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O HOMEM ENQUADRADO: REFLEXÕES SOBRE A MASCULINIDADE NO UNDERGROUND, A PARTIR DA REVISTA CHICLETE COM BANANA Anne Caroline da Rocha de Moraes Universidade Federal do Paraná Resumo. Produzida pelo cartunista Angeli em parceria com Laerte, Glauco e Toninho Mendes, a revista Chiclete com Banana é um marco no mercado editorial brasileiro no que se refere às histórias em quadrinhos para adultos. Lançada em 1985 pela Circo Editorial, ela revolucionou tanto na estética - que se aproximava do formato dos fanzines punks - como no modo de fazer humor, realocando as críticas à ditadura militar e a política institucional para um humor corrosivo, que tinha como principal foco os costumes da classe média urbana. Foi produzida na cidade de São Paulo, mas circulou por todo país, principalmente nos ambientes da cultura underground, e em seu conteúdo trouxe especialmente histórias em quadrinhos (HQ's) nas quais os cartunistas representavam seu cotidiano na capital paulista. Um ambiente de produção totalmente masculino foi percebido em toda revista através das representações nas HQ's, o que trouxe à tona o debate a respeito das relações de gênero dentro desse segmento da sociedade - que se colocava em oposição aos valores e costumes vigentes. Um dos objetivos deste trabalho é analisar, sob a luz da história cultural, quais são as possibilidades de se compreender as relações de gênero, principalmente a(s) masculinidade(s), por meio das representações nas imagens e narrativas das tiras produzidas pela revista. Deste modo, buscar compreender como se produziam e o que significavam as identidades de gênero masculinas no underground paulistano. Palavras-chave: Cultura underground; masculinidade; histórias em quadrinhos; humor paulistano. Introdução Os estudos históricos das relações de gênero não são mais novidade há algum tempo. E mesmo que a maioria desses estudos tenha como foco as mulheres, os estudos sobre a constituição das masculinidades tomaram força no Brasil, principalmente no início desse século 1 . Grande parte destes trabalhos, incluindo este, tem como objetivo desnaturalizar as divisões de gênero como fixas e imutáveis, 1 GIFFIN, Karen. A inserção dos homens nos estudos de gênero: contribuições de um sujeito histórico. Ciênc. saúde coletiva, Rio de janeiro, 2005, vol.10, n.1, p.48.

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O HOMEM ENQUADRADO: REFLEXÕES SOBRE A MASCULINIDADE NO UNDERGROUND, A PARTIR DA REVISTA CHICLETE COM BANANA

Anne Caroline da Rocha de Moraes

Universidade Federal do Paraná

Resumo. Produzida pelo cartunista Angeli em parceria com Laerte, Glauco e Toninho Mendes, a revista Chiclete com Banana é um marco no mercado editorial brasileiro no que se refere às histórias em quadrinhos para adultos. Lançada em 1985 pela Circo Editorial, ela revolucionou tanto na estética - que se aproximava do formato dos fanzines punks - como no modo de fazer humor, realocando as críticas à ditadura militar e a política institucional para um humor corrosivo, que tinha como principal foco os costumes da classe média urbana. Foi produzida na cidade de São Paulo, mas circulou por todo país, principalmente nos ambientes da cultura underground, e em seu conteúdo trouxe especialmente histórias em quadrinhos (HQ's) nas quais os cartunistas representavam seu cotidiano na capital paulista. Um ambiente de produção totalmente masculino foi percebido em toda revista através das representações nas HQ's, o que trouxe à tona o debate a respeito das relações de gênero dentro desse segmento da sociedade - que se colocava em oposição aos valores e costumes vigentes. Um dos objetivos deste trabalho é analisar, sob a luz da história cultural, quais são as possibilidades de se compreender as relações de gênero, principalmente a(s) masculinidade(s), por meio das representações nas imagens e narrativas das tiras produzidas pela revista. Deste modo, buscar compreender como se produziam e o que significavam as identidades de gênero masculinas no underground paulistano. Palavras-chave: Cultura underground; masculinidade; histórias em quadrinhos; humor paulistano. Introdução

Os estudos históricos das relações de gênero não são mais novidade há algum

tempo. E mesmo que a maioria desses estudos tenha como foco as mulheres, os

estudos sobre a constituição das masculinidades tomaram força no Brasil,

principalmente no início desse século1. Grande parte destes trabalhos, incluindo este,

tem como objetivo desnaturalizar as divisões de gênero como fixas e imutáveis,

1GIFFIN, Karen. A inserção dos homens nos estudos de gênero: contribuições de um sujeito histórico. Ciênc. saúde coletiva, Rio de janeiro, 2005, vol.10, n.1, p.48.

