Charges Vargas
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Charges: o riso como contestação na imprensa1
Alba Lívia Tallon BOZI2
(Mestranda em Comunicação,
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro)
Resumo
Ao longo da história da humanidade, o riso sempre esteve presente, porém desempenhando
papéis diferentes. Se na Antigüidade era utilizado para fazer suportar os revezes dos rituais
religiosos e oficiais, na Idade Média, incorporou-se à cultura popular, provocando a sublime magia
da liberdade. Na modernidade, o riso tornou-se zombeteiro, irônico, sarcástico, um riso de protesto,
de contestação do poder.
Na contemporaneidade, o riso dominou espaços públicos e se faz presente na imprensa,
sobretudo nas charges. Os ironistas dos jornais fazem provocações, dão voz a quem não tem, e
garantem algum espaço de liberdade de expressão, mesmo regimes de censura e repressão, como
aconteceu no Brasil durante os anos de ditadura.
Naquele período, quando valores como a liberdade foram duramente suprimidos, as charges
atuaram como agente político, e foram usadas rotineiramente para expressar a insatisfação contra o
regime totalitário.
Nosso trabalho pretende, então, analisar a presença do riso na imprensa, por meio das charges,
refletindo sobre sua importância e o papel que desempenha como agente de resistência, sobretudo
quando a censura se estabelece.
Palavras-chave: Imprensa. Charge. Riso. Contestação. Liberdade de imprensa.
1 Trabalho apresentado ao GT 04 – História da Mídia Impressa, no IV Encontro Nacional de História da Mídia, realizado em São Luís/MA, de 30 de maio a 2 de junho de 2006.2 Endereço digital: [email protected]
Bufões, monstros, palhaços, heróis e divindades tiveram papel importante ao longo da história
da humanidade. Foram grandes responsáveis pela provocação do riso e marcaram de maneira
fundamental a sua consolidação, há muito, na cultura popular. Suas origens não são claras, mas
claro é o fato de o riso ser elemento de grande destaque como oposição a culturas oficiais, como
válvula de escape ao estresse de rígidos rituais religiosos, entre outras funções.
Mikhail Bakhtin, em seus estudos sobre a cultura popular, destaca o papel ocupado pela
comédia durante a Idade Média e o Renascimento. Os festejos, marcas de alegria, tiveram lugar de
destaque na vida do homem medieval.
Contrapondo-se às festividades praticadas na Antigüidade, as festas populares medievais
tinham como principal característica a liberação, era uma nova visão de mundo. Aquela população,
marcada por cultos e ritos oficiais, podia, durante suas festas, deixar de lado toda a formalidade a
que estava diariamente submetida. O carnaval propiciava uma segunda vida:
Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica [...] ofereciam uma visão do
mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial,
exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo
mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou
menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas.(BAKHTIN: 1993, pp. 4-
5)
Numa sociedade estratificada, com papéis e posições tão claramente estabelecidos, a
hierarquia, o poder e a ordem são recorrentes. Antes, sem tal estrutura, os elementos cômicos,
presentes em rituais sérios, eram considerados tão divinos quanto a celebração a que serviam. Com
o surgimento de uma nova organização social, aqueles elementos foram reapropriados para dar
conta de suprir as dificuldades do povo com o novo modelo. “... as formas cômicas [...] adquirem
um caráter não-oficial, seu sentido modifica-se, elas complicam-se e aprofundam-se, para
transformarem-se finalmente nas formas fundamentais de expressão da sensação popular no mundo,
da cultura popular” (BAKHTIN: 1993, p. 5).
A separação em classes cria lados temporariamente opostos. Em situações momentâneas,
desempenham-se papéis contrários. Mas em cada momento, há, sim, uma ordem estabelecida,
ditada não apenas por questões econômicas, como também culturais, morais e intelectuais. A
hegemonia, para Antonio Gramsci (HALL: 2003, pp. 311-312), é multidimensional e localizada
temporalmente, sem dominado ou dominante que existam automaticamente. Tem uma direção,
exige algum consentimento para seu exercício e, mais importante, é instável, circular, modificável.
