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BERNARDINA MARIA DE SOUSA LEAL CHEGAR À INFÂNCIA Rio de Janeiro 2008

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BERNARDINA MARIA DE SOUSA LEAL

CHEGAR À INFÂNCIA

Rio de Janeiro

2008

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BERNARDINA MARIA DE SOUSA LEAL

CHEGAR À INFÂNCIA

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor.

Orientador: Prof. Dr. Walter Omar Kohan

Rio de Janeiro

2008

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Leal, Bernardina Maria de Sousa

S

Chegar á infância / Bernardina Maria de Sousa Leal - Rio de Janeiro, RJ : [s.n], 2008.

299 f.

Orientador: Dr. Walter Omar Kohan Tese (Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bibliografia: f.

1. Infância. 2. Deleuze. 3. Guimarães Rosa. 4. Educação. I. Walter Omar Kohan. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

CDU

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BERNARDINA MARIA DE SOUSA LEAL

CHEGAR À INFÂNCIA Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor.

COMISSÃO EXAMINADORA

______________________________________

Prof. Dr. Walter Omar Kohan

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

______________________________________

Prof. Dr. David Kennedy

Montclair State University

______________________________________

Prof. Dr. Mário Bruno

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

______________________________________

Prof. Drª. Solange Jobim e Souza

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

______________________________________

Prof. Drª. Paula Ramos de Oliveira

Universidade Estadual Paulista

Rio de Janeiro, 11 de abril de 2008

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À Nana

e ao Léo,

pelas travessias entre infâncias e mortes

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Walter Omar Kohan, pela co-respondência, cooperação e co-

pensamento.

Aos meus pais, pelo singular apoio.

A todos aqueles que partilharam comigo traquinagens infantis em diferentes línguas,

na intensidade de distintos afetos: bambini, niños, children, amigos de infâncias.

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6

Do sentiendum ao cogitandum se

desenvolveu a violência daquilo que

força a pensar. Cada faculdade saiu

dos eixos.

Gilles Deleuze

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LEAL,Bernardina Maria de Sousa. Chegar à infância. 2008. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Esta tese, elaborada desde a perspectiva da Filosofia da Educação, assume um

caráter fronteiriço entre Educação, Filosofia e Literatura. A infância, foco deste

estudo, é investigada a partir da problematização das costumeiras acepções que o

termo incorpora no âmbito educativo, sob as quais subjazem os sentidos de falta,

carência e incompletude. Esse entendimento da infância é confrontado à idéia de

infância enquanto figura do novo, enquanto ato inaugural de criação. É assim que os

conceitos criados por Gilles Deleuze e a escrita literária de Guimarães Rosa

apresentam-se como referenciais teóricos basilares. Em Deleuze, os conceitos de

devir-criança, blocos de infância, máquina de expressão e literatura menor, entre

outros, fundamentam comentários críticos dos contos rosianos. Em Rosa, os contos

‘As margens da alegria’ e ‘A menina de lá’, ambos integrantes da obra Primeiras

Estórias, ilustram infâncias que inauguram os entendimentos aqui apresentados. A

tese da composição Infância e Morte emerge das imbricações entre os conceitos

investigados e aponta para implicações educacionais.

Palavras-chave: Infância. Deleuze. Guimarães Rosa. Educação.

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LEAL,Bernardina Maria de Sousa. Chegar à infância. 2008. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

Elaborated from the perspective of philosophy of education, this thesis assumes a

borderer character among education, philosophy and literature. Childhood, focused

on this study, is investigated under the questionings of the usual meaning implied in

the ordinary concept of childhood in educational contexts as lack, privation and

incompleteness. This understanding of childhood is confronted to the idea of

childhood as a figure of innovation, invention and creation. Thus, the concepts

created by Gilles Deleuze and the literary writings of Guimarães Rosa appear as the

basic theoretical references. In the works of Deleuze, the concepts child-becoming,

childhood blocks, expression machine and minor literature lay the foundation that

give support to critical comments on Rosa’s short stories. In Rosa’s literary pieces

called “As Margens da Alegria” e “A Menina de Lá”, both parts of a work titled

“Primeiras Estórias”, illustrate childhood as starting points for the different

understandings presented in this study. A thesis of a composition between childhood

and death emerges from the imbrication of the investigated concepts and points out

to educational implications.

Key-words: Childhood. Deleuze. Guimarães Rosa. Education.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO – CHEGAR À INFÂNCIA ..............................................................10

2 INTERSTÍCIOS DA INFÂNCIA .............................................................................29

2.1 ENTRE-TEMPOS DA INFÂNCIA ............................................................................................................ 29 2.1.1 Entre ausência e presença ...................................................................................................... 29 2.1.2 Entre conhecimento e saber .................................................................................................... 36

2.2 ENTRE-LUGARES DA INFÂNCIA........................................................................................................... 44 2.2.1 Entre infância e educação ....................................................................................................... 44 2.2.2 Entre infância e literatura ......................................................................................................... 74

3 PALAVRAS PRIMEVAS ........................................................................................92

3.1 CONTAR A INFÂNCIA .......................................................................................................................... 92 3.2 DEVIR-INFANTIL DE ROSA ................................................................................................................. 105

4 AS MARGENS DA INFÂNCIA.............................................................................130

4.1 POR CIMA DE ONDE?........................................................................................................................ 130 4.2 PODER VER ..................................................................................................................................... 143 4.3 SEM-TEMPO DE APRENDER............................................................................................................... 151 4.4 INSISTÊNCIA INFANTIL ...................................................................................................................... 166

5 A INFÂNCIA DE LÁ .............................................................................................184

5.1 INFÂNCIA DE NÃO LUGAR ................................................................................................................ 184 5.2 EMANAÇÃO DE INFÂNCIA................................................................................................................. 201

6 MORRER SEM PERDER A VIDA........................................................................208

6.1 ENTRE INFÂNCIA E MORTE ................................................................................................................ 208 6.2 INFÂNCIA, MORTE DE UM TIPO DE ADULTEZ....................................................................................... 224 6.3 INFÂNCIA, SEGUNDA MORTE ............................................................................................................. 238 6.4 INFÂNCIA, VOZ DA MORTE................................................................................................................. 246 6.5 INFÂNCIA, PARAGEM DISTANTE......................................................................................................... 255

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................264

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................290

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1 INTRODUÇÃO

E tentemos descer a essa região neutra em que se afunda, doravante entregue às palavras, aquele que, para escrever, caiu na ausência do tempo, ali onde é preciso morrer de uma morte sem fim. 1

Infância – algo comum e, ao mesmo tempo, singular. Enquanto etapa

constitutiva da vida humana, a infância apresenta-se comum, indubitavelmente

presente na vida dos seres humanos, caracteristicamente diferenciada de outros

estágios do desenvolvimento biológico, social e psíquico. Não parece difícil destacar

os traços identificadores da infância em qualquer tempo e lugar – imperiosamente os

traços biológicos determinam aspectos fisiológicos constitutivos do corpo humano e

demarcam instâncias do desenvolvimento material da corporeidade física de cada

novo ser humano que nasce. São estas as características que distinguem os

indivíduos, mas também os padronizam em faixas etárias, em classificações

tipológicas, em categorias de estudo. A raiz biológica do desenvolvimento humano

tem circunscrito a ambiência científica na qual a infância vem sendo investigada.

Este entendimento tem sido decisivo no trato com a infância. Mas a que estes

conhecimentos se referem, à infância ou à criança?

1 BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.317.

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A infância pode ser compreendida como a concepção ou representação que

os adultos fazem sobre o período inicial da vida humana. Infância também pode

designar o próprio período vivido pela criança enquanto sujeito que vive essa fase

da vida. Neste sentido, a idéia de infância revela muito mais uma relação social que

se estabelece entre os adultos e determinada faixa etária da vida. Já o termo criança

parece identificar uma faixa etária específica. Sendo assim, a infância torna-se uma

condição das crianças. Contudo, a distinção entre estas duas expressões não ocorre

de modo tão simples. Infância e criança não são palavras sobreponíveis. A palavra

infância também evoca um período da vida humana. Trata-se, na raiz de sua

significação, do período da palavra inarticulada, período que circunscreve a

apropriação de um sistema de comunicação composto por signos e sinais

destinados a produzir uma fala, a fazer-se ouvir. O termo infans – o que não fala –

em sua origem latina, designa aquele que acaba de ingressar no mundo ainda

inominado, tão novo quanto os modos de sua identificação.2 O vocábulo criança

parece indicar mais claramente uma realidade psicobiológica referenciada ao

indivíduo. No entanto, a metaforização dos termos estreita os espaços distintivos

dessas duas palavras.

Interessa-nos, neste estudo, investigar a infância não em sua constituição

capturável no âmbito institucional da família, da escola, do trabalho ou mesmo em

suas condições de existência referentes à etnia, gênero ou disponibilidades

cognitivas. Não queremos pensar a infância como um dever ser, senão como um

2 CASTELLO, Luís; MÁRSICO, Claudia. Oculto nas palavras: Dicionário etimológico de termos usuais na práxis docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 51-3.

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devir. Nossa opção por pensar o devir se dá pela força semântica que o termo

possui para ressaltar as formas do tornar-se, do vir a ser, ou seja, o modo

processual de alteração de um estado:

A significação do termo “devir” não é unívoca. É usado às vezes como sinônimo de ‘tornar-se’; às vezes é considerado o equivalente de ‘vir a ser’; às vezes é empregado para designar de um modo geral o mudar ou o mover-se (que, além disso, costumam ser expressos por meio do uso dos substantivos correspondentes: ‘mudança’ e ‘movimento’). Nessa multiplicidade de significações parece haver, contudo, um núcleo significativo invariável no vocábulo ‘devir’: é o que destaca o processo do ser, ou, se se quiser, o ser como processo.3

Concordamos que este vocábulo possua uma carga semântica maior que

outros termos tais como mudança ou movimento por destacar os modos do

acontecer. E, mais do que isso, o devir é por nós pensado no sentido em que o

emprega Deleuze – não como uma correspondência de relações – o que poderia

relacionar a idéia de devir a uma certa previsibilidade ou vinculação antecipável de

ocorrências – mas como uma variação imprevisível de elementos. Nas palavras de

Deleuze:

um devir não é uma correspondência de relações. Tampouco ele é uma semelhança, uma imitação, em última instância, uma identificação. [...] Devir não é progredir nem regredir segundo uma série [...] Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem "equivaler", nem "produzir" [...] Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. 4

3 MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 707. 4 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Vol. IV. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 18-9, p. 64.

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Se a infância foi inventada no decorrer do tempo como descrevem os estudos

historiográficos que a investigam, sentimo-nos provocados a pensá-la fora deste

continuum.5 Em vez de tentar apreendê-la por meio das significações atribuídas aos

diversos discursos que tentam defini-la histórica ou genealogicamente, intentamos

percebê-la na intensidade dos fluxos pelos quais ela emerge. Sabemos que à

criança não tem sido possível narrar sua própria existência. A infância da criança é

sempre reconstituída pelo adulto que organiza e dimensiona a narrativa. E é neste

processo de construção narrativa que os modos de dizer-se criança ou perceber-se

infantil geram campos semânticos muito distintos. Daí resulta nosso foco de estudo

na linguagem literária. Este é um tipo de linguagem que permite o trânsito de

sentidos e a multiplicidade de possibilidades interpretativas da infância fora do

âmbito da linearidade histórica e temporal.6 Vejamos como a infância tem sido

abordada como foco de uma certa vontade de saber.

5 Há uma tradição de estudos sobre a história da infância iniciada com Philippe Ariès em sua conhecida obra História Social da Criança e da Família, publicada originalmente em 1960. Referência recorrente nas investigações de historiadores e analistas culturais, este estudo marcou o início do questionamento da infância enquanto fenômeno natural e universal. A infância passou a ser compreendida como uma realidade social constituída historicamente. Ariès configura seus estudos em duas teses nas quais tenta, primeiro, interpretar as sociedades tradicionais e, depois, mostrar o novo lugar assumido pela criança e pela família nas sociedades industriais. O lugar marcante dos seus estudos foi reforçado pelas críticas e polêmicas desdobradas em obras posteriores de autores como Hunt (1972), Pollock (1983), De Mause (1995), Tucker (1995), entre outros. Entre os estudos de investigadores de língua portuguesa destacam-se os trabalhos de Jobim & Souza (1994), Kramer (1996, 2000), Del Priore (2000) e Sarmento (2004), entre outros. Para mais detalhadas referências, ver “Percurso pela história da infância”. In: CORAZZA, Sandra Mara. Infância & Educação: Era uma vez... quer que conte outra vez? Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. 6 Ao relacionar a literatura e a vida, Deleuze nos provoca a considerar a escrita um caso singular de devir: “Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento... Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida.” In: DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.11.

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Os conhecimentos organizados na forma de saberes científicos sobre a

infância a têm situado claramente num continuum temporal da vida pontualmente

delimitado, tecnicamente verificado e amplamente divulgado. A infância, nesse

entendimento, circunscreve uma etapa do desenvolvimento biológico da vida

humana compreendida entre 0 (zero) e 6 (seis) anos de idade ou, em termos mais

amplos, entre o nascimento e a puberdade. Deste modo a infância integra os

saberes constitutivos da ciência e demarca um campo de atividades onde estes

saberes são aplicados. Há profissionais especializados em diferentes áreas do saber

dedicados exclusivamente ao estudo da infância. Há também uma quantidade

crescente de categorias profissionais direcionadas ao atendimento das

necessidades infantis das mais diversas ordens, seja na forma de produtos

comercializados, de serviços prestados à infância, ou mesmo de atendimento aos

pais.

Delimitada por sua característica temporal cronologicamente medida por meio

de dias, semanas, meses e anos, a infância tem se tornado foco de inúmeras

investigações. Desde os primeiros sinais de vida, nas sucessivas fases do

desenvolvimento embrionário, ao longo de todo o processo de gestação até o

nascimento e muitos anos depois, a infância tem se tornado conhecida. Este período

é cuidadosamente marcado por meio de processos quantificadores que possibilitam

seu acompanhamento. O crescimento biológico da criança é vigiado por intermédio

de tabelas, gráficos e prontuários. Desde então, meses e anos de vida adquirem o

status definidor de descobertas, aprendizados, comportamentos e desenvolvimento

biofísico, afetivo, cognitivo, psíquico e social. Cada ano de vida, marcador da

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sucessiva e ordenada passagem do tempo é indicado pelo calendário no qual os

meses seguem-se uns aos outros. Esta regulação temporal orienta o ritmo, a

cadência e o rumo da vida humana. Em nossa cultura, principalmente durante os

primeiros anos de vida, a cada doze meses, ou seja, a cada ano, a data é celebrada

e festivamente comemorada. Seguidamente este ritual se repete e reforçadamente

impõe uma forma de entendimento sobre a temporalidade da vida. Na medida em

que os anos vão se passando, a infância vai se distanciando. Esta forma

unidirecional e inequívoca de entendimento fundamenta-se nas acepções de ordem,

medida e seqüência com as quais o tempo tem sido linearmente percebido. A

irreversibilidade do tempo torna-se um ditame. Inevitavelmente o tempo cronológico

inicia e finaliza etapas da vida. Majestosamente o tempo determina a infância

comum a todos os seres humanos.

Cronologicamente situada, a infância tem sido abordada desde os mais

diferentes enfoques. As pesquisas sócio-históricas buscam situá-la nas

contingências dos modos de organização familiar e nas relações de trabalho, ou

seja, na rede socialmente constituída de relações entre indivíduos e grupos ao longo

dos tempos ou em determinado tempo e lugar.7 As investigações antropológicas

problematizam os conhecimentos sobre a infância ao colocar em questão a

hegemonia do padrão “criança” ocidental e etnocêntrico e reforçam a dúvida quanto

7 No capítulo “As Idades da Vida” de História Social da Criança e da Família,, Philippe Ariès inicia seus estudos históricos destacando a terminologia utilizada na Idade Média para designar os diferentes períodos de vida, afirmando que a idade do homem era considerada uma categoria científica e que seu intuito, naquele estudo, era o de “perceber em que medida essa ciência se havia tornado familiar (…) e o que ela representava na vida quotidiana”. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara, 1981. p. 34.

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à idéia pretensamente consensuada de infância.8 Pesquisas na área da psicologia

do desenvolvimento ainda reforçam a idéia das etapas ou ciclos de vida, bem como

as diferentes formas de interação social na aprendizagem de acordo com as

diferentes idades de vida, mesmo que sejam confrontadas dentro da própria área de

investigação por outros modos de compreensão.9 A estrutura do trabalho

pedagógico escolar fundamenta-se na divisão por faixas etárias, na seqüência,

ordenação e hierarquia deste tipo de distinção. Esta distinção desdobra-se, por sua

vez, na forma de um dispositivo pedagógico que atua no conjunto das regras

hierárquicas que organizam a atividade pedagógica na forma de classificações,

enquadramentos e modalidades que incluem os docentes e demais profissionais na

área educacional.10

A quantidade de abordagens, a variedade de perspectivas e o rigor de muitos

destes estudos investigativos sobre a infância demonstram o interesse despertado

8 Este é o caso dos estudos realizados sobre a infância nas sociedades indígenas brasileiras nos quais se destacam as experiências da infância em tribos indígenas que ressaltam o “entendimento da infância como construção social que difere de cultura para cultura” e que se interrogam sobre como construir etnografias da infância com as crianças. SILVA, Aracy Lopes da; NUNES, Angela Macedo SILVA, Ana Vera Lopes da (Orgs.) Crianças Indígenas: Ensaios Antropológicos. São Paulo: Global, 2002. p. 26. 9 É o que pode ser ilustrado pelos embates teóricos travados no interior dos estudos acerca do desenvolvimento humano reunidos na forma de livro pelos conferencistas convidados e os organizadores do V Congresso Brasileiro de Psicologia do Desenvolvimento, organizado pelo Instituto de Psicologia – USP – São Paulo, entre 8 e 10 de setembro de 2005. Nesta publicação, Vera Vasconcellos em seu artigo “Uma visão prospectiva de desenvolvimento em que o presente está sempre recriando o passado” inicia um diálogo confrontante com uma proposta/resumo lançada anteriormente na qual a psicologia do desenvolvimento é claramente associada à idéia de uma sequência ordenada de estágios e de desenvolvimento previsível. In: COLINVAUX, Dominique; LEITE, Luci Banks; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco (Orgs.). Psicologia do Desenvolvimento: reflexões e práticas atuais. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 64. 10 Ver Resolução CNE/CEB n. º 3/2005 – MEC, que define normas nacionais para a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos de duração e organiza as etapas de ensino conforme as faixas etárias previstas e a duração do ensino antecipadas. Ver também BERNSTEIN, Basil. A Estruturação do Discurso Pedagógico: classe, códigos e controle. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

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pelo tema. Por vezes mais, outras vezes menos marcadamente, tais abordagens

remetem-se aos marcadores temporais da infância. Seja por meio de ritos de

passagem, seja na inserção social de papéis desempenhados, na incorporação de

gestos, atitudes e comportamentos, ou mesmo no desenvolvimento de habilidades

cognitivas, a infância não deixa de ser percebida enquanto parte constitutiva de um

todo. Uma etapa, um período, uma fração de tempo identificada e medida, descrita e

acompanhada, testada, verificada. Isto tem sido a infância.

O pressuposto desenvolvimento diacrônico do ser humano sobre o qual os

diferentes estudos se alicerçam, independentemente da área do saber ao qual se

referem, parece inibir qualquer tipo de questionamento radical quanto à

temporalidade da infância. Subjaz a estas investigações uma perspectiva linear,

progressiva, sem desvios ou complicações, sem receios, sem retorno, concomitância

ou entrecruzamentos. A simultaneidade com outros períodos, com diferentes etapas,

é impossibilitada pela condição ordenadora e seqüencial da temporalidade

progressiva diacronicamente determinada. O desenvolvimento humano, pessoal ou

coletivo parece desdobrar-se logicamente de um sistema cumulativo de

procedimentos, atitudes, valores e diferentes tipos de crescimento: físico, cognitivo,

afetivo, sócio-cultural, econômico etc. Tanto a concepção de desenvolvimento como

a asserção de qualquer tipo de crescimento denotam, antecipadamente, o caráter

progressivo, linear e cumulativo que a passagem do tempo representa nas distintas

abordagens que a infância recebe. Estes modos de entendimento possibilitam a

captura da infância e sua inserção numa série de saberes acumulados legitimados

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pela ciência e socializados pelas instituições sociais, dentre as quais, de forma

principal, a escola.

O que se intenta neste trabalho investigativo é, contudo, uma aproximação da

infância naquilo que nela ainda resiste de enigmático. Em uma atitude impertinente

de tentar romper com os esquemas interpretativos que julgam saber tudo a respeito

da infância e dos modos de alcançá-la, propor diferentes possibilidades de ler, dizer

e escutar a infância. Selecionar entre o que se diz e o que não se diz da infância,

aquilo que é significativo para a produção de novos dizeres. Daí a necessidade de

traçar caminhos investigativos no interior de uma linguagem para além de um

conhecimento estritamente técnico e linear. Intenta-se evitar, deste modo, o tom

apropriador da pesquisa técnico-científica em favor de uma investigação mais

poética, móvel e flexível, não por isso menos rigorosa e consistente.

O objeto de investigação deste estudo é a infância, porém o recorte que nos

interessa é a experiência da infância, a infância como figura do novo, como

resistência ao que já está estabelecido. Trata-se, em primeiro lugar, de elaborar uma

imagem conceitual da infância que permita pensá-la para além da cronologia, desde

a lógica da experiência e do acontecimento; a seguir, importa buscar imagens

literárias da infância que a abordem enquanto experiência, que a valorizem

enquanto acontecimento. É neste sentido que queremos nos ocupar da infância

inspirados por personagens criados por Guimarães Rosa. Importa-nos abordá-los na

condição de personagens conceituais, em termos deleuzeanos. Ao tratar da filosofia

como uma arte de criar conceitos, Deleuze destaca a força contida num encontro

contingente com algo que nos impele a pensar. Este pensar, intenso e móvel,

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carece, por conseguinte, de personagens que configurem uma melhor definição dos

conceitos que serão elaborados. Assim sendo, os personagens conceituais

possuem, para Deleuze, existências fluidas e colocam-se entre o conceito e o plano

pré-conceitual. Eles “operam movimentos que descrevem o plano de imanência do

autor e intervém na própria criação de seus conceitos”11. É deste modo que

personagens tão marcantes na história da filosofia como o “amigo” da sabedoria que

configura o filósofo contribuem para uma significativa identificação do conceito de

filosofia. No caso da obra de Guimarães Rosa, sobressaem as figuras literárias do

rio, das margens, da travessia, do menino e da menina. É com estes personagens

conceituais rosianos que intentamos chegar a uma infância. Contudo, alerta-nos

Deleuze: “o personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o

contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e

de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua

filosofia”.12

Não se trata, portanto, de uma mera personificação, símbolo ou alegoria de

uma idéia a configurar-se, senão de algo que existe fluidamente, que devém no

pensar. É deste modo que os personagens infantis criados por Guimarães Rosa,

além de ilustrar o que se pensa acerca da infância na forma de personagens

conceituais, arrastam os conceitos para um plano de experimentações corpóreas

simultaneamente sensoriais e intelectivas. Partimos do pressuposto de que a

11 “Os personagens conceituais”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed.34, 1992, p. 85. 12 Idem, p. 86.

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linguagem literária, dada sua característica polissêmica, apresenta-se de forma mais

harmônica com este tipo de entendimento da infância. Afinal, não queremos

acrescentar às informações já produzidas a respeito da infância, outros dados, mas

apreciá-la em sua dimensão poética e, quem sabe, provocar a emersão de novos

sentidos no campo educacional quanto aos processos de aprendizagem e ensino.

Quem sabe uma nova configuração da infância possa ajudar a pensar novas

experiências de aprendizagem.

O conflito entre os sentidos do termo “experiência” e a idéia de acontecimento

da infância por um lado e, por outro, o pensamento hierarquizado, ordenador e

disciplinar das instituições formais de ensino é inevitável. É a tensão gerada por este

confronto que nos conduz a uma gama de questões que, por sua vez, direcionam

este trajeto investigativo. Importa-nos pensar em que medida investigações

filosóficas podem contribuir para a formulação de novas concepções de infância nos

ambientes educacionais; Quais são as configurações literárias da infância que

acompanham os movimentos conceituais de sua re-territorialização13; Como os

saberes sobre a infância relacionam-se com a infância e mesmo se é possível, com

a literatura, propiciar mais intimidade com a infância nos espaços educativos; Quais

são as brechas e os interstícios presentes na estruturação do discurso pedagógico

sobre a infância que abrem espaços para a superação do didatismo e a maneira

modelar de dizer a infância; Pensar uma figuração do ato de educar que, inspirada

em escritas literárias, possa inaugurar sua própria infância; Por fim, identificar, nos

13 Tomo este termo de Deleuze. A re-territorialização comporta um movimento de sair de um território e se re-situar em outro; ou seja, significa um deslocamento territorial.

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contos escritos por Guimarães Rosa aqui selecionados, aspectos referenciais para

novas maneiras de ver, ouvir, sentir, ler e, portanto, viver a infância.

Ao traçar um campo investigativo no interior do qual respostas a estas

indagações emergem, a infância não é analisada a partir do enfrentamento teórico

de diferentes autores sobre o tema. Tenta-se, antes, de estar com a infância, ouvi-la,

vê-la, aprender com ela por meio de figuras literárias criadoras de um campo

imagético próprio. O intuito é perceber a infância na singularidade das experiências

apresentadas por Rosa em seus escritos literários. Parte do referencial teórico que

fornece suporte às idéias aqui apresentadas resulta de um percurso investigativo

sobre as possibilidades educativas da filosofia em sua aproximação com crianças e

jovens. Por conseguinte, investigações sobre as formas constitutivas do campo

pedagógico, das culturas e práticas escolares, dos seus tempos e espaços, de seus

aspectos restritivos e delimitações terminológicas são apresentadas a fim de se

elucidar os tipos de associação existentes entre criança e aluno, adulto e professor,

ensino e aprendizagem. Ao problematizar essas costumeiras associações partimos

em busca de novas concepções de infância cuja força expressiva, parece-nos,

habita nos textos literários aqui expostos.

Enfim, intentamos alcançar, por meio da singularidade no uso da linguagem

que Guimarães Rosa realiza, figuras literárias da infância capazes de suscitar um

repensar radical e pueril nos modos de entendê-la. A palavra, enquanto elemento

material da linguagem literária, adquire significado e sentido no interior de uma frase

significante. Seu uso concreto é que garante significado e sentido. Assim sendo,

tanto no domínio do pensamento como da linguagem há a decisiva interferência de

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quem elabora a linguagem, de quem a profere, de quem a articula de modo a fazê-la

gerar significados e sentidos. É sob este ponto de vista que nos interessa

especialmente a palavra rosiana.

Os aportes filosóficos que fundamentam este trabalho de pesquisa

condensam-se nas investigações teóricas de Gilles Deleuze sobre o próprio sentido

da tarefa filosófica, na sua compreensão do significado do aprender, bem como no

tratamento dispensado pelo autor ao estudo da escrita de textos literários. Não se

trata, contudo, de retomar uma reflexão sobre a infância já realizada por Deleuze,

mas de pensar a possibilidade da criação filosófica de outro entendimento da

infância inspirada pelo vigor de suas idéias. Em Michel Foucault nos embasamos

para investigar certa dimensão dos processos de subjetivação da infância e da

adultez nas relações pedagógicas e também para identificar as ordens de verdades

e domínios do saber nos quais a infância tem estado inserida. Nele também nos

apoiamos a fim de destacar, na linguagem literária, uma alternativa aos modos

ordinários de entendimento da vida. Giorgio Agamben, em sua investigação

inspirada em W. Benjamin sobre a destruição da experiência, nos fornece um

instigante estudo sobre a diferença entre língua e fala e um entendimento da

infância como experiência de linguagem. Seu estudo fundamenta nossa

investigação a respeito da infância enquanto experiência. Sobre o conceito de

experiência também nos referenciam os trabalhos de Jorge Larrosa relativos à

experiência da leitura em seu aspecto formativo. Da obra de Jacques Ranciére,

destacamos as idéias relativas a uma ordem explicadora que estaria a colocar em

funcionamento uma série de dispositivos capazes de organizar a estrutura

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considerada necessária para a aprendizagem e os modos de organização das

práticas pedagógicas escolares. No âmbito da filosofia da educação, nos apoiamos

na arqueologia da infância que Sandra Corazza realiza ao identificar sua história, a

invenção, o apogeu e o desaparecimento da infância. Maurice Blanchot explora o

espaço literário e nos provoca a pensar o espaço da infância desde a arte e a

literatura. E é neste contexto teórico que recorremos a Guimarães Rosa como fonte

inspiradora de figuras literárias da infância que se aproximam das concepções de

infância abordadas pelos autores citados.

A intertextualidade destacada entre filosofia, educação e literatura se dá pelo

entendimento da palavra como manifestação do que nos faz o que somos. Neste

sentido, as formas de dizer a infância dizem muito sobre nós mesmos, sobre nossos

entendimentos, percepções e valores. Na intensidade de cada experiência de

infância vivida e dita, talvez resida um aspecto comum da experiência humana a ser

compartilhado. O aprendizado do ser humano não parece restringir-se a qualquer

área do saber. Tampouco parece caber apenas nos moldes da ciência e da

tecnologia. Queremos chamar a atenção para um aprendizado da infância que pode

ser alcançado pelo foco das artes, particularmente da arte literária.

A arte literária trabalha melhor com a independência da palavra em relação ao

vocabulário ou à gramática. A força semântica da palavra literária, sua capacidade

de livrar-se, de depreender-se dos limites assemelha-se ao ato infantil de inaugurar

sentidos. Ela arranca suspiros que nem sempre são suaves, mas que, por vezes,

violentam a comodidade do dito. Esta força da palavra literária que não se deixa

aprisionar no âmbito do discurso é a mesma que faz com que ela flua em busca de

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outros sentidos e corpos para encarnar. Com esta palavra a infância se expressa

como algo que não sabemos, que escapa a nossas verdades, que se reveste de

novos sentidos a cada vez que é pronunciada. Sua polissemia, suas múltiplas

possibilidades interpretativas, faz com que a infância seja, a uma só vez,

multifacetada e única para quem a experiencia. Trata-se, portanto, de uma vivência

singular e íntima, própria de cada sujeito. Longe de parecer-se com uma categoria

ou classificação, fora de qualquer demarcação teórica de cunho biopsíquico, a

infância pode ser entendida como uma experiência.14

Enquanto experiência, a infância tem, na memória, um lugar privilegiado de

ocorrências. As narrativas infantis mostram-se repletas de signos engendradores de

sentidos à espera de interpretações. É como se imagens, cheiros e sons, reunidos

em algum canto de nossas vidas, aguardassem o que violentamente se dará na

forma de acontecimento. Abruptamente o acontecimento infantil provoca a

descoberta tardia daquilo que já sabíamos intuitivamente, sem que o tivéssemos

explicitado. A memória nos faz, por conseguinte, aprender. Isto não significa,

contudo, que aprendemos com a infância aquilo que resgatamos das memórias de

criança. Mas que podemos pensar o que significa uma infância na vida de cada um

de nós e agir como se fôssemos crianças na dimensão infantil de descoberta do

14 Tomamos de Jorge Larrosa o entendimento do termo “experiência” tal como ele o expressa no trecho: “Para entender la categoría de experiencia hay que remontarse a los tiempos anteriores a la ciencia moderna (con su específica definición del conocimiento) y a la sociedad mercantil (donde se constituyó la definición moderna de la vida). Durante siglos el saber humano ha sido entendido como un páthei máthos, como un apredizage en y por el padecer, en y por aquello que a uno le pasa. Ese es el saber de experiencia: el que se adquiere el modo como uno va respondiendo a lo que va pasando a lo largo de la vida y el que va conformando lo que uno es. Ex-per-ientia significa salir hacia afuera y pasar a través”. In LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. Barcelona: Laertes, 1998, p. 23.

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mundo. Aprendemos, assim, quando impregnamos de sentidos os signos aos quais

a memória nos remete. Neste sentido estamos sempre a aprender com a infância

desde que ela se apresente para nós como uma experiência a ser atravessada.

A memória, mais do que reconstituição exata de fatos constitui-se, neste

caso, o meio pelo qual a aprendizagem da infância se faz possível. Inicialmente de

modo intenso e enigmático dado o efeito imediato dos signos que a evocam e, mais

tarde, por força de um elaborado esforço do pensamento, a infância torna-se

apreensível. “Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar, que nos

rouba a paz”, afirma Deleuze15. E não é isso mesmo o que nos ocorre? Por quanto

tempo permanecem em nós memórias auditivas, olfativas ou mesmo sensações

indeléveis, aparentemente sem-sentido, até sermos impelidos a decifrar todos esses

signos?

Aprender com a infância. Resgatar, na infância, o que ela tem a nos ensinar.

Tornar parte do aprendizado adulto a experiência da infância. Este é um exercício

que exige, além do enorme esforço de busca de sentidos, o desprendimento da

concepção arraigada, determinante e cronológica do tempo. Aprender, neste

sentido, não resulta do ensinar, não acontece posteriormente a um conteúdo

explicado por outro, mas relaciona-se a algo anteriormente conquistado, embora não

sabido. Cabe-nos retornar, voltar ao já vivido, a tudo aquilo que, retido em nós,

distante daquilo que nossos esquemas interpretativos transforma em saber, aguarda

ser descoberto. Contudo, para que algo possa ser encontrado, talvez seja preciso

15 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitário, 2003, p. 14.

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mais do que busca, disposição e sensibilidade aguçada. Parece ser preciso que nos

façamos sensíveis aos apelos dos signos que a infância insiste em nos enviar.

A infância enquanto algo que resiste, algo que insiste em habitar-nos, exige

que aprendamos com ela. Que a deixemos acontecer. Que preparemo-nos para o

seu encontro. Calma e pacientemente, que atentemo-nos ao seu devir. Encontrar o

que não se sabe, ou mesmo o que já existia em nós, significa romper com a

linearidade do tempo e movimentar-se nos diversos tempos do processo de

aprendizado. A infância assim o exige. Ela não se submete a demarcações espaço-

temporais. Não se restringe a uma etapa, um período de vida ou uma categoria

comportamental. A infância pode ser uma experiência. E, se alcançada, uma

experiência de aprendizagem.

O infantil foge, nesta perspectiva, à ordenação lógica que tem delimitado suas

significações. Sem lugar privilegiado, sem momentos previsíveis de ocorrência, sem

as antecipações próprias de um ou outro saber, a infância pode ser pensada em

uma instância única. Não hierarquizada, desordenada, misturada a outras linhas do

tempo, a outros espaços e diferentes modos de ser, a infância nos leva a novos

modos de compreensão das coisas. Enquanto acontecimento não antecipável,

imprevisível e incontrolável, a infância não se atrela a concepção etária do termo

criança, nem com ele se confunde. Não se trata de um estado de coisas, nem de

conceitos, tampouco se refere a um conjunto de características.

A infância enquanto experiência acontece, nos acontece. Impele-nos a

decifrá-la. Obriga-nos a aprender o que não foi ensinado. Força-nos a reconhecer

que ainda não sabemos, que ainda não pensamos o que pode ser pensado. A

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infância irrompe. E, como surge abruptamente, nos desconcerta, nos deixa sem

palavras. A infância coloca em questão nossos conhecimentos, nossa necessidade

de ordenação e controle, o discurso construído a seu respeito. O aparente sem-

sentido das atitudes infantis exige que busquemos uma nova forma de perceber até

mesmo os sentidos já dados à infância e inventar outros. Talvez estejamos por

demais habituados a localizar os sentidos em lugares e espaços antecipáveis. A

infância pode nos ajudar a aprender novos modos de buscar entendê-la.

A tensão entre o sentido da experiência, o acontecimento da infância e a

organização linearmente ordenada e disciplinar das instituições formais de ensino é

inevitável. Como dissociar a infância dos conceitos gerais que a identificam,

categorizam, sistematizam e explicam? Como desatrelar a infância dos discursos

afirmativos já consagrados ao seu respeito? Não será por meio de novas

metodologias de trabalho didático ou pedagógico, supomos. Tampouco pelo

acercamento teórico determinante de novos conhecimentos sobre a infância.

Parece-nos mais provável que seja por meio da disposição em tornarmo-nos mais

atentos aos signos infantis incessantemente lançados. Intrigantemente, eles não

parecem estar localizados nos espaços pré-determinados para a criança. Há que se

lembrar que a infância é sem-tempo e sem-lugar e, portanto, não se evidencia onde

e quando nos acostumamos a procurá-la. Nossa dificuldade em encontrar a infância

parece residir em querermos situá-la distintamente longe da adultez, da velhice ou

de qualquer outra categoria ordenadora da vida humana. É como se precisássemos

que ela se apresentasse fisicamente diferenciada, sob pena de não a

reconhecermos. E se a infância estiver misturada em tudo? E se for imperceptível

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aos demarcadores utilizados pela pedagogia, psicologia e outros tantos saberes

para distingui-la? E se a infância for alcançável apenas por meio da nossa

capacidade de aliar o sentir e o pensar e não pela capacidade de construir um

conhecimento que exige dissociar um do outro? Pensar a infância de outro modo

seria a chance de encontrá-la também de outro modo. Experimentar a infância é a

experiência de pensar a infância já existente de modo novo, infantil.

Pensar. Experienciar o pensar. Propiciar experiências do pensar. Esta parece

ser a condição para que as instituições educativas possibilitem o entendimento da

infância como experiência. Esta é a chance de que processos educativos aprendam,

com a infância, a buscá-la. A infância parece acontecer corriqueira e cotidianamente

nos espaços pedagógicos. Sem modelos, sem atributos, despojadamente, a infância

se dá próxima a educadores desatentos. Despercebida, a infância passa. Enquanto

isso, do lado de fora, pais, pedagogos, psicólogos e cientistas sociais afirmam

possuir mais e melhores métodos de conhecê-la. Alheia a poses adultas e

sabedoras, a infância parece levemente passar.

Para se chegar à infância talvez seja necessário saber a senha – uma senha

intransferível, irrepetível, única a cada acesso. Uma senha sem números mas com

as letras da atenção. Há que sabê-la de cor, de coração. Não adianta fazer

anotações ou solicitar ajuda. É preciso incorporá-la, senti-la dentro, deixá-la

acontecer.

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2 INTERSTÍCIOS DA INFÂNCIA

A única maneira de sair dos dualismos, estar - entre, passar entre, intermezzo, é (...) não parando de devir16

2.1 ENTRE-TEMPOS DA INFÂNCIA

2.1.1 Entre ausência e presença

A infância, marco inicial da vida humana, período principiador de saberes,

metáfora da inauguração de um processo de aprendizagem e ensino exige, por força

destes sentidos que abarca, uma investigação cuidadosa sobre o tempo. Início,

princípio, inauguração, aprendizagem e ensino são, afinal, formas substantivas de

demarcação temporal. Tempo e infância imbricam-se e, inseridos em nossos

esquemas interpretativos da realidade, passam a consubstanciar imagens de nossa

compreensão.

Nossa compreensão, por sua vez, altera-se no próprio tempo de sua

elaboração, nos tempos diversos que a possibilitam, no exercício do pensar que

fazemos e nos afetos que acompanham nossas formas de pensar. Daí tempo e

infância serem compreendidos de diferentes formas ao longo de uma cronologia que

os saberes científicos legitimaram como conhecimento histórico. Por conseguinte,

16 Deleuze, em referência à escrita de Virgínia Woolf: A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre, intermezzo, é o que Virgínia Woolf viveu com todas suas forças, em toda sua obra, não parando de devir. P. 69

In: DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 69.

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instaura-se a necessidade e, ao mesmo tempo, a dificuldade em situarmos a infância

que intentamos investigar.

As diferentes concepções que o termo infância incorpora ultrapassam o

sentido de um período da vida humana inaugurado no nascimento e prolongado até

a puberdade, alcançando sentidos figurais diversos que convergem para a idéia de

um período inicial de existência. A infância poderia então ser concebida como o

prólogo da vida humana, no sentido em que marca o seu início; uma etapa a ser

seguida por outras, a ela posteriores, dela derivadas. Considerada em seus

diferentes aspectos, poderia ser abordada do ponto de vista fisiológico a partir de

mecanismos peculiares oriundos de exigências biológicas próprias. Sob o olhar

psicológico poderia ser analisada em subordinação às leis do pensar, do sentir, do

interpretar e do agir. Enquanto corpo social, também poderia ser compreendida no

âmbito da vida grupal, em conformidade a ela. Finalmente, poderia ser

problematizada através de um processo filosófico que rigorosamente a investigasse.

Cada uma destas abordagens interpretativas avaliaria a infância de maneira distinta,

mas parece improvável que qualquer uma delas se opusesse à dimensão

principiadora na qual ela se insere.

Concepções costumeiras sobre o início identificam-no com falta de

experiência, com necessidade de ajuda, com aquilo do qual não se pode muito

esperar. Há também a associação com algo destituído de maior potencialidade, com

o desencadeamento de uma seqüência previamente determinada, com a parte de

um todo já delineado. Há ainda uma conotação de algo do qual não se espera mais

que o cumprimento de um determinado papel. A estas concepções de início a

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infância também é associada. Afirma-se que a criança carece de experiência, que

necessita do auxílio adulto, que não se deve sobre ela criar expectativas grandiosas,

que dela não se pode exigir mais do que seu papel permita realizar. Há também

quem considere a infância um período de ausência de responsabilidades, de falta de

autonomia, de não-seriedade. Há ainda quem julgue a criança incapaz de

compreender ou fazer-se compreensível pela não-incorporação de um repertório

lingüístico considerado apropriado, como se só se pudesse falar com uma única

linguagem. Quantas vezes a criança é recriminada por perguntar insistentemente,

como se a pergunta denunciasse apenas a falta do saber.

Falta, incompletude e carência são idéias comumente associadas ao início

que a infância traz consigo. Mas este valor negativo agregado à idéia de início só faz

sentido em um contexto que vislumbra neste início apenas a realização de etapas

posteriores sequencialmente estabelecidas rumo a um fim de antemão conhecido.

Outro caráter poderia ser percebido se pensássemos o início enquanto possibilidade

da emergência do novo, do diferente, daquilo que ainda não está determinado e,

portanto, inaugura acontecimentos. A infância em sua dimensão principiadora

estaria, assim, a dar início a ocorrências novas, distintas do habitual. Este tempo

inaugural da infância poderia ser, então, compreendido como uma abertura para a

pluralidade.

No entanto, o novo traz consigo o risco do desconhecido, daquilo que não se

permite antever, do que não pode ser previamente alcançado.17 Por conseguinte, a

17 Esta abordagem, iniciada na escrita do prólogo do livro Filosofia e Infância – possibilidades de um encontro, organizado por Walter Omar Kohan e David Kennedy, encontra-se aqui desenvolvida. Ver

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angústia, a dúvida e a situação incomodamente problematizadora que só o novo

pode provocar, emergem. Esta inquietude propiciará sua chegada. Mas como

percebê-la? Pode ser que o novo já esteja presente naquilo que consideramos

familiar, no que se apresenta como óbvio. Talvez ele nem se mostre como novidade.

Pode ser ainda que estejamos tão seguros de conhecermos tudo, que ocupemos o

espaço necessário para que o novo se evidencie. Será preciso desvincularmo-nos

de nossas certezas e predispormo-nos à insegurança do não-saber. Enfim, abrirmo-

nos ao encontro. Se isto acontecer, deixar-nos-emos guiar não pelo desejo da

conquista que um encontro poderia suscitar, mas pelo desafio de não temermos o

que ainda não conhecemos. Se neste encontro percebermos a infância como algo a

ser preenchido por tudo aquilo que o universo adulto imagina ser necessário,

poderíamos ser levados a pensar que os adultos já teriam atingido um estado de

completude, que nada lhes faltaria. Seríamos tão pretensiosos? Por outro lado, se

concebermos a infância como único espaço de tempo capaz de redimir os males do

mundo, poderíamos ser conduzidos à idéia de que as crianças, antecipadamente,

teriam alcançado a perfeição. Estaríamos desde cedo tão determinados?

Talvez seja necessário pensar a infância e seus entretempos dentro do

espaço deixado por estas duas margens. Como em um rio que nos desafia a

atravessá-lo, elas se colocam. Tanto faz estarmos de um lado ou do outro. O que

KOHAN, Walter Omar; KENNEDY, David (Orgs.). Filosofia e Infância: possibilidades de um encontro. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 17-21.

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importa mesmo é a travessia, nos diria Guimarães Rosa.18 E nesta travessia talvez

percebamos a existência de outras margens, de fluxos de água que provocam

movimentos ondulantes e variados que acabam por deslocar os pontos referenciais

de saída e de chegada. A infância pensada fora dos costumeiros referenciais

desenvolvimentistas reclama um pensar detalhista, atento aos pequenos espaços e

tempos dos acontecimentos que a atravessam.

A nossa escuta pretende-se mais afirmativa do que crítica; mais propositiva

do que denunciativa: não nos interessa precisamente demarcar os tempos nos quais

a infância foi compreendida de um ou outro modo e, sim, investigá-la naquilo que

compreendemos ser sua temporalidade própria, em sua característica instauradora,

na diferença que propicia e, portanto, naquilo que escapa a distinções

categorizantes. A infância assim pensada tem o sentido de uma experiência que

carrega consigo algo de surpresa e risco, da qual não cabe antecipar resultados.

Este modo de pensar a infância provoca, desde já, um conflito com a idéia

pedagógica da antecipação, controle e avaliação de um pressuposto

desenvolvimento infantil. O controle pedagógico da infância rivaliza com a idéia de

experiência da infância aqui sugerida e contextualiza nosso interesse em buscar os

significados e sentidos que os conceitos tempo e infância adquirem no âmbito

educacional e nossa gana em revê-los. É, portanto, entre os tempos que queremos

investigar a infância. A infância em seus entre-tempos.

18 “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” In: ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. p. 52.

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Infância – o que nos é comum e, simultaneamente, singular. Todos nós,

adultos, tivemos infância. Cada um de nós, entretanto, teve sua própria infância.

Teremos todos tido uma única infância, ou será que tivemos, cada qual a seu modo,

experiências singulares de infâncias? Ou mesmo, haverá uma infância

indeterminada, inapropriável, sem pertencimento? Estas questões nos remetem

àquilo que julgamos saber sobre a infância pelo fato de já termos sido crianças e,

portanto, possuirmos uma história pessoal de infância que nos é própria. Mas tais

questões também nos colocam diante do conceito ‘infância’ na multiplicidade de

sentidos que evoca e que extrapolam o âmbito da vivência particular e privada de

cada um. Neste caso a infância poderia ser concebida como um estado de coisas,

uma instância instauradora de novos sentidos e significados. Este entendimento

inauguraria um outro conceito de infância?

Os conceitos, sabemos, não são naturais. Eles não nascem,

espontaneamente, em determinada época ou lugar. Conceitos são criados,

construídos histórica e culturalmente. Quando idéias, estudos e posicionamentos

constituem-se e são colocados diretamente sobre as questões com as quais lidam,

os conceitos começam a configurar-se. São as práticas sociais que os incorporam e

solidificam. Gilles Deleuze investiga a produção de conceitos e a relação que a

filosofia possui com a criação dos mesmos. A filosofia é, para ele, “a arte de formar,

de inventar, de fabricar conceitos”19. Essa ação criadora se opõe à passividade

diante das coisas e se constitui em uma intervenção no mundo. Assim sendo, criar

conceitos é uma forma de transformar o mundo, além de ser um modo de contribuir

19 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 10.

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com aqueles que deles podem dispor para realizar críticas e instaurar novas idéias.

Estas novas idéias, por sua vez, tomadas de outros de forma criativa, inauguram

conceitos novos na medida em que operam apropriações, mas também

transformações naquilo que é apropriado.

No diálogo que intentamos estabelecer com Deleuze a fim de investigar o

conceito ‘infância’, já de início nos apoiamos nesta idéia, no sentido de resgatar

algumas acepções que o termo possui no cenário pedagógico contemporâneo. A

partir destas idéias e tomando-as criativamente, aventuramo-nos em um exercício de

pensar a infância de outros modos no intuito de alcançar novos conceitos a seu

respeito. Afinal, no âmbito da problemática educacional esse tem sido um conceito-

chave, um marco inicial com o qual o projeto educativo assume seu caráter

perspectivo. Educamos projetivamente, sempre tendo em vista um alcance futuro,

seja ele próximo ou distante. Há metas, objetivos, planos traçados para uma

execução sempre posterior, sempre futura. São percursos a serem realizados,

previsões a serem confirmadas, antecipações desejadas. É neste sentido que,

subjacente à idéia de educar, encontra-se sutilmente a idéia de um estado infantil

das coisas, um vir-a-ser próprio de cada um que nasce, uma situação de porvir que

consubstancia a necessidade da educação. Assim compreendida, a infância

perpassa qualquer intenção educativa na medida em que representa uma instância

fecunda, geradora de possibilidades.

Investigar a infância é, deste modo, buscar também o conceito de ‘adultez’

que nela se identifica enquanto par contrastante. Só podemos nos referir à infância

em oposição a uma não-infância, isto é, a um estado ou condição adulta. Este

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estado não tem gerado tantos estudos e investigações quanto a infância provoca.

Isto torna a possibilidade de investigação ainda mais instigante. Preocuparmo-nos

tanto com a infância, organizarmos tão diverso conhecimento a seu respeito e, ao

mesmo tempo, não questionarmos nossa condição de adultez pode indicar

problemas não contemplados em nossas investigações. Mesmo porque as

perspectivas e os valores atribuídos a um e outro conceito comumente balizam os

projetos educacionais em diferentes tempos e lugares. Estas reflexões reforçam a

necessidade de revermos a infância, de olharmos a infância com diferentes olhos, de

abordarmos a infância com outras perspectivas e reconceitualizá-la. Por

conseguinte, há que se fazer o mesmo em relação à adultez, mantida por muito

tempo insuspeita.

2.1.2 Entre conhecimento e saber

Contudo, a abrangência aqui proposta não se refere a pensar os conceitos de

infância e adultez na forma de grandes categorias. Não nos parecem imprescindíveis

quaisquer divisões que possam levar-nos a interpretações dicotomizadas do ser.

Não se trata de buscar a negação da infância na adultez ou o contrário, de reforçar

na adultez a existência dialética da infância, tampouco evidenciar a

complementaridade entre uma e outra. Interessa-nos pensar a infância em sua

multiplicidade de sentidos e ocorrências, nas variações temporais que incorpora, na

diferença que impõe enquanto expressão do novo. Nas palavras de Deleuze:

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Cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir ou suas conexões presentes. Cada conceito tem componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos. [...] é próprio do conceito tomar os componentes inseparáveis nele: distintos, heterogêneos e todavia não separáveis, tal é o estatuto dos componentes, ou o que define a consistência do conceito, sua endo-consistência. É que cada componente distinto apresenta um recobrimento parcial, uma zona de vizinhança ou um limite de indiscernibilidade com um outro. 20

A fim de que esta complexa construção do conceito de infância, já

estabelecida, possa nos conduzir à experiência de pensar a infância, há que se

realizar um trabalho de pensamento que, articulando conceitos já estabelecidos,

leve-nos a intuir, em termos deleuzeanos, novos conceitos que be-territorializem a

infância. Importa-nos associá-la a outros tempos e espaços de vida. A

temporalidade, territorialidade e espaços da infância constituem os marcos

referenciais de nossa problematização e intensificam nossos questionamentos

acerca da constituição da infância. Afinal, conforme estudos realizados por Sandra

Corazza ao relacionar infância e educação, “nem todos os historiadores concordam

com a perspectiva de negação da infância na época pré-moderna.”21 No entanto,

quase todos concordam que com a publicação do Emílio de Rousseau, as novas

idéias sobre a infância ganharam força e contribuíram substancialmente para a

consolidação da idéia de família fundamentada no amor materno e no cuidado com

a criança. Do interior desta nova família constituída nas classes mais favorecidas

econômica e socialmente é que se afirma haver emergido uma preocupação

explícita com a criança, uma posição adulta afetuosa orientada para sua educação e

para o reconhecimento de sua importância. A criança passa, então, a ser objeto de

20 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 31. 21 CORAZZA, 2002, p. 109.

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estudo, referência para a organização de conhecimentos, alvo de controle, atenção

e proteção adultas. Entretanto, alerta-nos Corazza:

Se a modernidade foi a época da infância, da maternidade, da puericultura, tendo tecnizado os cuidados com as crianças que encontraram sua legitimação na “ciência”, foi a escola que constituiu uma linguagem, um saber e uma técnica para lidar com “a vida da criança”, de modo a bem dirigir esta vida, mas também de acabar com ela, de fazê-la chegar a seu termo22.

Compreendida desse modo, a relação paradoxal estabelecida na

modernidade entre escola e infância por intermédio dos conhecimentos instituídos

pela ciência determinou o início da infância, mas também seu fim. A autora destaca,

em seus estudos, o enfoque na denominada “perda de infância” ou o fim da infância

a partir de meados do século XX. A invenção da infância teria sido superada e se

constituiria apenas em uma referência convencional para discussões

contemporâneas. Estaríamos, então, acompanhando uma pós-infância surgir? De

que modo situa-se contemporaneamente a escola em relação à infância? As

instituições educativas continuam a legitimar os saberes constituídos sobre a

infância? Longe de querermos dar um termo a estas perguntas respondendo-as,

vamos nelas nos apoiar para dar início a um processo de busca de entendimento

das problematizações que as transformam em questionamentos. Comecemos pelo

cuidado com as crianças decorrente da gama de conhecimentos científicos gerados

no período moderno. Tais conhecimentos, produzidos em diferentes áreas do saber,

tensivos, confrontavam verdades preconizadas sobre a infância e ampliavam os

enfoques interpretativos sobre a mesma. A partir das ciências naturais a infância foi

22 CORAZZA, 2002, p. 120-1.

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identificada como uma etapa constitutiva do desenvolvimento biológico humano. A

corporeidade de cada novo ser humano, sua altura, peso, constituição muscular e

óssea, entre outros aspectos, evidenciaram, nas crianças, a condição inicial do seu

desenvolvimento físico. Esta fisiologia tornava a infância delimitada e perfeitamente

verificável do ponto de vista científico. Claramente situada, pontualmente

classificada, a infância, nestes termos, passou a designar uma etapa constitutiva do

desenvolvimento humano.

As evidências físicas que diferenciam as crianças dos adultos,

incontestavelmente presentes em todos nós, explicadas em bases científicas,

conformam uma série de sentidos arraigados no conceito “infância”. Entretanto,

pensando com Lyotard sobre a concepção instrumental do saber que a ciência

instituiu a fim de legitimar-se, podemos nos questionar a respeito daquilo que ainda

não sabemos sobre a infância e mesmo sobre o que sabemos ou poderíamos saber

de outro modo. Teríamos, pois, que diferenciar o que a ciência nos informa sobre a

infância na forma de conhecimentos sistematizados daquilo que sabemos ou

podemos chegar a saber da infância a partir dela mesma. “O saber em geral não se

reduz a ciência, nem mesmo o conhecimento”23, afirma o autor e continua:

O conhecimento seria o conjunto dos enunciados suscetíveis de serem declarados verdadeiros ou falsos, que denotam ou descrevem objetos, com exclusão de todos os outros enunciados. A ciência seria um subconjunto do conhecimento. Constituída também de enunciados denotativos, a ciência tem de impor duas condições suplementares para a sua aceitabilidade: que os objetos a que se referem sejam acessíveis recursivamente, portanto, em condições de observações explícitas; que se possa decidir se cada um

23 LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. 2. ed. Tradução: José Navarro. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 46.

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destes enunciados pertence ou não a linguagem considerada como pertinente pelos peritos. 24

Nestes aspectos a infância é conhecida naquilo que o critério de verdade

estabelecido pelo conjunto de enunciados que a linguagem científica exige a seu

respeito afirma. Porém, esta forma de legitimar alguns tipos de saberes acaba por

excluir outros saberes que não são submetidos aos critérios de cientificidade acima

descritos. Seja por não causar interesse junto à comunidade científica, seja por não

se adequarem a este tipo de estabelecimento de verdades e afirmarem outra

“política do conhecimento”, o certo é que saberes subjacentes ao fazer, ao viver, ao

escutar diários não são contemplados nos estudos científicos sobre a infância. No

consenso sobre as formas científicas de constituição da verdade é que se firmaram

as distinções entre o professor e o aluno, entre a criança e o adulto e,

analogamente, os processos de ensino e aprendizagem. Tais distinções, além de

legitimadas pelo patamar científico que adquiriram, assumiram também valores

morais hierarquizados que passaram a orientar as práticas pedagógicas

institucionalizadas. O desenvolvimento infantil intermediado pela educação em

direção a uma adultez situada ao final de uma escala evolutiva ilustra bem esta

questão. A adultez almejada só pode ser conquistada mediante um esforço

metódico, gradual e ininterrupto.

A legitimação do saber na forma de conhecimento científico faz coincidir o

alcance da idade adulta com o momento inicial da possibilidade de se conhecer as

coisas. O conhecimento, ou pelo menos, o conhecimento considerado ‘mais

24 LYOTARD, 1989, p. 46-7.

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profundo’ ou legitimado torna-se restrito ao adulto e, mais restritivamente ainda, ao

adulto escolarizado, formado nos moldes científicos, possuidor, portanto, de um

repertório informacional e lingüístico que o permite organizar seus conhecimentos no

interior de uma linguagem científica, muito distante do linguajar infantil.

A criança, destituída do vocabulário necessário para a articulação

argumentativa das idéias nos moldes que a linguagem científica determina, incapaz

de apropriar-se do conhecimento científico construído sobre ela mesma, alheia aos

critérios de julgamento da verdade, encarna as idéias de falta, carência e

incompletude destinadas a ela nos espaços educativos. Este conceito negativo da

infância, subjacente ao processo educacional a ela destinado, justifica uma série de

práticas pedagógicas inibidoras do potencial criador da infância. Neste caso,

características como falta, carência e incompletude denunciam falta de saber

legitimado e, portanto, inferiorizam as crianças nas relações com os adultos. O poder

adulto aparece, nestas circunstâncias, fortalecido pela autoridade legitimada tanto

pela ciência quanto pelas relações sociais que ela determina. A autoridade adulta

exercida sobre a criança assenta-se no poder do saber que o adulto possui e que é

inacessível à criança. Ainda mais quando este saber é um saber sobre a própria

infância. Além de saber sobre a infância, o adulto detém um saber sobre as formas

de enunciá-lo como verdade. A superioridade do adulto fica assim assegurada tanto

pela distância cronológica marcada pelo continuum temporal de vida já vivida,

quanto pelo conhecimento cumulativamente apropriado nesta quantidade maior de

tempo.

