CHAGAS - A relação entre a banda Fantasmão e o gênero musical Pagode Baiano

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1 A relação entre a banda Fantasmão e o gênero musical Pagode Baiano 1 Álvaro Andrade, Antonio Salles, Daniele Borges, Guilherme Lopes e Ledson Chagas 2 Resumo Neste artigo objetivamos elaborar uma interpretação sobre a relação (harmoniosa ou tensiva?) existente entre a banda Fantasmão e o gênero musical pagode baiano. Para tanto, empreendemos uma análise com foco nas semelhanças e diferenças entre letras, dança, postura de palco, instrumentos musicais e produção empresarial da citada banda e de outras bandas pertencentes ao citado gênero. Além disso, buscamos localizar a matriz cultural do pagode baiano. O corpus principal que compõe a análise são o CD Pluralidades e o DVD Confraria dos Fantasmas, ambos da banda Fantasmão. O artigo foi elaborado tendo como âmbito o repertório teórico dos Estudos Culturais. Palavras-chave: pagode; matriz cultural; cultura; sociedade Introdução A música popular massiva, um fenômeno originário do século XX, está relacionada com amplos âmbitos constituintes da vida das pessoas. Parte integrante da produção cultural humana, encontra-se em constante interseção com as ações políticas e sociais, com as visões de mundo, com o prazer cotidiano e com as percepções e definições identitárias. É com foco nessa relação constituinte entre cultura e sociedade que empreendemos nossa abordagem de análise da relação existente entre a banda Fantasmão e o gênero musical pagode baiano. 1 Este trabalho é uma versão atualizada (por mim, Ledson Chagas, 2009.2) de artigo referente à 2ª avaliação da disciplina Comunicação e Cultura Contemporânea da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, realizado em 2009.1. 2 Estudantes da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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A relação entre a banda Fantasmão e o gênero musical Pagode Baiano1

Álvaro Andrade, Antonio Salles, Daniele Borges, Guilherme Lopes e Ledson Chagas2

Resumo

Neste artigo objetivamos elaborar uma interpretação sobre a relação (harmoniosa ou

tensiva?) existente entre a banda Fantasmão e o gênero musical pagode baiano. Para

tanto, empreendemos uma análise com foco nas semelhanças e diferenças entre letras,

dança, postura de palco, instrumentos musicais e produção empresarial da citada banda

e de outras bandas pertencentes ao citado gênero. Além disso, buscamos localizar a

matriz cultural do pagode baiano. O corpus principal que compõe a análise são o CD

Pluralidades e o DVD Confraria dos Fantasmas, ambos da banda Fantasmão. O artigo

foi elaborado tendo como âmbito o repertório teórico dos Estudos Culturais.

Palavras-chave: pagode; matriz cultural; cultura; sociedade

Introdução

A música popular massiva, um fenômeno originário do século XX, está relacionada

com amplos âmbitos constituintes da vida das pessoas. Parte integrante da produção

cultural humana, encontra-se em constante interseção com as ações políticas e sociais,

com as visões de mundo, com o prazer cotidiano e com as percepções e definições

identitárias. É com foco nessa relação constituinte entre cultura e sociedade que

empreendemos nossa abordagem de análise da relação existente entre a banda

Fantasmão e o gênero musical pagode baiano.

1 Este trabalho é uma versão atualizada (por mim, Ledson Chagas, 2009.2) de artigo referente à 2ª avaliação da disciplina Comunicação e Cultura Contemporânea da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, realizado em 2009.1. 2 Estudantes da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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O pagode baiano, como segmento musical, ganhou visibilidade de âmbito nacional (e

identidade) em meados da década de 1990, sobretudo com o trabalho de bandas

soteropolitanas como Gera Samba (que se tornou É O Tchan), Companhia do Pagode,

Terra Samba e Gang do Samba. Estas, juntamente com artistas de outro segmento

musical de forte base soteropolitana, a axé music, se notabilizaram junto ao público

brasileiro em apresentações realizadas em programas televisivos como Domingão do

Faustão (TV Globo) e Domingo Legal (SBT), além da emissão de suas músicas em

diversas emissoras de rádio de todo o país. Iniciados os anos 2000, o segmento axé

manteve sua visibilidade de âmbito nacional (gerando, inclusive, a atual principal artista

da música pop do país, Ivete Sangalo), enquanto o pagode baiano estacionou no grupo

