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  • chico buarque, sinal aberto!

  • Sylvia Cyntro (Org.)

    Chico Buarque, sinal aberto!

  • 2015Viveiros de Castro Editora Ltda.Rua Visconde de Piraj, 580/ sl. 320 IpanemaRio de Janeiro rj cep 22410-902Tel. (21) [email protected] www.7letras.com.br

    2015 Sylvia Cyntro

    Este livro segue as normas do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

    Coordenao editorial Isadora Travassos

    Produo editorialEduardo SssekindRodrigo FontouraSofia SoterVictoria Rabello

    RevisoBruno Lima

    cip-brasil. catalogao-na-fontesindicato nacional dos editores de livros, rj

    c46

    Chico Buarque, sinal aberto! / organizao Sylvia Cyntro. - 1. ed. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.

    isbn 978-85-421-0324-3

    1. Msica - Brasil - Histria e crtica. 2. Literatura brasileira - Histria e crtica. 3. Criao (Literria, artstica, etc.). I. Cyntro, Sylvia.

    14-18486 cdd: 780.981 cdu: 78(81)

  • Sumrio

    O que seria?Enrique Huelva Unternbumen 9

    O que ?Sylvia Cyntro 11

    os contextos histricos em chico buarque

    Ironia, humor e tradio em Chico BuarqueClodo Ferreira 15

    Palavras de um ouvinte e admiradorHermenegildo Bastos 20

    Um cantor atormentado: Sinh, de Chico Buarque e Joo Bosco, e as origens da cano brasileiraManoel Dourado Bastos 24

    gnero e memria em chico buarque

    Chico Buarque, ou como nasce a emoo estticaCludia Falluh Balduino Ferreira 33

    As mulheres na potica da pera do malandroElga Prez Laborde 38

    Chico Buarque: confrontado e confrontadorRinaldo de Fernandes 45

    Quem sou eu para falar... do ChicoSara Almarza 52

  • chico ensina

    Chico Buarque e o ensino de gramticaRozana Reigota Naves 63

    Chico Buarque em sala de aulaLudmila Gondim 72

    A intertextualidade em Chico BuarqueMarcia Elizabeth Bortone 77

    chico derramado

    Chico alm da realidadeJos Castello 91

    Histrias de Chico BuarqueLuis Turiba 96

    chico buarque multiartista

    A srie literria e a MPBAnazildo Vasconcelos da Silva 103

    Mia Couto, leitor de Chico Buarque: um novo perfume para a antiga valsaAna Claudia da Silva 111

    De pera em pera, o malandro anda assim de fiis!Andr Lus Gomes 119

    A potica dos desvalidos na construo da cidadania estticaJos Mauro Barbosa Ribeiro 127

    Mo e contramo em Chico BuarqueSylvia Cyntro 135

    chico buarque e a literatura na universidade de braslia: o sinal aberto das pesquisas multifaces

    Um hfen entre dois mundos: cano dialgica no fado tropical de Chico Buarque Ana Clara Magalhes de MedeirosAugusto Rodrigues da Silva Junior 143

  • A hipermodernidade revelada em Querido dirioBrunna Guedes Marques de Lima 149

    Ode aos ratos: a exaltao carnavalizada do homemElizabete Barros de Sousa Lima 156

    Um clice de versos e imagens: Chico Buarque e Arthur OmarKelly Fabola Viana dos Santos 162

    O cinema literrio de Chico Buarque: traduo coletiva nos tempos da ditadura militar no BrasilLemuel da Cruz Gandara 167

    Pelo olho mgico: uma viso ps-moderna da identidade em Estorvo e BudapesteMrcia Fernandes Ribeiro 173

    Textamentos e estradas tortas at o fim: Affonso Romano de SantAnna e Chico BuarqueMaxuny A. N. da Silva 177

    Chico Buarque meu falso mentirosoJlio Diniz 183

    sobre os autores 201

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    O que seria?Enrique Huelva Unternbumen

    Em meio a um desses eternos e incuos debates sobre a importncia de uma determinada rea de conhecimento em comparao a, ou melhor, em detri-mento de outra ou outras, certamente j cansado de ouvir os mesmos argu-mentos vazios de sempre, o historiador Reinhart Koselleck interrompeu os debatentes com a seguinte pergunta retrica: quem contribuiu mais para o desenvolvimento da conditio humana e o avano da humanidade: Albert Einstein ou William Shakespeare? Max Planck ou Michelangelo? Kant ou Newton?. A pergunta impactou como se se tratasse de uma invocao daquela outra, me de todas as perguntas retricas, proferida por Ccero nas suas Catilinrias: At quando abusars, Catalina, da nossa pacincia?.