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A informação, a velocidade exigida para sua aquisição e o método necessário

para seu alcance caracterizam o tipo de conhecimento valorizado na atualidade e

contribuem substancialmente para a consolidação dos conceitos de infância e

adultez polarizados e solidificados nas imagens do professor e do aluno, no que se

pensa sobre ensino e aprendizagem. A partir dos critérios científicos determinantes

de verdades e dos meios construídos para quantificar, classificar e categorizar as

coisas, infância e adultez passam a integrar os jogos identificados por Lyotard como

“jogo de investigação” e “jogo do ensino”25. O objeto de investigação, submetido às

regras de cientificidade, torna-se, em seguida, objeto de ensino. Estes jogos

determinam a aceitabilidade dos enunciados enquanto ciência e conferem às idéias

colocadas um patamar de legitimidade, uma vez aceitas e após terem sido julgadas

verdadeiras conforme avaliação prévia.

Este padrão científico e adulto de estabelecimento de verdades exclui a

criança e coloca o adulto no centro das decisões sobre a infância. O território adulto,

delimitado pelo poder do conhecimento e pelo modo de enunciação do mesmo,

deixa de fora a criança. Embora alvo de atenção, cuidado, proteção e controle

adultos, cercada por uma infinidade de produtos e serviços resultantes dos saberes

legitimados sobre a infância, a criança continua sem voz, sem fala, numa infantia,

diria Lyotard.26 A centralidade adulta inserida no projeto da modernidade de

25 LYOTARD, 1989, p.49-50. 26 “Nadie sabe escribir. Cada cual, sobre todo el más ‘grande’, escribe para atrapar por y en el texto algo que él no sabe escribir. Que no se dejará escribir, él lo sabe.(...) La cosa de la que padecen estos escritos diversos lleva diversos nombres, nombres de elisión. Kafka la llama indubitable,Sartre inarticulable, Joyce inapropiable. Para Freud es lo infantil, para Valéry, el desorden, para Arendt, el nacimiento. Bauticémosla infantia, lo que no se habla. Una infancia que no es una edad de la vida y que no pasa.” In: LYOTARD, J. F. Lecturas de Infancia. Buenos Aires: EUDEBA, 1997, p.13.

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ordenação, sistematização e controle afasta a infância de si. O que está fora do

centro, aquilo que é ex-cêntrico, é tomado como estranho. Nesta lógica

adultocêntrica cabe tornar a criança conhecida, parte dos saberes constituídos

cientificamente e controlável por peritos, até não mais ser considerada outra coisa

que não um vir-a-ser adulto. A infância é vista apenas como uma etapa necessária a

uma vida adulta. Esta, sim, uma situação madura e estável.

Mas ainda é possível pensar na possibilidade de se alterar esta lógica de

entendimento das coisas. Incluir a criança para que ela não fique mais do lado de

fora não implica, necessariamente, em inverter a posição da adultez e da infância.

Inserir a criança no âmbito adulto da vida exige apenas que o adulto saia do centro.

Sem troca de lugares, o que pode haver é uma certa desterritorialização, ou seja, a

não fixação de lugares onde os sujeitos criança e adulto costumam localizar-se. Isto

significa, é claro, mudar também a relação que se tem com o saber, alterar as

formas de legitimação dos saberes, aceitar possíveis falhas na forma de

entendimento das coisas. Tudo isso causa incômodo na medida em que pressupõe

interrupções, deslocamentos e multiplicidade de ocorrências onde se imaginava

haver comodidade, inteireza, estabilidade, bipolaridade e linearidade. Este

incômodo, porém, parece ser um dos traços identificadores da contemporaneidade.

O incômodo pode ser, inclusive, o prenúncio da mudança.

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2.2 ENTRE-LUGARES DA INFÂNCIA

2.2.1 Entre infância e educação

Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser. Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer.27

O que você vai ser quando crescer? Esta pergunta, tantas vezes repetida,

respondida muitas vezes de forma constrangida, outras vezes de modo

ingenuamente seguro e inequívoco, revela alguns dos pressupostos basilares da

educação. Crescer é inevitável. Ser diferente daquilo que se é ao crescer, é também

imprescindível. E, mais, é preciso deixar de ser criança para crescer. É preciso

transformar-se em algo diferente da criança, alcançar algo distante, situar-se

antecipadamente em um plano futuro a fim de almejá-lo com o esforço que o

crescimento exige. A infância não parece conter muito a ser apreciado, posto tratar-

se de uma instância menor, anterior à vislumbrante e definidora adultez. O

crescimento, este sim, apresenta-se repleto de possibilidades e expectativas de êxito

rumo ao posterior plano da maioridade buscada. Não parece haver a possibilidade

de escolhas. Mesmo não sendo possível entender, como sugere o poeta, há que se

ser algo no futuro. Há que se esquecer a infância, lembrar-se sempre da dimensão

adulta das coisas e crescer.

27 ‘Verbo Ser’. In ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade: Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979, p. 596.

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Drummond é provocativo. Em sua linguagem poética, ele nos faz pensar na

arbitrariedade da imposição de uma forma de crescimento que exige a alteração de

um estado de coisas na medida em que subestima este estado. O estado de vida da

criança, conhecido como infância, apresenta-se, deste modo, numa condição de

inferioridade face a outros estados da vida humana. Não basta ter um corpo, saber-

se gente, sentir-se vivo e constituir-se materialmente numa forma física. Tampouco

parece ser suficiente ser uma pessoa, com um jeito próprio de ser, falar, ouvir, sentir

e agir. Nem mesmo possuir um nome, traço identificador da espécie, do gênero, do

contexto sócio-familiar e até mesmo da realidade geopolítica em que se vive, é o

bastante. Nada supera a exigência de crescer. Ser só se torna possível, após

crescer. É como se a criança ainda não fosse, como se ela precisasse crescer para

ser, como se seu estado infantil negasse a legitimidade do seu ser. Daí a pergunta:

como principiar o ser? Crescer parece ser a palavra de ordem. E, se crescer é de

fundamental importância, o crescimento há que ser acompanhado, dirigido,

controlado ou cuidado. A depender do entendimento que se tenha dos significados e

sentidos de tais termos, diferentes procedimentos educativos serão elaborados.

Os desdobramentos possíveis a partir da evidência do inevitável crescimento

conduzem à irremediável necessidade da educação. O intento de educar deriva do

entendimento de que há seres a serem educados, gente que prescinde da educação

para crescer plenamente. Eles, os educandos, precisam ser educados por outros, já

educados e, portanto, conhecedores da educação, em condições de realizá-la. Tal

educação é necessária e deve ser realizada, já que é fundamental crescer bem. O

bom crescer pressupõe um julgamento moral do tipo de crescimento a ser realizado.

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Quando deve ou pode ser iniciada a educação; como se realiza, como poderia ou

deveria realizar-se; quem educa, quem deveria ou poderia fazê-lo; onde a educação

ocorre, poderia ou deveria ocorrer. Estes e tantos outros questionamentos derivam

do princípio de que a educação, mais que inevitável, é necessária e até mesmo

desejável.

Contudo, a linguagem pueril de Drummond lembra-nos, insistentemente, de

que é possível duvidar das coisas desde suas afirmações primeiras. O poeta reforça

o tom questionador de sua fala por intermédio do jeito infantil de elaborar

questionamentos radicais ao perguntar, de modo aparentemente simples, sobre a

vida humana. O texto nos remete a uma criança qualquer que, constantemente

interpelada por adultos, sente-se pressionada a dar conta de uma expectativa que

não lhe é própria. Além de imprópria à criança, ou seja, não apropriada por ela, a

cobrança do crescimento apresenta-se indevida, unilateral e injusta. As questões

que decorrem da popular pergunta revelam, em tom de desabafo, a angústia sofrida

pela criança ao ter negada sua condição de ser. Eis o que diz, textualmente, o autor:

Que vai ser quando crescer? Vivem perguntando em redor. Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito? Ou a gente só principia a ser quando cresce? É terrível, ser? Dói? É bom? É triste? Ser: pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas? Repito: ser, ser, ser. Er. R. Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser. Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer.28

Trata-se de uma pergunta corriqueira que, problematizada, transforma-se em

questionamentos radicais sobre a relação entre infância e educação a partir dos

28 ANDRADE, 1979, p. 596.

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princípios fundadores da idéia de educar. Afinal, parece que a educação se constitui

desde um projeto de formação humana que se inicia nos primeiros anos de vida,

quando se é criança. Este projeto se estende até a vida adulta, seja qual for o ponto

de chegada desta pretensa adultez. Os marcadores temporais deste percurso

apresentam-se de forma mais clara no ponto em que demarcam o início do processo

educativo e de forma obscura no seu final. A idéia de uma formação continuada vem

sendo, inclusive, muito propagada como forma de garantir a continuidade da

educação por toda a vida humana.

A duração do processo educativo, seus modos constitutivos, as relações

intersubjetivas subjacentes, bem como os fins a que se destina abrem uma gama

enorme de áreas de estudo a serem pesquisadas. O que nos interessa, neste

estudo, porém, é refletir sobre o lugar da criança no conceito de infância fundador da

idéia de educação que tem estruturado o ato de educar nos espaços pedagógicos

contemporâneos. Saber qual é o lugar da infância na vida humana parece ser

fundamental para repensar os processos educativos desde seus marcos iniciais. O

lugar da infância é também o ponto de partida para a elaboração de projetos de

formação humana. Que implicações o menosprezo pelo adjetivo ‘infantil’ possui em

termos educacionais? Como o termo ‘infantil’ passou a acumular uma carga

semântica tão pesada a ponto de ser tomado pejorativamente? Quais são os

aspectos históricos e os traços ideológicos oriundos da constituição familiar, escolar

e societária que delimitaram a proliferação dos sentidos negativos atribuídos à

infância?

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O texto de Drummond também evoca uma situação conflituosa entre a

potencialidade da criança em seu estado de vir-a-ser algo, já sendo outra coisa. Esta

contingência tem gerado a necessidade da intervenção educacional que passa a

ocupar um papel preponderante nessa linha contínua. Ela se torna desejável e

necessária na medida em que as crianças não têm um ser definido: elas são,

sobretudo, possibilidade, potencialidade: elas serão o que devem ser.29

É como se a inteligência da criança fosse reconhecida, mas também fosse

atestada a necessidade de sua condução pelos educadores. Criar e educar crianças

pressupõe, por conseguinte, desenvolver seus potenciais de forma harmônica rumo

a um patamar adulto a ser alcançado sob a vigilância e cuidados também adultos.

Se, por um lado, este entendimento valoriza a criança ao reconhecer suas

potencialidades, por outro lado inferioriza seu estado e desvaloriza seu desempenho

enquanto ser criança que é, projetando-a para um futuro condicionado pela ação

legitimadora do processo educativo proposto.

Ainda que bem intencionado, um projeto educativo qualquer que parta da

negação do valor do estado infantil em que a criança se encontra acaba por

conformar a idéia de inferioridade que conduz, muitas vezes, à vergonha da infância.

Como uma metáfora da inferioridade, a infância passa a ser identificada como

carência, falta ou incompletude. De modo contrário ao posicionamento de

Drummond, não se nega o crescer, mas o ser criança. A denominação ‘infantil’

passa a qualificar um estado reduzido das coisas, um estágio, momento anterior e

29 KOHAN, Walter O. (Org). Lugares da Infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 53.

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menor ao que é esperado. A ‘educação infantil’ torna-se um segmento escolar

orientado e conduzido por profissionais, quase todas do sexo feminino, que apenas

recentemente começa a ter certo reconhecimento a ponto de se tornar pelo menos

obrigatório durante um ano. Mas a pirâmide educacional parece construída em

importância diretamente proporcional na medida em que se ascende nela. Por

exemplo, os maiores investimentos, a melhor formação e capacitação são exigidas

dos mais altos níveis do ensino superior; na medida em que se descende as

exigências caem, como se a educação infantil se tratasse de algo ‘menor’. Trata-se

de uma extensão da educação familiar das crianças comumente delegada às mães,

não aos pais. Os procedimentos de ensino, recursos e materiais didáticos, bem

como os conteúdos propostos para este segmento seguem o princípio do

desenvolvimento de potencialidades. Trata-se de uma educação para o futuro que

nega o valor do presente infantil.

O tempo da infância, ou seja, a definição de sua duração tem balizado

historicamente a organização de propostas educativas. Recorrendo à história da

infância podemos constatar que:

“Atribui-se a Hipócrates, vários séculos antes de Cristo, a classificação de sete idades da vida: o bebê, de 0 aos 7 anos, a criança, dos 7 aos 14, o adolescente, dos 14 aos 21, o jovem, dos 21 aos 28, o maduro, dos 28 aos 49, o idoso, dos 49 aos 56 e os anciãos, acima dos 56.”30

Esta idéia de que a infância é um ciclo bem determinado na vida humana

implica o reconhecimento de sua especificidade e, portanto, a necessidade de

30 KULHMANN JR., Rogério Fernandes. Sobre a história da infância. In: MENDES, Luciano Faria Filho (Org.) A infância e sua educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 20.

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adequação de práticas educativas. Seja na sua origem latina, infans – o que não fala

- seja no termo francês enfant ou no latim puer, seja ainda na palavra inglesa

childhood, a infância tem representado falta, fragilidade e ingenuidade. Já na Roma

antiga, Quintiliano adotava a máxima de Juvenal, de que a criança merece o maior

respeito (máxima debetur puero reverentia)31, daí a necessidade de se observar e

estudar a criança, de se compreender os diferentes ritmos e possibilidades de

aprendizagem de cada uma. Desde a antiguidade a infância tem sido uma

preocupação dos homens, um problema solucionável pela educação. Quem é a

criança, como aprende, quem se tornará são indagações que percorrem as

incertezas do homem face ao futuro desconhecido. O sentimento de impotência

diante da inacessibilidade do futuro parece ser minimizado pela tentativa de controle

da infância. Já que não é possível prever o futuro, tenta-se antecipá-lo por meio da

formação educativa das crianças. Deste modo priva-se dos riscos de dissabores que

um futuro incontrolável poderia trazer. Este parece ser o princípio orientador das

idéias pedagógicas que constituem a história da educação ocidental.

Já no século XVII, a Didática Magna32 escrita por Comenius em 1657

apresentava, na forma de um tratado, a arte de ensinar. Nesta obra estava disposto

um detalhado sistema educacional distribuído pelos diferentes períodos da vida, a

exemplo do que havia nas corporações de ofício. Nestas corporações, os artesãos

ensinavam seus aprendizes por meio de um programa de lições que durava de dois

a sete anos conforme a complexidade da arte em questão. Após estes períodos de

31 Ibid, p. 22. 32 COMENIUS. Didática Magna. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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estudo os concluintes eram denominados oficiais ou mestres. Comenius pensava

que o mesmo deveria ocorrer nas escolas. As instituições de ensino deveriam

organizar-se a fim de atender as diferentes idades “desde a infância até a idade viril,

ou seja, 24 anos, repartidos em períodos determinados os quais se devem dividir

tornando por guia a natureza”.33 Este longo período de educação, identificado como

“lento desenvolvimento”, deveria ser dividido em quatro partes. A infância seria

atendida pela escola materna, a puerícia, pela escola primária, a adolescência, pelo

ginásio e a juventude, pela academia.

Estes dois exemplos, ilustrativos das idades antiga e medieval, ilustram

brevemente a preocupação com os processos de iniciação que o aprendiz necessita

percorrer a fim de superar etapas para a obtenção de maiores graus de autonomia.

A chegada ao final do percurso, definida pela exitosa passagem por entre as etapas,

significa ainda a legitimação de um novo status. A escala ascendente do

aprendizado o hierarquiza na medida em que exige maior ou menor período de

tempo a ele dedicado. As condições de aprendiz e de criança coincidem, desde

modo, com o período da infância. A idéia de organização da educação escolar por

classes de idade a partir da infância, ou seja, do período inicial de um processo de

aprendizagem, parece ter aqui se iniciado. Esta inserção necessária no mundo dos

adultos implica na defesa da necessidade da educação tanto no âmbito familiar

como no âmbito escolar. Família e escola passam a constituir, mais marcadamente,

os locais de passagem para o mundo dos adultos.

33 KULHMANN JR, 2004, p. 22.

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Seguindo o estudo de Moysés Kuhlmann Jr. e Rogério Fernandes Sobre a

história da infância34, podemos destacar na idade moderna a transferência do

processo de aprendizagem para a instituição escolar. O prolongamento da infância

pode ser entendido, então, como um prolongamento do processo de escolarização

da criança. A transformação da criança em aluno passa a ser a identificação do

aluno como a criança. Este é o entendimento no qual o critério etário torna-se

ordenador da composição e da seriação do ensino nas classes escolares. A defesa

da instituição escolar como o lugar da criança fundamenta-se na idéia de que a

escola seria um meio para afastá-la da sociedade, foco da degeneração moral. Na

escola, sob a condução de educadores formados nos padrões morais esperados, a

criança seria educada para uma vida social regida pelos valores eleitos.

O denominado ‘prolongamento da infância’ pode ser considerado, de início,

apenas uma representação dos clérigos, moralistas e pedagogos, já que a

frequência aos colégios se dava por uma minoria de crianças da sociedade

européia. Somente a partir do século XIX é que ocorre, na Europa, a inserção em

massa das crianças nos sistemas educacionais, quando a passagem por uma

espécie de quarentena nas escolas amplia-se para um número expressivo de

crianças e as propostas de instituições educacionais ganham difusão internacional.

Neste momento ocorre, então, uma inversão no significado da escolarização. A

escolarização deixa de representar um afastamento da vida social e passa a refletir

a sociedade.

34 KUHLMANN JR., 2004, p. 22-25.

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Com o advento do capitalismo a relação entre infância e educação é

novamente alterada. As relações familiares se modificam a ponto de exigir das mães

atividades laborais externas ao âmbito do lar. As crianças, distanciadas das mães,

necessitam de cuidados institucionais exteriores à família. Começam, então, a surgir

diferentes tipos de organizações sociais a favor da criança. A fim de proteger a

infância, inúmeras categorias institucionais são constituídas. A idéia de cuidar da

criança e garantir seu desenvolvimento é reforçada no âmbito estatal. Este

entendimento evoca movimentos sociais de recuperação e estímulo, além da

elaboração de normas jurídicas e de modelos institucionais que promovam o

desenvolvimento e o bem-estar da infância.

A infância passa a ser ainda mais prolongada no âmbito escolar, pois agora

ela é também antecipada. O sentimento moderno da infância escolarizada que a

inseria entre os 7 e 14 anos de idade dilata-se e alcança o período anterior que

compreende a criança de 0 a 6 anos de idade. Infância e puerícia misturam-se na

necessidade cada vez mais urgente de ingresso na vida social. As crianças, mesmo

bem pequenas, passam a integrar um corpo de aprendizes educáveis. A chamada

puericultura recua ainda mais e situa na gestação as possibilidades de uma

puericultura intra-uterina.

Os discursos ordenadores do campo educacional definem, deste modo,

diferentes infâncias e encontram, nesta ordenação, as bases de sustentação de

seus enunciados. Diferentes significados são atribuídos a este entendimento

ordenador, o que implica em movimentos constantes e irregulares de inovações e

retrocessos procedimentais no âmbito educativo. Contudo, embora novas formas de

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regulação das práticas escolares sejam produzidas e alterem a cultura escolar, a

dimensão da infância não tem escapado do âmbito etário. A infância continua a ser,

a despeito do passar do tempo e dos movimentos históricos da educação das

crianças, o espaço do aprendiz, daquele que ainda não sabe. A infância permanece,

em sua relação com a educação, numa situação de inferioridade.

Não queremos nos aprofundar nas referências historiográficas a respeito da

infância, embora cientes de sua importância. Pensamos como Sandra Corazza que

Em geral os textos históricos de referência possuem diferentes comprometimentos com paradigmas de história que buscam comprovar hipóteses de início estabelecidas ou estão assentados sobre as condições materiais de vida, que fazem com que a infância seja apenas um de seus efeitos, ou mesmo por acreditarem na sua evolução ou involução. Cabe-nos significar a infância como uma instância suscitada e tornada necessária pelo funcionamento do dispositivo de infantilidade. Posição que não se inquieta com que o discurso de uma época dizia ou pensava sobre a infância, senão como e por quais mecanismos de saber, técnicas de poder e economia de verdade podia fazê-lo.35

Nossa investigação situa-se no âmbito semântico do conceito de infância.

Interessam-nos os múltiplos sentidos do termo e os possíveis desdobramentos que o

entendimento deste ou daquele sentido incorporam e carregam para o âmbito

educacional. Nossa investigação reveste-se, assim, de um caráter fronteiriço.

Intentamos trabalhar entre os espaços da filosofia, literatura e educação. Por este

motivo, embora tenhamos identificado por subtítulos os espaços de discussão por

áreas de interface com a infância, inevitavelmente estaremos transpondo, vez ou

outra, as demarcações.

35 CORAZZA, 2002, p. 79.

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Pensar a infância é explorar um tema muito caro à educação e ao cenário

pedagógico contemporâneo. Sim, muitos estudos têm lidado com o tema. A questão

que se coloca, para nós, de modo persistente e imperativo, trata dos conceitos

basilares dos trabalhos investigativos em educação que, por sua vez, geram

procedimentos educativos nos mais distintos âmbitos pedagógicos. Que sentidos

possuem os termos infância e adultez, a expressão ensino-aprendizagem, a palavra

educar? O que o linguajar pedagógico preserva de um discurso estruturado

socialmente, desgastado com a repetição impensada?

Se é verdade que o ato criador surge do rompimento de certezas que

ocasiona um desequilíbrio, para pensar a infância de forma criativa é preciso romper

com a visão instituída de maneira segura, sólida e vigente que a confunde com o

estado de aprendiz. Coloquemos em jogo os termos infância, aprendizagem e aluno.

Corramos o risco de pensar cada um destes termos naquilo que eles podem revelar.

Duvidemos de seus enlaces. Arrisquemo-nos a distanciá-los do que nos levaria a

pensar, de ímpeto, em escola, ensino e professor. Deixemos de pensar de forma

paritária e antagônica – sem pares contrastantes, nem mesmo com a idéia de

complementaridade - nada que articule estes termos.

Pensar a infância enquanto início não implica, necessariamente, pensá-la

como etapa inicial de um processo de crescimento rumo à adultez. O início que a

infância inaugura pode ser pensado como o princípio de algo surpreendente, algo

novo, ainda não realizado. Este tipo de início nos faz conceber o nascimento não

como um fato único na vida de cada um, mas como recorrências possíveis na vida

humana. Faz-nos pensar em múltiplos nascimentos. Este entendimento nos

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aproxima ao que Lyotard denomina “sobrevivência”36 – não algo que se prolonga na

vida já morta – mas um novo início em cada morte acontecida – um novo que ainda

não pode ser identificado. Neste ponto encontram-se natalidade e devir. Esta é uma

imagem do devir que não é um devir-adulto, paradigmático, modelar. Este é um

sentido figural de um devir que não se sabe, já que está por vir. Uma figura de

natalidade, o nascimento para um mundo que não é conhecido. Um estado de

estraneidade. O estranhamento diante das coisas. O duplo estranhamento das

coisas e de suas denominações. No estranhamento das coisas, na indiferenciação

de seus nomes, a impossibilidade da fala, a in-fantia.

Pensemos em uma criança recém-chegada a este mundo. Tentemos imaginá-

la percorrendo com as mãos superfícies tão distintas quanto seu próprio corpo, o

corpo de sua mãe, seus brinquedos, paredes, plantas, areia, chão, alimentos...

Pensemos esta mesma criança frente a um emaranhado de palavras, sons e ruídos

lentamente identificados, produzidos tanto fora dela mesma quanto dentro de si, às

vezes até involuntariamente em seu corpo... Pensemos no complexo trabalho de

construção de sentidos de gestos, palavras, atitudes e movimentos das pessoas que

com ela convivem... Pensemos nas respostas elaboradas e experimentadas por ela

na relação com estes outros... Pensemos que esta uma criança pode ser qualquer

36 “[...] un niño no cesa de habernos nacido. El nacer no es solamente el hecho biológico del parto, sino, bajo la cubierta y el descubrimiento de este hecho, el acontecimiento de una alteración radical posible en el curso que empuja a las cosas a repetir lo mismo. La infancia es el nombre de esta facultad, tanto más cuanto que aporta, en el mundo de lo que es, el asombro de lo que, por un instante, no es nada todavía. De lo que es ya pero sin todavía ser algo. Digo ese nacimiento incesante porque marca el ritmo de una “supervivencia” recurrente, sin metro (sin medida). Esta “supervivencia” no prolonga una vida ya muerta; ella inicia, en la muerte de lo que era ahí, el milagro de lo que no es ahí todavía, de lo que todavía no es identificado.” LYOTARD, J. F. Lecturas de Infancia. Buenos Aires: EUDEBA, 1997, p.72.

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um de nós, qualquer um que continue a vivenciar tudo isso como uma criança, que

possua em si, algo que resista à segurança afirmativa das coisas, que o intrigue e o

leve a insistentemente duvidar do sossego do que está posto...

É a respeito desta uma criança que falamos neste estudo. É este o sentido

que queremos acoplar à palavra criança. É por isto que não nos preocupa uma

esclarecedora distinção entre um e outro termo. Estaremos pensando a infância a

partir da imagem de uma criança, mesmo que esta imagem esteja

emblematicamente situada fora do eixo etário. Deste modo, poderemos pensar

alguém que seja uma criança, que tome atitudes infantis, que tenha uma postura

investigativa e exploratória diante da vida. Uma criança cujo principal atributo seja

sua condição estrangeira, sua estraneidade.

[...] como os estrangeiros mais desprotegidos do mundo que, para chegar a um lugar no qual possam viver, lhes é exigido abandonar, no sentido forte e trágico do termo, aquilo que era totalmente seu, sua terra e sua tradição. Os recém-nascidos são estrangeiros radicais, inclusive nisto. Para nascer devem abandonar um lugar que apenas existiu para eles e que com o nascimento desaparece para sempre. É precisamente esta estranheza essencial que começa com o nascimento, que deve enfrentar a educação.37

Pensemos não mais em uma época de infância, senão na presença da

infância em nós – a presença, não a ausência. Nada que gere saudosismo num

melancólico olhar para trás. Ao contrário, algo que nos impulsione violentamente

para frente e nos faça sempre jovens, a buscar sentidos novos para as coisas. Como

nos sugere Heidegger,38 ousar intuir infantilmente as coisas. Pensar até mesmo na

37 BOSCH, Eulàlia. Quem educa quem? Educação e vida cotidiana. Trad. Bernardina Leal. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 37. 38 “El principio sólo se da en una intuición. Intuición deriva del latín intuere que significa mirar atentamente, ver, observar, examinar. Al principio sólo se lo ve, se lo muestra; nunca se lo

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infância como uma instância intuitiva do saber. O ato infantil de olhar atentamente,

ver, observar, examinar. É isto o que significa etimologicamente intuere. Ver sem ter

que mostrar. Mostrar, sem ter que demonstrar. Não ter que entender tudo.

Tampouco imaginar-se completamente entendido por outros.

Deleuze, falando sobre sua condição docente, dizia de suas aulas que elas

não tinham como objetivo ser totalmente entendidas.39 Que era preciso respeitar a

necessária solidão do aluno, parte da exigência do aprender. O que nos leva a

pensar como temos estado seguros da necessidade de nossa presença face ao

aprendiz, face à criança ou qualquer um com quem nos relacionemos. Parece difícil,

porém necessário, termos de reconhecer, na solidão do outro, a exigência do nosso

distanciamento... Deixar que o outro se evada. Deixar que veja, sinta e pense por si

mesmo. Deixar que a criança fique só, mesmo que por alguns instantes, livre da

presença de um adulto ensinante, longe da pressão de ter que aprender. Deixar

aprender. Deixar de ensinar.40

A aprendizagem tem sido sempre associada à idéia de ensino. Fala-se em

processos de ensino-aprendizagem, métodos de ensino-aprendizagem, recursos de

demuestra.” In: HEIDEGGER, Martin. La experiencia del pensar: seguido de Hebel, el Amigo de la Casa. Córdoba, Argentina: Ediciones del Copista, 2000, p. 14. 39 “Para mim, uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula, cada grupo ou cada estudante pega o que lhe convém.” (DELEUZE, Gilles. L’Abécédaire de Gilles Deleuze. Paris: Éditions Montparnasse, 1997. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação, “TV Escola”, 2001. Letra P de Professor, s./p/). 40 É o que parece sugerir Manoel de Barros: “O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa./ Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada./ Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa./ Era uma enseada./Acho que o nome empobreceu a imagem.” In BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.25.

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ensino-aprendizagem. Por vezes o hífen é substituído pela conjunção e. Isto provoca

um entendimento de maior dependência entre os termos. É como se os termos

expressassem ações em relação, porém não indissociáveis. Mas a ordem em que os

termos aparecem tem sido inalterada. Primeiro vem o ensino, depois a

aprendizagem. Há uma ordenação e seqüência na colocação dos termos que faz

com que a relação seja hierarquizada. Ensinar parece ser preponderante em relação

a aprender. Aprender é uma conseqüência do ensinar. Do ensinar deriva-se o

aprender. Pareceria absurdo propor uma nova ordem? Aprendizagem-ensino? Ou

ensino (sem aprendizagem)? Aprendizagem (sem ensino)? Desvincular uma

expressão da outra nos parece de vital importância. Afinal, muito do que se ensina,

não é aprendido. Muito do que é aprendido, não é ensinado. Entre ensinar e

aprender não há uma relação simples e direta. Não há reciprocidade, nem

linearidade. Retirar o hífen e deslocar os termos talvez nos faça perceber as duas

idéias conectadas de distintas formas. Separar os dois conceitos pode até mesmo

nos levar a pensar em formas plurais de relação entre os sujeitos envolvidos no

ensinar e no aprender. Afinal, um dualismo sempre nos remete a outro. Deste modo,

somos levados a associar ensino-aprendizagem a professor-aluno e a infância-

adultez. Talvez devamos repensar cada uma destas palavras a fim de sermos

capazes de perceber diferentes possibilidades relacionais entre elas.

A partir da idéia de uma infância imemorial, pensar a educação não como

uma memória, mas como uma desmemória. Pensar não apenas no que é preciso

lembrar, mas no que é preciso esquecer. Cecília Meireles nos ajuda a pensar

poeticamente esta questão:

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É preciso não esquecer nada É preciso não esquecer nada: nem a torneira aberta nem o fogo aceso, nem o sorriso para os infelizes nem a oração de cada instante. É preciso não esquecer de ver a nova borboleta nem o céu de sempre. O que é preciso esquecer é o nosso rosto, o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso. O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos, a idéia de recompensa e de glória. O que é preciso é ser como se já não fôssemos, vigiados pelos nossos próprios olhos severos conosco, pois o resto não nos pertence.41

Talvez seja preciso esquecer a própria infância. Desta vez quem nos ajuda a

pensar assim é Deleuze: “Não tenho lembranças porque a memória é uma faculdade

que deve afastar o passado em vez de acioná-lo. É preciso muita memória para

rejeitar o passado, porque não é um arquivo.” 42

Esquecer a infância particularizada na história pessoal, nos álbuns de família,

ele sugere. Afastar a possibilidade de se pensar a infância a partir de uma infância

particular como se ela fosse generalizável, provedora de saberes. A infância

particularizada na história de vida de cada um tende a fixar-se como um saber

aproblemático. Comumente factual, a infância particular toma a forma dos saberes

construídos a seu respeito por meio de depoimentos, registros documentais e

lembranças fixas. Sob pena de não conseguirmos nos livrar destas posses, da

41 MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 1926. 42 DELEUZE, Gilles. L’Abécédaire de Gilles Deleuze. Paris: Éditions Montparnasse, 1997. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação, “TV Escola”, 2001. Letra E de Enfance (infância), s./p.

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história que prende a uma série de fatos ocorridos na infância, é preciso buscar uma

infância inapropriada.

Sem a preocupação em encontrar a essência da infância, tentar encontrar os

acontecimentos infantis. Pensar uma infância não mais numa escala temporal

definida, seqüencial e ordenada, mas na forma de um conjunto de acontecimentos

entrecruzados. Sermos honestos a ponto de assumir uma infância que flui em nós

desde que não a recusemos. Darmos conta dela em nós. Dedicarmos atenção a

uma infância que se mostra acessível desde que nos coloquemos no fluxo das

forças que a movimentam. Como se houvesse um campo onde a infância estivesse

gravitando e fosse acessível desde que nos lançássemos nele. Sem chão, sem

pontos fixos a nos apoiar, sem os pontos referenciais de sempre.

A atenção dedicada às crianças tem sido muito diferente desta. Confundida

com observância de normas jurídicas, a atenção à infância tem sido apropriada

pelos discursos mercantis que negociam indiscriminadamente produtos e serviços.

No âmbito educativo é preciso perceber na criança outra subjetividade, inclusive

corporal, que transcenda o modelo biológico. Superado este parâmetro, perceber um

estado de corpo da criança que se reveste de múltiplas significações face a seu

envolvimento com a cultura.

Na relação entre educação e infância, é imprescindível, ainda, desviar a

atenção. Estar desatento, neste contexto, é vislumbrar uma chance de fuga. A

desatenção pode mesmo ser uma ruptura com o modelo de atenção produtiva. Com

Manoel de Barros podemos aprender a dar atenção às inutilidades, ao detalhe,

aquilo ao qual não se presta atenção.

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É ele quem diz: Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.

Fotografei o sobre43. Quem sabe consigamos até mesmo sair da dimensão físico-

corporal que tem limitado nossa atenção a características biotípicas como alto,

magro, careca, negro, pardo em vez de sensível, carinhoso, agressivo ou astuto. O

referencial do corpo é o que parece ter restado dos referenciais que sustentavam a

constituição da identidade. Diante do desaparecimento dos usuais referenciais

religiosos, familiares e políticos, entre outros, talvez seja preciso atentarmo-nos aos

detalhes, às mínimas partes de tudo.

Por tudo isso é preciso pensar a infância fora de um prognóstico. Pensar a

infância longe das bases comportamentais, sem os marcos claramente divisores das

categorias. Por que não pensá-la como uma dimensão? Em seu aspecto

dimensional a infância poderia condensar atributos que ultrapassassem as

características biotípicas. O trabalho docente como ato de fazer educativo se daria

no sentido de propiciar um resultado que ultrapassasse a própria atividade. Educar,

não no sentido de atrelar o desenvolvimento biopsíquico da criança a uma educação

escolar, ininterrupta e formal, mas como superação da mera sobrevivência. Superar

também a antinomia entre explicação e compreensão, entre criança e adulto, entre

quem ensina e quem aprende. Alterar, enfim, este tipo de dualismo hierarquizante e

ordenador que não permite um modo alternativo de pensar as relações. Pensar, por

fim, na educação como experiências de aprendizagem no sentido em que ela pode

contribuir para a elucidação da experiência humana.

43 BARROS, Manoel de. Ensaios Fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 12.

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Superada a relação hierárquica entre ensinar e aprender, talvez o ato de

educar pudesse assumir a reciprocidade exigida para sua realização. Em um duplo

sentido, pensar no ato de educar como dar à luz um entendimento e dele receber

luz. O valor do uso do conhecimento seria, então, alterado. Seria possível até

mesmo romper com o discurso politicamente correto da partilha do conhecimento

enquanto forma democrática de ação. A partilha do saber como atitude moralmente

correta pressupõe uma repartição, não um entranhamento. Talvez não haja o que

partilhar, senão o que buscar juntos, cada um a seu modo.

Infância e educação poderiam ser vistas como instâncias flexíveis, móveis,

mutantes. Um desdobramento possível seria, então, repensar a própria idéia de

nascimento e morte únicos. Se só se morre uma vez, há uma vida contínua e linear.

Entretanto, se podem ocorrer mortes eventuais e nascimentos vários, a vida pode

ser entendida como descontinuidade e interrupções. Este é um tema recorrente na

poesia de Mário Quintana. Assim ele o diz:

Da vez primeira em que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha... Depois, de cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha. [...] 44

O poeta nos leva a pensar a morte e a vida de modo descontínuo, fora de

uma escala linear, seqüencial e única. Várias mortes possibilitam múltiplos

nascimentos, diferentes experiências de aprendizagem tanto de vida quanto de

morte. Se nascimentos, mortes e experiências de aprendizagem se entrecruzam de

modos variados, o ato de educar também pode ser entendido assim. Talvez o que

44 QUINTANA, Mario. Antologia Poética. Porto Alegre: L&PM, 1999. p. 19.

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dificulte este tipo de entendimento seja justamente a substantivação do ato.

Enquanto ação verbal, educar implica movimento, alteração, mudança. Educar

implica, deste modo, em alterar um estado de coisas. Educação pressupõe o

estabelecimento das coisas. Ainda que possibilite certo tipo de flexibilidade e

mudança, trata-se de estabelecê-los.

É que entre ensinar e aprender pode haver muito mais do que aquilo que as

técnicas de ensino, os recursos didáticos, os livros especializados e os conteúdos

assimilados pretendem realizar. Pode haver o novo, aquilo que surpreende, que

toma de súbito toda a aula, que interrompe o planejamento, que desconcerta o

professor, que desinibe a turma, que coloca em questão o que já havia sido dito a

respeito. Pode ser que nem tudo tenha sido previsto, que nem todas as coisas

ocorram como esperado, que nem todas as linguagens tenham sido exploradas, que

nem todas as interpretações tenham sido feitas, que nem todas as palavras tenham

sido proferidas. Pode ocorrer um jeito diferente de olhar as coisas já vistas. Pode

ser, então, que elas se tornem estranhas, que se façam diferentes, novas,

inusitadas... Pode ser que surja o espanto, a surpresa, a inquietação, o desejo

enorme de querer aprender. Pode acontecer do professor esquecer o que pensava

saber e se aliar ao aluno no gozo deste deixar-se aprender. Pode ser que eles se

tornem amigos, quem sabe aliados ou mesmo cúmplices. Que se ajudem, que se

preocupem uns com os outros, que se ouçam. Pode ser que levem outros a fazê-lo.

Pode ser que se sintam ora confusos, ansiosos e angustiados, ora envolvidos,

solidários e contentes. Pode ser que se sintam menos alunos e professores, mais

aprendizes, mais investigadores, mais pensadores, mais sensíveis. Pode ser que a

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aula seja outra, que a escola seja outra, que as formas de cada um ser o que é

sejam diferentes.

Entretanto, para que isso ocorra, é preciso colocar em questão o que já se

sabe sobre ensinar e aprender. Duvidar do que os anos de prática pedagógica

ensinaram. Repensar o próprio fazer docente. Questionar-se. Parece imprescindível

tornar estranho aquilo demasiadamente familiar ao professor: a sala de aula. Lidar

com a aula com menos privacidade, com menos propriedade, com mais intimidade.

Vê-la pela primeira vez a cada vez. Inventá-la de modos vários. Ansiar estar nela.

Experienciá-la. Este talvez seja o primordial sentido do fazer educativo: aprender e

deixar aprender.

Quem é este de quem se espera que aprenda e deixe aprender? Um

professor. Aquele que ensina, preconiza ou realiza algo. Instrui, leciona, faz

conhecer. Em sua prática diária, em seu ofício, o professor ministra o ensino de

conteúdos específicos de diferentes áreas do saber. Ele dá ensino ao aluno. O

aluno é aquele que recebe instrução e/ou educação de algum professor ou mestre.

É um estudante, um educando ou discípulo. É ainda “aquele que tem escassos

conhecimentos em certa matéria, ciência ou arte: um aprendiz”45, afirma um familiar

dicionário. Como resultado de um recente estudo etimológico de termos usuais no

campo pedagógico, outro dicionário esclarece parte do sentido negativo atribuído à

45 aluno. [Do lat. Alumnu, primitivamente, ‘criança que se dava para criar’.] S.m. 1. Pessoa que recebe instrução e/ou educação de algum mestre, ou mestres, em estabelecimento de ensino ou particularmente; estudante, educando, discípulo. 2. Aquele que tem escassos conhecimentos em certa matéria, ciência ou arte; aprendiz. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.95.

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palavra “aluno”. Segundo os autores, este sentido desdobra-se da confusão relativa

à origem do termo.46 Ainda que soltas, descontextualizadas, sem qualquer

comentário ou justificativa que as circundem, as definições dos termos “professor” e

“aluno” revelam traços ainda determinantes das práticas de ensino realizadas nos

espaços educativos. Se o professor é aquele que ensina e instrui, ao aluno só resta

ser aquele que recebe instrução e aprende. Parece simples, imediato, óbvio. Ação e

reação. Causa e efeito. Carência e suprimento. Fins e meios.

O problema é que entre ensinar e aprender não parece haver uma relação

recíproca simples. Nem tudo o que se aprende é ensinado. Nem tudo o que se

ensina é aprendido. Além de não dicotômica, esta relação é descompassada e,

dificilmente, harmônica. Ela também carece de certas condições para ocorrer e,

ainda que satisfeitas tais condições, não há garantias de êxito. Nem sempre o que

aprendemos é porque alguém nos ensinou. Nem sempre o que ensinamos alguém

aprende. Aprender e ensinar exigem tempo e cuidado, além de muita disposição. O

que se faz extrapola a simples transmissão e recepção de conteúdos. Alcança-se

46 “§ 22. Aluno - Em geral, chamamos ‘aluno’ ao sujeito que estuda no âmbito de uma instituição. O termo foi, curiosamente, objeto de uma explicação etimológica disparatada que o faz derivar de um suposto a ‘não’ - remetendo a um alfa privativo próprio do grego e lumen ‘luz’. Aluno seria ‘o que não possui luz’, ‘o que está no escuro’, e que, portanto, busca “iluminar-se” mediante o estudo. Essa explicação, decerto, não resiste à menor análise histórica ou lingüística. Basta pensar que teria que se tratar de um composto híbrido que apresentaria uma raiz puramente latina -lumen- unida a um prefixo privativo grego -a-. A rigor, o termo ‘aluno’ está aparentado semanticamente ao verbo educar (cf. § 1). Viu-se que uma das etimologias ligadas à idéia de educar se relaciona com ‘alimentar’. Não é de se estranhar, então, que aquele que recebe o alimento seja o ‘aluno’. Precisamente essa á a acepção do termo latino alumnus, que assim como alimentum, está formado a partir da raiz al, encontrada no verbo alere, ‘alimentar’. Alumnus tem, pois, uma primeira acepção de ‘criança’, literalmente ‘o que é alimentado’, e outra derivada e abstrata que ganha o sentido de ‘discípulo’ (cf. § 24).” CASTELLO; MÁRSICO, 2007, p. 34.

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um espaço intervalar, entre. Neste espaço circulam diferentes sujeitos, articulam-se

contradições, travam-se conflitos, interpõem-se interesses. A complexidade do

fenômeno educativo e a riqueza do contexto peculiar de cada fazer pedagógico

contrariam radicalmente a aparente imediatez da relação ensino-aprendizagem na

qual se inserem o professor e o aluno.

Entre o professor e o aluno ocorre um processo dinâmico e mútuo de ensinar

e aprender. Trata-se de um processo educativo para ambos e, como tal, implica em

mudanças, alterações. Um estado inicial é mudado, transformado em outro. Ações

são exercidas entre pessoas que interagem. Situações problemáticas emergem e

exigem pensá-las. Todavia, pensar a relação entre professor e aluno no ambiente

educacional não parece ser prioridade. Seja por não dispormos de tempo, seja

porque ao pensar esteja frequentemente associada a idéia de poder e autoridade

exclusiva alguns, ou mesmo pela falta de espaço nos currículos escolares. O fato é

que entre professor e aluno não nos parece passar nada de diferente daquilo que já

sabemos. Pensar esta relação implica inquietá-la, perguntar sobre a situação de sua

existência, colocá-la em questão.

Ao aluno é preciso que seja possibilitado o estudar. É preciso que ele seja, de

fato, estudante. Que estude. Talvez seja isto o que o aluno mais precise aprender: a

estudar. As instituições de ensino não se envolvem mais com isto. Elas não têm

tempo para o estudar, o pensar, o ler, o escutar, o silenciar ou o encontrar. As

instituições de ensino estão por demais ocupadas em desenvolver habilidades,

conteúdos, pensamentos, leituras, falas, silenciamentos. Estes estabelecimentos de

ensino ocupam-se de nomes que descrevem coisas já estabelecidas. Eles

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interessam-se pelo que já existe, não pelo que precisa ser inventado. Onde pode o

aluno encontrar um espaço para falar e ouvir palavras novas, se tudo o que lhe é

transmitido já foi dito, ouvido e repetido? Como poderiam ocorrer-lhe idéias novas se

tudo o que é consagrado como saber já foi pensado e explicado? Que novos

saberes poderia buscar se já se sabe tudo nas instituições que o educam? Se não

há tempo para estudar, se não o deixam aprender, que sentido faz permanecer

nestes locais de ensino?

Um estudante que estuda e aprende chega a desconcertar o professor e, por

vezes, é considerado uma ameaça. Sua autonomia intelectual e didática podem

mesmo assustar o professor que está preparado apenas para ensiná-lo. O

desprendimento do estudante que estuda e fabrica seu próprio aprendizado rompe

com a rotina tarefeira e estúpida do dia-a-dia escolar. Se o estudante que estuda e

aprende se converte numa ameaça ao professor que pensa poder ensiná-lo ou se é

o professor quem ameaça o estudo do estudante, a relação entre eles se perdeu, já

não faz mais sentido. É preciso dotá-la de novos sentidos. Reavivá-la. Pensá-la de

outro modo. Inaugurar outros espaços para sua realização. Rever seu cotidiano.

Verificar e criticar seus fundamentos. Transformá-la, enfim, num mútuo labor

significativo.

Quem sabe em uma nova relação o professor deixe de ser apenas aquele

que ensina, leciona e instrui. Talvez o professor venha a ser aquele que professa,

que se coloca publicamente, que pronuncia palavras desafiadoras. Um sujeito que

elabora sua própria fala. Aquele que pronuncia e se faz ouvir. Alguém que não mais

renuncie à sua condição de sujeito. Que não mais precise que lhe digam quem é.

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Um professor que resista a currículos, programas, métodos, recursos, supervisões e

treinamentos impostos. Uma pessoa que aprenda a ler, escrever e falar de novo.

Que se faça perguntas, professe-se.

Este professor, distanciado da sala de aula o suficiente para conseguir revê-la

com perplexidade e interrogá-la, poderá percebê-la em detalhes e formas que ainda

não tinha visto. É possível que se sinta afastado do lugar que habitava, um pouco

estrangeiro, embora na mesma terra. Terá que reinterpretar e reordenar as coisas

em sua nova experiência. O que antes parecia inquestionável será indagado,

desnaturalizado. Estará em condições de pensar e perguntar. O professor se

confundirá com o aprendiz. Aprenderá enquanto estiver pensando e interrogando

seu próprio ensinar. Este professor será cúmplice do ser humano que está à sua

volta, não do órgão ou instituição que o emprega.

Professor aprendiz, dotado de vida, corpo, linguagem e história próprias, este

sujeito poderá experienciar seu pensar. Não mais se limitará a desempenhar um

papel definido e esperado de um professor. Tornar-se-á visível a si mesmo. Vendo-

se, perceberá que vê, entende e significa, por si mesmo, a realidade. Não se

cansará diante da exigência de interpretação e reinterpretação de realidades novas.

Não se cansará porque estará também a se fazer novo. Movendo-se entre os alunos

e pensando com eles, o professor dará chances aos alunos para que afirmem seus

modos de pensar. Convivendo com os alunos poderá propiciar perspectivas de

pensamento conjunto. Juntos e cada um a seu modo, professor e alunos poderão

realizar experiências do pensar. Terão chances de manter em aberto a própria

relação. Não se preocuparão com conclusões. Não tenderão a elas. É provável que

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nem mesmo as desejem. Por que haveriam de concluir rapidamente uma

experiência?

O aluno terá chances de entender e dar sentido ao que faz. Não mais se

colocará como um tarefeiro a executar ordens alheias. Não se restringirá a cumprir

projetos de outrem. Tomará decisões. Correrá riscos. Sentirá angústia e ansiedade

de escolher o que fazer de si mesmo. Dará significados às suas ações. Terá

liberdade para criar-se, muito mais que uma vez. Sua eleição implicará, contudo, em

deliberação e compromisso. Pensará sobre seu próprio pensar e o pensar de outros.

Questionará a ambiciosa adultez que o cerca.

Porém, para que professor e aluno transformem a relação pedagógica que os

envolve num processo investigativo, é preciso que ambos saibam das convenções

normalmente utilizadas para organizar o contexto educacional. É necessário

perceber que muito do que se apresenta como natural ao professor é, na verdade,

fruto de construções históricas e sociais realizadas pelos homens e, portanto, sujeito

a revisões. Que não se trata de aceitar incondicionalmente, mas de questionar o que

se apresenta como realidade educacional. Que as coisas não podem ser

simplificadas de modo a parecerem inofensivas.

A despeito das dimensões físicas, das condições do mobiliário, da disposição

das carteiras, da quantidade de pessoas, das instituições que a abrigam, a sala de

aula continua a ser um espaço privilegiado de contato humano. É este espaço

aglutinador de conhecimentos, sentimentos, atitudes, idéias, palavras e gestos, que

nos desafia. Dele emergem diferentes linguagens, contato entre pessoas, afetos.

Estamos atentos ao que pode acontecer? Somos capazes de colocarmo-nos à

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espreita dos encontros que a sala de aula nos propicia? Conteremos nosso impulso

controlador de antecipar e impossibilitar o novo?

Talvez seja preciso dispormo-nos a rever nossa prática escolar cotidiana.

Redimensionar o saber e o fazer na comunidade estudantil. Investigar nossas

relações intersubjetivas. Reorganizar as formas do trabalho pedagógico. Investigar

os pressupostos que fundamentam o empreendimento educativo. Questionar

conceitos estabelecidos. Perguntarmo-nos sobre infância, adolescência e adultez.

Afirmarmos menos. Duvidarmos mais. Elaborarmos novas perguntas.

Estes são os caminhos por onde leva um entendimento filosófico da educação

e também da infância. Não se trata de negar os conhecimentos organizados na

forma de saberes científicos sobre a infância. Tampouco significa minimizar a

importância da história da educação para o entendimento da tarefa educativa

eminentemente humana, portanto vital. O que se busca, neste estudo, é repensar os

modos de entendimento que estruturam as relações entre educação e infância.

Pensar a infância de cada um de nós e, ao mesmo tempo, pensar uma infância

coletiva. E, mais do que isto, pensar um estado infantil principiador de novos saberes

e relações. Um estado sem pertencimento, mas repleto de intensidade.

Entendida como uma entidade ontológica singular, ou ainda como

constituição histórica e plural, a infância é sempre vista como alvo de um processo

educativo. Neste sentido, nem mesmo a tensão entre as categorias nas quais a

infância tem sido enquadrada, seja ela psicobiológica ou sócio-histórica, a distancia

da educação. A diferença reside, neste caso, nos desdobramentos educacionais

decorrente de um tipo de entendimento ou de outro. A escolarização se destaca, por

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conseguinte, como um dos principais dispositivos utilizados para conformar as

imagens elaboradas da infância. A fim de que este processo se solidifique e legitime,

evidencia-se também um discurso pedagógico que sustenta as imagens construídas.

A infância apresenta-se, assim, como unidade de referência para o ato

educativo. O desenvolvimento de saberes científicos organizados a fim de serem

ensinados perpassa a elaboração da idéia de infância enquanto tal. A infância tem

sido tanto objeto de conhecimentos como receptáculo de conhecimentos. Esta

situação a coloca numa dupla relação com os atos educativos formais. É assim que

os projetos escolarizadores consolidam um entendimento de infância que a associa

imediatamente à necessidade de educação formal. Ainda que considerada como

variável de análise social posto haver uma variedade de infâncias em vez de um

fenômeno único e universal, a infância continua a indicar participações futuras

projetadas para vidas adultas e educadas. A fim de atender modelos de

desenvolvimento infantil, projetos educacionais multiplicam-se. Cada vez mais,

infância e educação entrelaçam-se na forma como são concebidas. O pressuposto

crescimento natural e em etapas fortalece esta associação. Numa visão

evolucionista e funcionalista, as etapas de maturidade biológica vinculam-se ao

desenvolvimento social e supõem um percurso que vai da simplicidade à

complexidade, do irracional ao racional. Este padrão tem servido a um modelo

confortável de racionalidade adulta, tão confortável que não abre espaços para

entendimentos outros.

A racionalidade adulta constrói um modelo de infância que visa atender seu

desejo de controle e modelagem e cria também mecanismos de produção da

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imagem da infância carente deste controle. A educação surge, deste modo, como

um ritual necessário para a passagem da infância à adultez. O desenvolvimento das

potencialidades da criança de vir a ser o adulto esperado tem, nos processos

educativos, o meio considerado mais adequado. Entretanto, as capacidades de

aprendizado, descoberta, imaginação e resolução da criança parecem ser bem mais

ricas e complexas do que qualquer matriz que o mundo adulto possa enunciar para

o que tem de ser aprendido ou o que possa ser ensinado.

Se a educação e a infância podem ser abordadas de modo dimensional no

âmbito do conceito de experiência, quem sabe possamos repensar o diálogo -

pensá-lo presente em qualquer coisa que estabeleça uma relação com aquilo que

não somos nós. Nesta ótica a aprendizagem escapa da associação professor-aluno-

escola e também da idéia de educação como agenda pedagógica. Pensar a

educação como experiência de educar, a aprendizagem como experiência de

aprender e a infância como experiência de ser infantil difere radicalmente da idéia de

uma agenda, no sentido do que se deve fazer. Enquanto experiência, poderíamos

pensar a palavra docente como um ‘logos pedagógico’, uma palavra que precisa de

outra para surgir, embora não seja dela uma continuidade. Um tipo de palavra que

rompe com a pretensa imortalidade da fala docente, que assume o caráter

descontínuo do dizer educativo. Esta renúncia à imortalidade não significa perda,

mas uma forma de generosidade, a generosidade peculiar do ato de educar.

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2.2.2 Entre infância e literatura

Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras.47

Encher as palavras, primeiro de sons. Atingir a sonoridade nua das palavras.

Sentir o influxo do ar retirado de fora, colocado dentro do corpo, arrancado das

entranhas. Então, transformado na garganta em som, ser transportado de algum

vazio interior, carregado, pressionado para fora. Liberado pela boca em muitos

movimentos, esbarrando na língua, escapando por entre os dentes, vibrando nos

obstáculos, pressionando os espaços internos, perceber os sons modificando a

forma do rosto, encontrando e desencontrando os lábios, movimentando o nariz,

direcionando o olhar. Acompanhar o compasso das batidas do coração, sentir o

corpo expelindo suores, arrepios e calor ou mesmo frio – mais ar – outros ares – o

deslizamento nas cavidades nasais e, então, mais sons. Enfim, a explosão! Uma

explosão ritmada na cadência da combinação de movimentos audíveis de diferentes

durações – breves, longos, espaçados, sobrepostos – interrupções – pausas –

silêncios. Na repetição dos sons, o reconhecimento de sua produção, a verificação

de sua escuta. Sons audíveis, reconhecidos na combinação tantas vezes repetida e,

então, palavras! Palavras cheias de sons.

47 BARROS, Manoel de. Livro de pré-coisas: roteiro para uma excursão poética no Pantanal. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 33-4.

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Ao ouvir demasiadas palavras ou palavras demasiadamente ditas deixamos

de perceber quão maravilhoso é o processo sonoro ao qual elas estão submetidas.

Já não conseguimos mais sequer pronunciá-las numa cadência própria, num ritmo

nosso. Não as ouvimos. Desperdiçamos a delícia de tê-las em nós. Apenas nos

ocupamos, como tarefeiros, de fazê-las, incapazes de tê-las. Distanciamo-nos da

infância do dizer. Aquela agradável brincadeira de experimentar sons, de produzir

movimentos labiais, de inventar palavras e com elas designar novas coisas talvez já

nem seja mais memorável por muitos de nós. Guimarães Rosa nos incita a provar

deste prazer: Ela apreciava o casacão da noite –‘cheiinhas!’ – olhava as estrelas,

deléveis, sobre-humanas, chamava-as de ‘estrelinhas pia-pia’.48

Este é um belo exemplo do enchimento sonoro de uma palavra que a

interioriza e antecede o revestimento da capa de saber sobre ela colocado. Neste

caso, Rosa altera o próprio tamanho da palavra ‘cheinha’, acrescentando-lhe uma

vogal. O efeito sonoro resultante deste acréscimo faz com que a pronúncia da

palavra se expanda e preencha o tempo de sua articulação com sonoridade e

sentido reforçados. Apesar de cheias, de conterem o que sua capacidade comporta,

as estrelas continuam pequenas e, então, o uso da forma diminutiva ‘inha’

acrescenta-lhes uma nuança infantil. O escritor talbém enche de sons as estrelinhas

48 ROSA, João Guimarães na voz do narrador anônimo que relata seu encontro com Nhinhinha, personagem central do conto ‘A menina de là’. In ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. 21.

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dando-lhes voz de pássaro. Esta é referência mais próxima que a menina possui. As

estrelinhas piam, são estrelinhas pia-pia. 49

Então, após encher as palavras de sons, é preciso enchê-las de sentidos.

Botar enchimentos de sentidos nas palavras é o que fazem as crianças pequenas

diante do ainda inominado. Um tipo de experiência que a elas ficou restrito. Um

privilégio de crianças muito pequenas, de artistas, de poetas, velhos e loucos.50 A

nós, os outros, que não pertencemos a qualquer destas categorias, o que restou?

Parece ter-nos restado apenas a palavra já cheia, recheada, coberta de significados,

cansada de tanta cobertura. A palavra não-sentida, sem-sentido, sem-sentir.

