CHAPEUZINHO AMARELO Chico Buarque Era a...

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CHAPEUZINHO AMARELO Chico Buarque Era a Chapeuzinho Amarelo. Amarelada de medo. Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho. Já não ria. Em festa, não aparecia. Não subia escada, nem descia. Não estava resfriada, mas tossia. Ouvia conto de fada, e estremecia. Não brincava mais de nada, nem de amarelinha. Tinha medo de trovão. Minhoca, pra ela, era cobra. E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra. Não ia pra fora pra não se sujar. Não tomava sopa pra não ensopar. Não tomava banho pra não descolar. Não falava nada pra não engasgar. Não ficava em pé com medo de cair. Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo. Era a Chapeuzinho Amarelo… E de todos os medos que tinha O medo mais que medonho era o medo do tal do LOBO. Um LOBO que nunca se via, que morava lá pra longe, do outro lado da montanha, num buraco da Alemanha, cheio de teia de aranha, numa terra tão estranha, que vai ver que o tal do LOBO nem existia. Mesmo assim a Chapeuzinho tinha cada vez mais medo do medo do medo do medo de um dia encontrar um LOBO. Um LOBO que não existia. E Chapeuzinho amarelo, de tanto pensar no LOBO, de tanto sonhar com o LOBO, de tanto esperar o LOBO, um dia topou com ele que era assim: carão de LOBO, olhão de LOBO, jeitão de LOBO, e principalmente um bocão tão grande que era capaz de comer duas avós, um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz… e um chapéu de sobremesa. Mas o engraçado é que, assim que encontrou o LOBO, a Chapeuzinho Amarelo foi perdendo aquele medo: o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO. Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo. Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo. O lobo ficou chateado de ver aquela menina olhando pra cara dele, só que sem o medo dele. Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco- azedo, porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo. É feito um lobo sem pelo. Um lobo pelado. O lobo ficou chateado. Ele gritou: sou um LOBO! Mas a Chapeuzinho, nada. E ele gritou: EU SOU UM LOBO!!! E a Chapeuzinho deu risada. E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!!!!!!!! Chapeuzinho, já meio enjoada, com vontade de brincar de outra coisa. Ele então gritou bem forte aquele seu nome de LOBO umas vinte e cinco vezes, que era pro medo ir voltando e a menininha saber com quem não estava falando: LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO Aí, Chapeuzinho encheu e disse: "Pára assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!" E o lobo parado assim, do jeito que o lobo estava, já não era mais um LO-BO. Era um BO-LO. Um bolo de lobo fofo, tremendo que nem pudim, com medo de Chapeuzim. Com medo de ser comido, com vela e tudo, inteirim. Chapeuzinho não comeu aquele bolo de lobo, porque sempre preferiu de chocolate. Aliás, ela agora come de tudo, menos sola de sapato. Não tem mais medo de chuva, nem foge de carrapato. Cai, levanta, se machuca, vai à praia, entra no mato, Trepa em árvore, rouba fruta, depois joga amarelinha, com o primo da vizinha, com a filha do jornaleiro, com a sobrinha da madrinha e o neto do sapateiro. Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira. E transforma em companheiro cada medo que ela tinha: O raio virou orrái; barata é tabará; a bruxa virou xabru; e o diabo é bodiá. FIM ( Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo: o Gãodra, a Jacoru, o Barãotu, o Pão Bichôpa… e todos os tronsmons).

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CHAPEUZINHO AMARELO Chico Buarque

Era a Chapeuzinho Amarelo. Amarelada de medo. Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho. Já não ria. Em festa, não aparecia. Não subia escada, nem descia. Não estava resfriada, mas tossia. Ouvia conto de fada, e estremecia. Não brincava mais de nada, nem de amarelinha. Tinha medo de trovão. Minhoca, pra ela, era cobra. E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra. Não ia pra fora pra não se sujar. Não tomava sopa pra não ensopar. Não tomava banho pra não descolar. Não falava nada pra não engasgar. Não ficava em pé com medo de cair. Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo. Era a Chapeuzinho Amarelo… E de todos os medos que tinha O medo mais que medonho era o medo do tal do LOBO. Um LOBO que nunca se via, que morava lá pra longe, do outro lado da montanha, num buraco da Alemanha, cheio de teia de aranha, numa terra tão estranha, que vai ver que o tal do LOBO nem existia. Mesmo assim a Chapeuzinho tinha cada vez mais medo do medo do medo do medo de um dia encontrar um LOBO. Um LOBO que não existia. E Chapeuzinho amarelo, de tanto pensar no LOBO, de tanto sonhar com o LOBO, de tanto esperar o LOBO, um dia topou com ele que era assim: carão de LOBO, olhão de LOBO, jeitão de LOBO, e principalmente um bocão tão grande que era capaz de comer duas avós, um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz… e um chapéu de sobremesa.