Harmonia do Samba, se considerarmos o fato de que as bandas contemporâneas de

pagode baiano (Psirico, Pagod’art, Parangolé, Guig Guetto, Oz Bambaz, Saiddy

Bamba) não têm tanta inserção em programas de TV e emissoras de rádio nacionais,

como o tiveram suas antecessoras.

Ainda restrita a esse âmbito local (em relação ao âmbito nacional), a banda Fantasmão

já conta com destaques em seu trabalho e em sua imagem que lhe permitem se

diferenciar das bandas de pagode em certos aspectos, mantendo semelhanças em outros

e gerando, finalmente, uma ambigüidade quanto ao seu pertencimento ao gênero

musical pagode baiano. Eddye, vocalista da banda, afirma: “Costumo dizer que o

Fantasmão é uma metamorfose ambulante, pois sempre estamos inovando e misturando

rap, reggae, rock (...) e axé. É o que eu denominei de groove arrastado” (Correio da

Bahia, 15/03/2009). Em outra afirmação, o frontman da banda nos dá pistas sobre a

relação da banda com o gênero: “A gente percebe, principalmente na Bahia, que as

pessoas são carentes de músicas verdadeiras. Nós usamos o pagode (...) que é um ritmo

tão popular em Salvador, para podermos passar isto as pessoas. Eu acho que nem tudo é

só alegria, tem muita coisa errada e nós temos que falar sim, temos que protestar

mesmo” (site Pagodeaki).

A ambigüidade sobre o pertencimento da banda ao gênero, evidenciada em declarações

e no trabalho da própria banda e relacionada à atenção que esta recebe de diferentes

agentes sociais (jornalistas e veículos jornalísticos influentes, artistas consagrados,

organizações da sociedade civil), se mostra um caso impar para elaborarmos uma

análise da relação entre banda e gênero, contando com o repertório dos Estudos

Culturais. Mais do que saber se esta relação é de pertencimento ou não, nosso intento é,

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através desse caso, elaborar uma reflexão sobre a relação existente entre as produções

culturais e o devir social, incluindo sua dimensão agonística.

Matrizes Culturais do Pagode Baiano

Ainda que mantenha relação com toda a família do samba, sobretudo do originário

samba de roda do Recôncavo Baiano, o gênero musical pagode baiano (ou,

simplesmente, pagode, como é denominado predominantemente por grande parte da

população baiana) tem no álbum É O Tchan! (Gera Samba, 1995) um de seus principais

marcos materiais iniciais. Assim, para fins historiográficos, pode-se demarcar quase 15

anos da existência do segmento musical. Porém, como nos explica Jesús Martín-

Barbero, “não podemos entender o sentido dos gêneros senão em termos de sua

relevância com as transformações culturais na história” (BARBERO, 1995, p. 65)3.

Assim, para entender o sentido do gênero musical pagode baiano e as implicações desse

sentido na questão que concerne a este trabalho, faz-se necessário uma mirada que

chame em causa os aspectos que se destacam no gênero e interprete as decorrências de

sua relação (e do gênero, como um todo) com os âmbitos político, cultural e social.