A palavra outra, aventureira, pronta para receber enchimentos, é uma palavra

infantil. Uma palavra leve, saltitante, sem-lugar, disposta a dizer coisas diferentes

quando pronunciada por gente diferente. Uma palavra a cada vez dita e repetida

com cuidado. Uma palavra sabedora do risco que a aventura impõe. Uma palavra

ciente da necessidade tanto do cuidado quanto do risco. Uma palavra que abre

intervalos, que é escutada como se nunca tivesse sido dita. A aventura da infância

carece de uma palavra assim, também aventureira. Literatura e infância encontram-

se aí: na aventura do dizer-se. Ambas, infância e literatura encontram na palavra a

manifestação daquilo que são. A palavra que se coloca e nos coloca entre nós. A

49 Outro exemplo da atenção dispensada por Rosa aos sons que antecedem as palavras pode ser destacado no seguinte trecho do conto ‘As margens da alegria’. Nele, o menino, maravilhado com as árvores avistadas desde uma breve clareira, pergunta-se: “Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores? Só sons.” In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. 4. 50 Guimarães Rosa, em correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizarri, evidencia, em expressões da arte popular, a força da carga sonora e semântica que concentram. Ver ROSA, João Guimarães. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 38.

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palavra brincalhona, inexata, trapaceira. Uma palavra que provoca desencontros e

surpreende com o novo o que já foi visto. Este tipo de palavra não decorre de

premissas bem arranjadas, nem do rigor lógico e formal de proposições. Esta

palavra brota de súbito.

Na pressa em que vivemos nos afastando da experiência com as palavras, já

não mais deixamos que elas atravessem nossa pele, que corram por nossos corpos,

que alimentem nossas vidas. Não mais incorporamos as palavras. Elas não são

mais encarnadas. Não conseguimos, então, nos inventar. Não temos como nos

pensar diferentes daquilo que conseguimos dizer de nós mesmos. Não conseguimos

também dizer coisas diferentes dos outros. Até os outros são sempre os mesmos. A

própria alteridade é completamente reconhecível diante da escassez de modos de

dizer.

Precisamos pensar na palavra como um bem produtivo, capaz de gerar gente

inventiva, inclusive de si mesma. A palavra literária talvez possa nos livrar das

especificidades e exatidões do linguajar técnico-científico adulto. Ela pode nos

remeter ao estado infantil no qual as coisas ainda se misturam, se dissolvem e se

transmutam. Um estado anterior àquele no qual já sabemos de antemão o que

querem dizer as palavras. Um estado principiador, anterior à compreensão

aproblemática do dizer. Aquele estado que é, a um só tempo, o estado comum e

singular da experiência humana. O problema de passar por uma experiência e ser

capaz de narrar, de algum modo, o acontecimento é o que evidencia Guimarães

Rosa em suas Primeiras Estórias. Nelas, afirma Paulo Rónai, em sua introdução

crítica aos contos,

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Cada estória tem como núcleo um acontecimento. Mas o sentido atribuível a esse termo não é o que lhe dão comumente os dicionários, isto é, não é sinônimo de ocorrência. “Parecia não acontecer coisa nenhuma’, adverte-nos o contista certa vez; e em outra ocasião pondera, ainda mais explícito: ‘Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.’Os protagonistas de Primeiras Estórias farejam esses acontecimentos, adivinham esses milagres. São todos, em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma idéia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.

Um gesto poético: renovar as palavras comuns, fazê-las soar de um modo

inaudito. Escrever as palavras como uma criança que pela primeira vez desenha no

ar, no papel ou no chão, letras que se ajuntam. Ler as palavras como se ainda não

tivessem sido lidas. Pensar as palavras como se elas ainda não tivessem sido

pensadas. Transformar o uso normal da língua e interromper o sentido comum das

palavras. Liberar os modos de pensar. Não mais pensamentos, mas a experiência

do pensar. Não mais leituras, mas a experiência de ler. Não mais escritos, mas a

experiência de escrever. Continuar a dizer, ouvir, ler e escrever, mas na

continuidade, inscrever um começo, encontrar a diferença, renovar. Essa não é uma

tarefa fácil e ela se torna ainda mais difícil para quem não dispõe dos recursos que

sua própria língua oferece. Daí a importância da escrita literária enquanto voz que

fala mesmo com quem não a pronuncia. É o que tão bem expressa Paulo Rónai na

continuidade de sua introdução aos contos de Rosa:

Os que desencadeiam essa corrente e nela se banham, sentem-na com toda a intensidade, mas encontram dificuldades em comunicá-la. Ainda que tenham o verbo fácil, falta-lhes o domínio da linguagem abstrata e

51 RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. Introdução critica. In ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. xxxii.

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exteriorizam sua fortes experiências íntimas com toda a sua riqueza de matizes numa língua concreta, saborosa e enérgica; a maioria, porém, compõe-se de taciturnos, desajeitados e ensimesmados, que nem tentam exprimir-se e passariam despercebidos pela vida se não encontrassem quem lhes emprestasse a voz. Reconstituir a fala daqueles, traduzir o silêncio destes – eis a tarefa do contista.52

Nas suas Primeiras Estórias, Rosa rompe a noção comum de comunicação

como relação entre consciências ou como transporte lingüístico de um “querer dizer”

e insere-se no campo do “querer ser” das palavras. A dignidade da palavra em fazer

ser quem somos, muito mais do que em fazer-se meio ou veículo de comunicação.

Não mais a palavra instrumental, a palavra que transmite, mas a palavra poética,

expressão da escuta. Fala e escuta autênticas, que não se limitam ao dizível, mas

que buscam o indizível da vida. Fala e escuta preguiçosas, cansadas da pressa de

compreender. Um tipo de escuta que melhora a forma de dizer. Uma forma de dizer

que escuta. Imagens auditivas associadas a imagens visuais que configuram letras,

palavras e frases. Este é um dizer genuíno e inexplicável. Uma relação com as

palavras que necessita da poesia. Uma escrita incorporada para ser lida como algo

que se consulta, algo que antecede a leitura formal das coisas. Uma escrita que gera

a surpresa verbal, que brinca de se envolver com sons e sentidos, perspicaz diante

do cotidiano, enlouquecida nos inusitados jogos associativos que engendra. Uma

escrita rigorosa, precisa e delirante.

Neste mundo verbal criado por Rosa habitam personagens integrados a

paisagens como partes constitutivas do cenário. Personagens que não foram

transportados, que não se transportam, mas que ali estão misturados a tudo. Alguns

52 RÓNAI, 1972, p. xxxiii.

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deles sequer precisam do movimento para acontecer. É o caso de Nhinhinha que

quase sempre parada, quietinha, parece inventar uma geografia própria. Andeja,

mas sem sair do lugar. Ela é do lugar e, ainda assim, é estranha ao lugar. Sua quase

imobilidade é que, num aparente paradoxo, a lança numa localidade indistintamente

longínqua, lá. A infância que ela expressa parece ser, pensando com Deleuze, uma

geo-infância.53 A menina não precisa sair. “... sempre sentadinha onde se achasse,

pouco se mexia.” Até a exteriorização das suas palavras é lenta: “Eu... to-u... fa-a-

zendo”. É como se a menina já tivesse um país dentro de si. Em sua geo-infância, se

se pode afirmá-la, Nhinhinha talvez cruze alguns dos ‘países profundos’ que

Deleuze afirma possuir, em resposta a uma pergunta sobre sua aversão a viagens:

[...] pode haver viagens lentas. Não preciso sair. Todas as intensidades que tenho são imóveis. As intensidades se distribuem no espaço ou em outros sistemas que não precisam ser espaços externos. Garanto que, quando leio um livro que acho bonito, ou quando ouço uma música que acho bonita, tenho a sensação de passar por emoções que nenhuma viagem me permitiu conhecer. Por que iria buscar estas emoções em um sistema que não me convém quando posso obtê-las em um sistema imóvel, como a música ou a filosofia? Há uma geo-música, uma geo-filosofia. São países profundos. São os meus países.54

O menino do conto ‘As margens da alegria’ também realiza diferentes viagens

ao viajar de avião para uma cidade inominada na companhia dos tios. Desde as

primeiras linhas Rosa nos adverte sobre o caráter inusitado de tal viagem. Afinal, no

53 Tomamos da expressão “Geo-filosofia” cunhada por Deleuze, a forma e, neste caso, a transportamos para a idéia de infância desterritorializada. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 111. 54 Nas palavras de Deleuze: “[...] Mas a desterritorialização é ‘absoluta’ quando a terra entra no puro plano de imanência de um pensamento – Ser, de um pensamento – Natureza com movimentos diagramáticos infinitos. Pensar consiste em estender um plano de imanência que absorve a terra (ou antes a adsorve). A desterritorialização de um tal plano não exclui uma reterritorialização, mas a afirma como a criação de uma nova terra por vir. In DELEUZE, Gilles; GUATTARI Félix. 1992, p.117.

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feliz era onde ela acontecia55. O desinteresse do menino pela cidade em construção

– o motivo da viagem para os adultos que o acompanhavam – parece revelar seu

interesse em percorrer outros trajetos, em inventar seus próprios percursos, em

explorar suas terras estrangeiras.56

O acontecimento é o cerne da poética de Rosa. É por meio do olhar empírico

imanente às coisas destacadas que o poeta extrai as intensidades da ambiência

natural e cultural que o circunda. O olhar poético de Rosa equivale ao conceito do

empírico-transcendental de Deleuze. Na sua procura pelas coisas primeiras, Rosa

encontra a comunhão com as coisas no plano da imanência pelo exercício da

exterioridade que caracteriza seu olhar poético. A transitividade entre o espaço

interior do escritor e o espaço exterior no qual insere sua escrita é o que parece

encontrar. Em vez de essências estáticas, um fluxo de forças. Daí a imperiosa

necessidade de subverter a língua, de brincar com a sintaxe e a semântica. Na

verdade uma linha de fuga, ao passo que busca o enchimento de novas palavras

produz o esvaziamento do eu lírico, da prepotente subjetividade, até alcançar o

esfacelamento da identidade humana na metamorfose com a paisagem. É como se

ele nos dissesse que a invenção demanda menos saber, mais aprendizagem, menos

facilidade técnica, mais experiência poética. É assim que Nhinhinha consegue

satisfazer seus desejos, inutilidades que não possuem valor na cotidianidade adulta

da vida:

55 ROSA, 1972, p.3. 56 In: ‘O abecedário de Gilles Deleuze’, letra V de viagem (1997, s./p.): CP: Terras estrangeiras? GD: Minhas terras estrangeiras que não encontro em viagens.

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Eu queria o sapo vir aqui. Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para os pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera.57

Já não são mais os fatos cotidianos que se tornam matéria literária, mas a

fuga da percepção e da emoção comum, a ruptura com um esquema interpretativo

das vivências que revestem as sensações de uma dimensão estética.

A multiplicidade de possibilidades que a infância sugere encontra na

dimensão estética da arte literária sua forma mais perfeita de expressão. O

enchimento sonoro e semântico das palavras se faz necessário para que a

linguagem possa dar conta dos sentidos que irrompem abruptamente. Os

acontecimentos carecem de palavras inusitadas, inventadas para dizê-los. São os

neologismos exigidos pelo movimento de um pensar reconstrutor. Tal qual uma

criança inoportuna e impertinente a instaurar problemas onde há conformidade e

aceitação, o entrecruzar dos espaços interiores e exteriores extrai de cada sensação

o que ela possui de mais abstrato. E, na busca por dizer a sensação, é que a

linguagem literária se dispõe. “O passarinho desapareceu de cantar...”58, diz Rosa

na figura de Nhinhinha e reforça o tom poético ao alterar a forma de dizê-lo na

‘explicação’ do narrador: “De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no

escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se

interrompera.” 59

57 ROSA, 1972, p. 22. 58 ROSA, 1972. p. 21. 59 Idem.

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Parte integrante do trabalho literário, a sensação pura vai sendo

intelectualizada, tornada abstrata em meio à consciência das coisas. O nível próprio

da arte surge com a sensação do abstrato que aparece como expressividade

artística. É o poder da expressão da linguagem que define a emoção expressiva. A

emoção torna-se expressiva quando é capaz de expressar outros sentidos além da

sensação original. José Gil destaca como traço distintivo da emoção artística o

esforço intelectual do escritor, ou seja, seu trabalho mental60. A relação com a dupla

realidade das coisas e dos modos de dizê-las. É neste sentido que o poeta vem a

ser um fingidor, aquele fingidor tão bem expresso por Fernando Pessoa:

O POETA é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm [...]61

A ação intencional sobre a linguagem acrescenta elementos outros à

sensação original que surgem como formas abstratas traçadas pelos recursos

expressivos da língua: o ritmo, a rima, os fluxos expressivos do poema ou do conto.

A consciência da consciência da sensação é realizada. Este é o ponto de tensão

entre o que se passa com a criança que inicia um processo singular de relação com

as coisas e seus nomes. Ela interage com um mundo verbal que lhe é novo e, aos

poucos, toma consciência das sensações, bem como das formas de expressá-las. O

60 GIL, José. Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. 61 PESSOA, Fernando. Autopsicografia. In; Mensagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 201.

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trabalho adulto sobre as palavras é diferente. Ele se realiza num trabalho posterior

de metacognição que duplica a consciência do que se passa ao nível sensível.

Guimarães Rosa não é uma criança, mas na adultez que possui enquanto escritor,

busca uma linguagem infantil capaz de duplicar a consciência e inventar uma nova

realidade que une a face interior da sensação com sua face interior. É Fernando

Pessoa quem apresenta os procedimentos poéticos que constituem sua arte literária

ao falar sobre o percurso atravessado pelo escritor entre as sensações e a produção

artística literária:

A arte é uma tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que as sensações aparentemente do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem. [...] Assim, a arte tem por assunto não a realidade (de resto, não há realidade, mas apenas sensações artificialmente coordenadas), não a emoção (de resto, não há propriamente emoção, mas apenas sensação de emoção), mas a abstração. Não a abstração pura, que gera a metafísica, mas a abstração criadora, a abstração em movimento.62

Para Fernando Pessoa, quanto mais abstrata, mais intensa a sensação. A

abstração proporcionada pela arte, ou seja, a criação de uma realidade abstrata

permite a união da realidade exterior com a consciência da sensação interior e a

produção de intensidades mais ricas e mais variadas. Em Guimarães Rosa temos a

ilustração do atravessamento do olhar de um outro que melhora nosso olhar. Um

olhar que se distancia do nosso e nos aproxima do que vemos. Um linguajar que nos

oferece a vida em alteridade, que nos faz ver o que não conseguiríamos ver

sozinhos. Não queremos correr o risco de apenas utilizar a literatura para ilustrar

uma tese a respeito da infância. A prosa de Guimarães Rosa possibilita muito mais

62 Fernando Pessoa apud Mariano Gazineu David. In: DAVID, Mariano Gazineu. Arte e literatura no pensamento de Gilles Deleuze. UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, 2003 (Dissertação de Mestrado).

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do que isso. Ela constitui conceitos compreensivos do mundo e criam imagens

literárias que inspiram um novo pensar. Interessa-nos saber não apenas o que há do

que pensamos a respeito da infância na obra do autor, mas também e,

principalmente, o que é possível saber sobre a própria infância na interlocução com

suas obras. Intentamos algo como uma dupla aprendizagem, um encontro, deveras.

A arte literária de Rosa apresenta-se, para nós, emblemática da rebeldia e

anti-afirmação capazes de deixar que a vida seja entendida em seu desajuste e falta

de sentido. As imagens literárias criadas pelo escritor vinculam conceitos e exploram

a experiência humana de maneira perturbadora. Com Rosa não buscamos a

verdade da infância, mas a dimensão afetiva, não-argumentativa e estética da

experiência infantil com o mundo. Não nos interessa elucidar como a literatura do

autor pensa a infância, mas como podemos, nós mesmos, pensar, imaginar, sentir -

enfim, deixarmo-nos afetar com a literatura e a infância.

Literatura e infância, em especial nas estórias de Rosa, parecem vislumbrar a

infância como uma imagem do devir-outro incessante que atravessa a escrita e

perpassa os personagens. A passagem pela infância parece necessária para que

uma outra voz se faça ouvir. É deste modo que no conto ‘A menina de lá’ evidencia-

se uma relação íntima, porém obscura, não elucidada, entre Nhinhinha e seu

narrador. Ele é adulto, um passante que se detém no encontro com a menina. Ela,

uma criança que o intriga na estranheza do seu jeito de ser. Guimarães Rosa evoca,

já no nome da menina – Nhinhinha – a idéia do lado minoritário das coisas – a forma

diminuta de identificar a criança – criancinha, menininha, Nhinhinha. Ele parece

reforçar um tempo de infância, um tempo minoritário, como devir-tempo de todos os

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tempos, dispositivo central da heteronímia literária. As conversas do narrador com a

menina Nhinhinha são desterritorializadas - lá. A própria criança torna-se impessoal,

sem identidade, já que o nome Nhinhinha identifica mais que aquela criança, uma

criança qualquer, um devir-infância. Trata-se de um tempo novo do sentir, do

perceber as coisas e dizê-las.

É como se Rosa quisesse mostrar a força infantil do devir-outro na relação

entre o adulto e a criança. “É a própria idade que é um devir-criança...”63, afirma

Deleuze. Neste conto não se trata de um adulto a recordar sua própria infância, mas

de um adulto a narrar seu encontro com uma criança. Também não se trata de

contar a estória daquela criança, senão de destacar, nos blocos de infância ali

explorados, um devir-infância, um devir-outro.64 “Sua casa ficava para trás da Serra

do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa...”, assim começa o conto. O

narrador passa, então, a descrever a menina em sua estraneidade, no impacto que

causava nos adultos sua radical diferença:

Ninguém entende muita coisa do que ela fala...” – dizia o pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: “Ele xurugou?” – e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - “Tatu não vê a lua...” – ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida. Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e

63 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997. 64 “A lembrança opera uma reterritorialização da infância. Mas o bloco de infância funciona de modo inteiramente diferente: ele é a única verdadeira vida de criança; ele é desterritorializante; ele se desloca no tempo, com o tempo, para reativar o desejo e fazer proliferar suas conexões; ele é intensivo e, mesmo nas mais baixas intensidades, relança uma alta.” DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 114-5

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silêncios. (...)De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. – “Nhinhinha, que é que você está fazendo?” – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: -“Eu... to-u... fa-a-zendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo uma tolinha?65

Rosa, de forma inquieta e questionadora nos faz pensar sobre esta menina

diferente do adulto e também da criança estereotipadamente ágil, esperta, alegre e

brincalhona. Nhinhinha é a anti-criança ingênua e feliz. Ela é uma figura do

estranhamento infantil das coisas, do sentimento de alheiamento e intimidade com a

diferença. Rosa duvida de sua tolice e sugere uma resposta negativa à pergunta por

ele mesmo lançada: “Seria mesmo seu tanto tolinha?” 66Não, ela não é uma tolinha.

O sem-sentido do seu dizer por meio do “esquisito do juízo ou enfeitado do sentido”

violentamente rompe a regularidade do sentido usual das palavras claras. Sua fala

problematiza, gera sentidos novos, emprenha as palavras. Não são as palavras que

causam estranheza, mas os sentidos que adquirem ao serem por ela empregadas

de modo não convencional. A um só tempo, Rosa reforça a idéia de uma linha de

fuga à organização lógica das idéias e reclama a forma figurativa da linguagem

“enfeitada” infantil.

“Deixa... Deixa...”, era o que dizia a menina em resposta à zanga do pai e da mãe. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. 67

Guimarães Rosa parece apelar, na voz da menina, para que seja discernido

aquilo que se tornou novidadeiro, o que se anuncia e se traveste de acontecimento,

65 ROSA, João Guimarães. A menina de lá. In: Primeiras Estórias. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. p. 20-1. 66 ROSA, 1972, p. 21. 67 Ibidem.

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daquilo que acontece porque irrompe. É neste sentido que Rosa desdenha dos

acontecimentos enquanto fatos e que chama a atenção para o que desacontece.

Nhinhinha, em seu devir-infância, não se ocupa das coisas novidadeiras, mas do

que a afeta. Em relação ao vento, afirma: “A gente não vê quando o vento

acaba...”68

Guimarães Rosa não se ocupa de recordações como representações das

afetividades de um sujeito situadas em determinado tempo e lugar. O menino viaja

numa estória, numa narrativa ficta, sentido explicitamente colocado nas primeiras

palavras do conto, em letra maiúscula: “ESTA É A ESTÓRIA.”69 A menina,

Nhinhinha, é de lá da serra do Mim... Não há referências localizadoras, mas fluxos

de ocorrências que entram nas paisagens desenhadas por ambos nos quadros

infantis em que coisas, espaços e gente se dispõem de maneira a permitir-lhes

inventar memórias. Quem narra o encontro com Nhinhinha ou as viagens do menino

insere-se no tempo da infância no qual se pode brincar com as palavras, inventar

possibilidades, ocupar-se do impossível. É o devir-criança que permite a Rosa

inventar uma serra do Mim, uma menina de lá, um fazer saudade.

As imagens da infância que encontramos em Rosa conectam criança e

adulto, sentido e sem-sentido e supõem um devir-outro, aquela transmutação

literária que acontece quando o autor assume outras formas de ser por meio dos

personagens que cria, da mesma forma que a criança se inventa outras ao brincar. A

68 Ibidem. 69 ROSA, João Guimarães. As margens da alegria. In: Primeiras Estórias. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p.3.

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infância, fora do tempo cronológico, torna possível a Rosa, escritor adulto, jogos de

devir-outro. Nestas brincadeiras de ser outros, o autor cria espaços nos quais se

move encarnando diferentes personagens e múltiplas emoções. O plano da infância,

complexamente elaborado na linguagem literária, passa a configurar o espaço onde

os devires do adulto tornam-se possíveis.

O devir-outro heteronímico não é um devir-criança, mas o agenciamento de um devir-outro (ou devir-adulto) da criança e de um devir-criança do adulto poeta. O plano de infância constrói-se neste ponto de convergência, ou de agenciamento.70

A infância comum, trivial, não é o ponto de interesse da literatura. Literatura e

infância encontram-se, em termos deleuzianos, no fluxo de sensações e

intensidades do devir-infância poético. José Gil expressa com impressionante

clareza a dimensão lúdica da escrita literária que aproxima adultez e infância nas

brincadeiras de ser outro tão peculiar à criança em seus jogos infantis quanto ao

escritor na criação de personagens. Atravessar o tempo cronológico por meio de

uma topologia construída é o que faz a literatura. Nas palavras de José Gil:

Trata-se de ganhar consistência no fluxo de sensações ou intensidades do devir-outro poético; sem por isso perder a plasticidade e a multiplicidade sempre nascente da “brincadeira” que é o devir-adulto da criança. Mas isso significa, no adulto, que, num certo sentido ele nunca deixou de ser criança; ou, se o deixou de o ser, perdeu a capacidade de devir-outro.71

Este adulto que, ao escrever, deixa emergir a criança que nele persiste,

configura a possibilidade do trânsito temporal, da ruptura com a tirania de um tempo

estagnado no passado ou no presente, bem como sua fixação futura. A literatura

70 GIL, José. Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 93. 71 Idem, p. 94.

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possibilita, por meio da mobilidade de planos que inventa, a fluidez necessária ao

estado infantil do inventar-se outro.

[...] Por que é que a criança brinca de ser múltiplos personagens? Para, precisamente, procurar a consistência que não possui. O devir-guerreiro ou o devir-menina da criança é um tatear infinito das suas sensações, uma experimentação para encontrar o que lhe convém, saber o que pode conectar, fazer durar, construir. A criança, nos seus vários devires e, em particular, no seu devir-adulto, visa a dar uma consistência às suas sensações na dinâmica própria do seu presente (tempo seu e tempo do adulto que devém). Mistura os tempos diferentes, misturando(-se com) personagens. A simbolização infantil compõe um devir (o ser animal etc): a criança procura o plano em que pode coexistir com o adulto (ou com o animal) sendo criança – esse é o seu plano de infância. Mas plano móbil, ele próprio em devir (devir-adulto). Fractalização indefinida do devir-criança (da criança) como devir-adulto.72

A infância da criança e a infância do adulto inventada literariamente nos

intriga pelo duplo movimento de devires. O adulto que escreve o texto literário tem

que entrar neste espaço móvel e neste tempo mutante, flexível. A criança que brinca

de ser outro inventa um adulto do mesmo modo que o adulto que escreve recria a

criança que nele existe. Este duplo sentido de fazer-se outro obscurece os pontos

fronteiriços entre adultez e infância e lançam as pretensas polaridades num fluxo

contínuo de alternância.

O devir-infância do adulto implica entrar nesse tempo infinitamente delicado e plástico (um tempo que se desdobra como devir-múltiplo, devir-adulto múltiplo e fractal). Devir-adulto não significa chegar a um estado definido macroscopicamente como “estado de adulto” (com uma inscrição social, psicológica, biológica, fixada uma vez por todas); mas sim atingir uma consistência em que todas as sensações e intensidades microscópicas de adulto possam coexistir – quer dizer, em que os devires-outros do adulto, inclusive o devir-criança do adulto, sejam possíveis e coexistentes.73

72 Idem, p.94. 73 Idem, p. 94-5.

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A concepção de infância como metáfora do novo, como palavra inaugural que

denomina aquilo que é visto pela primeira vez, configura também o dispositivo

necessário para um devir-outro literário. Neste sentido a infância se traduz em um

estilo, um modo peculiar de escrever que se constitui numa quase clínica como

sugere Deleuze em seus estudos literários – na problemática da “crítica e clínica”.

Diferentemente dos regressos à infância psicanaliticamente sugeridos, trata-se de

uma passagem, uma travessia necessária para um entendimento outro das coisas.

Guimarães Rosa, adulto, alcança, por meio da arte de lidar com a palavra

literária, travessias e traquinagens contínuas que fazem de sua escritura inscrições

infantis no mundo. Seus personagens, sejam eles crianças como Nhinhinha , ou

adultos como Riobaldo, inscrevem-se em paisagens, realizam percursos, movem-se

em planos que alteram, além deles mesmos, a escrita que os expressam. Entre o

adulto que escreve e os personagens inventados, crianças ou não, interpõem-se

trajetos que são percorridos como uma criança a traçar itinerários que a desloca,

que a lança num fluxo de movimentos. Os trajetos, embora por vezes apareçam na

extensão de seus desenhos, em mapas e nomes, potencializam-se na força e

intensidade dos acontecimentos que propiciam. Não é o que se passa com

Riobaldo? Tendo percorrido estradas, veredas e margens de rios, Guimarães Rosa o

leva a encontrar o sertão dentro dele. Inimitável, como o apresenta Paulo Rónai, na

intuição das correntes fundas do inentendível mundo íntimo,74 Guimarães Rosa

chega a uma infância da escrita e diz coisas que só entenderá uma criança,

74 In ‘Os vastos espaços’, introdução crítica de Paulo Rónai que antecede as Primeiras Estórias a partir da 3ª edição da obra, p.Ivi.

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precisamente a menos provável de seus leitores,75 ou um leitor que, em seu devir-

criança, se torne infantil.

3 PALAVRAS PRIMEVAS

3.1 CONTAR A INFÂNCIA

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, Aperta e daí afrouxa, Sossega e depois desinquieta.

75 Paráfrase da fala de Adolfo Casais monteiro, citado por Paulo Rónai em sua introdução crítica à obra Primeiras Estórias: “Evidentemente há coisas que só entenderá em Grande Sertão: Veredas o sertanejo, precisamente o menos provável de seus leitores”, p. Ivi.

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O que ela quer da gente é coragem.76

Eu fabricava coragem para puxar uma prosa com aquele João.77

De uma profunda admiração pelas palavras e de um rendido encantamento

pelo que alguns escritores conseguem delas, extrair, irrompe uma coragem para

prosear com este João, João Guimarães Rosa. Uma prosa poética em um texto

acadêmico poiético. Uma tese. Uma escritura decorrente do esforço descomunal de

habitar as palavras e de ser, nelas, o que se diz. O resultado de uma experiência de

escrita assim tão forte, só pode ser uma transformação. Apresenta-se, então, esta

tese, transformada pela travessia, ainda assim, uma tese. Enfim, foi este mesmo

João quem disse: “Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e

passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso

do que em primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?”78

Um rio, para João Guimarães Rosa, é a expressão da vida a exigir uma

travessia. Como um rio, uma vida desenha um curso pelo qual uma travessia pode

ocorrer. Um curso cujo percurso se configura na travessia, não antes, nem depois,

mas no atravessar. O perigo, iminente, habita exatamente este espaço-tempo. É ele

que coloca em risco o antes e o depois da travessia. E, mais, desdenha a

76 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 241. 77 BARROS, Manoel de. REVISTA CULTURAL, 1995, p. 11. 78 ROSA, 1982, p.26.

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antecipação e confunde a memória. Exigente, o perigo impõe o risco e desafia a

coragem. É preciso muito engenho para fabricar uma força interna e também muita

disposição para transfigurar coisas e enfrentar o perigo. É isso o que Rosa realiza

por meio de sua escrita. É também o que ele nos desafia a fazer. Este texto-

travessia que aqui se apresenta na forma de uma tese de doutoramento, não fossem

as características formais próprias de um tipo de escrita e de outro, seria um conto, a

estória de passar um rio a nado e dar, na outra banda, num ponto bem diverso do

que em primeiro havia sido pensado.

Um conto é algo que se conta, uma forma de narrar. Além do conteúdo, do

tema narrado, vale muito num conto o jeito de narrar, a arte mesma de contar uma

estória, o problema mesmo de sua autenticidade, vitalidade e valor. Um conto é,

neste sentido, sempre um campo de tensão entre os aspectos fictos e autênticos do

que se diz. O que está em jogo, num conto, além do que se diz, é a problemática

intrínseca ao próprio estatuto da verdade do que se diz. Trata-se de uma narrativa

que coloca sob suspeita o próprio relato que a constitui. A problematização do relato

deixa em aberto um espaço para se pensar no inenarrável, nos limites do dizível. Daí

que o conto questiona, já de início, na forma de uma fábula, o uso da língua na

transição entre a interioridade do que se sente e a exterioridade do que se diz. Isto

se dá de forma concisa e intensa, como numa linha de fuga para onde convergem

todas as forças estratégicas da língua, a fim de garantir uma saída. Há, num conto,

um princípio de unidade que, a despeito, ou mesmo por conta dos conflitos e

tensões narrados, gera a busca ansiosa de uma linha de fuga. É preciso, num conto,

buscar uma saída para fugir do forte abalo, dos tremores causados pelo impacto de

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alguma experiência rompente, única, que exige, por força da sua potência e pela

surpresa causada, um esforço incomum de escrita.

Foi o próprio Rosa quem cunhou o gênero estória como conto breve ou conto

curto dotado de uma aura mágica.79 A estória trata de um tipo de narrativa curta que,

apesar de se fundamentar na história, de partir do plano dos acontecimentos,

simultaneamente o transcende em um movimento de ruptura e passa para o plano

intemporal e imaginário. Um conto configura, assim, de modo diminuto, uma enorme

remexida nas imagens firmes das coisas. Como uma miniatura, um conto

redimensiona, de modo condensado, os abalos repentinos nas grandes estruturas

de entendimento. Um conto, em sua concisão e potência, faz verter o olhar e

reverter os modos de dizer o que se vê.80 São estas exigências narrativas, marcas

de um conto, que marcam também esta tese, uma posição que se afirma. No ato de

pôr a público uma idéia, de sustentá-la e postulá-la diante de outros, esta tese

consubstancia um conto sobre uma infância que resiste aos modos explicativos de

apreendê-la na medida em que se deixa narrar por escritas infantis.

79 É Paulo Rónai quem declara em referência ao título Primeiras estórias; “O epíteto não alude a trabalhos da mocidade ou anteriores aos já publicados em volumes, e sim á novidade do gênero adotado, a estória. Esse neologismo de sabor popular adotado por número crescente de ficcionistas e críticos, embora ainda não registrado pelos dicionaristas, destinasse a absorver um dos significados de “história”, o de “conto” (short story). A oposição conceitual resulta nitidamente deste trecho de “Nenhum, Nenhuma”: “Era uma velha, uma velhinha-de história, de estória-velhíssima, a inacreditável.” Embora o termo, hoje em dia, já apareça também sem conotação folclórica, referido ás narrativas de Guimarães Rosa envolve-se numa aura mágica, num halo de maravilhosa ingenuidade, que as torna visceralmente diferentes de quais quer outras.” RÓNAI, Paulo. Introdução crítica. In ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. p. xxxii. 80 Julio Cortázar assemelha o conto a uma fotografia no sentido em que “o fotografo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algum que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.” In CORTÁZAR, Julio.Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006.p. 151-2.

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O conto crítico, gênero específico criado por Guimarães Rosa para dar conta

de suas estórias, é uma narrativa sucinta, na qual personagens aparentemente

insignificantes, por vezes marginais, e coisas toscas ou mínimas do sertão

concentram forças expressivas capazes de transmutá-los. Este tipo de narrativa,

curta e densa, configura-se, ela própria, pela mistura de estilos e gêneros nos quais

aspectos líricos, épicos e dramáticos se entrelaçam na construção textual.

Sensações, idéias, corpo, espírito, paixão e razão misturados explodem, de maneira

intensa, numa experiência decisiva que é, então, narrada. Esta carga, fortemente

expressiva, desloca o narrador e seu suposto leitor do hábito, das regularidades e

contingências cotidianas. A peculiaridade do conto reside numa experiência

excepcional de abalo, de espasmo e espanto diante de um raro instante que rompe

uma situação dada. Neste sentido, o que se conta e, afinal, o que conta, é algo que

resiste à descrição. O que se conta ou o que se tenta contar possui movimento,

modifica-se ao ser contado e altera os sentidos do que seria trivial e corriqueiro. O

que conta num conto é, primordialmente, a reviravolta que ele engendra, o verter das

convicções, a intranqüilidade gerada. Não se trata, necessariamente, de algum

acontecimento exterior, mas de uma modificação, por vezes ínfima, do nexo entre as

coisas. Uma vez alterado o elo, o todo é transfigurado. De difícil alcance expressivo,

uma experiência inominável carece ser contada, pois desafia pensamentos e suas

formas discursivas. O campo movente e a forma deslizante da linguagem literária

presentes no conto anseiam por experiências assim.

O contar, ou seja, a travessia entre o vivido e o que se conta dele, entendido

como uma linha de fuga, transpõe o campo individual e anuncia indícios de uma

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modificação universal. Daí a necessidade de se contar e recontar um conto inúmeras

vezes. No que se diz, rediz ou se desdiz, figurações diversas vão se conformando,

alterando a “matéria vertente” das coisas, na expressão de Rosa. O que conta não é

mais a explicitação de um conhecimento concluso e discursivamente articulado na

verdade de um relato, mas os erros iminentes, a verossimilhança e as invenções

passíveis de terem ocorrido. Contar o que não se entende é o que faz Rosa na voz

de muitos de seus personagens infantis. Contar o que não se entende é saber-se

parte do que não se conhece, é misturar-se às coisas, é envolver-se na existência

paradoxal de planos coexistentes, de fluxos e devires, de um contínuo ser e não ser

que sempre relança a interrogação, o contar e o recontar. Afinal, a compreensão da

matéria vertente das coisas não está assegurada pelas convenções lingüísticas. O

que se ensina e se aprende, como num conto crítico, constitui saberes que precisam

ser contados e honestamente recontados a cada vez que forem narrados. A arte

literária, ao jogar com letras, imagens, sons, idéias e sentimentos, cria novos

espaços vitais, conta e exige recontos.

O conto é, basicamente, um relato oral da narrativa curta. Evidencia uma

estreita afeição ao mundo das letras, das palavras, da fala, do canto, da fabulação,

da criação propiciada pela imaginação. Todos esses elementos dizem algo sobre a

infância, dizem algo especial também sobre a literatura, a filosofia e a educação. E

foi exatamente o modo imbricado com o qual estas áreas do conhecimento falam de

afetos, perceptos e conceitos, em termos deleuzeanos, que em primeiro se pensou.

Pensou-se na busca de uma escrita capaz de ilustrar, em um estudo investigativo, o

sentido inaugural da infância. Foi então que os contos de Guimarães Rosa

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apresentaram-se como quase perfeita tradução deste anseio. Entretanto, havia

ainda o desafio da escrita de um texto que, coerentemente ao tema, mesmo em

busca de respostas às questões norteadoras de uma empreitada acadêmica,

permanecesse infantilmente à espreita de encontros inusitados. O intento de

aproximar, por meio da experiência estética, a experiência do estudo e sua idéia,

configurava uma ousadia. E havia, ainda, o desejo de compensar o peso da

investigação conceitual e reflexiva com a leveza da investigação poética. Era a

tentativa de jogar com sensações e pensamentos, sentimentos e idéias, vertendo-os

e revertendo-os. Era também a necessidade de, a partir da prosa poética rosiana,

criar um campo possível de respostas. No limite do poético, a escrita de Guimarães

Rosa margeava a reflexão filosófica em torno do tema da infância. Circunscrito

antecipadamente pelas questões norteadoras do estudo, o texto foi se inscrevendo,

embora sem pôr um termo à empreitada. Não se chegou a um fim. Bem diverso, na

outra banda, havia um ponto inesperado, marcador de uma chegada, não de um fim.

Se viver é muito perigoso, como sugere Rosa, ler seus textos também o é. Ler

e reler os contos de Guimarães Rosa, uma e muitas vezes e, nos entremeios dessas

leituras, ler Deleuze, Bergson, Blanchot, Rilke, José Gil e Foucault, entre outros,

tornou imperativo o desejo da travessia de uma escrita que acabou por se confundir,

no percurso, com as viagens realizadas pelos personagens infantis rosianos. Agora,

ao chegar, sem um fim, a um modo de apresentação, este texto parece inadequado

ao título acadêmico-científico. Contudo, possui um caráter investigativo, dedicado e

autêntico - atributos próprios de um estudo deste gênero. Como dizê-lo, então?

Quisera chamá-lo uma aventura – a aventura de uma escrita - enfim, chegada. Ainda

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que cansada dos anos de estudo escolarizado, acabrunhada pelos condicionantes

normativos, desgastada pelas formalidades e ornamentos exigidos pelas instituições

de ensino... Por fim, uma escrita própria. Meandros de palavras, fluxos ininterruptos

de idéias, pensamentos e mais pensamentos atravessados, borrões de textos,

linguagens e, margeando o curso, à espreita, uma escrita se insinuava. Eis que se

apresenta - infantil e solta, brincalhona e alegre, inadvertidamente, numa outra

banda, em uma outra margem do rio... É que o acontecido nem sempre coincide

com o que se conta dele. E é exatamente isto o que conta - o esforço que a matéria

vertente do acontecido exige para sua expressão. O desafio de uma busca

incessante por um tipo de escrita que possa dar conta, ela mesma, da procura

também interminável, por um modo de narrar que consista em reaberturas, mais do

que em términos.

Mas o rio é o mesmo, embora o curso tenha se alterado, ainda que o fluxo

incessante das águas tenha renovado e modificado o ritmo, a cadência e o rumo do

nado. Algo permanece e se faz rio: a dimensão educativa do contato humano - A

força interventiva do encontro humano com as coisas, com outros seres humanos e

inumanos - O movimento contínuo de deslocar-se de um lugar para outro, inerente a

qualquer travessia, especialmente presente no ato de educar. Sim. A questão é

sempre esta: O que significa ensinar e aprender? Que sentido possui esta relação?

Se a experiência de aprendizagem é algo que mais se assemelha a um conto, algo

que dá conta de uma experiência, que provoca experiências, embora não se deixe

apreender; se uma experiência nunca é a mesma quando contada, nem a

experiência narrada, nem a experiência vivida; se uma experiência não se repete

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nem por quem a vivencia, nem por outrem; se precisa ser escrita, se carece ser lida,

a fim de ser entendida; se exige linguagens que tentem alcançá-la; se escapa às

palavras; se na sua grandiosidade não se apresenta por inteiro, como pode

configurar-se no ato educativo?

A experiência carece ser narrada, ardilosamente narrada na forma restritiva,

contrita e intensa de um conto. Autêntica e honestamente, uma estória inventada.

Uma idéia viva – a expressão escrita da vida – a ressonância do que foi e ainda é e

pode vir a ser novo. Memória e invenção, densidade e intensidade, atributos de um

gênero textual denominado conto, atributos constitutivos de experiências de

aprendizagem. Momentos singulares que passam a tomar dimensões ampliadas na

medida das tensões que geram. Intensidade e tensão, características constitutivas

de um conto, expressão de uma experiência. Intensidade do vivido, tensão entre a

estória vivida e a estória contada. Entre uma e outra, a aprendizagem. Menos a

história ou o conteúdo da aprendizagem, mais a sua linguagem. Uma linguagem

literária que fabula, que supera o ocorrido, que recupera, em outro âmbito, o vivido.

A epifania da escrita. A força vitalizante da expressão. O jeito vigoroso do educar. O

ardor desejante do aprender.

Mais do que o tamanho do curso deste rio educativo, como num conto, o que

importa numa experiência de aprendizagem que educa é a intensidade e a

densidade do que se aprende. Concisão é a palavra-chave. Anos e anos de ensino

formal, seriado e consecutivo não dão conta do que acontece, abruptamente, no

instante concentrador da experiência de aprendizagem. Trata-se de uma síntese que

possibilita uma transposição e que, portanto, torna-se expressão de uma realidade

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muito mais ampla do que aquela prevista ou antecipada. Daí a emergência de outras

margens – o surgimento de margens não antecipáveis. É que como um bom conto,

uma experiência de aprendizagem não se esgota em si mesma. Ambos, conto e

aprendizagem, não se restringem ao registro factual ou naturalista de um

acontecimento. Não se definem por conceituações da realidade. Antes, intensificam-

na, doam a ela sentidos.

Junto ao narrador rosiano que problematiza o próprio ato de narrar como

sendo um ato de resistência, ato performático e, portanto, poético, este texto

transcreve a experiência de uma escrita acadêmica que intenta vincular a linguagem

literária de João Guimarães Rosa aos estudos filosóficos de Gilles Deleuze no

âmbito da problematização do fenômeno educativo. Um estudo que finda por

constituir um processo investigativo fronteiriço e, por vezes, deslizante entre

literatura, filosofia e educação. Assim como no caso das estórias rosianas, este

estudo também se constitui na medida em que se inscreve. Tanto na escrita de Rosa

como neste próprio texto, as estórias não se desprendem apenas do narrador, mas o

performam. Narrar é resistir, afirma Rosa. Investigar é resistir, afirma esta escrita. E

lança-se, com o escritor, em travessias: travessia institucional, travessia da escrita,

travessia do pensamento, travessia da sensação, travessia de afetos.

Entre os campos de investigação sobre a infância, a literatura e a filosofia

apresentam, em comum, uma tendência a ultrapassar fronteiras e tornar

indiscerníveis as demarcações. A ficção, quando não confunde, desfaz traçados,

revê percursos, altera trajetórias até mesmo já percorridas. Com a argumentação

filosófica o trabalho não é menos móvel, nem menos intenso, afinal, a filosofia impõe

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ao pensamento a tarefa recorrente de questionar-se, de buscar outros sentidos

investigativos para ela mesma. Nas obras de ficção, assim como nas formas

rigorosas do pensar argumentativo, as dimensões da experiência humana é que são

colocadas em situações limítrofes. Cabe-nos pensar, portanto, que os limites a

serem considerados inserem-se no âmbito da própria existência humana, não na

propriedade do saber. A infância, apresentada em uma linguagem literária,

apreendida de forma ficcional por um personagem, seja este personagem uma

criança, um adulto, um animal, uma planta ou mesmo um objeto qualquer, pode

testemunhar ou narrar uma experiência com a carga expressiva capaz de explodir

inúmeros pensares. Nem sempre, é claro, de uma forma operante, dirigida,

metódica, de recuperação do que foi dito, de registro do ocorrido, nem mesmo de

documentação, explicação ou compreensão de um passado. Não se trata de

informar sobre o vivido, tampouco de conservar um passado, idéias comumente

associadas à infância de um adulto. Não se trata de retroceder, mas de avançar para

chegar a uma infância - inaugurar um modo de ver, escrever e ler a existência. Fazer

emergir a experiência do passado, deixar afetar-se por ele e misturar, na construção

narrativa e na sua recepção, lembranças inventadas, misto de história, ficção e

afetos. Uma infância da própria escrita, na escrita da infância. A linha de chegada, o

início. Chegar ao início, não ao fim.

Ao suspender a exigência da verdade, a obra de ficção pactua com o leitor, o

torna cúmplice da aventura infantil de escrever e inscrever-se nas coisas em

qualquer tempo, para onde forem. De fabular, criar uma estória, mais do que ser

parte da história. E, é assim que, mais uma vez, literatura e filosofia entrecruzam-se.

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Ambas buscam a verossimilhança, mais que a verdade factual. A atividade filosófica

e a atividade literária, a partir da dimensão crítica na qual se inserem, exigem a

criação do novo, do diferente. A linguagem, quando utilizada literariamente, pode até

mesmo colocar em questão o estatuto consagrado de determinado pensamento.

A linguagem literária, por sua vez, mantém aceso o interesse filosófico na

medida em que se remete, sempre, à própria questão da linguagem, a primazia do

ato literário. É a literatura, afinal, que se angustia com as palavras, que se inquieta

com os significantes, que brinca com os sentidos. É deste modo que a literatura se

faz nova e outra, pois dela irrompem sentidos vários e intermináveis, em

desdobramentos inesgotáveis, por obra da própria linguagem. O olhar filosófico

pode, assim, por intermédio da literatura, verbalizar não apenas um outro jeito de

ver, mas um outro jeito de dizer o que é visto e uma outra maneira de articular a

emergência deste novo tipo de olhar a uma nova linguagem capaz de expressá-lo.

Se novos conceitos precisam ser criados, faz-se necessária, também, uma

linguagem anterior à apresentação dos conceitos, uma linguagem livre, que se

arrisque, que corra o perigo que a invenção exige. É transgredindo os limites da

própria linguagem que a literatura exprime o que a filosofia reflete

argumentativamente. Ao aumentar a intensidade das palavras, ao levar ao extremo

os sentidos, ao violar as formas lingüísticas, a literatura desliza pelos interstícios dos

juízos e liberta as palavras. É assim que algumas idéias carecem ser abordados

literariamente, sob pena de serem, de pronto, rejeitadas. Apresentadas na forma de

personagens, em situações consideradas impossíveis, alcançam, contudo, lugares

de destaque e permanecem enquanto idéias.

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Um narrador, de modo ficcional, vislumbra coisas que não poderiam ser

explicadas e compreendidas por procedimentos estritamente racionais e objetivos.

Ele não apenas dá sentido ao que vive na medida em que representa a vida, mas

refigura uma vida, altera os significados implícitos de uma história de vida,

empreende diferentes investimentos afetivos, enfim, não apenas representa, mas

inscreve-se no mundo, inaugura modos de apresentação. Um narrador assim, ao

falar de acontecimentos infantis, não recorda, resgata a força de uma experiência

vivida, a transforma em nova experiência.

Um conto é, neste sentido, uma fabulação imprescindível na busca de uma

infância da escrita que se configura em escritas da infância. A possibilidade de se

atingir marcos impossíveis: a reversibilidade do tempo; o indizível do viver. A

literatura é, afinal, a expressão da realização das possibilidades excessivas. Por

vezes, mais que expressão, ela é uma exposição, um modo de encontrar a si

mesmo ou de perder-se arruinadamente. O encontro com a finitude da vida - um

modo de dizer a morte na afirmação da vida. Entre os excessos, uma criança

congrega vários deles. Ela se excede na própria linguagem que cria para fazer

coisas com as palavras, na intensidade com que se transmuta em bichos, coisas e

plantas. Excede-se também nos sentimentos ainda não moralizados. Excede-se,

ainda, nos transbordamentos das experiências de aprendizagem. Excede-se em

gestos e movimentos, mistura coisas, pessoas e corpos. É nessa profusão de

formas, cores, texturas, sentimentos, idéias e emoções que uma criança, enquanto

personagem, faz irromper uma infância.

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3.2 DEVIR-INFANTIL DE ROSA

Algumas travessias colaterais emergiram no percurso da elaboração de idéias

pela força das palavras. É neste sentido que, de modo imprevisto, irrompeu-se uma

aproximação entre a acepção de travessia, tema proeminente na obra de Rosa, e o

conceito de infância no próprio valor que as palavras ocupam como lugar de

fulguração dos sentidos, de condensação e de moradia do ser poético. Assim,

travessia no sentido simbólico, além do sentido geográfico de deslocamento de um

lugar para outro, configura a imagem da situação extrema de deslocamento no

sentido existencial: o lugar onde o ser poético é posto à prova, lugar da travessia,

onde o que conta não é o início nem a chegada, mas a travessia mesma, o

lugar/espaço intervalar em que a própria língua é uma trama infinitamente

complicada, onde se propagam, se dividem e se perdem as fulgurações do sentido.

Infância no sentido figural da radicalidade do novo. A solidão da infância que se

apresenta não apenas nos lugares ermos onde é vivida, mas na terra que a recebe e

que a relaciona às experiências da linguagem. Afeita ao emaranhamento de falas e

lendas, ao verbo que emana da terra ignota, da assombrosa inquietação e

perplexidade do ser que escava e lavra sentidos do verbo – travessia verbal – a

infância das coisas e os modos de dizê-las aparece. A ânsia infantil do domínio e da

apreensão do sentido último da realidade – o que resulta, paradoxalmente, no

impossível humano e no reconhecimento dos limites do conhecimento – implica na

travessia.

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É que a palavra infância parece traduzir a necessidade de se repensar o

mundo de forma especulativa, em torno mesmo do estatuto ontológico da palavra,

da língua, da literatura. A engenhosa estrutura de Primeiras Estórias – eventos que

geram a universalidade da obra ao mesmo tempo em que vislumbram a

singularidade de experiências infantis – nos leva a viajar com um menino, quase um

menino, com os tios, para uma cidade em obras, a erguer-se. Do interior de um

espaço geográfico surge a cidade. Do interior da infância do menino surge a

aprendizagem da vida. Para descrever esta viagem, Rosa utiliza recursos que

colocam a estrutura lingüística a serviço do enredo. Através dos torneios sintáticos, é

possível vislumbrar contentamentos e decepções, encontros e desencontros,

margens indeléveis das experiências infantis. Guimarães Rosa cria uma expressão

verbal profunda na qual a palavra assume um feixe de significações. Ele atua não

apenas no plano semântico, mas também no plano fonético. Estabelece relações

íntimas entre significado e significante e rompe as fronteiras entre a narrativa e a

lírica, empregando linguagem poética na narrativa. Utiliza magistralmente

aliterações, onomatopéias, rimas internas e ousadas formas das palavras, elipses,

cortes, deslocamentos sintáticos, além de um vocabulário insólito baseado em

arcaísmos e neologismos. Como uma criança, faz associações raras, emprega

metáforas, anáforas e metonímias. Inaugura processos de invenção fundamentados

nos processos da língua por meio de recursos lingüísticos parassintáticos e

aglutinadores, entre outros. A fala de seus personagens inserem-se na musicalidade

da fala primacial da criança, do sertanejo, dos sons naturais.

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Entendida como um agenciamento coletivo de enunciação,81 a literatura,

embora trabalhada por agentes singulares, expressa um delírio coletivo. Daí seu

caráter abrangente. A menina de lá, denominada Nhinhinha, vive por detrás da serra

do Mim, é uma criança a infantilizar paisagens e gentes. Tanto Nhinhinha quanto o

menino dão voz a uma região, a modos de vida distintos, a histórias universais.

Estes personagens inventados são a invenção de um povo, uma possibilidade de

vida. Escrever é, neste caso, escrever por esse povo que falta...82 Guimarães Rosa

não toma o lugar da menina ou do menino, mas fala por eles. Em intenção deles,

revela o jeito sertanejo de ser, o jeito exilado da criança, o modo singular do louco. É

deste modo que, em seus arranjos especiais de palavras, no som, no ritmo e na

cadência da escrita, a arte literária parece apresentar os elementos necessários para

que outro conceito de infância tenha lugar. Não mais o interesse em aclarar o

mistério da infância, senão aprofundá-lo na forma de um enigma. No enigma da

81 O termo ‘agenciamento coletivo de enunciação’, conforme Deleuze, refere-se a algo que aciona, que coloca em movimento enunciados que tendem ao agenciamento de uma enunciação coletiva. É Deleuze quem afirma: “É que o enunciado jamais remete a um sujeito. Ele não remete também a um duplo, isto é, a dois sujeitos dos quais um agiria como causa ou sujeito de enunciação e o outro como função ou sujeito de enunciado.” E, em seguida, esclarece: “E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado, tal como o faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação em um processo que não dá lugar a um sujeito qualquer determinável, mas que permite tanto mais marcar a natureza e a função dos enunciados, já que estes só existem como engrenagens desse agenciamento ( não como efeitos nem como produtos). In DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. KAFKA: Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago editora, 1977, p. 121-2. 82 Deleuze reforça o caráter político da literatura enquanto agenciamento coletivo de enunciação e a contrapõe a um estado doentio que inibe o devir: “Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por esse povo que falta... (.‘por’ significa ‘em intenção de’ e não ‘em lugar de’).” In: DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.15. Deleuze, referindo-se a Paul Klee, a respeito da obra artística comenta: “[...] o artista começa por olhar em torno de si, em todos os meios, mas para captar o rastro da criação no criado... diz que este mundo teve diferentes aspectos, que ainda terá outros, e que já tem outros em outros planetas; enfim, ele se abre ao Cosmo para captar suas forças numa ‘obra’[...] e, para tal obra é preciso meios muito simples, muito puros, quase infantis, mas é preciso também as forças de um povo, e é isto o que falta ainda...” In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, FELIX. Mil Platôs. Vol.4. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.152.

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infância, a possibilidade do novo. Na alteração do sentido, a emergência de figuras

de palavras, figuras de sintaxe e figuras de pensamento. Em vez da argumentação

lógica, o ilogismo da poesia, a presença metafórica de personagens, as elipses, as

antíteses e eufemismos. Enfim, o uso de recursos textuais tão negligenciados nas

argumentações razoáveis. Ampliar as possibilidades lúdicas das sílabas, a

percepção dos fonemas vocálicos e consonantais, a força da pontuação, é o que

incita a linguagem literária. É deste modo que Rosa parece descobrir o que há por

detrás das obviedades das palavras e consegue voltar à infância das construções de

sentido que há nas frases.83

Guimarães Rosa afirma ter se tornado escritor ainda jovem, embora tenha

publicado bem mais tarde. Segundo ele, os homens do sertão são fabulistas por

natureza. Está no sangue contar estórias. O escritor, conhecido por sua

inventividade, diz não inventar os contos, já que os contos é que o procuram.

Questionado sobre os modos de criação de seus contos, ele responde:

Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Acontece-me algo que nesse caso se chama precisamente inspiração. Isso me acontece de forma tão conseqüente e inevitável, que às vezes quase acredito que eu mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo. É tão imperativo.84

83 Rosa dá conta, nos personagens que inventa, daquilo que Deleuze afirma ser a tarefa mesma da literatura: “Na literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite, há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. [...] devir criança através do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo e restaurar esta infância. Eis as tarefas da Literatura.” In DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista a Claire Parnet, 1994, letra E de Enfance /Infância. 84 ROSA, Guimarães. Entrevista publicada no livro Para gostar de ler. 10. Ed, vol. 10. São Paulo: Ática, 1995, p. 08.

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A literatura apresenta-se, nestas palavras, como um encontro ou um dom.

Neste caso é o escritor o encontrado. Porque ele escreve? Por que não pode evitar

fazê-lo, por ser imperativo inscrever-se no mundo. Há a busca de uma escrita.

Contudo, a busca decorre do encontro sensível com a vida. É como se o escritor já

possuísse, dentro de si, a forma poética da arte literária. Envolto nesta atmosfera,

Rosa tenta resolver a questão e passa a duvidar de sua própria identidade.

Desvinculado da ficção que escreve, já não sabe mais quem é. Os livros assumem,

para o autor, a aventura de descobrir sempre um novo pedaço do infinito. Talvez a

infinitude de sua grandeza.

Neste caso a aventura é recíproca. Afinal, a experiência literária não é só do

autor no momento em que escreve, mas também a do leitor. A apreciação artística

permite conhecer melhor o que existe a partir da percepção de outros modos de

existir. É assim que a leitura literária difere-se da leitura funcional. A leitura literária

tem algo que, de um modo ou de outro, forma o leitor e não apenas o informa. Ela

não se reduz a uma maneira de obtenção de conhecimento. Ela afeta. O imaginário

e o real, indiscerníveis na afirmação de Rosa, apresentam-se do mesmo modo ao

leitor. No caso da experiência literária, as fronteiras já não são nítidas. Nem mesmo

com relação ao que se sabe ou não se sabe. O que importa neste tipo de leitura é o

que se passa com o escritor e o que se passa com o leitor. O tipo de relação que

estabelecem com a escrita e a leitura é que possibilitará a aventura.

Na especificidade da arte literária, Rosa lança mão de marcas lingüísticas e

de modos de dizer que fazem com que o leitor reconstrua o narrado em seu

imaginário, a partir de suas vivências e sensibilidade. O leitor é convidado por ambos

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a visitar suas próprias memórias e, por meio delas, inserir-se no estado infantil das

coisas. Não para repetir os atos infantis já feitos, mas para recuperar o sentido

infantil do fazer.

Quase uma criança, em seu devir-infância, Rosa encarna os personagens

infantis que cria em suas Primeiras Estórias. A trajetória do menino em sua viagem

inventada no feliz, narrativa do primeiro conto e, depois, seu retorno, no último conto,

ao mesmo lugar, confunde existir e viajar. O conto virtualiza o percurso que pode ser

a viagem do próprio escritor, de qualquer menino ou mesmo a viagem de qualquer

um que, quase menino, se disponha ao fluxo das experiências de aprendizagem que

a vida propicia. É que Rosa universaliza, de certa forma, a travessia – o que há de

comum na infância de cada menino – de cada homem – de cada menina - de cada

mulher – de cada planta – de cada animal – de cada pedra – delicadas passagens,

dolorosos conflitos, fascinantes descobertas.

Numa língua primeira, assim como as estórias, Rosa se utiliza da palavra

como credo e matriz poética. Ele se atrai e atrai os leitores pela fascinação da

palavra. No elâ das conversas com sertanejos, vaqueiros, crianças, velhos e loucos,

utiliza-se de recursos lingüísticos que deixam as falas dos personagens repletos de

ambigüidades, contrapontos e antinomias – tradução da própria condição humana –

ambígua e contraditória. O escritor joga com a verossimilhança da precária

compreensão humana em relação à complexidade do mundo.

