 Cf GW 21 59 tr p 94

339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa

136

ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao

mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa

unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a

autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia

especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao

mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do

entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica

Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da

Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da

fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque

na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico

de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser

e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse

com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel

ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a

condensar-se na unidade do conceitordquo341

O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso

da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a

ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de

justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o

sistema do loacutegico342

mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94

340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94

341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)

342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367

137

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a

exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora

tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de

compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que

almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo

De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais

precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo

consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute

vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no

decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico

objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume

no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda

que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se

determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma

Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e

simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo

como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se

relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem

diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se

na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu

conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do

processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do

343 Cf GW 12 p 237 trad p 561

344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366

345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)

346 Cf Ibidem p 237 trad p 561

138

conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na

mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como

determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia

absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que

impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute

como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma

exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida

justamente que existerdquo349

Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua

entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do

meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que

natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu

conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de

determinaccedilatildeo dessa forma

Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido

como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem

maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo

determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais

que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados

conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o

absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do

conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351

347 Cf Ibidem p 237 trad p 560

348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562

349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)

350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)

351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)

139

Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder

um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito

e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da

Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim

ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o

conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo

seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a

atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352

Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do

conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e

na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender

porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que

poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito

Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos

universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou

diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua

determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse

processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio

conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355

Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse

sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo

352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)

353 Ibidem p 44 trad p 294

354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292

355 GW 12 p 25 trad p 267

140

A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa

diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo

da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta

identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de

universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o

que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal

pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade

absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo

Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos

constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim

o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se

particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua

vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual

surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal

superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute

relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de

si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do

conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que

adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361

356 Ibidem p 33 trad p 279

357 Ibidem p 33 trad p 279

358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283

359 Ibidem p 35 trad p 281

360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297

361 GW 12 p 38 trad p 285

141

A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si

mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito

esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na

realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de

sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse

modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja

nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva

penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito

O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia

ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do

proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo

Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo

elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra

parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366

E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe

agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia

O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que

a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do

conceito como ideacuteia

362 Ibidem p 51 trad p 303

363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada

364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)

365 Ibidem p 36 trad p 283

366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)

142

O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si

e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que

o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que

ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do

conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367

A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um

objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade

eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito

torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa

negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a

ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente

se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade

e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar

perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido

vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo

dialeacutetico imanente

O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do

conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da

ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples

conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se

separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente

essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A

identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369

367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)

368 GW 12 p 176 trad p 475-476

369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects

143

A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-

se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do

conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira

perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de

sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo

pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370

Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise

daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se

realiza

Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo

Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e

suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo

As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o

que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo

A universalidade

Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que

compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito

como ideacuteia absoluta

No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um

imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade

abstratardquo372

zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)

370 Ibidem p 238 trad p 562

144

Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja

arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo

implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado

e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para

com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico

Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou

inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa

relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo

absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um

comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica

quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um

imediato

O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse

seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel

que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no

entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e

o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra

nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o

imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o

comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma

sem nenhum conteuacutedordquo374

Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada

possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo

o significado do ser376

371 Cf Ibidem p 239 trad p 563

372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)

373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137

374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo

375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101

145

Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem

considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e

ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do

puro ser

Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do

fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na

Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o

imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria

segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente

e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e

essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o

percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o

fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato

que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao

mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel

faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser

Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele

eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a

nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo

absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte

como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo

preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378

O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche

os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a

contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito

loacutegico

376 Cf GW 12 p 239 trad p 564

377 Ver a respeito pp 132-137

378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)

146

E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si

mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de

toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se

relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta

de determinaccedilatildeo

Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de

realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e

a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380

Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente

indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o

conceito se realiza

Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude

dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente

que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se

conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381

Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do

seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por

sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que

tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se

apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma

que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o

universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser

379 Cf GW 12 p 239 trad p 564

380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)

381 Cf Ibidem p 240 trad p 565

382 Ver a respeito pp 139-141

383 Cf GW 12 p 24 trad p 267

384 Cf Ibidem p 240 trad p 565

385 Cf Ibidem p 239 trad p 564

147

como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute

somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se

torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio

natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que

somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo

com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o

meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387

De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do

processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O

iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o

conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente

singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389

Do universal para o particular

Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o

universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado

relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega

esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro

no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo

ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo

386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)

387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)

388 GW 12 p 241 trad p 566

389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)

390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)

391 Ibidem p 245 trad p 571

148

subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o

nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por

exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado

para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto

dessa determinaccedilatildeo do universal como particular

Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada

ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos

mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular

Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos

aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel

indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido

Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento

(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda

determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior

como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com

seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute

num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si

natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo

entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute

o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse

392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51

393 Cf GW 12 p 245 trad p 572

394 Cf Ibidem p 245 trad p 572

395 Cf Ibidem p 245 trad p 572

149

relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si

proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396

Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada

pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem

notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta

Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no

conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico

presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)

conteacutem em si nele estaacute postardquo397

Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico

consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a

unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a

suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo

da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si

mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela

negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal

soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente

concreto

Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a

primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao

momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo

do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo

o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda

396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88

397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)

398 Cf Ibidem p 246 trad p 572

399 Cf Ibidem p 246 trad p 573

400 Cf Ibidem p 49 trad p 300

401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573

150

como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas

denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro

o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo

Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu

universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele

(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu

objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele

proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403

Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo

estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse

mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute

absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu

proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a

esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual

a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao

caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode

significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou

melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo

de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que

eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se

(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global

Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a

si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio

determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute

constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva

402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)

403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)

404 Cf Ibidem p 16 trad p 255

151

atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no

movimento da dupla negaccedilatildeo

O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua

das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse

movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si

mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do

processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque

1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da

universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da

singularidade

Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma

ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com

o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma

relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel

dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste

justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407

Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo

consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como

singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa

premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse

apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica

405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259

406 Cf GW 12 p 246 trad p 574

407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572

408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113

152

a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo

de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito

aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute

particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato

contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como

suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade

A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo

imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da

diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o

ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade

absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410

A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao

imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal

imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se

determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a

negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro

409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574

410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575

153

apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de

um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411

O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema

Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca

entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez

ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a

principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico

inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que

permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico

Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que

chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se

condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir

desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa

determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na

forma de um sistema413

Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao

seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do

meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa

determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um

determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e

deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de

pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se

411 Ibidem p 247 trad p 574

412 Ibidem p 248 trad p 576

413 Ibidem p 248 trad p 576

414 Ibidem p 249 trad p 577

154

contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de

uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415

Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim

possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da

filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em

relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa

de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta

acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que

aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso

infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o

conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416

O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do

comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se

na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A

determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se

por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o

que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo

Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o

meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um

determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a

mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto

E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma

coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta

da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira

indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal

somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele

Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e

415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578

416 Ibidem p 249 trad pp 577-578

417 Ver a respeito pp 143-147

418 Cf GW 12 p 250 trad p 579

155

dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade

que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela

convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente

justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo

em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo

dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior

ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua

particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente

a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu

progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e

se condensa dentro de sirdquo420

Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao

fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos

novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do

comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da

determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo

tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E

419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)

420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)

421 Cf Ibidem p 251 trad p 580

422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist

156

contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para

aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto

Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa

via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o

universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e

no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que

tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein

gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro

que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar

Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto

a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso

Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo

esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar

adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse

processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao

meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf

GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio

dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem

criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e

seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta

pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute

dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse

procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos

Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2

423 Ibidem p 252 trad p 581

424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)