Para a elaboração dessa abordagem, seguimos as pistas fornecidas pela musicóloga e

historiadora Mônica Leme que, contra a idéia de que os produtos de massa são impostos

“de cima para baixo” pela indústria cultural, defende a tese de que o grupo É o Tchan é

um representante contemporâneo da “vertente maliciosa” da música popular no Brasil,

ou seja, que essa vertente é uma das matrizes culturais do grupo e que esse

enraizamento na tradição é uma das chaves de seu sucesso. Por extensão, estamos

aplicando essa matriz cultural ao gênero pagode baiano como um todo, levando em

consideração o alto grau de continuidade entre o trabalho do grupo citado e o gênero ao

qual ajudou a consolidar. Segundo a autora, a vertente maliciosa da música popular no

Brasil corresponde a:

“Músicas que se enquadram em gêneros musicais afro-brasileiros e carnavalescos, em que os aspectos rítmicos possuem grande papel na forte integração de texto, música e dança: tais músicas utilizam letras de duplo sentido, geralmente humorísticas, cuja carga semântica pode se intensificar através dos gestos sensuais da dança (requebrado, principalmente), induzidos pelas acentuações contramétricas, chamadas comumente de síncopes” (LEME, 2003, p. 29).

3 Neste trabalho estamos adotando o conceito de gênero como formulado por Jeder Janotti Junior: “modos de mediação entre estratégias produtivas e o sistema de recepção, entre os modelos e os usos que os receptores fazem desses modelos através das estratégias de leitura dos produtos midiáticos” (JANOTTI JR, 2006, P. 6).

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O lundu, gênero de canção surgido no século XVIII, era um meio de expressão das

camadas populares (negros e mestiços) e é um dos elementos dessa vertente que se

destaca como matriz cultural do pagode baiano. Segundo a autora, uma das

características do lundu, assim como da modinha, era a “transgressão da moral”

(hegemonicamente instituída), como se pode notar no seguinte trecho da modinha A

saudade que no peito: “Se sinhá quer me dar/Eu lá vou pª apanhar/Vem ferir, vem

matar/Teu negrinho aqui está/Mas depois de apanhar/Quer fadar com Iaiá” (LEME,

idem, p. 82).

A tematização (na letra) das insinuações de um possível escravo para sua “sinhá”,

certamente, constituíram uma maneira de afrontamento da moral em vigência no

período escravocrata. Segundo Mônica, o lundu, desde os tempos em que era apenas

uma dança (que antecedeu o gênero em seu formato canção), “foi considerado (...) pelo

discurso público hegemônico, (uma dança) ‘licenciosa, vulgar e obscena’” (LEME,

2001, p. 47). Esses elementos já configuram um quadro de resistência contra um

moralismo puritano que, dentre (e contraposto a) vários outros aspectos, integra nossa

sociedade e seus discursos hegemônicos de origem européia. Para a autora, a produção

cultural da banda,

“evoca e organiza a memória coletiva (matrizes culturais) e as experiências de lugar (territorialidade e lugar social). Estão ali representados a cidade de Salvador, a região do Recôncavo (identidades), o carnaval de rua (com suas transgressões, liberalidades e brincadeiras), a linguagem da classe popular (em choque com a língua culta e hegemônica)” (LEME, idem, p. 49).

No entanto, se uma certa obscenidade (centrada no corpo, nas canções e na dança)

integra o pagode e é um elemento contra-hegemônico presente na relação histórica que

o homem diaspórico (e outros segmentos não dominantes) desenvolveu com (e contra)

certos aspectos da cultura européia – aspectos ditos “civilizacionais”, que se impuseram

como dominantes (dessa relação resultando o brasileiro) –, essa mesma obscenidade

esteve (e está) unida ao machismo, presente na sociedade brasileira e preponderante

globalmente. Stuart Hall, tratando do repertório cultural do negro diaspórico, nos traz

importantes elementos desses dois lados da moeda, que devemos levar em conta quando

tomamos o pagode baiano como objeto de reflexão:

“percebam como, deslocado de um mundo logocêntrico – onde o domínio direto das modalidades culturais significou o domínio da escrita (...) –, o povo da diáspora negra tem, em oposição a tudo isso, encontrado a forma profunda, a estrutura profunda de sua vida cultural na música. (...) pensem em como essas culturas têm usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o único capital cultural que tínhamos” (HALL, 2006, p. 324).