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apontando as mudanças históricas e o modo pelo qual o gênero é constantemente

produzido e reproduzido por diversos discursos.

Este artigo se trata de um primeiro esboço da pesquisa de mestrado no qual

buscarei compreender como a masculinidade pode ser pensada através dos estudos de

Histórias em Quadrinhos. Uma vez incluída no hall de fontes históricas legítimas, as

HQ’s tem demonstrado sua potencialidade em articular noções abstratas através de

signos dados e criados na interação entre artista e leitor. Como aponta Will Eisner:

O quadrinho tenta lidar com os elementos mais amplos do diálogo: a capacidade decodificadora cognitiva e perceptiva, assim como a visual. O artista para ser bem-sucedido nesse nível não verbal, deve levar em consideração a comunhão da experiência humana e fenômeno da percepção que temos dela, que parece consistir em quadrinhos e episódios2

Nesse sentido, o autor só pode ser compreensível se conseguir articular signos de

maneira inteligível, o que exige uma especial observação de sua própria sociedade e

relações sociais; principalmente nas histórias em quadrinhos undergrounds que visam

fazer uma crítica a sociedade e aproximar-se do leitor através da discussão de temas

cotidianos.

Deste modo, pretende-se articular a utilização das HQ’s como fontes históricas -

visando captar as contribuições destas para o campo historiográfico - focando nas

possibilidades diversas de se interpretar as relações de gênero de uma dada

sociedade. Para isso utilizarei uma história específica da revista Chiclete com Banana3,

buscando delinear especificamente de que modo a masculinidade é tratada ali. O texto

se organiza da seguinte forma: elucidação sobre o contexto underground de produção

da revista, as influências e características do artista que produziu a obra, para enfim,

fazer uma análise, apresentando as possíveis interpretações acerca da questão da

masculinidade nesta fonte.

Chiclete com Banana

A revista Chiclete com Banana se trata de uma produção bimestral feita para

2 EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo, 1999, p. 26. 3 “Bibelô com participação especial de Mara Tara” - desenhada por Angeli. CHICLETE COM BANANA, nº5, 1986, p.35.

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adultos, possuindo como temática recorrente os acontecimentos cotidianos que

ocorriam na metrópole paulista no período de redemocratização do Brasil(1985-1990).

A revista custava 9.000 cruzados em sua primeira edição, a mais cara do ramo -, era

diferente das revistas em Histórias em Quadrinhos usuais, seguia formato magazine da

revista de humor norte-americana MAD (20,5 x 27 cm), que era sua principal

concorrente. Com exceção da capa, o conteúdo da revista era impresso em papel-

jornal, tudo em preto e branco, por ser o mais barato – visto que a revista não continha

publicidade, e sobrevivia unicamente das vendas. Essa estética, sem cores e papel

barato colaborou para externar a ideia de um produto underground, próximo aos

fanzines punks. O estilo fanzineiro não se restringia à estética, pois - fazendo uma

aproximação ideológica -, não tinham como objetivo principal o lucro; antes, visavam

“chocar, irritar, levantar discussões e levar as pessoas a repensar suas opiniões"4.

Mesmo sendo um produto que buscava uma estética e uma ideologia underground, a

Chiclete com Banana teve ampla distribuição, tendo cerca de 120 mil exemplares

impressos em cada edição, que foram distribuídos por todo país.