425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299

157

opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta

que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o

comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o

processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber

alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427

Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do

meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da

integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia

especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia

negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido

seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado

na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente

examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento

absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente

por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do

ceticismo stricto sensu

No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma

afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e

conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas

426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)

427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)

428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82

429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)

158

configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse

reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como

forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no

meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs

aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de

autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam

naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do

entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou

positivamente-racional433

O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e

limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado

pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que

atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo

entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as

limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua

oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das

mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que

conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung

Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a

modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado

continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional

do meacutetodo437

430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560

431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169

432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159

433 Ibidem p 118 trad p 159

434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156

435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)

436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70

437 Cf Ibidem p 70

159

Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute

justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento

agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem

era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse

novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que

seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas

determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio

dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma

vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese

de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato

cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os

advogados da duacutevida terminem por concordar com ele

161

CONCLUSAtildeO

Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel

procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-

investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia

Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o

iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito

sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo

Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a

preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a

elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe

apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o

ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por

Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma

exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o

ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades

pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um

discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila

Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute

fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente

em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica

para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto

porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia

O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no

domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse

domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do

entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das

determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas

com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se

162

chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como

avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo

Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o

procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de

seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as

oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se

termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a

negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de

conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica

antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo

ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo

e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do

procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia

163

OBRAS DE HEGEL

HEGEL G W F Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie

In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix

Meiner 1968 Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992

Gesammelte Werke vol 20

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede

Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner

Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer

Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817

Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften

und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein

(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen

(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978

164

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die

Lehre vom Begriff (1816) Gesammelte Werke vol 12 Hamburg Meiner 1981

Traduccedilotildees

HEGEL G W F Ciencia de la Logica (I e II ) trad de Augusta e Rodolfo Mondolfo

Ciencia de la Loacutegica Buenos Aires Ediciones Solar 1993

______________ Diffeacuterence des systegravemes philosophiques de Fichte et de Schelling traduccedilatildeo

de Marcel Meacutery In Premiegraveres Publications 2ordf ed Paris Ophrys-Gap 1964

______________ Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas em compecircndio (1830) I ndash A Ciecircncia

da Loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Henrique C de Lima Vaz coleccedilatildeo Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1974

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Paulo Meneses Petroacutepolis Vozes 2a

ed 1992

______________ Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Traduccedilatildeo notas e apresentaccedilatildeo de

Marcos Lutz Muumlller IFCH-UNICAMP 2005

______________ La relation du scepticism avec la philosophie trad de B Fauquet 2ordf ed

Paris Vrin 1986

______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 2

trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1971

______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 4

trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1975

165

BIBLIOGRAFIA

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ARANTES P E Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996

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Meiner 1994

BOLZANI F R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado

FFLCH-USP 1992

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003

BROCHARD V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969

BUCHNER H Zur Bedeutung des Skeptizismus beim Jungen Hegel In Hegel-Studien

Beiheft 4 Bonn Bouvier 1969 ( tambeacutem em Hegel-Tage Urbino 1965 )

DUumlSING K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen

Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130

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Harvard U P 1989

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FULDA H F e HORSTMANN R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der

Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996

GEacuteRARD G Critique et Dialectique litineacuteraire de Hegel agrave Iena ( 1801-1805 ) Bruxelas

Publications des Facultes Universitaires Saint-Louis 1982

HEIDEMANN D Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die

pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung BerlinNew York Walter de Gruyter

2007

HENRICH D ldquoHegels Grundoperation ndash Eine Einleitung in die ldquoWissenschaft der Logikrdquo

in Guzzoni Ute (ed) Der Idealismus und seine Gegenwart ndash Festschrift fuumlr Werner Marx

Hamburg Meiner 1976

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JAESCHKE W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003

KANT I Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005

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LEBRUN G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000

MARTIN L F B ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir

da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo in Revista Dois Pontos UFSCARUFPR

vol 4 nuacutemero 2 2007

MUumlLLER M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou

radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3

2005

PORCHAT PEREIRA O Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Unesp 2006

____________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993

SCHAumlFER R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik In Hegel-

Studien Beiheft 45 Hamburg Felix Meiner 2001

SCHULZE G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

SEXTO EMPIacuteRICO Outlines of Pyrrhonism vol I trad de RG Bury Cambridge Harvard

University Press 2000 Grundriszlig der pyrrhonischen Skepsis trad de Malte Hossenfelder

Frankfurt a M Suhrkamp 1985

SEXTO EMPIacuteRICO Adversus Mathematicos trad de RG Bury The Loeb Classical

Library in four volumes Cambridge Harvard University Press 1985

168

VIEWEG K e BOWMAN B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in

hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der

Philosophie Band 10 2006

_________________________________ Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte

um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp

Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003

VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der

Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches

Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002

___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des

Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels

Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974

Page 5: CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL€¦ · CETICISMO E DIALÉTICA ESPECULATIVA NA FILOSOFIA DE HEGEL Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia

9

Para a Luciana

11

Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos

pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel

Hegel

A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia

de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades

Hegel

13

AGRADECIMENTOS

Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver

intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de

pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua

amizade

Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no

meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste

trabalho

Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou

da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade

Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo

deste trabalho

Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu

pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e

tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden

Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien

Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt

Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane

Agrave minha famiacutelia

Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha

Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante

em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo

A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-

UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa

15

SUMAacuteRIO

LISTA DE ABREVIATURAS p 17

INTRODUCcedilAtildeO p 19

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49

Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65

II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101

Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131

CONCLUSAtildeO p 161

BIBLIOGRAFIA p 163

17

LISTA DE ABREVIATURAS

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische

Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em

diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968

Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980

Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre

vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978

Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom

Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981

Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W

Bosiepen e H -C Lucas 1992

Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre

vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984

Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M

Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina

Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993

Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp

1986

Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp

2003

19

Introduccedilatildeo

Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o

filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1

Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave

filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar

que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3

O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para

Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia

hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira

1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)

2 Cf GW 4 pp 197-238

3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007

4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

20

filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O

diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de

sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra

No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo

nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho

explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans

Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o

tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do

conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente

escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por

uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa

filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6

De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo

antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de

constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a

filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como

algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo

pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo

natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega

em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)

A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que

Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos

dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira

de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se

tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que

novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar

atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que

5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado

6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana

21

comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa

postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se

fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave

mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na

assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo

Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao

dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de

Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma

vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras

seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no

cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em

responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa

Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria

por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e

dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi

atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la

A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse

dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta

outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado

nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico

poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De

fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em

ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta

representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o

ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da

filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o

fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se

esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente

avaliara no ceticismo 7

7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da

22

Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser

formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo

acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que

almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo

Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico

como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos

limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este

trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do

ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz

(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que

comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do

pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu

sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos

quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo

desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e

anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o

ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana

e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos

observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de

negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que

mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute

isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que

impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo

Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo

hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de

reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados

obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo

tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente

assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a

linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo

23

filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-

lo reformulado a si proacutepria

Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de

acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o

ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o

lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do

ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas

aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente

natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica

25

I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana

Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico

Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato

dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas

E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar

por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos

por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma

filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas

por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O

que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema

filosoacutefico exposto8

Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com

verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema

qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de

qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua

filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende

dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser

essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por

filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia

Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui

doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no

nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis

Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos

referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por

8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]

