CIBERNÉTICA, CIBORGUES E CIBERESPAÇO

download CIBERNÉTICA, CIBORGUES E CIBERESPAÇO

of 21

Transcript of CIBERNÉTICA, CIBORGUES E CIBERESPAÇO

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    1/21

    199Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO: NOTAS SOBRE AS

    ORIGENS DA CIBERNTICA E SUA REINVENO CULTURAL

    Joon Ho Kim

    Universidade de So Paulo* Brasil

    Resumo: A teoria ciberntica de Wiener, da dcada de 1940, originou pesquisas

    e influenciou vrios campos cientficos, incluindo a antropologia. Atualmente, aciberntica est praticamente esquecida como uma cincia, mas deixou importan-

    tes resduos para a cultura. Esses resduos, dentre outros provenientes do discurso

    tcnico e cientifico, so meios criativos para as reavaliaes do consenso social

    acerca dos significados das coisas.

    Resultados de um processo de reinveno cultural, o ciborgue e o ciberespao so

    referncias emblemticas de uma nova ordem do real que projeta o sistema antigo

    de interpretao da realidade sob novas formas, restringidas pelas dadas possi-

    bilidades histricas e culturais de significao.

    Palavras-chave: cibercultura, ciberespao, ciberntica, ciborgue.

    Abstract: The Wieners cybernetics theory, from 1940s, has inspired researches

    and has influenced many scientific fields, including anthropology. Nowadays, the

    cybernetics is almost forgotten as a science but it has left important residues for

    the culture. These residues, amongst others from scientific and technical discourse,

    are creative means for the revaluations of social consensus about the meanings

    of things.

    As results of cultural process of reinvention, the cyborg and the cyberspace areemblematic references of a new order of real, which projects the old interpretational

    system of reality in new forms, constrained by its given historical and cultural

    possibilities of signification.

    Keywords: cyberculture, cybernetics, cyberspace, cyborg.

    * Mestrando em Antropologia Social.

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    2/21

    200 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    A inveno da ciberntica

    Em 1948, o matemtico Norbert Wiener publicou Cybernetics: or theControl and Communication in the Animal and the Machine, livro queapresenta as hipteses e o corpo fundamental da ciberntica, resultados devrios anos de pesquisa e interao com pesquisadores de diversas reascientficas, incluindo as cincias sociais, representados, em especial, pelosantroplogos Gregory Bateson e Margaret Mead. A idia fundamental de-senvolvida por Wiener com seus principais colaboradores, o fisiologistaArturo Rosenblueth e o engenheiro Julian Bigelow, a de que certas fun-

    es de controle e de processamento de informaes semelhantes emmquinas e seres vivos e tambm, de alguma forma, na sociedade so,de fato, equivalentes e redutveis aos mesmos modelos e mesmas leis ma-temticas. Ele entendia que a ciberntica seria uma teoria das mensagensmais ampla que a teoria da transmisso de mensagens da engenharia el-trica,

    [] um campo mais vasto que inclui no apenas o estudo da lingua-gem mas tambm o estudo das mensagens como meios de dirigir a

    maquinaria e a sociedade, o desenvolvimento de mquinas computa-doras e outros autmatos [], certas reflexes acerca da psicologiae do sistema nervoso, e uma nova teoria conjetural do mtodo cien-tfico. (Wiener, 1984, p. 15).

    Wiener (1948, p. 19; 1984, p. 15) explica que ele e Rosenblueth criaramum termo artificial para designar esse campo de pesquisa porque acredita-vam que qualquer terminologia existente traria um vis indesejado ao seu

    sentido. Assim, eles cunharam o termocybernetics

    derivado do gregokubernetes, palavra utilizada para denominar o piloto do barco ou timoneiro,aquele que corrige constantemente o rumo do navio para compensar asinfluncias do vento e do movimento da gua. Alm do sentido de controle,reforado pela correspondncia que kubernetes tem com o latimgubernator,a mquina de leme utilizada em navios seria um dos mais antigos dispositivosa incorporar os princpios estudados pela ciberntica.

    O campo que Wiener designa de ciberntica teve incio durante osesforos relacionados com a II Grande Guerra, quando ele realizou pesquisas

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    3/21

    201Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    com programao de mquinas computadoras e com mecanismos de con-trole para artilharia antiarea. Tanto em uma como em outra pesquisa,

    Wiener engajou-se no que descreve como estudo de um sistema eltrico-mecnico que fosse desenhado para usurpar uma funo especificamentehumana: a execuo de um complicado padro de clculo em um casoe a previso do futuro, no outro. A previso do futuro a que Wiener serefere, neste caso especfico, a capacidade de se prever a trajetria deuma aeronave, a fim de que o projtil do canho antiareo encontre-se como alvo em algum momento do futuro (Wiener, 1948, p. 11, 13, traduominha).