A revista transpôs o humor político que até então era focado na política

governamental e na luta anti-ditatorial no Brasil - tendo como principal nome o

semanário O Pasquim-, para uma discussão a respeito do cotidiano e do

comportamento dos viventes da metrópole paulista. Arnaldo Angeli Junior foi o editor e

o principal quadrinista da revista Chiclete com banana, lançada pela Circo editorial -

editora criada em 1984 por Toninho Mendes. Este percebeu que havia muitos

quadrinistas com talento e que não havia um mercado disposto a receber esses artistas

- a não ser nos poucos grandes jornais, com as tiras diárias. Deste modo, ele e Angeli

4 Os movimentos undergrounds se caracterizam por transportar a “revolução” para o âmbito do indivíduo. Logo tanto o comportamento consumista como o conservadorismo sexual são colocados em questão por essa juventude. Principalmente no punk “a crítica irônica é mais voltada ao presente e ao cotidiano do que ao ‘governo’ ou ao ‘futuro da revolução’, que deixam de ser entendidos como os únicos alvos possíveis para a atuação política. Isso ocorre devido a uma representação negativa do espaço público e da política partidária, marcados como lugares de violência, despolitização e corrupção” Cf.: MORAES, Everton de Oliveira. Deslocados, desnecessários: o ódio e a ética nos fanzines punks (Curitiba, 1990-2000). Florianópolis, 2010, p.14. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.

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pensaram e articularam a Circo Editorial que reuniu publicações de Laerte, Glauco, Luiz

Gê, Irmãos Caruso, entre diversos outros nomes importantes para os quadrinhos

nacionais.

Quando a revista Chiclete com Banana foi lançada Angeli era um nome conhecido

da área, pois trabalhava em tiras diárias no jornal Folha de S. Paulo desde 1975 (onde

encerrou as tiras diárias, em maio de 2016); ali estrearam a maioria de seus

personagens mais conhecidos, tais como Rê Bordosa, Bob Cuspe e Meia Oito. Essa

estabilidade financeira foi o que possibilitou a Angeli trabalhar de maneira autônoma em

outros projetos, como foi a revista citada. A arte de Angeli teve influência direta tanto do

semanário brasileiro O Pasquim quanto do estadunidense Robert Crumb. Sendo Crumb

o principal quadrinista da geração underground em seu país – influenciou Angeli em

seu traço “pesado”, associado a ausência de cor e ao material barato de impressão, dá

a aparência de “poluição visual”. Esse estilo ajudava a passar a ideia de “sujeira” da

metrópole onde todos seus personagens vivem, contendo um rompimento direto com o

estilo mainstream de produção norte-americana (estilo das HQ's de heróis).

O modo pelo qual “real” e o “ficcional” se entrelaçam na narrativa de Angeli é

peculiar visto que ele busca expressar questões do cotidiano da metrópole,

caricaturando a visão sob determinados acontecimentos e sentimentos, através de seus

personagens. Como ele mesmo afirma:

Antes de tudo eu sou um voyeur. Gosto de ficar admirando as pessoas, sacando trejeitos, linguagem. Adoro ir num bar à meia-noite e ficar até as cinco da manhã olhando. (...) Muitos personagens nasceram da observação de um grupo, de um tipo de gente, de uma espécie qualquer e aí eu trago para o papel e começo a mexer. O personagem só fica interessante quando eu misturo umas coisas minhas com aquilo.5

5 Angeli cresceu no bairro da Casa Verde em São Paulo em companhia de seu amigo Toninho Mendes. Aos treze conseguiu emprego de office-boy, e foi então que conheceu verdadeiramente sua cidade, iniciando naquele momento a observação do que seria o futuro cenário de seus mais importantes personagens. Durante um curto período, morou no Rio de Janeiro onde teve contato com a produção do semanário O Pasquim. Possuia caráter crítico em relação a sociedade conservadora e uma simpatia pelos movimentos alternativos. Cf.:SANTOS, Aline Martins dos. São Paulo e o “cenário urbano” representado através das histórias em quadrinhos presentes na revista Chiclete com Banana de Angeli. Revista Contemporânea, Salvador, ano 1, nº1, p.149.

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Num contexto mais abrangente, o processo de redemocratização do país trazia

um novo momento para a mídia. Depois dos anos dos mais diversos tipos de censura,

neste ponto os quadrinistas “testavam” os limites da “Nova República”. As críticas feitas

a sociedade ou a política se deslocam de um humor carregado metafórico, e passam a

ser representados de maneira “escrachada”, com forte apelo a nudez e palavrões.