26

Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de

ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9

Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o

ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo

doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o

tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o

que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo

filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o

ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma

menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso

Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante

Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a

filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele

Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de

Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo

natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples

tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de

relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute

nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo

Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma

breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto

Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa

filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver

9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss

27

rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se

incorpora agrave filosofia hegeliana

Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela

descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute

declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas

Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo

com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em

virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros

declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a

investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum

resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram

capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma

suposta verdade filosoacutefica

Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como

resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade

inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se

dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica

Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o

ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que

ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a

investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum

resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o

uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros

filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa

10 A esse respeito veja-se HP I 1-4

28

investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com

frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente

Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa

que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz

Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece

a noacutes no momentordquo11

Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o

afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo

mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da

filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a

impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da

filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato

concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da

descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar

de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro

Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se

inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com

receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e

sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro

momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo

e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo

mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de

se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria

Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a

esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma

questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a

possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se

trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou

negativamente ndash naquilo que investiga

11 Cf HP I 4

12 Cf HP I 12

29

Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que

encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do

que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se

distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade

a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade

ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do

mesmo fim a saber a ataraxiacutea

Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute

inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se

eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte

Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo

que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se

tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)

anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em

detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se

mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um

objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas

satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante

E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se

encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do

que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico

terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou

falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se

portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14

A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim

chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre

as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na

opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que

13 Cf HP I 12

14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5

30

acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto

(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16

Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira

dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude

deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute

suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado

de intelecto suspensivordquo17

Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do

conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se

diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de

qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho

e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas

Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista

do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia

(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-

credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender

o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)

Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da

tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de

argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica

A agogeacute ceacutetica

A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o

ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas

15 Cf HP I 7 10 26 165

16 Cf HP I 10

17 Cf HP I 8

31

as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)

assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida

a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18

Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da

filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto

apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de

igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19

Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal

atitude (agogeacute) um tal modo de proceder

Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a

adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o

ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc

diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele

com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira

podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de

caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito

A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe

contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da

igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute

declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real

verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do

verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute

o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a

atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito

nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica

Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a

temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz

18 Cf HP I 8

19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8

20 Cf HP I 8

32

entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue

um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a

fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que

Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um

argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na

contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de

que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O

que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao

contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos

conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao

outro quanto a ser mais digno de creacutedito23

Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes

entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave

maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito

nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o

ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso

cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido

como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves

afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe

parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele

sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo

exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando

21 Cf HP I 9

22 Cf HP I 33

23 Cf HP I 10

24 Cf HP I 12

25 Cf HP I 13

33

De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por

fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de

dogmatizarrdquo

Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo

expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance

de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o

ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das

coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo

restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o

caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute

mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem

em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente

ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27

Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo

dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de

controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas

exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada

espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas

Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do

ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas

maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a

fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante

26 Cf HP I 13

27 Cf HP I 13

28 Cf HP I 182

29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo

34

Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece

indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a

quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma

amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31

Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica

foi alvo de muita incompreensatildeo

A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar

dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem

ceacutetica

Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees

natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do

ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se

expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem

ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma

A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de

instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as

30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37

31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica

32 Cf HP I 4

35

coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam

a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um

caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se

expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira

dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar

que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico

Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em

nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de

expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu

discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele

sempre evitar dogmatizar

Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver

nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar

Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das

coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer

dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que

natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese

filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo

dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos

ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece

Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-

evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de

foacutermulas que expressam essa incapacidade

33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo

34 Cf HP I 14

35 Cf HP I 203

36

Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo

absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de

que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se

de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas

ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas

satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas

Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo

existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa

ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos

dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a

respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37

Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas

quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-

evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame

finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais

conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade

ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras

foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter

natildeo-dogmaacutetico das mesmas

Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas

foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se

no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser

de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a

respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude

filosoacutefica

A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para

esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas

36 Ver a respeito HP I 187-209

37 Cf HP I 198

38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198

37

ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes

natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente

verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se

ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas

purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com

os humores se expelemrdquo40

Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas

expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no

qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu

juiacutezo

Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico

estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter

absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma

atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo

dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea

O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem

apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma

de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo

A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir

antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento

que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro

visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a

isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo

Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a

concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o

39 Cf HP I 14-15 206

40 Cf HP I 206

38

conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas

teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no

uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa

instrumentalidade dos argumentos utilizados

ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma

escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua

lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no

mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42

Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio

entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado

decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a

serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo

poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses

adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de

que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a

persuasividade desses argumentos eacute aparente43

41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159

42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2

43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)

39

Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os

argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos

ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios

juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44

Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente

do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do

verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra

tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que

determinada tese dogmaacutetica seja posta

Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo

possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas

satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele

mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim

como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o

compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana

ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras

(expressotildees)rdquo46

E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-

dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico

A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas

ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees

quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai

desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico

passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-

44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)

45 Cf HP I 207

46 Ibidem I 207

40

dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio

segundo o qual ele se conduz

Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das

forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado

que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A

respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-

filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo

Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de

vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico

quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a

aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na

incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra

reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes

um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso

pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a

paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral

Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa

decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum

criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de

outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos

qualquer forma de decisatildeo

De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e

que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando

decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser

inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica

A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o

ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da

41

falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo

como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente

doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia

quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como

proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute

verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente

natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade

das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo

Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui

caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de

criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos

elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos

pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a

essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem

significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como

obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou

daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico

em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de

se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo

Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido

como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de

qualquer coisardquo48

Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute

como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe

permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da

vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49

Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age

de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie

47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79

48 Cf HP I 21

49 Cf HP I 21

42

de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe

aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute

constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se

ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I

13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As

decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele

por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que

lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio

aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa

direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel

(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do

fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer

asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio

da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo

A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se

refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as

aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem

estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo

as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos

discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou

menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra

eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave

suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar

Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute

supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do

discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar

ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν

παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os

fenocircmenosrdquo52

50 Cf HP I 22

51 Cf HP I 19

52 Cf HP I 19-20

43

Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo

se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno

inquestionaacutevel

Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira

afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do

ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia

minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse

aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente

natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo

isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse

caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto

a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente

de minha vontade

Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu

agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende

dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53

O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento

que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e

determina seu agir54

Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda

acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de

pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais

aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o

domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual

poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem

ser observadas no domiacutenio sensiacutevel

53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)