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Pois bem, esse uso do corpo na dança, de forma maliciosa, despudorada, obscena e

“excessiva”, pode ser considerado uma maneira de produção contra-hegemônica, de

resistência (ainda que, talvez, não consciente) contra o logocentrismo citado por Hall,

que está presente nos discursos hegemônicos da sociedade capitalista e, mesmo, de

amplos elementos da civilização ocidental. Como nos explica Milton Moura, “pagode e

lambada são dialetos diferentes da música de putaria lasciva e provocante, que

desconstrói a sisudez e a seriedade do cotidiano racionalista e disciplinado” (MOURA,

2001, p. 302).

No entanto, o próprio Stuart Hall nos aponta uma outra face da questão:

“certas formas pelas quais os homens negros continuam a viver suas contra-identidades enquanto masculinidades negras e reapresentam fantasias de masculinidades negras nos teatros da cultura popular são, quando vistas a partir de outros eixos de diferença, as mesmas identidades masculinas que são opressivas para as mulheres” (HALL, idem, p. 328).

Assim, podemos compreender que o pagode baiano é um objeto refratário de

abordagens simplistas e maniqueístas que buscam ou a “demonização” ou o

“apadrinhamento”. Esse é o ponto de partida que nos leva à análise da relação entre a

banda Fantasmão e o gênero musical pagode baiano.

A banda e o gênero

De acordo com Maria Ignez C. Mello, no texto Música Popular Brasileira e Estudos

Culturais, “a música vista como fenômeno socialmente fundamentado revela-se um

poderoso meio de divulgação de ideologias” (MELLO, 1997, p. 9). Nessa perspectiva,

as letras, embora não sejam os únicos, nem, necessariamente, os principais elementos de

uma canção, são poderosos meios de difusão de ideologias.

Nas letras de pagode podemos destacar seu forte apelo erótico e machista, sua

construção simples, o uso do duplo-sentido e dos refrões repetitivos. Discursivamente,

letras de canções como As piriguetes chegaram, Metralhada, Problemática, Vaza

Canhão e Galinha se agregam, configurando uma formação discursiva. É Stuart Hall

quem nos explica sobre esse conceito foucaultiano: “cada vez que estes eventos

discursivos (...) versam sobre o mesmo objeto, compartilham o mesmo estilo e suportam

uma estratégia, um movimento comum e padrão institucional, administrativo ou político

(...), pertencem a uma mesma formação discursiva” (traduzido de HALL, 1997, p. 27).

Constituem-se, assim, uma maneira específica de abordar a temática feminina nas

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representações realizadas pelo pagode. Há ainda as letras que superlativam a genitália

do homem, conotando, assim, o poder masculino, por exemplo, as de títulos Badalo do

Negão e Ovo de Avestruz. Na letra Mosquito, da banda Saiddy Bamba, temos um

exemplo: “Fui no pagode curtir o suingão/ Chegando lá, senti a vibração/Eu olhei pro

lado, eu olhei pro outro/ Era o mosquito, muito, muito louco/ Mosquito não morde,

mosquito não come, mosquito:/ Só só pica, só só pica”.

Assim sendo, de um modo geral, o pagode construiu uma imagem e esta é valorada

como negativa pelos discursos hegemonicamente legitimados a respeito da música (e

por amplos segmentos sociais também), como a crítica especializada e as supostas

elites culturais, tendo como um dos fatores principais disso as suas letras.

Vale lembrar, também, que a produção cultural do pagode baiano, assim como a do

forró eletrônico, tem ênfase na produção do show e não do álbum, o que é pouco

compreendido por uma crítica cuja percepção é (de)limitada por perspectivas

“clássicas” de produção cultural, o que a leva a focar-se num baixo esmero artístico das

letras do gênero, mas, também, a desleixar-se sobre o papel central que as danças

coreográficas assumem neste e, logo, na bem-sucedida relação comunicativa existente

entre os artistas de pagode e seu público. As letras do pagode, aliás, por conta do jeito

que são e dos temas que abordam, também são centrais nessa relação bem-sucedida

entre produtor/receptor.

