Chris Markers - Artesão do tempo e da memória

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  • 7/25/2019 Chris Markers - Arteso do tempo e da memria

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    Christian Franois Bouche-Ville-neuve morreu em Paris no dia 30de julho 91 anos completos apsseu nascimento, em 29 de julhode 1921. No final dos anos 1940,Bouche-Villeneuve assumiu um

    pseudnimo pronuncivel na maio-ria das lnguas: Chris Marker. Ementrevista com Guy Gauthier paraImage et Son(no. 162-162, junho de1963, p.52-53), Alain Resnais pon-tuava: Existe uma teoria que cir-cula, e com um certo fundamento,segundo a qual Chris Marker seriaum extraterrestre. Ele tem aparnciahumana, mas a verdade que vemdo futuro ou de um outro planeta.

    Escritor, fotgrafo, cineasta, artistamultimdia um bricoleur de ima-gens, como ele mesmo gostava de sedefinir , Marker foi um pioneirodo cinema experimental, do cinmavrit (embora preferisse o rtulocin, ma vrit), do filme-ensaio edas artes do vdeo, entre outras mo-dalidades fronteirias e desafiadorasdas convenes estabelecidas. Via-

    jante inveterado, vido por imagensdos mais diversos cantos do planeta,Marker aparece escondendo o rostoem Tokyo-Ga(1985), de Wim Wen-ders, flagrado num caf da capital

    japonesa. Avesso a badalaes, nodava muitas entrevistas e evitava serfotografado. A marca que deixa nahistria do cinema, bem como sua

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    influncia sobre outros cineastas, inversamente proporcional suavontade de aparecer.

    A obra de Marker se constitui deuma variedade de trabalhos nosmais diversos suportes e formatos:

    livros, instalaes, mdias digitais emais de 50 filmes. Como denomi-nador comum de uma carreira tomultifacetada, sobressai o interessepela natureza do tempo e o fascniopela memria. Marker estreou nocinema com o documentrio Olym-pia 52, sobre os Jogos Olmpicos deHelsinque, na Finlndia, em 1952.No ano seguinte, o artista escreveuo roteiro da narrao para o docu-

    mentrio Esttuas tambm morrem(Les statues meurent aussi, 1953), oqual dirigiu junto com Alain Res-nais. Este filme ganhou o prmio

    Jean Vigo e foi censurado por maisde 10 anos na Frana, em virtude deseu contedo poltico.

    AS MARCAS DE MARKER O refinamen-to do recurso voz-over (a voz daimagem) revelou-se um trao dis-tintivo no cinema de Marker. Essetipo de narrao a voz de Deus est em filmes do incio de suacarreira, como Domingo em Pequim(Dimanche Pekin, 1956) ou Cartasda Sibria(Lettre de Sibrie, 1957).O documentrio Cartas da Sibriaprope uma fascinante reflexo so-

    bre as relaes interditas entre imgem e palavra, reproduzindo umesma sequncia sob comentrabsolutamente distintos. A imag assim provoca Marker assu

    um estatuto ambguo e fugidio, jeito a diferentes impostaes idolgicas. Cartas da Sibriasuscito crtico Andr Bazin a pensar nuensaio sob forma de filme, e deem momento em diante ganha vbilidade o formato do filme-tese

    A voz-overest presente tambm que talvez seja o mais clebre dos mes de Marker, o curta-metrag

    La jete(1962), definido pelo direcomo a histria de um homem mcado por uma imagem da infnc(Ceci est lhistoire dun homme mqu par une image denfance). Ficcientfica sobre viagem no tempo,jetefoi realizado aps a filmagemLe joli mai (1963), documentque buscava revelar, por meio de trevistas nas ruas de Paris, o incociente coletivo francs marcado p

    guerra na Arglia. Construdo a ptir de imagens estticas, com excede um nico plano com movimenLa jeteilustra o fascnio de Marpela obra de Alfred Hitchcock, especial Um corpo que cai(Verti1958), citado, entre outros mometos, na cena em que o viajante tempo explica amada o decordas eras recorrendo rvore seccnada em 1997, Marker apresento CD-ROM Immemory (Paris: YGevaert Editeur/Centre GeorgPompidou), obra interativa voltaao tema da memria e outra homengem a Hitchcock. Immemmoryofece tambm um denso inventrioobra do artista e suas influncias.Se o cinema permite uma sofisti