54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo

44

O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e

que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem

de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou

epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir

apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele

sem opinar (adoxaacutestos)55

Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas

afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56

Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-

se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em

princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas

accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele

viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que

ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa

se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo

elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua

realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer

algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que

aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade

O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer

de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque

estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa

afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da

mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas

aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute

aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva

dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia

pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente

coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada

que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal

55 Cf HP I 23

56 Cf HP I 23

45

comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que

hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente

Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura

agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com

respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a

coisas inevitaacuteveis57

Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por

essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo

conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar

contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre

argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a

tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58

Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que

o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos

entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa

haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato

natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o

sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude

dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa

em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo

Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se

propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como

ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver

de acordo com dogmas

57 Cf HP I 25

58 Cf Ibidem I 26

59 Cf Ibidem I 27

60 Cf Ibidem I 29

46

Os tropos ceacuteticos

Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico

consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo

seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse

modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por

diante62

Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e

assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63

Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os

homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas

circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo

nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou

raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees

dogmaacuteticas

Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de

todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos

apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao

qual todos os outros nove podem se referir64

Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que

se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia

controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na

61 Ver a respeito pp 30-32

62 Cf HP I 31

63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259

64 Cf HP I 39

47

hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os

tropos de Agripa65

Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel

de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas

comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de

opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave

suspensatildeo do juiacutezo66

Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova

prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E

essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma

regressatildeo que natildeo tem fim67

O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente

numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que

o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo

relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista

natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave

suspensatildeo do juiacutezo68

O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma

demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou

essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma

demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo

haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69

65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303

66 Cf HP I 165

67 Cf HP I 166

68 Cf Ibidem I 167

69 Cf Ibidem I 168

48

Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute

objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo

acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70

Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a

filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a

filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto

diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que

empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma

possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo

da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana

do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia

70 Cf Ibidem I 169

71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica

49

Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel

No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros

objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo

nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga

medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico

das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de

uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel

a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo

teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo

Teremos o quecirc entatildeo

No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel

para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute

um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento

de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o

que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo

mais minuciosa do significado desses termos

Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema

filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele

72 GW 4 pp 197-238

73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2

74 GW 4 pp 5-92

50

que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que

nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na

filosofia75

Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias

formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado

do significado de entendimento e razatildeo

Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua

eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees

hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica

da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma

insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da

criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa

tarefa criacutetica hegeliana

Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na

sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade

especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade

absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre

essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo

desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua

75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila

76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136

77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104

51

accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a

fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma

cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja

um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade

natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do

combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida

No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado

pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as

oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica

fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma

em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)

E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa

como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste

momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia

perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico

hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma

possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico

Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do

absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir

do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir

dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos

talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um

conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao

absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de

finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst

78 Ibidem p 14 trad p 88

79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90

80 Cf Ibidem p 14 trad p 88

81 Ibid p 12 trad p 86

82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87

52

spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo

postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid

p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo

finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao

fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a

todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo

absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se

consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa

totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar

que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito

A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do

entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como

expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento

arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como

uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a

maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa

da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a

formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante

a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e

mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir

novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)

Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que

natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a

realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua

condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se

83 Cf Ibid p 13 trad p 87

84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)

85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)

86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)

53

segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o

ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito

ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento

que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa

carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo

Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o

entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da

limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva

apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar

origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo

com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e

condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de

uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas

regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento

completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na

qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o

trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade

reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um

outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de

dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do

entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o

determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)

Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de

modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o

entendimento87

87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von

54

Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas

caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o

complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica

por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem

I 175-7)

Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute

igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento

estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e

possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de

relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com

ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)

As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui

de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade

formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute

contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-

25)

Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa

posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da

desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade

se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da

desigualdade

Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996

55

Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que

estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo

diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B

Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do

entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra

Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A

posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto

do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A

(objeto)

ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo

que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)

O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute

diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo

podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila

Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio

Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como

absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4

p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se

manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto

O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a

contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo

admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo

tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste

no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se

articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O

que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo

posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de

um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo

pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao

infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois

56

se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as

premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo

possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)

Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no

entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo

exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e

portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela

precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo

(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo

do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo

ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que

uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser

suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die

blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do

entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute

dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos

contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem

igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a

antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem

sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute

um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor

atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele

A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do

ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi

posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz

com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que

cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se

88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)

57

sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como

escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem

Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse

domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias

surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas

Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se

realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo

seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo

entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele

compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo

Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor

und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento

anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma

atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer

como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que

resultaria numa antinomia

A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees

postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa

pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo

entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4

p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute

deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E

assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do

entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc

conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma

promessa natildeo passiacutevel de se cumprir

58

Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas

determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de

justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele

chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90

Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees

(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso

ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao

libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)

A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa

forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A

rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto

refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a

reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo

entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A

reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a

faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela

somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo

ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao

absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91

89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)

90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)

91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees

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A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute

segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo

tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como

absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e

natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como

limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute

posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto

Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo

permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na

reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila

todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de

todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse

processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a

reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a

razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto

eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo

entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento

unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)

92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66

93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99

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Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro

que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o

absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se

deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de

conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o

absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as

outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante

sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)

Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao

absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95

as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao

absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter

abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma

antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente

adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro

afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro

com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo

eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado

destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera

dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos

aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da

especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a

antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende

Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O

reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se

conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir

aleacutem desse lado negativo

94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)

95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir

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O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-

aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da

reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se

contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o

racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da

contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que

preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos

opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos

portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez

realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a

intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber

Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia

pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a

identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97

No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo

entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a

ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por

meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado

das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute

96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)

97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)

98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)

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o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside

nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos

chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo

ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)

Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees

passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de

serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao

estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica

Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo

Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute

ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude

do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite

As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas

permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A

contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave

filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica

baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem

(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100

Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo

unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em

qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da

mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)

estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos

(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos

99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36

100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)

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uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de

entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma

identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a

antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja

suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos

(aufgehoben)103 na unidade do racional

Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em

duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen

laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em

cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila

igualrdquo104

A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a

filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas

antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti

logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao

levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem

levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada

A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada

na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova

siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW

4 p 31)105

101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)

102 Ibidem p 27 trad p 101

103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar

104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12

64

105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)

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Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel

Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo

nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a

ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e

18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira

ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees

sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no

veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e

182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da

filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de

Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder

concluiacute-la

Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo

antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos

em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos

observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de

caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes

Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107

que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um

filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas

106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478

107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809

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No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte

afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da

subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no

saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber

sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108

E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser

o acabamento da maneira de ver subjetivista

Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao

ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma

filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a

mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como

verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110

Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que

eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o

estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser

instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que

dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos

aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo

que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens

e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo

que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a

108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)

109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272

110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266

111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266

112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)

67

determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade

a filosofia ceacutetica

Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo

com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa

haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre

os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista

acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114

De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu

acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes

houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de

teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do

dogmatismo

Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem

positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo

chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O

113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)

114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)

115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1

68

que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista

conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo

como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a

expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por

ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E

esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se

esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem

a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico

substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa

atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa

em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no

horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute

desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia

encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de

se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117

Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos

em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto

de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de

outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo

Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que

sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de

mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais

terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118

Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao

fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram

116

Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica

117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45

118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)

69

essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma

maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim

subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119

No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica

de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que

poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma

desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse

reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee

Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que

devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a

elerdquo120

O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna

forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva

de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz

junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que

natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer

perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se

ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma

filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade

de se conseguir vencer ao ceacutetico

Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio

extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele

nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato

Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que

independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima

palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele

realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa

119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)

120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)

121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

70

ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a

seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja

favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado

Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a

filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por

que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a

criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a

ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa

estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo

do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano

incorpora-se o mesmo a ela

Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na

sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de

qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma

contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa

suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o

outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os

contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute

pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo

Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta

apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute

basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se

encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar

122 Ver cap 2

123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10

124 Cf HP I 10

71

que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as

mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato

Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute

assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir

do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se

restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa

possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma

contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal

moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo

formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele

sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a

contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126

Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava

restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas

formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro

objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o

fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em

todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128

Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos

adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que

Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica

soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela

125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776

126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)

127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120

128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)

129 Ver o cap 1

72

postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a

ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar

uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma

decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo

que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo

Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a

suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor

delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor

Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no

momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o

efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto

plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo

O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a

uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a

primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade

qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto

que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso

seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a

que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o

assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio

se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico

gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos

ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do

uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo

Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute

caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma

atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas

coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por

outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute

isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o

130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)