Felipe Trotta, tratando do forró eletrônico, caracteriza esse foco no show como uma

“ênfase na experiência socio-musical como eixo principal de circulação e

comercialização” (TROTTA, 2008, p. 12). Ênfase esta que se dá em detrimento da

produção de uma obra, o já clássico álbum (estratégia de sobrevivência em tempos de

pirataria). Observamos, no entanto, que a crítica, enquanto elemento hegemônico, tem

foco na “pobreza” das letras, mas, também, focaliza-se no que há de opressivo no

pagode, quanto às mulheres. Ressaltamos também que a produção dessas mensagens de

caráter opressivo não se configura, necessariamente, numa imposição dessa postura às

mulheres, mas sim, na construção de um discurso, em um processo de luta, negociação

e resistência, em que a edificação e constante manutenção da ideologia do machismo

ocorre, também, pela sua aceitação por parte das mulheres, que também integram o

público do gênero.

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As letras da banda Fantasmão são um dos fatores que mais a difere dos demais grupos

contemporâneas do gênero (embora persista a semelhança formal, ou seja, as ditas

“letras pobres”). Apesar da temática de protesto social já ter aparecido no trabalho de

outras bandas como Parangolé, Psirico e Guig Ghetto, o que nos permite falar,

inclusive, desta temática como um elemento emergente4 (WILLIAMS) no pagode

baiano, foi a Fantasmão que, até agora, deu a guinada mais radical nesse sentido.

Em Pluralidades (2008), primeiro disco de carreira da banda, o que chama a atenção

são suas letras de forte apelo social, que retratam aspectos da realidade dos subúrbios,

visam resgatar a auto-estima do povo negro e tentam despertar a consciência política,

como podemos observar nos trechos de Da Ralé e Eu Sou Negão, respectivamente:

“Sou da ralé, eu sou, eu sou/ Mas não esqueça/ Que a verdadeira voz do gueto é de

vocês/ Quem lembra do quilombo, sabe o que a gente fez/ Lá o negro também tinha o

seu valor” e: “Eu sou da favela,/ Eu vim do gueto,/ Batendo na panela,/ Derrubando o

preconceito./ Pra você que pensa,/ Que negro correndo é ladrão,/ Tem branco de

gravata, robando de montão!(...)”. Conceito é outra letra que se destaca, nesse sentido:

“Com um conceito renovado/ Andará nossa nação/ Sou filho de preto/ Quero respeito/

Quem mora no guetto/ Não é ladrão!/ Não, não, não!/ Na favela, lá no morro/ No

Lobato, na Fazenda Coutos/ No Retiro, quem atirou? /Eu quero saber quem pintou o

Castelo de Branco”. Em Kuduro, música não incluída nesse CD, tanto a letra quanto a

música remetem e citam a produção cultural de Angola, o que configura uma situação

de interculturalidade (CANCLINI, 2005, p. 165) e simboliza as históricas relações entre

o Brasil e Angola: “Vem de Luanda/Hit de Angola/Aqui na Bahia/Já virou moda/Dança

africana/Botei na roda/Vixe Maria/É coisa nova/Isso não é rap/Isso não é samba/Essa

mania/Vem de Luanda/Kuduro, Kuduro (...)”.

Para além da temática de protesto social – temática esta valorada como positiva pela

crítica especializada em música, por sua relação com um âmbito central em nossa

sociedade, o da política (lato sensu) –, outros temas recorrentes são o apego a Deus e a

dedicação ao trabalho como formas de vencer a dureza da realidade social e se auto-

afirmar enquanto cidadão. Isso explicita, a nosso ver, mais um dos motivos pelos quais

a banda vem tendo tanta aceitação em meios nos quais o pagode baiano não era bem

visto (citaremos adiante). A adoção destas temáticas tem valoração positiva por se

4 No livro Marxismo e Literatura, Raymond Williams traz o dominante, o residual e o emergente como elementos presentes no processo cultural.