É assim que Guimarães Rosa suscita no leitor o desejo da criação, do vôo

literário... Não é possível limitar-se à significação do que ele escreve. É preciso uma

percepção maior, quase uma recriação. Nas encruzilhadas do que diz é que

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encontramos as possibilidades de novos caminhos. Ler Rosa é fazer a travessia da

língua de Rosa e do microcosmo de sua linguagem, língua e cosmo que se

intercruzam, sobretudo, nos detalhes – desde a aposição de um prefixo ou a

colocação indevida de um acento até a sonoridade de uma nova palavra85. A escrita

rosiana instala nos detalhes aparentemente sem importância os efeitos

surpreendentes que provoca. Que efeitos? Aprender novas maneiras de sentir e de

pensar, cunhar uma nova língua mais expressiva, em que as palavras readquiram

significados encobertos pelo uso e se tornem capazes de constituir a “literatura-

vida”86. As matérias fornecidas pela memória não são suscetíveis de certeza. Ao

contrário, seu domínio de verdade, como espaço sedentário e portador de uma

explicação verídica é questionado.

E o sertão, em sua literatura, é um aprendizado sobre a vida, sobre a

existência humana. As ações ocorrem num espaço marginal à civilização moderna –

o gado, como os demais animais e a natureza, assume um papel participante, ativo,

nos destinos do ser humano. É através desse mundo regional, simples e despojado

de muita instrução, recursos e tecnologia, que o autor capta e imortaliza os valores

espirituais, humanos e culturais do homem – a travessia humana pelo viver. Ele

85 Rosa reforça sua confiança no trabalho meticuloso do seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, que, segundo o autor sugere, fará o que ele mesmo faz com o texto original: lê, relê, frase por frase, cuidadosamente e orienta: “Meditar cada frase. Cortar todo lugar-comum, impiedosamente. Exigir sempre uma ‘segunda’solução, nem que seja só a título comparativo. A gente não pode ceder, nem um minuto, à inércia. Deus está no detalhe, um crítico disse, não sei quem foi.” In: ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason: (1958-1967). Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Academia Brasileira de Letras: Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2003, p. 237. 86 Curt Meyer-Clason, tradutor alemão de Rosa, em carta datada de 21 de agosto de 1967, afirma: “Para Rosa, a linguagem não é um substituto do homem, mas o meio de torná-lo visível, pensável, perceptível e palpável. Poderíamos dizer: Em Rosa, o homem e a linguagem são um.” In ROSA, João Guimarães. João Guimarães Rosa: correspondia com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Academia Brasileira de Letras. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 410.

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revela a universalidade do sertanejo que, num mundo marginal à sociedade

sofisticada e moderna, apresenta as mesmas angústias e anseios do homem que se

considera moderno, instruído e culto. A serra, o cerrado, o quintal, o sertão, não

apenas como áreas geográficas, mas, principalmente, como microcosmo, como

espaço de questionamento da condição humana.

Através do regional ele atinge o universal. E por meio de personagens que

dão voz a crianças, loucos e idosos, ele atinge a intuição, a imaginação, o pensar

marginalizado daqueles que não se integram ao modo estandardizado do

comportamento adulto e sério. O olhar fragmentário e seletivo, concentrado na

captação vertical de momentos significativos é responsável pela atmosfera do

inacabado e movente, característicos para o gênero da narrativa curta, é também

típico para a visão rosiana do mundo. Caráter perturbado e intensivo da vivência

imediata do fluir temporal em contraste com sua percepção posterior.

A razão é um instrumento ambíguo: apreende e ordena a realidade, mas

também é um modo de evitá-la, de guardar-se do seu contato. É, pois, a partir de

fatos banais, que o autor discute temas universais, questões metafísicas que desde

sempre angustiam o ser humano. As narrativas de Rosa captam momentos únicos,

instantes de percepção da existência na sua totalidade, de apreensão da essência

do objeto. Ultrapassa os limites de puras anedotas inseridas na história, devido ao

tratamento universal dos assuntos particulares, à sua própria estrutura em aberto

assim como à atmosfera do enigma criada pelo irrupção do irreal e insólito, entram

na ordem do intemporal. Este prolongamento além dos limites da ação provoca

momentos epifânicos – instantes que revelam e iluminam toda a existência do

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personagem. Este é o caso da experiência do menino, personagem central do conto

‘As margens da Alegria’, às voltas com a imagem inusitada de uma ave jamais vista

por ele e que ele guardaria para sempre. Em alguns contos há uma noção de que

existiria uma força natural que, por meios os mais variados, faria com que as coisas

se cumpram. É o que acontece com a menina do conto A Menina de Lá, que parece

cumprir o curso da vida destinado a ela sem sofrimento, com a resignação de

alguém que apenas deixa-se levar por uma ordem prévia.

Em Primeiras Estórias, como o título sugere, Rosa tende a abandonar a

dimensão cronológica e histórica do tempo, inserindo-se no plano de um tempo de

vivência, na duração intensa e intensiva de um tempo aiônico, ou seja, o próprio

devir. Trata-se de uma ótica voltada para o instantâneo e inacabado, que se apodera

intuitivamente do imediato e do corporal. É a sabedoria que se desinteressa pela

experiência baseada na memória, alimentando-se da primazia de uma percepção

virgem. Não é por acaso que os protagonistas são crianças que impressionam pela

espontaneidade, ludicidade e intuição. A imagem verossímil da visão infantil ainda

não adultizada pelo conhecimento das coisas é que engendra o ato primacial da

experiência. Daí a primazia das estórias, consideradas primeiras experiências.

O tempo de duração da experiência, tão bem apresentado por Rosa nas

experiências infantis de Nhinhinha e do menino, é simultaneamente acompanhado

pelo movimento oposto – pela conservação da linearidade temporal da narrativa.

Esta ambivalência corresponde à existência de um duplo ângulo narrativo: da ótica

tradicional que se esforça para manter o passado distante do presente, ou seja, de

uma forma de espacialização do tempo, por um lado; e, por outro lado, da acepção

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de um devir, da interrupção de um continuum, da possibilidade de acontecimentos

abruptos. A estória apresenta-se, então, como o lugar de uma vertigem, o espaço do

confronto com o vazio que interrompe a continuidade, que coloca em suspenso a

idéia de verdade histórica e instala a possibilidade de transgressão. É por meio da

estória que se instalam traços do sonho na memória e também marcas do desejo

que o sonho realiza. A estória revela a existência do desejo de modificação das

coisas. Afinal, o tempo da narrativa não é o tempo do acontecimento. Com grande

intensidade e seleção, a estória instala um recorte agudo no contínuo temporal e,

depurando tudo o que é secundário, reduz o fragmento captado às linhas enxutas e

essenciais. Devido à distância tempo-espacial que se estabelece, no plano ficcional,

entre o tempo da história e o tempo do discurso, ou seja, entre a sensação e sua

imagem, a experiência aparece no momento da sua reconstrução sob um novo

ângulo de visão, carregada de desejo de ensinar. As estórias giram em torno de um

acontecimento, porém não no sentido geral de uma ocorrência ou um conflito

exterior tradicionalmente colocado no final. Há, em vez disso, uma forte tensão que

se resolve no íntimo dos personagens, na medida em que eles atravessam uma

experiência de aprendizagem. Trata-se de narrativas em abismo: estruturadoras e

desestruturadoras, que seduzem e inquietam pelo interesse permanente de seu

narrador e do personagem em narrar, ouvir e escrever histórias.

O que Guimarães Rosa revela em suas Primeiras Estórias, foco do presente

estudo, é o despejar de uma energia que parece nascida de um devir-infantil do

escritor ou mesmo de uma infância da escrita por ele encontrada. É o próprio Rosa

quem afirma a respeito de si:

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Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada realidade, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que o óbvio, que o frouxo. 87

Os contos de Rosa, em especial ‘A Menina de Lá’ e ‘As Margens da Alegria’,

aqui enfocados, emergem de um plano de experiências infantis que concentram uma

vontade de potência capaz de transformar a estética dos gestos pueris em rara

intensidade.

É que Rosa escreve como quem se situa num terreno movediço necessário

aos seus projetos de fuga. Sua escrita é uma escrita nômade. É assim que ele se

liberta de uma lógica racionalista. Em cada fragmento de suas narrativas parece

haver uma suspeita de que o processo de apreensão do mundo através unicamente

do pensamento lógico tende a revestir a realidade de um tipo de compreensão que

trapaceia a percepção. Um tipo de raciocínio que induz a ver como óbvio, banal, o

que é estranho e misterioso, algo que contém em seu âmago um elemento fundador,

vital, que a razão não consegue enunciar. Seus contos configuram exemplos de

concisão narrativa e tensão poética nos quais a linguagem que fabrica se apresenta

como o único modo possível de dizer o que sua sensibilidade intui e seu trato com a

língua manifesta.

Esse modo singular do dizer é o que, de pronto, encanta no sem-juízo da fala

de Nhinhinha, personagem principal de um dos contos referenciados. A ausência de

fronteiras entre a menina, a geografia e os sentimentos e sensações expressos

humanizava paisagens, animalizava pessoas, personificava fenômenos da natureza.

87ROSA, 2003, p.238.

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A menina misturava-se a tudo e tudo entrelaçava-se numa só paisagem. Tudo

alcançava uma dimensão performática, encantatória, daquilo que se faz, sendo. O

instante captado pelo olhar infantil de uma menina, menininha, Nhinhinha,

consusbstancia, em um conto, a matriz poética da infância do dizer que encontra em

Rosa a prosa perfeita – uma escrita que narra processos de vida que extravasam o

vivível.

No sem-juízo do que dizia, a menina fazia-se especialmente admirada. Ela

não acumulava informações, mas adivinhava coisas. Nhinhinha, a menina de lá,

franzina, cabeçuda e de olhos enormes, quase não se comunicava com as pessoas,

mas estabelecia relações multiformes com as manifestações de vida que a

rodeavam. Em seu espaço mínimo de criança, na casa em que vivia com seus pais,

para trás da serra do Mim, reunia, nas paisagens que vivenciava, tatus, luas e

silêncios. A menina também inventava palavras para as quais não havia significados

e perguntas para as quais não havia respostas: “Ele xurugou?”88 E não era possível

saber a quem ou a que ela se referia, nem mesmo que significado o verbo utilizado

teria... Contava histórias de bichos e sabia das necessidades das gentes como, por

exemplo, da precisão de se fazer lista das coisas que no dia por dia a gente vem

perdendo...89

88 As palavras da menina configuram o que Deleuze afirma a respeito de uma literatura menor em Kafka: “Fazer vibrar sequências, abrir a palavra para intensidades interiores inauditas, em resumo, um uso intensivo assignificante da língua.” In DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. KAFKA: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p.34. 89 ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 1972, p. 20.

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O conto intitulado ‘A menina de lá’, de Guimarães Rosa, apresenta essa

criança, Nhinhinha, de aproximadamente quatro anos de idade, como personagem

central. Nele, a infância se traduz no modo dessa menina dizer coisas

incompreensíveis, estranhas ao jeito de dizer adulto. É o próprio narrador quem a

apresenta pela voz de seu pai: “Ninguém entende muita coisa que ela fala...” dizia o

Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, [...] Mas, pelo esquisito

do juízo ou o enfeitado do sentido”90. Também no jeito de ser, Nhinhinha marcava

sua diferença, fosse pela capacidade de ausentar-se a ponto de quase não ser

notada em sua calma, imobilidade e silêncios, fosse pela ousadia em retratar os

adultos da forma como eles a ela se apresentavam: referia-se ao pai como Menino

Pidão e à mãe como Menina Grande. A menina não se acanhava com os adultos,

tampouco se entusiasmava com as novidades que lhe eram ofertadas. Não se

importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha

real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências.91

Rosa nos presenteia com a invenção de Nhinhinha que, por sua vez, nos faz

pensar em um outro jeito de elaborar relações com um mundo estranho e próximo. O

desafio de entender o estranho que está em todo lugar, em todos nós, obriga-nos a

olhar mais atentamente para as vivências cotidianas que corriqueiramente se

apresentam e que só permitem serem vistas pelo olhar infantil de quem não está

ainda saturado de imagens comunicantes de sentidos. Um olhar que tampouco

esteja por demais enraizado, por demais localizado em qualquer território. O lugar do

90 Ibidem. 91 ROSA, 1972, p. 21.

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qual Nhinhinha fala, pouco importa. O que interessa mesmo é a interação que ele

provoca entre a protagonista e seus encontros. Por isso o local é inventado e o

nome da serra, Serra do Mim, para além da qual situava-se a casa da menina,

apresenta-se tão belamente criado por Rosa.

Neste conto, Guimarães Rosa dimensiona um espaço/tempo exterior

inventado que intensifica a interioridade das relações conseguidas pela menina. Ela

parece íntima de tudo. Não gosta nem desgosta especialmente de qualquer coisa.

Não se apressa ou se perturba. Não se incomoda com a zanga dos pais, tolera.

“Deixa... Deixa...”, é o que costumava dizer, segundo o narrador. É ele quem relata

as conversas que tivera com a menina:

E Nhinhinha gostava de mim. Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – “Cheiinhas!” – olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: _“Tudo nascendo!” essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. “A gente não vê quando o vento se acaba...” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: “Alturas de urubuir...” Não, dissera só: “... altura de urubu não ir”. O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: “Jabuticaba de vem-me-ver...” Suspirava, depois: “Eu quero ir para lá”. Aonde? “Não sei.” Aí, observou: “O passarinho desapareceu de cantar...” De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora ele interrompera. Eu disse: “A avezinha.” De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora vizinha...” E tinha respostas mais longas: “Eeu? Tou fazendo saudade.”92

Rosa brinca com a sonoridade das palavras, com os múltiplos sentidos que

podem encarnar. O autor brinca também com a adultez de alguns modos de dizer e

a graça infantil de outros. Aponta, sutilmente, os desvios de sentidos que a língua

propicia em seus aspectos rítmicos e sonoros, na cadência da fala. Desafia nossos

92 ROSA, 1972, p. 21.

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ouvidos, exige que agucemos nossos sentidos, reclama que prestemos atenção às

palavras e a tudo que delas oriunda. Nhinhinha possibilita a contraposição da

normatividade da língua com a necessidade vital de reencantamento do mundo nas

formas de dizê-lo. As noções de tempo linear, de localização histórica e territorial,

bem como de gramaticalidade da língua parecem inúteis, neste caso. Tais

referências apresentam-se sem sentido, na medida em que não correspondem às

experiências intensas e atemporais que a personagem atravessa.

Nesses percursos, não apenas a menina é estranha, mas também o narrador.

Ele é um viajante, alguém que passa, um estrangeiro a marcar o movimento da vida

e suas pausas. Em uma de suas paragens conhece Nhinhinha e se reconhece nela.

Talvez sinta-se também exilado. Talvez a menina o tenha feito perceber a condição

de vida do estrangeiro que prescinde de viagens. Ela não sai do lugar. Contudo, na

sua quase imobilidade, se faz nômade. Ela parece mesmo encarnar o ser

estrangeiro como uma condição de vida. Mesmo sem sair do lugar, em momentos de

imobilidade ou ainda em artística lentidão, a menininha era considerada estrangeira

e parecia sentir-se bem assim. Este parece ser o desafio do imprevisível que o

viajante assume no percurso que se propõe realizar. “Nunca mais vi Nhinhinha”93,

afirma o narrador. Esta afirmação reforça a idéia da passagem e, contrastivamente,

da paragem realizada, do intervalo que propiciou o encontro com a menina.

O narrador passante, passageiro de uma vida que se inscreve e que

possibilita a inscrição da voz da menina por meio do jeito de dizer a vida que lhe é

93 ROSA, 1972, p. 22.

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próprio, não é do lugar. Tampouco a menina parece ser. Aliás, não parece haver

uma terra específica, um território apropriado, ou seja, de propriedade de alguém.

De quem é, afinal, este lugar? A quem ele pertence? O vocábulo mim, utilizado por

Rosa, evidencia mais uma brincadeira do autor no jogo lúdico que o envolve nas

palavras. Na prosa poética de seus textos, Rosa desdobra seus sentidos, mexe e

remexe no léxico e na sintaxe. Neste caso há que se destacar a opção pelo uso do

pronome oblíquo mim. Em vez do usual pronome adjetivo possessivo normalmente

anterior à descrição de uma faixa de terra, em referência à denominação de uma

serra, Rosa a nomeia Serra do Mim. Um jogo lexical. Uma provocação que alude,

sutil e contrariamente, à idéia de apropriação comumente relacionada à acepção de

posse da terra, de territorialidade e de propriedade.

Rosa e Deleuze parecem conversar por intermédio de Nhinhinha. Um dos

dois ou mesmo ambos parecem mascarados pelo narrador anônimo. Mas é Deleuze

quem afirma:

Nada cabe ou pertence alguém, mas todas as pessoas estão dispostas aqui e ali, de maneira a cobrir o maior espaço possível. Mesmo quando se trata da seriedade da vida, dir-se-ia haver aí um espaço de jogo, uma regra de jogo, em oposição ao espaço como ao nomos sedentários. Preencher um espaço, partilhar-se nele, é muito diferente de partilhar o espaço. É uma distribuição de errância e mesmo de “delírio”, em que as coisas se desdobram em todo o extenso de um Ser unívoco e não-partilhado. Não é o ser que se partilha segundo as exigências da representação; são todas as coisas que se repartem nele na univocidade da simples presença.94

Nhinhinha dá um salto para longe, longe demais daqueles que permanecem

agarrados ao lugar, às exigências cotidianas da vida. A menina alcança a morte por

94 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 77.

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ela desejada. Seu salto subverte os valores ajuizados por aqueles que permanecem

vivos, mortos-vivos diante da força de sua morte. É que

o salto testemunha, aqui, os distúrbios subversivos que as distribuições nômades introduzem nas estruturas sedentárias da representação. O mesmo deve ser dito da hierarquia. Há uma hierarquia mede os seres segundo seus limites e segundo seu grau de proximidade ou distanciamento em relação a um princípio. Mas há também uma hierarquia que considera as coisas e os seres do ponto de vista da potência [...]95

A menina, em sua potência criadora, salta em direção a seu desejo e

ultrapassa seus limites, vai até o extremo daquilo que podem as palavras e salta até

o imaginável, o ficto. É assim que ela incorpora, em sua desmesura, a poesia de

tudo. Não é que ela seja uma santa, nem mesmo que possua poderes divinos. É que

ela se dispõe ao que está por vir, se coloca numa abertura desmedida ao movimento

próprio do encontro. Seus limites não restringem sua força, antes marcam um ponto

a partir do qual ela desenvolve toda a sua potência. É assim que deixa de ser uma

menina e passa a fundir-se com as coisas do lugar, com o que aprecia e admira.

Seu hibridismo faz lembrar, mais uma vez, Deleuze. Ao resgatar o sentido da

anarquia dos seres na hybris, uma medida ontológica mais próxima da desmesura

das coisas, o filósofo afirma:

Esta medida envolvente é a mesma para todas as coisas, a mesma também para a substância, a qualidade, a quantidade etc., pois ela forma um só máximo, em que a diversidade desenvolvida de todos os graus toca a igualdade que a envolve [...] o ser igual está imediatamente presente em todas as coisas, sem intermediário nem mediação, se bem que as coisas se mantenham desigualmente neste ser igual. Mas todas estão numa proximidade absoluta ali onde a hybris as situa e, grande ou pequena, inferior ou superior, nenhuma delas participa mais ou menos do ser ou o recebe por analogia. Portanto, a univocidade do ser significa também a

95 Idem.

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igualdade do ser. O Ser unívoco é, ao mesmo tempo, distribuição nômade e anarquia coroada. 96

Nhinhinha se distingue dos demais com os quais convive por meio da relação

particular que estabelece com as coisas. Contudo, é este modo particular, este jeito

próprio de ser que, em vez de contê-la na forma miúda de uma criança, a projeta de

modo nômade e anárquico por diferentes tempos e lugares. A menina parece

dissolver-se em tudo na medida em que se constitui, temporariamente, nos

encontros com as outras formas de vida que a rodeiam. Intensa e fugaz, ela é a

própria diferença.

Neste conto, como em qualquer outra estória rosiana, o que importa é o

encontro. A qualidade dos encontros parece estar em destaque. Do encontro entre

Nhinhinha e o narrador-passante não fica nada. E porque haveria de restar algo?

Nem a menina fica. Ela sucumbe à tentativa de apropriação de seus dons,

considerados sobrenaturais, pelos adultos que a rodeiam. Afinal, ela havia

começado a fazer ‘milagres’. Além do sem-juízo do que dizia, havia o sem-sentido

do que acontecia ao seu redor. Ninguém entendia. Contudo, mesmo sem entender,

os adultos queriam tirar proveito do que ocorria. Diante da inexplicável satisfação de

desejos simples e infantis, começaram a surgir pedidos para a satisfação de desejos

considerados grandiosos. Seu pai chegou a pedir-lhe chuva para acabar com a seca

que ameaçava estorricar até o brejo, ao que ela respondia: “Mas, não pode, ué...”

Pressionada pelos adultos dada a necessidade de que algo fosse feito a fim de se

evitar a fome, ela replicava: “Deixa... Deixa...” e, ao insistirem, fechava os olhos...

96 DELEUZE, 1988, p.78.

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Ainda assim, mesmo tolerando a adultice da vida útil e necessária, Nhinhinha foi

submetida ao julgo e poder de seus familiares. Estes planejavam para ela um futuro

e imaginavam que quando crescesse e tomasse juízo, muito poderia fazer para

ajudá-los. “E vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares.

Todos os vivos atos se passam longe demais”,97 anuncia e adverte o narrador.

Por meio da meninice, Rosa nos convida a pensar sobre as distâncias que

nos separam do que nos rodeia. Que espaços são esses? Será preciso realizar

micro percursos? Haverá lapsos de tempo e lugar nas paragens? O sentimento de

apropriação exclui a intimidade? O autor deixa transparecer críticas às noções de

propriedade e de completude da vida adulta na relação entre Nhinhinha e seus

familiares. Aqueles que permanecem com ela, são os mesmos que esperam dela

que cresça, que adquira juízo, que se torne adulta. São eles que esperam, com o

passar do tempo, a eliminação da diferença, embora não sejam capazes de

perceber que é da própria diferença que vislumbram possíveis benefícios. O desejo

inconsciente de transformar o outro no mesmo faz com que o outro seja eliminado.

Nhinhinha morre. Sua morte é a resistência da infância em tornar-se adultez. Afinal,

o que é que morre?

Mortes diversas parecem proliferar do desaparecimento da menina. No estilo

cuidadoso de nomear seus personagens, Rosa expressa, por meio de Nhinhinha, já

em seu próprio nome, uma forma diminutiva comumente utilizada para designar

coisas pequenas ou menores. Entretanto, não é a pequenez e fragilidade do seu

97ROSA, 1972, p. 23.

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corpo de menina que nela se expressam, mas a forma diminuta das relações com a

vida. Sua sutileza e calma interrogam nossas urgências e prioridades. Suas

adivinhações não serviam para solucionar problemas, mas para fazer da vida algo

mais poético. Ela não era um projeto futuro de vida, mas um estado infantil de

relação com a vida. Ela era quase um sem ser. Seu fim mostra um não querer ser

futuro. Afinal, já era um nome, um corpo, um jeito. Do que mais precisaria ser ao

crescer?

É preciso questionar mais intensamente a divisão pela qual temos definido os

grupos de idade que separam a complexa realidade humana em universos distintos.

Sob a pena de aprisionar a experiência existencial em categorias lógicas, como

denominar o conto de Rosa? Trata-se de um texto infantil, juvenil ou adulto? Do que

fala Rosa, afinal? A literatura, a motivação estética, o discurso ficcional e poético, o

entendimento não utilitário desfazem os sentidos da distinção etária. Torna-se difícil

pensar as noções de infância e adultez na forma de conceitos nítidos, consensuais e

generalizantes. Sim, existem diferenças entre adultos e crianças. Mas, o que dizer

da infância possível para ambos? Para que separar gente em mundos tão apartados

um do outro, tão distintamente fronteiriços? As distinções tomam ares de uma

idealização precária e reducionista.

Se for possível pensar que adultos e crianças compartilham, de algum modo,

uma mesma vida infinitamente rica e complexa, será também possível pensar uma

literatura que insira todos. O uso livre da fantasia e da ficção, a descoberta de novas

construções de sentido, a busca de um entendimento poético que atenda a uma

apreciação estética e a uma especulação existencial da vida parecem não caber em

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cronologias. Rosa atesta isso em sua escrita. Longe das intenções didáticas, livre

da idéia de lição que o texto pedagógico evoca, o autor encontra a infância nos

personagens que cria. No enredo encantatório que inventa, universos são

compartilhados, reinos são confundidos, atributos tornam-se intercambiáveis.

A necessidade irrenunciável de poesia e de pensamento leva-nos a

questionar se seria possível prescindirmos de um ou de outro. As duas formas da

palavra parecem buscar verdades, violentar entendimentos e envolver, mais do que

resolver. Leituras e escritas pensantes é o que apresentam os poemas, contos e

romances de Guimarães Rosa. Neles estão presentes o pensamento e a vida.

Palavras e silêncios fecundos os constituem. São palavras entranhadas, não apenas

inteligíveis, mas sensíveis e intuitivas. Talvez por isso nos caibam tão bem, mesmo

quando já não mais sabemos sentir necessidade delas. Elas, então, configuram

acontecimentos que interrompem nossas habituais leituras, que alteram nossos

costumeiros jeitos de dizer.

Dizer, de um outro jeito, a infância, é pensá-la como um fluxo de vida que nos

passa, antes de se tornar um período de tempo pelo qual passamos. Uma infância é

também algo que nos perpassa, que nos atravessa. A infância é ainda uma

passagem verbal necessária para o encontro daquilo que já não pode ser dito da

mesma forma. Assim ela se torna a expressão de uma palavra que perdeu a voz e,

inaudível, exige uma forma tonal, expressiva do que se sente, além do que se

pensa. Esta palavra afônica se expressa na musicalidade do gorjeio dos pássaros,

no gaguejar freqüente de Nhinhinha, na ausência de nome próprio para um menino.

Rosa parece ter se lançado nesse fluxo infantil de balbucios e gaguejos a despeito

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do vasto conhecimento das línguas que demonstra possuir. Quanto esquecimento

terá sido necessário?

Sim, esquecer é preciso. Os contos de Rosa, embora muitos críticos insistam

nas referências autobiográficas, não são lembranças, mas memórias inventadas em

uma infância repleta de imaginação e esquecimentos. Rosa não se ocupa da criança

que foi, mas passa a ser uma criança. O escritor elabora suas narrativas infantis do

modo como Deleuze pensa que a infância de um escritor deveria ser tratada – não

como a criança que foi, mas como uma criança. O prosador e poeta parece ter

ouvido o filósofo. O que um afirma, o outro poetiza. As imagens de infância que

elaboram parecem constituir signos entrelaçados. O que eles anunciam, a partir de

diferentes naturezas semióticas, é o caráter instaurador que a infância possui. As

imagens da infância que elaboram são signos – percepções, experiências, idéias,

enfim, de coisas que constituem os mundos nos quais suas escritas se inserem.

O entendimento do conceito de infância com o qual Deleuze nos faz pensar,

implica na recusa explícita da idéia de historicidade que comumente o acompanha.

Ele rejeita a possibilidade de referir-se à sua própria infância e desqualifica este tipo

de abordagem. Para ele, não importa a descrição de qualquer infância particular, de

quaisquer fatos que constituam a história privada da vida de quem quer que seja.

Interessa-lhe a infância desprendida da memória, a infância deslocada da

reconstituição de fatos passados. Deleuze afasta a idéia de infância da idéia de

pertencimento a histórias privadas de vida. Ele atrela infância, literatura e escrita à

idéia de instauração do novo. A literatura e a escrita, partes da vida do escritor,

propiciam, em seu entendimento, a busca da infância de modo que o passado seja

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afastado da memória a fim de que o devir-criança venha, então, a ocorrer. É deste

modo que o escritor distancia-se de sua própria infância e lança-se no fluxo infantil

das palavras, anterior ao já dito, ao discurso pronunciado. É assim que o escritor

assume uma escrita capaz de torná-lo criança através do ato mesmo de escrever.

Ele, o escritor, faz-se criança e, deste modo, incorpora a infância. Não a sua

infância, mas a infância de qualquer um, a infância do mundo, a infância do dizer.

Esta é a literatura potente, capaz de levar a linguagem até seu limite, até sua

extremidade, naquele momento anterior ao falar aprisionado do discurso. Antes da

fala, infantilmente. Escrever é gaguejar na língua, afirma Deleuze e configura Rosa.

Rosa e Deleuze recuperam a acepção do dom inaugural da palavra, sua força

criadora e motriz e, com ela, o jeito de pensar que, por ela, se materializa. A infância

de Rosa, bem como a infância de qualquer um parece estar naqueles lugares e

tempos inventados nas narrativas infantis. A infância, assim como a poesia, carece

ser sentida, muito mais que analisada. E, para sentir a infância, parece preciso criar

meios literários, traçar linhas de fuga ao linguajar ordinário. Talvez a literatura tenha

que instalar-se, de forma incrustada, em nossos modos de expressão. Para Deleuze,

é a literatura que possibilita a superação do uso freqüente do pronome pessoal e do

possessivo, rumo a uma forma impessoal que levaria ao indefinido. A literatura seria

a chance que teríamos de descobrir a singularidade em um homem, uma mulher,

uma criança, mesmo que através de personagens aparentemente pessoais.

Os traços individuais são utilizados pelo autor para arrastar os personagens

num fluxo de indeterminação, num devir potente que dinamiza as combinações e

desequilibra a própria língua. Nas palavras de Deleuze:

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Isso excede as possibilidades da fala e atinge o poder da língua e mesmo da linguagem. Equivale a dizer que um grande escritor sempre se encontra como um estrangeiro na língua em que se exprime, mesmo quando é a sua língua natal. No limite, ele toma suas forças numa minoria muda desconhecida, que só a ele pertence.98

Nhinhinha é uma criança que se apresenta como tal na idade, no tipo físico

descrito e nas relações com os adultos. Mas, a despeito destas características

individuantes, potencializa a sensibilidade da adivinhação. Guimarães Rosa reforça

esta potência, tanto que identifica a personagem como a menina de lá. Sabe-se lá

onde está, quem pode ser... O lá é o adiante, o que está além. O lá é uma partícula,

a parte menor da palavra e, no entanto, imprime aqui o sentido do que extrapola, do

que transborda, dada a desmedida grandeza.

O menino também é demasiado grande para caber em um nome. É mais do

que uma criança cujo nome a identifica. É uma infância extraordinariamente grande

para caber na definição do nome. Um personagem assim ilustra bem o que Deleuze

afirma existir entre a literatura e a vida. Para ele, escrever não é dar forma a uma

matéria vivida, mas buscar o inacabamento, aquilo que não possui forma. Escrever

é, portanto, um caso de devir, algo sempre em vias de realizar-se, uma passagem

entre o vivível e o vivido. É neste sentido que o menino ora é alegre, ora triste, ora

ficção, ora materialidade. Para Deleuze, a potência da indefinição se dá no

despojamento das características formais que a definição daria. É preciso que o

personagem seja inacabado para entrar no que ele denomina zona de vizinhança.

Assim é Nhinhinha. Assim é o menino.

98 In: DELEUZE, Glles. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 124.

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O que em Deleuze avizinha-se, em Rosa está misturado. Rosa é o prosador.

Deleuze é o filósofo. Um fala a partir de uma prosa poética. O outro fala desde um

discurso acadêmico-filosófico. Ambos encontram-se atrelados à vida, num esforço

verbal de expressá-la. Seus processos de criação assemelham-se enquanto escritas

autênticas, inscrições no mundo. O que os diferencia situa-se no âmbito das

convenções lingüísticas, naquilo que o próprio conhecimento produzido sobre a

escrita já desuniu. Ainda assim, literato e filósofo dialogam. Eles mesmos realizam

travessias, avizinham-se. Trata-se de um diálogo - um atravessamento.

Nas travessias verbais de um e de outro, no fluxo de um pensar-sentir que os

afetam, Rosa e Deleuze entrecruzam este estudo. Alimentada por incertezas e

dúvidas, esta tese também se faz nômade, ora literária, ora filosófica, ora

educacional, sem pertencer, de fato, a qualquer território, fugidia e embaralhada. Em

Deleuze, a busca do aprofundamento teórico que ele dispõe de modo tão

provocativo, intensivo e incitante. Em Rosa, o encontro com personagens que

configuram o referencial teórico buscado. Em ambos, o exemplar trato cuidadoso

com as palavras, o manejo hábil, robusto e, ao mesmo tempo, terno, de transformar

o problemático, o dado negativo, no núcleo de uma vontade positiva de potência

explosiva. O problema, um desafio. O sentimento abafado, uma sensação solta. A

palavra presa na garganta, uma escrita articuladora. O choque, a irrupção. Espaços

liminares entre vida e morte.

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4 AS MARGENS DA INFÂNCIA

Trajetos e devires, a arte os torna presentes uns nos outros [...]99

4.1 POR CIMA DE ONDE?

Era uma viagem inventada no feliz, a viagem realizada por Guimarães Rosa

no seu conto ‘As margens da alegria’.100 Era assim que o narrador do conto

99 DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.79. 100 ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 6ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p.3.

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identificava a trajetória realizada por um menino, personagem principal da estória,

que se dirigia ao lugar onde a grande cidade seria construída. Que cidade? Não se

sabe. Quem a construiria? Não se diz. O que faria lá o menino? Não importa.

Tampouco importa o que fariam naquela cidade os tios do menino. Não interessam

as informações que o autor, propositadamente, não quis dar ao leitor. No Feliz é

onde ocorre a viagem. E esta frase, em sua estrutura sintática mínina, concentra, na

intensidade do que afirma, um feixe de possibilidades de sentido capazes de deixar

intrigado o leitor, um leitor atento aos afetos que emergem da escrita rosiana. Trata-

se da terceira linha do texto escrito na forma de um conto e já não é possível

interromper a leitura e nem deixar de mergulhar na profundidade das palavras. O

que Rosa revela neste conto, um dos focos primordiais de nossa investigação, é o

despejar de uma energia que nasce da escrita, núcleo de uma vontade de potência

que transforma a imagem do movimento em pura intensidade. A viagem deixa de ser

um deslocamento geográfico de um lugar fixo para outro ponto definível e passa a

ser um movimento indefinível em um fluxo de afetos. A escrita de Rosa mistura,

assim, as fronteiras entre palavra e sensação, entre categorias e não-lugares, entre

sentidos e devires. É uma escrita que devém criança, que faz emergir blocos de

infância e que nos leva a experimentar as primeiras viagens, as Primeiras Estórias.

Trata-se da antecipação daquilo que, sendo esperado um dia ser, já é. O instante

fecundo da infância das coisas. A primazia da experiência.

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O menino inicia sua viagem e sai, ainda com o escuro e o ar fino de cheiros

desconhecidos.101 Novamente Rosa desloca os sentidos alicerçados nas palavras e

as lança em movimentos ininterruptos na mesma viagem que percorre o menino.

Movimentam-se todos: o menino, o escuro, o ar, os cheiros. Tudo ganha vigor e

força, qualidade e intensidade. O escuro não mais adjetiva a noite. Ele agora é

companheiro do menino. O ar ganha modo, materializa-se em uma estrutura fina ao

adentrar-se nos cheiros desconhecidos. Ar, cheiro e escuro entrecruzam-se e dão

nova formatação ao que seria um trivial marcador temporal. Afinal, não se sabe das

horas. Não é este o tempo com o qual Rosa trabalha. O autor não se interessa pelo

tempo cronológico que mede as coisas por sua marcação numérica. Temos aqui

uma dimensão intensiva do tempo. Um tempo recuperado em seu significado grego

mais primitivo de “força de vida” ou “fonte de vitalidade”. É a persistência de uma

força vital que faz com o que o menino seja uma criança a viver a infância das coisas

que descobre.

O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se – certo como o ato de respirar – o de fugir para o espaço em branco. O Menino.102

Guimarães Rosa, em seu devir-criança, inventa um menino que desliza entre

as coisas, que se irrompe no meio delas. É assim que o escritor estabelece

conexões entre sons, cores, sensações, gestos e palavras. Rosa inclui e combina

101 ROSA, 1972, p.3. 102 ROSA, 1972, p.3.

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intensidades, elimina tudo o que excede o momento e, por fim, condensa a força

expressiva daquela singular experiência na forma mais simples: O Menino. 103

Linhas de fuga, a escrita de Rosa torna-se um sem-lugar para os sentidos

usuais dos termos, uma errância de sentido. Não mais confinado às estruturas do

texto, o sentido se faz móvel, andarilho. Ele esquiva-se, desde então, do espaço da

fixação da escrita convencional e encontra um devir como um desvio que altera os

trajetos já mapeados na língua. O menino passa a ser, assim, quase uma folha a

cair. Isso é mais do que o instante da folha que cai. É o fluxo do cair, a verdade da

vida que se mostra no contraste com a morte. A vida que se mostra em raios, em

feixes de luz, já que não se deixa ver inteira. A verdade extraordinária da vida pode,

às vezes, raiar, nos alerta Guimarães Rosa. Raiar, isto é, riscar, traçar raios de luz

que se distinguem como verdadeiros. Raiar também significa tocar as raias ou os

limites de algo. Encontrar as fronteiras, as margens - idéia primaz do autor. Como

um raio, cuja luz que emana de um foco luminoso percorre diferentes trajetórias, a

escrita rosiana descarrega uma energia que potencializa os sentidos e prolifera os

significados. É assim que a negatividade se faz profícua: é o não-saber que gera um

novo senso de esperança. Esperança de movimento, de busca, de deslocamento.

Embora sem o uso explícito do verbo que indicaria uma ação, a expressão ao não-

sabido, ao mais104, concentra uma força expressiva capaz de suplantar a presença

103 A forma lingüística reduzida utilizada por Rosa nos remete aos comentários de Deleuze sobre uma afirmação de Virginia Woolf: “Ela diz que é preciso ‘saturar cada átomo’ e, para isso, eliminar tudo o que é semelhança e analogia, mas também ‘tudo colocar’, eliminar tudo o que excede o momento, mas colocar tudo o que ele inclui – e o momento não é o instantâneo, é a hecceidade, na qual nos insinuamos, e que se insinua em outras hecceidades por transparência.” In DELEUZE, Gilles, GUATTARI; Felix. Mil Platôs. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 73-4. 104ROSA, 1972, p.3.

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de qualquer outro termo gramatical. Uma língua desviante, um modo de inscrever-se

no mundo, a escrita de Rosa - uma literatura menor105.

As condições revolucionárias da literatura rosiana em meio ao que se

considera a grande literatura ou literatura estabelecida é o que a faz menor. Rosa,

escritor erudito, poliglota e profundo conhecedor da língua portuguesa, inventa uma

língua própria. Escreve quase como um estrangeiro no interior do seu próprio

idioma. Ele tem a sobriedade de quem subverte a ordem da escrita do seu interior, a

segurança de quem pode fazer a língua implodir. Sua literatura, uma literatura

menor, diremos, como Deleuze - não por estar fora ou ser considerada marginal,

mas por estar dentro e, de dentro, atuar diferentemente. A literatura de Rosa se faz

única em seu estilo, na maneira inventada de utilizar sua própria língua. Alegre de se

rir para si está o menino106 – aqui Rosa reforça, por meio do uso enfático da forma

pronominal, a intensidade da alegria do menino. O menino não apenas ria, ele fazia

irromper, além dos gestos e sons próprios do riso, um riso íntimo, para si. Não uma

forma exterior de expressar alegria, mas um contentamento, uma satisfação interna.

É que por conhecer tão bem a língua, por ser capaz de confrontá-la a tantas outras

línguas, Rosa cria condições de esticá-la ao máximo, de forçar os seus limites. Ele

105 Deleuze, ao responder à pergunta por ele mesmo lançada: O que é uma literatura menor? afirma: “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. Sua primeira característica é que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização. (...) A segunda característica das literaturas menores é que nelas tudo é político – não há o caso individual das grandes literaturas. (...) A terceira característica é que tudo adquire um valor coletivo.” E resume: “As três características da literatura menor são de desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo de enunciação. Vale dizer que ‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida).” In: DELEUZE, Gilles, 1977, p. 25 a 28. 106 ROSA, 1972, p.3.

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exige das palavras o máximo de expressão e da sintaxe, o máximo de elasticidade.

É como se conteúdo e forma, desordenadamente, não mais se distinguissem e, por

fim, alcançassem a potência máxima de uma carga expressiva. Nas palavras de

Deleuze:

[...] uma literatura menor ou revolucionária começa por enunciar e só vê e só concebe depois... [...] A expressão deve despedaçar a forma, marcar as rupturas e as ramificações novas. Estando despedaçada uma forma, reconstruir o conteúdo que estará necessariamente em ruptura com a ordem das coisas. Antecipar, adiantar a matéria. 107

É assim que ao mais descreve uma linha de fuga. Um percurso necessário

para se alcançar um espaço ainda não ocupado, o espaço em branco. O menino.

Este é o problema – o risco que o não-sabido enseja. O mais do qual se sabe a

expressão, não a forma. O vazio do branco. O risco que a experiência exige e a faz

problemática. É preciso, então, transformar o dado negativo em uma vontade

positiva de potência. O sentido passa a situar-se, deste modo, no eixo dos afetos

que intensificam o desejo. O que era problema, torna-se desafio. O que estava

contido, abafado pelo sujeito, torna-se uma matéria desejante, solta, que se lança no

fluxo do movimento da vida. Sem temer o tempo, vai o Menino. Em direção ao mais,

ao não-sabido. Lançam-se o Menino e a escrita menina de Guimarães Rosa.

Também menino, Rosa põe-se a brincar com a sintaxe do texto. O autor

embaralha as funções dos termos, desinstala os sentidos arraigados nas definições.

O uso do artigo definido ilustra bem essa forma de escrita. Trata-se de um artigo

definido que não define: afinal, não se sabe qual é a grande cidade, qual é a

107 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. KAFKA: por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago editora, 1977, p.43.

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Companhia à qual pertence o avião em que viajavam. Tampouco a Mãe e o Pai, ou

mesmo a Tia e o Tio parecem definir-se pelo artigo. Na verdade, o que os identifica é

a relação de parentesco destacada pela inicial maiúscula dos substantivos Mãe, Pai,

Tia, Tio. Os nomes próprios dessas pessoas não aparecem no texto. Elas exercem

um papel adulto na relação com a infância do menino - é só. Esse é o traço

marcante da presença adulta na narração. O espaço em branco, indefinível, o não-

lugar em direção ao qual se lança o menino, também aparece antecedido por uma

paradoxal determinação. Em destaque, o artigo definido, maiúsculo e suntuoso da

expressão que encerra uma frase, um período, todo um parágrafo: O menino108.

O uso do artigo definido é recorrente nos textos rosianos. Trata-se de um

elemento lingüístico que exprime uma tensão entre determinação e indeterminação.

O menino da estória é um menino. Rosa, ao nosso ver, utiliza este recurso

lingüístico para ampliar os limites do dizível e ultrapassar as normas lingüísticas.

Deste modo ele ilustra Deleuze: “Poderíamos chamar, em geral, de intensivos ou

tensores os elementos lingüísticos, por mais variados que sejam, que exprimem

‘tensões interiores de uma língua.’”109

Em meio a essas relações paradoxais, até mesmo o afivelamento do cinto,

por outra pessoa, não deixa subjugado o menino. Antes, essa relação com a adultez

torna-se uma possibilidade de realização do que deseja. O menino não se submete.

Ao contrário, ele ganha força e a investe em um diferente empreendimento: o novo.

Ele sente-se protegido, seguro para experimentar a condição esperançosa do novo:

108 ROSA, 1972, p.3. 109 DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.35.

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Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo

novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais.110

Mais uma vez, Rosa altera o sentido usual do que se afirma nas palavras e

deixa de atrelar, ao repentino, os usuais atributos de força, violência e opressão. É

doce o que vem repentinamente. É harmônico o que não é antecipado. Aquilo que

escapa ao planejamento, ao acordo prévio, pode também ser delicado e doce. O

fluxo do desejo não necessariamente se opõe à vida. Trata-se de uma linha de fuga

criadora que traz consigo toda a poesia, toda a leveza da infância da palavra, de sua

sonoridade e dança. Antes da significação, antes do emprego e da função, antes da

correção gramatical, antes do discurso. Assim é que, no fluxo do viver, o menino

experimentava infantil e intensamente o instante: E as coisas vinham docemente de

repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as

satisfações antes da consciência das necessidades.111

Em outras palavras, nas palavras de Deleuze, esta linha de fuga criadora é

que produz sons ainda desconhecidos, que se deslocam para um futuro próximo. A

linearidade do tempo é rompida pela intensidade da expressão que inverte a ordem

de aparição do enunciado: Pois a expressão precede o conteúdo e o conduz, (com a

condição, é verdade, de não ser significante).112

O lugar da infância do menino é um lugar não fixado, movediço. Rosa reforça

essa idéia ao deslocar para o mundo a mobilidade. O mundo, visto pela criança, da

110ROSA, 1972, p.3. 111ROSA, 1972, p.3. 112 DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 62.

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janelinha do avião, movimenta-se. E é esse o lugar de onde o menino vê o mundo:

Seu lugar era o da janelinha para o móvel mundo.113 De lá, do alto, o menino traça

percursos em seus pensamentos. Percursos também são desenhados no mapa que

lhe entregam. Percursos e trajetos envolvem a escrita de Rosa neste conto que

parece adivinhar a escrita de Deleuze:

Não há crianças que não sejam capazes de saber isso: possuem todo um

mapa geográfico e político de contornos difusos, móveis... 114. Mas a escrita de Rosa

insiste em deixar pistas para uma trajetória infantilmente brincalhona dos sentidos.

Não parece ser casual a idéia que se desprende do fragmento no qual o narrador

descreve o que se passava no interior do avião e tudo o que o menino ganhava: [...]

até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora se estava, por cima de onde.115

Ora, de um avião em pleno vôo, se vê, de cima, alguns pontos que podem ser

representados em um mapa. Mas Rosa enfatiza bem a localização por cima de

onde. Trata-se, em nosso entendimento, de uma fina ironia. Parece um

questionamento travestido de afirmação. Por cima de onde? Parece soar, em tom

interrogativo, a frase. Afinal, o que se vê no mapa? Seja o que for, não desperta o

interesse do menino, que prefere deliciar-se espiando as cores, as formas e os

movimentos do que podia alcançar visualmente pela janela – o que via, não sua

representação no mapa. E o que via o encantava:

113 ROSA, 1972, p.3. 114 DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 19. 115 ROSA, 1972, p.3.

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[...] as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois - assim insetos? Voavam supremamente.116

O menino parece aqui se instalar num espaço do saber que não se enquadra

no âmbito das representações, que foge da dimensão adulta de um conhecimento

construído para explicar, posteriormente, algo já sabido. Ora, o saber do menino

antecede aquele conhecimento informativo do mapa e, portanto, ainda não é

representável. Na intensidade primaz daquele instante, nada que possa ser

informado atrairá mais o menino do que o próprio saber que ele engendra.

Guimarães Rosa, ao inventar o menino, inventa também, sob pressão do não

representável, expressões novas, tentativas lingüísticas de dizer um saber ainda não

convertido em conhecimento. Por isso a supressão do verbo na frase Se homens,

meninos, cavalos e bois – assim insetos? 117parece-nos uma opção genial. Em caso

de dúvida do que seriam aquelas imagens vistas do alto, pelo menino, a opção por

omitir o verbo ser torna-se muito expressiva. Também o uso incomum da partícula

condicionante se logo no início da frase interrogativa, sem o acompanhamento de

um verbo que daria a ela um suporte semântico - uma ousadia de Rosa, faz com que

a obscuridade do dito seja cúmplice fiel da obscuridade do sentido não

representável. Não sendo possível a representação, torna-se também impossível

uma categorização. Assim sendo, homens, meninos, cavalos e bois poderiam ser

116 ROSA, 1972, p.3. 117ROSA, 1972, p.3.

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tomados por insetos. Assim também, na supremacia do que era sabido, mas ainda

não representável, tudo voava, num fluxo de imagens disformes, múltiplas e difusas.

A montanha, baixa, rompia a estabilidade do olhar que a situava sempre alta.

As nuvens, indistintas, tinham a qualidade de amontoada amabilidade, ou seja, a

despeito da claridade, estavam ajuntadas confusamente, sem ordem, amealhadas,

daí o atributo amontoada. A constituição impalpável da cor azul expressa na

organização inusitada das palavras azul de só ar dimensiona a profundidade e, ao

mesmo tempo, a estraneidade daquela experiência infantil. O azul, completo de ar,

apenas ar, ainda assim consubstanciava-se na firmeza de uma cor. Como? O

menino não pergunta, apesar do espanto e admiração. A assombrosa aceitação do

menino mais parece uma rendição à beleza da descoberta das coisas. Rosa traduz a

intensidade do momento ao inserir, no nexo das palavras, a ambiência aérea, a

intuição dos efeitos dinâmicos das forças físicas exercidas sobre os corpos pelo ar

em movimento. E, mais, o escritor parece brincar semanticamente, ao arejar, com as

próprias palavras, uma forma convencionada de descrever acontecimentos e

situações. É como se ele buscasse lacunas aeríferas, tal como algumas plantas

aquáticas, a fim de flutuar. Portanto, voavam supremamente.118

E ainda há as variações de cor do verde que se ia de outras tantas cores até

chegar a ele mesmo, a verde: o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e

a verde119. Mais uma vez, infantilmente, Rosa expressa, de modo primaz, um saber

relativo à composição das cores, à própria idéia de cor. Os elementos ópticos,

118 ROSA, 1972, p.3. 119 ROSA, 1972, p.3.

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presentes, de forma literária no fragmento, nos levam a perceber a intensidade do

fluxo luminoso (claridade) e a composição espectral da luz, o que provoca, no

observador menino, uma sensação visual de alcance dos matizes de cor, por força

da luminosidade e saturação. Por fim, enquanto cor predominante, o verde volta a

verde.

O percurso literário de Rosa, aqui concentrado em apenas quatro linhas, na

intensidade da apresentação das cores, formas e localizações daquilo que o menino

via, assume uma terminologia ainda não serial, ainda não organizada,

indistintamente infantil. É este uso dinâmico da língua que aproxima Rosa de

Deleuze na força dramática da expressividade literária e filosófica que ambos

inauguram. Um cria figuras literárias, o outro cria personagens conceituais. O

movimento da dramatização parece ilustrado por Rosa, na figura do menino.

Deleuze o apresenta, de forma argumentativa, aos membros da Sociedade Francesa

de Filosofia, da seguinte forma:

Os dinamismos espaço-temporais têm várias propriedades: lº) eles criam espaços e tempos particulares; 2º) eles formam uma regra de especificação para os conceitos que, sem eles, permaneceriam incapazes de se dividirem logicamente; 3º) eles determinam o duplo aspecto da diferençação, qualitativo e quantitativo (qualidades e extensos, espécies e partes); 4º) eles comportam ou designam um sujeito, mas um sujeito “larvar”, “embrionado”; 5º) eles constituem um teatro especial; 6º) eles exprimem Idéias. Sob todos esses aspectos, eles figuram o movimento da dramatização.120

Deleuze expõe, em termos filosóficos, a um grupo de filósofos, num ambiente

acadêmico, tradicional e formal de ensino, o que Guimarães Rosa apresenta, em

termos literários, para leitores indistintamente filósofos, não-filósofos, literatos e não-

120 DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 129.

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literatos: a carga expressiva das formas múltiplas de coordenadas espaço-

temporais. A experiência do menino no interior do avião em relação com o que

percebe do ambiente externo organiza-se, na linguagem rosiana, como dinamismos

espaço-temporais, na linguagem deleuziana – agitações de espaço, buracos de

tempo, puras sínteses de velocidades, de direções e de ritmos. 121 É o próprio

Deleuze quem afirma que estes dinamismos prescindem de um campo no qual

possam ocorrer. A primazia do saber infantil, expressa na experiência descrita por

Rosa por meio de seu personagem menino, claramente constitui um campo de

ocorrência, em nosso entendimento.

Este campo, peculiarmente intensivo, implica uma distribuição em

profundidade de diferenças de intensidade122. É desta caracterização que decorre a

necessidade de uma escrita diferente da forma corrente, usual, de dizer as coisas.

Para dar conta da intensidade e profundidade do caráter primevo da experiência

infantil, Rosa precisa inventar construções lingüísticas, reorganizar a disposição das

palavras, atribuir outros significados aos signos já decifrados, deslocar formas e

sentidos. É o que podemos ilustrar na seguinte passagem: O menino, agora, vivia;

sua alegria despedindo todos os raios. Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do

avião.123

O deslocamento do sentido das palavras na escrita rosiana aqui se

materializa no não-lugar do ato de sentar-se. Afinal, o menino senta-se no rumor. O

121 Idem, p. 132. 122 DELEUZE, 2006, p. 132. 123 ROSA, 1972, p.3.

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sentido do verbo complementa-se na materialidade intensiva de um não-lugar.

Estabelece-se, neste enunciado, uma dimensão temporal intercruzada na qual

coincidem a fala do narrador e o instante de vida do menino. Este tempo variável,

intenso e desmedido, enfatiza o aspecto contingencial da vida. É a intensidade do

momento que define a duração do tempo. É assim que a narrativa desliza no fluxo

do que acontece entre os tempos e que entretém o leitor. Nessa mistura de tempos

e lugares, mais uma vez Rosa parece brincar com a escrita e utiliza-se até mesmo

do narrador para mostrar a inutilidade de se tentar marcar o tempo presente da

narrativa. Afinal, sabemos, pelo narrador, que o Menino e os tios estavam a “passar

dias no lugar onde se construía a grande cidade”124. Contudo, este recurso textual

não assegura ou mesmo define uma extensão temporal. Trata-se de uma

temporalidade fora do eixo cronológico e de uma localização fora do eixo geográfico,

já que o menino sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião125.

4.2 PODER VER

A experiência do menino, confundida à narrativa sóbria e coerente do gênero

literário utilizado por Rosa, revela uma trama factual na mesma medida em que

esconde uma intensidade que a subverte. Embora os fatos se apresentem numa

seqüência linear de acontecimentos, a relação intensiva do menino com o que

124 ROSA, 1972, p.3. 125 ROSA, 1972, p.3.

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ocorre expulsa uma força desagregadora que rompe as demarcações temporais e

ocasiona uma simultaneidade de eventos. Portanto, o menino tinha tudo de uma

vez, e nada, ante a mente.126 Logo em seguida, o autor estica o tempo e mostra sua

elasticidade na repetição continuada do termo longa. Um jogo - o aspecto lúdico da

escrita de Rosa – se apresenta no trato cuidadoso e íntimo com a língua. O sentido

da palavra longa e o exercício de alongamento da sua forma escrita. Esticar a rígida

forma da escrita, alongá-la, ainda que por meio da repetição, elevar sua carga

semântica à máxima potência, parece ser a deliciosa brincadeira do escritor. Deste

modo, surge, para o menino, A luz e a longa-longa-longa nuvem127.

É claro que a novidade de viajar de avião pela primeira vez supõe, para

qualquer um que a realize, um campo de descobertas. Contudo, a linguagem literária

de Rosa aprofunda e estende a área de ocorrência das experiências de

aprendizagem que intensificam e dinamizam aquela experiência única daquele

menino. E, no entanto, esta mesma e singular experiência alastra-se sobre um

campo ainda maior, arremessando-se numa dimensão virtual que potencializa outras

singulares experiências. Trata-se de um dinamismo que fecunda o campo da

experiência e cria possibilidades de disseminação. Nas palavras de Deleuze:

Ainda que a experiência nos coloque sempre na presença de intensidades já desenvolvidas em extensos, já recobertas por qualidades, devemos conceber, precisamente como condição da experiência, intensidades puras envolvidas numa profundidade, num spatium intensivo que preexiste a toda qualidade assim como a todo extenso. A profundidade é a potência do puro spatium inextenso; a intensidade é tão-só a potência da diferença ou do desigual em si, e cada intensidade é já diferença do tipo E – E’, em que E,

126 ROSA, 1972, p.4. 127 ROSA, 1972, p.4.

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por sua vez, remete a e – e’, e e, a E – E’ etc. Tal campo intensivo constitui um meio de individuação. 128

Deleuze reforça, ainda, a idéia de que a individuação conforma uma condição

prévia para a ocorrência de um processo de especificação e partição. Daí

entendermos que a intensidade da experiência do menino, brilhantemente descrita

por Rosa, seja um exemplo do aspecto singular da experiência em sua

especificidade e, ao mesmo tempo, uma ilustração do caráter partitivo de sua

ocorrência. A escrita rosiana desdobra-se, assim, numa mistura de material vivido,

sentido, experimentado e imaginado, trabalhado numa linguagem aglutinadora que

intensifica a especificidade do acontecimento na medida em que revela o complexo

esforço expressivo empreendido na escritura e que, por fim, torna-se compreensível

ao leitor. Esse meticuloso processo de lapidação da língua, por vezes resulta numa

só palavra: Chegavam129.

Chegavam. Um verbo, simples e suficiente para expressar o que aquele

instante significava para o menino. Apenas um verbo para reforçar o ato de chegar

empreendido por ele na companhia de outros. Não meramente a chegada, concluída

e substantivada, mas a ação de chegar, com a extensão e intensidade daquele

presente. O instante, com toda sua gama de sentidos, em toda sua eternidade. E

também a opção de Rosa por descrever o que acontece, na sua ocorrência, em

respeito ao leitor. Rosa não subestima o leitor com indicadores que poderiam auxiliar

128 DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 132.

129 ROSA, 1972, p. 4.

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sua compreensão, tampouco carrega seu texto de recursos elucidativos, nem

mesmo antecipa interpretações. Ele deixa, por meio dos personagens que cria, cada

sensação fluir. Desse modo, o que ainda não foi apreendido pelo discurso, emerge e

o que já não pode mais ser alvo de elaboração inteligível, acontece. Assim, sua

escrita escapa a uma sintaxe verbal. Ela chega mesmo a parecer de outra ordem

mental, já que o escritor altera, inclusive, o sentido das palavras conectivas:

Enquanto mal vacilava a manhã130 é o início de um parágrafo. Não se sabe,

contudo, o que o que acontecia neste enquanto, durante esse tempo. O que se

passava não é narrado. Cabe ao leitor imaginá-lo. Rosa exige a presença do leitor,

sua receptividade ao texto, sua participação. Há uma ruptura com a lógica gramatical

que exige uma frase antecedente. O corte abrupto da ordenação das sentenças no

período desestrutura a idéia de coordenação e subordinação das frases. O leitor se

depara, de súbito, com uma idéia interrompida que lhe exige sentido.

