Che guevara uma biografia - Jon Lee Anderson

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Transcript of Che guevara uma biografia - Jon Lee Anderson

  • FOLHA de Rosto

    Jon Lee Anderson

    EDIO REVISTA E ATUALIZADA

    TraduoM. H. C. Crtes

  • CRDITOSCopyright 1997 by Jon Lee AndersonCopyright do texto revisto 2010 by Jon Lee AndersonTodos os direitos desta edio reservados Editora Objetiva Ltda.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.brTtulo originalChe Guevara A Revolutionary LifeCapaVictor BurtonImagem de capaElliott Erwitt/Magnum Photos/LatinstockRevisoRaquel CorreaRita GodoyLilia ZanettiTamara SenderAna KronembergerCoordenao de e-bookMarcelo XavierConverso para e-bookFreitas Bastos

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJA561cAnderson, Jon Lee Che Guevara [recurso eletrnico]: uma biografia / Jon Lee Anderson; traduo M. H. C. Crtes. Rio de Janeiro:Objetiva, 2012. recurso digital

    Traduo de: Che Guevara: a revolutionary life Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web 907p.: retratos ISBN 978-85-390-0339-6 (recurso eletrnico)1. Guevara, Ernesto, 1928-1967. 2. Guerrilheiros Amrica Latina Biografia. 3. Livros eletrnicos. I. Ttulo.12-1500 CDD: 920.932242 CDU: 929:323.22

  • DEDICATRIA

    Para Ericae em memria de minha me,

    Barbara Joy Anderson,1928-1994

  • Ernesto Che Guevara, 1960.

  • Introduo edio revistaMeu interesse por Che Guevara comeou no final da dcada de 1980, enquanto pesquisava umlivro sobre guerrilhas modernas. Havia quase uma gerao que o pster do retrato de Chetirado por Alberto Korda de boina preta e broche de estrela enfeitava diversas paredes dedormitrios de faculdade. Essa poca chegou a um desfecho inesperado, com o fim domovimento de protesto estudantil quando a Guerra do Vietn terminou. Mas nos sertesinsurgentes da Birmnia, de El Salvador, do Saara Ocidental e do Afeganisto, Che resistiu nopapel de modelo, e quase como um smbolo mstico de venerao. Ele inspirou novas geraesde guerreiros e sonhadores pelos princpios revolucionrios que representava: coragem,abnegao, honestidade e devoo causa.

    Havia poucos livros sobre Che ainda sendo impressos. A maioria tinha vinte anos e eraformada por hagiografias oficiais cubanas ou demonizaes igualmente cansativas, escritaspor inimigos ideolgicos. A vida de Che tinha mesmo de ser escrita porque muito dela aindaestava encoberta por sigilo, inclusive as circunstncias misteriosas de suas horas finais naBolvia, em 1967. At o paradeiro de seu corpo era desconhecido.

    Quem foi esse homem que abriu mo de tudo que estimava para lutar e morrer em umcampo de batalha estrangeiro? Aos 36 anos deixou para trs esposa e cinco filhos, um cargoministerial e uma posio de comandante para iniciar novas revolues. E em primeiro lugar,o que impeliu um intelectual argentino bem-nascido, com um diploma de mdico, a tentarmudar o mundo? Desvendando os mistrios da histria de vida de Che, seria possvel elucidaralguns dos mais fascinantes episdios da Guerra Fria e pr em um foco mais ntido um de seuspersonagens centrais.

    Parecia-me que as respostas maioria das perguntas sobre Che permaneciam em Cuba e,em 1992, fui para Havana, onde estive com sua viva, Aleida March. Contei-lhe sobre meuplano de escrever uma biografia de seu falecido marido e lhe pedi cooperao e assistncia.Ela acabou concordando. Poucos meses depois, me mudei para Havana com minha esposa etrs filhos pequenos para uma estadia que se esticou por quase trs anos. Era um momentodesolador para os cubanos. A Unio Sovitica de repente deixara de existir, pondo um abruptofim aos generosos subsdios financeiros que sustentaram o pas nas ltimas trs dcadas. Masmesmo com a economia do pas desintegrando, Fidel Castro mantinha a bandeira socialistaobstinadamente erguida e invocava o exemplo de Che, exigindo coragem revolucionria esacrifcios dos compatriotas.

    O maior desafio para mim foi romper a atmosfera beatfica que cercava a memria de Che.Ele foi praticamente o padroeiro de Cuba, e as lembranas das pessoas que o tinham conhecidoforam, com frequncia, covardemente elogiosas, ou, de maneira despudorada, politicamentedeterministas. Foi s quando passei vrios meses perambulando pela Argentina na companhiade amigos de infncia de Che, do jovem Che Guevara, que o homem comeou a emergir comouma figura real. Finalmente, de volta a Havana, me foi dado o acesso privilegiado a alguns deseus dirios, at ento inditos, que ajudaram a explicar a transformao do menino nolendrio Che.

    Certa manh, em novembro de 1995, quando estava na Bolvia para entrevistar todo mundoque eu achasse ter alguma coisa a ver com os esforos da guerrilha de Che, fui a Santa Cruz

  • para encontrar Mario Vargas Salinas, um general aposentado em seus 50 e poucos anos. Comoum jovem oficial do Exrcito em 1967, Vargas Salinas tornou-se famoso por liderar aemboscada no rio Masicuri, que eliminou a segunda coluna de Che. Tania, sua companheiraalem, e outros oito guerrilheiros foram mortos. O massacre no Masicuri marcou o incio dofim para Che. Pouco mais de um ms depois, em 8 de outubro de 1967, encurralado em umvale por um grande nmero de tropas do Exrcito, Che foi ferido e levado preso. No diaseguinte, sob ordens do alto-comando militar boliviano e na presena de um agente da CIA,foi morto a tiros. Aps o anncio da morte de Che em batalha, o Exrcito mostrou seu corpopara o povo por um dia, na cidade vizinha, chamada Vallegrande. As fotografias do cadvermostravam-no sem camisa, crivado de balas. Estava deitado de costas com a cabea escorada eos olhos abertos. A semelhana com as imagens de Cristo morto era evidente para todos. Nestanoite, o corpo de Che e de vrios camaradas desapareceram. Seus inimigos pretendiam negar-lhe um local de enterro, onde admiradores poderiam prestar homenagens. Mais tarde, umoficial do Exrcito disse vagamente que o corpo de Che fora jogado de um avio dentro daselva. Outro oficial afirmou que o cadver fora incinerado.

    Mario Vargas Salinas acabou revelando-se um homem excepcionalmente amvel e sincero.Acabamos passando mais de trs horas conversando em seu jardim murado, em Santa Cruz, edescobri que ele estava disposto a discutir assuntos controversos. A certa altura, reconheceuque seus soldados executaram um dos combatentes feridos de Che. Sua franqueza levou-me aperguntar sobre o corpo, embora no esperasse realmente uma resposta honesta. Fiqueichocado quando respondeu que queria limpar o passado. Ele disse que depois que Che foimorto, as mos foram amputadas. As impresses digitais foram tiradas para preservar a provafsica da identidade do corpo, e as mos, colocadas em formol e escondidas. Em seguida, umpeloto de sepultamento noturno, do qual Vargas fazia parte, despejou secretamente os corposde Che e de vrios de seus camaradas em uma vala comum. A sepultura foi escavada na pistade pouso de Vallegrande.

    Quando escrevi um artigo sobre a confisso de Vargas Salinas para o New York Times , oefeito na Bolvia foi dramtico e imediato. O presidente Gonzalo Sanchez de Lozada disse terouvido que inventei toda a histria depois de ter embebedado Vargas Salinas, que, por sua vez,nesse meio-tempo, se escondeu e emitiu uma declarao negando tudo. Em uma confernciade imprensa em La Paz, adverti que tinha uma gravao da entrevista, e sugeriram que ogeneral poderia estar sob algum tipo de coao. Vargas Salinas logo desmentiu suasdeclaraes e assegurou a exatido de minha histria, mas permaneceu escondido. Ento, emuma incrvel reviravolta, o presidente Sanchez de Lozada anunciou que reverteria dcadas desigilo oficial e ordenou que uma comisso fosse formada para encontrar os corpos.

    Durante as semanas seguintes, o espetculo de ex-guerrilheiros, soldados e especialistasforenses escavando buracos dentro e em torno de Vallegrande abriu muitas feridas antigas erevelou os detalhes mais srdidos de uma poca em que os poderosos militares da Bolviatinham ido longe, de forma muito literal, com os assassinatos. Dos anos 1960 aos 1980, umasucesso de ditadores governara o pas. Centenas de cidados tinham desaparecido sob oregime desordenado e muitas vezes brutal. Ento, encorajadas pela caa ao corpo de CheGuevara, as pessoas comearam a clamar por justia e por informaes sobre seus entesqueridos. Houve tambm manifestaes de raiva de ex-soldados que lutaram contra o grupo deChe, quando jovens recrutas, e que em alguns casos sofreram ferimentos graves e no

  • receberam penses por invalidez ou quaisquer outras. Eles tambm exigiam seus direitos.O passado fora agitado. Os chefes militares bolivianos cumpriram a ordem do presidente,

    mas ficaram furiosos com Vargas Salinas por sua traio. Ele foi levado a Vallegrande em umpequeno avio, e, enquanto passeava ao redor da pista de pouso, flanqueado por dois sisudosgenerais do Exrcito, uma parede de reprteres se aproximou. Depois de trinta minutos,declarou que no poderia identificar o local do sepultamento de Che. Fora h muitos anos.Ele e seus acompanhantes voltaram para o avio e voaram para longe. Dias depois, espalhou-se a notcia de que o Exrcito colocara Vargas Salinas em priso domiciliar. Isso aconteceuvrios anos antes de termos notcias dele novamente.

    Os esforos na busca em Vallegrande inicialmente no deram em nada. Aps vriassemanas infrutferas, os generais no comando da misso deixaram claro que queriam parar deprocurar e partiram para La Paz a fim de apresentar o caso ao presidente. No entanto, poucashoras depois de partirem, alguns camponeses locais, que at ento tiveram um medo enormede se manifestar, revelaram a localizao de uma regio de desova, da qual sabiam daexistncia havia anos. Era um lugar solitrio na floresta, a aproximadamente 4 quilmetros dacidade. No demorou muito para se confirmar o que tinham dito. L, em vrias covas rasas,estavam os restos de quatro camaradas de Che.

    A descoberta de ltima hora ps fim estratgia dos militares de dar a impresso de queestavam dispostos a levar a situao s ltimas consequncias para desmentir a acusao a queforam submetidos. A busca foi retomada com vigor renovado, mas, em pouco tempo, as pistasesfriaram novamente. Nada aconteceu por outros 16 meses, at que, em julho de 1997, oesqueleto de Che foi finalmente descoberto por uma equipe forense de cubanos e argentinos. Aconspirao de trinta anos de fraude enfim acabou. O esqueleto estava junto com outros seis,no fundo de um buraco sob a pista de pouso de Vallegrande, como dissera Vargas Salinas. Cheestava completamente estendido, ao longo da base do poo, virado para cima, como se umcuidado especial tivesse sido tomado ao coloc-lo ali. Os outros corpos foram jogadosdesordenadamente em uma pilha bagunada perto dele. As mos de Che foram amputadas naaltura dos pulsos.