73

resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos

nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131

O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da

perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a

tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico

ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e

aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua

decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo

haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de

que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma

decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se

refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas

ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se

131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)

132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14

74

decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto

Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos

descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma

discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado

tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no

opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133

Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se

caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre

um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute

levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o

que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o

fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados

com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso

nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude

com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos

completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila

perante os opostos

133 Cf HP I 12

134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)

135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)

75

Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo

refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este

filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se

apresenta com valor de verdade

Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do

entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente

eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter

uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter

limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque

estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por

exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute

aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo

consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao

mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua

unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a

limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo

aqui natildeo eacute um mal a ser evitado

O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre

entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da

afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com

efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido

a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele

exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute

136 Ver o cap 2

137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91

138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87

76

possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento

natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro

domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a

contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a

agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo

entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila

Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel

quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja

dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel

filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo

ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse

ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo

determinado como o absolutordquo140

Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso

filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia

se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142

Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de

pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas

determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante

os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo

que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados

finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja

De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma

determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o

mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa

afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como

impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse

139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798

140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)

141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss

142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90

77

modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel

quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo

resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na

filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta

filosofia eacute a filosofia especulativa

Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de

pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta

esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular

proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de

predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a

forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma

unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se

pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse

absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas

que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve

ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese

de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos

opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do

entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o

mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse

contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento

dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco

do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias

143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)

144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)

145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94

146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95

78

Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria

o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana

esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de

entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo

admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se

eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo

tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra

procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o

absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses

determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva

ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto

podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma

abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo

poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam

ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado

do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute

dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal

denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo

A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo

tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo

e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia

em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa

147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss

148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94

79

Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os

tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses

chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos

antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo

Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez

tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos

empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os

tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele

que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma

forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma

consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154

Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do

dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de

elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a

intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem

imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a

mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos

animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes

149 Ver Cap 1 pp 46-48

150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778

151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss

152 Cf HP I 3135 e 36

153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss

154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779

155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)

156 Cf HP I 40-78

80

representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das

diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees

visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas

nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de

certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer

por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a

outro natildeo

Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade

daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma

falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses

dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)

Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo

todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158

Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove

como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo

da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por

meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar

extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar

que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar

abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados

modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais

distante e irrealizaacutevel

Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia

nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso

dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato

Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que

157 Cf HP I 79-91

158 Cf HP I 39

159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790

160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)

81

eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce

Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante

portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e

assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute

refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio

do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas

outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo

Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante

apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des

gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o

ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute

verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que

imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que

possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos

161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779

162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790

163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1

164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375

165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

82

tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute

nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez

tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da

perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes

aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece

serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo

possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez

tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma

rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado

uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para

ele por meio dos dez tropos

Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o

visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso

dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para

mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma

verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes

de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo

antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do

texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o

procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que

Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a

uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave

primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da

166 Cf GW 4 p 204

167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775

168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)

83

Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte

Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante

a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute

noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades

insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169

O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue

Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma

aacutervore mas antes uma casa

Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade

de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que

se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente

natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu

acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer

o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora

eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser

contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser

dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite

natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele

natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer

o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser

que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele

A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela

linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso

alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos

169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76

170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77

171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76

172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma

84

apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel

singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este

pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco

de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente

o universalrdquo174

Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo

conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo

de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a

verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do

saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo

Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os

fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber

imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido

concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido

dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados

agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder

afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de

verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67

173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68

174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82

175 Cf HP I 19-20

85

pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no

ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que

aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto

estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa

ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos

impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de

verdade

O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de

um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que

vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico

tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o

faz de uma outra perspectiva

Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja

obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos

portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa

discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo

podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir

entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano

ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir

dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na

dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute

visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal

Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para

Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a

respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele

continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que

acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de

verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo

teacutetico concernente a esse aparecer

176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo

86

Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo

dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica

impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos

referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo

dogmaacutetico

O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de

compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do

ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma

incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o

exemplo mais gritante da mesma

Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do

ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de

solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a

criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco

vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica

presente na certeza sensiacutevel

De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos

tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas

nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do

ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do

ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica

observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos

refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e

completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo

177 Cf HP I 36

178 Cf HP I 164

179 Cf HP I 177

87

de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo

que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os

dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos

de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a

ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez

tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia

forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva

ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio

julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros

Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez

tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da

relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem

reduzidos

Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo

esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo

antigo

Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de

Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o

alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de

Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado

tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior

imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente

180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica

88

diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as

formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181

O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos

mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um

dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura

nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o

da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de

uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de

que se trata

Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater

natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E

por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de

filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)

Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute

na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a

aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou

proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com

que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico

Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o

primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185

Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter

determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais

181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790

182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)

183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2

184 Cf HP I 12

185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2

89

contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes

elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de

entendimento187

Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do

entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em

uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se

simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o

negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de

acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo

arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal

princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro

princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da

mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por

diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma

regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)

Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a

falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as

oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia

(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo

favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de

acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja

e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa

proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era

enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo

186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799

187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799

188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799

189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2

190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo

90

Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por

essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado

encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo

entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica

ceacutetica

A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais

do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie

de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia

Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se

retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash

como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade

que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta

dogmaticamente

Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude

filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela

qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado

dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua

levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados

pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada

para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193

191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800

192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o

91

O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada

quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo

qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado

por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa

coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma

preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno

O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal

que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento

loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196

Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do

que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num

argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas

ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado

Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que

eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua

conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54

194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800

195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800

196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)

92

proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que

eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria

excluiacutedo da investigaccedilatildeo

Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel

referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele

modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197

O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte

na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que

saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus

possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a

coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica

implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a

linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo

algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do

que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que

num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das

palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis

Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o

caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas

descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua

unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo

dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa

amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila

da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua

proacutepria operaccedilatildeo

197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800

198 Cf HP III 4

199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades

200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800

93

No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo

um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos

diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas

Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as

determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o

seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel

critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie

uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves

determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer

dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas

Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do

relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo

ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo

(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o

um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser

espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a

negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa

negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em

si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203

Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se

determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento

201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802

203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)

94

que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute

o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo

eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo

A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou

como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que

natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da

dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento

natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se

determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute

uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que

ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre

ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como

jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender

porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na

liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do

ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico

especulativordquo205

Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele

natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o

204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37

205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776

95

espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave

suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada

Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a

limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a

ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa

contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem

no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se

dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma

nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em

face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207

O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se

empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute

conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente

falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo

que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da

contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada

ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai

daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada

mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209

206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761

207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als

Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761

208 Ibidem p 360 trad cit p 761

209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo

96

O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo

unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos

iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se

determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da

Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de

criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se

desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o

quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica

Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de

Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo

como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como

seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia

especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute

contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em

sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213

Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar

de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana

Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da

alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si

210 Cf E sect86 e ss

211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34

212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243

213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776

97

mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer

um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de

dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada

sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que

por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute

igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que

no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia

dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja

necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que

transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto

diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que

ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento

Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um

outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo

jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que

nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio

dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com

as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa

sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo

214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803

215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760

216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761

217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo

218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo

98

como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa

sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219

Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste

domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O

que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se

contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado

natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente

negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si

mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela

mesmardquo220

Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa

do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua

unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega

Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que

por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste

estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que

algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade

que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se

contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade

A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da

mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser

219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802

220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo

221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798

222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4

223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)