Mas o engraçado é que, assim que encontrou o LOBO, a Chapeuzinho Amarelo foi perdendo aquele medo: o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO. Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo. Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo. O lobo ficou chateado de ver aquela menina olhando pra cara dele, só que sem o medo dele. Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco-azedo, porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo. É feito um lobo sem pelo. Um lobo pelado. O lobo ficou chateado. Ele gritou: sou um LOBO! Mas a Chapeuzinho, nada. E ele gritou: EU SOU UM LOBO!!! E a Chapeuzinho deu risada. E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!!!!!!!! Chapeuzinho, já meio enjoada, com vontade de brincar de outra coisa. Ele então gritou bem forte aquele seu nome de LOBO umas vinte e cinco vezes, que era pro medo ir voltando e a menininha saber com quem não estava falando: LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO Aí, Chapeuzinho encheu e disse: "Pára assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!" E o lobo parado assim, do jeito que o lobo estava, já não era mais um LO-BO. Era um BO-LO. Um bolo de lobo fofo, tremendo que nem pudim, com medo de Chapeuzim. Com medo de ser comido, com vela e tudo, inteirim. Chapeuzinho não comeu aquele bolo de lobo, porque sempre preferiu de chocolate. Aliás, ela agora come de tudo, menos sola de sapato. Não tem mais medo de chuva, nem foge de carrapato. Cai, levanta, se machuca, vai à praia, entra no mato, Trepa em árvore, rouba fruta, depois joga amarelinha, com o primo da vizinha, com a filha do jornaleiro, com a sobrinha da madrinha e o neto do sapateiro. Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira. E transforma em companheiro cada medo que ela tinha: O raio virou orrái; barata é tabará; a bruxa virou xabru; e o diabo é bodiá. FIM ( Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo: o Gãodra, a Jacoru, o Barãotu, o Pão Bichôpa… e todos os tronsmons).

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Chapeuzinho Vermelho, versão midiática Jorge Luiz Verissimo (*)

Há alguns dias parei para pensar como a mídia descreveria, se fosse chamada para tal, a história de Chapeuzinho Vermelho. Neste sonho, tentei antever como o quarto poder descreveria esta pequena história infantil, contada hoje nos noticiários, e saiu algo mais ou menos assim:

Abrindo chamada para o JN da Grobal teríamos o Bonnder: "Vejam daqui a pouco no JN a descrição de uma quase tragédia ocasionada pelo abandono infantil a trabalhos forçados." A Bando Newes Fora o Cabroni mandaria: "Falta de policiamento na floresta quase leva à morte criança explorada pela mãe."

Mas esperem, tem ainda o SoBraTv com o Kausboy: "Violento animal desprotegido pelo Ibama tentava sobreviver quando foi abatido." Não estamos nem falando nas antigas manchetes dos jornais ou parodiando-os: "Parente de cão danado faz mal a moça."

Mas vamos voltar e ver como seria a reportagem hipotética de cada um dos arautos do quarto poder. Na Grobal, o Bonnder começaria a reportagem assim: "Senhores, temos que nos indignar com o acontecido hoje na floresta. Uma menina, Chapeuzinho Vermelho, permaneceu durante cerca de duas horas na barriga de um feroz lobo em virtude da irresponsabilidade de sua mãe, que a usava como ‘avião’ para entregar pesadas cestas de sua indústria caseira de alimentos na casa da própria avó! A inocente criança foi seguida por lobo atravessador de alimentos faminto, e, como estava sem escolta adequada, acabou sendo alcançada já no seu destino final, só sendo salva por transeunte, que acionou a Defesa Civil do local (composta por um caçador da região), o qual mesmo chegando atrasado ao evento conseguiu pôr ponto final na tragédia, matando o meliante! A direção da emissora, em editorial, solicita averiguações para saber das condições de trabalho infantil naquela floresta, e que se faça uma pormenorizada apuração dos fatos para que a Vigilância Sanitária e a Receita acabem com o tráfico de comida.”