    No a minha inteno abusar da de vocs nem ignorar o sbio conselho que, para o bom entendedor, inerem as palavras de Koselleck. Contudo, peo licena para sugerir-lhes realizar um dos exerccios mentais que decorreriam da tentativa de fornecer uma resposta s interrogativas do historiador: como seria o mundo sem Michelangelo? E sem Shakespeare? E sem Newton?

    Estendo o contrafactual ao motivo do nosso encontro de hoje: como seramos sem Chico Buarque? Como seria a sociedade brasileira sem Chico Buarque de Hollanda?

    Onde estaramos se no houvesse amado daquela vez como se fosse a ltima e no tivesse atravessado a rua com o seu passo tmido? Teramos bebido daquela bebida amarga, tragado a dor e engolido a labuta? Teramos lanado o nosso grito desumano e inventado o nosso prprio pecado? Dormiria ainda a nossa ptria, me to distrada, sem perceber que era subtrada em tenebrosas transaes? Ou talvez o samba, a viola e a roseira/ a fogueira no teria queimado/ e nada disso teria sido apenas uma iluso passageira?

    E o que saberia eu sobre o meu amor? Seria a casa ainda sua, quando voc precisasse de mim? Olhos nos olhos: ser que ainda gostaria de ver

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    como suporta me ver to feliz? Ainda prometeria te querer at o amor cair? Ainda te reencontraria/ com certeza/ a tempo/ num tempo da delicadeza? Ou, quem sabe, afobado, acharia que amores so sempre amveis/ e futuros amantes, qui, se amariam/ sem saber/ com o amor que eu um dia/ deixei para voc?

    Conheceramos a Teresinha, a Rita, a Rosa, a Brbara, a Ana de Amsterdam, a Joana francesa? Que teria sido feito da maldita Geni? Quem teria arrasado o meu projeto de vida, acabado com a minha lira, levado o meu sorriso, e arrancado do peito o que me de direito? Confesso, foi aquela mulher! A Anglica, a Carolina, a Ceclia, aquela, que danarina, aquela que faz cinema, essa moa que est diferente, aquela pequena que me faz penar, aquela que me obriga a rimar a curta novela com o tanto que eu sou feliz com ela.

    No tenho uma resposta certa a estas perguntas. Certamente sem o Chico seramos diferentes, provavelmente mais pobres, qui piores. Pelo que me diz respeito, confesso que, embora estrangeiro outrora, no me sinto estranho na companhia do Chico e no so poucas as vezes/ que largo o afazer/ e me pego em sonhos a navegar/ numa valsinha que me vai levando/ e que, mesmo com o nada feito/ com a sala escura/ com um n no peito/ me acompanha e faz/ que o dia amanhea em paz.

  • 11

    O que ?Sylvia Cyntro

    Talvez o mundo no seja pequeno nem seja a vida um fato consumado

    chico buarque, Clice

    Esta a terceira edio, agora disponibilizada em livro, do Simpsio de Crtica de Poesia do Programa de Ps-Graduao em Literaturas do Instituto de Letras da UnB, apoiado pelo Departamento de Teoria Literria e Literaturas, Capes, Fundao de Apoio Pesquisa do DF e por muitos amigos e amigas que fomos agregando no caminho, bastando apenas pro-nunciar duas palavras mgicas: Chico Buarque.

    Vale aqui um breve histrico dessa ideia de um Simpsio com foco em poesia e cano que nasceu junto com a criao do Grupo de Performance e Pesquisa Poticas Contemporneas, o VIVOVERSO, em 2007. A proposta era a de propiciar uma reflexo ampla e crtica sobre a representao potica literria contempornea. Com esse objetivo, especialistas da rea na casa, bem como convidados das cinco regies brasileiras e convidados interna-cionais, j estiveram entre ns para debater as relaes da poesia com as outras artes e reas do conhecimento. O I Simpsio, Poesia: lugar do con-temporneo, em 2008, e o II Simpsio, Poesia: olhares e lugares, em 2010, propiciaram a construo de novas competncias na investigao do texto potico.