    Os restos foram exumados, colocados em caixes e levados para Cuba, onde foramrecebidos em uma emocionante cerimnia privada, que inclua Fidel e Ral Castro. Aps trsmeses, em 10 de outubro de 1997, no incio de uma semana de luto oficial em Cuba, Fidel eRal prestaram suas homenagens formalmente. Os caixes de Che e de seus seis camaradasficaram expostos com toda a pompa no monumento Jos Mart, um obelisco no centro daPlaza de la Revolucin, em Havana. No perodo de poucos dias, estima-se que 250 mil pessoasesperaram alinhadas por horas na fila para v-los. Crianas deixavam cartas para Che.Chorando, homens e mulheres recitaram poemas e entoaram canes revolucionrias. Emseguida, os caixes cobertos pela bandeira foram conduzidos lentamente em uma carreata cidade de Santa Clara, que Che havia conquistado na ltima e mais decisiva batalha da guerrarevolucionria de Cuba, quase quarenta anos antes. Ele e os companheiros foram enterradosem um mausolu construdo para honrar o heroico guerrilheiro.

    Revisei essa edio de meu livro no cinquentenrio da revoluo cubana. Parecia ummomento adequado para aprimorar e atualizar a biografia de Che e pensar sobre o que elesignifica para uma nova gerao de leitores. Agora, seus camaradas sobreviventes so homensidosos, e Cuba est chegando ao fim de uma era. Para melhor ou para pior, a revoluo parte

  • do legado de Che, embora ele j o tenha transcendido.O rosto de Che e seu nome tm sido estampados em pranchas e relgios e em milhes de

    camisetas. Mas o que exatamente o Che mitificado e mercantilizado representa? quase certoque, o que quer que signifique a imagem, pouco tem a ver com o prprio Che. O Che Guevararessuscitado bonito, com cabelos compridos e olhos brilhantes , em muitos aspectos,to irreal quanto os heris e viles virtuais de um videogame. O verdadeiro Che Guevara, quetinha apenas 39 anos quando morreu, foi canonizado e demonizado. Por mais que os fatos desua vida sejam documentados, suspeito que seus paradoxos e seu lugar na cultura populargarantiro que isso seja sempre assim. Mas nenhuma escola de opinio jamais ser capaz dereivindic-lo inteiramente.

  • Parte UmJuventude Agitada

  • 1Uma plantao em Misiones

    IO horscopo era desconcertante. Se Ernesto Che Guevara tivesse nascido em 14 de junho de1928, como constava em sua certido de nascimento, ento seria do signo de Gmeos, e semnada de extraordinrio. A astrloga que fazia os clculos, uma amiga da me de Che, repetiuseu trabalho e chegou aos mesmos resultados. O Che que aparecia em suas anlises era umapersonalidade sem brilho, dependente, que levara uma vida que nada teve de especial. Masisso foi no incio dos anos 1960, e Che j era uma das pessoas mais famosas do mundo. Tinhasido capa da revista Time e era uma figura em evidncia e carismtica, renomada por seuesprito independente.

    Quando a astrloga, atnita, mostrou me de Che o horscopo sem graa, ela deu risada.Revelou ento um segredo que guardara zelosamente por mais de trs dcadas. Na verdade,seu filho nascera um ms antes, no dia 14 de maio. No era de Gmeos coisa nenhuma, masum teimoso e decidido taurino. A tapeao fora necessria, explicou, porque estava grvida detrs meses quando se casou com o pai de Che. Imediatamente aps o casamento, o casaldeixou Buenos Aires rumo longnqua e atrasada selva de Misiones, 2 mil quilmetros acimado rio Paran, na fronteira norte da Argentina com o Paraguai e com o Brasil. L, enquanto seumarido se estabelecia como um plantador de erva-mate, ela prosseguiu com a gravidez, longedos olhares curiosos da sociedade de Buenos Aires. Um mdico amigo falsificou a data nacertido de nascimento, avanando-a em um ms para ajud-los a se proteger do escndalo.

    Quando o filho estava com um ms de vida, o casal comunicou s respectivas famlias.Contaram que tentaram chegar a Buenos Aires e que a me de Che entrara prematuramente emtrabalho de parto. Afinal, um beb de sete meses no um acontecimento incomum. Pode terhavido dvidas, mas a histria e a data oficial do nascimento da criana foram calmamenteaceitas.

    Parece apropriado que um homem que passou a maior parte da vida adulta engajado ematividades clandestinas, e cuja morte envolveu uma conspirao, comeasse a vida com umsubterfgio.

    IIEm 1927, quando Ernesto Guevara Lynch conheceu Celia de la Serna, ela acabara de se formarno Sacr Coeur, um exclusivo colgio catlico para meninas em Buenos Aires. Tinha aaparncia expressiva de uma jovem de 20 anos, nariz aquilino, cabelos escuros ondulados eolhos castanhos. Celia era culta, mas sem experincia de vida; devota, mas questionadora. Emoutras palavras, estava madura o suficiente para uma aventura romntica.

    Celia de la Serna era uma autntica sangue azul argentina, de imaculada linhagem danobreza espanhola. Um de seus antepassados fora vice-rei espanhol no Peru colonial; outro,um famoso general argentino. Seu av paterno, um rico proprietrio de terras, e o prprio paide Celia fora um renomado professor de Direito, congressista e embaixador. Tanto ele comosua mulher morreram quando Celia ainda era criana, deixando-a junto com seus seis irmos eirms para serem criados pela tutora, uma tia religiosa. A famlia conservara suas lucrativas

  • propriedades, e Celia deveria receber uma boa herana quando chegasse idade de 21 anos.Ernesto Guevara Lynch tinha 27 anos. Era relativamente alto e atraente, com o queixo e o

    maxilar pronunciados. Os culos que usava para astigmatismo davam-lhe um enganoso ar deburocrata, pois na verdade tinha a personalidade socivel e efervescente, o temperamentoexplosivo e uma enorme imaginao. Era bisneto de um dos homens mais ricos da Amrica doSul, e entre seus antepassados incluam-se membros tanto da nobreza espanhola como dairlandesa. No entanto, ao longo dos anos, a famlia perdera a maior parte da fortuna.

    Em meados do sculo XIX, quando a Argentina era controlada pelo tirnico caudilho JuanManuel de Rosas, os herdeiros vares dos ricos cls dos Guevara e dos Lynch fugiram daArgentina para participar da Corrida do Ouro na Califrnia. Quando voltaram do exlio, seusfilhos nascidos nos Estados Unidos, Roberto Guevara Castro e Ana Isabel Lynch, casaram-se.Ernesto, que se tornaria o pai de Che, era o sexto dos 11 filhos de Roberto e Ana Isabel. Afamlia vivia bem, mas j no eram proprietrios de terra. Enquanto o marido trabalhava comotopgrafo, Ana Isabel criava os filhos em Buenos Aires. Veraneavam em uma casa de camporstica no quinho de terra herdado da antiga propriedade da famlia. A fim de prepararErnesto para uma vida de trabalho, seu pai o enviara para uma escola pblica, dizendo-lhe: Anica aristocracia na qual acredito a aristocracia do talento.

    No entanto, Ernesto ainda pertencia sociedade argentina por direito de nascena. Cresceuouvindo as histrias que a me contava sobre a vida na fronteira da Califrnia e as histriastenebrosas do pai sobre ataques de ndios e mortes sbitas no alto dos Andes. O passado ilustree aventureiro de sua famlia era um legado muito forte para ser superado. Ele tinha 19 anosquando o pai morreu e, embora cursasse arquitetura e engenharia na universidade, abandonouos estudos antes de se formar. Queria ter as prprias aventuras e fazer a prpria fortuna, eutilizou a modesta herana para buscar esse objetivo.

    Antes de conhecer Celia de la Serna, Ernesto investira a maior parte de seu dinheiro, juntocom um parente rico, em uma empresa de construo de iates, o Estaleiro San Isidro. Durantealgum tempo, trabalhou na empresa como supervisor, mas isso no era suficiente para manterseu interesse. Logo se entusiasmou por um novo projeto: um amigo o convencera de quepoderia fazer fortuna plantando erva-mate, o estimulante ch nativo bebido por milhes deargentinos.

    A terra era barata na provncia de Misiones, onde se cultivava a erva. Originalmenteocupada no sculo XVI por missionrios jesutas e seus ndios guaranis convertidos, anexadapela Argentina havia apenas cinquenta anos, a provncia estava ento sendo aberta colonizao. Especuladores de terras, aventureiros de posses e imigrantes europeus pobreschegavam em massa. Ernesto foi ver de perto o que estava acontecendo e tambm seentusiasmou com a febre da erva-mate. Seu prprio dinheiro estava preso na empresa deconstruo de iates, mas com a herana de Celia poderiam comprar terra suficiente para umaplantao e, esperava ele, ficariam ricos com o rendoso ouro verde.

    Como era de se esperar, a famlia de Celia ops-se firmemente ao seu pretendente diletante.Ela ainda no tinha completado 21 anos e, segundo a lei argentina, precisava da aprovao dafamlia para se casar ou receber sua herana. Celia a pediu, mas a resposta foi negativa.Desesperados, pois a essa altura estava grvida, ela e Ernesto encenaram uma fuga para foraro consentimento da famlia. Celia refugiou-se na casa de uma irm mais velha. Ademonstrao de fora funcionou e o casamento foi aprovado, mas Celia ainda precisou ir

  • Justia para conseguir a herana. Recebeu uma parcela, incluindo o ttulo de propriedade deuma estncia de gado e de cultivo de gros na provncia central de Crdoba, e alguns ttulos doseu fundo de penso, o bastante para comprar uma plantao de erva-mate em Misiones.

    Em 10 de novembro de 1927, Celia e Ernesto casaram-se em uma cerimnia ntima na casada irm dela, Edelmira Moore de la Serna. O jornal La Prensa, de Buenos Aires, deu a notciana sua coluna Da Social. Logo em seguida, partiram da cidade para os ermos de Misiones.Juntos, decidimos o que fazer de nossas vidas, escreveu Ernesto em um livro de memriaspublicado anos depois. Para trs ficavam as penitncias, o pudor e o crculo fechado deparentes e amigos que queriam impedir nosso casamento.

    IIINa Argentina de 1927, mudanas polticas e sociais pareciam inevitveis, porm ainda nohaviam acontecido. Charles Darwin, que testemunhara as atrocidades cometidas por JuanManuel de Rosas contra os ndios nativos da Argentina, predissera que o pas ficaria nasmos de selvagens brancos gachos em vez de ndios de pele cor de cobre. Os primeiros soligeiramente superiores em instruo, ao mesmo tempo em que so inferiores em todas asvirtudes morais. No entanto, mesmo durante esse perodo de derramamento de sangue, aArgentina gerara seu prprio panteo de heris dotados de esprito cvico, desde o general Josde San Martn, o libertador do pas na luta pela independncia contra a Espanha, at DomingoSarmiento, o combativo presidente, educador e jornalista. Facundo, o livro de Sarmientopublicado em 1845, fora como um toque de clarim dirigido a seus compatriotas para convoc-los a trilhar o caminho do homem civilizado, em vez de seguir a brutalidade do arqutipo dohomem de fronteira argentino, o gacho. Mas o prprio Sarmiento exerceu a autoridade de umditador. O caudilhismo, culto do homem forte, continuaria a ser uma caracterstica da polticaargentina at o sculo seguinte, com o governo se alternando entre caudilhos e democratas.Certamente, havia uma dualidade irreconcilivel no temperamento argentino. Estavam em umestado de tenso permanente entre selvageria e comportamento civilizado. Sendo passionais,volteis e racistas, tambm eram expansivos, brincalhes e hospitaleiros.

    No final do sculo XIX, quando a conquista dos pampas do sul foi finalmente asseguradadepois de uma campanha com patrocnio oficial para exterminar a populao indgena nativa,vastas extenses de novas terras foram abertas colonizao. Ergueram-se cercas paratransformar os pampas em reas de pastagens e plantio; novas cidades e indstrias brotaram; eferrovias, portos e estradas foram construdos. Ao se chegar virada do sculo, a populao daArgentina triplicara, acrescida do influxo de mais de um milho de imigrantes provenientes deItlia, Espanha, Alemanha, Gr-Bretanha, Rssia e Oriente Mdio, que se despejaram sobre arica terra da oportunidade no Sul. A cidade de Buenos Aires, havia apenas um sculo umasombria guarnio colonial no vasto esturio do rio da Prata, conquistara ento um aspectoinflamado, sintetizado pela nova cultura sensual do tango. Carlos Gardel, o crooner de olhosescuros, dava voz a um exaltado orgulho nacional.