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tratarem de discursos hegemonicamente legitimados de forma muito ampla e enraizada

na sociedade. O trabalho é um dos principais pilares do capitalismo liberal e Deus ainda

é um paradigma na sociedade brasileira.

No DVD Fantasmão Ao Vivo – Confraria dos Fantasmas (2008), outro aspecto

importante da relação entre a banda e o gênero nos é evidenciado. Eddye e banda não

exibem uma das características mais marcantes do pagode baiano, a coreografia, que no

gênero, quase sempre tem uma função sígnica atrelada à relação sexual. Apesar de

haver dança no trabalho da banda, nem as coreografias realizadas por Carla Pérez,

Jacaré e outros dançarinos e dançarinas, nem os remelexos e requebrados do cantor

Xanddy, aparecem na Fantasmão. Eddye, inclusive, chega a afirmar em vários

momentos durante as canções que: “homem não rebola”, “malandro que é malandro

não rebola”. No DVD, verifica-se também que não há nenhuma referência explícita, na

dança, ao sexo, o que não impede uma busca pela sensualidade. Um exemplo é a música

Quebre igual à negona, na qual uma dançarina negra se apresenta usando uma longa

mortalha branca e folgada (semelhante à usada por toda a banda), diferentemente dos

típicos shortinhos das dançarinas de pagode. Além disso, percebe-se que durante toda a

apresentação registrada no DVD, a banda Fantasmão não usa o cavaquinho,

instrumento considerado fundamental na formação do samba e do pagode baiano. Em

seu lugar, há guitarras elétricas que, por suas características técnicas (especialmente

pelo fato de contarem com dois captadores de som duplos, o que confere mais “peso” ao

som obtido pelas cordas), são mais destinadas à execução do rock. Como resultado,

percebe-se nas apresentações da banda algumas citações do gênero, como quando

Eddye convida seu público a pular “como se fosse um show de rock”. O DVD conta

ainda com a participação especial de cantores de reggae e rap.

O rap, aliás, assim como vários aspectos da cultura hip-hop, está presente no trabalho

da banda. Suas letras mantêm relação com as típicas letras de protesto do rap, embora

formalmente tenham mais semelhança com as letras de pagode (curtas e de refrão

repetitivo), como já foi dito. A banda chegou a participar de um show chamado

Encontro das Tribos, no clube Wet’n’Wild, juntamente com Racionais Mc’s e RZO,

ambas paulistas e de rap, além de Diamba e Adão Negro, soteropolitanas e de reggae.

Em entrevista, Eddye cita Mano Brown, vocalista dos Racionais Mc’s, como seu ídolo

(site Pagodeaki). Além disso, no carnaval desse ano (2009) a banda teve como

convidado, no trio-elétrico que “puxou”, o rapper americano Ja Rule.

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Devemos observar, também, que há fortes ligações entre a banda e o gênero pagode

baiano. O cantor Eddye foi integrante da banda Parangolé, a Fantasmão toca em vários

eventos típicos de pagode como MuquiFest, Salvador Fest e Pagodão Elétrico, além do

próprio carnaval de Salvador e das micaretas. É produzida pela Equipe Entretenimento,

mesma produtora das bandas de pagode Sam Hop e Pretubom. Suas músicas são

executadas nas rádios que lidam com o gênero, como a Piatã FM. E na letra da canção

Dali, a banda mostra enxergar-se como integrante do gênero, citando outras bandas

irmãs: “(...) Pagod'art é meu amigo/ Tá comigo, tá comigo/ Saiddy Bamba é meu amigo/

Tá comigo, tá comigo/ Oz Bambaz é meu amigo (...)/(...)Tá comigo, tá comigo/ Psirico é

meu amigo/ Tá comigo, tá comigo”. Além das semelhanças musicais. Em entrevista,

Eddye toca no assunto da ambigüidade entre banda e gênero: “nós não temos intenção

alguma de negarmos sermos pagode ou axé, até por que a gente veio disso. Mas somos

diferentes, é o ‘groove arrastado’” (site Pagodeaki).

