chamuças de bacalhau 3

6
1 Chamuças de Bacalhau Agora é que se percebe porque é que a Rua do Inferno tem esse nome. Boas dicas para quem quer fazer sightseeing sem pagar um tusto. Primeira experiência Bollywood dentro de um bolo de casamento com uma criancinha disléxica. As batatas do Mac são iguais em todo o lado…

description

Aventuras pela India

Transcript of chamuças de bacalhau 3

Page 1: chamuças de bacalhau 3

1

Chamuças de Bacalhau

Agora é que se percebe porque é que a Rua do Inferno tem esse nome. Boas dicas para quem quer fazer sightseeing sem pagar um

tusto. Primeira experiência Bollywood dentro de um bolo de casamento com uma criancinha disléxica. As batatas do Mac são

iguais em todo o lado…

Page 2: chamuças de bacalhau 3

2

III.

What’s pacted in Deli stays in Deli

É de manhã. O dia continua a ser o mesmo, visto que não dormimos

desde Lisboa, que foi há duas noites atrás. Lembro-me de não me reconhecer no

espelho de tão sexy e de achar que tinha ido parar ao lanche do Chapeleiro

Louco, versão “eu-sou-horrorosa”. Aquilo era a loucura total. Em menos de 24h

tínhamos chegado a um planeta diferente, à pior rua de sempre, conhecido uma

família inteira de indianos amorosa, comido uma data de coisas esquisitas e

feito negocio com três homens.

A Rita tinha adormecido e a mim, deu-me para entrar num estado de

espírito verdadeiramente metafísico. Aquilo estava tudo a ser estranhíssimo.

Sentia-me como se estivéssemos num cenário mas não nos deixávamos ensopar

pela realidade, cena matrixiana. Eu continuava a ser uma espectadora e isso

punha-me de fora. Tinha receio de entrar definitivamente para o outro lado do

espelho…sabe-se lá se conseguiria voltar. Comecei a pensar em tudo e constatei

que a própria relação com a comida era diferente. Eles comiam com as mãos,

“isso torna a coisa íntima, caraças!”, eles escolhiam a galinha antes do jantar e

só lhe davam nome a seguir…

A Rita acorda estremunhada e conto-lhe as minhas divagações “Rita eles

são MESMO diferentes”, “Cala-te pá, isso é mas é fome, vamos é pedir o

pequeno-almoço que eu estou para aqui a morrer. Caraças para este telemóvel!

Mas porque é que ninguém atende aquela merda?”. Ahh bendito pragmatismo,

o estômago comanda a vida! Bem, o pequeno-almoço punjabi veio tarde e a más

horas e foi qualquer coisa como torradas com nada e café chalado (porque sabia

a chá efectivamente). Cheia de fome e sono, nem mugi e saímos de casa a correr

porque o Prince vinha-nos buscar para um certo sightseeing.

O dia prometia ser animado. E lá fomos nós a cantar Bryan Adams (?!)

até ao primeiro monumento, que era nem mais nem menos que o túmulo de

Humayun ou a coisa mais parecida com o Taj Mahal, que veríamos nesta nossa

viagem. Era um monumental e fotogénico mausoléu em tons de ocre e se

Page 3: chamuças de bacalhau 3

3

quiserem saber mais, há livros chatos sobre isso. Tirámos muita foto e

constatámos que na Índia existem águias, como cá voam pombos e muitos

papagaios, à falta de pardais. Tivemos uma sensação maravilhosa de Índia-sem-

Indianos entre os jardins verdes e as palmeiras. Mal sabíamos nós, que iríamos

encontrar esta sensação um pouco por toda a Índia. Que alívio. A Índia dos

Turistas!