    Navios transportavam carne, gros e couro da Argentina para a Europa, enquanto outrosatracavam trazendo automveis Studebakers norte-americanos, gramofones e as mais recentesmodas de Paris. A cidade se orgulhava do teatro de pera, da bolsa de valores e da belauniversidade, bem como das filas de imponentes edifcios pblicos de estilo neoclssico, dasmanses particulares, dos parques verdes e bem-conservados, com rvores copadas e camposde polo, e tambm dos amplos bulevares enfeitados com esttuas de heris e fontes

  • borbulhantes. Bondes eltricos chacoalhavam, zunindo ao longo de ruas pavimentadas,passando por confeitarias e uisquerias elegantes, com letreiros dourados nas janelas de vidrochanfrado. Nos interiores de mrmore e espelhos, garons orgulhosos, de palet branco ecabelos emplastrados, faziam pose e avanavam.

    Mas enquanto os portenhos de Buenos Aires, como se autodenominavam, voltavam os olhospara a Europa por suas referncias culturais, grande parte do interior ainda se arrastava noabandono do sculo XIX. No norte, despticos caudilhos provincianos controlavam vastasextenses de terras de plantio de algodo e de cana-de-acar. Enfermidades como lepra emalria, at mesmo peste bubnica, ainda eram comuns entre seus empregados. Nasprovncias andinas, os indgenas conhecidos como coyas, que s falavam quchua e aimar,viviam em extrema pobreza. A justia por conta prpria e a servido por contrato eramcaractersticas da vida de grande parte do interior.

    Durante dcadas, dois partidos estiveram no poder, o Radical e o Conservador. HiplitoYrigoyen, o radical que foi reeleito presidente em 1928, ano em que nasceu o primeiro filho deErnesto e Celia, era um excntrico, uma figura de esfinge que raramente falava ou aparecia empblico. Os trabalhadores ainda tinham poucos direitos, e as greves eram frequentementereprimidas bala e cassetete. Os criminosos eram transportados em navios para cumprir penasde deteno nas paragens desoladas e frias do sul, na Patagnia. Porm, com a imigrao e asmudanas polticas do sculo XX, feministas, socialistas, anarquistas e, agora, tambmfascistas comeavam a se fazer ouvir. Novas ideias haviam chegado.

    IVCom o dinheiro de Celia, Ernesto comprou 200 hectares de mata ao longo das margens do rioParan. No topo de uma encosta que dava para a gua cor de caf e para a densa floresta verdede frente para o rio, ergueram uma espaosa casa de madeira sobre palafitas, com uma cozinhaao ar livre e banheiro externo. Embora estivessem muito longe das comodidades de BuenosAires, Ernesto estava fascinado. Com olhos vidos de empreendedor, olhava a selva ao redor evia o futuro.

    Talvez ele acreditasse que pudesse restaurar a fortuna da famlia metendo-se intrepidamentepor terras novas e inexploradas. Estivesse ou no conscientemente se espelhando nasexperincias de seus avs, fica claro que, para Ernesto, Misiones constitua uma aventura. Paraele, no era apenas outra atrasada provncia argentina, mas um lugar emocionante, cheio deanimais ferozes, trabalho perigoso, roubos e assassinatos, ciclones na selva, chuvasinterminveis e doenas tropicais. Escreveu que na misteriosa Misiones (...) tudo atraa eprendia. Atraa como tudo que perigoso e prendia como tudo que apaixonante. L, nada erafamiliar, nem o solo, o clima, a vegetao, nem a mata cheia de animais selvagens, e menosainda seus habitantes. (...) Do momento em que se pisava em suas margens, sentia-se que asegurana da vida de uma pessoa estava no faco ou no revlver.

    Sua casa ficava em Puerto Caraguatay. Caraguata uma linda flor vermelha na lnguaguarani. Esse puerto, no entanto, no passava de um pequeno cais de madeira. Caraguatay foialcanado depois de uma jornada de dois dias rio acima, a partir do velho porto de comrciode Posadas. Viajaram no Ibera, um vapor vitoriano com rodas de ps, que anteriormenteprestara servios transportando colonos britnicos pelo Nilo. A localidade mais prxima era apequena comunidade de colonos alemes de Montecarlo, a 8 quilmetros de distncia. Mas osGuevara descobriram ter um vizinho amigvel, Charles Benson, um ingls que era engenheiro

  • de ferrovias aposentado e vivia a poucos minutos de caminhada por dentro da floresta. Bensonera um pescador inveterado e construra, logo acima do rio, um amplo bangal branco, comum vaso sanitrio importado da Inglaterra dentro de casa.

    Durante alguns meses, o casal passou momentos agradveis, se assentando e explorando area. Pescavam, passeavam de barco e a cavalo com Benson, e iam at Montecarlo em suacharrete puxada por uma mula. Para Gertrudis Kraft, de 8 anos, cujos pais tinham umapequena hospedaria na estrada de Montecarlo, os Guevara pareciam ser, como ela recordoumuitos anos depois, pessoas ricas e elegantes. Sua casa rstica beira do rio lhe parecia umamanso.

    Porm, o idlio de lua de mel dos Guevara, apesar de intenso, no durou muito. Em poucosmeses, a gravidez de Celia j estava bem avanada e era hora de retornar civilizao, ondepoderia dar luz com maior conforto e segurana. O casal desceu o rio. Sua viagem terminouem Rosrio, uma importante cidade porturia s margens do rio Paran, com 300 milhabitantes, onde Celia entrou em trabalho de parto e onde nasceu seu filho, Ernesto Guevarade la Serna. Em sua certido de nascimento falsificada, expedida pelo cartrio de RegistroCivil, constam como testemunhas um primo de seu pai que vivia em Rosrio e um motoristade txi brasileiro, obviamente recrutado ltima hora. O documento diz que o beb nasceu s3h05 de 14 de junho, no domiclio dos pais, na calle Entre Ros, 480.1

    Os Guevara ficaram em Rosrio enquanto Celia se recuperava do parto do beb, quechamavam de Ernestito. Alugaram um espaoso apartamento de trs quartos, comdependncias de empregada, em um novo edifcio residencial de luxo perto do centro dacidade, no endereo que consta da certido de nascimento. A permanncia deles durou maisque o esperado porque o beb contraiu pneumonia bronquial. A me de Ernesto, Ana IsabelLynch, e sua irm solteira, Ercilia, foram para l a fim de ajud-los.

    VDepois de uma vertiginosa srie de visitas s respectivas famlias em Buenos Aires paramostrar o filho recm-nascido, os Guevara retornaram propriedade em Misiones. Ernestotentou seriamente fazer a plantao vingar. Contratou um capataz paraguaio, chamadoCurtido, para supervisionar o desmatamento da terra e o plantio da primeira safra de erva-mate.

    Em Misiones, os lenhadores e proprietrios de plantaes de erva-mate geralmentecontratavam ndios guaranis, trabalhadores itinerantes chamados mens, que recebiamcontratos vinculatrios e adiantamento pelo trabalho a ser realizado. Era uma forma detrabalho escravo. Os mensues no recebiam dinheiro, mas ttulos que serviam somente paraadquirir coisas essenciais a preos exorbitantes nas vendas das plantaes. Os salrios erambaixos e o sistema praticamente assegurava que jamais conseguissem saldar suas dvidasoriginais. Nas plantaes, capangas vigiavam constantemente os grupos de trabalho paraimpedir fugas, e mortes violentas bala e a faco eram frequentes. Os mensues que escapavamdos capangas mas caam nas mos da polcia eram inevitavelmente devolvidos aos patres.Ernesto Guevara Lynch estava horrorizado com as histrias que ouvia sobre o destino dosmensues e pagou seus trabalhadores em dinheiro, o que fez dele um patro popular. Muitosanos depois, ainda era lembrado pelos trabalhadores locais como um homem bom.

    Enquanto Ernesto trabalhava na plantao, seu filho pequeno aprendia a andar. Para ajud-lo, Ernesto costumava mand-lo cozinha com um bule de erva-mate para entregar ao

  • cozinheiro. Sempre tropeando no caminho, Ernestito se levantava zangado e seguia emfrente. Outra rotina se estabeleceu devido aos insetos perniciosos que infestavam Caraguatay.Todas as noites, quando Ernestito dormia no bero, Ernesto e Curtido se esgueiravamsilenciosamente para dentro do quarto. Enquanto Ernesto mantinha o foco de uma lanterna nomenino, Curtido usava cuidadosamente a ponta acesa de um cigarro para retirar a cota diriade carrapatos aferrados carne do beb.

    Em maro de 1929, Celia engravidou de novo. Ela contratou Carmen Arias, uma jovembab, galega de nascimento, para tomar conta de Ernestito, que ainda no completara um anode idade. Carmen revelou-se um timo acrscimo para a famlia. Viveria com os Guevara atcasar-se, oito anos mais tarde, permanecendo amiga deles ao longo da vida. Livre de ter decuidar da criana, Celia comeou a nadar diariamente no rio Paran. Era uma boa nadadora,mas um dia, quando estava no sexto ms de gravidez, a corrente do rio a pegou.Provavelmente se afogaria se dois dos lenhadores de seu marido, que faziam umdesmatamento ali perto, no a vissem, atirando rapidamente uns cips para pux-la de volta margem.

    Ernesto Guevara recordava em tom de reprovao muitos desses episdios de quaseafogamento de Celia nos primeiros anos de casados. As personalidades muito diferentes jcomeavam a se chocar. Ela era distante, solitria e aparentemente desprovida de medo,enquanto ele era um homem emocionalmente carente, que gostava de ter pessoas ao seu redor,um preocupado crnico cuja imaginao vvida magnificava os riscos que via espreita portoda parte. Entretanto, embora os primeiros indcios de sua futura discrdia matrimonial jfossem evidentes, ainda continuaram juntos. Os Guevara faziam excurses em famlia, comopasseios a cavalo pelas trilhas da floresta, com Ernestito cavalgando na frente da sela do pai, eincurses pelo rio a bordo da Kid, uma lancha de madeira com uma cabina com quatrobeliches que Ernesto construra no Estaleiro San Isidro. Certa vez, subiram o rio at asfamosas cataratas do Iguau, onde as fronteiras argentina e brasileira se encontram, e ficaramolhando as nuvens de vapor dgua produzidas pelas cascatas amarronzadas que ribombavamdo penhasco da selva virgem.

    No final de 1929, a famlia fez novamente as malas para a longa viagem rio abaixo atBuenos Aires. O campo estava limpo e a plantao de erva-mate acabara de ser semeada, masCelia estava prestes a dar luz o segundo filho, e a presena de Ernesto era necessria, comurgncia, no Estaleiro San Isidro. Durante sua ausncia, os negcios andaram mal e ento umdos investidores da empresa se retirara. Planejavam ficar fora apenas alguns meses, mas nuncaregressariam como uma famlia a Puerto Caraguatay.

    VIDe volta a Buenos Aires, Ernesto alugou um bangal no terreno de uma grande residnciacolonial, propriedade de sua irm, Mara Luisa, e do marido no bairro residencial de SanIsidro, convenientemente perto da sua empresa de construo de barcos que atravessavadificuldades. Estavam l havia pouco tempo quando Celia deu luz, em dezembro, umamenina a quem deram seu prprio nome, Celia. Durante algum tempo, enquanto Ernestotrabalhava no estaleiro, a vida da famlia girava em torno de passeios ao Iate Clube de SanIsidro, perto do local em que os rios Paran e Uruguai se juntam para formar o esturio do rioda Prata.