    CINEMA

    CHRISMARKER: ODISCRETOARTESO

    DOTEMPOEDAMEMRIAFOITAMBMUMGNIODAHUMILDADE

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    da manipulao do tempo atravs damontagem, La jetedemonstra quemesmo imagens estticas podem sercriativamente submetidas ao fluxodo tempo, em favor de uma macro-narrativa. Com isso, o filme tratade um contedo posto em cons-tante debate atravs de sua forma.

    A propsito de La jete, RaymondBellour explica, em Entre-Imagens(Campinas: Papirus, 1997), porque esse filme de fico (e at mes-mo de fico cientfica) pode pa-recer indispensvel numa seleode carter documentrio (...) (p.170). Bellour observa tambm que(...) no o movimento que defineo cinema de forma mais profunda(...), mas o tempo (1997, p. 92).Como no documentrio clssico,a narrao de Jean Negroni em Lajeteguia o espectador a determi-nadas concluses ou descobertasmorais. Quando a viagem no tem-po comea a se efetuar, o narradorinstiga nosso afeto pela realidade aocomentar o aparecimento de ima-

    gens verdadeiras: um quarto dedormir verdadeiro, crianas ver-dadeiras, pssaros verdadeiros,gatos verdadeiros e sepulturas.La jettatingiu o status de filme culte sua influncia e valor cinematogr-fico so inversamente proporcionais sua conciso e singeleza. O filme

    de Marker foi a base para Os dozemacacos (Twelve monkeys, 1995),longa-metragem hollywoodiano di-rigido por Terry Gilliam, e inspirouhomenagens como La vie dun chien(2005), de John Harden, curta ven-cedor no Festival de Cannes. Sobreessa prola na carreira de Marker,Terry Gilliam comentou: O filmefunciona porque to tecnicamentebrilhante, funciona num nvel mu-sical como se ouvssemos msica.

    A montagem a mais extraordinriaque jamais vi, porque um ritmoque est sendo estabelecido, e a voz,a narrativa, voc est lidando compoesia neste ponto.Em 1967, Marker fundava o cole-tivo Slon (Socit pour le Lancement

    des Oeuvres Nouvelles) e que tam-bm significa elefante, em russo.Entre os filmes do Slon esto bien-tt, jespre (1968), sobre greve emindstria txtil francesa, e O sexto

    lado do Pentgono(La sixime facedu Pentagone, 1968), sobre marchaantimilitarista no Pentgono. Omonumental Longe do Vietn(Loindu Vietnam, 1967) sobressai comoum dos mais ambiciosos projetosdo grupo. Filme-protesto contra aGuerra do Vietn, conta com a par-ticipao de Alain Resnais, Jean-LucGodard, Agns Varda e outros cine-

    astas, alm do prprio Marker.TRAOS DE BRASIL Embora muitopouco conhecido no Brasil, Markerno ignorou a histria recente da

    Amrica Latina em sua carreira. Va-mos falar do Brasil: torturas(On vousparle du Brsil: tortures, 1969), do-cumentrio curto, de 20 minutos,enfoca crimes da ditadura militarbrasileira. Carlos Marighella, perso-

    nagem da histria brasileira recente,tambm estimulou Marker a rodaroutro captulo de seu exame audio-visual do pas, Vamos falar do Brasil:Carlos Marighella(On vous parle duBrsil: Carlos Marighella), docu-mentrio igualmente curto, pormno menos incisivo. A sangrenta di-tadura de Allende tambm exami-nada em On vous parle du Chili: ceque disait Allende(1973).Numa fase mais adiantada de suacarreira, Marker dirigiu Sem Sol(Sans Soleil), uma de suas obras-pri-mas mescla de filme etnogrfico,ensaio filosfico e poesia. Sem Solfoilanado no Brasil pela Verstil, numnico DVD que rene tambm suaoutra obra-prima, o j citado La je-

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    Em 91 anos de vida, Chr is Marker deixa uma obra com mais de 50 filmes, em que sobressai

    seu interesse pela natureza do tempo e fascnio pela memria

    Reproduo

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    foram elementos constantes na obrade Marker. Entre seus ltimos traba-lhos esto a instalao Filme silencio-so(1995) e o longa-metragem Levelfive(1997), misto de document-

    rio e fico cientfica inspirado emeventos durante a Segunda GuerraMundial, na ilha de Okinawa.