Como estávamos numa de grandiosidade a preços baixos, fomos visitar

“Bahá’í House of Worship”, “Lótus Temple” para os amigos, que convidava

“pessoas de todas as religiões e raças a adorar o Criador do Universo e a

expressar o amor entre Deus e o Homem”. Isto tudo, dentro de um edifício que

plagia ligeiramente a Ópera de Sidney, ou mostra como seria Fátima depois de

um lifting. Gente de todo o género aflorava ao templo: indianas levavam ao colo

rechonchudos bebés de olhos pintados e apertadas pulseiras, famílias inteiras

acotovelavam-se para entrar e turistas fotografavam cada canto. Pusemos os

sapatos nuns sacos de serapilheira à entrada e lá fomos em meias, pelo

mármore frio.

A sensação de paz dentro do templo era indescritível. As pessoas ficavam

horas a rezar em silêncio e eu aproveitei para tentar desenhar o interior, que

saiu qualquer coisa como um ovo estrelado cubista. Não posso deixar de incluir

nesta narração, o leve odor a chulé que se sentia naquela espiritualidade toda, o

que aligeirava o ambiente meditativo e convidava a um risinho parvo

incontrolável, do qual obviamente fui vitima.

Um telefonema materno arrancou-me à contemplação mística para

explicar a estranha delicia que estava a ser a Índia, mas quando dei por mim

já estávamos num restaurante chinês a comer noodles e porco doce e a falar da

prostituição na Tailândia (?!). Este era o restaurante preferido do Prince e nós,

naturalmente oferecemos o caro repasto, porque na verdade este rapaz estava a

ser impagável.

Mais uma voltinha pelas ruas a pé e dávamos graças aos deuses por

andarmos acompanhadas. Fomos aos correios e levantamos dinheiro numas

caixas Multibanco que tinham sempre um indiano de guarda, de espingarda ao

Page 4: chamuças de bacalhau 3

4

ombro, só por causa das coisas. Entretanto já escureceu e estamos na rua do

nosso hotel, que é nesta altura que ela ganhará a sua carinhosa alcunha.

Observem pelos meus olhos. É noite cerrada, acabámos de ser

apresentadas a um nepalês com tão mau aspecto que dava para fazer um filme

de terror só com aquela cara. Vinha acompanhado com o que parecia ser uma

rameira armada em Madonna nos anos 80. Ao nosso lado direito, três cães

fornicam, sim, os três ao mesmo tempo (os mamíferos sempre foram originais)

e em frente, umas vacas comem lixo e observam a acrobacia. O resto dos

indianos tentam meter conversa connosco em francês. A Rita lança-me um

olhar que diz “Shit!” e eu dou por mim a concordar com a expressiva

observação. E assim nasceu a “Rua do Inferno”, que nem Dante, nos seus

desvarios mais loucos imaginou tal cenário de decadência.

Corremos para o cinema e vemos o Prince deixar o carro no meio da rua e

dar as chaves a um indiano, que já teria umas 40 num chaveiro. Ficando o carro

destravado, vemos o simpático homenzinho arrastá-lo, até o enfiar num buraco

colocando outros na frente. Percebemos então, que o desgraçado andava a

empurrar, à mão, cerca de 100 pópos a sério. Claro que era bizarro, mas já

estávamos atrasadas para o filme. No cinema, passámos por um detector de

metais e depois por uma indianazinha que nos apalpou repetidamente e nos

esvaziou a mala, dizendo numa vozinha aguda “Não podem entrar com isto”

(sendo isto a maquina fotográfica, o isqueiro, os cigarros e o leitor de Mp3, o

moleskine e a pílula, vá se lá saber porquê) e, à falta de bengaleiro para deixar “o

isto”, demos o “isto” ao Prince que o foi guardar no carro. Nem nos lembramos

que o homenzinho ficava com as chaves e por isso nos podia roubar à vontade.

Sem preocupações, instalamo-nos na melhor e mais foleira sala de

cinema de sempre, em tons de rosa, parecia que estávamos a viajar dentro de

um bolo de casamento. As cadeiras, ainda eram melhores que as do avião.

Completamente reclináveis e com tanto espaço que cabiam 2 fileiras de cadeiras

à cinema King, onde lá só havia uma. No intervalo, um garçon veio perguntar se

desejávamos comer alguma coisa picante enquanto víamos os anúncios.