    A empresa de construo de iates estava beira da falncia, supostamente devido

  • incompetncia do scio e primo de Ernesto em segundo grau, Germn Frers. Para Frers, que jera rico e campeo de regatas a vela, o estaleiro era um hobby. Seu entusiasmo por criar obrasde arte nuticas era tal que despejava dinheiro em mo de obra especializada e em carosmateriais importados que, muitas vezes, custavam mais companhia do que os valoresacordados para a venda das embarcaes que construa. O investimento de Ernesto corria osrio risco de evaporar. Em seguida, logo aps seu regresso, um incndio destruiu o estaleiro.Barcos, madeira e tinta foram pelos ares, em chamas.

    Se o estaleiro estivesse coberto pelo seguro, o incndio seria apenas um acontecimentofortuito. Porm, Frers se esquecera de pagar a aplice, e Ernesto perdeu sua herana da noitepara o dia. Tudo que lhe restava de seu investimento era a lancha, Kid. Como compensaoparcial, Frers lhe deu o Al, um iate a motor de 12 metros. O Al valia alguma coisa, e aindatinham a plantao em Misiones, que Ernesto deixara nas mos de um amigo da famlia paraadministrar durante sua ausncia. Podia ter a esperana de em breve ver os rendimentos anuaisde suas safras. Nesse meio-tempo, teriam a renda anual da propriedade de Celia em Crdoba.Alm disso, contavam tambm com muitos parentes e amigos. No morreriam de fome.

    No comeo de 1930, Ernesto certamente no parecia muito preocupado com o futuro.Durante alguns meses, levou uma vida divertida, passando os fins de semana em cruzeiroscom amigos a bordo do Al, fazendo piqueniques na mirade de ilhas do delta, rio acima. Noquente vero argentino, de novembro a maro, a famlia passava os dias na praia do Iate Clubede San Isidro, ou visitava primos e parentes ricos em suas estncias no campo.

    Em um dia de maio de 1930, Celia levou seu filho de 2 anos de idade para nadar no iateclube, mas o inverno argentino j comeara e estava frio e ventando. Nessa noite, a crianateve uma crise de tosse. O mdico diagnosticou bronquite asmtica e prescreveu o tratamentonormal, mas o ataque durou vrios dias. Ernestito desenvolvera uma asma crnica que oafligiria para o resto da vida e mudaria de forma inexorvel o rumo da vida de seus pais.

    Pouco tempo depois, os ataques recomearam e tornaram-se piores. As crises de falta de ardo garoto deixavam seus pais angustiados. Buscaram desesperadamente conselhos mdicos etentaram todos os tratamentos conhecidos. A atmosfera na casa azedou. Ernesto culpava Celiapor imprudentemente provocar a doena do filho, mas no era nada justo. Celia era umapessoa altamente alrgica e tambm padecia de asma. Era bem provvel que seu filho tivesseherdado a mesma propenso. Os irmos tambm desenvolveram alergias, embora nenhumsofresse to seriamente quanto Ernestito. A exposio ao ar e gua frios provavelmenteapenas ativara os sintomas.

    Qualquer que tenha sido a causa, a asma do garoto eliminava o retorno ao clima de PuertoCaraguatay. Era bvio tambm que mesmo San Isidro, to perto do rio da Prata, era demasiadomido para ele. Em 1931, os Guevara se mudaram de novo, dessa vez para mais perto docentro de Buenos Aires, para um apartamento alugado no quinto andar de um edifcio prximoao parque de Palermo. Estavam perto de Ana Isabel, me de Ernesto, e de sua irm, Beatriz,que morava com ela. Ambas derramavam afeto sobre o menino doente.

    Em maio de 1932, Celia deu luz pela terceira vez, um outro menino. Chamaram-noRoberto, nome do av paterno nascido na Califrnia. A pequena Celia, agora com um ano emeio, dava seus primeiros passos, e Ernestito, com 4 anos, aprendia a andar de bicicleta pelosjardins de Palermo.

    Para Ernesto Guevara Lynch, a doena do filho mais velho era uma espcie de maldio: A

  • asma de Ernesto comeava a afetar nossas decises, ele lembrou em seu livro de memrias.Cada dia impunha novas restries a nossa liberdade de movimento e cada dia nosencontrvamos mais merc dessa maldita enfermidade. Os mdicos recomendaram umclima seco para estabilizar a condio do garoto, e os Guevara viajaram para as terras altas daprovncia de Crdoba. Durante vrios meses, fizeram viagens de ida e volta entre a capital daprovncia de Crdoba, a segunda cidade mais importante da Argentina, e Buenos Aires,praticamente vivendo em hotis e em casas alugadas por temporada. Os ataques de Ernestitose atenuavam, depois pioravam novamente, sem qualquer padro aparente. Impossibilitado decuidar dos negcios ou iniciar uma nova atividade, o velho Ernesto ficava cada vez maisfrustrado. Sentia-se instvel, no ar, incapaz de fazer qualquer coisa.

    Os mdicos insistiram para que ficassem em Crdoba durante pelo menos quatro meses, afim de garantir a recuperao de Ernestito. Um amigo da famlia sugeriu-lhes queexperimentassem Alta Gracia, uma estncia termal no sop das serras Chicas, uma pequenacadeia de montanhas perto de Crdoba. Tinha um timo clima seco que fazia do lugarejo umretiro popular para quem sofria de tuberculose e outras doenas respiratrias. Pensando emuma curta permanncia, a famlia se mudou para Alta Gracia, sem sequer imaginar que seriaseu lar durante os 11 anos seguintes.

    1 Ver a seo Notas sobre a data de nascimento.

  • 2O clima seco de Alta Gracia

    INo comeo dos anos 1930, Alta Gracia era uma atrativa e pequena cidade de lazer com algunsmilhares de habitantes, rodeada de fazendas e de campos intactos. O ar de montanha erafresco, puro e revigorante. Inicialmente, a famlia hospedou-se no Hotel de La Gruta, umsanatrio administrado por alemes nos arredores da cidade. Seu nome fora tirado de umacapela em uma pequena gruta prxima, construda para a venerao da Virgem de Lourdes. Amaioria dos hspedes sofria de doenas pulmonares.

    Para Celia e as crianas, viver em Alta Gracia era como ter frias prolongadas. Ela as levavapara caminhadas at pequenos lagos, onde nadavam, ou para passeios de mula, e comeou a serelacionar com os moradores do lugar. Seu marido no os acompanhava. medida que suasreservas encolhiam, a frustrao por no conseguir trabalho se transformava em desespero.Sentia-se isolado, confinado pelas colinas ao redor, sofria de insnia e ficava cada vez maisdeprimido durante as longas noites em claro no hotel.

    A asma do jovem Ernesto melhorou em Alta Gracia, mas ele ainda tinha crises, e apreocupao dos Guevara com sua sade continuaria a traar o caminho da famlia,dominando suas vidas de uma maneira extraordinria. Logo decidiram ficar em Alta Graciapor tempo indefinido. Ali os ataques tornaram-se intermitentes, em lugar da afeco crnicade Buenos Aires. Ernestito era agora um menino de 5 anos, animado e voluntarioso, que sejuntava s barras turmas de crianas do lugar para brincar de guerra de trincheiras, debandido e mocinho, e descer desenfreado de bicicleta pelas ladeiras da cidade.

    Ernesto Guevara Lynch encontrou uma casa desocupada para alugar, na calle Avellaneda, nobairro de Villa Carlos Pellegrini, a apenas cinco minutos a p do centro de atividades sociaisda cidade, que era o opulento Hotel Sierras, uma imitao de um hotel de Calcut do perododo reinado britnico. A nova casa da famlia se chamava Villa Chichita. Era um chal de doisandares, de estilo gtico, que o velho Ernesto comparava a um farol. Quase inteiramenterodeado por campos abandonados, tinha vista para as serras de um lado e, do outro, para asplancies amareladas e descampadas na direo de Crdoba.

    Em janeiro de 1934, Celia deu luz uma quarta criana, uma menina a quem deram o nomede Ana Mara, sua av paterna. Embora brigasse frequentemente com Celia e Roberto, ojovem Ernesto se mostrava particularmente solcito com a irm caula, levando-a para passearquando ainda era beb e contando-lhe histrias. Quando sua respirao ofegante o deixavafatigado, descansava seu peso no ombro dela.

    As fotografias de famlia mostram que, aos 5 anos, Ernestito era um menino parrudo, depele plida e cabelos escuros despenteados. Invariavelmente vestia calas curtas e sandliascom meias e usava diferentes chapus para proteger-se do sol da montanha. Sua fisionomia erasria e retrada, seu estado de esprito era difcil de capturar com uma cmera. Em fotostiradas dois anos depois, percebe-se que crescera, mas o rosto continuava plido e abatido,sem dvida em consequncia dos prolongados acessos de asma.

    Quando Ernesto estava com 7 anos, os Guevara se mudaram de Villa Chichita para uma casa

  • mais confortvel, bem do outro lado da rua. A nova casa, a Villa Nydia, era um chal de umandar, protegido por um pinheiro alto, com trs dormitrios, um estdio e dependncias deempregados. Ficava em um terreno de quase um hectare. Seu senhorio era El Gaucho Lozada,o dono da igreja e da casa de misso da cidade. Durante os anos em Alta Gracia, os Guevaraviveram em vrias casas alugadas por temporada, mas Villa Nydia foi onde ficaram por maistempo e foi o lugar que mais consideraram como um lar. O aluguel era baixo, apenas setentapesos por ms, o equivalente a cerca de vinte dlares. No entanto, Ernesto Guevara Lynch, queestava quebrado a maior parte do tempo, frequentemente no conseguia pag-lo. Estava emuma situao bem difcil. No podia voltar a Buenos Aires por causa da sade de Ernestito,mas no fora capaz de encontrar trabalho naquele local. Sua maior esperana de renda era aplantao em Misiones, mas os preos do mercado de erva-mate despencaram e uma secaprolongada afetara profundamente o rendimento da estncia de Celia no sul, na provncia deCrdoba.

    Durante os anos que se seguiram, os Guevara continuaram a depender da renda de suaspropriedades, mas, afetados tanto pelo clima como pelas condies de mercado que flutuavam,os rendimentos eram incertos e, de modo geral, pequenos. De acordo com a famlia e osamigos, foi o dinheiro de Celia, provavelmente o que tinha sobrado de seus ttulos ao portador,que sustentou a famlia durante a dcada de 1930. Foram tempos realmente duros para ns,Ernesto Guevara Lynch escreveu em seu livro de memrias. To cheios de dificuldadeseconmicas. As crianas ficavam maiores, Ernesto ainda tinha asma. Gastvamos muito commdicos e remdios. Tnhamos de pagar empregadas domsticas, pois Celia no podia darconta de tudo sozinha com as crianas. Havia escola, aluguel, roupas, comida, viagens. Erammuitas despesas e pouco dinheiro entrando.

    No entanto, pelo menos parte de seus problemas econmicos se devia ao fato de que nemErnesto nem Celia tinham um sentido prtico em relao a dinheiro. Insistiam em manter umestilo de vida que estava muito alm de seus meios. Davam jantares, tinham charrete eautomvel, e pagavam trs empregadas. Dependendo do dinheiro disponvel em sua carteira, acada vero passavam um tempo em Mar del Plata, o exclusivo balnerio no Atlntico, favoritodos argentinos ricos, ou na estncia da me de Ernesto, em Santa Ana de Irineo Portela.