A principal característica dessa festividade que nasceu do povo é a magia da segunda vida.
Nela, os papéis desaparecem, as formalidades caem, as distâncias diminuem, o proibido é
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permitido, o escondido é assumido, o sonho é realizado. A estratificação paira, as classes não se
separam, não há dominante ou dominado.
No carnaval, festa que se consolidou na Idade Média, diferente de outros festejos e
celebrações, quando geralmente existe uma platéia assistindo a quem conduz a cerimônia, não
existe platéia nem palco. O carnaval não é assistido. É vivido. Durante o acontecimento, abandona-
se a primeira vida, aquela do cotidiano, e vive-se intensa e unicamente a segunda vida.
Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria
natureza existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a
do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial.
Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com suas leis, isto é, as leis da
liberdade. (BAKHTIN: 1993, p. 6)
No carnaval, os valores se invertem, a ordem se subverte, a zombaria domina, efetivando a
circularidade. As relações de poder ficam suspensas durante a festa. E tudo isso não se dá numa
representação. É realmente vivido, transformado em realidade.
Com esse movimento, essa liberação, essa festa especial que permitia a circularidade, a
inversão, a subversão, permitiu-se também a criação de novos elementos de linguagem, uma
linguagem especialmente carnavalesca. É a criação de um mundo paralelo, um novo mundo, onde
as coisas acontecem fantasticamente.
[...] essa eliminação provisória, ao mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas entre
os indivíduos, criava na praça pública um tipo particular de comunicação, inconcebível em
situações normais. Elaboravam-se formas especiais do vocabulário e do gesto da praça pública,
francas e sem restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação,
liberados das normas correntes da etiqueta e da decência. (BAKHTIN: 1993, p. 9)
O riso da Idade Média libertava. Como define Bakhtin (1993, p. 10), o riso carnavalesco é um
riso festivo, geral, que toma conta de tudo, espalha-se.
O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (esse caráter popular, como
dissemos, é inerente à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é ‘geral’; em segundo
lugar, é universal, atinge todas as coisas e pessoas [...]; por último, esse riso é ambivalente:
alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma,
amortalha e ressuscita simultaneamente.
Bakhtin tratou o riso na Idade Média e no Renascimento e mostrou a importante participação
que ele teve na formação da cultura popular.
Na contemporaneidade, como estratégia de fuga, alternativa ao sofrimento causado pelas
guerras, catástrofes ou solidão, o riso vem se tornando obrigatório. Na atualidade, o riso existe no
rito diário da busca pela sobrevivência. Ri-se da fome, da miséria, da morte, do sucesso, do sagrado.
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O riso do século XX é humanista. É um riso de humor, de compaixão e, ao mesmo tempo, ‘de
desforra’, diante dos reveses acumulados pela humanidade ao longo do século e das batalhas
perdidas contra a idiotia, contra a maldade e contra o destino. (MINOIS: p. 558)
Georges Minois (p. 553) classifica o século XX como a era da “derrisão universal”. O riso
zombeteiro tomou conta do mundo nos últimos tempos. As razões, várias. E o que chama mais
atenção é que o mundo riu apesar das grandes catástrofes. Ou, exatamente, riu das grandes
catástrofes.
Foi, ainda, a maneira de suspender os valores, superar as barreiras, e deixar a vida seguir.
Exatamente na passagem para a contemporaneidade, quando a crise da identidade é geral, quando as
dúvidas sobre o indivíduo e sobre o mundo se enraízam, nada parece melhor que o riso, a festa, o
carnaval. Melhor viver em festa. Melhor que o carnaval seja uma constante e que o riso tome conta.
“O riso é uma desforra sobre aquilo que acabrunha e fere o espírito” (DUVIGNAUD , p. 585).