Na Bando Newes Fora, Cabroni, sempre olhando de frente para as câmeras, daria dramaticidade ao acontecido: "Você que está vendo esta notícia vai tremer de raiva com o descaso das autoridades com o policiamento da floresta. Uma menina, Chapeuzinho Vermelho, foi engolida por um perigoso Lobo Mau, só sendo salva, com muito atraso, pelo responsável da Defesa Civil do local, que totalmente sem equipamentos adequados matou o meliante com uma garrucha velha e resgatou a menina da barriga do lobo homicida com a ponta de um facão! Até quando as nossas autoridades deixarão pobres habitantes da florestas à mercê de feras tão perigosas? Devemos ressaltar que omitimos o fato de que uma senhora inválida e acamada, a avó da menina, foi também engolida e salva por este bravo integrante de um órgão não competente para o assunto!"

Na SoBraTv, o Kausboy atacaria assim: "Em mais um desleixo de um órgão governamental, um espécime raro e em extinção de Lobo Mau acabou sendo abatido para que fosse salva uma menina e sua avó, que naquele instante eram o meio de subsistência de tão infausta criatura. Claro está que se fosse servida a ração do pobre animal ele não se dedicaria à prática de caçar meninas com cestas de alimentos ou suas avozinhas indefesas. Creio que esta história poderá ter repercussão junto às ONGs de defesa do meio ambiente e poderemos ter problemas para financiamento do replantio da Caatinga! Isto tem de acabar!"

Vingança sangrenta Claro que no dia seguinte as manchetes dos diários nas bancas seria muito diversas: "Tragédia na Floresta" – O EXTRAordinário "Faminto papou menina e foi assassinado" – O DIÁrio "Salva por um triz" – The Globe "Menina e avó saíram ilesas" – Jornal do país Durante toda a manhã do dia seguinte as rádios ocuparam seus talk-shows com o assunto, e a

grande surpresa foi a votação maciça de pessoas com pena do Lobo Mau, pois foi abatido quando lutava pela sobrevivência.

De concreto mesmo foram as atitudes dos organismos, oficiais ou não: "O chefe de polícia, em entrevista coletiva, desmentiu a falta de policiamento na floresta e atribuiu o

estardalhaço ao ano eleitoral." "A sociedade protetora dos animais e o WWF expediram irado comunicado dizendo que levariam o assassino da fera em extinção ao Tribunal de Haia." "A Vigilância Sanitária, para provar sua agilidade, interditou a cozinha da mãe do Chapeuzinho." "A Receita determinou pesada multa à mãe da menina e autuou a avó por receptação." "O fiscal do Ibama da região foi demitido." "A Associação contra o Trabalho Infantil realizou passeata de protesto em frente à residência de Chapeuzinho, terminando na entrada da toca do Lobo Mau, onde tudo acabou em tumulto com integrantes da ONG Em defesa do Último Lobo Mau!"

Cerca de um mês depois, tudo voltou à calma na floresta: não havia mais manifestantes ou repórteres, Chapeuzinho voltou a entregar a cestinha à avó, após político da região ter intercedido na fiscalização.

Em tempo: os filhotes do Lobo Mau já cresceram e breve teremos Chapeuzinho Vermelho II – A Vingança Sangrenta!

(*) Empresário - Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br em 24/7/2002

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Escrito por um aluno do Ensino Médio:

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Canção do exílio

Gonçalves Dias (Coimbra, 1843) Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida Nossa vida mais amores. Em cismar sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá, Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Hino Nacional Música de Francisco Manuel da Silva (1822) Letra de Joaquim Osório Duque Estrada (1909, modificada em 1916) Do que a terra mais garrida Teus risonhos, lindos campos têm mais flores; “Nossos bosques têm mais vida” “Nossa vida”, no teu seio, “mais amores”. Canção do exílio facilitada José Paulo Paes lá? ah! sabiá... papá... maná... sofá... sinhá... cá? bah!

UMA CANÇÃO (Mario Quintana) Minha terra não tem palmeiras... E em vez de um mero sabiá, Cantam aves invisíveis Nas palmeiras que não há. Minha terra tem relógios, Cada qual com sua hora Nos mais diversos instantes... Mas onde o instante de agora? Mas onde a palavra "onde"? Terra ingrata, ingrato filho, Sob os céus da minha terra Eu canto a Canção do Exílio!