Dentro do âmbito das HQ's existe uma consolidação de um público fiel e

especializado, e este é comumente conhecido por ser majoritariamente masculino. A

Circo Editorial não é exceção, o ambiente de produção é ocupado somente por

homens, com ressalva da quadrinista Ciça que tem um livro publicado pela editora. Em

entrevista para o programa Roda Viva, Angeli pergunta para Laerte se este não se

sentiria “intimidado” por aquele ambiente possuíam “muita masculinidade”6 – visto que

atualmente Laerte se assumiu transgênero. Em resposta à Angeli, Laerte afirma que

não se sentia constrangido apesar de aquele ambiente ser “cheio de

heterossexualidade”7.

Esse ambiente, citado por Laerte, pode ser caracterizado por uma série de

contradições, visto que neste período ocorria uma mudança nas relações de gênero

ocasionada principalmente pelo movimento feminista. Os papeis tanto femininos quanto

masculinos começam a ser repensados, ao mesmo tempo em que a rigidez moral da

ditadura militar era uma sombra que seguia país durante o período da

redemocratização8. Esses embates aparecem na revista Chiclete com Banana de

maneira peculiar, visto que a composição underground possui caráter diferente das

produções da mídia de massas.

Antes de analisarmos a História em Quadrinhos precisa-se clarificar que quando

trabalhamos com categorias de gênero, como masculino e feminino, não estamos

6Angeli, Laerte e Glauco foram criadores de Los três amigos, histórias publicadas na Chiclete com Banana . Cf.: LAERTE - 20/02/2012. Entrevista com cartunista Laerte Coutinho ao programa Roda Viva. 86’12’’. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=j5hXQDThUiA>. Acesso em: junho de 2016. 7Laerte trabalhou com Angeli e Glauco em diversos projetos, inclusive na Chiclete com Banana. Na época da revista era bissexual, e em 2009 passou a se auto-ntitular como transgênero. 8Cf.: NOLASCO, Socrates Alvares. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p.17-18.

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lidando com objetos biológicos. Esse conceito foi cunhado sob a ideia de que não existe

uma definição “natural” para o que entendemos como homem e mulher, o que ocorre é

um processo de constante construção dessa imagem generificada, que associa

determinadas características dos sujeitos a um determinado estereótipo. Por exemplo,

quando se diz homem várias associações são feitas: se define um corpo, uma

sexualidade e o desejo desse sujeito. Sendo “gêneros inteligíveis” aqueles que

articulam de maneira “coerente” o que se espera de alguém que tenha determinada

característica física (o sexo). Do homem se espera que pelo fato de ter pênis, seja

coerente ter desejo e manter relações sexuais com mulheres (heterossexualidade), e

ter “aparência” de homem - roupas específicas, vocabulário, modo de agir, etc9. A

coerência dessa relação não é algo fixo e imutável, é reordenada conforme

determinadas sociedades e momentos históricos.

Em nossa sociedade ocidental, por uma série de questões históricas ocorre uma

constante limitação do gênero em uma binaridade: o feminino e o masculino. Dentro

desse esquema, uma série de características são constantemente reafirmadas como

diretamente referentes a cada papel social, deste modo, “alguns comportamentos são

definidos pela cultura como pertencentes a um ou outro sexo, aos quais o homem e a

mulher 'devem recalcar para serem reconhecidos como homem e mulher'”10.

Masculino e feminino não existem em separado, eles são uma relação intrínseca:

do homem se espera virilidade, racionalidade, inteligência, em contraponto a mulher

deve ser passiva, submissa, delicada e emocional; modelos que vêm de um esquema

binário recorrente em nossa sociedade de divisão entre cultura/natureza,

razão/emoção, público/privado, mente/corpo, homem/mulher11.

No programa Roda Viva, enquanto Angeli fala de um comportamento “cheio de

masculinidade”, Laerte fala em “heterossexualidade”. Laerte, que atualmente é uma

9BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013 p.38. 10 TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, v.24, p.140. 11 GIFFIN, Karen. Op. cit., p.48.