E Rosa continua a brincar com a linha tênue e arbitrária que distingue as

coisas. Com uma linguagem desconcertante, reescreve a própria língua e dá voz ao

que não fala – não apenas a criança, mas qualquer sujeito sem voz, até mesmo a

natureza e as coisas todas da vida que não são ouvidas por não serem

pronunciadas. É assim que conta, minuciosamente, as peripécias da viagem: O

menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido –

as novas tantas coisas – o que para os seus olhos se pronunciava.131

130 ROSA, 1972, p.4. 131 Ibidem.

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Aqui se contrapõem a limitação da acuidade visual com a imensurável

capacidade intensiva do ver. Ver e vislumbrar, ou seja, entrever. Lançar luz para

alumiar, embora frouxamente, os interstícios, os intervalos. E, ainda mais que isso, o

menino ansiava ver vívido. Ver o ânimo. Ver as coisas em vida. Não apenas

observá-las na condição de objetos. Afinal, as novas tantas coisas que o menino via

e vislumbrava, mais do que presença visual, continham uma presença sonora, posto

ser o que se pronunciava aos seus olhos. Neste caso, seus olhos, mais do que ver,

também ouviam. A necessidade primacial de acompanhar tudo o que acontecia

exigia do menino uma concentração máxima, um esforço conjunto de todos os seus

sentidos. Ver, respirar e ouvir as novas tantas coisas demandavam, afinal, uma

sensibilidade aguçada.

Sentir, ou mesmo ser afetado, indiscernivelmente, era o que fazia o menino.

Indistintamente os órgãos dos sentidos humanos pareciam, nele, funcionar. E esta

indiscernibilidade espalhava-se pela descrição da morada, na imagem das árvores,

impedidas de entrar na casa. É como se naquele lugar descrito por Rosa, também

houvesse uma resistência de tudo à divisão arbitrária de espaços internos e

externos. Tudo ansiava misturar-se. A demarcação espacial na descrição do lugar

tem como referência a clareira, imposta como região limitadora, área impeditiva da

proliferação das árvores. No lugar em que aportavam também entrecruzavam-se

sons e imagens, confundiam-se linhas divisórias, equivocavam-se as denominações

convencionais. Até mesmo a escrita assume uma forma atrapalhada, errática, não

fosse seu sentido infantilmente enfático. Afinal, é comum ouvir de crianças a

expressão entrar dentro:

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A morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa. [...] Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores? Só sons.132

Sons, apenas. Antes de qualquer representação, de qualquer conjetura física,

de qualquer categorização intelectiva, sons. É o escritor que passa a exigir, por

intermédio do menino, em seu devir-criança, a agudeza dos sentidos. É ele que

fornece, ao leitor, a oportunidade de re-ver, re-ouvir, re-descobrir, na infância do

menino, a infância do aprender. No percurso perigoso do aprendizado da vida, o

menino pensa com as sensações por estar desprovido dos conceitos adultos. Já o

escritor, adulto, devém-criança e esquece-se de já ter ouvido, já ter visto, já ter

sentido e põe-se a ouvir, ver e sentir infantilmente, quase como a criança que ele

inventa, ao modo de um personagem. Assim, a geografia do lugar transformada em

conhecimento por meio do mapa, os sons da mata, os cheiros e o não-sabido só

podem ser reinventados pelo escritor, se recuperados no âmbito do imaginado. Era

uma viagem no sonhado, já dizia o narrador. É como se Rosa tivesse encontrado

Deleuze na intensidade do que o filósofo afirmava em respeito às ilhas desertas:

“Mas tudo o que nos dizia a geografia sobre dois tipos de ilhas, a imaginação já o

sabia por sua conta e de uma outra maneira”133. Em seu texto denominado A Ilha

Deserta, Deleuze apresenta, teoricamente, o que Guimarães Rosa e seu menino, no

sonhado, parecem ilustrar:

sonhar ilhas, com angústia ou alegria, pouco importa, é sonhar que se está separando, ou que se está separado, longe dos continentes, que se está

132 Ibidem. 133 DELEUZE, op. Cit. p. 18.

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perdido; ou, então, é sonhar que se parte do zero, que se recria, que se recomeça.134

Partir do zero e ver tudo pela primeira vez – é assim que são criadas as

contingências do aprendizado do menino – um aprendizado que transforma o trivial

em extraordinária beleza:

Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão – brusco -, rijo, - se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto – o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro gluglo.135

A experiência do extraordinário da natureza expressa na surpresa que as

formas, cores, desenhos, sons e movimentos do peru geraram no menino,

dimensionam a força do aprendizado. A topografia do corpo do peru, em sua

materialidade física incomum, intensificam o sentido do novo que o menino

pressentia e que o completavam de emoção. Ele sabia que aquela experiência seria

de uma vez para sempre. Rosa, em busca de formas expressivas que pudessem

captar o aspecto fugidio e dificultoso daquela matéria vertente que carecia ser

exprimida, opta por neologismos: gruziou, gluglo. Trata-se de formas

onomatopéicas, que tentam imitar os sons produzidos pelo peru e verbalizar suas

ações sonoras. O exímio escritor utiliza-se de recursos estilísticos que emprega com

esmero: desde a personificação do animal como um imperador que dava as costas

134 Ibidem. 135 ROSA, 1972, p.4.

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ao menino a fim de obter sua admiração e, num ritual próprio de movimentos que

colocavam em destaque sua suntuosa forma se auto-proclamava, até a harmoniosa

sonoridade das palavras sucessivas calor, poder e flor, cujas pausas rítmicas, nem

mesmo a presença da conjunção coordenativa e conseguiu obstruir. São recursos

rítmicos, melódicos, semânticos, sintáticos e lexicais que Rosa arquiteta na sua

escrita, mas, sobretudo, é um talento que transborda em engenhosidade literária.

Um transbordamento - o resultado da beleza do peru que tinha qualquer coisa

de calor, poder e flor, expressa literariamente o que Deleuze afirma, desta vez, sobre

o inumano das potências diabólicas. São essas ampliações que causam

transbordamentos, que propiciam múltiplos devires, que ultrapassam os limiares.

Trata-se, neste caso, de um animal que devém-humano, ou mesmo que configura

zonas de intensidades liberadas onde os conteúdos se libertam de suas formas, não

menos que as expressões, do significante que as formalizava.136 A referência ao

calor e ao poder remete o leitor a uma apreciação erótica das cores, formas e

movimentos do animal torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos

de verdes metais em azul-e-preto – ele satisfazia os olhos, era de tanger

trombeta.137 São palavras conjugadas que reúnem uma enorme gama de elementos

cujas cargas expressivas de admiração, regozijo, submissão e prazer dimensionam

a satisfação obtida pelo menino naquela espécie de encantamento. E há, ainda, a

referência à flor, metaforicamente uma expressão de feminilidade, suavidade e

136 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. KAFKA Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p.21. 137 ROSA, 1972, p.4.

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delicadeza. Calor, poder e flor, sonora e enfaticamente traduzem a sensualidade da

língua, sua libido. O calor e o poder, masculinizados pelo uso inexpresso do artigo

definido conjugam-se à flor, afeminada na omissão do artigo. É como se o artigo se

metamorfoseasse. E é nesta ambivalência, na obscuridade das forças que se

intercruzam e fazem explodir e transbordar as sensações, que as potências

diabólicas se expressam mais vigorosamente138. Rosa reúne, na descrição

detalhada da aparição do peru, signos vigorosos que, sensualizados pela trama que

os entrelaça, subliminarmente, criam uma atmosfera erótica que se expande pelo

fragmento.

4.3 SEM-TEMPO DE APRENDER

O peru para sempre139 - A descrição minuciosa da espantosa aparição do

peru é interrompida, simples e precisamente, para afirmar a duração daquela

experiência de aprendizagem que se dava. Na brusca e simples afirmação,

Guimarães Rosa expressa não um mero pressentimento que o menino poderia ter,

tampouco dimensiona o gozo daquela descoberta, mas reforça a intuição infantil da

138 Tomamos esta expressão de Deleuze: “[...] à medida que a ampliação cômica de Édipo deixa ver no microscopio esses outros triângulos opressores, surge ao mesmo tempo a possibilidade de uma saída para escapar disso, uma linha de fuga. Ao inumano das potências diabólicas corresponde o subumano de um tornar-se coleóptero, [...]” In: DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 20. 139 Ibidem.

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permanência do peru enquanto coisa que se apresentava, que se dava, em si

mesma. Não havia, para o menino, uma representação do peru a partir da qual ele

pudesse inferir ou concluir sua identificação. O peru era uma aparição, não uma

representação. Isso é o que Deleuze destaca na discussão a respeito do conceito

Bergsoniano de intuição: A primeira característica da intuição é que, nela e por ela,

alguma coisa se apresenta, se dá em pessoa, em vez de ser inferida de outra coisa

e concluída.140 O conhecimento que a criança passava a ter do peru não continha as

características próprias de um conhecimento científico que o capacitaria a distingui-

lo de outros animais e situá-lo em categorias e classificações, ou mesmo identificá-lo

por meio de denominações próprias. Tratava-se de um outro tipo de conhecimento,

ou mesmo de uma outra relação com o conhecimento. Uma relação de inserção na

coisa conhecida, ou mesmo de intersecção, na medida em que a coisa conhecida

passava a fazer parte daquele que a conhecia. Não mais um conhecimento sobre

algo, mas um conhecimento em algo.141 Aquele peru estaria, a partir daquele

instante, no menino, no prolongamento daquele presente que se estenderia,

indefinidamente. Isso, ele já o sabia.

O intervalo exigido pelo escritor ao inscrever, na aparição do peru, em meio a

uma extasiante descrição de cores e formas, a afirmação o peru para sempre,

também exige, do leitor, uma interrupção. Afinal, de que modo aquele animal se

140 DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006, p.34. 141 Sílvio Gallo remete-se ao alerta de Badiou sobre não se confundir a intuição deleuziana com o sentido místico da intuição ou mesmo com o sentido que lhe atribui Descartes: “Não se trata de intuir a ‘partir do nada’ uma idéia clara e distinta ou mesmo uma revelação; a intuição, em Deleuze, é um trabalho de pensamento que, articulando multiplicidades de conceitos, intui novos conceitos. In GALLO, Sílvio. Deleuze & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p.38.

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lançaria no para sempre? Por que uma imagem temporal entre nuances de cores,

vibrações sonoras e movimentos corporais? Belo, belo!142 É a exclamação que se

segue. Seria um apelo de Rosa ao leitor para que, junto com ele, no fluxo da

linguagem, se lançassem numa dimensão temporal unificadora da beleza e da

duração das coisas? Quase uma proposta de apreciação estética da vida. Quase

também um apelo ético quanto à decisão do que reter, na duração do vivido,

enquanto memória. Um chamado à realização de uma dupla escolha: primeiro, por

apreciar a extraordinária beleza do que se apresenta como trivial para, em seguida,

reter esta mesma beleza no tempo, tornando-a sempre presente. Não mais como

coisa nova, senão como coisa que não envelhece. A expressão Belo, belo!

configura, ainda, uma interjeição entusiasta lançada, inesperadamente, do interior do

texto narrativo, de forma direta e livre, para fora dele – uma artimanha de Rosa para

deslocar o menino e também o leitor - uma aposta de encontro num novo lugar.

Nova é a palavra que se faz necessária para dar conta do novo aspecto da

ação costumeira que se deseja exprimir. Daí o neologismo criado por Rosa: bis-ver.

O menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para passeio.143

A palavra bis, neste caso, não mais possui uma forma substantivada, tampouco

funciona domo advérbio ou interjeição, mas assume uma função verbal, ou seja,

insere-se diretamente na ação duplicada. É como se Rosa chamasse a atenção para

a dimensão filosófica do ver, tal qual o apresenta Deleuze: Nós reencontramos o

142 ROSA, 1972, p.4.

143ROSA, 1972, p.5.

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imediato porque, para encontrá-lo, precisamos retornar. Em filosofia, a primeira vez

é já a segunda; é essa a noção de fundamento.144 A linguagem literária de Rosa e a

linguagem filosófica de Deleuze entrecruzam-se na figura do menino que apenas

bis-viu aquela aparição. Rosa, escritor, carece do personagem que inventa para ver,

pela segunda vez, filosófica e literariamente, aquele animal. O neologismo parece

atender a exigência de uma forma nova que se desencadeia do que foi, de súbito,

expresso.

A extravagância do aprendizado do menino configura-se na extrapolação do

sentido da ação verbal expressa pelo verbo no enunciado: O menino repetia-se em

íntimo o nome de cada coisa.145 A palavra, incorporada pelo menino, faz com que

ele se repita, ao repeti-la. A inversão do uso sintático do sujeito, na frase, faz emergir

o que está no fundo da escrita rosiana. O menino não repete a palavra, mas repete-

se, na forma reflexiva do verbo. A ação por ele desencadeada enquanto sujeito,

retorna reflexivamente. O nome, que seria, gramaticalmente, o objeto do repetir,

compartilha da mesma ação à qual o sujeito se submete. Este uso do verbo confere,

ao fragmento, um sentido radical, agramatical. Um uso que parece justificar-se na

intimidade que torna indiscerníveis sujeitos e objetos e que elimina as fronteiras

impostas pela correção gramatical. Esta função limítrofe da palavra, contida no

menino que Rosa inventa, explode na escrita do autor.

A natureza ainda não representada, mais uma vez apresenta-se:

144 DELEUZE, 2006, p.35.

145 ROSA, 1972, p.5.

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A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios. As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema.146

A aprendizagem dos eventos da natureza pelo menino se opõe frontalmente e

paralelamente à construção da cidade pelos adultos, os tios, os operadores de

máquinas, os engenheiros. O sentido adulto da viagem é a fabricação da cidade – a

construção da identidade adulta – a cidadania. O sentido da viagem infantil é a

indiscernibilidade das margens entre alegria e dor, entre intensidade e fugacidade,

entre vida e morte. A necessidade que a cidade tem da adultez – a pressa – a

alteração das coisas – o inevitável crescimento – tudo se distingue e se confronta

com a intensidade das descobertas infantis do menino. Enquanto ele se detém no

espanto e na surpresa que as formas, cores e movimentos de bichos e plantas lhe

imprimem, os adultos o apressam para conhecer a ligeireza com a qual a cidade é

construída. São movimentos díspares: de um lado, a aparição natural das coisas; do

outro, sua substituição.

A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio.147 A invenção da

expressão índio-a-índio em vez da forma usual fila indiana vivifica a imagem do

índio, a personificação da força primitiva que índio/seriema faz emergir. A alteração

da infância do viver animal em função da necessidade da constituição da cidade. Em

breve não mais haveria filas indianas, mas ruas, estradas e rodovias. Era a grande

cidade que se edificava pelo trabalho incessante das máquinas. O aprendizado do

146 Ibidem. 147 Ibidem.

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menino, apresentado por Rosa às avessas do que ocorria, prenunciava um

desaparecimento. As cores, formas e movimentos da natureza que o menino via

pela primeira vez estavam fadados a sumir em breve por força das circunstâncias

geradas pela implantação da cidade. Até um lago havia sido planejado. O

crescimento imposto, a despeito do já existente, exigia a alteração de um estado de

coisas. Analogamente, o menino também crescia. Contudo, seu crescimento ocorria

no sentido inverso ao crescimento da cidade. Ele crescia para dentro, concentrando

em si mesmo as sensações novas daquilo que estava condenado a se esvair.

Intuitivamente o menino sabia da efemeridade do que vivia e intensificava as

sensações vividas, adivinhando-lhes a fugacidade.

Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. Ele estava nos ares. 148

Este fragmento concentra a experiência da aprendizagem, o estranhamento

imprescindível e anterior à descoberta das coisas. O espanto, a admiração, a

intimidade. O sem-tempo da aprendizagem confrontando-se com o armazenamento

de dados na memória – o encastelamento da memória – o revolver do aprendizado -

a seu tempo a aprendizagem se dá. Ela requer seu próprio tempo e também a

duração própria de sua realização.

Realizar-se é sempre o ato de um todo que não se torna inteiramente real ao mesmo tempo, no mesmo lugar, nem na mesma coisa, de modo que ele

148 Ibidem.

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157

produz espécies que diferem por natureza, sendo ele próprio essa diferença de natureza entre as espécies que produz.149

Nesta afirmação de Deleuze podemos situar o processo de aprendizagem

que Rosa descreve de forma quase didática, ponto por ponto, não fosse o tom

poético tão belamente empregado.

Estar nos ares, em puro devir – no sem-saber anterior à aprendizagem – no

fluxo do ainda não conhecido – no ainda não verbal – no sonoro – no sonhoso – no

gravitacional. Assim estava o menino. Sem chão, sem firmamento, à disposição do

vento. Nesta zona indistinta, denominada por Rosa de sonhosa, se dispõe o menino.

Sua alegria é líquida, posto que bebida. Ela é também incessante e, de forma

intrigante, extrai sua força do opaco. Antes mesmo da definição das cores, a alegria

do menino se faz presente. A primazia de sua alegria é reforçada, por Rosa, na

opacidade que a faz surgir. Naquilo que ainda não foi atravessado pela luz – no

ainda turvo. O opaco é o indiscernível, esta área em que tudo se avizinha e se

atravessa.

Aquela visão do peru, interrompida pelo passeio, mantinha sua importância

infantil, tanto que o passeio sequer foi comentado pelo narrador. Sabe-se apenas

que, ao voltar, o menino continuava a pensar no animal:

Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado para ele, no terreirinho das árvores bravas. Só pudera tê-lo um instante,ligeiro, grande, demoroso. Haveria um, assim, em cada casa, e de pessoa?150

149 DELEUZE, 2006, p. 41. 150 ROSA, 1972, p.5.

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158

A intensidade do instante que se fixa num não-lugar, em linhas que se

intercruzam no espaço ocupado pela força do ainda não pensado e que não pode

ser muito pensado, sob pena de enfraquecer-se, de ter sua intensidade diminuída

pela inteligibilidade. O menino era uma máquina desejante em pleno movimento. O

que o intrigava, contudo, era a possibilidade daquela mesma experiência ser

vivificada por outros, a possibilidade de que houvesse um peru em cada casa, para

cada pessoa - uma experiência de aprendizagem que fosse única e intransferível,

mas que, ainda assim, pudesse ser alcançada por qualquer um que intensamente a

desejasse e que corajosamente se dispusesse a atravessá-la . Um peru para cada

um, é o que parecia ansiar o menino. É o que coloca a escrita de Rosa numa relação

de vizinhança com a segunda característica das literaturas menores, tal como a

descreve Deleuze:

A segunda característica das literaturas menores é que nelas tudo é político [...] seu espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política. O caso individual torna-se então mais necessário, indispensável, aumentado ao microscópio, na medida em que uma outra história se agita nele.151

É deste modo que a relação entre o que o menino via e o que passava

despercebido pelos adultos expressava a disparidade entre os valores concernentes

a uma apreciação infantil das coisas e a urgência habitual da vida adulta. Enquanto

o menino se preocupava em não deixar escapar o quente daquela lembrança, do

mais importante, que estava guardado para ele, no terreirinho das árvores bravas,152

151 DELEUZE; GUATTARI. 1977, p. 26. 152 ROSA, 1972, p.5.

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os adultos tomavam cerveja, após servido o almoço. O menino buscava conter o

instante de sua descoberta na singularidade do que aprendia, já os adultos, em

contraste, extravasavam, de forma superdimensionada, o empreendimento que os

envolvia. O menino tentava ouvir o grugulejo do peru, mas apenas discernia as

vozes adultas dos engenheiros, do tio e da tia, ao anunciarem a grandiosidade

daquela cidade que seria a mais levantada no mundo, resultado de seus feitos. O

conflito que opõe, nesta passagem, os interesses do menino e dos personagens

adultos, consubstancia-se no enquadramento da situação geopolítica da

transposição da capital do país do litoral para o interior. Se dermos vazão a

referências autobiográficas das viagens de Guimarães Rosa à cidade de Brasília,

ainda em construção, teremos um percurso histórico-político longo a percorrer.

Contudo, parece-nos mais instigante restringirmo-nos ao posicionamento político

exigido pela conflituosa situação na qual se encontrava o menino perante a

intensidade de sua experiência de aprendizagem com aquele animal e a

grandiosidade ilegítima da obra de engenharia que se erguia e se pronunciava

imperativamente nas vozes adultas. Uma outra, aliás, muitas outras histórias

latejantes agitam-se no caso individual de um menino, o menino desta estória.

Este é o conflito que nos impõe Rosa ao narrar o retorno da visita às obras da

cidade que se erguia. O autor faz convergir diferentes interesses, diferentes

histórias, concomitantes disparidades, num mesmo fluxo temporal. O resultado é um

fragmento repleto de ações que mais parecem tomadas cinematográficas, cujos

jogos de imagens expressam, explosivamente, em planos coexistentes, ocorrências

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desarmônicas. Quem é o sujeito de quem se fala? Qual é a gramática que garante

coesão ao texto? Quais são os elementos sintáticos referenciais?

Tinham fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O Tio, a Tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo. Ele abria leque, impante, explodido, se enfunava... Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever.153

Aqui o autor mistura, em um só fragmento descritivo da cena do almoço, a

cruel oposição entre a cidade que é levantada por engenheiros, ou seja, o trabalho

de engenharia adulto e a engenhosidade da infância do menino que se detém na

imagem do peru e não se contém diante do desejo de repetir aquele momento de

deslumbramento. O ambiente familiar da casa, do almoço, do quintal onde ficara o

peru conecta-se com a ambiência macroscópica da construção da cidade e suas

implicações. Os atributos das coisas, misturados na linguagem poética de Rosa,

inventam uma maneira pueril de identificar o corte do doce pela beleza, o perfume

não mais pelo odor e, sim, pelo sabor, a carne por sua forma de flor, e não mais por

seu paladar. O sofrimento imposto pelo desejo de rever o animal parece antecipar o

sofrimento posterior que a impossibilidade de sua realização guarda. Trata-se, afinal,

de uma experiência - algo que se dá no âmbito da primazia da aprendizagem – algo

que se vê com o olhar de um aprendiz, não o que se revê no olhar de quem já viu. O

conflito se desdobra no micro-espaço da experiência do menino que vivencia o

contato com a ave. É a travessia, exigida pela experiência, que gera a coexistência

da alegria e da tristeza daqueles instantes. A alegria que sentira o menino por ter

153 ROSA, 1972, p.5.

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atravessado aquela experiência, reveste-se, agora, de uma intensa tristeza por

saber que a experiência não se permite repetir.

Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E – onde? Só umas penas, restos, no chão. – “Ué, se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?” Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru – aquele. O peru – seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morte. Já o buscavam: -“Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago...”154

O aprendizado da morte, da perda, da ausência, da finitude da vida em

chocante conflito com a intensidade da experiência de vida é o que o fragmento

acima parece expor. A beleza da ave, ponto focal da admiração do menino,

mostrava-se frágil e fugaz em meio às contingências da vida humana. O peru não

era motivo de contemplação para as demais pessoas, mas um alimento que havia

sido reservado para a ocasião do aniversário do tio. Sua vulnerabilidade conflitava

com a explosão de vida que parecia possuir. Explosão de vida também para o

menino que intensificava seus sentidos e percepções de diferentes modos de vida

naquele animal. A morte da ave cruzava o curso de um aprendizado e lançava o

menino, de súbito, na conflitante relação entre vida e sobrevida - a necessidade da

morte como garantia de outra vida – a demanda de um posicionamento político – a

vida enquanto existência ética. Um aprendizado de vida que exigia resignação

diante da coexistência da morte. Ao menos teria olhado mais o peru – aquele.155

Esta afirmação revela a abrupta conformidade com a morte, a aceitação de sua

força, o lamento diante da surpresa. Ao menino, impotente diante da imposição da

154 ROSA, 1972, p. 5-6. 155 ROSA, 1972, p.6.

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morte, restava apenas lamentar o não ter-se detido por mais tempo em olhar para

aquele animal. Mas aí, inevitavelmente, acontecia um súbito e atroz aprendizado: o

aprendizado da irreversibilidade de um tempo medido cronologicamente.

A morte gradual, de forma miligrâmica, passava a apresentar-se ao menino. A

morte agora concentrava sua atenção. Ela passava a circunscrever, no

desaparecimento da ave, uma microrregião de aprendizagem. E, também, o

microespaço da solidão de uma experiência. Afinal, alheios ao que se passava, já o

chamavam. O impacto da atenção adulta voltada para o caráter novidadeiro da

cidade denunciava o descompasso entre ele e os outros. A grande novidade da

grande cidade levantada não lhe despertava mais interesse que o desaparecimento

do peru. Nem mesmo o lago anunciado poderia desviá-lo daquele instante. É como

se o olhar do menino crescesse para trás, no que havia sido visto, no que havia sido

retido pelo olhar e, ainda mais para trás, em tudo o que poderia ter sido visto por um

olhar mais atento e intensificado. Em oposição, emergia o olhar adulto, direcionado

para o que seria visto, o que seria edificado, o que se consolidaria a partir de um

plano de execução. O ponto culminante da projeção futura: um lago a ser

artificialmente construído naquele primitivo e selvagem lugar – projeção também da

grandiosidade da empreitada.

O caráter híbrido da situação de aprendizagem do menino extendia-se ao

espaço geográfico que circunscrevia aquela contingência. Afinal, Guimarães Rosa

deixa indícios de referência ao local onde seria executado o projeto urbanístico que

levaria à construção de Brasília, considerada o oásis simbólico da modernidade

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brasileira.156 Naquela geografia hostil, naquele isolamento, em meio a uma

diversidade de formas de vida animais e vegetais ainda não conhecidas, uma cidade

seria erguida. O menino passava a ter uma percepção ambígua daquele novo

espaço. O que se pretendia instaurar e que ainda não existia, possuía,

antecipadamente, o atributo do novo. Era algo novo já esperado, antecipado nos

projetos arquitetônicos, urbanísticos e políticos. Era um novo já sabido. Um novo

conflitante com o caráter inusitado do que a ele se apresentava na ave. Ela, sim, lhe

era nova.

A alteração de um estado de coisas nem sempre traz o novo. Pois o novo

havia estado ali, diante do menino, na forma de uma ave que há muito existia e que

deixava de existir muito rapidamente. O descompasso entre a novidade que o novo

despejava na vida do menino e a novidade da grande cidade enquanto um novo

coletivo dimensionava o perigo da necessidade de crescer. O menino e a cidade

cresciam. A cidade era levantada. Saía do chão. Respondia a um projeto. A cidade

era o resultado da engenhosidade adulta. O menino era lançado num fluxo

ininterrupto de sensações, emoções e idéias. Atirado para as margens,

experienciava situações extremas. Não deixava de ser menino, contudo. Aprendia,

na intensidade do que vivia, na solidão do que sentia, a ser ainda mais menino. Já

não era o mesmo. Isto ele sabia. Ainda assim, não possuía a adultez deslumbrada

156 A referência a Brasília, explicitada em estudos que perspectivam, na obra de Guimarães Rosa, a realidade brasileira, é realizada por Benjamin Abdala Junior no artigo intitulado ‘As margens da alegria: perspectivando a cultura brasileira’. In Veredas de Rosa II – II Seminário Internacional Guimarães Rosa – 2001 – Publicação da PUCMINAS organizada por Lélia Parreira Duarte et al. Belo Horizonte, 2003, p. 96.

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que a novidade do levante da cidade exigia. Continuava a pensar na ave, o peru -

aquele.

Uma das três características das literaturas menores, conforme citado

anteriormente, é que nelas tudo adquire um valor coletivo.157 E, então, o conflito

instaurado por Rosa entre a singularidade da experiência do menino de um lado e,

do outro lado, o impacto da nova cidade sobre os adultos, condensa a enorme carga

expressiva que a idéia de progresso faz emergir sobre todos, coletivamente. Com a

sutileza da linguagem literária que, na prosa de Rosa assume força poética, o que

se vê reforçado é o caráter arbitrário das demarcações fronteiriças dessas

instâncias. Afinal, Rosa confunde as ambiências particulares e coletivas, mistura os

sujeitos e lança, num fluxo ininterrupto, ações, sentimentos e sensações singulares

ou não. O autor não se diferencia, não ensina o menino sobre a importância da

cidade que se ergue nem tampouco tenta ensinar os adultos sobre a importância da

experiência de aprendizagem do menino. Rosa, o escritor, abdica do tom professoral

em favor dos leitores e de suas leituras. Sua fala mistura-se às contingências que

cria e os enunciados, não são seus. A literatura de Rosa se faz menor na medida em

que se encarrega da função de uma enunciação coletiva. Na voz do menino,

157 Remetemo-nos, aqui, à nota explicativa nº 106 e acrescentamos: “As formas e seus desenvolvimentos, os sujeitos e suas formações remetem a um plano que opera como unidade transcendente ou principio oculto. [...] plano de vida, plano de música, plano de escrita, é igual: um plano que não pode ser dado enquanto tal, que só pode ser inferido, em função das formas que desenvolve e dos sujeitos que forma, pois ele é ‘para’ essas formas e esses sujeitos. E depois há todo um outro plano, ou toda uma outra concepção do plano. Aqui não há mais absolutamente formas e desenvolvimento de formas; nem sujeitos e formação de sujeitos. Não há estrutura nem gênese. Há apenas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre elementos não formados, ao menos relativamente não formados, moléculas e partículas de toda espécie. Há somente hecceidades, afectos, individualizações sem sujeito, que constituem agenciamentos coletivos. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Vol. 4. Trad. Suely Rolmik. São Paulo: Ed. 34, 1977, p. 55.

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Guimarães Rosa se solidariza com todos aqueles que, distantes do projeto da

criação de uma nova cidade, não possuem voz. E é o seu talento que o lança

daquilo que escreve sozinho para uma ação comum, para um ato político. O alcance

da força explosiva de sua expressão literária dimensiona o aspecto revolucionário da

sua escrita e o posicionamento ético-político das circunstâncias que inventa e

assume. O não-lugar e o sem-tempo das situações vividas por um menino sem-

nome extrapolam o âmbito individual e pulverizam as possibilidades de ocorrência

enquanto enunciação coletiva.

Pontualmente e mais uma vez, a força expressiva sob a qual Rosa submete

as palavras exige que sua própria escrita conforme-se aos sentidos inaugurados.

Em destaque, separado por um hífen, o pronome demonstrativo aquele delimita o

espaço-tempo da consciência que o menino passa a ter da diferença entre o peru

guardado em sua memória e qualquer outro. Aquela primeira visão do animal

transmutava-se, para o menino, em um conceito, recém-formado, de um tipo de ave.

O menino, ao pensar naquela ave, ao desejar vê-la, sabia, intuitivamente, que

desejava revê-la, pois já a havia visto antes, embora uma só vez, talvez o bastante.

Mas, para seu desalento, da mesma forma abrupta de sua aparição, aconteceu seu

desaparecimento. Ficou a memória. Ficou também o lamento, o paradoxal remorso

de não ter se detido por mais tempo naquela visão. Rosa, em sua costumeira

ambigüidade, sutil e cruelmente explora o paradoxo da imagem que se perpetua no

instante em que não se deixa repetir e, portanto, faz-se única.

Sem o saber, explicitamente, o menino retém o olhar no peru – aquele – pois

é nele que pensa. Contudo, a preocupação, já adulta, vem depois, com a idéia do

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dever. Assim, Cerrava-se, grave... Com a gravidade adulta e fixadora, Rosa cerra o

menino. O personagem é recolhido, sem movimento, num estado de letargia que o

faz pesado. O menino é retirado do fluxo ininterrupto e forte da experiência de

aprendizagem. Agora o menino já sabe. A ave está morta. A dor da ausência está

posta. Resta o cansaço. Na intensidade do vivido, um momento de rendição. Num

cansaço e numa renúncia à curiosidade...158 Uma renúncia que não implicava em

perda, posto tratar-se de um tipo de curiosidade que não passava da necessidade

de constatação do já sabido: a grande cidade em obras. Uma renúncia que

implicava na decisão de reter aquele instante, de não distrair o pensamento. Uma

escolha radical: não deixar-se levar pelo novidadeiro.

4.4 INSISTÊNCIA INFANTIL

Contudo, aqui parece ocorrer a morte de um tipo de infância. E, ao mesmo

tempo, a definição de uma outra experiência de infância. O menino passa a

conhecer sobre a ave. Ele atinge, deste modo, uma relação com ela, muito diferente

daquela vivificada anteriormente. A ave é, agora, exterior a ambos. O menino chega

mesmo a sentir-se envergonhado diante da possibilidade de ser ridicularizado: Teria

vergonha de falar do peru. 159Esta instância do conhecimento se desdobra na

158 ROSA, 1972, p.6.

159 Ibidem.

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inserção do menino em uma moralidade adulta. A dúvida gerada pela noção do

dever, instala-se. O menino se vê impelido a crescer. Cansado, apenas segue, rumo

à adultez. A moralização dos sentimentos o deixa confuso. Interrompida a infância

que o fazia leve, que o fazia fluir na condição de aprendiz, agora ele sente a

necessidade de julgar, de avaliar o que lhe havia ocorrido. Já não pode mais ser

infantil. Preocupa-lhe a adequação dos sentimentos. Ele precisa levantar-se, assim

como a cidade era levantada. Entretanto, um novo conflito emerge. O julgamento se

expande, alcança também os outros. A dimensão jurídica do conhecimento parece

alcançá-lo com toda a força. Ele agora é juiz. Julga o saber. Julga as ações dele e

dos outros. Repete a idéia de rompimento com a infância que o sentido trivial do

crescimento exige. A ele cabe agora selecionar, mesmo sem critérios, a dor a ser

sentida. Assim como os adultos, deve saber selecionar o sofrer. Mas as

contingências adultas, frágeis, também se apresentam vulneráveis ao seu julgo.

Afinal, matar a ave também parece ruim: Mas, matarem-no, também parecia-lhe

obscuramente algum erro.160 O menino assume, então, uma forma adulta de se

defender. Aponta o erro alheio na tentativa de minimizar o sentimento de culpa que

se instala a partir do seu próprio julgamento. Seus sentimentos, até bem pouco,

leves, adquirem peso e gravidade – deixam-no cansado: Sentia-se sempre mais

cansado.161

160 Ibidem. 161 Ibidem.

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As coisas não mais se apresentavam a ele, mas eram mostradas. A

circunstância nova que se instalara reclamava um novo jeito de dizê-la. Guimarães

Rosa, o escritor adulto, cúmplice da meninez do personagem, o sabe. O menino

Rosa, em seu devir-criança, sem deixar a adultez do escritor, cria, magistralmente,

uma palavra: circuntristeza.162 Um vocábulo apenas e, dentro dele, a explosão

semântica daquele instante. É o léxico de Rosa a contrariar os lingüistas e suas

afirmações sobre a arbitrariedade dos signos. Na força da expressão que a

intensidade daquele momento estava a exigir, Rosa utiliza-se da língua como uma

forma de exteriorização de uma situação nova, desconhecida e, portanto, de sua

autoria. É este aspecto autoral no uso da língua que o remete, junto ao menino, à

infância do dizer – ao ato da criação verbal. Assim, o escritor cria um neologismo,

inventa uma palavra que surge em decorrência da força expressiva do momento.

Afinal, trata-se de um espaço quase físico, um tanto geográfico, o entorno não

alegre no qual o menino via e sentia coisas díspares. A liberdade lexical de Rosa se

funde na meninice do escritor. É assim que o autor nos mostra um mundo

primordialmente literário.

E na dimensão literária do saber é que se instala a ruptura com as fronteiras

normativas da língua. Senão, como entender o uso concomitante dos artigos

definido e indefinido na expressão o um horizonte?163 Era o horizonte, mas não o

único horizonte, apenas aquele horizonte que se fazia possível naquela

circunstância, para aqueles trabalhadores. O menino havia aprendido,

162 Ibidem. 163 Ibidem.

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intuitivamente, o caráter contingencial do conhecimento. Rosa teria que expressá-lo

de forma literária. Portanto, era preciso romper a forma em benefício da expressão.

Reunir os dois artigos, colocá-los lado a lado, de modo complementar, em relação

ao mesmo horizonte, foi a saída.

Outra linha de fuga se configurava na nova adjetivação das coisas que

delineavam o espaço circundante ao menino. A paisagem se alterava. As árvores

apresentavam-se vagas; as águas do ribeirão mostravam-se cinzentas; o velame-do-

campo reduzia-se a uma planta desbotada; o encantamento morto e sem pássaros,

já não podia mais voar. Até mesmo o ar que, inicialmente, era o ar fino de cheiros

desconhecidos, apresentava-se cheio de poeira.164 O ar pesava, estava cheio,

carregado da poeira levantada pelas máquinas que levantavam a cidade, a cidade

mais levantada... Todo esse cuidado no uso da língua, todo esse traquejo verbal, a

serviço da expressão de um diferente modo de perceber as coisas. Nesse trabalho

artesanal com a língua, é o artífice Rosa quem burila as palavras. Parece possuir um

buril raiado, aquele terminado em várias pontas, com o qual talhos paralelos são

produzidos na madeira. Inúmeros são os talhos rasgados nas palavras rosianas.

Talhos que tanto se aproximam da idéia de desbaste, de poda ou talhadia, quanto

da concepção de talhe enquanto feitio ou feição. O talhar literário de Rosa implica na

eliminação de elementos superficiais da língua, daí a idéia de poda. Mas também e

fundamentalmente, exprimem a delicadeza do talhe do corte que se faz no próprio

corpo das palavras. É o talhe rosiano de dizer, literariamente, a extensão e

intensidade daquela infância a morrer.

164 Ibidem.

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Há, porém, uma infância que resiste. É um tipo de infância que desconfia da

adultez. Uma infância que, de algum modo, a rejeita. Uma infância que receia as

adversidades adultas, que sabe da infidelidade da balança. Uma infância que insiste

em ocupar os interstícios, o lugar improvável, onde quase nada medeia.165 Afinal,

Rosa destaca a coexistência do contentamento e da desilusão, embora afirme a

presença de um intervalo entre os dois, a partir do próprio termo entre. Em seguida,

utiliza o termo quase e deixa uma brecha:

Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia.166

O mundo, maquinal, acompanha o espaço, agora hostil. Esta hostilidade do

espaço que se abre para a grande cidade é a mesma hostilidade do crescimento

forçado que se impõe à criança como acesso à adultez. As margens entre o

crescimento da cidade, enquanto espaço físico e geográfico, confundem-se com as

margens internas da alegria e da tristeza no espaço íntimo da experiência do

menino. Seu precoce cansaço parece prenunciar a exigência adulta de uma relação

futura excludente entre infância e adultez, vida e morte, contentamento e desilusão.

Antecipadamente, essas questões o fatigam. O cansaço não lhe é próprio, mas

agregado. Abatido, o menino movimenta a cabeça. Contudo, o movimento é para

baixo. Abaixar a cabeça apresenta-se como um sintoma da baixa intensidade da

dimensão adulta da circunstância:

165 Ibidem. 166 Ibidem.

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Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade para não passear com o pensamento. Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o vlame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.167

Transtornado com a morte do animal, o menino já não encontrava graça,

tampouco alívio, na paisagem local e nos lugares onde era levado para passear.

Mesmo assim, ia. Guimarães Rosa, propositada e lindamente deixa sozinho o verbo

ir. Conjugada no pretérito passado, representada graficamente por duas únicas

letras, a forma verbal poderia, arriscadamente, não receber o devido destaque.

Rosa, o escritor, garante a eminência do verbo ao inscrevê-lo entre duas frases. Ia.

A força semântica decorrente desta opção, dispara um feixe de sentidos em direção

ao movimento do menino. Seu deslocamento, seco, diminuto, sem atributos,

expresso na redução vocabular, paradoxalmente enfatiza a força do ato de ir

enquanto diminui a carga subjetiva do agente da ação. A sonoridade da palavra

imprime o ritmo do deslocamento expresso pelo verbo. Um encontro vocálico - um

sopro de articulação sonora – e o menino, quase sem vigor, ia.

Rosa explora, intensamente, os recursos sonoros da língua. Sua forma de

narrar, seu talhe, desestabilizam as formas consagradas do dizer. Entre as inúmeras

ousadias literárias que elabora, o exemplo acima ilustra também a fusão de

167 Ibidem.

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estruturas frasais diferenciadas. O vocabulário, ora neológico, ora regional, por

vezes arcaico, desarranja frases feitas, concentra-se na busca de uma forma

expressiva suficientemente forte para carregar a força dos sentidos emergentes nas

palavras. Na cadência de uma linguagem inovadora, Rosa balanceia a escrita, os

sons, a fala. É possível sentir o impacto rude das palavras seletivamente arranjadas

para descrever a morte, apresentada ao menino, agora na forma de um

desmatamento. A mesma rudeza se expressa na descrição das máquinas e de seus

operadores, na mecanização das ações humanas então desencadeadas:

Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto – transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seu dentes de pilões, as betumadoras. E como haviam cortado lá o mato? – a Tia perguntou. Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma lâmina espessa, feito limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca. A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara... e foi só o chofre: ruh...168

Novamente os aspectos fônicos, aliados aos aspectos semânticos e

estruturais da língua, afinam-se e consolidam os sentidos da morte que,

gradualmente, se apresentam ao menino. O barulho da árvore que cai sugere um

gemido. E a curiosidade da tia repercute na ação imediata e destruidora do operador

de máquinas. Sua pergunta é respondida por meio da inserção repentina do

discurso livre indireto na fala do narrador: Queria ver?169 Dela resulta a informação

descomprometida sobre o ato de matar a vida. Resulta também a repentina imagem

da morte de uma árvore. O menino, por intermédio da tia, passa a conhecer

168 Ibidem. 169 Ibidem.

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mecanismos criados pela necessidade simultânea dos homens de edificar e de

destruir, própria do processo de crescimento. Entretanto, sutilmente, desliza-se, por

intermédio da escrita de Rosa, a morte de uma infância em favor de uma adultez

inesperada.

Atordoado, o menino se surpreende, mais uma vez, com a brutalidade da

morte provocada. A violência da ação sobre a árvore é expressa na rapidez de sua

morte. Abruptamente, a árvore cai. Não cai sobre o chão, mas sobre o instante.

Espaço e tempo confundem-se. Misturados, indiscerníveis, reúnem forças para

expressar o sentido daquela morte. Ainda assim, Rosa repete a palavra toda. Ele

parece não contentar-se com o sentido forte e definidor do termo. Para ampliar-lhe o

sentido, repete a palavra. A sonoridade decorrente da repetição produz um efeito

terminal: sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda.170

Diante da violência de tudo, o menino mistura-se às outras formas de vida e

também morre, junto a outras formas de morte. O mimetismo de tudo é a linha de

fuga encontrada por Rosa. Céu, mar, folhas, pedra, o menino, vida, morte – tudo se

atravessa e se interconecta. Nesses planos difusos, o céu passa a estranhar aquilo

que lhe é próprio: a cor azul. A árvore morre mais, desafiando o caráter terminal da

morte. Os ramos da árvore emitem sons que não são provocados apenas pelo ar,

mas também pela água, já que marulham. Esses mesmos ramos configuram parte

de nada, dada a morte da árvore. O sem-sentido da situação e a perplexidade do

170 Ibidem.

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174

menino exigem, por fim, um arranjo frasal inusitado. Rosa responde de forma

inventiva e desconcertante:

Trapeara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento – o inaudito choque – o pulso da pancada. O menino fez ascas. Olhou o céu – atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. A limpa esguiez do tronco e o marulho imediato e final de seus ramos – da parte de nada. Guardou dentro da pedra. 171

Os olhos do menino, incapazes de acompanhar o imediatismo daquela

ruptura e seus ouvidos, despreparados para aqueles sons, concentravam as

sensações. A densidade formada por esta concentração de sentidos, solidificava o

menino. Sua constituição era alterada – virara pedra. A pancada repentina, cujo som

nunca antes havia sido ouvido, constituíam o inaudito choque. Apesar de tudo, o

menino parecia persistir na infância que insistia em habitá-lo. A despeito de tantas

mortes, ele guardava, dentro de si, como no interior de uma pedra, aquele

aprendizado. De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade

abandonada, um incerto remorso. Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava

ainda na fase hieroglífica. 172

A idéia do pensamento ainda não consolidado na forma de uma escrita ilustra

a resistência da infância. Há, no menino, o fluxo de um pensar ainda não formatado

em idéias, conceitos e valores estabilizados. Em fase hieroglífica, suas idéias ainda

não assumiram a forma embasada de um pensamento. É nessa infância do pensar

que sua meninice reside. Ilegível, sem forma decifrável de representação, seu

pensar assume o caráter movediço de um saber infantil.

171 Ibid., p. 6-7. 172 ROSA, 1972, p.7.

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175

Em uma parte anterior do texto, Rosa havia destacado o verbo ir e,

coerentemente, o reutiliza em continuidade ao sentido de sujeição do menino.

Sujeito às circunstâncias, o menino segue um deslocamento, embora alheio ao que

se passa. Na seqüência dos acontecimentos narrados, ele continua a seguir o

percurso de um aprendizado: Mas foi, depois do jantar. 173 Movido, quem sabe, por

uma força vital, o menino retorna ao terreiro. O cenário daquela primordial

experiência apresentava-lhe, novamente, uma surpresa. De novo, outra impactante

descoberta configurava-se:

Mas foi, depois do jantar. E – a nem espetaculosa surpresa – viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro174

O que constituía, para o menino, a identidade do peru, transmutava-se na

vastidão de uma categoria identitária. Categorização, indiferenciação e diferença

consubstanciavam processos ágeis e distintos para o menino. Súbitos e quase

simultâneos, esses raciocínios apresentavam-se concomitantemente à aparição de

uma outra ave. Sim, havia algo comum entre eles, mas não se tratava do mesmo. A

diferença se acentuava no caráter estético do primeiro animal. A beleza, elegância e

altivez, tão apreciadas pelo menino, foco de tanta admiração, não se faziam

presentes. Nem mesmo o som peculiar daquela primeira experiência auditiva

repetia-se. Rosa reforça a percepção sonora do menino ao utilizar o termo

onomatopéico grugrulhar e, mais que isso, acrescenta-lhe o adjetivo grufo. Este

173 Ibidem.. 174 ROSA, João Guimarães. Primeira Estórias. 6. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. 07

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176

arranjo sonoro aproxima-se da atribuição de um linguajar próprio àquele primeiro

peru. É deste modo que Rosa arranca da língua recursos estilísticos extremos que a

lançam também junto às margens. O menino, o infantil escritor, o leitor sem idade,

por meio da própria língua são, violentamente, arrastados pelo fluxo de um pensar

inovador. Tudo passa a ocupar espaços fronteiriços, difusos, que misturam as

margens e perturbam os cursos. A intensidade da escrita de Rosa reforça a idéia do

literário enquanto objeto simultaneamente lingüístico e estético. Sua arte literária

desenha formas gráficas, cria significados, gera significantes, inventa meios de

expressão. Provocativo, ele empenha-se na fabricação de pensamentos novos,

infantis, balbuciantes. Para tanto, ataca a gramática e muitas vezes a investe ousado

e preciso. Isto é o que se apresenta no conjunto expressivo das palavras utilizadas

para descrever a segunda ave: Menor, menos muito175. A disposição destas

palavras na frase, bem como a disposição da frase no texto, revelam a opção de

Rosa em privilegiar a expressão dos sentidos. Pois, neste caso, as três palavras

contém a intensidade da última. O jogo intrigante de sentidos que, aparentemente,

opõe os termos menos e muito, ambos pronomes indefinidos, faz emergir a força

contida no adjetivo menor. É que Rosa também parece jogar com as funções das

palavras, na medida em que utiliza dois pronomes indefinidos para reforçar,

semanticamente, um adjetivo empregado exatamente para comparar e definir uma

diferença. É esta força transgressora da língua, tão presente na literatura rosiana

que nos remete a Deleuze:

175 ROSA, 1972, p.7.

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177

[...] uma língua estrangeira não é escavada na própria língua sem que toda a linguagem por seu termo sofra uma reviravolta, seja levada a um limite, a um fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições que já não pertencem a língua alguma. Essas visões não são fantasmas, mas interstícios da linguagem, nos desvios de linguagem. Não são interrupções do processo, mas paragens que dele fazem parte, como uma eternidade que só pode ser revelada no devir, uma paisagem que só aparece no movimento. Elas não estão fora da linguagem, elas são o seu fora..176

A forma lingüística é também a musicalidade dos sons emitidos na pronúncia

das palavras. Guimarães Rosa sabe disso muito bem. Sua escrita possui a cadência

e os acentos ritmados que o fluxo expressivo da sua linguagem emana. O efeito

acústico do som emitido na pronúncia do segmento distintivo correspondente à letra

S, evoca a maciez da tristeza sentida pelo menino. Sibilante, a expressão sonora da

leitura das palavras se amaciava na tristeza assemelha-se a um silvo, a um

movimento acústico sutil e deslizante. As aliterações e o ritmo interno dos períodos

intensificam a tristeza do menino no fragmento abaixo:

Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O Menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe a alma.177

Já o impacto acústico dos sons produzidos na articulação sonora das

palavras aquietava-se com o próprio quebranto178 acentua a força paradoxal do que

o menino sentia. Ele tornava-se quieto com o quebranto, ao mesmo tempo em que

algo, fortemente, crescia por dentro dele, fixando raízes. A sonoridade irruptiva das

palavras harmoniza-se com a emergência deste novo estado interno. O aspecto

176 DELEUZE, Gilles Crítica e Clínica. São Paulo: Ed.34, 1997, p. 16. 177 ROSA, 1972, p.7. 178 Ibidem.

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semântico do termo quebranto dimensiona a incerteza quanto à origem daquele

estado emocional. A mesma incerteza que circunda a força indefinida pelo uso do

pronome alguma. Força e tristeza coexistem no menino. E sua alma amplia-se. É

que a tristeza parece fazer parte da vida e, por conseguinte, parte da infância -

parece dizer-nos Rosa. E ela nem sempre é má. Embora possa causar dor, não

pode ou mesmo precisa ser evitada. Talvez seja necessária para margear a alegria

e, portanto, evidenciá-la. Rosa a faz até macia.

Tão logo o menino se amacia na tristeza e já é jogado, mais uma vez, no fluxo

incessante daquele percurso de aprendizado. Ainda que ciente da diferença entre a

ave que observava e a ave anterior que havia lhe causado tanta surpresa e

admiração, o menino, na meninez dos seus sentimentos, espera do segundo animal

um pesar sobre a morte do primeiro. Ele acompanha o movimento daquele segundo

animal em direção à mata e projeta, nele, a dor que sente pelo animal morto. Qual

nada! Um outro aprendizado se dá de forma violenta. O menino, sofrido com a perda

da ave, nutre-se de entusiasmo ao esperar, daquele peru que observava, algum tipo

de reação parecida com a sua:

Mas: não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-o um ódio. Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.179

É que embora fossem vidas, eram vidas outras, diferentes da sua. Comuns

em alguns aspectos, mas muito desiguais em outros – era o que o menino aprendia.

A humanização de tudo, a subjetivação dos animais e plantas, a sentimentalização

179 Ibidem..

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dos afetos, a confusão das margens, enfim, a infância das coisas, conflitava com a

cena que via. A paisagem era agora contrastante. A alternância de alegrias e

deslumbramentos, tristezas e sofrimentos, oriunda do ineditismo das experiências

que vivia, conduzia o menino a um tipo de crescimento. O conhecimento que ele

adquiria coincidia com esse crescimento. O menino crescia e conhecia na medida

em que perdia a infância. Perda necessária? Ruptura exigida pelo processo de

crescer? Ritos de passagem, descobertas necessárias para o amadurecimento

psicológico, etapas constitutivas da identidade adulta, fases do crescimento

humano? Esses questionamentos e muitos outros se desdobram da narrativa.

Contudo, interessa-nos a intensidade das diversas infâncias que nascem,

morrem e renascem no fluxo contínuo da aprendizagem humana. É esta dimensão

rosiana que buscamos captar. Neste conto importa-nos o que há de singular, o que

transcende os fatos e a condição material das ocorrências. Buscamos o que a

escrita de Rosa mostra do caráter enigmático da vida. É este enigma que faz a vida

tão instigante e a tentativa de ampliar as possibilidades de decifração do enigma por

meio da língua, algo tão desafiador. Por conseguinte, o caráter obscuro da vida leva

um escritor como Rosa a depurar as palavras, seus sons, suas combinações e

articulações, seus usos. São as palavras os recursos utilizados pelo escritor para

defender a vida. É assim que Rosa preserva a infância do dizer na infância do

menino que nele resiste e que ele inventa enquanto personagem. O que há de

singular na trajetória narrada neste conto é o que universaliza Rosa.

Viver, mais que entender a vida, posto ser a vida superior ao entendimento,

parece conclamar o escritor. Este apelo ao alcance inexplicável da poesia da vida

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soa como um chamado à dimensão literária das coisas. A infância que resistia no

menino não o deixava entender. Para entender o que se passava seria necessário

que o menino deixasse de ser infantil e se tornasse adulto. Mas o menino não

entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.180

Demasiado grande, o mundo não podia ser entendido – o menino disso sabia. João

Guimarães Rosa também. Por isso o escritor optava por mostrar o mundo de forma

polissêmica. Por isso também sua escrita evidenciava uma infância que resistia no

escritor adulto. Rosa chegou mesmo a afirmar, durante uma entrevista: Quando

escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é

suficiente181. A intensidade da experiência do menino, Rosa apresenta, de forma

concentrada, na força expressiva da desmesura do mundo. Como se o conteúdo do

aprendizado do menino fosse grande demais para estar contido em qualquer outra

palavra.

O jogo de luzes e trevas que o autor emprega na seqüência da narrativa,

parece propositadamente conduzir o leitor afoito a associações usuais. Entretanto, o

acento dedicado à expressão do escuro, nos instiga a pensar na multiplicidade de

sentidos expurgados por uma só palavra. Uma armadilha semântica. O blefe de um

jogador acostumado a empregar as palavras para produzir efeitos ambíguos

capazes de desorganizar o entendimento do jogo.

180 Ibidem.. 181 ROSA, João Guimarães. Entrevista publicada no livro Para gostar de ler. 10. ed. São Paulo: Ática, 1995, v. 10, p.08.

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181

Trevava.182

Assim escrita, a ocupar o espaço de uma linha da página, a preencher a área

de um parágrafo, imprimia-se a expressão do escuro. O espaço vazio deixado pela

ausência de outras palavras ampliava seu sentido. Desacompanhada, embora

conjugada em sua forma verbal, a palavra confunde o leitor. A liberdade lingüística

de Rosa o libera para a ousadia sintática da frase. Na indeterminação do sujeito, a

ambigüidade de sentidos. Esta única palavra, entre os parágrafos narrativos do

conto, reclama atenção para a obscuridade das coisas que o menino aprendia.

Intrigantemente Rosa parece opor a obscuridade à iluminação comumente

associada ao conhecimento produzido pelo homem. Ele apresenta as trevas, mas

elas se afastam do sentido moralizante que as opõe à clareza da virtude e do saber.

A treva parece tomar parte do percurso incerto da experiência de aprendizagem.

Associa-se, por vezes, à dor, a uma dor que não se sofre. A vida do menino está

inserida na demasia do mundo, misto de luz e treva.

Rosa traduz essa mistura em um inseto, um vagalume que se apresenta ao

menino. É a escuridão que exige do vagalume a luz. É na escuridão, com a

escuridão, que ele fabrica sua própria luz – exatamente por não lhe ser dada. Ele a

inventa, a fabrica em seu corpo - uma luz incorporada. A noite e o escuro são seus

cúmplices. Na claridade, não seria visto. É preciso a escuridão da noite para seu

aparecimento. Indiscernível no escuro, surge como uma pequena luz:

182 ROSA, 1972, p.7.

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182

Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! – tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez, em quando, a Alegria.183

A alegria, em seu fluir, desloca-se na intensidade das aprendizagens do

menino, nas margens difusas entre tristeza e alegria, encantamento e decepção,

prazer e dor. Intensos e fugazes os encontros com gente, animais e plantas

concentram a força e o vigor das experiências de aprendizagem. Nas linhas traçadas

por esses encontros e nos movimentos que o fluxo da vida imprime, colidem

sentimentos, confrontam-se emoções, destroçam-se maquinarias. Mas a mobilidade

de tudo abre espaços para desvios, atalhos, diferentes vias e acessos múltiplos. Não

é assim que acontecem experiências de aprendizagem? São elas que exigem, de

Rosa, um uso diferenciado da língua que o insere, por sua vez, no âmbito de uma

“literatura menor”. Este uso único da língua obriga o significante a entrar em uma

cadeia simbólica, num fluxo de significados e sentidos por vezes alheios ao que diz,

donde surgem expressões de rara beleza como a que encerra esta primeira estória:

Era, outra vez, em quando, a Alegria.184

Esta narrativa de Rosa, primeiro conto das Primeiras Estórias, explora o

aspecto inaugural da aprendizagem infantil do mundo. Antes do entendimento, da

razão, da inteligibilidade do conhecer, a relação corporificada da criança com o

espaço e as coisas circundantes é apresentada. O corpo, constituído de sentidos,

conduz o menino a sentir as coisas. Por meio do personagem que inventa, Rosa faz

coincidir corpo e palavra. Imprime suas palavras no corpo do menino. Sua escrita

183 Ibidem. 184 Ibidem.

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183

apóia-se fisicamente no menino. Entretanto, é a infância que se chama menino. Uma

infância sem nome, sem individualidade, mas com voz e presença. Na força da

experiência negativa, uma voz que pronuncia a presença do saber da infância. Uma

infância íntima da cotidianidade. Uma infância que faz irromper, no cotidiano, a

aprendizagem. É que o tempo também se mostra infantil em Rosa e, em sua

efemeridade, se traduz no vôo do vaga-lume. Justo um vaga-lume que, na sua

luminosidade, alterna luz e sombra. Um inseto que, entre luz e sombra, alegra uma

infância que atravessa um menino e um escritor.

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184

5 A INFÂNCIA DE LÁ

À sua maneira, a arte diz o que dizem as crianças. Ela é feita de trajetos e devires, por isso faz mapas extensivos e intensivos.