    O primeiro evento integrou a Programao da I Bienal Internacional de Poesia (I BIP), coordenada pelo poeta, diretor da Biblioteca Nacional de Braslia poca, Antonio Miranda, e homenageou o poeta Affonso Romano de Sant Anna, em presena. Para nossa alegria, o espetculo Fale-me de amor, do Grupo VIVOVERSO, e o prprio Affonso levaram um grande pblico abertura da Bienal, no Conjunto Cultural da Repblica. J o II Simpsio elegeu o cancionista e poeta Oswaldo Montenegro, que esteve presente para receber a homenagem, por ocasio dos 50 anos da capital. Tambm para ele aconteceu uma energizada apresentao com muita poe-sia e msica, como para Chico Buarque, embora este em ausncia, no 2014 de homenagem aos seus 70 anos e 40 do disco Sinal fechado.

  • 12

    Nesta edio, a terceira, o Simpsio Quem canta comigo? Chico Buarque, sinal aberto! elegeu este que um dos maiores cones da cena artstica brasileira e internacional. O valor social da arte mltipla do com-positor, cantor e escritor, cuja postura de resistncia poca da ditadura militar tem servido como inspirao a geraes, visto que sua obra cobre meio sculo da histria do Brasil, explicitada tanto pelas referncias quali-tativas como quantitativas, tendo ele produzido mais de 500 canes, rotei-ros para teatro, cinema e dana, alm de cinco romances.

    Agradeo aos convidados, aos colegas da UnB e alunos que, na pre-parao desse evento, mostraram, como um dia disse Chico Buarque, em Clice, que talvez o mundo no seja pequeno/ nem seja a vida um fato consumado. Em funo de sua presena e agora com sua contribuio, o nosso universo crtico literrio contribui para expandir a fortuna crtica sobre o artista, atualizando a leitura de parte de sua extensa obra.

    Para concluir, informo que, apesar das muitas tentativas, no conse-guimos a presena fsica do homenageado. Mas no nos conformamos muito com isso. Sobre o convite para que Chico Buarque de Hollanda esteja entre ns, sempre nos empenharemos. Quem sabe um dia, por descuido ou poesia....

    Destaco o apoio do diretor do nosso Instituto de Letras, Professor Enrique Huelva especial sensibilidade entre ns, e agradeo (nunca o bastante) seu incentivo s nossas intervenes poticas, uma vez mais.

    Como todos sabemos, com Enrique Huelva no h o que ser. Pois sempre .

  • os contextos histricos em chico buarque

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    Ironia, humor e tradio em Chico BuarqueClodo Ferreira

    Qual a contribuio do genial Chico Buarque aos compositores brasilei-ros? A resposta a esta questo quase impossvel, tamanha a variedade de influncias dele sobre a arte de fazer msica popular. Alm de seu papel indiscutvel na cultura e na poltica, o autor permitiu avanos na perspec-tiva esttica. Poucos tiveram obra to profcua que resultou em verdadeiros clssicos da discografia nacional. Sua produo permite inmeros recortes, dada a capacidade de empatia, de escrever a partir do olhar de tantas per-sonagens incorporadas.

    Quando apareceu no fervor dos festivais da dcada de 1960, veio com uma chama de criatividade e propostas estticas (MELLO, 2003). Mas man-teve, ao mesmo tempo, uma linha de continuidade intencional nas guas caudalosas da tradio.

    A observao de que Chico conserva e, simultaneamente, supera a tradio, fica evidente quanto aos gneros que adotou. No seu surgimento, enquanto a Jovem Guarda se alinhou s correntes internacionais do rock, Chico permaneceu fiel aos ritmos nacionais. Ele procurava estar prximo do maxixe, gnero anterior ao samba at hoje no plenamente resgatado. Em Bom tempo, usa as levadas do maxixe. Diz um trecho da letra:

    Ando cansado da lidaPreocupada, corrida, surrada, batidaDos dias meusMas uma vez na vidaEu vou viver a vidaQue eu pedi a Deus

    Os sambas so explcitos em Chico, especialmente quando insiste nos caminhos meldicos dos sambistas dos anos 1930/1940. O samba foi adotado como uma msica-smbolo da nao no incio do sculo pas-sado (VIANA, 2002), embora sendo tipicamente carioca. Ele incorporou a influncia dos bossa-novistas, com quem desenvolveu parcerias, a exem-plo de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (CASTRO, 2007). H um interesse

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    pelas modinhas e canes de roda, onde buscou inspirao, como em Terezinha, construda a partir de cantos tradicionais:

    O terceiro me chegouComo quem chega do nada:Ele no me trouxe nada,Tambm nada perguntou.