    Em suas pesquisas sobre a artilharia area ele se interessou particular-mente pelo princpio que a engenharia de controle denomina de feedback.Basicamente, esse princpio consiste em realimentar o sistema com as infor-maes sobre o prprio desempenho realizado a fim de compensar os des-vios em relao ao desempenho desejado. Assim, nas mquinas controladasporfeedback, indispensvel a existncia de um ou mais detectores emonitores que faam papel de rgos sensrios, de forma que as informa-es coletadas possam ser confrontadas com o padro de desempenho programado. A diferena entre o desempenho realizado e o esperado

    transformada na informao que o mecanismo de compensao utilizar para trazer o desempenho futuro para valores mais prximos do padroesperado (Wiener, 1948, p. 13; 1984, p. 24).

    Durante as pesquisas com mecanismos controlados porfeedback,Wiener notou que eles podiam apresentar uma oscilao anmala e crescen-te, capaz de tornar o sistema incontrolvel e lev-lo pane.1 Esse tipo deoscilao parecia atingir no s mquinas controladas porfeedback, mastambm alguns seres humanos vitimados pela ataxia, deficincia que secaracteriza pela perda de coordenao de movimentos musculares volunt-rios. Wiener e Rosenblueth notaram que, em alguns distrbios neurolgicos,

    1 Um exemplo simples desse tipo de oscilao pode ser observado em um aquecedor controlado por termostato. Nesse caso, o controle porfeedback consiste basicamente na realimentaodo sistema com valores da temperatura do ambiente, medidos por meio de um sensor de calor,que so confrontados com o padro de temperatura programado na mquina. Assim, se otermostato detectar que a temperatura est abaixo do desejado, acionar o aquecedor; sedetectar que est acima, ir deslig-lo. Esse tipo de controle permite que a temperatura deum ambiente fique estvel dentro de uma pequena zona de tolerncia acima e abaixo datemperatura desejada. Entretanto, desde que a estabilidade do sistema depende do bomfuncionamento do controle porfeedback, um termostato defeituoso ou de m qualidade pode

    resultar em violentas oscilaes de temperatura (Wiener, 1948, p. 115).

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    4/21

    202 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    o portador de ataxia apresenta anomalias ligadas ao sentido proprioceptivo,2

    fazendo com que o atxico, apesar do sistema muscular estar em condies

    adequadas, seja incapaz de andar e mesmo de ficar de p sem olhar paraas pernas ou ter distrbios de coordenao nos quais seus movimentosvoluntrios no passam de movimentos errticos que resultam apenas emuma oscilao violenta e ftil. As pesquisas em pacientes com ataxia de-monstravam que bons msculos no eram suficientes para uma ao efetivae precisa: as informaes dofeedbackfornecidas pelo sistema proprioceptivo,combinadas com as provenientes de outros sentidos, so indispensveis parao sistema nervoso central produzir o estmulo adequado para o trabalho

    muscular. E Wiener conclui: Something quite similar is the case inmechanical systems (Wiener, 1948, p. 113-114).Assim, para Wiener, o sistema nervoso central engendra um processo

    circular emergindo do sistema nervoso para os msculos, e reentrando aosistema nervoso pelos rgos dos sentidos cujo princpio seria idntico aoque havia encontrado em dispositivos de controle de mquinas (Wiener,1948, p. 15). Essas idias foram publicadas no artigo Behavior, Purposeand Teleology (American Society for Cybernetics, [s.d.]) e apresentadas por Rosenblueth em maio de 1942 a um grupo de pesquisadores em um

    encontro sob os auspcios da Josiah Macy Foundation, organizao filantr-pica dedicada aos problemas decorrentes da inibio do sistema nervoso. desde essa poca, quando a ciberntica sequer havia sido batizada, que aantropologia mantm seu vnculo terico com ela: alm dos pesquisadoresligados medicina, estiveram presentes naquele encontro os antroplogosGregory Bateson e Margaret Mead. A srie de conferncias posteriores,conhecidas como The Macy Confereces, reuniu pesquisadores provenientesde reas diversas como a matemtica, medicina, psicologia, filosofia, antro-pologia e sociologia.