    Os Guevara tornaram-se parte da vida social do Hotel Sierras. Podiam no ter dinheiro, maspertenciam classe social certa, e tinham a pose e os sobrenomes corretos. Os Guevara tinhamclasse. Foram abenoados com a confiana inata dos que nascem em meio opulncia. Ascoisas correriam bem no final. Quando algo saa errado, os amigos e a famlia os salvavam.Carlos Calica Ferrer, que gostava de se divertir e era filho de um mdico de renome de AltaGracia, um especialista em pulmo que tratara da asma do jovem Ernesto, lembrou-se de quesaiu de frias com os Guevara em um vero. Ernesto Guevara Lynch no levara dinheiroalgum consigo e pediu a Calica que lhe emprestasse o dinheiro que seu pai lhe dera para asfrias.

    Demorou algum tempo at que o velho Ernesto pudesse tirar proveito das novas relaessociais em Alta Gracia e obtivesse trabalho remunerado. Em 1941, usando os documentos dearquiteto de seu irmo, Federico, e os seus prprios de mestre de obras e empreiteiro,conseguiu um contrato para ampliar e melhorar o Campo de Golfe Sierras. Enquanto durou otrabalho, havia dinheiro entrando, porm, alm desse empreendimento, no h nenhumregistro de que Ernesto tenha trabalhado durante a longa permanncia da famlia em Alta

  • Gracia.

    Ernesto Guevara de la Serna com os pais, Ernesto Guevara Lynch e Celia Guevara de la Serna, em Alta Gracia, Argentina,em 1935.

    IIPor causa da asma, o jovem Ernesto no ia escola regularmente at ter quase 9 anos. Celiapacientemente lhe deu aulas em casa, ensinando-o a ler e escrever. Esse perodo, sem dvida,consolidou o relacionamento especial que se formou entre eles. A simbiose entre me e filhoadquiriria uma ressonncia dramtica anos mais tarde, enquanto mantinham seurelacionamento por meio de um rico fluxo de cartas em que abriam suas almas, e que durouat a morte de Celia, em 1965. De fato, ao chegar idade de 5 anos, Ernesto j comeara arevelar uma personalidade que espelhava a da me em muitos aspectos. Ambos gostavam decortejar o perigo, eram naturalmente rebeldes, decididos e teimosos. E desenvolviam forteslaos intuitivos com outras pessoas. quela altura, Ernesto j tinha seu genitor predileto, etambm parentes prediletos, como sua tia solteira, Beatriz, e a av paterna, Ana Isabel.Beatriz, sem filhos, tinha uma afeio especial por Ernesto e o mimava muito, mandando-lhepresentes. Uma das primeiras cartas de Ernesto, na qual diz a sua tia Beatriz que melhorara daasma, data de 1933. Obviamente escrita por um de seus pais, est assinada, com um rabiscotrabalhado de uma criana de 5 anos, por Tet. Esse era o nome carinhoso pelo qual Beatrizchamava Ernesto e fora adotado pela famlia como seu apelido.

  • A famlia Guevara na piscina do Hotel Sierras, em Alta Gracia, em 1936. A partir da esquerda: Ernesto, aos 8 oito anos;seu pai segurando sua irm, Celia; sua me com Ana Maria.

    A asma de Ernesto continuava a ser fonte de ansiedade. Desesperados por isolar as causasdo seu padecimento, seus pais anotavam suas atividades dirias, monitorando tudo, desde oteor de umidade e o tipo de roupa que usava at o que comia. No caderno de notas de seu pai, oregistro de um dos bons dias de Ernesto aos 10 anos, em novembro de 1938, o seguinte:Quarta-feira, 15: Manh seminublada, atmosfera seca. Ele acordou muito bem. Dormiu com ajanela aberta. No foi piscina. Come com bom apetite, do mesmo modo que nos diasanteriores. Est muito bem at as cinco da tarde. Trocaram suas roupas de cama, assim comoo enchimento dos travesseiros e do colcho, retiraram os carpetes e as cortinas do seu quarto,espanaram as paredes e expulsaram todos os bichos de estimao da casa e do jardim.

    Por fim, os Guevara entenderam que no havia um padro para a asma de Ernesto. Omximo que podiam fazer era encontrar maneiras de cont-la. Vendo que a condio pareciadiminuir depois de ele ter nadado, por exemplo, entraram para o clube de natao do HotelSierras. Estava permanentemente proibido de comer certos alimentos, como peixe, e ficavasubmetido a dietas rigorosas durante as crises. Demonstrava uma autodisciplina incomumenteforte aderindo a essas dietas, mas logo que os ataques cediam, ele se empanturrava e ficouconhecido por sua capacidade de devorar enormes quantidades de comida de uma s vez.

    Muitas vezes incapaz at de andar, e confinado cama por dias seguidos, Ernesto passavalongas horas solitrias lendo livros ou aprendendo a jogar xadrez com o pai. Porm, nosperodos sem asma, ficava compreensivelmente impaciente por testar seus limites fsicos. Foineste mbito, no terreno fsico, que sentiu pela primeira vez a necessidade de competir.Atirou-se aos esportes, jogando futebol, tnis de mesa e golfe. Aprendeu a andar a cavalo,atirava no estande de tiro local, nadava no Hotel Sierras ou nas piscinas naturais formadaspelas guas dos riachos do lugar, caminhava pelas colinas e participava de batalhas compedras entre as beligerantes barras.

    Contra a opinio do marido, Celia encorajava essas atividades ao ar livre, insistindo paraque deixassem o filho crescer to normalmente quanto possvel. Mas as consequncias svezes eram desastrosas, com Ernesto sendo carregado para casa pelos amigos, prostrado echiando. No entanto, esses episdios no o impediam de fazer exatamente a mesma coisa denovo, e isso tambm se tornou uma rotina sobre a qual seu pai perdeu totalmente o controle.

    Ernesto Guevara Lynch nunca foi capaz de disciplinar o filho mais velho, Celia nuncatentou. O resultado foi que o garoto ficou cada vez mais levado e desobediente. Para escapar

  • do castigo por alguma travessura, fugia pelos arbustos do campo, voltando apenas quando ostemores dos pais por sua segurana superavam a chateao deles. Carlos Figueroa, um amigocuja famlia tinha uma casa de veraneio mais abaixo na rua, afirmou que as fugas para o matoeram a maneira de Ernesto escapar das discusses dos pais, que Figueroa recorda comoterrveis.

    No est claro se a perturbao emocional causada por essas discusses contribuam paraprovocar os acessos de asma de Ernesto, mas tanto a famlia como os amigos concordam emachar que Celia e Ernesto Guevara Lynch comearam a ter brigas aos berros com regularidadeem Alta Gracia. Tinham um temperamento extremamente explosivo e so numerosas ashistrias de desavenas domsticas. No h dvida de que seus eternos problemas econmicoseram parte das causas do conflito. Na cabea do velho Ernesto, sua incapacidade paraencontrar trabalho se relacionava diretamente imprudncia de Celia e ao incidente denatao em San Isidro, que levou asma de seu filho e mudana para Alta Gracia. Mas averdadeira fonte da discrdia, segundo amigas ntimas de Celia, eram os casos de ErnestoGuevara Lynch com outras mulheres, um comportamento que, em um lugar pequeno comoAlta Gracia, deve ter sido impossvel ocultar. Como o divrcio ainda no era legal naArgentina, ou talvez por causa das crianas, os Guevara permaneceram juntos.

    Os dias de Ernestito correr em liberdade foram finalmente cortados quando as autoridadesde ensino de Alta Gracia visitaram seus pais e ordenaram-lhes que o mandassem para a escola.Ele j tinha quase 9 anos, e Celia no teve outra opo seno deix-lo ir. Graas ao que lheensinara, j sabia ler e escrever, ento foi capaz de pular a primeira srie e a primeira sriesuperior do sistema de escola primria da Argentina. Em maro de 1937, Ernesto entrou nasegunda srie da Escola San Martn. Era quase um ano mais velho do que seus colegas.

    As notas de Ernesto na terceira srie do ano letivo de 1938 so resumidas comosatisfatrias em seu boletim. Recebeu notas altas em Histria e mostrava uma melhoraconstante em Cincias Naturais, Leitura, Redao, Geografia, Geometria e Educao Moral eCvica, mas pouco interesse por Desenho, Educao Fsica, Msica e Dana. Seucomportamento fora classificado como bom no conjunto do ano, embora insuficiente noterceiro trimestre. Essa mudana coincide com uma sbita queda na frequncia. Depois defaltar apenas cerca de quatro dias nos dois primeiros trimestres, ficou fora da escola por 21dias durante o terceiro, ausncia causada provavelmente por um ataque de asma prolongado.

    Celia Guevara com os filhos em Alta Gracia, em 1937. A partir da esquerda, sua filha Celia, Roberto, Ernesto e Ana Mara.

  • Ernesto e seus amigos da barra (gangue de infncia) em Alta Gracia, em 1939 ou 1940. Ernesto o segundo a partir dadireita, de colete. Seu irmo mais novo, Roberto, o da extremidade direita, e sua irm, Ana Mara, a da extrema

    esquerda.

    Elba Rossi de Oviedo Zelaya, que era diretora da escola e sua professora na terceira srie,recorda-se dele como um menino inteligente e travesso, que no se destacava na classe, masexibia qualidades de liderana no ptio de recreio. Mais tarde, Che disse a sua segundaesposa, Aleida, que Elba Rossi era uma disciplinadora severa e sempre batia nele. Um dia,diante do seu castigo habitual, vingou-se dela colocando um pedao de tijolo dentro dosshorts. Quando ela lhe deu uma palmada, foi sua mo que doeu.

    Ernesto foi um incorrigvel exibicionista durante os anos de curso primrio. Para compensarsua enfermidade perceptvel ou talvez mesmo por uma inclinao pessoal, desenvolveu umapersonalidade extremamente competitiva, metendo-se em grandes travessuras que deixavamos adultos perplexos e impressionavam seus colegas. Seus antigos companheiros de classerecordam que ele bebia tinta de uma garrafa, comia giz durante a aula, trepava nas rvores doptio de recreio, pendurava-se pelas mos debaixo de uma ponte ferroviria, explorava agaleria de uma mina abandonada e brincava de toureiro com um carneiro irascvel. Em umaocasio, ele e seus companheiros de barra saram por Alta Gracia quebrando as luzes dospostes com suas atiradeiras. Uma outra vez, Ernesto e seu amigo Juan Mguez ajustaramcontas com um garoto de uma gangue rival, defecando sobre as teclas de marfim do piano decauda de seus pais. E houve ainda a ocasio gloriosa em que atirou rojes de festa junina pelajanela aberta da casa de um vizinho que dava um jantar formal, dispersando os convidados.

    As travessuras de Ernesto deram uma certa notoriedade local aos Guevara, mas eles tambmse faziam notar de outras maneiras. Bomia o termo mais usado para descrever sua casaalegre e indisciplinada. Em seu lar, observavam poucas convenes sociais. Os jovens davizinhana que chegavam na hora do ch ou do jantar eram convidados para ficar e comer, esempre havia bocas extras para alimentar mesa de refeies. As crianas Guevara faziamamigos indiscriminadamente. Brincavam com os filhos dos carregadores de tacos de golfe eoutras crianas cujos lares ficavam na baixa Alta Gracia.

    Contudo, era Celia madre que dava mais impresso de ser uma pessoa de pensamentoindependente. A diretora Elba Rossi se lembra de Celia estabelecer um recorde por muitasestreias entre as mulheres na comunidade socialmente estratificada. Ela dirigia um carro e

  • usava calas compridas, por exemplo. Outros mencionavam o fato de Celia fumar cigarroscomo um desafio frontal s normas sociais da poca.

    Celia se saa bem com esses gestos aparentemente radicais graas a sua posio social e assuas demonstraes de generosidade. Sempre levava seus filhos e os amigos deles escola eos buscava de volta no carro da famlia, um pesado conversvel Maxwell 1925, com um bancoretrtil atrs, que batizaram de La Catramina (A Geringona). Ela inaugurou a prtica de dar acada aluno na escola uma xcara de leite, custeando-a ela prpria, um costume depois adotadopelo conselho escolar local para garantir que as crianas mais pobres tivessem algum tipo denutrio durante o dia escolar.