99

contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A

natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225

A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente

(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do

ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude

filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz

assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento

224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5

225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761

101

II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel

Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa

Natildeo eacute muito bom para a filosofia

ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo

apenas poder dizer isto eacute ou isto

natildeo eacute

Hegel226

Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees

de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto

limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de

eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que

comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua

concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos

importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o

entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia

natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229

226

Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974

227 GW 11 pp258-290

228 A ser tratado no capiacutetulo 5

229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216

102

A identidade

Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do

entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino

quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa

Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de

proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do

pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e

indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11

p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem

como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma

negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230

Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual

apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto

eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras

categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual

se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma

quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e

determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados

(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel

chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute

aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233

E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que

fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam

tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias

230 GW 11 p 258 trad p 34

231 Cf Ibidem p 259 trad p 34

232 Cf Ibidem p 259 trad p 34

233 Ibidem p 259 trad p 34

103

A resposta de Hegel eacute a seguinte

Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a

negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como

determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra

Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo

aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a

mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234

Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute

Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria

estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das

determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de

proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas

Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a

influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em

decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel

apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais

proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este

pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual

valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de

identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias

234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)

235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1

236 Cf HP I 12

104

Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de

acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas

que por direito a elas se relacionam

Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees

reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de

reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser

contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich

gegenseitig auf)238

Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de

identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais

proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo

A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um

exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse

princiacutepio enquanto tal

Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade

implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261

trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente

a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute

expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que

agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo

eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute

aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele

nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma

reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas

uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240

237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)

238 Ibidem p 260 trad p 36

239 Cf Ibidem p 260 trad p 36

240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38

105

Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta

que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um

diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso

dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua

natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241

A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone

o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui

de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica

Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento

que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre

mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale

insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata

estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a

contradiz

Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja

interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele

natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar

nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)

Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma

planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de

maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer

com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa

declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente

ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do

que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado

essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma

conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito

da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio

do que era esperado a saber nada

241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)

106

Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash

A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena

apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas

um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p

264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em

seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele

movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se

sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas

afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a

diferenccedilardquo243

Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de

contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que

havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente

se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que

aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa

como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244

Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de

identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais

princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e

como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute

que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve

expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei

do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm

242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43

243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228

244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)

107

mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245

Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de

natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender

apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta

identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato

desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute

ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246

A diferenccedila

Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um

duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si

Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de

diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por

si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248

Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro

ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas

apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma

diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os

diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo

O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no

acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o

245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)

246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)

247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45

248 Ibidem p 266 trad p 44

108

simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um

ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta

Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a

si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a

identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da

diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas

relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se

possa ter o todo da diferenccedila

Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois

momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser

uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel

chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada

um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem

distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro

A diversidade

Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois

momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de

serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma

diversidade (Verschiedenheit)

Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma

quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A

identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi

dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma

sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a

249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache

Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)

250 Ibidem p 266 trad p 44

109

identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do

diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o

idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da

identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca

Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo

assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute

relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo

que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um

em face do outro252

Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel

apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto

algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa

diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253

Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade

(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e

diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute

apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade

Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que

Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade

oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta

de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o

251 Ibidem p 267 trad p 45

252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)

253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)

254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila

110

ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a

identidade

De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente

exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada

uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores

isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo

satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do

Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal

constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa

determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade

assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse

ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo

da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela

mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua

determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel

afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de

que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo

unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a

determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao

mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque

negam a sua oposta e natildeo de modo exterior

Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas

qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente

positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente

positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute

uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a

negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente

positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute

255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)

256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186

257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187

258 GW 11 p 268 trad p 46

111

abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-

de-consistecircnciardquo259

Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro

de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo

denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em

si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute

ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo

exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo

sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261

E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo

como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O

estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que

se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a

identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como

igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)

Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa

Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262

Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo

que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que

temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da

diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca

entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de

afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave

destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que

259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan

denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)

260 GW 11 p 268 trad p 47

261 Ibidem p 268 trad p 47

262 Ibidem p 268 trad p 47

112

haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que

rege o entendimento eacute isto o que ocorre264

Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa

diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo

consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave

desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato

eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim

como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide

fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da

desigualdade mesma tal como resultourdquo265

263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente

264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento

265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt

den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]

113

Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa

identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um

diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar

refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se

determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de

si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele

mesmo o igualrdquo266

Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados

mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267

A oposiccedilatildeo

Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa

oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte

Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268

Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos

precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no

relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre

identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da

diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era

como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade

em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava

acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo

exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O

266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)

267 Ibidem p 270 trad p 50

268 Ibidem p 272 trad p 53

269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108

114

tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou

poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos

Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo

estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem

A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute

seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a

Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua

completude

Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e

diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora

como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo

Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute

apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel

chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como

ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo

exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-

posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada

momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece

no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-

de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa

diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como

apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da

desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada

O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a

determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro

270 GW 11 p 272 trad p 53

271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175

272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo

115

ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua

carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-

determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo

natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a

carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto

o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido

nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o

comeccedilordquo273

Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto

refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade

como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa

unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de

modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e

diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois

momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em

si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade

que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo

que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-

posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute

refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo

273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)

274 Cf GW 11 p 272 trad p 53

275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)

276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)

116

como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o

positivo)277

Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se

tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que

fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-

ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem

ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e

negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem

relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279

Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o

positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir

retomamos280

Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica

reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto

seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas

exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os

opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum

natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em

relaccedilatildeo ao outrordquo281

277 Cf Ibidem p 273 trad p 54

278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar

Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90

279 Cf GW 11 p 273 trad p 54

280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56

281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)

117

Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o

outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a

determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa

indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que

consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma

indiferenccedila dos opostos

Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com

seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das

determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal

espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o

negativordquo282

De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em

geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente

numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em

nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas

um outro em geral

Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo

azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem

conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como

seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284

Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da

indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se

282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)

283 Ibidem p 273 trad p 55

284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)

118

faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute

negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se

estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286

Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a

todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo

estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem

entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287

Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo

quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas

positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o

que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro

enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une

natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288

285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275

286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234

287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235

288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das

119

Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e

justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo

agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica

Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute

ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O

trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele

tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se

determina o positivo ou o negativo289

A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou

ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo

indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291

Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235

289 GW 11 p 276 trad p 58

290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234

291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo

Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)

Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se

120

Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados

apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um

se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada

um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua

relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o

positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e

negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um

puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto

Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como

tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si

contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo

Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo

Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)

Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida

292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)

121

A contradiccedilatildeo

Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro

Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam

cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse

relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro

Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a

oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse

conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute

exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees

reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo

reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela

de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo

conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e

assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo

relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295

Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela

se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que

eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua

autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)

realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro

que excluo de mim e assim me suspendo296

Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o

positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz

negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o

inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo

293 Ibidem p 279 trad p 62

294 Ibidem p 279 trad p 62

295 Ibidem p 279 trad p 62

296 Ibidem p 279 trad p 62

297 Cf Ibidem p 280 trad p 63

122

se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu

outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de

ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo

O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do

determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade

O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e

simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles

mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299

Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado

meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado

(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301

Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como

se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto

298 Cf Ibidem p 280 trad p 63

299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64

300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185

301 GW 11 p 281 trad p 64

123

cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da

oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o

contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina

de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee

como momento distinto do outro302

A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro

reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um

como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten

sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o

negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304

Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se

potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo

ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto

primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente

aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e

suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o

suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de

um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia

eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si

mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305

302 Ibidem p 281 trad p 64

303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65

304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)