    Por causa da II Grande Guerra, a primeira conferncia aconteceuapenas em 1946 sob o ttulo Feedback Mechanisms and Circular CausalSystems in Biological and Social Systems. O nome da conferncia sofreu pequenas alteraes em vrias edies at que em maro de 1950, na suastima edio, passou a se chamar Cybernetics: Circular Causal and

    2 Percepo sensorial pela qual percebemos a posio e o movimento do nosso prprio corpo,independentemente dos demais sentidos, como o tato ou a viso.

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    5/21

    203Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    Feedback Mechanisms in Biological and Social Systems, nome que pre-servou at a dcima e ltima edio, em abril de 1953. Gregory Bateson e

    Margaret Mead foram ativos participantes desses eventos e, juntamentecom o socilogo Paul Lazarsfeld, constituram a presena das cincias so-ciais no core group das conferncias.

    Modelo antropolgico e resduo cultural

    Segundo Rapport e Overing (2000, p. 102-115), a participao deBateson nos crculos da ciberntica teve grande influncia no seu trabalho

    e ele considerado um dos fundadores do pensamento ciberntico nascincias sociais. Influenciado pela descoberta apresentada por Wiener deque o conceito social-cientfico de informao e o conceito natural-cien-tfico de entropia negativa eram de fato sinnimos, Bateson desenvolveuteorias onde as relaes sociais poderiam ser vistas como comunicaesentre membros co-dependentes cuja interao habitual caracterizada porcircularidades, oscilaes, limites dinmicos e feedback. Alm disso, se oprincpio ciberntico da entropia, derivado da segunda lei da termodinmica,se traduz em um processo contnuo de reduo de ordem em um sistema,ou de aumento de seu caos, isso implica que os relacionamentos sociais no podem permanecer os mesmos por muito tempo.

    Ainda acrescentam Rapport e Overnig (2000, p. 113-115) que a ciber-ntica de Bateson influenciou amplamente o pensamento das cincias sociaise, a despeito da influncia das suas idias no ser, na maioria das vezes,explcita, sua contribuio extensa e encontrada na obra de vrios cien-tistas: em Rappaport, a cultura um todo que pode ser entendido como umsistema ciberntico que regula as relaes entre as pessoas e seu ambien-

    te; o trabalho de Goffman sobre como a estrutura social e a realidade somantidas pelo processo de sanes sociais, encontros situacionais, ou sis-temas de atividades situadas carrega o sinal distintivo da ciberntica; jStrathern faz uso da figura do cyborge mostra como a natureza das coisasno mundo um efeito obtido pela contnua e recproca relao entre as partes em um particular ponto no tempo e espao; a influncia da ciber-ntica est tambm implcita na noo estruturalista da sociedade, vistacomo um sistema de comunicao baseado na troca de mensagens culturaisde tipo binrio, e o trabalho de Lvi-Strauss na busca por combinaes e

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    6/21

    204 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    recombinaes de unidades comunicacionais teria sido influenciado pela ci- berntica subjacente cincia da computao.

    O seguinte comentrio de Lvi-Strauss a respeito de um mito encontradono Canad ocidental sobre uma raia que tentou controlar ou dominar oVento Sul e que teve xito na empresa (Lvi-Strauss, 2000, p. 35) ilustrabem a influncia da ciberntica em seu pensamento:

    [] a razo por que se escolheu a raia que ela um animal que,considerando de um ou outro ponto de vista, capaz de responder empregando a linguagem da ciberntica em termos de sim ouno. capaz de dois estados que so descontnuos, um positivo eoutro negativo. A funo que a raia desempenha no mito aindaque, evidentemente, eu no queira levar as semelhanas demasiadolonge parecida com a dos elementos que se introduzem nos com- putadores modernos e que se podem utilizar para resolver grandesproblemas adicionando uma srie de respostas de sim e no. []Esta a originalidade do pensamento mitolgico desempenhar opapel do pensamento conceptual: um animal susceptvel de ser usadocomo, diria eu, um operador binrio, pode ter, dum ponto de vista

    lgico, uma relao com um problema que tambm um problemabinrio. [] Dum ponto de vista cientfico, a histria no verdadeira,mas ns somente pudemos entender esta propriedade do mito numtempo em que a ciberntica e os computadores apareceram no mundocientifico dando-nos o conhecimento das operaes binrias, que jtinham sido postas em prtica de uma maneira bastante deferente,com objetos ou seres concretos, pelo pensamento mtico. (Lvi-Strauss, 2000, p. 36-37).