    Ao contrrio da maioria dos vizinhos, os Guevara tinham opinies anticlericais. A me deErnesto Guevara Lynch era ateia e lhe dera uma educao mundana. As opinies de Celia,religiosamente educada, eram menos claras, e, durante toda a vida, ela manteve um gosto pelolado espiritual. Quando chegaram a Alta Gracia, Celia ia missa dominical levando os filhosconsigo, porm, segundo o marido, fazia isso pelo espetculo mais do que por algumresqucio de f religiosa.

    No entanto, apesar de todas as suas opinies libertrias, os Guevara compartilhavam de umacontradio entre a crena e a prtica com muitos outros catlicos no praticantes, jamaisabandonando por completo os rituais tradicionais que garantiam a aceitao na sociedadeconservadora da poca. Embora j no fossem igreja, batizaram seus filhos como catlicos.O padrinho de Ernestito era o rico Pedro Len Echage, por meio de quem Celia e ErnestoGuevara Lynch tinham se conhecido e que convencera Ernesto a buscar fortuna em Misiones.

    Porm, quando Ernesto entrou para a escola, Celia tinha parado de ir missa, e os Guevarapediram que os filhos fossem dispensados das aulas de religio. Roberto lembra-se de jogarfutebol depois das aulas com times de meninos formados pelos que acreditavam em Deus epelos que no acreditavam. Estes ltimos perdiam sempre porque eram menos numerosos.

    Embora raramente algum o visse estudando, os colegas de Ernesto em Alta Gracia eramunnimes em reconhecer sua rapidez de raciocnio na classe. No parecia ter um empenhocompetitivo por notas, e as suas eram geralmente medocres. Era um fenmeno que deixavaseu pai perplexo. Esse tema foi um refro constante durante os anos de formao de Ernesto.Parece que seu pai jamais entendeu o que fazia funcionar seu filho mais velho, comotambm nunca compreendeu inteiramente sua mulher, Celia. Para ele, Celia era imprudentede nascena e atrada pelo perigo, e a culpava de ter passado esses traos para o filho maisvelho. Ernesto Guevara Lynch, ao mesmo tempo, admitia que era excessivamente cauteloso,aflito e sempre preocupado com os perigos e riscos da vida. Sob certos aspectos, era o maismaternal do casal, enquanto Celia era cmplice e confidente do filho.

    Todos os amigos de Ernesto Guevara Lynch em Alta Gracia lembravam-se de seus acessosde fria, especialmente quando se tratava de alguma coisa que considerasse uma afronta a ummembro de sua famlia. Isso foi algo que ele passou para o filho mais velho. Conforme eleprprio escreveu, Ernestito ficava descontrolado de raiva ao sentir que fora repreendido oucastigado injustamente e entrava em frequentes brigas com seus rivais de barra. Nunca perdeuesse temperamento, mas quando chegou universidade, aprendeu a mant-lo sob controle,geralmente substituindo a ameaa de violncia fsica por uma lngua afiada. Partiu para aagresso fsica em raras ocasies.

    Embora fosse um homem inteligente, sempre houve uma grande distncia entre o velho

  • Ernesto e sua mulher e Ernestito, que tinham entre si muito mais afinidade intelectual. Aindaque lesse livros de aventura e de histria, e tivesse passado seu amor por essas obras paraErnestito, possua pouca pacincia ou disciplina acadmica. Celia, por outro lado, era umaleitora vida de fico, filosofia e poesia, e foi quem abriu a mente de seu filho para estasreas.

    Os traos da personalidade de Ernesto Guevara, que evoluiriam e amadureceriam nos anosseguintes assumindo propores lendrias no adulto, j estavam presentes no menino. Seudestemor fsico, sua inclinao para liderar os demais, sua teimosia, seu esprito competitivo esua autodisciplina se manifestavam claramente no jovem Guevarita de Alta Gracia.

    IIIEntre 1932 e 1935, o Paraguai e a Bolvia travaram um conflito sangrento e intermitente pelocontrole da rea desabitada e rida do chaco, compartilhada por ambos. Pelos jornais, ErnestoGuevara Lynch acompanhava com ateno a Guerra do Chaco e, em funo do tempo quepassara entre paraguaios em Misiones, ficou do lado do Paraguai. Em um certo momento,chegou mesmo a declarar que estava disposto a pegar em armas para ajudar a defender aquelepas. Contagiado pelo entusiasmo do pai, o filho mais velho comeou a acompanhar aevoluo da guerra. O velho Ernesto recordou mais tarde que, no levou muito tempo, oconflito passara a fazer parte das brincadeiras das crianas do lugar, com um gruporepresentando o papel dos paraguaios e o outro, o papel dos bolivianos.

    Mais tarde, Ernesto Guevara Lynch procurou retratar o interesse de seu filho por essa guerracomo tendo infludo na formao de sua conscincia poltica. Parece improvvel, pois o jovemErnesto tinha apenas 7 anos quando a guerra terminou. Mas o Che adulto se lembrava dapaixo do pai pelo conflito e, em um tom ao mesmo tempo afetuoso e sarcstico, contava aosamigos argentinos as ameaas bombsticas do pai de se juntar ao combate. Para o filho, issoresumia uma das verdades agridoces sobre seu pai, um homem bem-intencionado que passou avida inventando novos projetos, mas que raramente conseguiu fazer algo concreto.

    A Guerra Civil Espanhola foi provavelmente o primeiro evento poltico a se imporsignificativamente na conscincia de Ernesto Guevara. De fato, no havia como escapar a seusefeitos. A partir de 1938, conforme a guerra na Espanha pendia a favor dos fascistas deFranco, um nmero de republicanos espanhis refugiados comeou a chegar em Alta Gracia.Entre eles estavam as quatro crianas Gonzlez-Aguilar, que vieram com a me. O pai, JuanGonzlez-Aguilar, chefe naval de sade da Repblica, permanecera em seu cargo, mas sejuntou famlia depois da queda de Barcelona em janeiro de 1939. As crianas das duasfamlias tinham mais ou menos as mesmas idades, frequentavam a mesma escola e ficavamjuntas fora das aulas de religio. Durante algum tempo, os Guevara compartilharam sua casacom a irm mais velha de Celia, Carmen, e seus dois filhos, enquanto o pai, o poeta ejornalista comunista Cayetano Policho Crdova Iturburu, estava na Espanha cobrindo aguerra para o jornal Crtica, de Buenos Aires. Quando as cartas e remessas de Polichochegavam pelo correio, Carmen as lia em voz alta para o cl reunido, tornando o duro impactoda guerra mais real do que poderia fazer qualquer notcia de jornal.

    No incio dos anos 1930, pouco havia na poltica interna da Argentina que entusiasmasse osliberais Guevara. O pas fora governado por uma sucesso de regimes militares conservadores,em coligaes com as faces do tradicional Partido liberal, a Unio Cvica Radical, que separtira e naufragara em uma oposio ineficaz desde a derrubada do presidente Hiplito

  • Yrigoyen, em 1930. A guerra pela Repblica Espanhola, uma postura dramtica contra acrescente ameaa do fascismo internacional, era algo capaz de entusiasmar as pessoas.

    Ernesto Guevara Lynch ajudou a fundar em Alta Gracia o pequeno Comit de Ayuda a laRepblica, parte de uma rede nacional de solidariedade com a Espanha republicana, e fezamizade com os exilados espanhis recm-chegados. Admirava particularmente o generalJurado, que derrotara as tropas de Franco e seus aliados fascistas italianos na batalha porGuadalajara, e que agora tinha de se sustentar vendendo aplices de seguro de vida. O generalJurado jantava com os Guevara e os mantinha cativos com histrias de guerra. O jovemErnesto acompanhava a guerra marcando as posies dos exrcitos republicano e fascista combandeirinhas em um mapa. Segundo sua famlia, deu o nome de Negrina ao cachorro deestimao, um schnauzer-pinscher, porque era preto e em honra ao primeiro-ministro daRepblica, Juan Negrn.

    Quando Hitler invadiu a Polnia, em setembro de 1939, e a Segunda Guerra Mundialcomeou, os habitantes de Alta Gracia comearam a escolher seus lados. Ernesto GuevaraLynch dedicou suas energias Ao Argentina, um grupo de solidariedade pr-aliados.Alugou da famlia Lozada um pequeno escritrio, construdo na parte externa da muralha depedras da antiga misso jesuta, com vista para o lago Tajamar. Viajava pela provnciadiscursando em comcios e seguindo pistas sobre possveis infiltraes nazistas. Ele e seuscolegas temiam uma eventual invaso nazista na Argentina e monitoravam atividadessuspeitas da enorme comunidade alem de Crdoba. Ernesto, ento com 11 anos, se juntou ala jovem da Ao Argentina. Seu pai lembrou que todo o tempo livre de que dispunha, forado lazer e dos estudos, era dedicado a colaborar conosco.

    Em Crdoba, um dos principais alvos de preocupao era a colonizao alem no valeCalamuchita, perto de Alta Gracia. No final de 1939, depois de danificar navios de guerrabritnicos no Atlntico, o encouraado alemo Admiral Graf Spee foi perseguido at o rio daPrata, onde seu capito o afundou em guas prximas a Montevidu. Os oficiais e tripulantesdo navio ficaram presos em Crdoba. Ernesto Guevara Lynch recorda que os prisioneirosforam vistos realizando exerccios de treinamento militar com rplicas de rifles feitas demadeira e que caminhes carregados de armas vindos da Bolvia foram descobertos rumandopara o vale. Um hotel de propriedade alem, em uma outra cidade, era suspeito de darcobertura a uma rede de espies nazistas e de abrigar um radiotransmissor com o qual secomunicavam diretamente com Berlim.

    Alarmado com o que acreditava serem evidncias de uma florescente rede clandestinanazista em Crdoba, Ernesto Guevara Lynch e seus companheiros mandaram um relatriodetalhado para o quartel-general da Ao Argentina em Buenos Aires, esperando que fossemtomadas providncias imediatas pelo governo pr-aliado do presidente Roberto Ortiz. Noentanto, Ortiz estava doente e foi substitudo na prtica de suas funes por Ramn Castillo,vigorosamente pr-Eixo. Por essa razo, segundo Guevara Lynch, nenhuma medida concretafoi tomada contra a rede nazista.

    Durante toda a guerra, a posio ambgua da Argentina que se manteve oficialmenteneutra at a vspera da derrota da Alemanha, em 1945 devia-se tanto as suas preocupaeseconmicas como a ponderveis sentimentos pr-Eixo no seio de suas estruturas polticas emilitares. Tradicionalmente dependente da Europa como mercado para suas exportaes decarne, gros e outros produtos agrcolas, a Argentina estava devastada com o bloqueio nos

  • tempos de guerra. Em troca do apoio aos aliados, o governo Ortiz buscou garantias para seusexcedentes de exportao nos Estados Unidos, que forneceram a maioria dos bensmanufaturados para a Argentina. Mas Ortiz foi incapaz de conseguir o que os argentinosconsideravam um negcio justo e, durante o regime de Castillo, os ultranacionalistas olhavampara a Alemanha como um novo mercado em potencial para as exportaes da Argentina ecomo um fornecedor militar.

    Ernesto (sobre o para-choque dianteiro, o terceiro a partir da esquerda) com colegas. O nibus que os levava de AltaGracia para o Colgio Nacional Dean Funes, sua escola em Crdoba.

    Na verso de Ernesto Guevara Lynch sobre suas atividades em tempos de guerra, havia uminevitvel sentimento de Walter Mitty. Ansiava desesperadamente por uma vida de audcia eaventuras, mas estava destinado a passar a maior parte dela margem dos grandes eventos doseu tempo. Proclamara sua vontade de lutar pelo Paraguai, mas no tinha ido. A Guerra CivilEspanhola e a Segunda Guerra Mundial deram-lhe novas causas por que lutar, e mais tardeadotaria outras, mas, como sempre, ficaria do lado de fora. No fim, no seria lembrado poressas atividades, mas por seu papel como pai de Che Guevara.

