Chamuças de Bacalhau

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Chamuças de Bacalhau Ultralevur, tu expulsa-me o demónio do corpo! 19 dias de luta para perder a batalha com um Chicken Byriani. Os mistérios cósmicos e fenomenais da transcendência sideral da leitura das mãos ou será que caso com um herdeiro loiro de olhos azuis? Bombaim ou Mumbai? O autocarro é um canil! A pior ida à “casa de banho”. Os porcos triunfam. 1

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Aventuras na India

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Chamuças de BacalhauUltralevur, tu expulsa-me o demónio do corpo! 19 dias de luta para perder a batalha com um Chicken Byriani. Os mistérios cósmicos e fenomenais da transcendência sideral da leitura das mãos ou será que caso com um

herdeiro loiro de olhos azuis? Bombaim ou Mumbai? O autocarro é um canil! A pior ida à “casa de banho”. Os

porcos triunfam.

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XIXHell is a Bus to Bombaim

Está sol. Está sempre sol mas o sol de Udaipur é diferente. É um sol de verão porque reflecte na água. Portanto, estava um sol de Udaipur e acordamos descansadas. Era uma manhã encantadora, tudo era lindo quando…

-Ó Rita, assim só por acaso, não tens aí à mão um Ultralevur (ou vinte), tens?

Ok. Eu tinha-me aguentado. Posso dar os sentidos parabéns ao meu organismo por ter estado 19 dias na Índia e ainda não ter reagido. Peço uma ovação de pé para o meu intestino, estômago e órgãos adjacentes, palmas para o quilo e para o quimo! A plateia pode agora sentar-se (como eu o passei a fazer mais vezes por dia).

Convenhamos, eu tinha abusado da gastronomia, aquilo tinham sido dias e dias a jogar ténis entre o macarrão e o paneer, as natas e os molhos. E os fritos picantes, e os chai ferventes, e os lassis e mais uma série de coisas que passaram a chamar-se dieta. E agora, depois de 19 dias de luta, o organismo tinha-se rendido à evidência. Não adianta demorar-nos sobre este assunto. É um facto para qualquer turista que se preze, e eu tinha fé nos Ultralevur.

É claro que nada me impediu de me regalar com um galão e uns croissants com chocolate no cafezinho Namasté. Nem sequer com

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o Chicken Byriani do almoço (very bad idea). Ia empurrando os Ultralevur com coca-colas e rezava a Ganesh para me expulsar o demónio do corpo.

Durante a manhã visitamos um velho palácio que ficava ao pé do nosso hotel, e admito que o fizemos porque era ali já ao lado e era tão barato que nem pagava a manutenção. Depois fomo-nos sentar nos ghats e fomos vítimas de um grupo de meninas-mogli-aprendizes-de-cabeleireiras, que se entretiveram a fazer-nos trancinhas no cabelo. Acabei por dar a cada uma pulseiras que tinha comprado em Pushkar, parecia que tinham recebido uma barbie.

Antes de deixarmos o Rajastão, decidi entregar-me aos mistérios cósmicos e fenomenais da transcendência sideral e ir ao palmreader do nosso hotel. Essa mística personagem chegava com a sua malinha, lavava as mãos, queimava uns incensos e falava ao telemóvel enquanto eu esperava sentadinha à chinês numa gorda almofada. O meu futuro estava prestes a ser revelado.

Enquanto isso, a Rita definhava de má disposição, num banquinho ao pé do miniaturista que estava a copiar (sem grande amor à coisa) 20 vezes o mesmo camelo desgraçado e que aproveitava para ir sugerindo curas milagrosas.

Mas regressemos ao meu brilhante futuro, casada com um milionário loiro de olhos azuis, cheia de filhos loiros de olhos azuis e sem nunca ter de lavar um prato na vida. Oh, o meu futuro não seria bem assim, segundo o tipo, ia viver até aos 90, casar com um engenheiro electrotécnico (que depois de uma careta minha se transformou logo em cirurgião) ia ter três fedelhos com mau feitio e havia boas probabilidades de passar a vida a mudar de trabalho.

Claro que era tudo um bocado nublado mas o homem, por apenas 375Rs, disse que ia tudo correr bem, com aquele ar de avó

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da Pocahontas, e eu acreditei. E ainda me aconselhou as cores para a próxima estação por isso saí de lá toda satisfeita. A Rita abanava a cabeça e dizia que era tudo “uma banhada” e eu fiz aquele ar do “cala-te pá, vou casar com alto cirurgião e tu não” e acabou-se a conversa.