    Tambm encontramos componentes cibernticos no pensamento deGeertz que, por sua vez, v na relao entre a evoluo cultural e a evoluo biolgica princpios da ciberntica que levam a um processo contnuo derealimentao e influncias recprocas e condicionadas:

    medida que a cultura, num passo a passo infinitesimal, acumulou-se e se desenvolveu, foi concedida uma vantagem seletiva quelesindivduos da populao mais capazes de levar vantagem [] at que

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    7/21

    205Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    o Australopiteco proto-humano, de crebro pequeno, tornou-se oHomo Sapiens, de crebro grande, totalmente humano. Entre o padro

    cultural, o corpo e o crebro foi criado um sistema de realimentao(feedback) positiva, no qual cada um modelava o progresso do outro,um sistema no qual a interao entre o uso crescente das ferramen-tas, a mudana da anatomia da mo e a representao expandida dopolegar no crtex apenas um dos exemplos mais grficos. Subme-tendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a produo de artefatos, organizando a vida social ou expressandoemoes, o homem determinou, embora inconscientemente, os estgios

    culminantes do seu prprio desenvolvimento biolgico. Literalmente,embora inadvertidamente, ele prprio se criou. (Geertz, 1989, p. 60).

    Apesar de ter estimulado hipteses, teorias e pesquisas tanto na antro- pologia como em diversos outros campos cientficos, e ter dado origem anovas reas, como as cincias cognitivas, a ciberntica foi esquecida comoa vasta teoria das mensagens aspirada por Wiener: quase ningum, hoje,se auto-intitula um ciberneticista. Alguns acreditam que o projeto deWiener tornou-se vtima da moda cientfica []. Outros pensam que []

    a ciberntica, que estava baseada em uma inspirada generalizao, tornou-se vtima da incapacidade para lidar com detalhes (Kunzru, 2000, p. 138).Assim, seus modelos tericos se desgastaram e, mesmo no campo do con-trole artificial, onde se consolidaram slidas disciplinas cibernticas comoa informtica e a robtica, a proposta de Wiener esvaziou-se na prtica.

    importante notar que, se por um lado, a ciberntica no se consolidouno plano cientfico, ela influenciou de forma determinante a cultura modernacom resduos de seus modelos explicativos, engendrando, junto com outrosresduos que so incessantemente produzidos pela tecnologia e cincia, o quepoderamos chamar hoje de cibercultura. Tais resduos so certas noese valores oriundos do discurso tcnico e cientfico que, deslocados para oplano do senso comum, introduzem novas distines nos antigos esquemasinterpretativos para que eles possam fazer frente s propriedades de ummundo no qual as fronteiras entre os domnios do orgnico, do tecno-econ-mico e do textual tornaram-se permeveis:

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    8/21

    206 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    [] produzindo sempre montagens e misturas de mquina, corpo etexto: enquanto natureza, os corpos e os organismos certamente pos-

    suem uma base orgnica eles so cada vez mais produzidos emconjuno com as mquinas, e esta produo sempre mediada pornarrativas cientficas [] e pela cultura em geral. (Escobar, 2000, p.61, grifo do autor, traduo minha).

    Um dos resduos mais importantes que a ciberntica legou ciberculturafoi a viso de que os seres vivos e as mquinas no so essencialmente diferentes.Essa noo se manifesta, em especial, nas tecnologias especializadas emmimetizar a vida (tecnologia da informao, robtica, binica enanotecnologia) e nas tecnologias especializadas em manipular a vida (asbiotecnologias), onde a relao entre organismo e mquina depende intrin-secamente do texto, no s na forma de narrativa cientfica, mas tambmna forma dos cdigos que determinam o funcionamento tanto das mquinas(softwares) como dos seres vivos (o cdigo gentico). Os produtos reaise imaginrios de tais tecnologias podem contradizer certas noes declassificao fundamentais, tais como a oposio entre natureza e cultura,entre orgnico e inorgnico, entre o homem e a mquina, dentre outras.