De volta ao filme, faço uma pausa para observar. A Rita chora

desalmadamente ao meu lado. Eu, estou bastante preocupada com o dinheirão

Page 5: chamuças de bacalhau 3

5

que vamos gastar com este plano de viagem e os actores estão mais interessados

no destino de uma horrorosa criancinha disléxica que, em duas horas

aprendemos a amar como um filho. Não, não percebemos nada do que eles

diziam mas também não é preciso com tanta cançoneta pelo meio. Argumento à

parte, o filme é óptimo. Uma técnica, umas cores, uma realização, enfim e eu

que só fazia contas ao dinheiro que não íamos ter para comer caril. E a Rita que

chorava sempre que o actor principal fazia cara de cachorrinho abandonado, e o

Prince que se ria o tempo inteiro e dizia “Parrrdon?” sempre que eu perguntava

onde é que estava a graça e a musica altíssima e a Rita a soluçar e eu pobrezinha

e aquilo que nunca mais acabava…

De repente o cenário mudou. Isto agora é um magnífico McChiken e nós

estamos no McDonads, esse bastião do capitalismo que atacou também a Índia,

depois de prometer que não faria nada com vaca. E eu que andava a sonhar com

um Big Mac há dois dias descobri que só tinham a versão hindi, que é o Chicken

Maharaja, mas que nem isso estava disponível nesta noite. Só pelas batatas

fritas com um sabor normal, valeu a pena. E bem que precisávamos de ânimo

para o que ia acontecer a seguir.

Depois daquela injecção de colestrol, voltámos ao hotel com o Prince, e o

Rajú já lá estava à nossa espera (como já perceberam, Rajú o Obeso era o

cérebro lá da máfia). Era tempo para ir fazer o “business”, e eles perguntam se

as conversações se podem passar no nosso quarto. Nos cinco minutos que

levamos de avanço para get fresh, a Rita confessa que “eles querem mas é violar-

nos no quarto e acabou-se”. Se as coisas já não estavam famosas, acabam de se

tornar pelo menos, simplesmente aterradoras.

A conversa que se passou entre a cama, as cadeiras e o candeeiro de

Ananás-de-Cristal foi tirada do “Padrinho”. Ali tentávamos regatear o mais

possível em três línguas até chegarmos aos 500 euros No final lá ficou acordado

que pagávamos 250 agora e 250 daí a três dias, quando voltássemos do Norte e

dormíssemos em casa do Prince, antes de ir para Agra para ver o Taj.

Uns milhares de Rupias mais pobres, já sozinhas e com as virtudes

intactas, entrámos em estado de choque com o dinheiro que tínhamos a menos

Page 6: chamuças de bacalhau 3

6

no segundo dia de viagem. Eu só queria chorar. Vai daí a Rita sai-se com o

seguinte plano mirabolante. (E é neste ponto que se verá aparecer um fantasma

que nos acompanhará durante toda a viagem e só conheceremos nos últimos

dias) Atish era um contacto goês com quem já tínhamos trocado uns emails e

que se tinha prestado a ajudar-nos nas situações mais escabrosas. Tendo nós

que pagar a estadia em Goa depois daqueles gasto todo, podíamos inventar que

tínhamos sido assaltadas para ele nos dar guarida de borla. “Estás a brincar, não

estás Rita?” digo eu, bastião da integridade, “Ohh sei lá, nunca se sabe o que é

que pode acontecer, é só uma ideia.” Há um longo minuto de suspense quebrado

pela musiquinha do Für Elise do telemóvel indiano jamais atendido. Rita e

Mami dão uma maquiavélica gargalhada, de carteira vazia e planos pouco

honestos na cabeça, afinal “nunca se sabe o que pode acontecer…”

Enquanto a Rita está no banho, saltei pela janela para o telhado do prédio

à frente. Contemplei, de coração pequenino e carteira vazia, as explosões de fogo

de artifício de um casório qualquer ao longe. Amanhã ia começar a verdadeira

Índia, pensei eu emocionada. E ainda não seria a última vez….