    IVO jovem Ernesto Guevara tornava-se adolescente enquanto no exterior a guerra se desenrolavacom violncia e a poltica argentina ficava cada vez mais voltil. Embora seudesenvolvimento fsico fosse lento, pois continuou baixo para a idade e s teve um estirodepois dos 16 anos, era intelectualmente curioso, questionador e com tendncia a dar respostasmalcriadas aos mais velhos. Seus livros favoritos eram as histrias de aventura de EmilioSalgari, Jlio Verne e Alexandre Dumas.

    Em maro de 1942, pouco antes de completar 14 anos, Ernesto ingressou no segundosegmento do ensino fundamental, ou bachillerato. Como as escolas em Alta Gracia tinhamsomente o primeiro segmento, ele viajava de nibus todos os dias para Crdoba, a 40quilmetros de distncia, para estudar no Colgio Nacional Dean Fuentes, um dos melhores doensino pblico. Em uma manh, algum tirou uma fotografia de Ernesto sentado no para-choque dianteiro do nibus. Com um sorriso travesso para a cmera, usando blazer e gravata,mas ainda de calas curtas e meias at o joelho, est rodeado de estudantes mais velhos, todosde palet, gravata e calas compridas.

    Durante as frias de vero no incio de 1943, os Guevara mudaram-se para Crdoba. ErnestoGuevara Lynch encontrara um scio para uma empresa de construo. Como Ernesto tinha de

  • ir de nibus para a escola e sua irm, Celia, estava prestes a ingressar em uma escola parameninas em Crdoba, a mudana de Alta Gracia parecia uma escolha prtica.

  • 3O menino de muitos nomes

    IA mudana dos Guevara para Crdoba foi animada por uma breve melhora de sua situaoeconmica, mas tambm foi o comeo do fim de seus dias como uma famlia unida. Umatentativa de reconciliao de Ernesto e Celia resultou no nascimento, em maio de 1943, deJuan Martn, seu quinto e ltimo filho, que ganhou o nome do av materno. Porm, as tensesentre eles se agravaram, e, quando foram para Buenos Aires, quatro anos depois, o casamentoestaria liquidado.

    Segundo os amigos da famlia, como antes, o problema era Ernesto ser um mulherengoinveterado. O pai tinha a pretenso de ser um playboy, relembrou Tatiana Quiroga, umaamiga dos filhos dos Guevara. Mas era um playboy desregrado, porque, quando trabalhava eganhava dinheiro, gastava tudo (...) saindo com moas, comprando roupas, besteiras, nadaconcreto (...), e a famlia no recebia nada.

    O scio de Ernesto em Crdoba era um arquiteto excntrico conhecido como Marqus deArias, porque era muito alto e distante, com um ar aristocrtico. O Marqus aparecia com oscontratos de construo, geralmente de casas, e Ernesto supervisionava a edificao.Vivamos divinamente, e o dinheiro todo ia simplesmente embora. Eles jamais pensaram emtermos de investimentos, disse Celia, a irm mais velha de Che. Porm, antes que o apertochegasse novamente, Ernesto comprou um chal de campo nas colinas perto de Crdoba, emVilla Allende, e entrou para o exclusivo Lawn Tennis Club de Crdoba, onde seus filhosnadavam e aprendiam a jogar tnis. Os Guevara instalaram-se em sua nova casa alugada, dedois andares, no nmero 288 da calle Chile, perto do final da rua, onde ela se encontrava coma avenida Chacabuco, um bulevar ladeado de rvores bojudas e frondosas conhecidas comopalos borrachos (paineiras). Do outro lado da avenida ficavam as reas verdes do parqueSarmiento, com seus gramados aparados e bosques, o jardim zoolgico municipal, o LawnTennis Club e, mais adiante, a Universidade de Crdoba.

    A casa dos Guevara na calle Chile tinha a mesma atmosfera livre e aberta de que tantogostavam seus amigos em Alta Gracia. Dolores Moyano, uma nova amiga pertencente a umadas famlias mais ricas de Crdoba, achava tudo muito extico. A moblia mal podia ser vistapor causa dos livros e revistas empilhados por toda parte, e no havia horrios fixos para asrefeies, comiam apenas quando algum sentia fome. As crianas podiam entrar em casa debicicleta, atravessar a sala de estar e sair no quintal dos fundos.

    Dolores logo descobriu que os Guevara cobravam um preo por sua poltica de portasabertas. Quando percebiam qualquer pomposidade, pedantismo ou pose em um visitante, oprovocavam de modo impiedoso. O jovem Ernesto liderava esses ataques e, mais de uma vez,Dolores se viu como seu alvo. Sua me era igualmente provocadora e podia ser extremamenteteimosa. Seu pai, por outro lado, parecia imensamente simptico. Dolores lembrou-se delecomo um homem que transbordava calor e vitalidade. Falava com uma voz potente e era umpouco distrado, ela escreveu mais tarde. Ocasionalmente, mandava os filhos fazeremalguma coisa e, quando voltavam, j esquecera o que era.

  • IIA mudana para Crdoba coincidiu com o incio da adolescncia do jovem Ernesto. Elecomeou a se afirmar cada vez mais, questionando os valores dos pais em constante atrito edesenvolvendo os primeiros lampejos de sua prpria viso do mundo.

    Em seu primeiro ano no Colgio Nacional Dean Funes, Ernesto fez novos amigos. O maischegado era Toms Granado, o caula dos trs filhos de um imigrante espanhol que trabalhavacomo maquinista. Aos 14 anos, Ernesto ainda era pequeno para a idade, mas agora estavaesguio em vez de atarracado. Toms, maior e mais robusto, usava os cabelos elegantementepenteados para trs, mas Ernesto usava um corte fora de moda que lhe rendeu o apelido de ElPelao (Careca), um dos muitos que teve durante a adolescncia.

    Em pouco tempo, o irmo mais velho de Toms, Alberto, tambm entrou para o grupo.Aluno do primeiro ano de Bioqumica e Farmacologia na Universidade de Crdoba, com 20anos de idade, Alberto, ou Petiso (Baixinho), mal chegava a 1,52m de altura, tinha narizaquilino, peito armado e pernas tortas e grossas de jogador de futebol. Tambm possua bomhumor e um gosto por vinho, garotas, literatura e rgbi. Ele e Ernesto estavam separados pelaidade, mas ao longo do tempo a amizade ficou mais forte do que a que existia entre Ernesto eToms.

    Alberto Granado era o treinador do time local de rgbi, o Estudiantes, e Ernesto queria dequalquer jeito tentar jogar no time, embora Alberto tivesse dvidas sobre seu potencial. Aprimeira impresso no foi muito favorvel, Alberto recorda-se. Ele no era forte e tinhabraos muito finos. Mas decidiu dar uma chance ao garoto e aceitou-o para os treinos. Empouco tempo, o rapaz ofegante praticava com o Estudiantes duas vezes por semana.Conquistou a reputao de ser um atacante destemido, pois corria impetuosamente para ojogador que estava com a bola, berrando: Cuidado, a vai El Furibundo Serna! (Furibundosignifica furioso, e Serna era a abreviatura de seu sobrenome materno.) O grito de guerralevou Alberto a lhe dar um novo apelido, Fuser, enquanto Alberto tornou-se Mal, de miAlberto.

    Alberto Granado tinha um interesse especial por Ernesto. Ele notou que muitas vezes,enquanto o time esperava para treinar em campo, o garoto ficava sentado no cho, lendo, comas costas apoiadas em um poste de luz. Ernesto j lia Freud, gostava da poesia de Baudelaire elera Dumas, Verlaine e Mallarm, em francs, bem como a maioria dos romances de mileZola, os clssicos argentinos, como o pico Facundo, de Sarmiento, e o mais recente trabalhode William Faulkner e John Steinbeck. Sendo ele mesmo um vido leitor, Granado nocompreendia como um adolescente podia ler tanto. Ernesto explicou que comeara lendo paraocupar-se durante as crises de asma, quando seus pais o faziam ficar em casa. Quanto sualeitura em francs, era resultado da influncia de Celia. Ela o ensinara durante suas ausnciasna escola.

    Apesar de todos os novos amigos e do apoio que deles recebiam, Alta Gracia continuousendo querida para os Guevara, e a famlia frequentemente voltava l, s vezes alugandochals durante as frias. Ernesto podia manter suas amizades com Calica Ferrer, CarlosFigueroa e outros membros da sua antiga barra. Os Gonzlez-Aguilar tambm se mudarampara Crdoba e viviam em uma casa no muito longe da dos Guevara.

    A nova casa da famlia, na calle Chile, acabou por ter algumas desvantagens que no forampercebidas pelo velho Ernesto em seu entusiasmo inicial pela proximidade com o parque

  • Sarmiento e com o Lawn Tennis Club. O bairro Nueva Crdoba, construdo em uma colina quecomeava no centro da cidade, ainda estava em processo de urbanizao. Era uma confuso decasas residenciais rodeadas por terrenos baldios. Nesses terrenos e nos leitos secos doscrregos que passavam pela rea, pessoas pobres construram barracos. Uma dessas favelasficava exatamente em frente nova casa dos Guevara. Era habitada por personalidadescuriosas, entre elas um homem sem pernas que circulava em um carrinho de madeira puxadopor um grupo de seis vira-latas, que ele fazia andar estalando um comprido chicote.

    Nessa poca, Dolores Moyano, que se tornou amiga ntima de Ana Mara, irm caula deErnesto, era uma presena constante na casa dos Guevara. Moyano lembra que um de seuspassatempos era ficarem sentadas no meio-fio do lado seguro da rua e assistirem sandanas dos moradores da favela em frente. Havia uma mulher de preto, que amamentava seubeb debaixo de uma rvore paraso e cuspia catarro por cima de sua cabea. Outra lembranaera a de um menino raqutico de 12 anos, chamado Quico, que no tinha sobrancelhas nempestanas. Subornavam-no com balas para que lhes mostrasse sua estranha lngua branca.

    Embora estivessem em condies muito melhores do que as de seus vizinhos pobres, quemoravam em barracos de papelo e lata, os Guevara logo constataram que sua casa foraconstruda sobre alicerces instveis. Dentro de pouco tempo, comearam a aparecerrachaduras enormes nas paredes e, de sua cama noite, o velho Ernesto podia ver as estrelaspelas frestas do teto. No entanto, para um construtor, se mostrou extraordinariamentetranquilo quanto a possveis perigos. No quarto das crianas, onde aparecera outra rachadura,remediou a situao afastando as camas da parede para o caso de ela desabar. Achvamos acasa confortvel e no queramos nos mudar, ento resolvemos ficar o quanto pudssemos.

    Os agudos contrastes da vida urbana podem ter sido novos para os Guevara, mas eram cadavez mais comuns na Argentina e em toda a Amrica Latina. Desde o final do sculo XIX, asmudanas econmicas, a imigrao e a industrializao provocaram uma transformaoradical nas relaes entre a populao rural e a urbana, medida que camponeses pobrescomearam a migrar dos campos para as cidades em busca de trabalho e de melhorescondies de vida. Muitos deles acabavam nas favelas, ou villas miserias, que brotavam emCrdoba e em outras grandes cidades da Argentina. Em um espao de apenas cinquenta anos, ademografia da Argentina invertera-se completamente, passando de uma populao urbana de37% em 1895 para 63% em 1947. Durante esse mesmo perodo, a populao quadruplicou de 4milhes para 16 milhes. Apesar dessa transformao social contnua, Crdoba mantinha umplcido ar de provncia na dcada de 1940. Rodeada pelo pampa amarelado e interminvel,com seus horizontes interrompidos apenas pela cadeia azulada das serras, Crdoba aindaestava praticamente intocada pela industrializao e pelo boom da construo, que foirapidamente transformando Buenos Aires em uma metrpole moderna.