Pois bem, essa flexibilização existente no trabalho da banda, ao mesclar elementos de

gêneros como o rap, o rock e o pagode baiano, pode ser entendida nos termos da

hibridização, como define Néstor García Canclini: “processos socioculturais nos quais

estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para

gerar novas estruturas, objetos e práticas” (traduzido de CANCLINI, 2003, s/p). Daí a

insistência (e aposta) da banda no rótulo criado por eles mesmos, o “groove arrastado”,

rótulo esse ainda sem reconhecimento social.

Conclusão

Negociação é a característica que mais se destaca no trabalho da banda Fantasmão. Sua

pertença ao gênero pagode baiano é matizada com a citação e integração de elementos

de outros gêneros como o rap e o rock, ao ponto de fazer da banda a principal

representante de uma vertente emergente no pagode baiano, a vertente do protesto

social. Letras como Tome baculejo (Parangolé) e Se assuma (Sam Hop), são indícios de

uma recente oxigenação no gênero pagode baiano5. O que não é tão surpreendente, se

considerarmos o fato de que essas bandas são formadas por integrantes pertencentes (ou

ex-pertencentes) às classes menos favorecidas economicamente, além destes possuírem

5 Respectivamente, “Eu não aguento mais/Vou desabafar/Embaçaram na quebrada/Tá sinistro de aturar/invadiram nosso gueto/Tiraram a paz e o sossego/Todo dia, toda noite/Tome baculejo, Tome baculejo...” e “Rapaz, se olhe no espelho/Repare o cabelo, compare o nariz/Sua origem é Africa/Mesmo que não queira, todo mundo diz/Se assuma... ser negão é massa/Se assuma... ser negão é raça”.

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características fenotípicas afro-descendentes, o que pode ser tomado como um emblema

de sua maior herança cultural e biotípica e de tudo aquilo que está relacionado a essa

herança (sobretudo, a resistência negra contra a escravidão e todas as suas seqüelas).

No entanto devemos destacar que a banda negocia também com valores dominantes de

uma cultura oficial de origem, sobretudo, européia (seja de sua perspectiva “crítica”, ou

mesmo de seu caráter elitista – ambos eminentemente racionalistas) quando afirma, por

exemplo, que a Bahia é carente de “músicas verdadeiras”, como se a produção cultural

do pagode baiano fosse menos verdadeira ou menos legítima que outro tipo de

produção cultural. Ou, se a temática sexual predominante no gênero fosse, necessária e

invariavelmente, inferior a outros tipos de temáticas.

Os ganhos simbólicos da investida da banda já se fazem notar, por exemplo, com a

penetração desta em espaços não ocupados por bandas de pagode baiano como a Bienal

Cultural da União Nacional dos Estudantes - UNE (em sua 6ª edição, ocorrida em

Salvador, 2009) ou em matérias no site da MTV (site mtv.uol.com.br). Também com a

presença de Eddye na capa da revista Muito (61ª edição, maio de 2009), do grupo A

Tarde. Ou ainda com Caetano Veloso abrindo seus shows com músicas da banda (site

atarde.com.br), assim como do Psirico.

Considerando o fato de que o gênero, “não é só uma estratégia de produção, de

escritura, é tanto ou mais uma estratégia de leitura” (BARBERO, op. cit., p. 64),

devemos, por fim, concluir que a banda, complexificando a leitura de sua produção,

simplesmente trabalha as áreas de tensão entre o gênero pagode baiano e outros

gêneros da música popular massiva, eliminando os aspectos do primeiro que são

contrapostos aos objetivos de sua produção cultural e agregando os aspectos dos

segundos que são convergentes com seus intentos artístico-culturais, levando em conta,

assim, a relação de sua produção cultural com o âmbito sócio-politico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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