O riso é a arma encontrada para questionar, para contrariar, para escapar às decepções, ao
desencantamento, como a personagem Paulo Rigger, criada por Jorge Amado (1930, p. 20),
insatisfeita, dedicada a contrariar, de olhar triste e cansado, descrente da felicidade, porém
portadora de um riso de escárnio.
O riso moderno, diferentemente da Idade Média, passou a ser um instrumento de resistência,
que demonstra a luta contra o poder, um protesto, uma atitude de não conformação, e não mais a
sublimação da rotina, a suspensão da realidade vivida, o momento da circularidade, da
ambivalência, da coexistência. Criamos uma “sociedade humorística” (LIPOVETSKI, p. 594).
A sociedade humorística trouxe um novo estilo para a sociedade. O humor prevalece, domina.
O humor descontraído, descompromissado. “O cômico, longe de ser a festa do povo ou do espírito,
tornou-se um imperativo social generalizado, uma atmosfera cool, um meio ambiente permanente
que o indivíduo suporta até em sua vida cotidiana.” (MINOIS, p. 620)
Censura e repressão
Com essa nova linguagem, criada pelo riso, nossa sociedade explorou, e bastante, o humor
como elemento de resistência.
Os impérios, o Estado, a Igreja sempre se utilizaram da força para evitar opiniões contrárias.
Pensar diferente do poder vigente foi considerado crime em diversos momentos da história. O
castigo, a culpa, a tortura, o isolamento foram mecanismos largamente utilizados para controlar os
pensamentos.
Na Grécia, Pitágoras teve seus escritos destruídos porque foi acusado de duvidar da existência
de Deus. Em Roma, os autores de sátiras políticas eram condenados à morte (NOVINSKY: 2003, p.
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26). Embora os exemplos citados refiram-se à Antigüidade, ainda hoje, a repressão aos escritos
persiste, com grande destaque para o século XX.
No início da modernidade, o aumento e a disseminação das heresias tornaram-se um grande
problema para o Estado. Ele precisava padronizar os pensamentos para se fortalecer. Assim ergue-
se um Estado totalitário. Precisa centralizar o poder, uniformizar a ideologia e tentar instaurar as
verdades oficiais, verdades que não admitem pluralidade de pensamento, que não aceitam qualquer
coisa que fuja ao previsível. Por isso, reprime fortemente as manifestações contrárias, na tentativa
de minar qualquer dissidência.
Sempre, porém, apesar da repressão e talvez proporcionalmente a ela, os focos de resistência
continuaram. Idéias oposicionistas circulavam de diversas maneiras.
Com o advento da imprensa, tais focos se ampliaram. Ela trouxe a facilidade de reprodução
dos pensamentos. Por meio das cópias, permitiu a proliferação mais veloz das idéias contrárias aos
regimes vigentes. A ameaça à ordem estava sempre muito próxima e era preciso combatê-la.
Com isso, as reações dos dominantes também se ampliaram. Iniciou-se uma grande
preocupação com a censura prévia. A Inquisição foi um momento de forte e cruel perseguição.
Livros foram apreendidos e queimados, e seus autores e leitores, condenados.
Muitas vezes, o anonimato era a opção para quem queria tornar público seu modo de pensar.
Tal prática foi adotada por muitos filósofos do século XVII para fazer circular seus textos e estudos.
No entanto, as medidas repressoras não foram exclusividade do passado conservador. O
século XX, já bastante próximo de nós e provavelmente o período sobre o qual temos mais
informações, foi duramente repressor. O nazismo de Adolf Hitler queimou milhares de livros
científicos e literários para “proteger a nação”. Outras tantas obras judaicas foram proibidas,
incluindo autores como Sigmund Freud e Franz Kafka (NOVINSKY: 2003, p. 32). Isso sem falar
no extermínio massivo empreendido pelos regimes totalitários, sobretudo durante as duas guerras
mundiais e nas demais guerras localizadas registradas durante todo o século passado e ainda neste
século.