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mulher-trans bissexual, comenta que recalcou “seu lado homossexual” e por vezes era

homofóbico, por conta do contexto de heterossexualidade quase “compulsória” no qual

estava inserido. Esse ambiente de constante reafirmação de uma masculinidade

pautada na heterossexualidade pode ser visto na revista, mas não podemos restringi-la

a isso, como veremos na HQ's a ser analisada.

O encontro entre Bibelô e Mara Tara

Esta história foi um importante momento para a revista, pois ocorreu o encontro

entre dois personagens fixos muito apreciados pelos fãs: Bibelô e Mara Tara. Ambos

são reconhecidos por suas histórias, nas quais o tema principal são as complicadas

relações entre os gêneros.

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Figura 1 "BIBELÔ E MARA TARA" Fonte: Revista Chiclete com Banana, nº5 (1986, p.35)

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Mara é uma cientista que estuda o “o sexo das bactérias”, graficamente é

representada com jaleco, corpo todo coberto, óculos, e seu discurso denota uma

mulher “recatada”. Por conta de seu estudo sobre as bactérias ela é “infectada” pelo

vírus ninfu maníacus, a partir desse momento, toda vez que é submetida a situações

“sexuais” ela se transforma em Mara Tara, uma ninfomaníaca. A transformação é visível

em suas roupas e comportamento que na maioria das histórias possuem teor

sadomasoquistas; como em seus diálogos e comportamento que a denotam como uma

“viciada em sexo”. A personagem pode ser entendida como encarnação de uma

fantasia masculina, baseada no estereótipo de que a mulher deve ser “recatada”

publicamente e “tarada” no ambiente privado. Sendo lida como uma mulher-objeto do

desejo masculino, representada de maneira “hiperbólica”, ela rompe essa divisão entre

o âmbito público e privado.

Já Bibelô, segundo Angeli em entrevista: “é um machão que trata as mulheres da

maneira mais porca possível [...] toda vez que eu sinto que está saindo pra fora esse

machão, lembro que é ridículo ser igual ao Bibelô”12. Deste modo, podemos entender

que o quadrinista possui uma visão crítica a respeito das relações de gênero, já

consciente de que ocorreram mudanças, ao contrário de seu personagem, que está

“atrasado” em relação ao modo de se relacionar com as mulheres. Somente pela

existência deste personagem podemos concluir que existe o questionamento a respeito

do papel do homem neste período e fica claro que há uma negativação de um

determinado “tipo” de masculinidade.

Olhando a expressão gráfica de Bibelô, podemos ver que se trata de um homem

mais velho por conta da representação das marcas deixadas pela barba, pelo uso do

bigode, do palito na boca (primeiro quadro), da camisa aberta com os pelos expostos e

o pente na mão – que em conjunto denotam um estereótipo de “tiozão” ou “homem

bruto”, homem “à moda antiga”. A história se inicia com ele chegando num bar onde

aparecem sentadas algumas mulheres de costas quando ele diz “Não se afujam

12 SANTOS, Aline Martins dos. “Udigrudi”: o undergound tupiniquim: Chiclete com Banana e o humor na redemocratização brasileira. Niterói, 2012 , p. 113. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.

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garotas!! Chegou um macho no pedaço”, denotando o desprezo de Bibelô em relação

aos outros homens presentes no bar que não seriam “machos” como ele 13.

Ouvindo o comentário Mara Tara se vira e conversa expressando o quão surpresa

está por estar na presença de um “macho no duro mesmo”; deste modo, a personagem

denota que não existiriam mais muitos “machos” de verdade. Esse diálogo inicial já

pode apontar que a masculinidade relacionada ao “homem à moda antiga” já está

ultrapassada, tanto que é difícil encontrar “homens como Bibelô”. Podemos entender

isso quando Angeli comenta que ele mesmo reprimia seu lado “Bibelô”, pois sabia o

quão ridículo era ser como ele. Segundo Nolasco, a partir da segunda metade da

década de 80 começa a entrar em pauta - quase que exclusivamente na mídia feminina

- um debate sobre um “novo homem” que questiona os papeis clássicos do masculino14.