305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)

124

Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e

simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam

mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se

aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e

assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu

fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a

suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que

significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de

fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se

(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das

determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada

contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307

O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo

autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua

suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)

eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309

Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a

autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)

306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66

307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)

308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo

309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)

125

no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que

fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no

fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo

das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa

relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode

ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se

relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada

ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma

resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no

fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo

negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si

ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento

somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo

mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e

se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se

consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute

antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314

310 Ibidem p 282 trad p 67

311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)

312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230

313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)

314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)

126

De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo

deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que

algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315

Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo

deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade

negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o

jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva

O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma

sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica

claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um

nada vazio vale ser lembrado

Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se

furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre

pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em

uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue

reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo

discurso dogmaacutetico

Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura

sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de

Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com

um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse

algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto

determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma

determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter

finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo

relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva

devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir

eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um

absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse

315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)

127

considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si

mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser

evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia

Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se

constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a

contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto

horror causam no pensamento natildeo-especulativo

316 Ibidem p 290 trad p 77

128

O finito e o infinito

Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a

categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317

Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318

Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro

(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da

qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo

pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute

estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa

limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se

compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo

limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto

em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite

O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por

consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas

o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer

como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo

perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu

fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai

aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam

317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss

318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186

319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166

320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)

129

negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser

(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321

Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse

outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo

entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o

finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo

seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo

finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito

surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse

processo322

ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-

aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a

negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito

pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao

seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se

deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda

conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323

De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O

finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito

que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a

321 Ibidem p 116 trad p 166

322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189

323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)

130

conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa

sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito

Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de

seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado

natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja

outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem

Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente

pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o

efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas

exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo

que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve

positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e

abstrato

Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da

contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele

com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a

si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326

324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167

325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)

326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a

131

Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo

O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral

Hegel327

Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia

mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito

absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa

do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente

por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no

contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos

mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo

meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave

investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia

especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser

aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa

forma filosoacutefica

Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que

poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que

o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas

mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo

Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do

ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico

da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui

resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190

327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13

132

retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do

meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de

continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que

Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que

segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer

imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse

mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica

mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos

remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o

capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que

dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica

Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a

partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito

Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira

parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia

respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do

Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o

conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada

e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da

mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala

em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito

eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a

328 Cf GW 12 pp 236-253

329 Cf HP I 170-172

330 Cf HP I 173-174

133

verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o

conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331

A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro

momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos

dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute

um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia

Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o

conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o

fundamento somente venha a aparecer ao final

Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma

ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio

e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um

argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos

vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa

estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos

Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo

perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da

Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave

dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo

imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que

Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma

331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249

332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)

134

pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e

assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada

arbitraacuteria

Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da

Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se

vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333

apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento

necessita ter-se feito como fundamento334

O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como

fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute

justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse

meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica

mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser

justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide

no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-

filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e

raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o

mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335

Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que

jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra

afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo

notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do

333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado

334 Cf GW 12 p 11 trad p 249

335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)

135

exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a

todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336

A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a

filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico

que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz

Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser

natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo

portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a

condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto

Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e

que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor

um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute

completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e

nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e

externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver

Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser

criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma

determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de

um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente

um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado

e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica

Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto

Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se

derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos

filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada

pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro

336 Cf HP I 12

337 Cf GW 12 p 22 tr p263

338 Cf GW 21 59 tr p 94

339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa

136

ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao

mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa

unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a

autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia

especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao

mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do

entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica

Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da

Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da

fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque

na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico

de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser

e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse

com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel

ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a

condensar-se na unidade do conceitordquo341

O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso

da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a

ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de

justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o

sistema do loacutegico342

mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94

340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94

341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)

342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367

137

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a

exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora

tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de

compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que

almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo

De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais

precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo

consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute

vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no

decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico

objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume

no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda

que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se

determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma

Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e

simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo

como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se

relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem

diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se

na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu

conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do

processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do

343 Cf GW 12 p 237 trad p 561

344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366

345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)

346 Cf Ibidem p 237 trad p 561

138

conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na

mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como

determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia

absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que

impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute

como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma

exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida

justamente que existerdquo349

Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua

entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do

meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que

natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu

conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de

determinaccedilatildeo dessa forma

Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido

como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem

maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo

determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais

que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados

conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o

absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do

conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351

347 Cf Ibidem p 237 trad p 560

348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562

349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)

350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)

351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)

139

Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder

um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito

e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da

Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim

ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o

conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo

seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a

atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352

Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do

conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e

na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender

porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que

poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito

Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos

universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou

diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua

determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse

processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio

conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355

Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse

sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo

352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)

353 Ibidem p 44 trad p 294

354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292

355 GW 12 p 25 trad p 267

140

A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa

diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo

da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta

identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de

universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o

que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal

pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade

absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo

Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos

constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim

o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se

particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua

vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da

negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual

surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal

superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute

relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de

si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do

conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que

adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361

356 Ibidem p 33 trad p 279

357 Ibidem p 33 trad p 279

358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283

359 Ibidem p 35 trad p 281

360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297

361 GW 12 p 38 trad p 285

141

A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si

mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito

esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na

realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de

sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse

modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja

nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva

penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito

O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia

ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do

proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo

Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo

elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra

parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366

E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe

agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia

O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que

a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do

conceito como ideacuteia

362 Ibidem p 51 trad p 303

363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada

364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)

365 Ibidem p 36 trad p 283

366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)

142

O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si

e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que

o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que

ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do

conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367

A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um

objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade

eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito

torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa

negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a

ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente

se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade

e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar

perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido

vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo

dialeacutetico imanente

O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do

conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da

ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples

conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se

separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente

essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A

identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369

367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)

368 GW 12 p 176 trad p 475-476

369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects

143

A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-

se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do

conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira

perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de

sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo

pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370

Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise

daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se

realiza

Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo

Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e

suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo

As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o

que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo

A universalidade

Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que

compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito

como ideacuteia absoluta

No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um

imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade

abstratardquo372

zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)

370 Ibidem p 238 trad p 562

144

Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do

comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja

arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo

implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado

e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para

com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico

Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou

inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa

relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo

absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um

comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica

quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um

imediato

O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse

seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel

que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no

entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e

o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra

nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o

imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o

comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma

sem nenhum conteuacutedordquo374

Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada

possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo

o significado do ser376

371 Cf Ibidem p 239 trad p 563

372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)

373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137

374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo

375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101

145

Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem

considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e

ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do

puro ser

Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do

fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na

Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o

imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria

segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente

e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e

essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o

percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o

fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato

que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao

mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel

faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser

Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele

eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a

nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo

absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte

como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo

preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378

O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche

os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a

contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito

loacutegico

376 Cf GW 12 p 239 trad p 564

377 Ver a respeito pp 132-137

378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)