A hora que se seguiu foi passada numa rua qualquer à espera do autocarro. Já havia alguns estrangeiros e ia tudo para Bombaim (que entretanto se chama Mumbai mas como não dá jeito nenhum vou continuar com o nome catita). Tínhamos chegado ao Dia do Juízo Final. O dia que durante toda a viagem nos assombrou em sonhos, o dia da odisseia até Goa.

Sabíamos que o autocarro até Bombaim ia demorar 16 horas, e depois disso tínhamos que apanhar o comboio que nos ia levar para o Sul. Ainda não sabíamos em que tipo de carruagem íamos, ninguém nos tinha conseguido explicar se era boa ou má.

Depois da espera lá seguimos um tipo pela estrada fora durante 10 minutos até ao terminal dos autocarros, havia tanta gente sentada na berma da estrada que aquilo parecia que o país estava todo na fila para o pão.

Quando chegamos ao autocarro não queríamos acreditar. A parte dos sleepers, em vez de ser de vidro era de metal. As portas eram corridas e na parte de cima tinham umas grades para entrar o ar. O pano do colchão tinha mais buracos que a lua e estava para lá de porco. Nós estávamos de boca aberta. Nunca tínhamos visto nada tão miserável. Visto do estreitíssimo corredor, o autocarro parecia um canil, com pequenas jaulas para animais.

A Rita estava furiosa, e ficou pior quando ia a abrir a porta da nossa jaula e ela lhe caiu na cabeça. Só o belo palavrão nos podia aliviar daquela situação.

- Vá Rita são só 16 horas. Vamos a dormir e quando acordarmos já lá chegámos.

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Eu tentava animar, mas ambas sabíamos que iam ser 16 horas infernais, sem poder ir à casa de banho, sem poder esticar as pernas, sem nada para fazer. Ainda fomos a conversar um bocado do caminho. Mas com o cair da noite ficámos silenciosas. Eu tentava dormir e a Rita ouvia música. Em cada solavanco ela mandava tudo para o “caramachão” mais próximo. Estava um ambiente algo tenso.

Parámos 4 vezes no meio de nenhures para trocar pneus. Numa das vezes eu não aguentei mais e fui ver da casa de banho. A Rita dizia “tú és louca, não saias daqui que este sitio é sinistro, não se vê nada, vais ser violada”. “Porra Rita, mais nada? Estou aqui a morrer da tripa e ainda me violam? Que bagunça, olha que se lixe!” E e lá fui eu.

Nunca, enquanto viver nesta terra de deuses variados, me vou esquecer da minha apoteótica ida à “casa de banho”. Aquilo era um barracão, sem tecto, sem nada. O cheiro era qualquer coisa do outro mundo. Nunca estive tanto tempo a suster a respiração, de cócoras, a olhar para as estrelas, a ver se disfarçava e tentava não reparar na velha agachada a um palmo de mim. Só quando se chega a este momento de meditação com o Altíssimo é que se sabe a fibra que se tem!

De repente, comecei a ouvir o motor do autocarro e fui a correr desesperada “nãooooooooooo”. A Rita lá de dentro gritava “esperem, esperem”. Depois de me ver viva e, apesar do ar de vítima do holocausto, foi também experimentar o degredo. Voltou sem uma meia, não sei porquê, se calhar esqueceu-se do papel higiénico! Quando regressámos à jaula, enfrascamo-nos em tanto desinfectante que ficou tudo a cheirar a farmácia. Prometemos nunca mais falar no sucedido.

Passamos o resto da noite aos safanões. O autocarro andava com a doçura de uma retro escavadora a fazer um rali numa pedreira. A buzina misturava-se com o som das grades de batiam umas

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contra as outras e com a voz da Rita que praguejava e dizia “nunca mais, eu nunca mais”, eu gozava “não te preocupes que eu só morro aos 90 por isso vamos safar-nos”. Mas ela não se convencia.

Para ajudar à festa os indianos ressonavam como eu nunca vi. Das jaulas saiam os roncos mais impressionantes da História. Aquilo era um concerto absolutamente repulsivo. Nós gritávamos, entre gargalhadas “calem-se porcos, calem-se” mas não havia duvidas. Os porcos triunfavam!

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