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Monte Castelo

Legião Urbana

Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. É só o amor, é só o amor. Que conhece o que é verdade. O amor é bom, não quer o mal. Não sente inveja ou se envaidece. O amor é o fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente. É um contentamento descontente. É dor que desatina sem doer. Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. É um não querer mais que bem querer. É solitário andar por entre a gente. É um não contentar-se de contente. É cuidar que se ganha em se perder. É um estar-se preso por vontade. É servir a quem vence, o vencedor; É um ter com quem nos mata a lealdade. Tão contrario a si é o mesmo amor. Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem. Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face. É só o amor, é só o amor. Que conhece o que é verdade. Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Camões

Primeira Carta do Apóstolo Paulo aos Coríntios, capítulo 13, versículos 1 a 13 Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que retine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes,k e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disse me aproveitaria. O amor é paciente, o amor é bondoso. Não tem inveja. O amor não é orgulhoso, não é arrogante. Nem escandaloso. Não busca seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade; Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência findará. A nossa ciência é parcial, a nossa profecia é imperfeita. Mas, quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. Quando eu era criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte, mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor.

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AMOR DE CONTABILISTA EM CARTA COMERCIAL

Prezada senhorita: Tenho a honra de comunicar a V. S. que resolvi, de acordo com o que foi conversado com seu ilustre progenitor, o tabelião juramentado Francisco Guedes, estabelecido à Rua da Praia, número 632, dar por encerrados nossos entendimentos de noivado. Como passei a ser o contabilista-chefe dos Armazéns Penalva, conceituada firma desta praça, não me restará, em face dos novos e pesados encargos, tempo útil para os deveres conjugais. Outrossim, participo que vou continuar trabalhando no varejo da mancebia, como vinha fazendo desde que me formei em contabilidade em 17 de maio de 1932, em solenidade presidida pelo Exmo Sr. Presidente do Estado e outras autoridades civis e militares, bem assim como representantes da Associação dos Varejistas e da Sociedade Cultural e Recreativa José de Alencar. Sem mais, creia-me de V. S. patrício e admirador, Sabugosa de Castro

(José Cândido de Carvalho)

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A palavra e a publicidade Eduardo Galeano

Hoje em dia, a publicidade tem a seu cargo o dicionário da linguagem universal. Se ela, a publicidade, fosse Pinóquio, seu nariz daria várias voltas ao mundo. “Busque a verdade”: a verdade está na cerveja Heineken. “Você deve apreciar a autenticidade em todas suas formas”: a autenticidade fumega nos cigarros Winston. Os tênis Converse são solidários e a nova câmara fotográfica da Canon se chama Rebelde: “Para que você mostre do que é capaz”. No novo universo da computação, a empresa Oracle proclama a revolução: “A revolução está em nosso destino”. A Microsoft convida ao heroísmo: “Podemos ser heróis”. A Apple propõe a liberdade: “Pense diferente”. Comendo hambúrgueres Burger King, você pode manifestar seu inconformismo: “Às vezes é preciso rasgar as regras”. Contra a inibição, Kodak, que “fotografa sem limites”. A resposta está nos cartões de crédito Diner's: “A resposta correta em qualquer idioma”. Os cartões Visa afirmam a personalidade: “Eu posso”. Os automóveis Rover permitem que “você expresse sua potência”, e a empresa Ford gostaria que “a vida estivesse tão bem feita” quanto seu último modelo. Não há melhor amiga da natureza do que a empresa petrolífera Shell: “Nossa prioridade é a proteção do meio ambiente”. Os perfumes Givenchy dão eternidade; os perfumes dão eternidade; os perfumes Dior, evasão; os lenços Hermès, sonhos e lendas. Que não sabe que a chispa da vida se acende para quem bebe Coca-Cola? Se você quer saber, fotocópias Xerox, “para compartilhar o conhecimento”. Contra a dúvida, os desodorantes Gillette: “Para você se sentir seguro de si mesmo”. Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16080

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O POVO

Não posso deixar de concordar com tudo o que dizem do povo. É uma posição impopular, eu sei, mas o que fazer? É a hora da verdade. O povo que me perdoe, mas ele merece tudo que se tem dito dele. E muito mais.