146

E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si

mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de

toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se

relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta

de determinaccedilatildeo

Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de

realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e

a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380

Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente

indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o

conceito se realiza

Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude

dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente

que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se

conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381

Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do

seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por

sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que

tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se

apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma

que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o

universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser

379 Cf GW 12 p 239 trad p 564

380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)

381 Cf Ibidem p 240 trad p 565

382 Ver a respeito pp 139-141

383 Cf GW 12 p 24 trad p 267

384 Cf Ibidem p 240 trad p 565

385 Cf Ibidem p 239 trad p 564

147

como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute

somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se

torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio

natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que

somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo

com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o

meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387

De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do

processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O

iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o

conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente

singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389

Do universal para o particular

Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o

universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado

relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega

esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro

no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo

ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo

386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)

387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)

388 GW 12 p 241 trad p 566

389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)

390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)

391 Ibidem p 245 trad p 571

148

subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o

nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por

exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado

para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto

dessa determinaccedilatildeo do universal como particular

Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada

ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos

mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular

Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos

aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel

indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido

Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento

(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda

determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior

como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com

seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute

num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si

natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo

entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute

o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse

392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51

393 Cf GW 12 p 245 trad p 572

394 Cf Ibidem p 245 trad p 572

395 Cf Ibidem p 245 trad p 572

149

relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si

proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396

Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada

pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem

notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta

Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no

conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico

presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)

conteacutem em si nele estaacute postardquo397

Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico

consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a

unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a

suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo

da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si

mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela

negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal

soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente

concreto

Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a

primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao

momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo

do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo

o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda

396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88

397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)

398 Cf Ibidem p 246 trad p 572

399 Cf Ibidem p 246 trad p 573

400 Cf Ibidem p 49 trad p 300

401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573

150

como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas

denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro

o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo

Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu

universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele

(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu

objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele

proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403

Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo

estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse

mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute

absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu

proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a

esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual

a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao

caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode

significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou

melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo

de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que

eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se

(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global

Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a

si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio

determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute

constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva

402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)

403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)

404 Cf Ibidem p 16 trad p 255

151

atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no

movimento da dupla negaccedilatildeo

O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua

das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse

movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si

mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do

processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405

Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque

1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da

universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da

singularidade

Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma

ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com

o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma

relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel

dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste

justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407

Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo

consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como

singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa

premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse

apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica

405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259

406 Cf GW 12 p 246 trad p 574

407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572

408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113

152

a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo

de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito

aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute

particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato

contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como

suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade

A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo

imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da

diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o

ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade

absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410

A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao

imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal

imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se

determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a

negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro

409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574

410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575

153

apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de

um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411

O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema

Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca

entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez

ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a

principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico

inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que

permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico

Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que

chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se

condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir

desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa

determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na

forma de um sistema413

Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao

seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do

meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa

determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um

determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e

deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de

pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se

411 Ibidem p 247 trad p 574

412 Ibidem p 248 trad p 576

413 Ibidem p 248 trad p 576

414 Ibidem p 249 trad p 577

154

contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de

uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415

Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim

possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da

filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em

relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa

de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta

acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que

aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso

infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o

conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416

O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do

comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se

na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A

determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se

por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o

que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo

Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o

meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um

determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a

mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto

E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma

coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta

da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira

indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal

somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele

Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e

415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578

416 Ibidem p 249 trad pp 577-578

417 Ver a respeito pp 143-147

418 Cf GW 12 p 250 trad p 579

155

dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade

que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela

convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente

justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo

em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo

dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior

ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua

particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente

a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu

progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e

se condensa dentro de sirdquo420

Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao

fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos

novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do

comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da

determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo

tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E

419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)

420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)

421 Cf Ibidem p 251 trad p 580

422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist

156

contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para

aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto

Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa

via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o

universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e

no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que

tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein

gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro

que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar

Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto

a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso

Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo

esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar

adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse

processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao

meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf

GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio

dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem

criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e

seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta

pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute

dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse

procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos

Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2

423 Ibidem p 252 trad p 581

424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)

425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299

157

opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta

que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o

comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o

processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber

alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427

Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do

meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da

integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia

especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia

negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido

seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado

na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente

examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento

absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente

por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do

ceticismo stricto sensu

No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma

afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e

conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas

426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)

427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)

428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82

429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)

158

configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse

reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como

forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no

meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs

aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de

autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam

naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do

entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou

positivamente-racional433

O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e

limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado

pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que

atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo

entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as

limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua

oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das

mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que

conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung

Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a

modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado

continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional

do meacutetodo437

430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560

431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169

432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159

433 Ibidem p 118 trad p 159

434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156

435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)

436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70

437 Cf Ibidem p 70

159

Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute

justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento

agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem

era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse

novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que

seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas

determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)

dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio

dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma

vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese

de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato

cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os

advogados da duacutevida terminem por concordar com ele

161

CONCLUSAtildeO

Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel

procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-

investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia

Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o

iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito

sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo

Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a

preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a

elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe

apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o

ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por

Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma

exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o

ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades

pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um

discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila

Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute

fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente

em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica

para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto

porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia

O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no

domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse

domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do

entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das

determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas

com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se

162

chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como

avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo

Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o

procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de

seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as

oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se

termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a

negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de

conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica

antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo

ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo

e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do

procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia

163

OBRAS DE HEGEL

HEGEL G W F Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie

In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix

Meiner 1968 Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992

Gesammelte Werke vol 20

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)

ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede

Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner

Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer

Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E

Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817

Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften

und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein

(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen

(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978

164

ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die

Lehre vom Begriff (1816) Gesammelte Werke vol 12 Hamburg Meiner 1981

Traduccedilotildees

HEGEL G W F Ciencia de la Logica (I e II ) trad de Augusta e Rodolfo Mondolfo

Ciencia de la Loacutegica Buenos Aires Ediciones Solar 1993

______________ Diffeacuterence des systegravemes philosophiques de Fichte et de Schelling traduccedilatildeo

de Marcel Meacutery In Premiegraveres Publications 2ordf ed Paris Ophrys-Gap 1964

______________ Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas em compecircndio (1830) I ndash A Ciecircncia

da Loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Henrique C de Lima Vaz coleccedilatildeo Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1974

______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Paulo Meneses Petroacutepolis Vozes 2a

ed 1992

______________ Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Traduccedilatildeo notas e apresentaccedilatildeo de

Marcos Lutz Muumlller IFCH-UNICAMP 2005

______________ La relation du scepticism avec la philosophie trad de B Fauquet 2ordf ed

Paris Vrin 1986

______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 2

trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1971

______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 4

trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1975

165

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MARTIN L F B ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir

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vol 4 nuacutemero 2 2007

MUumlLLER M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou

radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3

2005

PORCHAT PEREIRA O Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Unesp 2006

____________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993

SCHAumlFER R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik In Hegel-

Studien Beiheft 45 Hamburg Felix Meiner 2001

SCHULZE G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)

SEXTO EMPIacuteRICO Outlines of Pyrrhonism vol I trad de RG Bury Cambridge Harvard

University Press 2000 Grundriszlig der pyrrhonischen Skepsis trad de Malte Hossenfelder

Frankfurt a M Suhrkamp 1985

SEXTO EMPIacuteRICO Adversus Mathematicos trad de RG Bury The Loeb Classical

Library in four volumes Cambridge Harvard University Press 1985

168

VIEWEG K e BOWMAN B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in

hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der

Philosophie Band 10 2006

_________________________________ Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte

um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp

Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003

VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der

Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches

Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002

___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des

Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999

ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels

Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974

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