    Segundo Lvi-Strauss (2002, p. 25), a exigncia de ordem constitui abase de todo pensamento. por isso que seres ambguos so, com freqn-cia, objetos de restries e tabus: so sinais de desordem, contradizem asfronteiras estabelecidas entre as categorias classificatrias e, assim, amea-am as prprias convices acerca da ordem do mundo. De acordo comDouglas (1991, p. 54), a cultura medeia a experincia dos indivduos. For-nece-lhes, partida, algumas categorias bsicas, uma esquematizao posi-tiva na qual idias e valores se encontram dispostos de forma ordenada.Constatada a existncia de ambigidades que j so por si s, indicadorasda existncia do sistema classificatrio que contradizem a cultura podelidar com elas de forma negativa, ignorando-as, perceb-las, ou aindaperceb-las e conden-las. Positivamente, podemos enfrentar deliberadamentea anomalia e tentar criar uma nova ordem do real onde a anomalia se possainserir (Douglas, 1991, p. 53-54).

    O universo no um agregado de objetos em si, mas um repertrioorganizado de objetos significantes que portam significados socialmentecompartilhados. E desde que o sentido do signo (o valor saussuriano)

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    9/21

    207Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    definido por suas relaes de contraste com outros signos do sistema []ele s completo e sistemtico na sociedade (ou na comunidade de falantes)

    como um todo (Sahlins, 1990, p. 10). Mas os signos e seus significados noso partes de estruturas estticas. Como Sahlins (1990, p. 10-11) observa,alm dos consensos que as sociedades elaboram serem resultados dainterao de perspectivas diversas, os significados das coisas e suas rela-es estruturais so reavaliados na realizao prtica e, freqentemente,repensados criativamente dentro de certos limites dados pelo sentido co-letivo empregado no uso real de um signo em resposta s contingnciasapresentadas pela experincia prtica.

    Assim podemos, por exemplo, entender que o consenso social acercado que correio eletrnico (e-mail) est dentro dos limites de significaesde eletrnico e correio (electronic e mail), sobre os quais j havia umconsenso social. O mesmo ocorre com ciberespao (cybernetics space) ouciborgue (cybernetics organism). So exemplos onde os termos que sinte-tizam o discurso tcnico-cientfico (e de electronic ou cyber decybernetics) adquirem novas conotaes e engendram significados inditosna sua conjuno com antigos significantes (mail, space, organism), proje-tando o sistema antigo de interpretao da realidade sob novas formas,

    dentro das dadas possibilidades histricas e culturais de significao. O quecomumente tem se chamado de cibercultura uma resposta positiva dacultura na criao de uma nova ordem do real frente aos novos contextosprticos que desafiam as categorias tradicionais de interpretao da realidade.

    Os robs e computadores so antigos personagens do nosso imaginrioe, de certa forma, mais antigos que a prpria ciberntica. Mas h entre ohomem de lata mecanizado e o corpo humano, ou entre uma mquina decalcular programvel vlvula e a mente humana, descontinuidades gigan-tescas, de tal forma que eles dificilmente passam de representaes carica-turadas do homem, chegando, em muitos casos, a reafirmar a oposio dascategorias que separam o humano da mquina. Nesse sentido no so,ainda, cibernticos, pois a principal caracterstica enunciada pela cibern-tica a de que no existe descontinuidade entre mquinas e organismo. Ofuturo ciberntico implica uma nova ordem do real, porque, enfim, aintercambialidade apenas uma questo de compatibilidade funcional.

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    10/21

    208 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    Ciborgues: o corpo ps-humano

    As mquinas do final do sculo XX tornaram completamente ambguaa diferena entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entreaquilo que se autocria e aquilo que externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distines que se costumavamaplicar aos organismos e s mquinas. Nossas mquinas so perturbadoramente vivas e ns mesmos assustadoramente inertes.(Haraway, 2000, p. 46).

    Provavelmente o primeiro produto cultural dessa nova ordem do realbaseada na ciberntica, o ciborgue conjuga as promessas da binica com asperspectivas anunciadas pela ciberntica. O termo bionics foi cunhado em1960 pelo major Jack Steele, da Fora Area Americana, para descrever oemergente campo de pesquisas cuja anlise do funcionamento dos sistemasvivos visa reproduzir os truques da natureza em artefatos sintticos (Lodato,2001, p. 2). Em outras palavras, a binica uma rea relacionada com a biomimtica, que pode ser definida como a cincia de sistemas que tm

    alguma funo copiada da natureza, ou que represente caractersticas desistemas naturais ou seus anlogos (Vincent, [s.d.], p. 1, traduo minha).J o termo cyborg nasceu da contrao de cybernetics organism e foiapresentado, tambm em 1960, por Manfred E. Clynes e Nathan S. Klineem um simpsio sobre os aspectos psico-fisiolgicos do vo espacial. Inspi-rados por uma experincia realizada nos anos 1950 em um rato, no qual foiacoplada uma bomba osmtica que injetava doses controladas de substn-cias qumicas, eles apresentaram a idia de se ligar ao ser humano um

    sistema de monitoramento e regulagem das funes fsico-qumicas a fim dedeix-lo dedicado apenas s atividades relacionadas com a explorao es-pacial.