Aqui, podemos ver que de algum modo o debate se estendia a vários âmbitos da

sociedade, inclusive no ambiente underground no qual circulava Angeli.

No terceiro quadro Mara Tara inicia com o que podemos chamar de “inversão” dos

papéis de gênero. Segundo Nolasco, a sexualidade masculina é baseada num

imaginário marcado pela “força, poder e dominação” na qual a mulher já não é “outro-

sujeito” e sim “outro-objeto”15. Neste caso, o agente dessa violência sexual dominadora

- que geralmente seria perpetuada pelos homens – tem ressonância em Mara Tara,

uma mulher. O caráter cômico está tanto relacionado a essa “inversão” de papeis,

quanto pelo fato de Angeli representar uma “vingança” feminina contra Bibelô. Se

durante as outras histórias ele assedia e deixa as mulheres constrangidas, nesta o

script se inverte, e quem termina assediado e constrangido é o próprio personagem.

A aparente intenção de Angeli seria ridicularizar Bibelô, e consequentemente

homens com esse mesmo perfil. Mas ao zombar da masculinidade, Angeli acaba por

13 Mesmo que não haja nenhum outro homem nesse quadro – somente o garçom Juvenal que aparece no último-, é possível concluir que neste bar tenham várias pessoas, inclusive outros homens. A conclusão se trata do mecanismo no qual a partir de fragmentos de uma imagem, seja possível se imaginar o todo. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos: história, criação, desenho, animação, roteiro. São Paulo: M. Books, 2005, p.63 14 NOLASCO, Sócrates. Op.cit., p.172. 15 Idem, pp. 71-72.

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reiterar o que seria o objeto da crítica. Para questionar o comportamento “machão” ele

coloca em questão a própria sexualidade do personagem: Bibelô não conseguiu “dar

conta” de uma mulher como Mara Tara. Ou seja, aquela “masculinidade” é uma

performance, pois quando sua virilidade é “posta a prova”, através do assédio de Mara

Tara o personagem acaba por mostrar sua verdadeira máscara, é um “marica”. Penso

em performance no sentido dado por Butler onde “em vez de pensarmos em

identificação original o gênero é visto como história pessoal/ cultural de significados

recebidos, sujeito a um conjunto de prática imitativas que constroem a ilusão de um

gênero”16. Aqui Angeli mostra que o “último dos machos” na verdade se trata de uma

“imitação” do que “deveria” ser um “macho”.

Conforme as investidas de Mara Tara vão se acirrando, podemos perceber uma

crescente ansiedade por parte do personagem, denotada pelo número crescente de

gotas de suor representadas. Também o diálogo é interessante, pois Bibelô utiliza

frases que são entendidas como “desculpas” femininas para não ceder ao assédio

masculino: “ vamos levar um papinho antes?”; “puxa... já é tarde... tenho um

compromisso...”. O papel dos gêneros sendo “invertidos” causa a ansiedade no

personagem, ele passa representar o papel feminino e percebe isso. Pensando que

existe “uma realização performativa [do gênero] em que a platéia social mundana,

incluindo os próprios atores, passam a acreditar, exercendo-o sob forma de uma

crença”17; essa crença é colocada em cheque, pois ele percebe o caráter performático

do gênero, já que na história ele é passivo e não-viril, causando constrangimento e

ansiedade no personagem que não consegue lidar com tamanha contradição interna.

O último quadro é estendido e nos dá uma visão panorâmica da cena. Bibelô

finalmente mostra sua “indignação” com um grito, expressa pela frase em negrito, que

finalmente demonstra o que ele pensa sobre Mara Tara. “Louca!Tarada!”, só vai tirar a

cueca “passando por seu cadáver!”; ou seja, sendo a sexualidade masculina

16BUTLER, op, cit., p.197. 17 Idem, p. 200.

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diretamente relacionada a uma “necessidade de dominação, ascendência e controle de

um sobre o outro”18, Bibelô só consegue compreender a relação com uma mulher

enquanto é o seu desejo que tem centralidade na relação. Já a “passividade, a

quietude e a submissão são qualidade opostas àquelas pelas quais serão socializados

os meninos. Contudo essas qualidades serão desejadas nas mulheres.”19. Deste modo,

no momento em que Mara Tara recusa a passividade de seu papel feminino, ela “toma

as rédeas” da situação e “rouba” o lugar de Bibelô; não por acaso, ele passa a repeli-la.