Gilles Deleuze185

5.1 INFÂNCIA DE NÃO LUGAR

Os trajetos percorridos pela arte literária de Guimarães Rosa em suas

Primeiras Estórias desenham lugares distantes, serras inventadas, rios de

incontáveis margens, lugares exíguos e sítios inventados em uma geografia

detalhada e incerta. Entre gente, mapas, sentimentos e aprendizagens, há a

recorrente imagem da travessia que reforça a idéia do percurso necessário para que

movimentos se realizem. Muitas dessas estórias lidam com percursos infantis

irregularmente localizados, ou mesmo não localizáveis, posto que movediços, assim

como as narrativas apresentadas. Embora constituídas por contos, estas Primeiras

Estórias fogem ao tom convencional da narrativa ordenada e seqüencial, apesar de

185 DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 78.

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185

conterem as falas constitutivas do gênero. Nestes contos, a linguagem rosiana

mistura prosa e poesia e torna indiscerníveis as falas e os modos de dizer dos

personagens. Não há como separar significado e significante, conteúdo e forma, real

e invenção. Não são possíveis dicotomias. Há um fluxo de linguagem que narra

acontecimentos que, por sua vez, irrompem na intensidade em que tudo se torna o

que é narrado. É como se os modos de expressão utilizados por Rosa através dos

personagens se adiantassem à ocorrência das coisas, fazendo-as surgir. É neste

sentido que o termo estória alcança a dimensão atemporal pertinente ao tom infantil

da linguagem utilizada.

A estória não quer ser História. A estória, em rigor, deve ser contra a História.

A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota186. Estas palavras de

Guimarães Rosa a respeito da própria escrita ensejam o caráter inventivo das

estórias que conta e que se contrapõe explicitamente à tendência memorialista e

historicista de narrar a infância. Portanto, não há que se tentar explicar ou explicitar

o significado das passagens literárias dessas Primeiras Estórias com base na

veracidade ou falseabilidade do que se afirma. Não seria tampouco concebível

estabelecer interpretações legitimadoras de verdades concernentes aos sentidos do

que está escrito. Talvez possamos tão somente dizer que essas primeiras estórias

lidam, de modo peculiar, com o tema da infância. Embora recorrente, o tema recebe,

de Rosa, um tratamento muito intrigante. Seus contos não carregam qualquer

preocupação com proposições lógicas sobre a infância ou mesmo com qualquer

186 Trata-se do primeiro parágrafo do prefácio da obra Tutaméia, intitulado Aletria e Hermenêutica. In ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias. 6ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 7.

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186

valor de verdade que possa ser atribuído ao que o conto diz, logo, não há como

inferir uma afirmação global das estórias. O risco que se corre instala-se exatamente

neste ponto, já que é a própria impossibilidade de se realizar a explicação perfeita

de um ou outro conto que provoca uma multiplicidade de tentativas de fazê-lo. Como

um alerta para este perigo é que Antônio Cícero, filósofo e poeta, afirma que toda

obra literária parece antes pertencer à ordem da palavra do que à da sentença187. É

neste sentido que se torna possível traçar uma linha de fuga ao apelo da

interpretação unívoca da obra literária de Rosa na medida em que ela se insere na

abrangência da língua, não na particularidade de uma fala, senão na fala inventada

de seus personagens. Deste modo podemos evitar a tentação do discurso

prepotente e conhecedor de leitores especializados em Guimarães Rosa e em

infância. Afinal, não estamos nos apossando da arte literária de Rosa, tampouco

intentamos tornarmo-nos mais sabedores da infância, ou mesmo conhecedores do

que a crítica literária afirma sobre a obra do autor. Queremos, sim, atender ao

convite que Rosa nos faz de entrar no uso especial da língua que realiza. Com ele,

na aventura de sua escrita, no ato lingüístico criador que opera e envoltos nos

múltiplos sentidos que nascem do seu próprio texto, queremos elaborar outros

modos de pensar a infância. Rosa é um desses escritores híbridos, adultos e infantis

ao mesmo tempo. Autores assim carecem de leitores também híbridos, que com

eles se confundam no ato de ler e escrever e sejam, a um só tempo, adultos infantis.

187 CÍCERO, Antonio. Poesia e Filosofia. In: NASCIMENTO, Evando; CASTELLÕES DE OLIVEIRA, Maria Clara (Orgs.). Literatura e filosofia: diálogos. Juiz de Fora: Ed> UFJF, 2004, p. 25.

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187

A primazia da linguagem que inaugura acontecimentos e elabora modos de

entendimento das coisas vistas pelo olhar infantil de uma criança, se faz explícita já

no título da obra: Primeiras Estórias. São as primeiras narrativas, as primeiras

respostas ao mundo, as formas iniciais de expressão de sentimentos, sensações e

idéias. O livro Primeiras Estórias, publicado em 1962, reúne 21 estórias constituídas

por narrativas que simbolicamente tematizam os segredos da existência humana. O

termo estória, alusivo ao termo inglês, designa o caráter ficcional e inventivo das

narrativas em oposição ao termo história enquanto narração metódica de fatos

verídicos e notáveis188. A linguagem, também inventiva, busca resgatar, na escrita, a

fala dos personagens do sertão, a poesia presente nas imagens, sons e estruturas

de uma linguagem que está à margem da norma estabelecida pelo padrão urbano.

Fora dos padrões de normalidade também encontram-se muitos dos personagens

centrais de alguns contos na figura de loucos, velhos e crianças.

A fratura que as experiências narradas por Rosa impõe, desloca a infância,

de modo intenso, para além da cronologia do tempo, para além das localidades. Não

são as primeiras estórias de uma seqüência numérica logicamente ordenada, mas

as estórias que iniciam um processo de aprendizado da vida. Tampouco se trata de

188 Paulo Rónai, na introdução crítica de Primeiras estórias, explica o título: “O epíteto não alude a trabalhos da mocidade ou anteriores aos já publicados em volumes, e sim à novidade do gênero adotado, a ‘estória’. Esse neologismo de sabor popular, adotado por número crescente de ficcionistas e críticos, embora ainda não registrado pelos dicionaristas, destina-se a absorver um dos significados de ‘história’, o de 'conto' (short story). A oposição conceitual resulta nitidamente deste trecho de ‘Nenhum, Nenhuma’: ‘Era uma velha, uma velhinha – de historia, de estória – velhíssima, e inacreditável.’ Embora o termo, hoje em dia, já apreça também sem conotação folclórica, referido às narrativas de Guimarães Rosa envolve-se numa aura mágica, num halo de maravilhosa ingenuidade, que as torna visceralmente diferentes de quaisquer outras.” RONAI, Paulo. Os vastos espaços. Introdução crítica. P. xxxii. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.

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um conjunto de estórias que possua um lugar comum de ocorrência. O que une as

estórias em bloco é a narrativa infantil traduzida em uma linguagem também infantil

que denomina o mundo pela primeira vez. Talvez por este motivo, um dos contos,

denominado ‘A Menina de Lá’, trate da forma encantatória da linguagem infantil de

Nhinhinha, uma criança que possui o dom de adivinhar acontecimentos.

Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa... (...) E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes. Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. _”Ninguém entende muita coisa do que ela fala...” _dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo:_ “Ele xurugou?”_ e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia.Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. (...) Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.189

De lá, de um não-lugar, fala esta personagem que produz palavras

indiscerníveis dos sons de pássaros, frases não gramaticais e juízos fantasiados. No

sem-sentido do que diz, na indiferença que as novidades lhe causam, na atenção

dedicada aos detalhes marginais da vida, Nhinhinha estabelece uma relação de

estranheza com o saber na medida em que se alheia da vida ordinária familiar e

alcança saberes inacessíveis, por vezes considerados divinos. Ela altera a relação

comum com o conhecimento, a relação utilitária e pragmática com o que se sabe ou

se deseja saber. O que ela antecipa é o que se produz na intensidade do desejo,

não na utilidade do saber. Deste modo, é capaz de antecipar a chegada de alguém,

189 ROSA, 1972, p.20.

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de prever um fenômeno da natureza, de predizer um evento qualquer, simples e

natural, desde que todas essas coisas sejam frutos do seu genuíno querer.

O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e

sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando

a Mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que

Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas segredando seu – Deixa... Deixa....190

Incapaz de predizer fatos de interesse de outrem, ou mesmo de antecipar

eventos considerados importantes, a menina não consegue colocar sua fala a

serviço da melhor operacionalização da vida prática dos adultos. Tampouco

consegue livrar dos males, aqueles que sofrem, ainda que, com sua ternura, faça-os

superar a dor.

O que o Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava de se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. _”Mas, não pode, ué...” – ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leite, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. _”Deixa... Deixa...” se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem no súbito adormecer das andorinhas. [...] Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. 191

O querer de Nhinhinha difere muito do querer utilitário adulto que afirma

querer o que, na verdade, necessita ou julga necessitar. Seu querer não atende a

apelos, nem se submete ao julgo adulto. Ao desejar a própria morte, a menina é

severamente repreendida pela tia, incompreendida pelo juízo moral que inibe este

tipo de desejo. Doce e leve, na autenticidade do que deseja, a menina torna-se

190 ROSA, 1972, p.21. 191 ROSA, 1972, p. 22-3.

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ainda mais branda, mais imóvel do que era, adoece e morre. Sua morte súbita

apanha, de surpresa, os pais, que já faziam planos para quando a menina, já

crescida e ajuizada, pudesse beneficiá-los com seu talento. Entretanto, no

estranhamento que a menina sentia perante os hábitos adultos, ela fazia-se só. Na

solidão de sua interioridade, no íntimo de sua infância, a menina vivificava um

estágio anterior da linguagem no qual o que se diz do ser é o próprio ser. Sua fala

carregava o poder mágico de realizar-se materialmente em coisa. Não porque fosse

santa, como a conceberia sua mãe, mais tarde, mas por conseguir obter, das

palavras, a imediatez das coisas que a elas se relacionam. Sua morte, atribuída à

má água desses ares, apresentada de forma rápida pelo autor, deixa consternada a

família.

Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de _”Menina grande... Menina grande...” _ com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.192

A metade de cada um que parecia ter-se ido com a menina, talvez seja a

parte infantil que cada pessoa adulta da família carregava consigo, embora sem

sabê-lo. Só agora, após a morte da menina, a mãe se dava conta de que era

também uma menina, embora uma menina grande, como a chamava Nhinhinha.

Talvez a virgem Maria também fosse uma menina tornada grande para atender aos

apelos de uma moral adulta. Por isso o terço alterava-se. O pai também se dava

192 ROSA, 1972, p.23.

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conta do peso de seu corpo de homem em oposição à leveza e suavidade de

Nhinhinha diante do pequeno tamborete no qual a menina sempre se sentava. Era a

partir dessa minúscula localização, nesse pequeno território, que Nhinhinha

relacionava-se com tudo. O tamboretinho concentrava microscopicamente a

intensidade da infância da menina que se espalhava entre os de casa.

Restou a fala da menina, apresentada por um narrador desconhecido que,

por vezes com ela dialoga e, por outras, comenta seus modos. A fala de uma

menina que revela aquele tipo de passagem entre sons inarticulados para termos e

frases capazes de ligar coisas a signos sonoros distintos, próprios de uma criança

de nem quatro anos de idade, como a caracteriza o narrador. Seu vocabulário é

diminuto, simples e autêntico. Com ele Ninhinha não se apodera do mundo que a

rodeia, mas conjuga-se a ele. Sua linguagem está na base do que vê, ouve, cheira e

tateia, antes de qualquer elaboração conceitual genérica. São os primitivos

sentimentos de exploração de um meio novo circundante que, exacerbados,

transformam-se nos primeiros termos lingüísticos que sua fala inaugura, reflexo da

mais genuína emoção. È através da palavra que Nhinhinha devolve às coisas o que

delas emergiu. É pos meio do que aprecia que sua linguagem resulta na elaboração

intelectual da realidade exterior da sua subjetividade infantil. Esse processo se

desdobra na construção de histórias fabulosas, na relação que estabelece com a

vida. As coisas, para uma criança, se apresentam dotadas de vida, de substância

igual à sua, suas trocas recíprocas são verbais, todos os seres lhe falam. Guimarães

Rosa entende essa relação e cria, em Nhinhinha, este ser primitivo e infantil, que

vive num mundo misturado, onde fantasia e realidade, desejo e realização,

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autonomia do nome e da coisa nomeada, são indiscerníveis. A relação fabuladora

com o mundo se dá por intermédio da palavra mágica da menina.

Nhinhinha corresponde à imanência da vida. Em vez de repetir circularmente

a vida de qualquer criança aprendiz de um adulto, inventa as coisas, na medida em

que as deseja. Ela faz reativar o desejo que há por trás das palavras de fazer

acontecer coisas. Não se trata de memórias da infância de uma menina, mas de um

bloco de infância capaz de desterritorializar a língua, a conexão entre a palavra e a

coisa representada, entre o dizer e o ser, entre o som e sua representação

lingüística, entre o adulto e o infantil.193 As séries de ocorrências que lançam a

menina num fluxo de intensidade com seus desejos, delineiam, em termos rosianos,

um mapa engendrador de uma rota de fuga. A linha de fuga inventada pelo autor

como uma saída para a menina configura-se no em seu desejo tornado secreto pela

tia, de morrer. Os adultos ficam ligados às lembranças da falsa infância que talvez

sequer tenha existido, parece-nos alertar o autor. Por isso surgem, rápidas, as

associações místicas e religiosas da menina com uma santa ou da criança, em

geral, a seres angelicais. A conexão da imagem da menina com o ato de criação

verbal de Rosa faz coincidir na escritura do conto o desejo de se ser nas palavras,

de mais ler e mais escrever. As lembranças de infância, nas palavras de Deleuze,

reterritorializam o que não importa ser lembrado. Já o bloco de infância constitui-se

193 Deleuze opõe o devir à memória: “O devir é uma anti-memória. Sem dúvida há uma memória molecular, mas como fator de integração a um sistema molar ou majoritário. A lembrança tem sempre uma função de reterritorialização. (...) Opõe-se desse ponto de vista um bloco de infância, ou um devir-criança, à lembrança de infância: ‘uma criança’ molecular é produzida... ‘uma’ criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos – contrariamente à criança que fomos, da qual nos lembramos ou que fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é o futuro.” In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Vol.4. São Paulo, Ed. 34, 1997, p.92.

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no vigor da infância que emerge em fluxos descontínuos de criação artística. (...) Ele

é desterritorializante; ele se desloca no tempo, com o tempo, para reativar o desejo e

fazer proliferar suas conexões; ele é intensivo e, mesmo nas mais baixas

intensidades, relança uma alta.” 194O tempo ao qual se refere Deleuze não é o

tempo cronológico, da sucessão numerada. Neste caso, o tempo é concebido como

aion, devir. O tempo do bloco de infância é, portanto, o tempo aiônico, do devir.195

Não se trata das memórias de infância do narrador, ou mesmo das memórias

da infância da menina, mas de blocos de infância resgatados por um narrador que

sequer é apresentado e que, por vezes, dialoga com a personagem. Tudo se

mistura. Confundem-se tempos, sujeitos, falas e espaços nos fluxos dos

acontecimentos infantis que fogem à lógica ordenadora e seqüencial adultas. Mas

não se trata, ao nosso ver, de uma alusão a forças divinas, a um simbolismo

religioso ou mesmo a um certo misticismo, senão ao caráter primaz da voz da

infância que ecoa nesse conto. A força expressiva da linguagem de Rosa arrasta

consigo o jeito próprio de Nhinhinha, seu devir-criança, os afectos que a atingem tão

violentamente face ao não-entendimento majoritário de sua família, ou seja, blocos

de infância que irrompem da narrativa. A escrita de Rosa precisa dar conta de um

mundo que é visto pela primeira vez e, portanto, ele não pode recorrer a formas

análogas para descrever o que vive a menina, mas, sim, inscrevê-la junto às coisas,

na vida mesma, no vigor de tudo. Tudo se instala na ordem do acontecimento.

194 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix, 1997, p.115. 195 “[...] o tempo não pulsado flutuante próprio ao Aion, isto é, o tempo do acontecimento puro ou do devir, enunciando velocidades e lentidões relativas, independentemente dos valores cronológicos ou cronométricos que o tempo toma nos outros modos.” In DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix, 1997, p.51.

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194

Entrar na obra de Rosa implica em buscar linhas de fuga para os problemas

que coloca, posto não ser possível deles nos desvencilharmos após a leitura que

fazemos. Sim, parece pertinente tentar fugir, não no sentido de deixar para trás a

obra. Ao contrário, empreender esforços de buscar, no interior do texto, uma

adjacência, como nos sugere Deleuze, um beco por onde possamos nos conduzir,

sem livrarmo-nos de sua escritura:

A linha de fuga faz parte da máquina. (...) O problema: de modo algum ser livre, mas encontrar uma saída, ou então, uma entrada, ou então um lado, um corredor, uma adjacência, etc. (...) a indiferença entre o fora e o dentro não impede a descoberta de uma outra dimensão, uma espécie de adjacência marcada por suspensões, interrupções, onde se montam as peças, engrenagens e segmentos...196

Uma destas possíveis saídas seria pensar em Nhinhinha não como uma

santa ou como uma referência explícita a qualquer imagem sacra, mas como a

própria criança enquanto criação. A figuração de um devir-criança que se mostra na

infância de Nhinhinha e que se realiza no seu modo de utilizar a língua para

inaugurar acontecimentos e iniciar um modo de dizê-los na primazia do novo que se

apresenta. Na imagem de plantas rizomáticas, em termos deleuzeanos, que se

constituem de complexos sistemas radiculares, poderíamos pensar que as raízes e

caules aéreos, logo visíveis, teriam conexões com imagens sacras e até mesmo

mitológicas. Contudo, percebemos caules e raízes subterrâneos conectados a um

emaranhado de folhas caídas, de lama, de reminiscências de outras plantas que nos

levam a sentidos diferentes, apartados das representações usuais da criança

divinizada que tem que morrer para se manter imaculada. A relação entre a menina

196 In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix, 1977, p. 14.

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e uma santa, em vários trechos do conto é pontuada, porém em referência aos

demais personagens adultos, os mesmos que se faziam estranhos à menina,

aqueles com os quais ela não conseguia criar intimidade. O entendimento bíblico do

que se passava com a menina, tal como o concebem seus pais e os demais

sertanejos circunvizinhos, retratam, ao nosso ver, um modo de compreensão da

realidade baseado na religiosidade aceita de modo inquestionável.

A rota de fuga que intentamos traçar nos permite identificar, na personagem,

a primazia da palavra aderente à vida, aquela que se confunde com o que é, antes

de funcionar como sua representação. A língua, antes da função designada. A

menina é, afinal, a menina de lá, não a menina daqui. Aqui, próxima a nós, leitores

adultos e escritor-autor adulto, ela se localizaria em um território conhecido, numa

localização pontual, teria referências geográficas. Daqui ela seria muito rapidamente

associada a uma imagem cristã. Sendo de lá, de um não-lugar, ela pode também ter

sua temporalidade modificada, pode modificar a materialidade de tudo e conectar-se

a outros pontos referenciais. Afinal, a menina, alheia aos problemas adultos e

rotineiros do lugar, em sua quase imobilidade, diferenciava-se dos adultos na

medida em que se confundia com tudo.

Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava

ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e

silêncios. (...) De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de

repente. –“Nhinhinha, que é que você está fazendo?” – perguntava-se. E ela

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respondia, alongada, sorrida, modulamente: – “Eu... to-u... fa-a-zendo”. Fazia

vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?197

A solidão de Nhinhinha é um pouco a solidão do próprio escritor. Rosa

também produz vácuos, intervalos de palavras, suspensão de entendimentos. E,

mais, provoca o leitor a questionar a suposta tolice destas interrupções. Ler e

escrever, afinal, produzem um tipo de solidão. Retirar-se para escrever é estabelecer

uma separação com o ordinário da vida ao mesmo tempo em que provoca outras

uniões. É a palavra que nos livra da circunstância assediante e circundante. É um

atrevimento a aventura de habitar a si mesmo, principalmente quando as

contingências falantes tentam incessantemente nos afastar de nós mesmos. É por

isso que Nhinhinha chega mesmo a irritar seus pais, a desafiar os adultos que a

acompanham.

Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava. Se sorrindo: _” Menino pidão... Menino pidão...” Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: _”Menina grande... Menina grande...” Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: “Deixa... Deixa...” _ suasibilíssima, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências.198

É assim que Nhinhinha precisava evadir-se. Ela precisava sair, ir embora

daquela contingência que a pressionava rumo a uma adultez indesejada. Ela carecia

escapar à pressão de crescer e retribuir, com benefícios, o cuidado dos pais e da tia.

Na relação laboral adulta com o que se sabe, ela seria instigada a fazer uso de suas

197 ROSA, 1972, p.21. 198 ROSA, 1972, p.21.

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adivinhações. Mas seu labor infantil era quase uma brincadeira, não uma forma de

mais-valia. Sua infância, antes de tornar-se uma atividade lucrativa para os pais,

precisava ser mantida no paradoxo de morrer. É por isso que a menina tinha de

morrer. Sua morte, decisão de Rosa, era a garantia da preservação do fluxo de

infância que trazia consigo, já que o prolongamento etário da sua infância causaria

um prejuízo à atividade laboral esperada em sua adultez.

A menina morre a fim de conservar sua infância. É a opção de Rosa, na

tentativa de conservar em si mesmo, escritor adulto, uma disposição à infância. É

desse modo que ele devém criança no ato de escrever e, por conseguinte, segue

rumo a uma infância das coisas, a uma infância da escrita que intenta expressá-lo

em sua radical novidade.199 Ele sabe que a palavra fecunda que escreve nas

páginas dos seus contos cria uma materialidade espacial. Trata-se, na voz de

Nhinhinha, de uma palavra entranhada na vida. Uma palavra que possui cheiro,

ruídos, pele. Uma palavra que não passa apenas pelo inteligível. A escrita de Rosa

mais uma vez se apresenta enquanto literatura menor.

Rosa trata da infância, tanto em seu procedimento de escrita, como na

personagem que cria. Contudo, ele não reterritorializa a infância em formas

simbólicas. Ele a desterritorializa em fluxos de linguagem que intensificam as

relações e permitem pensar vida e morte de modo difuso. Infância e morte aparecem

199 E, desse modo, Rosa dá conta da tarefa do escritor tal como a apresenta Deleuze: “A tarefa do escritor não é vasculhar os arquivos familiares, não é se interessar por sua própria infância. Ninguém se interessa por isso. Ninguém digno de alguma coisa se interessa por sua infância. A tarefa é outra: devir criança através do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo e restaurar esta infância. Eis as tarefas da Literatura.” In: DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze – entrevista a Claire Parnet, 1994, letra E de enfance/infância.

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juntas em muitos dos contos das Primeiras Estórias, como se fossem instâncias

indiscerníveis e íntimas de um movimento recíproco de interrupção e continuidade.

Experienciar a morte de animais, plantas ou entes queridos parece afirmar a vida

existida e mesmo a vida que resiste e permanece na medida em que é narrada.

Nhinhinha morre e sua morte antes de significar um fim, aparece como um

mecanismo de resistência às exigências utilitárias do saber, como uma forma de

permanência que se distingue do usual. Afinal, Nhinhinha não era uma criança

considerada comum, alegre e brincalhona. Seu sorriso lembrava mais um

contentamento gerado pelo entendimento das coisas do que uma alegria perante

acontecimentos. Extasiava-se com a natureza e relacionava-se bem com as

estrelas, o vento e a noite.

Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. _”Cheiinhas!”_ olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia:_ “Tudo nascendo!” – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. _ “A gente não vê quando o vento se acaba...” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: _”Alturas de urubuir...” Não, dissera só: _”...altura de urubu não ir.” O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de:_ “Jabuticaba de vem-me-ver...” Suspirava, depois: -“Eu quero ir para lá.” _Aonde? _”Não sei.” Aí, observou: _”O passarinho desapareceu de cantar...” De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera.200

As criações rosianas centram-se na palavra. A atividade verbal, concomitante

com a atividade lúdica infantil, caracteriza o ineditismo da linguagem utilizada por

Rosa nas narrativas infantis. A construção desses jogos lingüísticos de Nhinhinha e

das estórias fabulosas que inventa, constituem modos de apropriação e tentativas

200 ROSA, 1972, p. 21.

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de ordenação da realidade circundante, pelo viés infantil. Rosa é quase uma criança,

uma criança que crê na realidade que inventa ao brincar com as coisas ou narrar

esse brincar infantil. Como a menina, as coisas são animadas, os bichos

personificados, as relações entre coisas, sentimentalizadas. Esta inclinação para a

fabulação e também uma inclinação para o jogo é que desencadeiam um processo

lúdico que envolve a imaginação infantil e resulta na fabulação de tudo. Guimarães

Rosa utiliza-se desse processo infantil em sua escrita e, quase uma criança, inventa

uma personagem encantatória.

Esta menina de lá, ou Nhinhinha, encarna um tipo de personagem comum à

obra rosiana. Afinal, suas estórias são repletas de seres que se diferenciam pela

estraneidade que suscitam. Moram em locais estranhos, utilizam roupas e trejeitos

extravagantes, possuem manias e linguagens insólitas. São personagens que

inspiram receio, medo ou tristeza, que assustam e comovem. Contudo,

intrigantemente, também provocam risos por seus disparates, na insensatez do que

fazem ou dizem. Nhinhinha é um destes seres excepcionais, dotados de uma

percepção aguçada. Ela ouve e distingue coisas incompreensíveis para os demais,

como a voz da natureza, dos bichos e dos desejos humanos. Vive nos interstícios

entre o que é definido como humano e o que é classificado natural. Ela concebe o

mundo segundo uma lógica diversa do senso comum. Isso torna sua fala

desqualificada, impossível ou inverossímil. Fala uma língua estranha, de conteúdos

enigmáticos, por vezes puramente sonoros.201 É uma menina que brinca de atribuir

201 A força sonora das expressões utilizadas por Guimarães Rosa reforçam a idéia de sua inserção no âmbito do que Deleuze denomina Literatura menor. A respeito de Kafka, Deleuze declara: “O que

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200

outros nomes para as coisas e novos significados para os nomes, sem o saber. Por

vezes simplesmente cria nomes motivados por inusitadas sinestesias. Mas não é por

acaso que uma menina como essa se destaca na obra de Guimarães Rosa, bem

como outros tantos personagens parecidos.

Na verdade, é através deles que se realiza mais plenamente o seu audacioso projeto de reescrever a própria língua para fazer ver o que normalmente não se vê, e dar voz ao que não se fala ou não deveria estar falando como sujeito – não só o doido, mas também a criança, o sertanejo, o índio, e até mesmo a própria natureza, sobretudo os animais, como o burrinho, o boi e a onça. Sempre em busca de formas que expressem aquilo que não tem voz nem contornos definidos, a escritura de Rosa brinca com a linha tênue e arbitrária que distingue as coisas do mundo. Ela quer captar o que é ambíguo e escorregadio, ignoto ou difícil de ser apreendido – a própria “matéria vertente” das coisas.202

É essa matéria vertente que se configura na “travessia” das coisas, imagem

criada por Rosa para designar o percurso através do qual a aprendizagem da vida

se dá, as experiências infantis ocorrem e as idas e vindas pelos caminhos incertos e

transitórios da linguagem fazem emergir muitas margens. Constitutiva do discurso

encantatório do conto ‘A Menina de Lá’, a personagem infantil principal configura a

ficção e a fantasia sem margens restritivas, nem no uso da linguagem, nem na

trajetória que a imaginação prescreve, menos ainda no campo da temporalidade. Há

travessias e, portanto, há percursos, mas não são identificáveis os pontos de

chegada ou de saída, as localizações e os tempos. Ainda que utilizando-se de

recursos lingüísticos como marcadores temporais, a ausência de referências no

interessa a Kafka é uma pura matéria sonora intensa sempre em relação com sua própria abolição, som musical desterritorializado, grito que escapa à significação, à composição, ao canto, à fala, sonoridade em ruptura para desprender-se de uma cadeia ainda muito significante.” In DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix, 1977, p. 11. 202 COSTA, Ana Luiza Martins. O mundo escutado. In: SCRIPTA, Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC Minas, vol.9, nº 17, 2005, p. 51.

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201

texto escrito obscurecem qualquer visão cronológica ou mensurável.

Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. Esta fala do narrador, em

referência à menina, trapaceia o leitor na medida em que joga com o conteúdo

significante do termo agora. No âmbito da conotação, sabe-se apenas que é noite.

Não se pode afirmar qualquer outra temporalidade a partir deste agora. O termo

deixa de expressar um tempo e passa a exprimir uma intensidade.

5.2 EMANAÇÃO DE INFÂNCIA

É deste modo que imagens longínquas, por vezes mitológicas, parecem

atualizar-se na fala de crianças na obra de Rosa. Contudo, elas parecem revelar, ao

nosso ver, uma espécie de continuidade de vida que se opõe à ruptura que a

infância emana. Os contos de Rosa revestem-se, assim, de transgressão e

estranhamento, ruptura e recorrência. Na suposta travessia entre infância e adultez,

chega-se a uma outra margem, não pensada, inantecipável. As margens, figuras

recorrentes na obra rosiana, transfiguram-se em pontos mutantes, impossíveis de

serem calculados quando se trata de uma travessia, de uma experiência a ser

atravessada. As margens não são cronológicas, nem geográficas, tampouco

históricas. São margens da dor e da alegria, da tristeza, da intensidade dos

encontros vividos. São experiências de aprendizagens éticas, estéticas e afetivas.

Na travessia, ou seja, no percurso das aventuras infantis narradas, ocorre uma

parada no tempo pelo meio, entre os lugares, entre os tempos, entre as ocorrências

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dos fatos. Embora se constituam de narrativas, os contos ou estórias inserem-se em

dimensões, em planos, em contingências. Os encontros entre crianças, entre

crianças e adultos, entre um narrador e uma criança, ou mesmo entre narradores

desenrola-se deslocadamente, sem lugar, como na casa de Nhinhinha, que ficava

para trás da Serra do Mim. As crianças criam percursos e aumentam a potência do

aprendizado das coisas que se apresentam como signos a serem interpretados. Na

busca de sentido, não na ordenação das coisas, é que se direcionam as

personagens infantis dos contos.

A literatura é uma arte verbal, ela se dá pela criação estética. Rosa a realiza

no uso particular da linguagem que nela se configura. Suas aventuras verbais é que

o levam a recriar o mundo captado pela perspectiva de uma criança, ora uma

criança brejeira, ora uma criança triste, ora uma criança mágica. Nhinhinha é uma

dessas personagens que, com graça e leveza, trava uma luta ferrenha para

conhecer as coisas. Sua linguagem atua como fator decisivo nesse processo. Trata-

se de uma infância de vida, mas também de uma infância da linguagem que precisa

elaborar para dar conta do mundo novo que está a conhecer, inventar e adivinhar.

Pouco importa a veracidade dos fatos, a objetividade e clareza do que se conta ou

mesmo os marcadores temporais do que se exprime. A obscuridade é, na verdade,

uma característica marcante do contexto no qual se insere a personagem. Nada

preexiste à narrativa do conto, a não ser como potencialidade de pensares. Não é

que as crianças não consigam ter a clareza do adulto, parece dizer-nos Guimarães

Rosa, senão por ser a própria existência, algo muito obscuro. Talvez essa

obscuridade seja mais perceptível a quem a vê com olhos primazes.

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203

No convívio com sua literatura, Rosa nos atira em um movimento intenso de

pensar e agir: numa atividade que não se volta para um fim extrínseco a ela, mas

que constitui, em si mesma, o seu próprio fim. Muito distante do mito informativo, o

que sua aventura literária nos mostra é a astúcia das palavras, que é a própria

astúcia da vida frente à violência da exigência do tornar-se adulto. São blocos de

infância que, como Deleuze os concebe, alteram a linguagem normalizada,

transformando-a em um plano movente, com diferentes velocidades e

territorializações. Um plano, não um estado. Um fluxo de linguagem que, em meio à

circulação do desejo, combina língua, fala e palavras, inaugura dizeres e arrasta os

conteúdos com a força da expressão. Um escritor como Rosa, quando encontra-se

com a cultura lúdica da infância, entra em contato com esse bloco de infância que o

envolve em um fluxo de sensações indefinidas no espaço e no tempo.203 As

ressonâncias do brincar exploratório e sensível de Nhinhinha, pela linguagem, revela

um caos de criação contínua escrita por Rosa no trânsito entre o escritor adulto e a

personagem infantil que inventa, a fim de dar conta do seu tornar-se criança. Este

movimento irregular, contínuo e caótico é que os adultos têm dificuldade de

entender, não porque não possuam acesso a um possível mundo mágico, mas

porque não se exercitam ou não se dispõem a fazê-lo.

No seu devir-criança, Rosa encanta com seus contos e provoca um prazer

estético vigoroso. Sua palavra literária, escrita em forma de prosa, ao modo de

203 “As relações, as determinações espaço-temporais não são predicados da coisa, mas dimensões de multiplicidades. [...] as formas e os sujeitos não são desse mundo aí. [...] uma hecceidade não tem começo nem fim, nem origem, nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma.” In: DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 50.

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narrativas, não afirma coisas sobre o mundo. Sua palavra é, na voz de Nhinhinha, o

mundo. É ela quem consegue traduzir a possibilidade transformadora da beleza na

vida cotidiana. Ela admira o que a rodeia, buscando não apenas observar, mas estar

com tudo. É pela beleza do que vê que a menina relaciona-se com o mundo, embora

por breves incursões. Trata-se da intensidade dos encontros. A leveza e delicadeza

da personagem, a situa como um contraponto ao grotesco e banal dia-a-dia da vida

adulta ordinária na qual se insere. Leve, quase sem ocupar um lugar, Nhinhinha

impressiona mais pela beleza que pela antecipação dos fatos que adivinha, menos

pelo poder que parece, aos olhos adultos, possuir. Rosa não representa a infância

de forma bela e passiva, mas ao imaginar a personagem, intervém no real, congrega

leitores para uma leitura ativa do que escreve. É assim que ele redefine as próprias

configurações do conto e extrapola a condição de gênero e as formas de escrita. A

infância expressa em seu texto deixa de ser um elemento constitutivo da cronologia

da vida para alçar-se à condição de figura de criação. Mais profunda do que a

realidade imediatamente perceptível, esses fluxos de infância, em sua escrita, não

podem ser traduzidos no discurso comum. Sua linha de fuga se dá por meio das

paisagens distantes do sertão, nos entre-lugares da mata, entre serras, gentes e

bichos. A fala de Nhinhinha é a configuração de um objeto estético, uma forma de

apreciar a beleza da vida por meio das palavras.

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Nhinhinha é uma personagem que atua como uma máquina de expressão204,

uma personagem experimental que exprime sentidos éticos e estéticos na medida

em que despotencializa o agenciamento moral da vida adulta, sua potência de

repetição e abre brechas, opera descontinuidades. Sua ação de despotencialização

destitui o espaço moral da regularidade da vida adulta, na possibilidade de um novo

vir-a-ser. O jeito de ser de Nhinhinha funciona como vetor que parte de uma situação

instituída para uma condição outra, uma desterritorialização do instituído, formando

um novo sentido de existência. A moral adulta, em si mesma, o fator estático da

vida, é lançada no campo ético móvel dos fluxos. Diante da moral instituída pelo

valor utilitário de tudo, o olhar infantil da menina que vê tudo nascendo. Neste entre

lugares, espacial e geográfico, compõe-se para a personagem um lugar, mais

precisamente um não-lugar decisivo em sua trajetória infantil: a posição de

estrangeira a terá posicionado num fora de foco, jamais simbiotizado por completo a

qualquer mapa da realidade. A desnaturalização de todas as cartografias, dos

hábitos, das importâncias e urgências adultas lhe traz a percepção precoce do

caráter transitório e contingente da vida. Nhinhinha não se ocupa em reter as coisas,

não se detém no emprego do seu saber. É como se Rosa tivesse elaborado um

plano de infâncias. Afinal, de que serra fala Guimarães Rosa - da serra de Minas, da

serra geográfica, da serra imaginária? Que outras serras fariam parte de cada um de

nós nesse mapa sugerido por Rosa?

204 Termo utilizado por Gilles Deleuze para exprimir a instauração do exercício menor de uma língua mesmo maior que arrasta os conteúdos. “Por que o que é essa maquia de expressão? Sabemos que ela tem com a língua uma relação de desterritorialização múltipla...” In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix, 1977, p. 29.

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Traçar percursos, caminhar, atravessar serras, cerrados e rios, enfrentar

veredas, alcançar outras margens... Guimarães Rosa nos adverte, com suas letras,

a atentarmo-nos aos nossos desejos. Neste conto, ‘A menina de Lá’, o autor faz uma

incursão em busca do desejo de, de novo, decifrar as primeiras letras. É como se ele

buscasse, mais uma vez, sentir aquele contentamento de entender, por si mesmo,

uma primeira estória, de se encantar com as imagens que brincavam de se esconder

por trás das palavras quando era criança e aprendia a ler as coisas e desvendar

mistérios. Quem sabe, nas aventuras literárias consigamos retomar a alegria de

escrever, o prazer de ler, o ânimo de pensar sobre a vida, sobre o mundo, sobre a

história humana retida nos gestos simples e pequenos tão bem configurados em

uma menina de lá...

Que mapa nos dará a localização exata do ponto de partida para tais

incursões? Nenhum que já exista, parece responder-nos Rosa. Só os trajetos que

formos capazes de inventar nos guiarão rumo à infância. É preciso abrir trilhas. E a

escola, feita para o ensinar, não tem, em geral, possibilitado esse tipo de aventura. A

geografia escolar dificulta os percursos literários na medida em que insiste em

encurtar os caminhos, em apressar a chegada, em identificar os pontos de partida e

de chegada. Nesta ambiência, há o risco de que o tipo de aprendizagem privilegiado

seja aquele que exclui o brincar, que afasta a imaginação, que impossibilita a

invenção. Uma aprendizagem que se compromete apenas com os nexos sociais a

que deve responder, facilmente se esquece de apreciar o que há pelo caminho.

Afinal, há sempre o risco de não se chegar ao destino previsto. Lidar com a

literatura, neste ambiente, implica utilizá-la apenas a fim de que seja executado algo

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que lhe é extrínseco: ensinar. A literatura de Rosa não é ensinante, embora trate,

todo o tempo de travessias, ou experiências de aprendizagem. Ela não é uma

literatura de mestre, mas uma literatura menor.

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6 MORRER SEM PERDER A VIDA205

Não há tarefa mais urgente para nós que a de aprender a morrer; mas não é com renúncia à vida que aumenta nosso aprendizado sobre a morte, apenas o fruto maduro do aqui-e-agora apanhado e mordido espalha em nós seu sabor indescritível.206

6.1 ENTRE INFÂNCIA E MORTE

Meditar sobre a morte não é um ato recente, tampouco incomum. Afinal, a

morte desafia seu entendimento desde que há vida. Platão já afirmava ser a filosofia

uma longa meditação sobre a morte. Cícero caracterizava a vida filosófica como uma

commentatio mortis. O que se pensa acerca da morte tem constituído, há muito,

uma questão recorrente, sempre atualizada por uma nova forma de entendimento,

um diferente meditar sobre o tema. Há entendimentos restritos que associam a

morte à interrupção da vida humana. E há, também, modos mais amplos de

percebê-la que tendem a conectar o termo morte à cessação de fenômenos

múltiplos. Esta segunda forma de entendimento gera possibilidades infindas de

205 FERRARO, Giuseppe. Por uma filosofia fuera de los muros. In: Segundas Jornadas Internacionales de Filosofia. Buenos Aires, 2006. A expressão “morrer sem perder a vida” foi utilizada por Giuseppe Ferraro durante a conferência de encerramento das Segundas Jornadas Internacionales de Filosofía, de 19 a 21 de agosto de 2006, Buenos Aires. Conforme comunicação pessoal, ficou consentido o seu uso. FERRARO, Giuseppe [comunicação pessoal] recebida por [email protected], em 4 ago 2007. 206 RAINER, Maria Rilke. Cartas do poeta sobre a vida. Trad. Milton Camargo Mota. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2007, p.177.

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209

relações de sentido. Neste caso, toda cessação poderia estar, de modo análogo,

próxima ao sentido da morte humana, mas poderia também se constituir em algo

mais que a desintegração do aspecto orgânico da vida. Esta acepção provoca o

surgimento de analogias com as mais diferentes formas de desaparição ou

ausência. Ela faz emergir, também, uma busca ainda mais intrigante e desafiadora

por se identificar as distintas maneiras de cessação das coisas na continuidade da

vida. Deixar de ser e, ainda assim, continuar a ser, emerge como um problema

crucial do qual se derivam inúmeras questões. Que maneiras há de se deixar de

ser? Há graus de mortalidade na vida? Se existem modalidades e níveis distintos de

morte, onde se situa a morte humana? Estes são alguns dos questionamentos que,

inquietantemente, desdobram-se do problema relativo ao deixar ser – a vida, mas

também ao deixar de ser - a morte.

Deixar ser e deixar de ser apresentam-se, assim, como movimentos inerentes

à própria vida – forças decorrentes de um fluxo vital de rupturas e inícios. Ainda que

a morte se faça presente, não se trata de uma morte que nega a vida. Ao contrário.

No âmbito da existência humana, esta é uma morte que afirma a vida. Uma morte

capaz de reconhecer na vida o que já não é mais vida. Uma morte necessária para a

eliminação do que deixou de ser vida. Uma morte que delineia um espaço de onde

pode emergir uma infância. È assim que neste tipo de morte subjaz a infância. Uma

infância que prescinde da morte para irromper. Infância e morte, co-irmãs na vida,

assumem, deste modo, uma relação íntima, profunda e profícua. Essa coexistência

da morte e da infância faz-se mais evidente a cada vez que a própria vida exige

mudança. Para dar conta da matéria vertente da vida, como sugere Guimarães

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Rosa, é preciso, pois, perceber que as coisas são mesmo misturadas, como ele

mesmo alerta na voz de Riobaldo, seu personagem mais conhecido. Se tudo é

mesmo tão misturado, a apartação das coisas só pode decorrer da tentativa tola de

apreensão, domínio e controle. Da necessidade de ensinar a vida, advém a idéia de

tornar ensináveis infância e morte.

Contudo, entranhadas, infância e morte dificultam seu aprendizado. Ainda

mais por não permitirem seu ensinamento. É preciso aprendê-las, mas não parece

ser possível ensiná-las. É que ambas encontram-se no porvir. Não são antecipáveis.

Não se deixam aprisionar por grades curriculares. Sua coexistência não se sujeita a

provas. A evidência de seu aprendizado integra a vida mesma de quem as sabe.

Mais do que uma busca por conhecê-las, mais do que falar sobre infância e morte,

parece imprescindível dispor-se a elas. Criar disposição. Deixar-se atravessar pela

infância e pela morte. Acompanhar a suspeita de Rilke e acatar sua sugestão:

Há morte na vida, e me admira que se pretenda ignorá-la: a morte, cuja presença impiedosa sentimos em toda mudança a que sobrevivemos, porque é preciso aprender a morrer lentamente. É preciso aprender a morrer: eis aí toda a vida. Preparar de longe a obra prima de uma morte orgulhosa e suprema, uma morte em que o acaso não tem papel algum, uma morte bem-feita, bem feliz, entusiasta como os santos souberam moldá-la; uma morte longamente maturada, que apaga, ela própria, seu nome odioso, ao devolver ao universo anônimo as leis reconhecidas e salvas de uma vida intensamente cumprida. É essa idéia de morte que se desenvolveu em mim de forma dolorosa, de experiência em experiência desde a infância, e que me ordena suportar humilde a pequena morte para me tornar digno daquela que nos quer grandes. 207

207 RAINER, Maria Rilke. Cartas do poeta sobre a vida. Trad. Milton Camargo Mota. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2007, p.177.

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O autor destaca, na vida, a presença marcante da morte. Uma morte tão forte

e imponente que é capaz de alterar suas formas de aparição e apresentar-se

desejada a ponto de causar entusiasmo e animar a vida. Uma morte provocante,

exigente do cuidado e da atenção de quem nela reconhece mais um sentido para a

vida. Uma morte contente. Não mais a máscara fúnebre e grotesca de uma morte

avassaladora, cruel e injusta. Sem a identificação odiosa de inimiga da vida. Com a

marca evidente da vida. Uma morte assim, tão amiga da vida, não se oporia à

infância. Uma morte deste tipo exige uma infância que a justifique, que a torne

cúmplice e companheira. Sem medo. Na companhia do tempo. Na intensidade de

uma vida experienciada. Qual o sentido em evitá-las? Por que apressar a infância,

torná-la tão pequena, tão delimitada por uma faixa etária? Por que diminuí-la a ponto

de torná-la insignificantemente apenas uma etapa a ser superada? E quanto à

morte? Por que temê-la? Por que horrorizá-la tornando-a feia e repugnante, cruel e

indevida? Por que distanciar infância e morte da vida?

Infância e morte podem, então, ser abordadas enquanto temas de estudo,

pelos mais distintos ramos do saber. Enfoques biológicos, psicológicos, sociológicos

e legais, entre outros, tentam dar conta destes fenômenos de modos peculiares.

Esta gama de estudos evidencia o caráter múltiplo dos entendimentos que os termos

morte e infância suscitam e o caráter tanto natural quanto social da morte e da

infância. Mas, quais seriam as figurações da morte e da infância tornadas possíveis

pela literatura? Em sua peculiar polifonia e polissemia, que vozes e sentidos

estariam a se dar forma pela linguagem literária?

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O aspecto figural da morte, no âmbito da literatura, a aproxima da própria

linguagem, diria Bakhtin. Para o autor elas parecem caminhar lado a lado. Ele a vê

como um tipo de atividade criadora que mantém, pela escrita, uma relação estreita

com a morte ou com a extinção dos referentes, na contemporaneidade. Os

referenciais como o sistema de objetos, situações, solos e territórios histórico-

sociais, mortos para um sujeito em dissolução, seriam a figura mesma da morte.

Uma figura, ou seja, um problema estético. O resultado de uma relação emotiva e

deliberada com a existência, própria da individualidade artística. Uma disposição

interna capaz de adivinhar o íntimo daquilo que está do lado de fora. Uma vivência

interior da exterioridade das diferentes formas de vida alcançável apenas pelo

esforço empreendido pelo artista, no caso o escritor, em externar uma relação

intuitivamente perceptível com um fora. Esta compreensão simpática da existência,

cuja acepção do termo compreensão Bakhtin esclarece não associar-se ao sentido

usual de reflexo exato e passivo, mas da transferência de uma vivência, inaugura

novos valores e, por conseguinte, outros juízos e formas de aparição das coisas.

Não é o que expressa Rilke ao vislumbrar uma morte geradora de entusiasmo,

paradoxalmente a animar a vida?

As fronteiras temporais da vida são pensadas por Bakhtin a partir do

entendimento de que o que costumeiramente se diz a respeito do início e do fim da

vida não se prestam à autoconsciência. É preciso, portanto, repensar as conotações

valorativas atribuídas aos termos nascimento e morte. Tanto assim que não é

possível dar-se conta do próprio nascimento ou da própria morte. Não devido a uma

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impossibilidade física, mas à inaptidão para encontrar uma abordagem axiológica

para estes acontecimentos. Assim se expressa o autor:

Em minha vida, vivida por dentro, não posso vivenciar os acontecimentos do meu nascimento e da minha morte; o nascimento e a morte, enquanto meu nascimento e minha morte, não podem tornar-se eventos da minha vida.208

O autor continua este raciocínio que acaba por levá-lo a considerar que tanto

o nascimento quanto a morte tem sido valorados em referência ao nascimento e

morte de um outro. Sabe-se sempre do nascimento e da morte de alguém, mas não

se sabe do próprio nascimento ou morte. É neste sentido que temer a morte ou

celebrar o nascimento é uma relação externa com estes acontecimentos, algo que

se valora desde fora. Neste caso é possível registrar a perda e o desaparecimento

de uma pessoa ou a aparição e presença de outra, nova no mundo. Mas, e no caso

da própria morte? Bakhtin pondera:

A perda, quando se trata de mim, não significa uma separação de mim mesmo – de um eu amado e determinado por suas propriedades – já que viver-ser neste mundo não é tampouco a felicidade de estar comigo mesmo[...] 209

É neste sentido que a escrita se faz necessária, enquanto possibilidade de

efetivação da vida e da morte de si mesmo na vida e na morte dos personagens

inventados. Manter-se vivo na escrita e, ainda assim, morrer nos personagens

inventados é a saída. Este é o modo de fortalecer a vida do autor. Ele a reforça na

medida em que morre, repetidas vezes, nas obras que produz.

208 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 119. 209 Ibidem.

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A configuração da morte na literatura é também analisada por Blanchot 210 por

meio de matrizes teóricas de um pensamento que se articula em torno de uma

espécie de variação sobre a morte, em que se constitui, a seu ver, a literatura. Na

sua concepção, a literatura não é comunicação ou expressão de uma subjetividade,

mas a forma que resta aos homens para falar do que não podem compreender, do

que não pode ser expresso pela linguagem cotidiana. A literatura diz o que não pode

ser dito: o vazio da linguagem e da morte. Com relação à ficção contemporânea,

pode-se afirmar existir, nela, uma tentativa de fazer sobressair menos o sentido,

mais a linguagem, mais o trabalho da escrita que a função comunicativa, mais a

dimensão performativa que a pedagógica. Esse vazio, então desencadeado pela

escrita, a despeito de poder ser tomado como algo negativo, contém em si,

paradoxalmente, uma dimensão positiva: porque é um nada e porque lida com a

morte ou a extinção do referente, a literatura pode desenvolver então sua maior

ambição criadora, pois ao mesmo tempo em que coincide com nada, ela pode

também ser imediatamente tudo. Essa a sua força, que faz derivar daí seu poder de

transformação e negação.

Morte e escrita caminham lado a lado em alguns textos ficcionais, na medida

em que expressam a frustração de desejos e a morte como experiência privilegiada

capaz de engendrar a escrita. Por meio da escrita, a morte configura-se em impulso

e provocação da vida. Não é o que se passa com o menino no conto ‘As Margens da

Alegria’? A morte, experienciada gradualmente, nos diversos tipos de vida que se

apresentam a ele extraordinariamente novos, afirmam a vida que tiveram e o ser do

210 BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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que foram e permanecem sendo como memória. Também o menino se afirma

vivente nas próprias mortes que vivencia. Ele nasce outro a cada experiência de

aprendizagem porque morre um pouco ao deixar de ser o que era. A convivência

com a morte (representada nas figuras do peru e da árvore) aparece não apenas

como a antítese e o contrário do deslumbramento inicial do menino, mas nessas

figuras surge o avesso do encanto no qual também ocorre um tipo de aprendizagem.

A capacidade de projetar-se para além de uma contingência angustiante ou mesmo

mortal é que transfigura a aprendizagem do menino na figura do vaga-lume que

mesmo sendo escuridão, é também luz. O pequeno vaga-lume é um ponto luminoso

que se constitui numa linha de fuga para a morte experienciada pelo menino - um

detalhe que o libera daquela condição de morte parcial em que se encontrava. Trata-

se de um tipo de negatividade que viabiliza identificações positivas. A literatura,

pensada assim, como uma aventura, como um exercício astuto de criatividade face à

precariedade de sentido, cada vez mais intensamente impulsiona a escrita no ato

primaz de inventar, na ausência. A literatura seria, assim, uma aventura capaz de

múltiplas figurações da morte.

O olhar infantil de Rosa, na figura do menino, parece alcançar uma verdade e

beleza que persistem diante da violência e crueldade, ou mesmo da ausência de

sentido. É assim que, mesmo após o impacto do horror sentido diante do ato

instintivo do peru vivo em atacar o peru morto, surge, para o menino, o contraste do

brilho luminoso do vaga-lume. No caso do pequeno inseto, morte e vida

representadas pela presença e ausência de luz coexistem e configuram a

especificidade daquele tipo de vida. São muitas as figurações da morte utilizadas

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literariamente por Rosa a fim de criar uma sensação de morte e vida contínuas no

conto. Figuras antropomórficas como a do peru, ora equivalentes a uma expressão

suprema de beleza, ora emblemáticas da irracionalidade e crueldade animais,

vinculam a interrogação do mal, da dor, do medo e da morte à questão

essencialmente poética do fundamento do sentido neste conto. São as margens dos

sentimentos ambíguos que se põem a exigir do menino a travessia. Ora alegre, ora

triste, ele aprende a lidar com a multiplicidade de eventos concernentes à vida e à

morte. A linguagem literária favorece os deslocamentos exigidos pela experiência de

aprendizagem por ele vivenciada. Sua mobilidade é imprescindível para dar à busca

de sentido do menino, algum tipo de materialidade, de possibilidade de transmissão

de uma experiência não somente estética, mas também ética e epistemológica.

A escrita literária pode até mesmo ser entendida como um mecanismo criado

na tentativa de superação do medo, o medo de não ser possível dizer da vida o que

ela exige em termos de expressão. Expressão não apenas do vivido, mas também

do que há por viver e também do que não pode mais ser. Há fragmentos nos contos

integrantes das Primeiras Estórias que provocam um profundo sentimento de

saudade do que não foi vivido. Este é o caso do lamento do menino em relação ao

fato de não ter dedicado mais atenção ao primeiro peru que vira – aquele. A

segunda visão que tivera já não era mais a mesma, fosse porque a ave era outra,

fosse porque a primazia da primeira aparição guardava uma singularidade

irrepetível. O conto surpreende exatamente por fazer irromper uma estória secreta

que existia paralelamente àquela que estava sendo contada e que surge,

abruptamente, após ter estado secreta no período inicial da leitura. Este

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encantamento verbal, que aprisiona o leitor até o último instante e o mantém atento,

o liberta, violentamente, no fluxo de sentidos que explode no ápice da narrativa.

A epifania do conto, sua verticalidade, tão presentes na obra rosiana,

dimensionam a força expressiva da morte enquanto experiência privilegiada de

explosão de sentidos. A escrita do conto é, ela mesma, uma figuração intensa da

morte. É depois de morta a emoção, que o escritor a revive. Só depois de revivê-la e

duplamente vivenciá-la é que chega, o escritor, à arte da escrita. É preciso deixar

morrer a emoção para que ela nasça reencarnada na forma de escrita. No ardor do

desejo da escrita, a energia necessária para o esforço do nascimento da expressão

verbal se descarrega. A carga, contudo, fica retida e contraída na escrita mínima do

conto, na narrativa curta de uma estória. No caso do menino, a intensificação das

mortes contínuas é expressa na habilidade do escritor para selecionar palavras

capazes de exprimir significados e sentidos múltiplos, além de sons, cores e odores

derivantes não apenas das figuras, mas também de todas as paisagens que as

inserem. Equivalentes às mortes vivenciadas pelo menino, outras manifestações de

vida também morriam, embora não parecessem sofrer. Quem sofria era o menino,

embora no seu sofrimento e tristeza ainda houvesse lugar para a alegria. Talvez ele

estivesse a aprender, na convivência com a morte, a dela aproximar-se em vez de

rejeitá-la. Quem sabe Rosa, o escritor, estivesse, por meio do menino, a rever a

morte como se fora pela primeira vez, tentando extrair desta experiência revisitada,

uma nova experiência, outra vez primaz.

O menino se dá conta da presença da morte na vida. O menino, nas margens

entre a alegria e a tristeza, percebe que também pode morrer. Posso morrer?

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218

Parece perguntar o menino. Posso morrer? Pergunta Blanchot.211 Estonteante, esta

pergunta gera um intrigante questionamento acerca do medo associado à morte e

da iminente proibição de desejá-la. É como se houvesse, desde sempre, um

impedimento à própria formulação da pergunta. A obviedade da resposta inibe a

forma interrogativa do enunciado. Uma afronta ao senso comum. Um dissenso.

Poder morrer não é já uma questão sem sentido, reforça o autor. Para Blanchot se

trata de uma questão crucial que desestrutura o sentido posto. Ela é mesmo um

questionamento que exige a criação de todo um processo de busca. Ela é, em si

mesma, uma busca pelo extremo – a morte. Quem dispõe da morte, dispõe

extremadamente de si, afirma Blanchot212. Este que dispõe da morte está ligado a

tudo o que pode, é integralmente poder. A arte seria, por conseguinte, o domínio do

momento supremo, supremo domínio. A arte como uma maneira de se exercitar o

poder de morrer. A arte, em especial a arte literária se configuraria numa sabedoria

capaz de fazer coincidir a satisfação e a consciência de si, em encontrar na extrema

negatividade, na morte convertida em possibilidade, trabalho e tempo. Não mais a

negatividade da morte comumente associada ao sofrimento e à dor, mas a morte

como medida do absolutamente positivo. Se se pode morrer, a morte deixa de se

apresentar apenas como uma possibilidade, mas também como uma deliberação. A

ambigüidade do termo “poder”, faz irromper sentidos múltiplos que forçam uma

busca aprofundada de possíveis respostas. Assim, para poder morrer é preciso ter

força de ânimo, energia de vontade, ou seja, é preciso estar vivo. Para poder morrer

211 Tradução livre da autora. In: BLANCHOT, Maurice. El espacio literário. Barcelona, Paidós, 1992, p. 87. 212 BLANCHOT, 1992, p. 83. Tradução livre da autora.

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é preciso, portanto, poder atestar a vida. Poder morrer é também ter uma razão, um

motivo, o direito de morrer. Pode morrer aquele que, de algum modo, pode dar razão

à morte e também à vida. Poder morrer é, por outro lado, ser capaz de suportar, de

agüentar a morte. É preciso poder com a morte, para morrer. Para poder morrer há

que se sobrepor à morte, sobre ela exercer autoridade. Poder morrer é ter chance,

criar oportunidade ou condição de fazê-lo. Poder morrer é, portanto, dar conta de

morrer. Contar com a morte, contar com o ânimo, com o vigor, com a autoridade,

com a força, com a aptidão, disposição e recursos que ela exige. A morte apresenta-

se, assim, como uma tarefa artística, um ofício de arte. É pelo intermédio da arte

literária que Blanchot remete-se a Rilke e dele toma a idéia da arte como um

caminho até si mesmo e, até mesmo, a uma morte singular. Contudo, é o próprio

Blanchot quem, em seguida, questiona: Mas, onde está a arte? E é ele quem conclui

ser desconhecido o caminho que conduz à arte. No entanto, adverte que a obra

exige um trabalho, um saber, um exercício que acabam por se fundir numa imensa

ignorância. É deste modo que a obra significa sempre ignorar que há uma arte,

ignorar que já há um mundo. Morrer para um mundo já existente. Daí uma contínua

infância a irromper junto à morte e à arte. Ainda em referência à obra de Rilke, o

autor destaca um entendimento da morte que a distingue de um fim acidental. É sua

imbricação com a vida que a diferencia de uma interrupção casual e apressada:

(...) no solo debe haber muerte para mí em el momento último, sino muerte desde el momento que vivo y en la intimidad y la profundidad de la vida. La muerte, por lo tanto, formaria parte de la existência, viviria de mi vida, en lo más interior.213

213 BLANCHOT, 1992, p. 116.

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Exigente, a morte demanda preparo, esforço e, primordialmente, tempo. O

tempo indefinido do morrer é o que possibilita várias mortes, além de diferentes

formas de morrer. O menino do conto ilustra a mobilidade daquele que pode morrer.