As opiniões recentemente emitidas sobre o povo até foram tolerantes. Disseram, por exemplo, que o povo se comporta mal em grenais. Disseram que o povo é corrupto. Por um natural escrúpulo, não quiseram ir mais longe. Pois eu não tenho escrúpulo. O povo se comporta mal em toda parte, não apenas no futebol. O povo tem péssimas maneiras. O povo se veste mal. Não raro, cheira mal também. O povo faz xixi e cocô em escala industrial. Se não houvesse povo, não teríamos problema ecológico. O povo não sabe comer. O povo tem um gosto deplorável. O povo é insensível. O povo é vulgar. A chamada explosão demográfica é culpa exclusivamente do povo. O povo se reproduz numa proporção verdadeiramente suicida. O povo é promíscuo e sem-vergonha. A superpopulação nos grandes centros se deve ao povo. As lamentáveis favelas que tanto prejudicam nossa paisagem urbana foram inventadas pelo povo, que as mantém contra os preceitos de higiene e estatística. Responda, sem meias palavras: haveria os problemas de trânsito se não fosse pelo povo? O povo é um estorvo. É notória a incapacidade política do povo. O povo não sabe votar. Quando vota, invariavelmente vota em candidatos populares que, justamente por agradarem ao povo não podem ser boa coisa. O povo é pouco saudável. Há, sabidamente, 95 por cento mais cáries dentárias entre o povo. O índice de morte por má nutrição entre o povo é assustador. O povo não se cuida. Estão sempre sendo atropelados. O povo é ladrão. O povo é viciado. O povo é doido. O povo é imprevisível. O povo é um perigo. O povo não tem a mínima cultura. Muitos nem sabem ler ou escrever. O povo não viaja, não se interessa por boa música ou literatura, não vai a museus. O povo não gosta de trabalho criativo, prefere empregos ignóbeis e aviltantes. Isso quando trabalha, pois há os que sofrem o ócio contemplativo, embaixo das pontes. Se não fosse o povo nossa economia funcionaria como uma máquina. Todo mundo seria mais feliz sem o povo. O povo é deprimente. O povo deveria ser eliminado.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. O popular. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 1984.

IRONIA FINA

Ironia é como onda de rádio, se não encontrar um receptor adequado, se perde. Não adianta você escrever com ironia se não é lido com ironia, e o desencontro pode ser perigoso. Uma vez escrevi que a solução para o Brasil era eliminar o povo, único responsável pelos nossos maus índices sociais. Sem o povo e sua miséria seríamos um dos países mais adiantados do mundo. Recebi uma carta de um leitor que entendia que eu estava brincando quando falava em “eliminar” o povo, o que seria uma impossibilidade, mas me cumprimentando pela coragem: finalmente alguém apontava o dedo para os verdadeiros culpados pela nossa situação. Outra vez escrevi que o Movimento dos Sem-Terra tinha cometido o pior crime que um movimento de reivindicação social poderia cometer, que era se organizar e agir, e não faltaram leitores me chamando de insensível e reacionário. Estes pelo menos são desentendimentos sinceros, devidos à falta de discernimento ou senso de humor. Também há os que lêem o que querem, não o que você escreveu, ou lhe atribuem posições que você não tem, mas aí já passamos para falta de outra coisa. Muitas vezes a culpa pelo mal-entendido é de quem escreve, e tem a mínima obrigação profissional de ser claro. Mas uma mínima, também, colaboração do leitor é indispensável. Talvez a solução seja fazer como naquele filme americano, uma comédia cujo título eu não vou me lembrar, em que de repente um dos atores interrompe a ação e começa a recitar um texto filosófico e inspirador enquanto na tela aparece, em flashes, a palavra “mensagem, mensagem”. Algumas publicações ainda encabeçam seções de cartuns ou textos com a palavra “humor”, que é para o leitor não ter dúvidas. No fundo, a culpa é destes tempos confusos em que é difícil saber o que é gozação e o que não é, e que mensagem esperam que a gente entenda. Quem nos assegura que esse último decreto do governo, mais um passo no nosso amargo regresso às relações capital/trabalho do século 19, não seja uma peça de fina ironia com a nossa cara? Ou então levaram a minha sugestão a sério e decidiram-se pela eliminação do povo, só que agora sem gradualismo.

Luis Fernando Veríssimo. (ZH, 16/11/2001) __________________________________________________________________________________________________________

GOVERNO FEDERAL LANÇA PROPOSTAS PARA ENFRAQUECER GREVISTAS (Zero Hora, 13/11/2001)

O governo federal publica nesta quarta-feira, dia 14, medida provisória que autoriza os ministérios a contratar trabalhadores temporários para substituir os servidores em greve e suprir serviços básicos. A MP entrará em vigor no mesmo dia e valerá para todas as áreas, inclusive as universidades federais e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), parados desde agosto. Os contratos temporários terão duração mínima de tr~es meses. Também vão ser enviados ao Congresso, esta semana, dois projetos que regulamentam a greve do serviço público. Um deles estabelece que a paralisação pode ser considerada ilegal e, com isso, os dias não trabalhados podem ser descontados. A outra proposta determina que pode ser feito um único processo administrativo a todos os grevistas para que possam ser demitidos se a paralisação for superior a 30 dias.

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