    Em 1972, Martin Caidin lanou a fico cientfica Cyborg, que contaa histria de um piloto de testes da Fora Area americana, Steve Austin,que aps um grave acidente reconstrudo com partes binicas pelo labo-ratrio ciberntico do Dr. Killian:

    [] para transformar a carcaa de um humano mutilado no apenas

    em um novo homem, mas em um tipo totalmente novo de homem.

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    11/21

    209Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    Uma nova raa. Um casamento da binica (biologia aplicada enge-nharia de sistemas eletrnicos) e ciberntica. Um organismo

    ciberntico. Chame-o de ciborgue. (Caidin, 1972, p. 55-56, traduominha).

    O ciborgue que Caidin nos legou produto de uma binica reinventadaque, sob a inspirao da idia de Clynes e Kline, no mais uma simplestcnica de mimese da natureza, mas um meio de reconstru-la e super-la.A histria do homem binico Steve Austin tornou-se famosa com a srie deTV entitulada The Six Million Dollar Man (O homem de seis milhes dedlares), veiculada na dcada de 1970 (Abbate, 1999). A figura do homem binico, cujo corpo natural melhorado com o acoplamento de mquinasvem, desde ento, sendo reproduzida exausto.

    O ciborgue tambm uma forma de retomar o sonho de VictorFrankenstein disfarando aquilo que causava horror na sua criatura morta-viva feita com retalhos de cadveres de pessoas e animais esquartejadosainda vivos para aproveitar-lhe o sopro de vida na recomposio:

    Ningum poderia suportar o horror do seu semblante. Uma mmia

    sada do sarcfago no causaria to horripilante impresso. Quando ocontemplara, antes de inocular-lhe o sopro vital, j era feio. Masagora, com os nervos e msculos capazes de movimento, converteu-se em algo que nem mesmo no inferno dantesco se poderia conceber.(Shelley, 1998, p. 53-54).

    O horror que a criatura frankensteiniana inspira, e que o ciborgue tentasuperar, a manifestao do nosso horror ao caos, um horror cultural.Afinal, sentimos medo dos mortos-vivos no porque tememos pela nossa

    integridade fsica, mas porque, desde que resultam da justaposio de termosprovenientes de domnios imiscveis, eles constituem uma ameaa ordemclassificatria do cosmos.

    Como nos lembra Pyle (2000, p. 125, traduo minha), quando faze-mos ciborgues ao menos quando os fazemos nos filmes tambm faze-mos e, nessa ocasio, desfazemos nossas concepes sobre ns mesmos.Produto do pensamento utilitarista aplicado sem limites (se que h algumlimite para esse tipo de pensamento) carne e ao ao, o ciborgue anuncia

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    12/21

    210 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    a imagem de um homem melhorado com a acoplagem da tecnologia ecada vez mais alm das limitaes de desempenho ditadas pela natureza: a

    performance a noo fundamental para a reformulao da imagem doser humano na direo da imagem do ps-humano.

    Certamente, os significados do homem ps-humano foram determina-dos sobremaneira pelos resultados e promessas da cincia e da tecnologia,sem os quais o ciborgue no seria sequer inteligvel. O corao um dosobjetos mais emblemticos tanto pela sua importncia fisiolgica comopelo seu valor simblico dos esforos cientficos em superar os limites dohomem com mquinas. No por acaso, o corao foi um dos primeiros

    rgos talvez o primeiro a receber o acoplamento definitivo de umamquina.Em outubro de 1958, o cirurgio cardaco Ake Senning e o engenheiro

    eletrnico Rune Elmquist implantaram o primeiro marca-passo interno emum ser humano. Esse implante inaugurou um bem sucedido progresso narea de prteses e implantes cardacos, desde vlvulas at bombas auxilia-res, alm de geraes de marca-passos cada vez mais eficientes e prticos.E, apesar dos enormes riscos envolvidos e dos insucessos, o sonho de seconstruir um ser humano no qual zune um corao totalmente artificial

    continua. Ao contrrio de seus antecessores da dcada de 1980 tais comoo Jarvik-7, que mantinha o paciente ligado a um compressor externo ocorao modelo AbioCor uma mquina que mimetiza praticamente todasas funes mecnicas do corao natural, e totalmente implantvel. Emtestes desde julho de 2001, o AbioCor , sem dvida, uma evoluo, masainda possui problemas que o impedem de ser considerado um sucesso.