A opção aos que escaparam a essa violência foi se integrar pela arte e pelos escritos. Ciente da
importância da liberdade de expressão, o mundo a defendeu na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que em seu artigo 19 determina: “Cada indivíduo tem o direito à liberdade de opinião e
de expressão, o direito à liberdade de ter opiniões sem interferência e procurar receber informações
de qualquer mídia e qualquer fronteira” (NOVINSKY: 2003, p. 34). No entanto, mesmo declarado,
tal direito é constantemente desrespeitado e, mais grave, muitas vezes é usurpado violentamente.
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Cenário brasileiro
Historicamente, a censura no Brasil pode ser atribuída a três aspectos, como classifica a
historiadora Ana Luiza Martins (2003, p. 156). O primeiro deles refere-se ao processo de
colonização, que desde seu início foi marcado pela opressão e pela repressão violenta. Um segundo
momento está ligado à nossa cultura impressa, que aqui chegou com largo atraso e que desde o
começo nos acostumou ao caráter restritivo imposto às letras e ao pensamento. O terceiro,
decorrente do segundo, que deu à nossa relação com as letras um aspecto ornamental, reforçado
pela erudição que separa claramente os analfabetos das classes abastadas.
“É importante que se diga que essa ingerência não foi só da censura política, desde sempre
muito forte, mas decorreu também da censura moral, de usos e costumes e de uma outra, mais
forte ainda, posto que subliminar, imposta pelo curso da economia capitalista: a censura
proveniente do mercado, o crivo determinado pelos interesses sobre idéias e produtos, que,
independente de seus conteúdos perniciosos e tendenciosos, são postos em circulação e
divulgados porque rendem, geram lucros pecuniários e garantem o consumo.” (MARTINS:
2003, p. 156)
Nas origens do problema no Brasil, então, está a nossa formação colonial, liderada por um
Estado absolutista forte e por uma Igreja poderosa, ambos repressores e preocupados com os
interesses de classe.
Os dois poderes atuaram conjunta e violentamente na repressão de pensamentos, sobretudo
em relação àqueles expressos nos meios impressos, objeto de nosso trabalho.
Durante todo o tempo, a censura aos livros e panfletos foi grande, visando evitar que idéias
heréticas chegassem aqui. Assim, qualquer manifestação impressa era vista com temor e
desconfiança. Mas, como em outros lugares, à medida que a censura crescia, aumentava também o
número de dissidentes.
Resultado da forte censura, mesmo quando ela não era oficializada, o primeiro jornal
brasileiro, o Correio Braziliense, foi criado fora do País, em Londres, em 1808. No entanto, na
análise de José Eduardo de Mello (2002: p. 162), não foram apenas a censura e a falta de vontade
política as razões para a chegada tardia da imprensa ao Brasil. Conta também o caráter mercantil
capitalista da atividade, inviável no país analfabeto e escravocrata, sem consumidores.
Mas, mesmo tardiamente, a imprensa chegou, provocando o Estado e a Igreja,
desestabilizando os ideais políticos de uniformidade de pensamento. Assim, em 1827, foi lançado
em São Paulo o primeiro jornal impresso, O Farol Paulistano. A partir desse momento, começaram
também os processos judiciais contra os impressos e as constantes tentativas de calá-los
(MARTINS: 2002, pp. 170-171).
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Figura 1
Figura 2
Depois desse, vários outros periódicos foram lançados, alguns com vida longa. Em diversos
deles, a principal característica era seu caráter revolucionário, seu discurso de protesto. Como forma
de contestação, deboche e achincalhe, desafiando o poder, recorria-se também ao humor, expresso,
sobretudo, nas charges de caráter político.
Assim aconteceu com semanário O Cabrião,
crítico e humorístico, criado em 1866, em São Paulo.