    Aos 80 anos, Marker continuavaa criar. Um de seus ltimos traba-lhos foi uma brevssima histria docinema, encomendada por ocasiodo quinquagsimo aniversrio doFestival de Cinema de Viena, emoutubro deste ano. O artista ainda

    trabalhava em instalaes e em obrasno ambiente virtual do Second Life.Alis, uma das raras (e ltimas) en-trevistas de Marker foi realizadaatravs dessa interface (http://www.lesinrocks.com/2008/04/29/cine-ma/la-seconde-vie-de-chris-ma-rker-1151546/). Sob o pseudnimode Sergei Murasaki ele fala sobre asvantagens do desenvolvimento dainformtica, chamando a ateno

    para a possibilidade de se realizarum filme completa-mente sozinho, comos prprios dez de-dos. Assim surgiuo vdeo Chats per-chs(2004), o qualMarker pde gravar,fazer o DVD e ven-der no mercado deSaint-Blaise, direta-mente do produtorao consumidor, semnenhum apoio ouinterveno de ter-ceiros uma con-cretizao do sonhode Marx, segundoMarker.

    AUTORIA Em 1997, o diretor comtou: O processo de fazer filmes comunho consigo mesmo, o mocomo um pintor ou escritor tralham, no precisam mais ser ag

    exclusivamente experimentais. Ctrariamente ao que pensam as pessousar a primeira pessoa em filmes tena ser um sinal de humildade: tudque tenho a oferecer sou eu mesmo

    Ao modelo clssico de se enunccinema, transparncia e estratdo meganarrador flmico que a tuorganiza como um deus porsem deixar vestgios de sua ma

    pulao , Marker ope a instndo homem diante de seu filme,realizador que se assume enquantarauto de mensagens extticas, pticas, polticas ou onricas.Para maiores informaes soChris Marker, vale lembrar que,final de 1993, a publicao francImages Documentaires(http://wwimagesdocumentaires.fr/Chris-Mrker.html) lanou um nmero es

    cialmente dedicado a ele, com artide Franois Niney, Rgis Debray eprprio Marker, entre outros autoEm portugus, o livro O bestirioChris Marker(1986), publicado pLivros Horizonte, de Portugal, tuma variedade de textos sobre oneasta francs, por diferentes auto tempo de retrospectivas, mostrexposies da obra de Marker no Bsil. Seu Immemmoryno foi lanano pas, seus trabalhos em multidia e instalaes so ainda mais desnhecidos por aqui do que seus filmE uma mostra de seus filmes podereavivar o interesse pelo ensaio audvisual debruado sobre a histria.

    Alfredo Suppia e Julia Milw

    te. Sem Solviaja da Islndia Gui-n-Bissau, e finalmente ao Japo,pas pelo qual Marker desenvolveuafeto e interesse especiais da seuflagrante no filme de Wim Wen-

    ders, e a homenagem no distrito deGolden Gai, em Tquio, num barchamado La jete.O interesse pela obra de outros cine-astas tambm sempre foi um traonorteador na obra de Marker. Rarosdiretores foram to atentos e pers-picazes com respeito ao trabalho decolegas. Alm de Hitchcock, Alexan-der Medvedkin, Andrei Tarkovsky e

    Akira Kurosawa tambm atraram aateno de Marker em filmes comoO trem prossegue(Le train em marche,1973) eO ltimo bolchevique(Le tom-beau dAlexandre, 1993), sobre Med-vedkin; Um dia na vida de Andrei Ar-senevich(One day in the life of AndreiArenevich, 2000), sobre Tarkovski, eA.K.(1985), sobre os bastidores deRan(1985), de Kurosawa.O carter fronteirio e ambivalente,

    a metalinguagem e o teor poltico

    Com La jete, atinge o status de cult, influenciando geraes

    Fotos: reproduo