    Como local da primeira universidade do pas, fundada pelos jesutas, e com muitas igrejasantigas e construes coloniais, Crdoba ganhara a reputao de ser um centro de saber, e oscordobeses orgulhavam-se de sua herana cultural. O papel de destaque da cidade em matriade ensino fora consolidado em 1918, quando alunos e professores da Universidade de Crdoba,afiliados ao Partido Radical, encabearam o movimento de Reforma Universitria, quegarantiria a autonomia da universidade. O movimento espalhara-se de Crdoba para outrasuniversidades da Argentina e para grande parte da Amrica Latina. Dolores Moyano lembra-seda Crdoba da sua juventude como uma cidade de livrarias, procisses religiosas,

  • manifestaes de estudantes e desfiles militares; uma cidade amena, enfadonha, quaseletrgica na superfcie, mas fervilhante de tenses.

    Essas tenses vieram tona pouco depois que os Guevara chegaram. No dia 4 de junho de1943, em Buenos Aires, conspiradores militares se uniram e derrubaram o presidente Castillo,que designara como seu sucessor um homem provinciano, forte e abastado, com ligaes comos monoplios empresariais britnicos. As primeiras reaes ao golpe foram discretamentepositivas, tanto entre os liberais argentinos, que viam com desconfiana o governo pr-eixo deCastillo, como entre os nacionalistas, que temiam uma invaso crescente dos interesseseconmicos estrangeiros.

    Em apenas 48 horas, um lder surgira: o general Pedro Ramrez, ministro da Guerra,representando a faco ultranacionalista dos militares. Ele imediatamente adotou medidaspara silenciar qualquer oposio interna. Decretando estado de stio, seu governo adiou aseleies indefinidamente, dissolveu o Congresso, amordaou a imprensa, interveio nasuniversidades do pas e demitiu os membros do corpo docente que haviam protestado. No finaldo ano, em uma segunda onda de decretos, todos os partidos polticos foram dissolvidos, foidecretado o ensino religioso obrigatrio nas escolas e foram impostos controles ainda maisseveros sobre a imprensa. Em Crdoba, professores e estudantes tomaram as ruas em protesto.Seguiram-se prises e, em novembro de 1943, Alberto Granado e vrios outros estudantesforam encarcerados na penitenciria central de Crdoba, atrs das colunatas do antigo cabildoda cidade, na Plaza San Martn. L Granado recebia as visitas de seus irmos e de Ernesto, quelhe levavam comida e notcias do mundo exterior.

    As semanas se arrastaram, sem nenhum sinal de que os estudantes seriam processados oulibertados em breve. Um comit de presos clandestino conclamou os alunos das escolassecundrias de Crdoba a marcharem pelas ruas exigindo que os detidos fossem libertados.Alberto convidou Ernesto, ento com 15 anos, a se juntar a eles, mas ele se recusou.Marcharia, ele disse, somente se lhe dessem um revlver. E disse a Alberto que a marcha eraum gesto intil, que pouco adiantaria.

    No incio de 1944, depois de dois meses de deteno, Alberto Granado foi libertado. Apesarda recusa de Ernesto de participar da manifestao em seu favor, a amizade dos doispermaneceu intacta. luz de sua tendncia para estripulias arriscadas, a falta de disposio deErnesto para ajudar o amigo impressionante. Alm disso, dados sua extrema juventude e seuaparente desinteresse pela poltica argentina, sua postura de princpios parece duvidosa.Esse comportamento paradoxal de fazer declaraes que soavam radicais enquanto exibia umacompleta apatia em relao ao ativismo poltico foi uma constante durante a juventude deErnesto.

    IIIAinda desconhecida da maior parte das pessoas, uma figura-chave por trs das mudanaspolticas que ocorriam na Argentina era um obscuro coronel do Exrcito de rosto redondo enariz romano , Juan Domingo Pern. Seu nome logo seria muito familiar. Ao regressar deum posto na Itlia de Mussolini, onde se tornara admirador fervoroso do Il Duce, Pern fora,por um breve perodo, instrutor de tropa na provncia de Mendoza, antes de servir no quartel-general em Buenos Aires. Ali, atuou como a fora motriz por trs de um sombriodestacamento militar autodenominado Grupo de Oficiais Unidos, que desfechara o golpe dejunho de 1943.

  • Durante os trs anos seguintes, Pern fez articulaes polticas at chegar ao topo. Depoisdo golpe, tornou-se subsecretrio de Guerra, servindo sob o seu mentor, general EdelmiroFarrell. Quando Farrell assumiu a Vice-Presidncia, em outubro de 1943, Pern pediu econseguiu a Presidncia do Departamento Nacional do Trabalho. Esta logo se tornou sua basede poder. Em um ms, transformou o que parecia ser uma repartio obscura em umministrio, rebatizado de Departamento de Trabalho e Bem-Estar, e ficou subordinado apenasao presidente.

    Do gabinete de Pern comeou a sair uma ampla srie de decretos de reforma trabalhista.As medidas visavam a atrair os operrios destitudos de direitos, enquanto os gruposorganizados de trabalhadores vinculados aos partidos polticos tradicionais eram destrudos.Em pouco tempo, Pern conseguira deixar a fora de trabalho do pas sob o controle de suaautoridade centralizada. Comeava assim o fenmeno que seria conhecido como peronismo.Muito em breve, alteraria radicalmente o panorama poltico da Argentina.

    No final de 1943, com os Estados Unidos na guerra, a Alemanha nazista estava na defensivaem toda a Europa e no norte da frica, e Mussolini havia sido deposto na Itlia. Suspeitandode que o governo argentino e Pern em particular era um representante sutilmentedisfarado do Terceiro Reich na Amrica Latina, os Estados Unidos intensificaram sua pressopara que a Argentina abandonasse sua neutralidade oficial na guerra. Muitos argentinoscompartilhavam das suspeitas norte-americanas. Os apelos populistas subclasse social, emuma retrica que cheirava a fascismo, afastaram a classe mdia argentina, de esprito liberal.A ela se juntou a oligarquia tradicional, que via o status quo em perigo. A maioria das pessoasda classe social dos Guevara tornara-se virulentamente antiperonista, mas sua oposio noimpediu que Pern ficasse ainda mais poderoso.

    Em maro de 1944, Farrell assumiu a Presidncia. Pern era ministro da Guerra e, em julho,tambm assumiu como vice-presidente. No entanto, das trs posies de alto nvel, ele entodeclarou, a mais importante ainda era o cargo de secretrio do Departamento de Trabalho eBem-Estar. Toda a Argentina conhecia Pern.

    Ernesto Guevara Lynch continuava ativo na Ao Argentina, e ele e Celia tambm aderiramao Comit Pr-De Gaulle de Crdoba, uma rede de solidariedade destinada a ajudar aresistncia francesa na Frana ocupada pelos nazistas. Sem que soubessem, o jovem Ernestoretomara as atividades de caa aos nazistas que o pai deixara inacabada. Com um colega deescola, Osvaldo Bidinost Payer, regressou sorrateiramente pequena comunidade demontanha de La Cumbre, onde o grupo de seu pai vigiara um hotel suspeito de ser o quartel-general das operaes nazistas no interior da Argentina. O velho Ernesto advertira seu filho ano fuar por ali, alertando-o de que, dos dois investigadores do governo enviados para l,apenas um regressara, presumindo-se que o outro fora assassinado. Mas os meninos foramassim mesmo. Aproximaram-se do hotel noite. Por uma janela aberta, recordou Bidinostmais tarde, viram alguns homens ocupados em volta de uma mesa comprida, com umaporo de caixas de metal e outros objetos. Porm, antes que conseguissem ver mais algumacoisa, foram descobertos. Eles nos ouviram, algum saiu com lanternas e dispararam doistiros contra ns. Fomos embora e nunca mais voltamos.

    Apesar dessas escapadas, o engajamento de Ernesto em causas polticas ficou muito aqumde militncia ativa durante seus anos escolares. Ele e seus amigos, que incluam filhos derefugiados republicanos espanhis, como os Gonzlez-Aguilar, eram, como seus pais,

  • politicamente antifascistas e dados a discutir precocemente sobre o que realmenteaconteceu na Espanha. No entanto, tinham muito menos ideia dos fatos ou interesse pelosacontecimentos que se desenrolavam na Argentina nessa poca. Quando o jovem Ernestodefendia alguma opinio poltica, geralmente era uma provocao, destinada a chocar seuspais ou colegas. Por exemplo, quando houve rumores de que os militantes peronistas deCrdoba preparavam-se para apedrejar o jquei-clube local, um smbolo da conservadoraoligarquia latifundiria, Ernesto manifestou sua disposio de se juntar a eles. No meimportaria de jogar eu mesmo umas pedras contra o jquei-clube, alguns de seus amigosouviram-no dizer. Supuseram que isso era sinal de sentimentos pr-peronistas, mas eraigualmente possvel que estivesse apenas agindo como um adolescente violento.

    Quando o governo da Argentina finalmente rompeu relaes diplomticas com as potnciasdo Eixo, os pais de Ernesto exultaram. Mas Pepe Gonzlez-Aguilar, seu amigo mais novo,jamais vira Ernestito com tanta raiva como quando confrontou seus pais comemorando. Nopodia entender como ele, que sempre fora antinazista, no compartilhava da nossa felicidade,comenta. Posteriormente, Pepe deduziu que a raiva de Ernesto se devia ao fato de que adeciso no fora tomada por princpio, mas por causa da presso dos Estados Unidos, e elecompartilhou do sentimento de vergonha dos nacionalistas argentinos por seu pas havercedido aos norte-americanos. Porm, em setembro de 1944, quando as foras aliadas liberaramParis, Ernesto juntou-se multido que comemorava na Plaza San Martn, em Crdoba,acompanhado por vrios de seus amigos de colgio, os bolsos cheios de bilhas de metal paraserem jogadas sob os cascos dos cavalos da polcia montada chamada para manter a ordem.(Em reconhecimento por seus esforos pessoais, o velho Ernesto recebeu um certificadoassinado pelo prprio Charles de Gaulle agradecendo-lhe o apoio que dera ao povo da Franaquando houve necessidade. Guevara Lynch guardou o documento pelo resto da vida como umdos bens de que mais se orgulhava.)

    Apesar de algumas tentativas anteriores de ver algum indcio de ideais socialistas noErnesto Guevara adolescente, quase todos os seus colegas de colgio em Crdoba lembram-sedele como desinteressado por poltica. Para seu amigo Jos Mara Roque, naquela pocaErnesto no tinha um ideal poltico definido. Todos ns adorvamos discutir sobre poltica,mas nunca vi Guevara se envolver em qualquer sentido. Ernesto tambm no deixava que seuantifascismo interferisse em suas amizades. Um de seus colegas de classe era DomingoRigatusso, filho de um imigrante italiano pobre, que trabalhava depois das aulas vendendobalas aos frequentadores do cinema local. Rigatusso apoiava firmemente Mussolini na guerra,como fazia seu pai, e Ernesto referia-se a ele afetuosamente como um tano fascio, uma griaque significa fascista italiano.

    Ral Melivosky, filho de um professor universitrio judeu, recordou-se de haver pertencido,junto com Ernesto, a uma clula da Federao Estudantil Socialista (FES) por um curtoperodo em 1943, em uma poca em que a militante ala jovem da pr-nazista AlianaLibertadora Nacionalista estava intimidando os estudantes simpatizantes dos aliados.Melivosky, que era um ano mais novo que Ernesto e estava em seu primeiro ano na escola,ouvira falar dele antes de co