Na sua sexta edição, foi publicada uma charge que
trazia a legenda “O cemitério da Consolação em Dia de
Finados” (figura 1), e mostrava uma grande festa entre
mortos e vivos alcoolizados, dançando e bebendo
juntos (MARTINS: 2002, p. 171). A ilustração tocava
num espaço sagrado e ainda debochava do governo, que havia acabado de reinaugurar o local.
Como resultado, levou um processo.
Pouco mais de um mês depois de proclamada a República, em 1889, o Governo Provisório
baixou o primeiro decreto de censura no Brasil, em 23 de dezembro. Legitimada, a censura avançou
violentamente sobre diversos periódicos e formadores de opinião, o que resultou no fechamento de
redações e diversas prisões e mortes de jornalistas. Mesmo quando oficialmente a liberdade de
imprensa havia sido restaurada, um ano depois, a repressão aos contestadores do regime continuou.
Durante a “política café com leite”, porém, a repressão diminuiu porque o Governo descobriu
nela uma fonte de propaganda (MARTINS: 2002, p. 177). Mas assim que uma publicação colocou
em risco aquela aliança política, rapidamente a tentativa de censura voltou, sendo proposta a Lei da
Imprensa.
Desse modo, sob o protesto dos jornalistas e depois de
algumas mudanças sobre a versão original, foi sancionado o
Decreto nº 4.743, em 1923, de autoria do senador Adolfo
Gordo, nome que popularizou a lei que, novamente, cerceou o
pensamento e a palavra. A resistência prosseguiu e,
imediatamente à sanção da lei, a revista Careta (MARTINS:
2002, p. 179) publicou a charge intitulada “Lei Adolfo
Gordo” (figura 2).
Os anos do Estado Novo, de 1937 a 1945, talvez
tenham sido os mais duros em termos de censura, quando o governo percebeu o amplo alcance dos
meios de comunicação de massa e aperfeiçoou os órgãos de controle e repressão, interferindo
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Figura 3
Sejamos otimistas
- Si tu continuá a espalhá boato
alarmante, tu vae p’ro distrito.
- Tá certo, tá certo. Eu vou dizê antão
que vão diminuí os impostos.
fortemente no conteúdo divulgado, sobretudo na imprensa (GARCIA: 2004, p. 2). Nessa época,
60% do conteúdo dos impressos eram fornecidos pela Agência Nacional.
O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) fixava assuntos proibidos para evitar
críticas, como menções a problemas econômicos, catástrofes naturais, conflitos sociais e políticos,
além da corrupção, por exemplo (GARCIA: 2004, p. 2).
Mas a repressão à imprensa não ficou no aspecto geral. Ela especificou também o humor,
“reconhecendo o caráter pedagógico dessas imagens, bem como suas potencialidades para
veicularem posicionamentos críticos” (GARCIA: 2004, p. 3).
Mesmo com tamanha dureza, esse projeto de dominação, controle e modelação encontrou
resistência, que recorreu à irreverência e à criatividade para driblar o cerceamento. Um dos
exemplos é a revista Careta, lançada em 1908 e com circulação até 1960, que adotava um tom
humorístico crítico em todo seu projeto editorial.
A revista conseguia burlar a censura por meio das charges, estampadas, muitas vezes, ao lado
de matérias oficiais. As propostas críticas da publicação “conseguiam alcançar o público leitor por
meio da exploração de um riso diferente – o riso tenso, angustiante e facilmente reconhecido por
todos”, define Sheila Garcia (2004, p. 5).
A própria repressão do regime foi ilustrada, e passou,
disfarçada entre outras ilustrações, no canto esquerdo
inferior numa página da edição de 8 de janeiro de 1938
(Figura 3) (GARCIA: 2004, pp. 5-6).
Durante os anos do Estado Novo, a censura sobre a
revista foi se intensificando, sendo claramente percebida
pela redução das charges sobre Getúlio Vargas. Em 1937,
21 capas, de um total de 52, tinham o presidente como tema
central. No ano seguinte, o número cai para 5 capas, e
Getúlio Vargas só volta a ser capa em 1945, com 4 edições
(GARCIA: 2004, p. 8).