    Em resposta s crticas acerca dos problemas que seus prottipos tmapresentado, David Lederman, o engenheiro fundador da Abiomed, produ-tora do AbioCor, afirmou que o corao artificial continuou funcionando emsituaes que poderiam ter lesado ou destrudo um corao natural, comoinsuficincia de oxignio no sangue e uma febre de 41,5 C (Ditlea, 2002, p. 39). Da forma como Lederman colocou, o ponto no apenas se oAbioCor um dia substituir ou no o corao humano, mas que, apesar dasinconvenincias apresentadas, o corao artificial j supera o original emalguns aspectos.

    O desenvolvimento de prteses tambm est intimamente ligado superao de limites. Originalmente tais limites eram os impostos queles

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    13/21

    211Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    cuja natureza do corpo fora mutilada, por nascena ou acidente. Mas hoje,acoplados em prteses de competio, os para-atletas velocistas agregam

    muita tecnologia. E eles so capazes ultrapassar, e muito, a velocidade daspessoas comuns e chegam prximo s de recordistas mundiais olmpicos:

    Tony Volpentest inspira admirao e, quem sabe, at despeito. Munidode duas pernas mecnicas, o atleta americano, de 26 anos, faz 100metros rasos em impressionantes 11 segundos e 36 centsimos desegundo apenas um segundo e meio atrs do recordista mundial, ocanadense Donovan Bailey, que nasceu com tudo no lugar. Medalhade ouro nos Jogos Paraolmpicos de Atlanta, em 1996, Tony veio aomundo sem os ps e sem as mos (Dias, 1999, p. 136).

    Exibindo prteses de alta tecnologia, desenhadas sob medida para com- peties, a imagem de para-atletas tem sido explorada em propagandas edesfiles de moda. No discurso da mdia e da propaganda, onde exibemostensivamente o seu corpo hbrido, os para-atletas corredores materializamhoje as aspiraes do futuro do corpo ps-humano, o homem redesenhado para uma melhorperformance. De certa forma, poderamos dizer que

    uma das manifestaes da cibercultura o culto performance. Comefeito, as prteses de alta perfomance assumem o design dinamizado,matematizado e geometrizado da mquina: elas no pretendem mais repro-duzir as formas do corpo humano, mas so desenhados apenas em funodo desempenho.

    Talvez o corpo ideal do body building atltico, sexy e clean toem moda atualmente, j seja um reflexo no nosso cotidiano desse mesmopensamento ciberntico. Na medida em que a mquina torna-se, de fato, aunidade de medida do homem, uma nova postura esttica do corpo toma

    forma frente valorizao da performance: o que belo est, cada vezmais, relacionado com o desempenho desejado (essa noo to ciberntica).Da a noo afetada de pureza na qual comer um torresmo ou fumar umcigarro so atos relativamente mais impuros do que ingerir complementosalimentares sintticos ou injetar hormnios artificiais. Na perspectiva daesttica da performance, as mquinas de musculao, os programas pla-nejados de modelagem muscular, as prteses estticas, as tcnicas cirrgicasde lipoaspirao, a toxina botulnica (Botox), os anabolizantes e os comple-

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    14/21

    212 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    mentos alimentares so apenas meios que a tecnologia disponibiliza para seatingir a imagem do corpo de alto desempenho, a imagem na direo do

    corpo ps-humano.

    As fronteiras do ciberespao

    Ciberespao. Uma alucinao consensual vivida diariamente por bi-lhes [] Uma representao grfica dos dados abstrados dos ban-cos de dados de cada computador no sistema humano. Complexidade

    inimaginvel. Linhas de luz enfileiradas no no-espao da mente,agregados e constelaes de dados. Como luzes da cidade, retroce-dendo (Gibson, 1984, p. 51, traduo minha).