Para se vingar de seu personagem, Angeli o coloca em uma situação de

questionamento da “masculinidade” ele a mostra como uma performance do que seria

ser “macho”, mais do que numa verdadeira e natural virilidade sexual. Visto que, pelo

fato de Mara Tara não ser uma mulher passiva, Bibelô não consegue cumprir seu papel

de “macho”.

Colocando a história dentro de seu contexto de produção, podemos pensar que

a principal ideia de Angeli, nessa história, seria zombar de homens que são “machões”

como Bibelô, mas ao fazer essa crítica ele reitera parte da própria masculinidade que

estava sendo questionada: a recusa de Bibelô a se relacionar com Mara Tara pode dar

a entender que “machões” como Bibelô causam o riso porque não conseguem levar a

cabo sexualmente o que proporiam em suas atitudes; ou seja, Bibelô é humilhado

porque não é “macho” o suficiente para aceitar as investidas de Mara Tara. Deste

modo, se a masculinidade do personagem pode ser entendida como uma performance

que fora desmascarada, existe implicitamente a crença que há uma verdadeira

masculinidade que não é apenas “fingimento”. Esse “verdadeiro macho” (talvez

encarnado no leitor ou no próprio Angeli) não precisaria ser “grosso” ou “rude” como

Bibelô, ao contrário, não precisa de uma atuação externa, poderia provar sua

masculinidade simplesmente reafirmando sua virilidade possuindo (mulheres como)

Mara Tara.

18NOLASCO, Sócrates, op.cit,. p.67 19 Idem p.68.

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Considerações finais

Em nenhum momento Bibelô é questionado sobre seu corpo masculino, sobre o

desejo ou sexualidade heterossexual, nem em seu gênero (“mostrado” no seu modo de

se comportar). Sua masculinidade é balançada pelo fato de a mulher não ter papel

passivo nessa história.

Ao mesmo tempo em que Angeli expressa, talvez sem intenção, um caráter

performático da masculinidade de Bibelô ele mostra desconforto causado por esse novo

papel feminino, ativo. Mesmo tendo consciência do “novo homem” que tem sido

gestado em contraponto àquela “velha masculinidade”, ele denota que existe um medo

implícito em se relacionar com mulheres “ativas”. Mara Tara, de algum modo representa

uma mulher que recusa (mesmo que inconscientemente, já que só é ninfomaníaca

porque foi “infectada” por um vírus) ter o papel que lhe foi dado socialmente; não só

respondendo Bibelô, mas assumindo a atitude dele, ela faz uma espécie de vingança,

colocando o homem numa situação de constrangimento - que geralmente as mulheres

são colocadas.

Neste caso masculino e feminino são colocados em relação direta, desnudando a

artificialidade de ambos; não existindo uma ‘natureza’ definida pelos ‘sexos’ - o homem

não é naturalmente viril, e a mulher não é naturalmente passiva. Bibelô é questionado

em sua performance do masculino; ao mesmo tempo o medo de uma mulher ativa é

denotado; e por fim, o leitor pode rir pois pensa que Bibelô é um “marica”, e um

“homem de verdade” ficaria feliz com o fato de ter sido assediado por Mara Tara.

Assim, podemos concluir que no ambiente em que a revista foi produzida existia

um entendimento e até um questionamento a respeito das relações de gênero. A

masculinidade retratada no personagem é alvo de crítica, o que denota uma

preocupação em tentar desconstruir essa “imagem” de homem “grosso” e “rústico” que

trata as mulheres, segundo Angeli, de maneira “porca”. Mas percebemos que se trata

de um cenário permeado de contradições internas, onde a própria crítica carrega algo

de conservador; mesmo o underground ainda conserva algo das ideias machistas que à

priori estavam sendo contestadas.

Page 14: Chiclete com Banana Circo com objetos biológicos. Esse conceito foi cunhado sob a ideia de que não existe uma definição “natural” para o que entendemos como homem e mulher,

Referências

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