Mesmo assim, a revista sempre arrumava meios de
fazer críticas ao Estado Novo, às vezes recorrendo a
temáticas da política internacional para, na verdade,
mandar recados sobre o que acontecia em território nacional, e muitas vezes falando de fatos
corriqueiros da vida da população, como donas-de-casa reclamando da alta dos preços no mercado.
Também durante a ditadura militar, iniciada com o golpe de 1964, a repressão à imprensa foi
dura. Como resultado, mais redações fechadas, mais jornalistas presos e mortos. No entanto, o
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período de repressão militar aos impressos novamente fez aflorar os instintos de resistência e
contestação e provocou o surgimento de aproximadamente 150 publicações, muitas com edição
única, porém outras com vida longa e ampla repercussão, o que mostra a vitória obtida, sobretudo
com relação aos impressos classificados como “alternativos”, dissociados dos conglomerados
midiáticos, sem dinheiro e sem muitos recursos, mas com muita criatividade e disposição.
Seja na grande imprensa ou na “nanica”, outro apelido da “alternativa”, as charges
representaram marca forte de opinião e contestação. Diversas vezes foi o estopim motivador de
ações do governo sobre os periódicos, tirando o sono e preocupando os políticos.
Assim ocorreu com a revista Veja, que em maio de 1974 voltou a sofrer censura prévia, dois
meses após sua suspensão pelo governo. O motivo foi uma charge de Millôr Fernandes, que
apresentava um prisioneiro mobilizado pelos ferros da cela e, de fora, alguém dizendo “nada
consta”, publicada no dia 8, na edição número 296, página 11 (MAIA: 2002, p. 498).
Mas foi mesmo sobre os alternativos que a censura e a repressão foram mais fortes, na
tentativa de mantê-los sob controle3.
Em diversos deles, os censores ficavam nas redações acompanhando a edição. Assim foi em
Pasquim. Mas uma charge publicada fez cair uma censora que lá atuava. Dona Marina, que gostava
de beber junto com o pessoal da redação e, com isso, ficava mais “flexível”, deixou passar um
desenho de Ziraldo, feito em cima de um quadro de Pedro Américo sobre o Grito do Ipiranga, em
que D. Pedro I gritava “Eu quero é mocotó”, no lugar de “Independência ou morte” (AUGUSTO:
2006, p. 12).
Vale destacar que, se durante o período pré-republicano a Igreja atuou juntamente com o
Estado na repressão aos pensamentos contrários, durante a ditadura militar da segunda metade do
século XX ela foi alvo da repressão pelo Estado, e as questões a ela relacionadas eram tema
censurado pelo governo.4
Com este trabalho, podemos ver que, mesmo com a forte repressão, a resistência da imprensa
foi marcante durante os períodos mais críticos de censura e tentativa de controle da expressão.
Nosso artigo não pretende uma análise do humor na imprensa, mas propõe uma reflexão acerca do
importante papel do riso na cultura popular e na apropriação desse elemento pela imprensa, como
forma de resistência e contestação.
3 Um estudo feito pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar) sobre a atuação da censura no jornal Movimento, entre abril de 1977 e abril de 1978, mostra que foram cortados, em média, 22 artigos e 17 ilustrações por edição do jornal. Os temas proibidos eram divididos em oito grandes blocos, ramificados em quase 200 itens. Os blocos: movimento estudantil, ataques ao regime, incitação à luta, movimento sindical, situação econômica, direitos humanos, movimento religioso e leis revolucionárias. (MAIA: 2002, p. 506)4 Os dados do Cenimar mostram que 391 matérias, ou 4,11%, censuradas no jornal Movimento, entre abril de 1977 e abril de 1978 referiam-se ao movimento religioso. (MAIA: 2002, p. 508)
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Referências
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