Ele se move no espaço da morte. A estranheza de seus aprendizados o faz morrer e

perceber a morte levada a bom termo. No momento extremo da experiência está a

morte, em cruel harmonia com a vida, percebe o menino. Embora inicialmente tenha

se apresentado horrorosa ao menino, a morte parece ter dele se aproximado a ponto

de até mesmo contentá-lo por meio de sucessivos encontros. É que uma ligeireza

cruel parece definir a morte no conto. A mesma ligeireza com a qual a alegria vem e

volta para o menino. A arte literária de Rosa joga assim com a morte. Seu menino

inventado na figura de um personagem, ainda que vivo, parece mover-se no espaço

da morte, estranho à vida, por ela colocado à prova. Ambos, escritor e personagem,

passam, então, a jogar com a morte, a lidar com sua presença em momentos

extremos de prova que são como uma morte em vida. Instantes da própria vida que

misturam vida e morte. Ambos são impelidos a jogar. Eles jogam onde não há mais

possibilidade de jogo, onde não há domínio, nem recurso. É preciso, portanto,

inventar o que falta. É daí que surge a inusitada força expressiva do conto no uso

incomum da palavra, na cadência e no ritmo da narração. Quando nada mais resta a

fazer, quando não há o que dizer, quando a travessia já se deu e tudo é de outro

modo, é preciso arte, a arte mesma de relacionar-se com a morte. É quando a

escrita emerge como possibilidade de uma vida nova. Então, pode-se morrer

contente. Afinal, uma relação com o mundo normal já está, de algum modo, rompida.

É esta separação, esta exigência de solidão, imposta pelo trabalho da escrita que

faz com que na morte possa haver contentamento. “A morte contente é o que se

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ganha com a arte, é o objetivo e a justificação da escrita”, afirma Blanchot.214 O

paroxismo da experiência intervalar do menino nas margens da alegria confirma a

declaração do autor e aproxima a escrita Rosiana de seus estudos literários.

É como se o escritor pudesse, por meio da escrita, dos personagens que

inventa, alcançar um jeito próprio de morrer. Alcançar até mesmo uma morte leve,

benfazeja, desejada, como a de Nhinhinha. No conto, são os personagens adultos

que se angustiam com a morte da menina que se apresenta como frustração de uma

série de expectativas almejadas. A menina parece morrer contente. Sua morte é a

satisfação mesma de um desejo. A morte não lhe é injusta. Pode-se mesmo pensar,

com Blanchot, que a relação com o mundo ordinário dos adultos considerado

normal, já estava mesmo rompida pela menina. Neste sentido a menina já estava

morta para aquele tipo de vida. Ela já se colocava à prova na estranheza que vivia.

A capacidade de morrer contente significa, para Blanchot, que a relação ordinária

com o mundo, já rompida, se configura materialmente na escrita. De algum modo, o

escritor já estava morto para a vida corriqueira e, embora privado da vida, para se

fazer feliz da morte que o acompanha, precisa escrever. É preciso escrever para

morrer tranquilamente. Na profundidade da experiência, morte e escrita instalam-se.

O escritor é, então, o que escreve para poder morrer e que obtém seu poder de

escrever de uma relação antecipada com a morte – poder morrer por meio da obra

que se escreve – a obra mesma como uma experiência da morte – há que se dispor

previamente dessa experiência para se chegar à obra e, pela obra, à morte. Mas

também se pode pressentir que o movimento que na obra é proximidade, espaço e

214 Tradução livre da autora. In: BLANCHOT, 1992, p 85.

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uso da morte, não é exatamente o mesmo movimento que conduziria o escritor à

possibilidade de morrer organicamente. É preciso, portanto, e em sentido inverso,

morrer para um tipo de vida, a fim de se escrever.

Deste modo, a experiência da escrita, bem como qualquer experiência

autêntica, altera as formas do tempo. Este parece ser o resultado da ambigüidade

da experiência, de seu duplo aspecto. Há, na experiência, uma exigência circular

que situa no ponto de partida da busca, aquilo mesmo que se deseja encontrar. Só

assim é possível entender a busca pela palavra justa no próprio exercício do uso da

palavra. É o que faz o escritor partir de um ponto em que está até aquilo do qual se

aproxima afastando-se. É este ofício da palavra que cria condições de possibilidade

da emergência de uma esperança. Emerge, deste trato dedicado e cuidadoso com

as palavras, o termo ou o fim de onde se anuncia o interminável. Poder morrer é,

pois, uma questão repleta de sentidos. O objetivo de uma vida pode mesmo ser a

possibilidade da morte. Essa busca, contudo, só se torna significativa quando se faz

necessária. Este parece ser o caso da busca pela infância. Para se chegar à infância

faz-se imprescindível buscá-la no ponto em que ela se inicia. Afinal, é a sua natureza

primaz que faz emergir, inclusive a morte. Buscar uma pode ser encontrar, de incerto

jeito, a outra. Um encontro buscado que se mantém imprevisível. Ao deparar-se com

a morte ou com infância, a chance de se encontrar o inusitado. Só uma coisa parece

certa: a necessidade da morte do excesso de adultez existente.

Para fortalecer a vida é imperativo reconfigurar a morte. Deleuze, a respeito

de Foucault, entrecruza literatura e filosofia destacando o modo pelo qual Bichat

rompe com a concepção clássica da morte: colocar a morte como coextensiva da

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223

vida, fazer dela o resultado de mortes paralelas e, sobretudo, tomar como modelo a

morte violenta em vez da morte natural.215 Sim, Foucault faz referência ao

nascimento da clínica e aos estudos científicos a respeito da morte. Ele não alude,

aqui, a uma morte simbólica. Ainda assim, a incorporação da idéia de uma morte

que acompanha a vida, uma idéia ainda não concebida até então, passa a ganhar

notoriedade na atividade médica. Esta foi a grande marca distintiva por ele

ressaltada. É o que ele expressa ao afirmar:

Foi quando a morte se integrou epistemologicamente à experiência médica que a doença pôde se destacar da contranatureza e ganhar corpo no corpo vivo dos indivíduos. A medicina moderna, no sentido de medicina anátomo-clínica, estrutura onde se articulam o espaço, a linguagem e a morte, data do aparecimento da morte como condição de possibilidade do conhecimento da vida e da doença, dos fenômenos orgânicos e de suas perturbações.216

É nessa perspectiva que Foucault relaciona, em seus estudos, a experiência

médica e a experiência literária. Em O Nascimento da Clínica, ele assinala que

medicina e literatura evidenciam a irrupção, o aparecimento do sentido de finitude

que domina a relação do homem com a morte. Uma relação que opera tanto no

âmbito de um discurso científico, quanto na esfera de uma linguagem que se

desdobra infinitamente no vazio deixado pela ausência dos deuses. Esta linguagem

incessantemente desdobrante, a linguagem literária, atua no campo da sensibilidade

e conduz a uma percepção difusa e tateante. Contudo, acaba por chegar a

entendimentos súbitos, definitivos. É este processo sofrido, mas compensador que,

levando ao limite extremo o projeto de chegar à infância, chega, de súbito, à morte.

215 FOUCAULT, Michel, apud MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 56. 216 Ibidem.

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224

6.2 INFÂNCIA, MORTE DE UM TIPO DE ADULTEZ

A infância é uma morte, a morte de uma adultez que se apresenta com

demasia no pensamento completo, seguro e preciso. Uma morte capaz de conter a

transbordante adultez dos sentimentos acertados, das atitudes comedidas, das

feições bem apessoadas que padronizam as formas de vida. Uma morte que pode

dar fim ao corpo adulto, controlado e firme, disciplinadamente mantido a fim de

evidenciar uma vida orgânica. A morte da adultez fria dos valores ajuizados,

necessária e urgente, propiciadora da emergência de novos juízos.

A morte de uma adultez presente em qualquer idade na vida de qualquer um

cheio demais de si, sujeito único de relações nas quais tudo é objetificado. A morte

apresenta-se, neste sentido, enquanto ruptura necessária para o surgimento de

dúvidas e incertezas, para o deslocamento da tirania do sujeito-rei, da exaltação dos

poderes do eu. Só assim a identidade revela-se enquanto construção ficcional. Na

figura do menino esta ruptura se revela no momento em que ele percebe que o peru

que se apresentava a ele tão excepcionalmente, não existia para ele, não era um

peru para ele, mas sim um peru – aquele. Uma ave qualquer que naquela singular

aprendizagem tornava-se especial, embora não pertencesse nem a ele, nem àquele

lugar, nem a si mesma. O sentido da aparição da ave situava-se naquele caso,

numa economia de afetos que embaralhavam os códigos da tirania do sujeito-rei,217

do menino, da exaltação do eu, o peru para mim. A ênfase ali deslocava-se para a

217 LINS, Daniel. Clarice Lispector: a escrita bailarina. Disponível em: http://paginas.terra.com.br/arte/kalinataraja/pesquisa/obra/bailarina.prn.pdf. Acesso em: 10 nov 2007.

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descoberta do impessoal – morre-se. Vive-se. Coisas acontecem. Uma escrita do

acontecimento, das sensações. O que era problema passava, então, a tornar-se um

desafio para o menino: dispor-se a encontros eventuais com a alegria como havia

sido na aparição do peru. Como se apresentava, de súbito, na aparição do

vagalume. O que era um sentimento recluso, uma solidão avassaladora, torna-se

uma sensação desejante, liberta, a própria alegria. Um lugar liminar, nas margens.

Uma escrita articuladora anônima. A escrita de Rosa é, assim, o resultado de um

choque a partir do qual outra coisa pode emergir. Essa outra coisa, oriunda do

choque, parece circular e se moldar ao que já havia, o mesmo, enquanto o mesmo

se deforma para reaparecer desviado, estrangeiro. Isso se materializa na figura do

peru para o menino. É Deleuze quem afirma ser próprio do diverso retornar pelo

avesso do avesso ancorado em camadas de dobras libertárias. É a ruína, a morte. O

diverso renasce sempre posteriormente, de supetão. É assim com a ave. Ora, a

repetição – imenso desafio ao anacronismo identitário – é sempre a repetição do

diferente. O que retorna não é o mesmo, mas a diferença. É assim que Rosa chega

à invenção de uma escrita poética que habita um espaço liminar. Um texto que

nunca fora escrito e que, portanto, sempre se instalara na esfera do novo. Ou seja, a

escrita de Rosa é o resultado implícito de uma criação, uma escrita por vir.

Uma escrita que emerge da morte de um mundo adulto. Um mundo que já

conhece as coisas, onde tudo já está identificado, classificado, denominado,

valorado. É preciso a morte desta adultez a fim de que as coisas possam ser vistas

sem a mediação do conhecimento que já as revestiu de significações. Desnudadas.

As coisas precisam ser vistas como são. Vistas como a menina e o menino dos

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contos de Rosa as viam. Vistas como ele mesmo, Rosa, via - com um olhar infantil.

Esta seria a função da morte da adultez: uma passagem necessária para o nascer

de uma infância. Um deslocamento necessário de um tempo presente atual, adulto,

para uma temporalidade indeterminada, um tempo de infância. Rosa parece fazer o

que sabia, isto é, escrever. Mas era como se ele estivesse sempre por aprender a

fazê-lo.

Rosa deixa morrer uma maneira adulta de lidar com o conhecimento. E é

assim que ele nos provoca a questionar os modos de antecipação, o esforço

desmedido em prever o futuro e, muitas vezes, em aprisioná-lo naquilo que já

conhecemos. Afinal, o que já conhecemos é resultado de uma construção histórica,

produto do trabalho sistemático da humanidade e também de cada um. É neste

sentido que a palavra conhecimento tanto pode designar um corpo de saberes como

uma potencialidade do indivíduo em saber.

Tratada a partir de um corpo de conhecimentos resultante de um longo e

histórico trabalho realizado por alguma área específica do conhecimento humano, a

infância fatalmente se distancia do que se sabe dela. O acesso ao mundo pelas

crianças é coibido pelo obstáculo causado pelo acúmulo de conhecimentos já

elaborados sobre elas.

Para experienciar o mundo, explorar os limites da própria identidade e

identidade das coisas, para encontrar surtos de sentidos e viver a intensidade das

contingências, há que se matar a adultez dos modos organizados para a aquisição

do conhecimento. Há que se estranhar de maneira infantil um mundo que escapa de

forma escorregadia aos conhecimentos elaborados a seu respeito. A infância parece

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configurar esta imagem do estranho privilegiado que, por situar-se nas margens,

consegue ver melhor. O estranho que, por força de sua estraneidade, percebe mais

claramente a vulnerabilidade do conhecimento socializado resultante da relação

entre iguais.

A pergunta radical e, portanto, pueril, da criança é que, afinal, problematiza a

vida.218 As obviedades adultas se dissipam, a cotidianidade se desnaturaliza e o

normal se altera na medida em que novas formas investigativas sobre a vida são

elaboradas. Este inquieto jeito de viver provoca rupturas que, por sua vez, ocasiona

certa descontinuidade no modo de entendimento já posto pelo adulto e gera,

também nele, espanto, dúvida e insatisfação. A imobilidade da ordem imperante é

rejeitada mediante uma crítica que emerge da estranheza. É daí que surge a

necessidade de se pensar possibilidades de elaboração de ordens alternativas. Um

processo tipicamente infantil de lidar com as coisas. Crítico e criativo, trata-se de um

tipo de entendimento integrado ao modo infantil de lidar com a vida – algo que não

carece ser ensinado.

A morte da adultez implica, portanto, num redimensionamento dos valores,

saberes e crenças que têm fundamentado a construção social da idéia de infância e

de morte. E, mais que isto: reconhecidos, compreendidos e questionados tais

valores, saberes e crenças, é preciso, ainda, pensar condições para elaborar, em

torno destas duas idéias, outros enunciados. Afinal, o que comumente se considera

218 Ver KOHAN, Walter Omar; KENNEDY, David (Orgs.). Op.cit.. 1999. Nesta obra diferentes enfoques são dados à relação entre filosofia e infância por diversos autores. Os ensaios passam pela educação de crianças, pela filosofia da infância e pela psicologia, sociologia e história da infância.

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morte e infância modifica-se significativamente em diferentes tempos e lugares. As

figurações de ambas são resultados de construções humanas e, portanto,

modificáveis. A suposta naturalidade da infância e, por conseguinte, dos modos

adultos de dizê-la é interrogada. Desdobram-se, desta interrogação, perguntas

concernentes às suposições e implicações que a separação das pessoas em

crianças e adultos fazem emergir; aos limites fundadores deste tipo de

categorização; às conseqüências epistemológicas, culturais, educacionais e políticas

desta diferenciação; enfim, aos pressupostos que sustentam as práticas sociais

estabilizadoras da divisão cronológica da vida em etapas que se iniciam na infância

e terminam com a morte.

A infância se constitui num modo indisciplinado do pensar radical sobre a

vida. Isso é muito diferente do que ocorre com a maneira disciplinada e disciplinar do

ensinar adulto. Para a criança não se trata de aplicar sobre determinado objeto de

investigação um conhecimento adquirido a fim de se obter uma melhor

compreensão. Trata-se antes de uma relação direta com o que se deseja saber.

Trata-se de uma postura investigativas e não da apropriação de dispositivos

legitimadores de saberes e de não-saberes.

A infância, enquanto construção cultural-histórica, além de constituir uma

subjetividade infantil, é também uma invenção do mundo da criança, ou seja, a

constituição objetiva de instituições, artefatos e práticas que produzem a criança que

convém a essa infância. A infância é, nestes termos, tanto uma concepção teórica

quanto o resultado dos dispositivos criados para que a criança torne-se sua

ilustração. A arquitetura escolar, as leis de proteção à infância e a economia familiar

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são alguns dos exemplos de estruturação social da vida infantil. A invenção cultural

da infância apresenta, portanto, variações enquanto categoria coercitiva e

irregularidades constitutivas, o que abre brechas e possibilita estudos exploratórios

infindos. As próprias crianças reagem aos modos pelos quais os adultos tentam

inseri-las na infância por eles inventada. Esta resistência se revela na criatividade,

teimosia e esperteza peculiares às crianças. Os tão conhecidos jogos infantis

demonstram a astúcia das crianças em lidar com as práticas adultas de

relacionamento social. A despeito de todos os aparatos de construção da infância,

as crianças insistem em viver suas próprias infâncias.

Não podemos subestimar a capacidade das crianças de criarem-se a si

mesmas. Na medida em que elaboram modos de raciocínio próprios e desenvolvem

atividades distintas daquelas realizadas por adultos, as crianças parecem vivenciar

uma infância inalcançável pela razoabilidade adulta. Talvez seja a própria

insegurança adulta diante da imprevisibilidade das crianças a responsável pelo

entendimento da infância como instância moldável. Os modelos de infância parecem

atender, desta maneira, às demandas adultas por controle. As possibilidades de

entendimento adulto passam a ser a medida e o molde pelos quais a infância é

medida, manipulada, dominada e compreendida.

A infância, pensada por adultos, tende a conformar modelos que exprimem

desejos de controle e poder mágicos sobre as crianças. Além destes desejos

aparece também a crença na eficácia dos mecanismos criados para produzir tal

imagem da infância. Este entendimento diz respeito às concepções normativas que

podem ser questionadas e que encontram resistência nas próprias crianças.

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Acontece que os discursos constitutivos dos nossos saberes são estruturados na

forma adulta de construção textual que passa pelo domínio da linguagem escrita.

Este domínio coincide, via de regra, com o longo período de escolarização ao qual a

criança é submetida até chegar à idade adulta. Sendo assim, às crianças não é dado

falar sobre a infância.

Nos modos de resistência das crianças aos modelos de infância impostos

parece residir o gesto infantil de buscar modos alternativos de interação com o

mundo. Na impossibilidade do uso da linguagem estruturada de modo ordenado e

hierárquico, a invenção de outras linguagens. Uma ruptura necessária com um

estado de coisas - a invenção de outros modos de entendimento – não a falta ou a

incapacidade de adoção do modelo.

A construção do mundo pela criança parece ultrapassar as restrições da

construção delimitadora da infância. Parece-nos imprescindível pensar a infância

fora da dimensão cronológica da vida, ou seja, fora do âmbito etário. A literatura

apresenta-se, então, como espaço privilegiado para uma diferente abordagem da

infância - uma abordagem menos afirmativa, menos impositiva de um entendimento

adulto sobre a criança - Afinal, a infância tem sido submetida ao domínio

considerado natural da pediatria, psicologia, sociologia e educação. Estas formas de

conhecimento têm gerado um enorme contingente de especialistas em infância e,

por conseguinte, discursos apropriadores da infância.

As formas pedagógicas em suas especialidades e modos de legitimação de

saberes, parecem ter deixado de lado o acontecimento da infância. Identificada

como categoria etária ou mesmo como situação psicossocial, a infância não tem sido

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reconhecida na sua condição de evento, na alteridade de sua diferença. Embora

vislumbrada, sua alteridade é considerada por demais efêmera, um tipo de

alteridade que dura apenas o tempo necessário para se transformar no mesmo – o

adulto.

Que tipo de saber poderia relacionar-se de modo estreito com a infância? Um

saber que buscasse restaurar a atividade do pensamento em seu movimento

sensível. Um modo de dizer a infância que não se ocupe com sistemas explicativos,

mas que seja, ele mesmo, uma experiência infantil do pensar. A filosofia de Gilles

Deleuze e seu apreço pela linguagem literária nos parecem muito instigantes neste

sentido. Não se trata de buscar na obra de Deleuze textos suportes para afirmações

ou mesmo realizar leituras fiéis à sua escrita. Com Deleuze queremos pensar o que

há entre infância, literatura, filosofia e educação. Neste esforço, quem sabe

cheguemos a pensar de um modo infantil a infância.

Pensemos a infância como um estado, não como uma natureza. Tentemos

percebê-la por meio de linhas que se entrecruzam, não através de uma escala

linear, seqüencial e ascendente. Deixemos de ver a infância como um período de

descobertas e passemos a sentir seus fluxos inventivos. E, então, cruzemos os

trajetos teóricos de Deleuze. Seu modo de pensar em planos, linhas e feixes

continham os desenhos ainda não traçados por nós nas imagens da infância que se

esboçam em nosso jeito de pensá-la. A idéia da não apropriação da infância pela

substituição do artigo definido a pelo artigo indefinido uma localiza um ponto de

encontro entre a imagem da infância que delineamos e a elaboração teórica de

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Deleuze. Uma infância e não a infância particular de cada um reflete, para nós, a

imagem de um estado infantil do modo como o concebemos.

Encontramos, em Deleuze, uma maneira de pensar que nos acompanha em

nosso trajeto de busca. Procuramos nos fazer sensíveis aos apelos que nos são

dirigidos pelas crianças e adultos em suas atitudes infantis e impertinentes de forçar

a irrupção de sentidos naquilo que carece ser pensado. Violentamente a intensidade

da experiência infantil atravessa nosso entendimento das coisas e nos força a

pensar nas condições que se fazem necessárias para alcançá-la na emergência do

seu acontecimento. Pensar a infância no âmbito do acontecimento é pensá-la como

aquilo que não pode ser - quando o que não pode ser é.

Deixarmo-nos afetar pelas coisas parece ser uma das condições para que

possamos vivenciar a infância e a morte de uma adultez. Esta abertura é o que

ambas exigem. Atendidas, elas se incorporam, passam por entre nós, nos

perpassam. Saímos modificados, alterados, diferentes do que éramos após uma

experiência. Giorgio Agamben, filósofo italiano contemporâneo, ressalta a relação

entre experiência e infância em sua obra intitulada Infância e História.219 Nela, ao

retomar a idéia da pobreza de experiência do mundo contemporâneo explorada por

Walter Benjamim, Agamben retrata o acúmulo de situações pelas quais temos

passado rápida e superficialmente na cotidianidade de nossas vidas em

contraposição ao vazio de experiências, já que em nada nos detemos, nada se

transforma em relato, nada passa pela palavra, ou seja, nada nos passa. A própria

219 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Trad. Port. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

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rotina urbana é coberta de elementos, de signos aos quais não dedicamos nossa

atenção, sobre os quais não direcionamos nosso pensar e pelos quais passamos

indiferentes.

Agamben se detém sobre esta rejeição contemporânea à experiência e

vislumbra, na própria situação, as possibilidades de um outro tipo de relação com

ela. “A constatação de que já não é algo realizável”220 deve ser, segundo o autor, o

ponto de partida para qualquer discurso sobre a experiência nos dias de hoje. É

como se o homem contemporâneo tivesse sido privado de sua biografia, como se a

ele fosse negada a possibilidade de sua própria experiência. O autor acentua ainda

o caráter ordinário da destruição da experiência e demonstra não ser preciso mais

que um dia de rotina numa grande cidade qualquer para que se perceba o quanto os

afazeres comuns são desprovidos dos sentidos da experiência. Ler as inúmeras

notícias dos jornais, realizar os mais variados deslocamentos entre locais de

trabalho, residência e demais espaços de atuação, relacionar-se com as diferentes

manifestações de rua, contatar fugazmente desconhecidos no elevador, no ônibus,

no comércio, envolver-se em congestionamentos no trânsito, lidar com o acúmulo de

prédios e edificações, são algumas da enorme quantidade de situações que

envolvem cada um, sem que qualquer uma destas ocorrências se transforme em

experiência.

220 Idem. p. 7. Altero levemente a tradução.

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234

Esta incapacidade de traduzir em experiência o que nos envolve torna

insuportável a existência cotidiana. A opressão do cotidiano221, destacada por

Agamben, já não permite que o próprio cotidiano se constitua em matéria de

experiência. A autoridade do acontecimento expressa na palavra que o relata, já não

mais se produz. Não conseguimos mais falar, somos sem fala. Não é que não

existam experiências. É que elas parecem se situar fora das pessoas. E como já não

conseguimos efetivar experiências diretas com as coisas, tentamos captá-las por

meios exteriores a nós. O recurso de uma máquina fotográfica é o exemplo ao qual

recorre Agamben para ilustrar o afastamento habitual que temos tido nas relações

com as coisas. É como se buscássemos transferir para o registro fotográfico uma

experiência que já não conseguimos ter por nós mesmos.

Contudo, Agamben sugere que, em vez de deplorar esta realidade, a

tomemos em conta a fim de buscar, nela mesma, alguma possibilidade de

encontrarmos a “semente em hibernação de uma experiência futura”.222 Para tanto

ele recorre à herança benjaminiana “da filosofia do devir”223 e propõe a preparação

de um lugar lógico onde esta semente possa alcançar sua maturação.

A filosofia tem sido sempre considerada uma atividade adulta enquanto as

expressões artísticas musicais, corporais ou literárias situam-se na infância e

juventude. A adultez da filosofia parece incompatível com a infância da poesia, da

pintura, da dança. Ela se apresenta muito mais compatível com a educação formal

221 AGAMBEN, 2005, p. 9. Altero levemente a tradução. 222 AGAMBEN, 2005, p. 10. 223 Idem.

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de nível superior. Séria, adulta e formal, a filosofia parece ser muito mais facilmente

entendida no que já realizou no âmbito da história das idéias, do que na dimensão

prospectiva do que poderia realizar. Talvez fosse preciso procurar no interior da

filosofia novos modos de expressão das idéias filosóficas. Até mesmo repensar a

filosofia. Poderíamos pensar que qualquer texto filosófico escrito poderia ser exibido

de outro modo, por meio de outras linguagens ou portadores textuais. Um texto

filosófico mediante outra apresentação e um outro afeto.

Pensar por si mesmo, como uma criança, livre da boca dos mestres e de seus

seguidores. Permitir que a aprendizagem escape dos espaços limitados dos

conteúdos e textos didáticos. Deixar que a experiência do aprender ultrapasse a

tradição escrita e assuma outras vestes e modos de apresentação. Retirar do saber

a obrigação de ter que justificar sua própria presença, seja por meio de sua história,

seja por força do status que possui, como se tudo por ele sempre começasse.

É com Deleuze que podemos estar com a infância a partir de uma atividade

do pensar que se movimenta, que investiga as coisas por meio de seus movimentos,

que se ocupa do que se passa entre as coisas. É ele quem situa a concepção

energética do movimento num momento anterior ao que hoje se define quanto ao

movimento – cada vez menos a partir de um ponto de alavanca – cada vez mais

como inserção numa onda preexistente:

Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, ‘chegar entre’ em vez de ser origem de um esforço.224

224 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. p 151.

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Pensar a infância a partir da morte de uma adultez que nos impede de abrir

possibilidades de criação de conceitos. “Não basta dizer: os conceitos se movem. É

preciso ainda construir conceitos capazes de movimentos intelectuais.”225 Para tanto

há que se conceber o conhecimento em seu aspecto inventivo, na configuração de

um pensar dinâmico. Talvez seja preciso, ainda, criar novas figurações que

ultrapassem as denominações já desgastadas de infância e adultez.

Há ainda a morte necessária de um tipo de infância que condensa, no tempo

reduzido da criança, etapas preparatórias de uma vida adulta, nada mais. É preciso

deixar que a infância surja na criança - uma infância que faça morrer uma

qualificação antecipada do infantil e que permita a irrupção de novas qualidades

associadas à infância. Há um entendimento da infância que precisa se sobrepor à

concepção de infância enquanto uma etapa definível e quantificável do

desenvolvimento humano. Sobrepor um entendimento não é o mesmo que destruí-lo

ou negá-lo. É preciso passar sobre este entendimento, mantendo-o e, contudo,

colocar-se à sua frente. Blanchot chega mesmo a destacar, no ser humano, um

“dom de morte” que consiste, segundo o autor, na rapidez para desaparecer, na

aptidão para perecer, na caducidade e fragilidade humanas. É isso o que há para

ser oferecido, é esse espaço da morte que propicia o espaço da palavra. Esse

trabalho de morrer, rejeitado e incompreendido, teria como tradutor, o poeta. O

espaço de realização desse trabalho seria o poema. O ponto de realização desse

trabalho, a palavra. O poema seria, assim, o local “onde tudo morre – onde a morte é

225 Idem, p. 152.

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a sábia companheira da vida”226. E, por ser o local da morte, é na obra que se

origina a palavra nova. A infância do ser e a infância do dizer, por fim, juntas na

morte de uma forma adulta de escrever. Daí o próprio questionamento do autor:

Qual seria o ponto de partida da arte se não fosse esta alegria e esta tensão de um

começo infinito?227

Acontece que a infância comum tem sido cada vez mais apressada, diminuída

e até mesmo rechaçada. A idéia de um começo infinito parece inadequada a

urgência da vida cotidiana que acelera o ritmo das ações humanas e apressa a

chegada da adultez. A infância é, então, aligeirada, subestimada e até mesmo

imbecilizada. A presumida infância das crianças ainda é compreendida por muitos

como uma fase do não-saber. Assim entendida esta infância é desvalorizada, por

vezes isolada do contexto de vida adulto ou mesmo apenas projetada numa forma

adulta de ser. Esta é a infância que precisa morrer. Neste tipo de infância, só há

crianças, não há jeitos infantis de viver.

Esta infância precisa morrer a fim de se evitar que adultos precoces

desperdicem o tempo da infância. Este é o tipo de infância que antecipa o futuro,

que interrompe um fluxo de devires. Uma infância assim rouba das próprias crianças

as chances de invenção de uma infância autêntica. Seja na ocupação adulta do

tempo na forma de trabalho, seja no modo adulto de consumo de bens e serviços,

seja até mesmo na assimilação da opinião que os adultos possuem ao seu respeito,

esta é uma infância já morta. Uma infância que, embora morta, não se sabe assim.

226 BLANCHOT, 2005, p. 132. 227 BLANCHOT, 2005, p. 142.

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Embrutecida pelos mecanismos de adultização que a suprimem, ela já não se

reconhece. É imprescindível que ceda seu lugar a uma infância outra.

Este tipo de infância nega o presente próprio à criança e impede o fluxo do

devir-criança no qual poderia ser lançado qualquer um. O porvir é interrompido em

favor da padronização de comportamentos organizados por dispositivos de

infantilização. Esta interrupção instala a infância em lugares e tempos determinados

pelos discursos hegemônicos que afirmam-na como um vir-a-ser adulto.

Assim padronizada, transformada pela economia de mercado em segmento

infantil, alvo da publicidade e da garantia da venda de produtos, esta infância se

restringe a um objeto discursivo. Uma outra infância a reinauguraria. Uma infância

inédita potencializaria sua força e a lançaria, de novo, em múltiplos devires.

6.3 INFÂNCIA, SEGUNDA MORTE

É possível perceber, portanto, uma relação estreita entre infância, morte e

escrita. Entre as diversas razões existentes para se escrever, há quem considere

uma das mais secretas e importantes colocar algo ao abrigo da morte. Isso seria o

mesmo que escrever para não morrer. Isso seria, também, negar a vitalidade da

morte, sua força e entusiasmo. Confiar na sobrevivência da obra em oposição à

morte. Isso seria, ainda, uma aposta em inscrever-se no mundo por meio das

palavras. Mas, seria mesmo necessário o enfrentamento, a aniquilação da morte

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para a inscrição da palavra? Não. Há, a despeito desta consideração, entretanto,

aqueles que não desejam permanecer na obra, mas nela transformar-se,

desaparecer, cooperar com a transformação universal – atuar sem nome. Uns e

outros querem que a morte seja possível. Ela é vislumbrada para ser alcançada ou

para ser mantida distante. De qualquer maneira, as diferenças são mínimas e se

inscrevem em um mesmo horizonte – estabelecer com a morte uma relação de

liberdade – poder morrer. Não apenas ser mortal, mas tornar-se mortal. Fazer

possível a morte é a arte necessária para a superação da fatalidade da morte. Ser

duas vezes mortal. O homem deve ser duas vezes mortal, soberanamente,

extremamente mortal, declara Blanchot.228 Essa é a vocação humana. Na dimensão

humana da vida, a morte não é o que está dado. A morte é o que há que se fazer.

Ela é uma tarefa, aquilo do qual nos apoderamos ativamente, o que se faz fonte de

nossa atividade e nosso domínio.

E, portanto, cabe perguntar se, entre as formas de morte, haveria uma mais

humana, mais mortal. Não seria essa morte, por excelência, a morte voluntária?

Blanchot pensa que não. Ele afirma haver uma contradição fatal no suicídio. Esta

contradição se evidencia na atitude afirmativa e arrogante do próprio suicida que ao

se matar, diz: me nego ao mundo, não atuarei mais. E, sem dúvida, quer fazer de

sua morte um ato, quer atuar suprema e absolutamente. O que se desespera não

pode confiar em morrer nem voluntária nem naturalmente: lhe falta tempo, lhe falta o

presente no qual teria que apoiar-se para morrer. A debilidade do suicídio reside em

228 BLANCHOT, 1992, p. 88.

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que quem o realiza é, todavia, demasiado forte, manifesta uma força que só convém

a um cidadão do mundo. O que se mata é o grande afirmador do presente.

É neste sentido que projetar matar-se, ou seja, prever e antecipar a morte

parece tolice. Esse aparente projeto se dirige a algo que nunca se alcança, a um

objetivo impossível, e esse final não pode considerar-se final. Mas isso equivale a

dizer que a morte se subtrai ao tempo do trabalho, a esse tempo que, sem dúvida, é

a morte ativa e capaz. Isso equivale a pensar que há uma dupla morte e que uma

circula entre as palavras possibilidade e liberdade e tem como extremo horizonte a

liberdade de morrer e o poder de arriscar-se mortalmente; a outra é o insaciável, o

que não posso alcançar, que não está ligado a mim por nenhum tipo de relação, que

não chega nunca àquilo que me dirijo.

Uma morte ativa e capaz é o lado fascinante e superficial do suicídio. O

aspecto enganoso deste tipo de morte consiste em conduzir até a morte que está no

mundo à disposição tendo por meta alcançar a outra morte, sobre a qual não se tem

qualquer poder, que não tem qualquer poder sobre si mesmo, porque não tem nada

a ver comigo ou com quem quer que seja. Uma morte que ignora qualquer um. Uma

morte que se configura na intimidade vazia desta ignorância. A contradição do

suicídio está em que, de algum modo, alguém quer se matar para que o futuro não

tenha segredos, para fazê-lo claro e legível, para que deixe de ser a obscura reserva

da morte indecifrável229. O projeto de matar-se revela-se, deste modo, impossível,

229 Deleuze, em Proust e os signos, apresenta uma belíssima investigação sobre os tipos de signos e o que exigem para sua decifração: “tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação dos signos de hieróglifos. [...] mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes signos não são do mesmo tipo, não aprecem da mesma maneira, não podem ser

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posto que quem quer morrer, não morre, perde a vontade de morrer. Este entra na

fascinação noturna donde morre em uma paixão sem vontade. Prepara-se, atua-se

na mira do gesto último que pertence, entretanto, à categoria normal das coisas que

se fazem. Este gesto não ocorre com vistas à morte, mas a um fazer próprio à vida.

O suicídio acaba tornando-se, deste modo, um estranho e contraditório

empreendimento. Ele torna-se um esforço por atuar onde reina a imensa

passividade, exigência que quer manter as regras, impõe a medida e fixa um

objetivo, em um movimento que escapa de toda intenção e de toda decisão. Prova

que parece tornar a morte superficial ao fazer dela um ato igual a qualquer ato, uma

coisa que se faz, mas que também dá a impressão de transfigurar a ação.

A morte voluntária, por vezes entendida como uma loucura, outras vezes

tomada como um direito absoluto pode ser pensada, ainda, como uma loucura

necessária à integridade razoável e que, ademais, parece ter êxito com freqüência,

quando premeditada. Mas é notável que estas características se apliquem também a

outra experiência, aparentemente menos perigosa, mas talvez não menos louca: a

do artista. Não porque ele faça obra da morte, senão porque pode dizer-se que ele

está ligado à obra da mesma estranha maneira em que está ligado à morte o homem

que a toma como fim. Isto é evidente. Ambos projetam o que se subtrai a todo

projeto, e se têm um caminho, não têm um fim, não sabem o que fazem. Os dois

querem firmemente, mas estão unidos ao que querem por uma exigência que ignora

sua vontade. Os dois tendem a um ponto ao qual devem aproximar-se com

decifrados do mesmo modo, não mantém com seu sentido uma relação idêntica.” 1: DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 5.

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habilidade, com trabalho, com as certezas do mundo, e, sem dúvida, esse ponto não

tem nada a ver com semelhantes meios, não conhece o mundo, permanece

estranho a toda realização, arruína constantemente toda ação deliberada. Como ir

decididamente até algo que não se deixa localizar?

Neste tipo de morte há um salto invisível, mas decisivo, não no sentido de que

pela morte se passe ao desconhecido, que depois da morte algo mais além exista.

Não. O ato mesmo de morrer é que é um salto. O ato de morrer é que é a

profundidade vazia do mais além. É o fato de morrer que supõe uma inversão radical

pela qual a morte, que era a forma extrema de poder, não apenas se converte no

que despoja, mas também no que tira o poder de começar e ainda de terminar. E,

além disso, se converte no que não tem relação direta com ninguém, não tem

qualquer poder sobre um ou outro. Uma morte assim é desprovida de toda

possibilidade, é a irrealidade do indefinido. Esta inversão radical não pode ser

pensada, nem sequer concebida como definitiva. Uma morte assim não é nem

mesmo a passagem irreversível mais além da qual não haveria retorno, posto ser o

que não se realiza, algo interminável, incessante.

A obra de arte busca a morte como sua origem, não como seu fim. A morte

voluntária, ao contrário, nega esta busca e nega-se, ainda, a ver a outra morte, a

morte que não se capta, que não se alcança. É preciso, por meio da arte, excluir a

morte visível para que a outra morte, invisível, seja buscada. A expressão “eu me

mato” sugere um desdobramento do “eu” na plenitude de sua ação e de sua

decisão. Este “eu” capaz de atuar soberanamente sobre si, sempre capaz de

alcançar-se, na verdade alcança outro, de modo que quando se dá à morte, talvez

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possa se dar, porém não pode afirmar quem a recebe e tampouco se é a sua própria

morte a morte dada. A obra negligencia se submete a uma prova absoluta, a um

risco de onde tudo é arriscado, risco onde se joga o ser, de onde nada se subtrai, de

onde se joga até mesmo o direito, o poder de morrer.

No conto ‘A Menina de Lá’, Nhinhinha reúne infância e morte na maneira

diminuta, concisa e intensa de viver. O conto se inicia mostrando a estranheza dos

demais com relação à menina – uma estranheza adulta diante da meninice de

Nhinhinha. Uma estranheza paradoxal à intimidade manifesta da menina com as

outras formas de vida ao seu redor. Animais, plantas e fenômenos da natureza

integram-se de forma harmônica à vida rotineira da menina. Sua vida é, contudo,

estranha ao jeito de viver das pessoas do lugar. Nas palavras de Blanchot, a menina

já estaria mesmo morta para aquele jeito de viver próprio dos adultos que a

cercavam. Algum tipo de ruptura já antecipava sua morte. É como se Guimarães

Rosa desse por adiantada a necessidade de sua morte diante da relutância da

menina em se adaptar ao modo de vida familiar. Se continuasse viva, a menina teria

que operar milagres. Se crescesse, a menina teria que fazer acontecer o que era

considerado impossível pelos adultos. Se viesse a ser o que esperavam que fosse, a

menina seria sacralizada e, cada vez mais, distanciada da humanidade que a

conectava tão fortemente à vida infantil que levava.

Deleuze, em declaração a Claire Parnet, no início da filmagem do que seria

posteriormente divulgado como seu abecedário afirma, sobre sua morte, algo que se

avizinha bastante da acepção de uma segunda morte como uma infância a irromper.

Em suas palavras:

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Você escolheu um abecedário, me preveniu sobre os temas, não conheço bem as questões, mas pude refletir um pouco sobre os temas... Responder a uma questão, sem ter refletido, é para mim algo inconcebível. O que nos salva é a cláusula. A cláusula é que isso só será utilizado, se for utilizável, só será utilizado após minha morte. Então, já me sinto reduzido ao estado de puro arquivo de Pierre-André Boutang, de folha de papel, e isso me anima muito, me consola muito, e quase no estado de puro espírito, eu falo, falo... após minha morte... e, como se sabe, um puro espírito [...] não dá respostas muito profundas, nem muito inteligentes, é um pouco vago, então está tudo certo, tudo certo para mim, vamos começar [...]230

O filósofo, acostumado a refletir sobre questões aprofundadas a respeito da

existência, deixa-se levar pela morte. Sabe-se já morto. Sabe que o que o espera é

uma morte primeira, conhecida, antecipada pela doença, alcançável pela ciência,

diagnosticada pelos médicos. Não é a partir desta morte que ele fala. Ele parece já

íntimo de uma segunda morte que, por ser solta, fluida, não obedece a uma ordem

de aparição. Uma segunda morte já chegada. Morto desta segunda morte, feito

mortal, Deleuze consente em falar, simplesmente falar. E, ainda que disposto a

sobrepor em suas palavras, a vaidade de um inteligente pensador a elaborar

pensamentos a respeito do estado de puro espírito, junto a sua lapidada ironia, as

palavras escusas apresentam-se infantis, distraídas e brincam com as letras do

alfabeto.

Então, quase uma criança a brincar, já morto para sua adultez de filósofo e

professor universitário, pela segunda vez, Deleuze fala como se estivesse

apanhando, no ar, trazidas pelo vento, as letras do abecedário. Com elas ele inventa

um lindo brinquedo de pensar. E, assim, ao brincar com o brinquedo recém-criado,

uma relação infantil com seus próprios conceitos começa a emergir. De uma forma

leve, ele vagueia, retoma idéias, exemplifica pensamentos e já tendo se desculpado

230 DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista a Claire Parnet, 1994, s./p..

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pela possível vagueza, deixa-se levar pelas palavras e mostra como este fluxo de

idéias é amplo, movente e elástico. Parece impossível recusar o convite a uma

segunda morte. Sua fala, a fala de um morto é um apelo à morte. Um apelo à morte

de um leitor que já sabe ler. Um leitor que já o conhece, que já o estudou, que se

pensa também filósofo, também escritor, também acadêmico, também profundo

conhecedor, inteligente e astuto. Um desafio a seus críticos e comentadores. É

como se Deleuze gritasse aos deleuzeanos: morram! Não vêem que eu mesmo já

morri?

Uma segunda morte anima Deleuze, é ele mesmo quem o afirma. É o que o

agita e o faz realizar aquilo que lhe era antes inconcebível. É o que dá ânimo a uma

infância que emerge do próprio trabalho intelectual já realizado por ele. No momento

em que fala, simplesmente fala, Deleuze atinge uma simplicidade infantil, fruto de

um processo de lapidação no qual o que era excessivo foi retirado. Ele chega a uma

infância que lhe é própria. Ele, o filósofo que criou o conceito do devir-infantil. Ele, o

pensador que tanto se ocupou da infância do dizer. Ele, o ensinante assumido,

modifica sutilmente os princípios metodológicos do seu dizer. Brilhantemente ele

desloca seu jeito de pensar e, prestes a terminar uma vida adulta, dirige-se a uma

infância. As imagens do vídeo no qual aparecem sua voz, seus gestos e um ou outro

detalhe do cenário, parecem estar ali para atestar sua morte. É como se as imagens

tivessem sido feitas para assegurar que ele morrera, que seu corpo acabara como

qualquer um, como cada um de nós está fadado a morrer uma morte ordinária,

trivialmente verificável. De outro modo, como sabê-lo morto? Se Deleuze permanece

a falar em seus textos, se segue animando idéias, se continua inconcluso, como

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dizê-lo morto? A qual de suas mortes nos referimos?Apesar da cláusula, Deleuze

permite, mesmo antes de sua primeira morte, a publicação da entrevista. Ele parece

ter aprendido a ser mortal antecipando o encontro com a morte, ainda em vida.

Simplesmente falando Deleuze parece ter chegado a uma segunda morte, onde o

aguardava uma infância, uma alteração interior, um estranhamento de dentro. Por

isso sua fala parece mesmo póstuma. Ele já estava morto. Na letra P ele afirma: Que

alegria ter feito este... Pronto! Póstumo, póstumo! Deleuze, morto de uma morte

contente, deixa um abecedário póstumo. Sua segunda morte, esta que o leva a

simplesmente falar, dialoga com João Cabral de Melo Neto: o morto mais se

inaugura do que morre231.

6.4 INFÂNCIA, VOZ DA MORTE

A morte de Nhinhinha não é descrita como uma morte penosa, sofrida ou

penitencial. Nhinhinha apenas desaparece. A menina deixa de estar naquele lugar

onde habitava, num movimento necessário, numa ausência contínua, já existente em

seu modo de viver. A potência da negação da vida que vivenciava em comunhão

com outras formas de vida a faz desaparecer. Sua desaparição pode ser

considerada a resistência mesma da infância. É como se Rosa criasse, por meio da

231 Verso do poema Duas das Festas da Morte, de João Cabral de Melo Neto. In: MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968, p. 8.

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personagem menina, com sua morte, o entendimento da falta de sentido das

expectativas adultas lançadas sobre ela. A injustiça das cobranças adultas para a

realização de suas necessidades imediatas, bem como a insensata projeção

religiosa após sua morte. Tudo o que o fim manifesta vem à tona com sua morte.

Com sua desaparição, aparece o egoísmo das soluções possíveis apresentadas

pelos adultos, o imediatismo e a urgência das relações funcionais entre as pessoas,

o modo utilitário de viver que lhe era estranho. Seu desaparecimento revela a

fugacidade de uma vida intensa, da duração do tempo de uma infância, da

efemeridade de uma infância interrompida pelas urgências de um mundo adultizado.

A menina supera a necessidade adulta de soluções práticas para seus

problemas imediatos, colocando um termo à sua vida. Ela não se mata, apenas

deseja, leve e profundamente, a morte. Uma morte verdadeira, um ato verdadeiro.

Rosa não cria uma morte casual ou fortuita para a menina. Sua morte parece tratar-

se de um momento extremo pelo qual uma negação se funda e se realiza – uma

negação que trabalha nas palavras – uma presença na qual se obtém a chance de

não ser. A morte de Nhinhinha expressa um tipo de morte que testemunha um início,

que impõe um limite, que conduz ao ato positivo de uma negação. A morte dessa

menina leva o escritor e o leitor à origem, ao não-ser das palavras, a uma infância da

escrita, lá onde a menina vivia e onde as coisas se inscreviam na estranheza de

suas palavras e no sem-juízo dos sentidos que empregava.

A morte da menina de lá, sua desaparição quase anônima, antes de ser sua

morte, parece constituir-se na neutralidade e impessoalidade da morte de uma

infância qualquer. É como um alerta do autor para o pouco espaço deixado, no

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tempo de viver, à infância. Não é a menina quem morre. Morre um jeito de ser.

Permanece um jeito adulto de fornecer explicações, de justificar ações, de lançar

para o futuro possibilidades redentoras. Quase imperceptível, não fosse a

estranheza causada, a menina passa e passa também uma infância que ela

anuncia.

Rosa medita sobre a morte. Sua meditação, nos dois contos aqui

referenciados, toma a forma de uma menina que morre e de um menino que cresce.

A menina morre, ou seja, materializa uma morte exterior. O menino morre

internamente e cresce na medida em que deixa sua meninice. O menino é

empurrado à ação. Ele é levado por um tipo de movimento que se agita na urgência

vazia das coisas por fazer. A menina é letárgica. Ela possui movimentos lentos e

retardados, não tem pressa, não se agita. Ela sabe esperar, espera até alcançar o

que deseja, seu fim, que vislumbra um retorno ou recomeço. A menina, em oposição

ao menino, deixa de viver, morre, exatamente por prestar atenção à vida, por

desprender-se da cotidianidade das ações práticas em favor do cuidado, calma e

sutileza que as diversas formas de vida lhe exigiam. Nhinhinha expressa o risco de

que uma infância venha a sucumbir por falta de morte, por demasiado domínio da

vida, pelo desejo excessivo de viver.

Se morre232. Portanto, há que se dispor à morte. Uma morte anônima. Um

morrer que surja desta vida. Uma morte qualquer. Se nasce. Há uma infância

232 Blanchot destaca a impessoalidade de uma morte autêntica: “Entonces, hay que partir no ya de las cosas, para hacer posible la proximidad de la muerte verdadera, sino de la profundidad de la muerte, para orientarme hacia la intimidad de las cosas, para ‘verlas’ verdaderamente, con la mirada desinteressada de quien no se aferra a si mesmo, que no puede decir ‘yo’, que no es nadie, la muerte impersonal.” In BLANCHOT, 1992, p. 144.

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qualquer que inaugura a vida. Uma infância anônima. Uma angústia de estar no

mundo, uma busca por entender. O caráter anônimo da infância e da morte

enquanto devires é o que também caracteriza a escrita. Há uma infância, uma morte

e uma escrita que não se sabe, ao certo, até que surja. Uma infância, uma morte e

uma escrita que resistem aos esquemas interpretativos adultos. Essa uma infância,

essa uma morte e essa uma escrita, no entanto, deixam-se narrar.

É a escrita, na forma de uma arte literária, que possibilita o alcance de uma

infância e de uma morte que passam por cada um, que atravessam a vida vez por

outra, que vêm e vão em movimentos ininterruptos, fluídos, recorrentes e insistentes.

É que infância e morte, embora inantecipáveis, apresentam-se alcançáveis. E é a

linguagem literária que, em sua mobilidade, deixa que a infância e a morte instalam-

se no porvir de seus sentidos. Escrever transforma. Transformada em linguagem, a

morte alcança figurações capazes de gerar nascimentos de outros modos de dizer.

É deste modo que morte e leveza se unem na personagem menina de Rosa. Morte e

escrita marcam, deste modo, intervalos nos quais infâncias da escrita podem

emergir. Em suas diversas dimensões, a morte constitui uma experiência

privilegiadamente intensa, capaz de engendrar escritas novas pelo impulso de vida

que paradoxalmente provoca.

Nhinhinha, uma criança curiosa que vê o mundo pela primeira vez e, portanto,

o vê e o diz de forma própria, escapa ao lugar comum do ver e do dizer. A linguagem

considerada comum lhe é desconhecida, estranha. É assim que a menina chega à

linguagem poética, dada a multiplicidade de sentidos no que vê e diz. Suas palavras

expressam os desejos autênticos de expressão, seu jeito infantil de lidar com a vida.

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É por isso que a expectativa frustrada da família pode vir a coincidir com a frustração

do leitor que, desatento, espere pela completude de um desfecho esperado para a

menina que evite a morte, há muito estigmatizada como punição. Rosa parece jogar

com a adultez do leitor e parece sugerir outra possibilidade de entendimento que

não passe pela recorrente idéia de injustiça associada à morte. É como se o autor

evidenciasse, na leveza da morte de Nhinhinha, a liberdade de falar de perdas sem

o peso do sofrimento. Como numa brincadeira parecida com aquelas que a própria

menina fazia com as palavras, o autor sugere a reinvenção da realidade, outro

nascimento, posterior a uma morte necessária.

Uma menina, uma menininha, Nhinhinha, a expressão mais acurada de que

em momentos fugidios coisas se realizam e se destroem, é a personagem principal

do conto de Rosa. Com ela, Rosa alcança a pluralidade de eventos, a vida em suas

múltiplas manifestações, rápidas e deslizantes. A menina incorpora um impulso de

vida que exige, por força da carga de sentidos que inaugura, uma linguagem

potencializadora dessa força nas palavras que utiliza, no jeito de dizer. A arte

literária rosiana, humilde diante da vida, numa aparente resignação perante os

acontecimentos, exprime o fracasso da procura de um sentido definitivo e certo para

as coisas. É do seu interior que a estória da menina de lá, a estória de uma criança

que habitava um lugar muito distante daqui, característica comum aos lugares

imaginários, por força da potência expressiva da linguagem literária utilizada por

Rosa, fala daquilo que não se sabe, da morte. Esta estória fala também de um modo

de ser que não pode ser dito regularmente. Ela fala, ainda, de uma maneira falseada

do dizer que, em vez de ser mentirosa, é autêntica. Assim é a linguagem literária. Ao

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descolar o significante do significado, ela deseduca a percepção e amplia os canais

de comunicação. É deste modo que as atitudes infantis da menina são valorizadas e

destacadas por meio de recursos estilísticos. Distanciando-se do que é considerado

normal por meio da expressão literária, Rosa utiliza-se de um personagem infantil e

explora mais livremente as incongruências e os paroxismos que sua sensibilidade

exige serem expressos por meio da criatividade lingüística. A fugacidade e a

intensidade de vida da menina ilustram a idéia de que existe um constante estar a

morrer que dá autenticidade a um estar vivo.

As crianças de duas das Primeiras Estórias, aqui apresentadas, parecem

ensinar de modo não didático, um tipo de convivência com os intervalos, com os

entre-tempos e entre-lugares tão propícios a aprendizagens. Na infância do que

aprendem, sem serem ensinadas, elas se dão conta do que acontece e as fazem

aprender. Tanto a menina quanto o menino vivenciam experiências de

aprendizagem sutis, quase sem se dar conta do que está a ocorrer. É o escritor

quem sugere, levemente, por meio de indícios, ao leitor, este possível

entendimento. Afinal, é Rosa quem realiza, por meio da descrição minuciosa das

percepções infantis, a transmutação na qual as coisas se transformam, se

interiorizam. E na interiorização das coisas, Rosa lança seus personagens, fazendo-

os interiores a eles. Seja no caso do passarinho que desapareceu de cantar, seja na

aparição do vaga-lume que possuía intervalos de luz, as experiências da menina e

do menino expressam um aprendizado do intervalo, de um espaço desconhecido, de

uma obscuridade que, ainda assim, não exprime uma privação. Esses intervalos são

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acessíveis, mas só podem ser alcançados infantilmente. Não se deixam ensinar,

mas aprender.

Talvez seja preciso maior atenção à vida, e também à morte nela contida.

Mais dedicação à morte presente em tudo o que perece, na fragilidade das coisas

vivas, na rapidez com que desaparecem. Em vez de tanta dedicação à tentativa de

permanência e perpetuação, maior observância aos desaparecimentos, às

ausências, aos movimentos de vida e morte. Assim, tanto os fluxos de vida quanto

os fluxos de morte precisam ser narrados. Assim se fazem necessárias palavras que

expressem presença e também ausência, crescimento e também caducidade e

desaparição. Um tipo de palavra e uma maneira de escrever que dêem conta da

obra enquanto origem, não como um produto ou fim. Uma escrita que dê conta da

infância e da morte não como princípio e fim, mas como movimentos do existir. Dar

mais atenção à vida talvez exija fazer da angústia que tanto a infância quanto a

morte causam, na medida em que não se deixam capturar, um aprendizado da

incerteza e uma decisão. A decisão da busca de um tipo de palavra justa a esta

mesma angústia.

Na busca de uma escrita autêntica, a ânsia de dar legitimidade a uma infância

e a uma morte próximas. Se a morte deixa de ser apenas um fim e a infância passa

a ser mais do que o início de algo maior, ambas, infância e morte podem ser

percebidas na simultaneidade dos acontecimentos. Sem a preocupação nervosa por

um fim, distante da necessidade de ver tudo terminado, talvez a linguagem literária

possa ser melhor acolhida pelo aprendiz. Não ver mais que a morte ou ver apenas a

vida reduz a visão do aprendiz. Seja qual for o tipo limitante de visão, o que se vê se

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transforma em objeto fechado, terminado, impregnado da preocupação por um fim

que se busca ou do qual se esconde.

É no momento da morte que a vida se revela na sua totalidade e em plena

significação como parte íntegra de um devir cósmico. É esta uma fulguração da

morte que Rosa parece apresentar por meio do desaparecimento ou “encantamento”

de Nhinhinha. Ele precisa da menina como um personagem conceitual, como um

modo de narrar que transfere o saber da vivência inserida na temporalidade da

natureza, no fluxo existencial das coisas. A menina incorpora uma existência aceita

com tranqüilidade. Nela cabem vida e morte. Nela coexistem sensações, emoções,

sentimentos e pensamentos que culminam na morte com a qual a menina já se

relacionava desde cedo, a partir de sua estraneidade.

O que se vê em Guimarães Rosa é o aumento da expressividade da língua

por meio de uma “insolentia” que beira o escândalo da genialidade. Ele emprega as

palavras de modo singular, por vezes insólito. Contudo, o que se desdobra de sua

escrita original não é a petulância de uma forçada maestria, mas a sensação de uma

estranha potência, como uma voz inaudível, como uma voz da morte. Nhinhinha

parece ouvir esta voz e a ela responder por meio de sons audíveis embora sem

significados para quem a ouve. Sua fala, aparentemente absurda, talvez seja a voz

das palavras sensatas e coerentes, necessariamente mortas.

A menina se comunica imediatamente com tudo por meio de suas

percepções. Ela não precisa da coerência nem do bom senso das coisas bem ditas.

Rosa, por meio dela, leva o leitor a apreciar as mesmas sensações auditivas por ela

experimentadas. Sua linguagem mais parece um imenso léxico sonoro, repleto de

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vozes ininteligíveis, apreendidas numa ordem de ocorrência distinta da usual. Uma

sonoridade que parece advir de relações mais livres e leves do que as relações

racionais de sentido e significação.

Os personagens infantis de Rosa aqui destacados brincam com o tempo, com

o espaço e com a linguagem adulta que os distingue. Há um jogo lúdico que desafia

a separação cronológica das atividades adultas e as experiências das crianças. É

como se a meninice dos dois, animada por um sopro de voz, levasse a menina a

brincar com a sonoridade das palavras e o menino a escutar a voz da ave. É assim

que Rosa parece associar seus pensamentos aos sons que seus personagens

ouvem. Deste modo ele atinge uma harmonia que se aproxima da música, bem mais

do que de um encadeamento lógico de idéias.

Não se trata, contudo, de um acaso, mas de uma indeterminação. Rosa

escreve numa linguagem poética, cuidadosa e atenta, mas fluida. Seu jeito de

pensar não está determinado por uma razão esclarecedora. Ao contrário, sua

inventividade poética o libera do sentido unívoco e o lança num fluxo de vozes entre

os sentidos do que é dito. Não há, portanto, um sentido orientador, mas um

emaranhado de sons que seus personagens infantis dotam de sentido.

Um vazio de sentido constrangeria os modos organizados de entendimento.