    Uma demonstrao de que Chico respeitava os ecos do passado vem de seu encontro com Mrio Reis. Mrio foi um dos pais do canto brasileiro. Foi uma criao de Sinh, nos anos de 1920. Sinh convenceu Mrio Reis a inaugurar uma forma de canto em contraponto aos tenores da moda. O estilo vocal de Francisco Alves e Vicente Celestino dominavam, quando Sinh provocou a existncia da dupla Francisco Alves e Mrio Reis. Uma voz grandiosa em dueto com uma voz suave, ritmada, um canto moderno. Mrio abandonou a carreira aos 36 anos por motivos no sabidos. Aos 65 anos, resolveu gravar um disco temporo, relembrando sucessos e lanando coisas novas. Entre as novidades, estavam duas joias do jovem Chico. Uma foi Bolsa de Amores, cortada pela censura e mantida indita at a reedio do disco.

    A outra cano de Chico que Mrio Reis gravou foi a Banda. Ao lanar o disco, Mrio teve uma plateia de convidados, onde Chico foi includo. Nessa ocasio, Chico confidenciou a Mrio que havia composto A Banda pensando na interpretao dele (GIRON, 2001). Mais uma vez, ficava patente que Chico prezava a msica de todos os tempos.

    Ainda falando dos gneros, preferia as valsas, as modinhas, os boleros e canes. A propsito, gostava de nome dos gneros, como Valsinha, com Vinicius de Moraes.

    Existe um vis entre os bons letristas que se caracteriza pela dose salu-tar de ironia e humor. Tal linhagem de autores terminou por criar uma tra-dio, a partir da primeira dcada do sculo XX. O nacionalismo em Chico Buarque no tem paralelo com o nacionalismo do Estado Novo. O tempo de Vargas refletia o surto nacionalista dos anos 1930/1940, quando os pases procuravam ter sua cultura como identidade para se afirmar no cenrio internacional entre as grandes guerras mundiais (ORTIZ, 1985). O carter nacional na gerao de Chico funcionava como resposta ao imperialismo norte-americano. Portanto, ali no era o antigo nacionalismo tropical, mas um posicionamento poltico diante da invaso cultural estrangeira. Chico,

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    entretanto, no optou pelo tom panfletrio. Havia sutileza no seu posicio-namento, o que lhe valeu vaias nos festivais. O tempo mostrou que as pro-postas eram contundentes e as vaias restaram como uma incompreenso.

    Chico reverbera uma vocao. A msica popular, desde seus primr-dios, descobriu ironia e humor entre seus compositores mais brilhantes. O jornalista Lcio Rangel havia identificado tal marca. Em suas crnicas, Lcio nunca escondeu seus letristas preferidos. Em sua lista apareciam algumas figuras que se repetiam. As mais constantes eram Sinh, Noel Rosa e Orestes Barbosa (RANGEL, 2007). Entre eles, saltam aos olhos a iro-nia e humor. Concordando com a percepo de Lcio Rangel, observa-se o trao que une os bons letristas.

    O carioca Sinh pode ser considerado um dos pioneiros dos letristas da msica urbana. A indstria fonogrfica encontrou nele um frtil com-positor na dcada de 1920, com mais de 150 msicas gravadas. Ele demons-trava a habilidade nos versos pr-modernos e cheios de malcia. Isso numa poca em que as letras se derramavam em lgrimas e pompas. No teatro de revista ou teatro de rebolado , Sinh surpreendia por linguagem des-contrada e inteligente. O teatro de rebolado exibia peas com crticas aos costumes e se prestava pura diverso. Uma linguagem direta e debochada que encantava as plateias (PAIVA, 1991). Numa cano simples de amor, Sinh escreveu essa preciosidade intitulada Maldito costume:

    Eu juro acabar com esse costume que voc temFalando de mim, dizendo horroresE me querendo bem

    A descontrao dos versos, a leveza e a inteligncia sutil presentes nas primeiras gravaes do Brasil urbano implantou uma dinastia de letristas com o perfil que Chico Buarque encarnou em dcadas posteriores.

    Numa ordem cronolgica, outro exemplo vem de Orestes Barbosa. Sua versatilidade ficou consagrada na letra de Cho de estrelas, musicada por Slvio Caldas. Ele escreveu em Positivismo, sua parceria com Noel Rosa:

    A verdade meu amorMora num poo Pilatos l na Bblia quem nos dizE tambm faleceu Por teu pescooO infeliz autor da guilhotina de Paris

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    O prprio Noel Rosa, que conviveu com Sinh e Orestes, foi um dos antecessores do modo de compor que se firmou em Chico. Noel parece ainda mais prximo, quando coloca a cultura popular numa perspectiva de crtica social quase chapliniana. Aqui temos uma cena que transparece nos versos de Pela dcima vez, numa potica buarquiana:

    Joguei meu cigarro no cho e piseiSem mais nenhum aquele mesmo apanhei e fumeiAtravs da fumaa neguei minha raa chorando, a repetir:Ela o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir

    O repertrio de Noel rico em exemplos dessa forma sagaz de com-por. Mesmo se tratando das mgoas amorosas e desastres afetivos, perma-nece o fio da ironia. A modernidade com que descreve uma visita quando ele estava ausente mostra como um perfeito antecipador de Chico, espe-cialmente nos versos de S pode ser voc:

    Voc mandou lembranas e foi logo emboraSem dizer qual o primeiro nomeDe tal visitaMais cruel, mais bonita que sinceraE pelas informaes que recebi j viQue essa ilustre visita era vocPorque no existe nessa vidaPessoa mais fingidaDo que voc

    A fleuma que Chico desenvolveu nos anos de 1970 e 1980 no ficou no passado, mas se aperfeioou com o tempo. Pode ser que algum julgue que o compositor teve seu melhor momento naquele passado de glria incon-testvel. Tal concluso no parece se confirmar. A obra de Chico Buarque a partir dos anos 2000 mostra claramente uma sequncia aprimorada de sua capacidade expressiva. Qualquer dvida, s conferir a preciosidade na letra de Sinh, musicada por Joo Bosco, lanado em 2011:

    Para que me pr no troncoPara que me aleijarEu juro a vosmecQue nunca vi SinhPor que me faz to malCom olhos to azuisMe benzo com o sinalDa santa cruz.

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    E, para terminar, a perfeio dos versos de A moa do sonho, com melodia de Edu Lobo, de 2001:

    H de haver algum lugarUm confuso casaroOnde os sonhos sero reaisE a vida noPor ali reinaria meu bemCom seus risos, seus ais, sua tezE uma cama onde noiteSonhasse comigoTalvez

    referncias bibliogrficas

    CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a histria e as histrias da bossa nova. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    GIRON, Luis Antonio. Mrio Reis, o fino do samba. So Paulo: Ed 34, 2001.MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parbola. So Paulo: Editora 34,

    2003. 528 p. (Coleo Todos os Cantos, 24).ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. So Paulo: Brasiliense, 1985.PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Viva o rebolado!: vida e morte do teatro de revista

    brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.RANGEL, Lcio. Samba, jazz e outras notas. Rio de Janeiro: Agir, 2007.SANDRONI, C. Feitio decente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed. UFRJ, 2001.VIANNA, H. O mistrio do samba. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed. UFRJ, 2002.

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    Palavras de um ouvinte e admiradorHermenegildo Bastos

    Falo de um tema que comum a todos ns: um artista multifacetado como Chico Buarque. Falar apenas do msico j alguma coisa muito grande. A presena da tradio na msica de Chico e tambm a variedade da tradio so fatores decisivos em sua produo: a valsinha, o samba, o maxixe so exemplos disso. Essa variedade tambm algo decisivo e se faz presente na letra, em algo que normalmente os estudiosos de literatura chamam de eu lrico, ou de voz lrica, termos mais ou menos teis em determinados momentos. De qualquer maneira, eu lrico aquela voz que diz eu, voz que nem sempre explcita no texto e que, quanto menos explcita, ganha uma importncia maior.

    Aqui cabe uma ressalva, que, na verdade, uma desvantagem: no conheo msica, de maneira que no discorro sobre uma cano de Chico Buarque, mas apenas sobre a letra, pois a msica conheo apenas por ouvir, no tenho conhecimento musical. Isso empobrece a leitura de uma cano que, sem dvida, uma unidade. A unidade entre msica e letra no quer dizer que elas no conservem disparidades. Muitas vezes, a unidade est na diversidade.

    Na variedade de Chico Buarque h um Chico mais lrico, que todos ns conhecemos. H um Chico que fala muito em primeira pessoa, que fala dos seus desencontros amorosos e que nem so apenas amorosos, so tambm nitidamente histricos, polticos. Isso no muito difcil de se encontrar e identificar no texto. H um outro Chico mais ligado tradio do maxixe, do samba do morro, do samba do malandro. H um Chico, ainda, que fala, como todos ns sabemos, na voz da mulher. Ento, essa variedade toda de uma riqueza incrvel, mas como falar dessa variedade sem diminu-la? um risco. Tentarei apresentar um pouco dessa varie-dade sem diminu-la. Para tanto, preciso conceituar um pouco.

    De toda essa variedade, h alguma coisa que me parece muito presente em Chico Buarque que a crtica da prpria arte. Essa uma coisa que