Mas há que se pensar neste vazio enquanto um vazio cheio de vida, engendrador de

sentidos. O vazio de uma voz ainda não transformada em palavra. Uma voz da

morte que prenuncia uma infância do dizer, ainda que para isso seja preciso voltar

aos sussurros, grunhidos, assovios e cantos. Um passo que se dá para trás. A perda

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das palavras já mortas marca, afinal, um vazio a ser preenchido pelo recomeço do

dizer. Morte e infância.

6.5 INFÂNCIA, PARAGEM DISTANTE

A menina de lá, em sua infância distante, lá, põe em questão o espaço da

infância, um lócus, uma localidade na qual o fluxo de infância possa realizar uma

paragem. Uma duração, mas também uma espacialização, necessárias para que

uma infância possa ser identificada, inscrita, narrada. Por algum instante, em algum

lugar, uma infância precisa tomar corpo, se encarnar. A obra literária parece ser

esse lugar e também esse tempo. É ela que permite uma estadia provisória no

espaço entre o aqui e o lá, entre o interior e o exterior, um espaço fronteiriço entre o

real e a ficção.

O menino, entre as margens da alegria, expressa, na arte literária de

Guimarães Rosa, a alegria e a tensão de um começo infinito e de uma morte

também infinita. O menino sabe que morre em momentos breves e profundos, em

rupturas radicais com entendimentos anteriores a cada morte. Contudo, ele

acompanha a morte de plantas e animais que não sabem da morte, que não a

advinham, que não se angustiam. Esse aprendizado da morte é que o faz suportar a

expectativa de uma vida limitada e frágil que carece ser cuidada, que precisa ser

aprendida. Paradoxalmente, parece ser a proximidade com a morte evidenciada em

plantas e bichos que o emancipa da morte, que fortalece sua vida, que o faz

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perceber a alegria. É o vaga-lume a figura da coexistência paradoxal da luz e da

obscuridade, da presença e da ausência. Entretanto, mais do que isso, o vaga-lume

é ainda o interstício, o intervalo entre uma coisa e outra. Os fatos que haviam

deixado triste o menino, inalterados, passam a constituir sua experiência, entretanto

a vida se faz novamente alegre. Não é que tenha havido qualquer retrocesso, que o

já feito tenha se modificado, mas é que uma saída parece ter sido encontrada pelo

menino. Ele parece ter inventado uma linha de fuga capaz de retirá-lo dali, daquele

tempo circunscrito pelas circunstâncias dos fatos.

Ir mais longe parece ser um comando de Rosa ao menino e à menina dos

contos. O menino viaja de avião para um local desconhecido, onde uma cidade está

por vir. A menina viaja em seus pensamentos até as alturas de urubu não ir. E o que

eles encontram tão longe? Um distanciamento. O afastamento necessário da relação

de significações que a familiaridade de um lugar engendra. Ainda mais afastados de

onde estavam, é que menino e menina conseguem escapar à vida corriqueira dos

demais, a um tipo de realidade do lugar. É o que se apresenta de forma tão

pertinente nos comentários de Blanchot decorrentes das palavras de Virginia Woolf:

É um erro acreditar que a literatura pode ser colhida ao vivo. É preciso sair da vida... É preciso sair de si e se concentrar, o máximo possível, num único ponto...”; Reconheço que é exato, que não tenho o dom de ‘realidade’. Eu desencarno deliberadamente, até certo ponto, pois desconfio da realidade... Mas para ir mais longe.233

É o próprio Rosa que parece desencarnar. Ele precisa ocupar o lugar do

menino na viagem e se distanciar de uma realidade que o situa num corpo adulto de

233 BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 146.

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escritor. Rosa, diplomata, viajante por ofício, só assim se faz capaz de alcançar a

sensação primaz de espanto e admiração diante de tudo o que ali ocorria pela

primeira vez, a começar pela viagem de avião. É também ‘desencarnado’ que ele

chega até a menina, numa paragem distante, numa serra inventada por detrás dele

mesmo. Lá onde foi parar após ter saído da vida.

Nesta paragem distante onde Rosa encontra a infância de sua escrita,

encontra-se também a meninice de seus personagens infantis. Uma meninice

inventada num lugar longínquo, bem longe dos adultos que por demais o

circundavam na ‘realidade’ biográfica de sua infância:

Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada.(...) Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.”234

A afirmação da vida que não se submete aos valores do mundo adulto é a

forma infantil encontrada por Rosa de questionar o modo convencional de

entendimento das coisas. No caso de Nhinhinha, a interdição adulta aos desejos da

menina é rejeitada. O desembaraço e a convicção da menina, formas de resistência,

são interpretados pelos adultos como um desvio, como afirmação do sem-juízo de

sua fala ou mesmo de sua santidade. A diferença entre a lógica dos adultos e a

lógica da menina, acuada pela pressão das circunstâncias vividas pela família,

234 In: ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1972, p. 15.

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confronta valores e rompe o automatismo rotineiro das ações. Enquanto seus pais

vislumbram um futuro beneficiado por seus dons excepcionais, a menina vivencia

infantilmente o presente, sendo afetada, vivenciando sensações móveis que a levam

a desejar a morte, a criar linhas de fuga. Uma menina de lá, distante, a um só tempo

imóvel e inalcançável. Lenta nos movimentos corriqueiros, ágil e astuta no trato com

as manifestações de vida ao seu redor. Essa sensação de estranhamento, comum

aos dois contos em questão, quebra o automatismo dos personagens e introduz a

mesma sensação no leitor. Tanto a menina quanto o menino, avessos ao uso

produtivo do tempo, se detém em coisas ínfimas, em detalhes despercebidos pelos

adultos à volta. As indagações de ambos consubstanciam transgressões ao

ordenamento das coisas, do tempo, do espaço, enfim, da vida. Há disparidades

entre as sensações que os afetam e a linearidade do passar do tempo adulto. Por

vezes o tempo é menor, outras vezes, maior que os acontecimentos. É assim que a

duração da aparição da ave se alonga na elasticidade de um tempo que se estica.

Mas também ocorre o oposto, o tempo se torna menor, agiliza os acontecimentos,

apressa tudo e impossibilita a apreensão. Um tempo infantil instala-se nas primeiras

estórias, um tempo carregado de idas e vindas, um tempo desordenado e

brincalhão, solto e leve.

Essa uma infância figurada pela menina e pelo menino não é aquela infância

comumente associada a um tempo passado a ser rememorado. Não se trata de

lembranças. Não é a uma infância passada que se retorna. Há uma infância ainda

não vivida pelo personagem que passa a ser narrada, um devir-criança do escritor.

As crianças dos contos de Rosa não figuram experiências incomuns devido à faixa

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etária na qual se encontram. Elas atravessam de forma presente e intensa uma

infância. Não é porque sejam crianças, mas porque se movimentam em blocos de

infância que inauguram formas de entendimento. Embora a estrutura dos contos siga

a forma convencional do encadeamento de fatos, as personagens infantis vivem

acontecimentos, devires, um tempo outro povoado por fluxos que os atravessam.

Cada instante vivido pelas crianças é único, a despeito da vida adulta seguir o curso

dos fatos que se dirigem a um fim. A transgressão do tempo sucessivo pelas

crianças é o que contraria a linearidade estrutural do conto.

É no momento da morte que a vida se revela na sua totalidade e em plena

significação, como parte íntegra do devir cósmico (A menina de lá). A narração

transmite o saber da vivência inserida na temporalidade da natureza, no sucesso do

fluir existencial, vivência aceita com tranqüilidade e ressignificação culminada na

morte com a qual se relaciona e dialoga desde o seu início. Muitos pensamentos

derivam-se dos contos das Primeiras Estórias, em especial do conto ‘A Menina de

Lá’, em respeito à morte. Dado o desaparecimento prematuro da menina e o

malogro das expectativas engendradas pelos pais, a narrativa parece inacabada.

Rosa parece propositadamente jogar com um suposto leitor que tentará, assim como

os demais habitantes daquele lugar distante, personagens da estória, encontrar

explicações para o jeito de ser incomum da menina. A referência mais próxima a

uma possível alusão, dadas as expressões religiosas típicas da realidade sertaneja

focalizada por Rosa, seria a imagem da Virgem Maria, mãe de Deus, segundo a

tradição bíblica cristã. Imagem emblemática da santidade feminina, materna e filial, a

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virgem considerada imaculada por ter estado livre de qualquer pecado carnal, seria a

figura alusiva primeira.

Traduzida para uma linguagem cristã, o desfecho da estória de Nhinhinha, a

menina de lá, parece fazer necessária a morte da menina enquanto representação

de sua santidade, o que explicaria sua relação incomum com a vida. Emblema

também da ingenuidade e impureza infantis, a menina, facilmente associada à

imagem da virgem, seria sacralizada pelos demais personagens. Neste sentido, sua

morte se constituiria em algo além da sua vida terrestre e humana, a possibilidade

de passagem para o outro lado da vida. A morte, acesso definitivo para um lugar do

qual se está afastado, arbitrária e injusta, seria, contudo, necessária. Este lugar,

inacessível a qualquer um, seria, entretanto, já conhecido. Dele se sabe. Sobre ele

se deve saber a partir do que está escrito a seu respeito. Na impossibilidade de

acesso a este lugar, há que se contentar com sua definição e aceitá-la enquanto

verdade estabelecida.

Entretanto, a escrita de Rosa, na ambigüidade própria da linguagem literária,

aguçada por sua extrema habilidade no uso da língua, permite pensamentos

diversos, desviantes de um entendimento religiosamente cristão. Pode ser que a

menina não seja a representação da virgem, mãe de Deus, santa e imaculada. Pode

ser que seus dons, considerados sobrenaturais, sejam expressão de uma sintonia

afinada com a própria vida terrestre e humana, afetada pelas coisas todas da vida

em suas mais diferentes manifestações. Sua suposta santidade poderia, então, ser

compreendida como extrema sensibilidade, atenção e cuidado à vida mesma.

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O modo de apreensão da personagem que a relaciona a uma entidade divina

se baseia na concepção prévia da santidade infantil da criança e da santidade

virginal da mulher assexuada. Esta visão converte a menina em um objeto, em uma

realidade objetiva a serviço de uma idealização. A menina, percebida na santidade

explicativa de seus dons, traduziria o “lá” do advérbio utilizado por Rosa, na

indicação de um espaço divino, distante do âmbito da vida humana. Este lá lançaria

a infância da menina e sua relação infantil com as coisas para um além da vida. Em

vez de potencializar a vida, este entendimento estaria a inibir e afastá-la de cada ser

humano na medida em que projeta para um além da vida, para um espaço divino, o

ato criador, a infância das coisas.

Na busca de um desvio a esta função explicadora da linguagem cristã, por

meio da polissemia própria ao texto literário, irrompem entendimentos alternativos da

mesma estória. Assim sendo, pode-se pensar a morte da menina não como um fim

ao qual cada um e todos estariam condenados a ter enquanto acesso exclusivo a

uma vida posterior previamente identificada. A morte de Nhinhinha poderia ser

concebida como mais uma das mortes que a menina vivenciava na intensidade da

vida que dela fluía e na qual se lançava em fluxos contínuos e coexistentes de vida e

morte nos diversos planos de sua existência. As mortes ilustradas nos

desaparecimentos que atestava, ao viver tão próxima a outras formas de vida, é que

a faziam perceber, nos movimentos de aparição e desaparecimento, os fluxos

incessantes de vida. Este movimento que a fazia viver e morrer constantemente,

também a impulsionava a mais vida, a mais morte. Tanto que ela chegou a desejar

uma morte maior, na qual ela pudesse alcançar um período mais longo de

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desaparecimento. Ela vivia, aceitava a vida, cuidava da vida e convivia com a morte.

Ela já vivia uma outra vida, embora no mesmo lugar dos demais. Esta outra vida,

estranha aos demais personagens do conto, era vivida junto a eles. A menina não

estava apartada, em uma além vida. Ao contrário, ela parecia se enraizar na vida,

penetrar suas origens e, junto a ela, originar palavras e coisas. É que a menina

falava a mesma língua dos demais, embora dissesse coisas diferentes. Ela possuía

um corpo, mas ele era atravessado por sensações incomuns e mutantes que se

moviam conforme seus desejos. Rosa, através de Nhinhinha, personifica o que

Blanchot dizia ao comentar a obra de Rilke: Aceder ao outro lado seria, então,

transformar nossa maneira de ter acesso235. A maneira, não o lugar, encontra-se em

destaque neste tipo de entendimento. Pensar diferentes modos de acesso e elaborar

travessias era o trabalho de Rosa, o que o aproxima tanto da afirmação de Blanchot.

A menina parece ter encontrado o outro lado desde este lado, o lado daqui.

Ela não parece ter, com a morte, se afastado mais do que ela já estava afastada,

estando aqui. A menina era, a um só tempo, o aqui e o lá. Sem divisões, sem a

apartação de mundos terrestres e divinos. Nhinhinha vivia em comunhão com as

coisas e com as outras formas de vida que encontrava. Ela fazia coincidir palavras e

coisas, sentimentos e atos. Nela, a ação se desdobrava do que se dizia. É como se

Guimarães Rosa, artífice da palavra, tivesse inventado uma menina capaz de

encarnar a força expressiva da palavra na potência geradora do que afirma. A

vitalidade das palavras que expressam genuinamente os desejos humanos estaria,

em Nhinhinha, abrigada. Na menina, a palavra poderia habitar. Nela, a palavra se

235 BLANCHOT, 1992, p. 125. Tradução livre da Autora.

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manteria viva, ainda que, para tanto, tivesse que expressar mortes várias e

muitas236.

Comparada ao escritor, a menina reuniria em si, em sua maneira de ser, na

autenticidade inovadora de seu sem-juízo, o encontro com a palavra lá em seu

nascedouro, na infância do dizer. Não uma palavra comunicante qualquer, mas a

palavra engendradora de sentidos, condensadora do ser poético. A palavra que se

põe à prova no limite extremo de expressar os sentimentos mais íntimos, as idéias

mais originais, as sensações mais indizíveis. A palavra móvel, capaz de se deslocar

levemente, de deslizar entre o dentro daquele que a pronuncia e o fora daquilo que

externaliza. Uma travessia verbal em busca de uma mais justa expressão da vida e

da morte. A procura pela palavra enquanto matriz poética capaz de dizer o mundo. A

menina ou o escritor estariam a traduzir, em forma de conto, uma densa prospecção

no fluxo das palavras, na trama da escrita, no enredo das coisas vividas, daí fazendo

ressurgir, de modo outro, expressões de vida transitórias, abertas, labirínticas. Em

vez da morte em vida dos seres comuns, da rotina e mesmice do que já está posto e

dito, uma maneira incomum de viver e de dizer a vida por meio da morte. Morrer sem

perder a vida - é o que fazem a menina e o menino.

236 Guimarães Rosa combina, numa cadeia movente, vida e morte, no inicio de seu ponto intitulado Páramo: “contudo, às vezes sucede que morramos, de algum modo, espécie diversa de morte, imperfeita e temporária, no próprio decurso desta vida. Morremos, morre-se, outra palavra não haverá que defina tal estado, essa estação crucial. É um obscuro finar-se, continuando, um trespassamento que não põe termo natural à existência, mas em que a gente se sente o campo de operação profunda e desmanchadora, de intima transmutação precedida de certa parada; sempre com uma destruição prévia, um dolorido esvaziamento; nós mesmos, então, nos estranhamos.” In: ROSA, João Guimarães. Estas Estórias. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 261-2.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso.237 Não basta viver. É necessário pensar. Mas o que é o pensar? Pensar é deixar-se ser tomado pela morte como sentido do vigor de Eros.238

INFÂNCIA POR VIR

Assumir a existência como uma obra de arte é tentar dialogar com o sensível.

As artes, entre elas a arte literária são, neste sentido, a melhor expressão de um

pensar sensível. Um modo de pensar capaz de conciliar cognição e sensibilidade.

Um jeito de dar sentido à existência em bases intelectivas e emotivas. As obras,

resultado do feitio humano, atravessadas pelo aspecto sensível do pensar,

propiciam uma leitura e uma inscrição no mundo. As obras são, portanto, infâncias

de um pensar, infâncias de um sentir.

Autores como Guimarães Rosa e Gilles Deleuze provocam este pensar,

interpelam os sentidos, propiciam maiores e mais intensas experiências de

aprendizagem do humano. Não necessariamente ensinam, embora provoquem

aprendizados. É que ao criar, eles nos impelem a fazer o mesmo. Então tornamo-

nos escritores com aqueles que sabem da arte de escrever. Fazemo-nos pintores

com aqueles que possuem a arte de pintar. Transformamo-nos em músicos com

237 ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas, p.67. 238 CASTRO, Manuel Antônio de. Grande Ser – Tao: diálogos amorosos, p.153. In: Veredas no sertão rosiano. Org. Carlos Secchin [et al.] Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

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quem maneja a arte da música. Somos infantis com quem chega à infância. Nas

diferentes expressões artísticas há múltiplos devires. No devir-infância da escrita

encontram-se aqueles que se deixam levar pelo fluxo sensível das palavras

literárias.

A infância é o espaço do exercício da sensibilidade. E a melhor ilustração da

infância, a criança, carrega consigo uma estupenda carga expressiva desta

sensibilidade. É que uma dupla estraneidade configura o ser criança. A criança é a

figura mais marcante da estranheza humana diante de um mundo sempre novo para

quem chega. A estranheza que se inicia no nascimento de cada um e que

permanece ao longo da existência e se manifesta em cada experiência de

aprendizagem, no mais microscópico ato de expressar a vida.

Mas a infância não se restringe à figura da criança. Ela se consubstancia até

mesmo naqueles e naquilo que ilusoriamente parecem familiares e antigos. É que

apesar da pretensa familiaridade de quem nele já se encontra, o mundo é novo e

estranho para quem o percebe de modo distinto do usual. Aquele que sensivelmente

tenta entender as coisas e é capaz de expressar, com esmero e dedicação, a partir

de um feitio próprio, de algum engenhoso artifício, esse entendimento, também

ilustra a infância, também se faz criança. É assim que arte e infância coexistem no

processo de criação. Na criação literária, são escritas da infância que inauguram

uma infância da escrita. A estranheza das coisas exige do escritor uma busca

incansável por sua mais perfeita expressão. A própria estraneidade não se deixa

exprimir na mesmice das palavras usuais. É preciso uma língua estrangeira. Proust

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afirma que “Os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira”239.

Não seria essa língua estrangeira uma infância do dizer?

Infâncias da escrita ou uma marcante infância da escrita é o que sustenta a

obra de João Guimarães Rosa. Em seu devir-criança, o autor assume a consciência

da magia da infância, mesmo em sua adultez de escritor. Perdida a idade

cronológica comumente associada ao conceito de infância, o autor assume a

infância de uma escrita que o lança, impiedosamente, num abrupto fluxo de infância.

Então, há que se inventar uma criança que capte esta energia infantil, que configure

tal meninice. Rosa cria seus personagens infantis para dar conta desta exigência.

Em seu devir-criança, o autor faz surgir o menino e a menina que protagonizam os

contos de referência deste estudo. É assim que, por meio da arte literária, Rosa

transforma o ordinário da criança no extraordinário da infância.

Até mesmo o termo ‘crescer’ assume uma conotação distinta nos contos de

Rosa referenciados neste estudo. Na acepção do escritor, o crescer do menino é

narrado: Assim um crescer e desconter-se – certo como o ato de respirar – o de fugir

para o espaço em branco.240 Crescer, neste caso, é o mesmo que desconter-se,

transbordar, não estar contido numa forma. Crescer como cresce o menino implica

em romper com o sentido usual que o termo possui no âmbito educacional e que

restringe seu significado à aproximação de uma forma reconhecidamente adulta de

ser. Crescer é certo, ou seja, inevitável, parece sugerir Rosa. Contudo, crescer

239 Proust, Centre Sainte – Beuve – Epígrafe utilizada por Deleuze na folha de rosto de Crítica e Clínica. In: DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo, editora 34, 1997. 240 ROSA, 1972, p. 3.

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também pode ser um ato de fuga para um lugar indeterminado, espaço em branco,

portanto sem forma e sem tempo.

Uma infância também cresce e se torna extraordinariamente grande, sem

deixar de ser infância – é o que nos incita Rosa a pensar. Uma infância elástica o

bastante para nela caber o crescer até a morte, até muitas delas. Uma infância

capaz de conjugar leveza e morte tem que ser imensa. Uma infância assim excede

espaços e tempos, vê e diz o mundo de forma própria, sai do lugar comum e da

linguagem comum. Essa uma infância desconhece, inclusive, a hostilidade dos

modos organizados de dizê-la. Por isso inventa a si mesma. Sua desmesura alcança

a poesia e, por conseguinte, multiplica os sentidos das palavras. Como poderia

caber em etapas, estágios, séries ou ciclos? Uma infância que se apresenta

abruptamente em diversos tempos e formas, junto à vida, em toda a vida, em cada

vida, parece alcançável apenas pela arte.

A arte literária de Guimarães Rosa, neste estudo recortada pelos dois contos

constitutivos de suas Primeiras Estórias aqui destacados, expressa uma infância

encontrada. Rosa chega à infância e a expressa por meio de personagens infantis

apresentados numa linguagem infantil. Trata-se de uma relação infantil com a língua

que narra infantis relações com a existência. Uma forma infantil de dizer a infância a

partir dela mesma, de seus modos de apreensão das coisas, de um jeito singular de

aprender.

Com Rosa é possível pensar o ato de educar como uma arte, um artifício

criado para aprender. Mais do que uma busca insana pelo jeito certo de ensinar, um

esforço em deixar que cada um encontre seu jeito próprio de aprender. Não uma

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ciência, um conhecimento fundador do ensinar. Antes uma preocupação com

experiências de aprendizagem suscetíveis de ocorrer no fluxo dos afetos propiciados

pelo contato com a arte literária. Em vez do desgastante trabalho de estruturação do

ensino em bases cada vez mais antecipatórias, extensas e sólidas, pensar a

educação em bases dissolventes, é a lição que parece fluir das obras estudadas.

Pensar outra figuração para o ato de educar é o que decorre do contato com

a meninice de Rosa. Ousar a imagem da areia do mar como referência. A areia, a

um só tempo fundadora e móvel, disforme e segura. Um tipo de solo que se molda

aos pés de quem nele caminha. Uma superfície que se fixa apenas no instante da

caminhada, no impacto do peso do corpo sobre a profusão de água, areia, pedaços

de conchas, moluscos e pequenos animais marinhos, restos e sobras que o mar

expõe. Uma base que não é fixa, mas que fixa o pé que nela pisa no instante preciso

do seu contato. Uma base informe. Um monte de grãos sujeito a novas formas em

conformidade com o pisar. Uma superfície disposta não em fundamentos, mas em

critérios fundantes. O pé afunda e o espaço que se abre para ele é a justa medida

da sua fixação, o apoio preciso para o passo, para a firmeza do outro pé, no ar, por

vir à areia. O movimento dos pés e o movimento da água, da areia e de tudo o mais

se integram e se constituem na fundura, nela constituindo a fundação do caminhar.

Um caminhar seguro, móvel e ondulante. Na medida em que os passos na areia são

moldados pela mobilidade dos grãos a partir do contato com a água, uma zona de

proteção para os pés se forma. Singularmente. Unicamente. É preciso aquele fluxo

de água, aquela quantidade de areia, aquele peso do corpo, aquele impacto do pé,

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aquele movimento do solo, aquela inclinação deixada pela força da maré. Uma base

fixadora a cada pisada - aquela.

Fosse aquela superfície uma superfície fixa, sólida, lisa e, ainda, molhada,

como numa calçada, o resultado seria um escorregão, um tombo. Aparentemente

sólida e homogeneamente firme, uma base deste tipo faria cair, nos primeiros

passos, aquele que nela se apoiasse. Uma imagem do educar com estas

características se mostraria estática e trapaceira, inibiria e até mesmo constrangeria

as iniciativas de um percurso. Como aprender a caminhar de um jeito próprio em

bases sólidas e solidificadoras? O solo arenoso é o desafio. Ainda mais sabendo-se

do efeito dissolvente da água. Esta parece ser a justa imagem do ato de educar

enquanto ato fundante. Um ato que não se constitui de fundamentos, mas que se

fundamenta naquilo que constitui.

É preciso, então, buscar meios de expressão pedagógica que se relacionem

a outras formas expressivas, a outras artes, a modos diferentes de apresentação.

Longe do primado da identidade, sem o símbolo da igualdade, deixando de lado a

representação. Reconhecer, no ato educativo, a relação estreita entre a diferença e

a repetição, tão bem fundamentadas por Deleuze. Extrair, das relações cotidianas

formalizadas pelas instituições de ensino, pequenas diferenças, variantes e

modificações. Nas brechas, nos interstícios, perceber ocasiões para aprendizagens.

Na coexistência de repetições, atentar-se para as fendas nas quais possa se instalar

e se distribuir a diferença. Mudar de dentro, por dentro. Apenas deste modo é

possível resistir à fatal imobilidade que acomete o mais bem intencionado educador

na mais bem elaborada tarefa educativa. Só a partir de uma base movente é

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possível dar-se conta dos conceitos que, afinal, consubstanciam modos de

entendimento e elaboram os mais diversos saberes que carecem ser partilhados.

Por ser movente, uma base assim exige que os conceitos sejam feitos,

refeitos e mesmo desfeitos continuamente. Há que se dispor a um labor incessante.

Esta disposição intelectual é também sensível. É uma abertura para realizações.

Porém, não se trata de seguir elaborando técnicas e procedimentos de ensino,

sistemas aplicativos e estratégias didáticas como soluções ótimas para a execução

de objetivos previamente estabelecidos. É preciso retirar a camada cumpridora

adjacente ao exercício profissional docente para se atingir uma disposição capaz de

elevar à máxima potência o ato de receber aqueles que chegam infantilmente num

mundo já existente. Abrir-lhes um espaço do qual possam, eles mesmos, dispor.

Repetir o ato educativo sem ignorar sua singularidade. Esta parece ser a

condição para não sucumbir. Manter a atenção naquilo que torna único, sem

equivalentes, o contato humano propiciado pelas contínuas ações educativas. Uma

repetição que expressa, nas palavras de Deleuze, um liame profundo entre os

signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. É a potência da uma vida não orgânica,

a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de música.241 Em vez de

uma ciência do educar, no sentido convencional da linguagem acadêmico-científica,

uma arte do educar. Um ofício de arte insubstituível. Um tipo de repetição capaz de

tornar cada aula um evento, uma vertente própria da norma educativa. É novamente

Deleuze quem afirma: Sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão. Ela põe

241 In: DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: ed. 34, 1992, p. 179.

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a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma

realidade mais profunda e artística242.

Trata-se, neste caso, de pensar o ato educativo enquanto repetição que se

diferencia marcantemente da generalidade. Não se trata, portanto, de se pensar a

relação pedagógica nos preceitos de uma repetição hipotética do mesmo, ou seja,

do ensino. Isso não significa pensar o ato educativo no interior de um jogo lógico no

qual se as mesmas condições são dadas, logo os resultados serão iguais. Não. A

repetição remete a uma potência singular. Algo que difere por natureza da

generalidade, mesmo quando ela, para aparecer, se aproveita da passagem

superficial de uma ordem para outra. Tampouco se trata da manutenção de hábitos

escolares ou pedagógicos travestidos de repetição. O usual nas escolas é o hábito

enquanto obrigação - a obrigação moral de ensinar. Um tipo de obrigação que leva

educadores a uma tarefa impensada de moralização dos sentimentos e atitudes

infantis tão francamente apresentados pelas crianças.

É preciso e possível fazer da repetição algo novo. Repetir, repetir - até ficar

diferente. Repetir é um dom do estilo.243 Associar as atividades de aprendizagem a

exercícios seletivos de forma que dos mesmos recursos, materiais e instrumentos

possam emergir estilos de fazer.

Não basta, ainda, pensar uma nova representação para a infância. Não

interessa substituir a imagem de uma plantinha a crescer cuja semente precisa ser

242 DELEUZE; GUATTARI. 1988, p. 24.

243 In: BARROS, Manoel de. O Livro da Ignorãças. 6ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 11.

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semeada num solo preparado, fertilizado e cuidado por um profissional. Não se trata

de buscar uma nova representação mediadora, mas de produzir, na obra educativa,

um movimento, de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição. Um

movimento verdadeiro, como sugere Deleuze:

[...] trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição; de substituir representações, mediatas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito244.

Saber vibrar, ou seja, deixar-se afetar pelos acontecimentos da vida e seus

instantes de morte. Dar saltos que fujam à linearidade, ordem e sequência com os

quais acostumou-se associar a aprendizagem. E, então, dançar ao movimento da

linguagem literária, repleta de musicalidade e expressão.

Os personagens rosianos não são representações da infância, mas infâncias

que neles se constituem. Não são modelares. A repetição de personagens infantis

nas Primeiras Estórias não acarreta, como poderia se supor, uma idéia

pedagogizante da infância por meio da identificação de comportamentos infantis

padronizados. Há, nos contos, uma linguagem infantil anterior às palavras adultas.

Há gestos que antecedem a elaboração dos movimentos corporais disciplinados. Há

espectros antes dos personagens. Nas entranhas da terra, no sertão rosiano, o que

acontece é anterior, primeiro. A primazia das estórias reside na ruptura que a

infância impõe aos modos de entendimento das coisas e, portanto, nas experiências

de aprendizagem que nelas são narradas.

244 DELEUZE; GUATTARI, 1988, p. 32.

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A enorme estranheza gerada por Rosa ao publicar suas Primeiras Estórias

deveu-se ao adjetivo, mais do que ao substantivo utilizados no título. Várias

hipóteses foram levantadas na tentativa de explicar o termo “Primeiras”. Intrigados,

leitores e críticos literários puseram-se a elaborar explicações, apresentar e refutar

possibilidades, sempre associando o termo a acepções cronológicas. Por fim

chegou-se à interpretação do adjetivo “primeiras” como sinal de retorno às origens,

às fontes primordiais da invenção literária que, assemelhadas aos jogos da lúdica

infantil, fornecem as primeiras matrizes responsáveis pela emergência de realidades

à parte do mundo real.245 Rosa intenta recuperar, nestas estórias, a graça do ato

inaugural por meio de uma atividade verbal lúdica. A linguagem utilizada por

Nhinhinha, a menina de lá, e o modo de aparição da ave para o menino das

margens da alegria, reforçam a associação entre lúdica infantil e invenção poética

que parece sugerida por Rosa. Cada experiência de aprendizagem narrada se

movimenta no espaço criado pela invenção poética do escritor que varia os registros

em harmonia com os personagens que inventa. É assim que,

[...] ao percorrer tão ampla escala de registros poéticos, encadeando temas e repetindo motivos, o conjunto das Primeiras Estórias parece mimetizar os movimentos duma composição musical. Nelas, o irrequieto retorno das crianças reveste-se da função de leitmotiv recorrente a cada experiência inauguradora de um novo ciclo de vida. Assim, introduzido na primeira estória – ‘As margens da alegria’ – ele se reapresenta e desdobra em várias outras, como motivo dominante ou como acorde secundário facilmente reconhecível. Finalmente, o tema retorna como arremate na última estória – ‘Os cimos’.246

245 BARBIERI, Ivo. A invenção lúdica nas Primeiras estórias. In: SECCHIN, Carlos [et al] (org.). Veredas no sertão rosiano. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p. 209. 246 Ibid, p. 212.

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Investigar o lugar da memória e da invenção nos processos narrativos da

infância é o que parece realizar Rosa de forma poética. O escritor retoma fatos de

uma infância a partir da violência das imagens que a marcaram e que exigem

imperiosamente uma busca de sentidos. É deste modo que Rosa narra a primeira

visão que o menino teve da ave. O menino é afetado pelo signo que o violenta – o

peru – aquela ave que se apresenta de forma inédita. Ele não consegue se

desvencilhar do signo que o atinge diretamente, que violenta seus sentidos, que o

impele a decifrá-lo. Diante do choque daquela aparição súbita, o menino se vê

acometido de cores, formas, movimentos e sons inusitados. Mas outra vez ele é

tomado de surpresa. Da segunda vez, o impacto é também forte, o abalo é violento,

mas o signo é diferente. Novamente um peru, mas outro animal. Mais uma vez, outra

vez, o diferente. Diferente a cada vez.

O ápice do conto ‘As Margens da Alegria’ expressa claramente o que Deleuze

afirma sobre a força do signo. É neste sentido que a experiência do menino carece

ser narrada. Um narrar que se configura como uma busca desesperada de sentido

para o vivido. Rosa, escritor, sabe o quanto se aprende com experiências desse tipo.

É assim que ele se inscreve no âmbito da educação. Não pelo que ele intenta

ensinar, mas pelo que ele narra. São narrativas de aprendizagens que abrem

espaços para inscrições. Na forma de conto uma aprendizagem singular se mantém

ativa embora lida e relida repetidas vezes. Afinal, esta é uma das Primeiras Estórias

– um conto que assegura a primazia de um aprendizado sempre renovado e que,

deste modo, nunca deixa de ser primeiro. Esta infância do aprender é dinâmica e

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intensiva. Trata-se de uma aprendizagem que se revela posteriormente. Não é

possível antecipá-la. Primeiro ela se apresenta para, em seguida, ser decifrada.

Uma experiência de aprendizagem tem sua relevância e singularidade mais

fortemente evidenciada na contraposição à concepção usual de ensino-

aprendizagem. Enquanto convencionalmente se estabelece que a aprendizagem se

dá posteriormente ao ensino, uma aprendizagem singular ocorre quando os signos

interconectados provocam sentidos que violentamente acometem o aprendiz. Este,

por sua vez, só depois, às vezes muito depois, é capaz de decifrar o que havia

acontecido. É que uma aprendizagem singular é desigual, inexata. Uma

aprendizagem assim se constitui na autenticidade de sua realização, não na

verificação de objetivos atingidos. Trata-se de uma experiência e, portanto, não se

deixa prever.

A imprevisibilidade aproxima a experiência literária da experiência de um

pensar filosófico sobre a infância. Ambas alteram as convencionais acepções de

infância. Ambas exigem uma decorrente transformação educacional. O compromisso

com a verdade ficcional, fundamental para a apreciação artística e para a própria

valorização da arte, aproxima infância, literatura e filosofia. Ambas, literatura e

filosofia exigem um envolvimento lúdico, um brincar com palavras e idéias, próprias

da infância do pensar e da infância do dizer, do ler, do escrever. Não jogar o jogo da

obra, significa destruir a obra de arte. É preciso preservar o mundo da obra. Esta é a

demanda da ficção: um lugar para se instalar. O espaço educativo precisa comportar

a ficção para justificar-se enquanto espaço projetivo. Seria a instituição educativa um

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lugar no qual se instalaria a arte literária enquanto escrita da infância capaz de

inaugurar infâncias da escrita?

O primeiro passo parece ser identificar os critérios que constituem condições

de possibilidade da intervenção artística no âmbito educacional. Buscar, na

repetição, a diferença é encontrar a arte do aprender. Este parece ser o critério

preponderante. A partir daí há que se pensar no tempo necessário para a

transposição entre uma experiência sensível e sua verbalização. E, neste ponto, é

bem provável que haja incompatibilidades com o tempo escolar. Ainda assim, vale a

proposta de pensar por imagens, como o faz Rosa e de criar conceitos, como sugere

Deleuze.

Deste modo o ato docente se assume enquanto ato performático, uma

intervenção intelectiva que se percebe em relação com corpos. Um pensar-sentir

que precisa lidar com as dificuldades inerentes ao próprio corpo. E, assim, alcançar

uma maneira de dilapidar a energia com o que é próprio da intervenção, sem

desperdiçá-la com outras demandas. É deste modo que uma experiência anônima

passa a ser uma experiência coletiva. Só assim uma experiência fictícia como a do

menino ou da menina dos contos de Rosa passam a integrar a experiência de quem

as lê - uma experiência compartilhada nos distintos níveis e formas de participação.

O ato docente passa a ser configurativo, partícipe. Quem educa, participa da

experiência de aprendizagem. Educar passa a ser, assim, gerar condições para que

se possa perceber o que não se percebe, para que se possa participar.

A arte é uma violência que amplia os limites. Nela repetem-se coisas que

estão dentro de limites. Ela tem controles e determinações, mas na repetição

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encontra a diferença. É por isso que se pode aprender muito com a dimensão

ficcional da literatura. Na arte as coisas acontecem como se fossem outras. E

colocar-se no lugar do outro é, neste sentido, entender o outro em termos

energéticos, perceber a qualidade da energia que emana.

É assim que se torna possível aprender com os personagens infantis de

Rosa, no tempo que lhes é interior e que, ainda assim, permitem ser partilhados. As

aprendizagens narradas seguem um ritmo intemporal das vivências íntimas e das

manifestações dos afetos. Há um abandono do tempo cronológico, quantitativo e

divisível em três dimensões para adentrar, à maneira bergsoniana no tempo vivido,

na sucessão ininterrupta do fluir intemporal. É neste sentido que a linguagem

rosiana evidencia o problema relativo aos limites da linguagem que, como ele próprio

diz, nem sempre pode expressar tudo o que há. É por isso que sua linguagem

precisa inventar-se. Só assim sua escrita pode dar conta de experiências infantis.

Não há, neste modo de entendimento do que seja aprendizagem, o receio da

contradição própria do dualismo interpretativo do ato pedagógico. É Bergson quem

adverte sobre a existência de uma dualidade que se movimenta, ela mesma, entre

tendências atuais. Este tipo de dualismo, em relação, é o que ultrapassa a primeira

viravolta da experiência. A unidade se daria numa segunda vira-volta, ou seja, em

uma reviravolta. Neste plano é que a coexistência de todos os graus, de todos os

níveis, é virtual, somente virtual. Daí a virtualidade da linguagem literária de Rosa na

voz da menina. Nhinhinha vivencia os dualismos, enfrenta-os e os ultrapassa até

atingir um plano de coexistências virtualizado por Rosa em sua escrita, embora não

compreendido pelos demais personagens, mas compreensível a um leitor atento.

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O impulso vital próprio à infância é o que parece destacar Rosa nas crianças

que encarnam seus personagens infantis aqui em estudo. A menina e o menino

exteriorizam infâncias desdobradas em vida e morte e constituem o mundo

misturado de Rosa, as misturas infantis, a narrativa misturada. A escrita rosiana é,

em si mesma, por uma força interna explosiva,

uma língua que se diferencia no interior da própria língua, língua insólita, quase estrangeira. A língua não dispõe de signos, mas adquire-os criando-os, quando uma língua age no interior de uma língua para nela produzir uma língua, língua insólita, quase estrangeira. A primeira injeta, a segunda gagueja, a terceira sobressalta. Al língua torna-se então Signo, poesia, e já não se pode distinguir entre língua, fala ou palavra. Ea língua não está em condições de produzir em seu seio uma língua nova sem que toda a linguagem seja por sua vez conduzida a um limite.247

Um outro modo de pensar expresso por diferentes modos de dizê-lo é o que

aparece nesse movimento. Trata-se de uma diferenciação que é também uma

atualização. É que ela supõe uma unidade, uma totalidade primordial virtual que se

dissocia segundo linhas de diferenciação, mas que, em cada linha, dá ainda

testemunho de sua unidade e totalidade subsistentes. Assim, quando a vida divide-

se em planta e animal, quando o animal divide-se em instinto e inteligência, cada

lado da divisão, cada ramificação, traz consigo o todo sob um certo aspecto, como

uma nebulosidade que acompanha cada ramo, que dá testemunho de sua origem

indivisa. Daí haver uma auréola de instinto na inteligência, uma nebulosa de

inteligência no instinto, um quê de animado nas plantas, um quê de vegetativo nos

animais. A diferenciação é sempre a atualização de uma virtualidade que persiste

através de suas linhas divergentes atuais.

247 In: DELUZE, Gilles. Crítica e Clínica.São pulo. Ed. 34, 1997, p. 113.

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O ponto vulnerável da pedagogia parece ser exatamente o fato de trabalhar

apenas no âmbito do possível ignorando o campo virtual. Se pensarmos com

Bergson, entenderemos que o possível não tem realidade, ainda que possa ter

atualidade. E que, inversamente, o virtual não tem atualidade, mas possa adquirir,

enquanto tal, uma realidade. É o que parece ilustrar o confronto entre literatura e

pedagogia. A literatura, ao atuar no campo virtual, assume uma realidade encarnada

nos personagens infantis de Rosa aqui tratados. É a linguagem literária de Rosa,

virtual e atual. O campo virtual não tem que realizar-se, mas sim atualizar-se. Isso

ocorre em harmonia com as regras da atualização que já não são a semelhança e a

limitação como no campo pedagógico, mas a diferença ou a divergência e a criação.

É que para atualizar-se, o virtual não procede por limitação, mas cria suas próprias

linhas de atualização em atos positivos. A razão disso é simples: ao passo que ao

real é à imagem e à semelhança do possível que ele realiza, o atual, ao contrário,

não se assemelha à virtualidade que ele encarna. O que é primeiro no processo de

atualização é a diferença – a diferença entre o virtual de que se parte e os atuais aos

quais se chega, e também a diferença entre as linhas complementares segundo as

quais a atualização se faz. Em resumo, é próprio da virtualidade existir de tal modo

que ela se atualize ao diferenciar-se e que seja forçada a atualizar-se, a criar linhas

de diferenciação para atualizar-se.

Mas isso não é o que irrompe da pedagogia. Ao contrário, o ensino formal

atua no âmbito do possível e como nem todos os possíveis se realizam, a realização

implica uma limitação. Daí que certos possíveis são considerados rechaçados ou

impedidos, ao passo que outros passam ao real. Bergson rechaça a noção de

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possível por pensá-lo enquanto uma falsa noção, fonte de falsos problemas. A idéia

do possível supõe que o real a ele se assemelhe. Isso seria o mesmo que darmo-

nos um real já feito, pré-formado, preexistente a si mesmo, e que se materializará

segundo uma ordem de limitações sucessivas. Deste modo já estaria tudo dado. O

real todo já estaria dado em imagem na pseudo-atualidade do possível. Bergson

ironiza a trapaça deste tipo de jogo de raciocínio:

Se se diz que o real assemelha-se ao possível, não seria porque, de fato, esperou-se que o real acontecesse com seus próprios meios para “retroprojetar” dele uma imagem fictícia e, com isso, pretender que ele fosse a todo momento possível antes mesmo de acontecer? 248

Na verdade, não é o real que se assemelha ao possível, mas o possível é que

se assemelha ao real, e isso porque nós o abstraímos do real, uma vez acontecido

este; nós o extraímos arbitrariamente do real como um duplo estéril. Então, nada

mais se compreende nem do mecanismo da diferença, nem do mecanismo da

criação.

É assim que Deleuze nos impele a pensar a educação em bases mais

fecundas. Pensar o aprendizado, numa relação com a diferença e a criação. E é

assim, também, que a criação poética de Rosa se apresenta como profícua

referência. Seus personagens infantis provocam uma ruptura com a acepção usual

de causa e efeito entre ensino e aprendizagem. Afinal, aquelas crianças aprendem o

que ninguém ensina. É assim que elas nos levam a pensar a aprendizagem fora de

um eixo causal. Uma aprendizagem afastada da relação representação-ação. Como

sugere Deleuze, uma aprendizagem que se daria na relação do signo com a

248 DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 79.

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resposta. Algo decorrente do encontro com o outro na forma de um signo a ser

decifrado. Em suas próprias palavras:

Apreender é constituir este espaço do encontro com signos, espaço em que os pontos relevantes se retomam uns nos outros e em que a repetição se forma ao mesmo tempo em que se disfarça. Há sempre imagens de morte na aprendizagem, graças à heterogeneidade que ela desenvolve, aos limites do espaço que ela cria. Perdido no longínquo, o signo é mortal; e também o é quando nos atinge diretamente.249

Os signos emitidos por Rosa em suas invenções poéticas ora atingem

diretamente as práticas educativas em exercício, ora alcançam os princípios

educacionais aprendidos num ponto longínquo de uma formação pedagógica. Em

ambos os casos, trata-se de experiências mortais. É que aprendizagem, infância e

morte, reunidas na outra margem do rio, aguardavam a travessia. Uma travessia

repetida no movimento contínuo do nado. Uma travessia demorada no risco da

incerteza. Porém, sem lamento ou temor do desconhecido. E eis que surgem morte

e infância, cúmplices e companheiras. Quem diria? Sim, é a adultez que se opõe à

infância, não a morte. A morte é sua companheira, sua aliada. A infância precisa da

morte da adultez para emergir. Ambas resistem à adultez duradoura, certa e precisa.

Infância e morte inauguram o novo. Não é por acaso que ambas permanecem tão

intrigantes. Infância e morte não se opõem, mas se imbricam. Brincam de configurar

o novo e, depois, nos convidam a sentir o que for, a pensar o que for, a entender o

que quer que seja. A morte também prescinde da infância. É a morte que lhe abre

espaço, que cria condições para que a infância irrompa.

249 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54-55.

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Uma infância por nascer parece anunciar o fim de uma educação que está a

morrer. Uma morte imprescindível para se chegar a uma infância do educar. Uma

morte profícua, capaz de fazer irromper escritas infantis, experiências da infância do

aprender.

Uma infância assim, por nascer, anuncia também a morte do professor. Um

professor que tem que morrer por estar demasiadamente vivo, por ser

demasiadamente adulto, por pensar-se demasiadamente sabedor. Uma infância por

nascer prescinde de um cadáver de professor. Um professor que, de algum modo,

esteja morto. Ou mesmo um professor que se disponha a morrer muitas e variadas

vezes. E que, além de suas mortes, deixe que a morte de outros também ocorra.

Que não tema o que desconhece. Que, ao contrário, disponha-se a aprender sobre

o que assumidamente não sabe. Que admita não saber a vida, nem a morte e que,

por conseguinte, não se arrogue o direito de ensiná-las. Que prime pela

autenticidade no esforço intensivo de aprender. Que morra quantas vezes for preciso

até esquecer o que já sabe. Que seja, assim, um cadáver de professor, pronto para

dar lugar a outro professor. Um professor que possui a luz de um morto, uma luz que

não se apaga. Que aprendeu, com Mário Quintana, a deixar-se morrer, ainda que

em decorrência de assassinatos. Que talvez tenha perdido, como o poeta, um jeito

de sorrir, um modo de ensinar, palavras e gestos. Um cadáver, o mais desnudo, o

que não tem mais nada. Aquele de quem ninguém há de tirar a luz sagrada. Um

professor morto, incessantemente mortal. Não um professor que ensine a morrer ou

a matar, senão um professor que aprenda, ele mesmo, a morrer. Um professor que

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saiba morrer e reconhecer o valor da morte. Um professor que, íntimo da morte,

possa chegar a uma infância do educar.

Um cadáver não teme a morte, tampouco a vida. Mas não se trata de pensar,

por meio dessas imagens, numa pedagogia da morte. Não se propõe aqui uma

prática do ensinar que ensine a lidar com a morte. Longe disso. A morte não se

ensina. Tampouco se ensina a morrer. Nascer, viver, morrer, tudo o que constitui

aprendizagem é solidão. Portanto, não se pensa, neste estudo, numa pedagogia

enquanto proposta de um conjunto doutrinário de idéias a respeito da morte. Não se

trata de adotar idéias sobre a morte como princípios e métodos educativos. Não há

como atender a fins práticos, atrelados à vida ordinária, ao se pensar seriamente a

morte de uma educação. Afinal, a estrutura que dá suporte à educação também

prescinde tornar-se mortal. Morre-se. Não apenas pessoas morrem.

Não é o caso, portanto, de se elaborar um ensinamento da morte. É o

aprendizado da morte que leva à infância. E, diante da inevitável pergunta sobre o

que é preciso para morrer, a resposta se repete: deixar de estar vivo, esquecer,

desaprender. Uma tarefa dificílima. Desaprender o aprendido, soltar o que se pensa

conhecido, largá-lo, não é fácil. Parece tão simples apenas deixar. Deixa... Deixa... é

o que repetia Nhinhinha. Mas Rosa, seu criador, teve que inventá-la para deixar de

ser o que era. No fundo, ele parecia temer com desmedida força o mundo adultizado

no qual vivia. Seus personagens infantis pareciam aliviar-lhe o peso da tarefa adulta.

O adiamento contínuo em aceitar consagrar-se, por fim, um escritor de reconhecido

talento, ocupante de um honorável lugar na Academia Brasileira de Letras, reforça a

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suspeita de uma infância que nele resistia aos apelos de um mundo centrado na

adultez.

Não eram os méritos de suas adivinhações que Nhinhinha buscava. Não lhe

interessavam as exigências ordinárias da vida adulta que a circundava. Tampouco

parecia ser esta a preocupação de Rosa ao escrever. O título de imortal parecia

assustá-lo. O aspecto extraordinário da sua escrita, ele parecia adivinhar, não

decorria de uma superioridade humana pretensamente imortal. A extravagância de

sua obra derivava, ao contrário, da sua enorme mortalidade. Estar sujeito à morte e,

a um só tempo, ser capaz de produzi-la – era o seu jeito peculiar de morrer e de

viver intensamente.

O que se aprende com Rosa não está escrito didaticamente em seus textos.

É que a infância que advém de mortes resulta de um empenho, um engenho

fervoroso como a escrita atenta e cuidadosa do autor. Em seu ofício de arte, Rosa

admitia realizar ensaios, fazer exercícios de ser criança. O escritor tornava-se

infantil, ansiava a infância, a desejava, ia a seu encontro. Este parece ser o

aprendizado que das escritas infantis de rosa se depreende: há que deslocar-se.

Para chegar à infância é preciso deixar-se ir, levemente, em fluxos, até ela. Um

deslocamento que não possui pontos de saída nem de chegada. Um movimento que

não possui extremidades opostas. Essa infância que Rosa demonstra ter encontrado

não é uma infância que se distingue da adultez, mas uma infância que se distingue,

uma experiência de aprendizagem.

Uma infância por nascer possui a força daquilo que, além de irromper provoca

nascimentos outros. É assim que algumas crianças se utilizam do verbo nascer. Não

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em sua forma intransitiva: um bebê nasceu. Mas na forma transitiva: o bebê nasceu

a vida. A mãe nasceu um filho. Nascer de uma forma transitiva: nascer palavras,

nascer idéias, nascer o mundo. O que é preciso nascer? É preciso nascer uma

escrita infantil que volte a inaugurar as coisas no momento de suas aparições, uma

escrita que seja de novo uma inscrição no mundo, um modo de apresentação de

sentimentos e idéias autênticas, uma escrita que agregue em torno da palavra,

expressões da intensidade da vida.

Um desdobramento desta transitividade poderia ser pensado para o âmbito

educativo. Uma educação que se soubesse transitiva, transitória, em trânsito. Entre

os tempos, os lugares e as linguagens. Móvel, movente, mobilizadora. Enfim, um

educar em movimento, inacabado, aberto ao aprendizado, responsável ao apelo do

desconhecido. Uma infância que se avizinhe da idéia de mobilidade dos conceitos

em planos, problemas, contingências. Afinal, Deleuze nos alerta: o que importa nos

encontros é a potência do pensamento invocado250. Na temporalidade inventiva da

infância, no sem-lugar de uma infância por vir, pelo meio, o mesio dos trajetos

infantis. Criar um percurso educativo que se componha de linhas superpostas, de

interconexões, intercruzamentos, simultaneidades.

Aprender com Rosa a escutar essa “matéria vertente” que jorra, infinita e

desorganizada. E, com ele, inventar um curso e margens. Planos geográficos que se

sobreponham em modos de aprendizagem. Alcançar esta sensorialidade que anima

o fazer poético para o qual os afetos são convocados. Uma poética do educar que

250 Sobre o encontro fundamental com algo que força a pensar, ver “A Imagem do Pensamento”. In: DELEUZE, Gilles, 1988, p. 231.

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prescinde de uma intensidade privilegiada de sentidos e de riqueza afetiva. Uma

maneira de educar que decorre de uma aguçada e sensível percepção das coisas e

da vida. Um jeito de aprender que advém da capacidade de comunhão profunda e

compreensiva com a realidade.

Em vez do empreendimento pedagógico de busca pela clareza e objetividade

da linguagem calcada na metodologia científica ou mesmo nos modos considerados

científicos de organização, a ousada e deliberada aventura intelectual que a

linguagem literária exige. Se carece ter muita coragem..., dizia Diadorim a

Riobaldo.251 Carece também muita disposição. Afinal, é preciso rejeitar uma imagem

da educação que passa ao largo da idéia de uma infância por vir no ato de educar.

Afastar uma imagem do educar que aprisiona a aprendizagem em tempos e lugares

escolarizados, quantificados, enumerados e certificados. Pensar a educação com

método, sim, mas método enquanto maneira singular, no sentido de uma maneirice,

um jeito próprio, um estilo. Com Rosa talvez possamos aprender:

[...] meu método implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original. 252

O autor refere-se explicitamente a um método singular que admite

nascimentos e implica em mortes. Morte do uso corriqueiro e banal das palavras.

Nascimento de uma nova voz. Exigente, esse método prescinde de cuidado,

atenção e coragem. É preciso sensibilidade, mas também muita dedicação e

251 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 15ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p.379. 252 Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo de Faria. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 81.

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trabalho. Longe de se apresentar fácil e rápido, esse modo de aprender é difícil e,

por vezes, muito lento. Contudo, a dificuldade e lentidão podem ser compensadas

por uma súbita, intensa e radical experiência de aprendizagem capaz de provocar

saltos e rupturas incomensuráveis. O trabalho literário de Guimarães Rosa consiste

em desafiar os modos usuais de entendimento e os esquemas interpretativos

comumente utilizados para entender um texto. É deste modo que seu trabalho se

apresenta, para nós, como um enfrentamento à imagem facilitadora da linguagem

pedagógica. É o próprio escritor quem afirma:

Não procuro uma linguagem transparente. Ao contrário, o leitor tem de ser chocado, despertado de sua inércia mental, da preguiça e dos hábitos. Tem de tomar consciência viva do escrito, a todo momento. Tem quase de aprender novas maneiras de sentir e de pensar. Não o disciplinado – mas a força elementar, selvagem. Não a clareza – mas a poesia, a obscuridade do mistério, que é o mundo.253

Rosa nos faz questionar procedimentos educativos que insistem em facilitar a

aprendizagem e elucidar, antecipadamente, os problemas e as dificuldades, que os

estudantes poderiam ter e que, por conseguinte, inibem o pensar. Ao corresponder-

se com seu tradutor alemão, Rosa faz referência à magistral tradução italiana recém

realizada destacando, no texto, fragmentos obscuros que nem por isso perdem

valor, antes o contrário:

Falei no valor da tradução do Bizzarri... naturalmente, nela há trechos e passagens “obscuros”. Mas o Corpo de Baile tem de ter passagem obscuras! Isto é indispensável. A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada

253 Declaração de Guimarães Rosa em carta a sua tradutora americana, Harriet de Onis. In: Martins, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001, p.IX.

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“realidade”, que a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que o óbvio, que o frouxo.254

Rosa se esforça inquietantemente para lidar com as palavras, explorando-

lhes os efeitos sensoriais e plásticos, deles extraindo tudo o que poderiam render,

na força plástica, visual, gestual, sensorial, da linguagem. Ele exige do seu leitor um

esforço recíproco. Como um rio, numa realidade geográfica, mítica e mágica ele

trabalha. Um rio que cumpre seu destino geográfico e poético. É assim que Rosa

trabalha. É assim que, com ele, se pode trabalhar.

E é com Deleuze que reforçamos seu desafio: [...] o pensamento só pensa

coagido e forçado, em presença daquilo que ‘dá a pensar’, daquilo que existe para

ser pensado[...]

É verdade que, no caminho que leva ao que existe para ser pensado, tudo parte da sensibilidade. Do intensivo ao pensamento, é sempre através de uma intensidade que o pensamento nos advém. O privilégio da sensibilidade como origem aparece nisto: o que força a sentir e aquilo que só pode ser sentido são uma mesma coisa no encontro, ao passo que as duas instâncias são distintas nos outros casos. Com efeito, o intensivo, a diferença na intensidade, é ao mesmo tempo o objeto do encontro e o objeto a que o encontro eleva a sensibilidade. Não são os deuses que são encontrados; mesmo ocultos os deuses não passam de formas para a recognição. O que é encontrado são os demônios, potências do salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, e que só preenchem a diferença com o diferente; eles são os porta-signos. E é o mais importante: da sensibilidade à imaginação, da imaginação à memória, da memória ao pensamento – quando cada faculdade disjunta comunica à outra a violência que a leva a seu limite próprio – é a cada vez uma livre figura da diferença que desperta a faculdade, e a desperta como o diferente desta diferença. Tem-se, assim, a diferença na intensidade, a disparidade no fantasma, a dessemelhança na forma do tempo, o diferencial no pensamento.” (Diferença e repetição, p. 239).

254 ROSA, João Guimarães. Rosa: correspondência com seu tradutor alemão Kurt Meyer Clason (1958-1967). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 238. Carta datada de 09 de fevereiro de 1965, Rio de Janeiro.

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O menino e a menina – figurações expressivas de uma infância por vir – é

que nos leva a pensar uma infância do educar em sua força criadora e inventiva. A

poesia, mais que a história, talvez nos conduza a um discurso agudizado na

recuperação dos processos afetivos, nas epifanias acumuladas ao longo de um

percurso educativo, já que com sua força expressiva pode reconstituir o roteiro em

que se inscrevem os passos da trajetória – um mapa afetivo – uma caminhada única

e plural, mista. Rosa percorre uma geografia afetiva, criando imagens de lugares,

fenômenos e experiências. De um lugar sempre distante, de um lócus privilegiado de

onde emana a voz, coexistem pessoas, fatos, cenários, objetos, animais,

circunstâncias, vegetais. São coisas que se justapõem, que se misturam à

descoberta do menino, ao sem-juízo da menina. E é desta profusão de coisas que

emana uma escrita singularmente infantil.

Aqui encontram-se misturadas infâncias diversas, partes integrantes, de

diferentes domínios, infâncias latentes na matéria vertente, no impulso vital, na

matéria intensa da vida. Trata-se, ao nosso ver, da coexistência de instâncias

expressivas, cada qual ao seu modo, chegando à infância. Na movência, na

conectividade e proliferação multidirecional que expressam, esses conceitos

consubstanciam resistências inéditas. Saltam. Movimentam-se bruscamente.

Impõem riscos. Impelem-nos a buscar uma expressão educativa, antes de uma

forma educativa. Quem sabe a força expressiva do educar habite o apelo suave de

Nhinhinha: Deixa... Deixa...

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