    A efetiva vulgarizao da ciberntica ocorre a partir dos anos 1980 soba influncia de um tipo de literatura de fico cientfica que ficou conhecidacomo cyberpunk.3 A influncia desse gnero literrio no cinema foi determinante para a disseminao dos contornos e conotaes que o ciberntico temhoje. O cyberpunk aglutinou a viso distpica do movimento punk e os

    esteretipos de seu estilo de vida ao imaginrio futurista no qual as gadgets(bugigangas e geringonas) cibernticas e os ciborgues foram amplamentecotidianizados. Um dos principais legados do cyberpunk a imagem dohomem-gadget (homem-objeto que no muito mais que um gadgetacoplado a um sistema ou rede de gadgets) cujo corpo um banal suportede binicos e cuja mente s encontra sua totalidade quando conectada aociberespao.

    Em seu livro de no fico, The Hacker Crackdown Law and

    Disorder on the Electronic Frontier, Bruce Sterling comenta que o termocyberspace surgiu em 1982 na literatura cyberpunk(Sterling, 1992, p. XI).Naquele ano, Willian Gibson lanouNeuromancer, considerado um clssicoda literatura cyberpunk, que alm do termo cyberspace, tambm introduziuo termo matrix para se referir ao ciberespao como uma rede global desimulao. Sterling acrescenta que o ciberespao no uma fantasia de

    3 A inveno do termo cyberpunk cercada de controvrsias. Em 1980, Bruce Bethke escreveuum conto chamado Cyberpunk que foi publicado em 1983 no Amazing Science Fiction Stories(Bethke, [s.d]), mas parece que o uso como forma de circunscrever um estilo literrio foifeito por Gardner Dozois na sua resenha para o primeiro livro de Gibson, Neuromancer(Walleij, [s.d.], cap. 8).

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    15/21

    213Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    fico cientfica, mas um lugar onde temos experincias genunas e queexiste h mais de um sculo:

    Mas o territrio em questo, a fronteira eletrnica, tem cerca de 130anos. Ciberespao o lugar onde a conversao telefnica pareceocorrer. No dentro do seu telefone real, o dispositivo de plsticosobre sua mesa. [] [Mas] O espao entre os telefones. O lugarindefinido fora daqui, onde dois de vocs, dois seres humanos, real-mente se encontram e se comunicam. [] Apesar de no ser exa-tamente real, o ciberespao um lugar genuno. Coisas aconte-cem l e tm conseqncias muito genunas. [] Este obscurosubmundo eltrico tornou-se uma vasta e florescente paisagem eletr-nica. Desde os anos 60, o mundo do telefone tem se cruzado com oscomputadores e a televiso, e [] isso tem uma estranha espcie defisicalidade agora. Faz sentido hoje falar do ciberespao como umlugar em si prprio. [] Porque as pessoas vivem nele agora. Noapenas um punhado de pessoas [] mas milhares de pessoas, pes-soas tipicamente normais. [] Ciberespao hoje uma Rede, umaMatriz, internacional no escopo e crescendo rapidamente e constan-

    temente. (Sterling, 1992, p. XI-XII, traduo minha).

    A preocupao de Sterling com o estatuto de realidade tem a vercom a natureza do ciberespao atualmente conhecida como virtual. Essevirtual apreendido, em muitos casos, como uma oposio naturezareal da realidade. Entretanto, o reconhecimento de que a realidade uma qualidade pertencente a fenmenos que reconhecemos terem um serindependente de nossa prpria volio (no podemos desejar que no exis-tam) (Berger; Luckmann, 1998, p. 11) basta para ver que essa oposio

    virtual versus real ilusria e bastante confusa. Os crimes virtuaisesto a para nos mostrar de uma forma bem dura que a virtualidade dociberespao possui uma inegvel natureza coercitiva de realidade. O fato que j somos seres virtuais, queiramos ou no, ao menos dentro dosgrandes bancos de dados de corporaes e governos, e cada vez mais temoso conhecimento a certeza de que os fenmenos so reais e possuemcaractersticas especficas (Berger; Luckmann, 1998, p. 11) de que ociberespao, apesar de virtual, bastante real.

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    16/21

    214 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    -iceD

    lam0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 01 11 21 31 41 51

    -niB

    oir0000 1000 0100 1100 0010 1010 0110 1110 0001 1001 0101 1101 0011 1011 0111 1111

    -axeH

    -iced

    lam

    0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 A B C D E F

    5 Existe uma correspondncia direta entre as bases binria, decimal e hexadecial de numerao.O nmero decimal 10, por exemplo, corresponde ao nmero hexadecimal A (noconfundir com a letra a) e ao nmero binrio 1010, conforme a seguinte tabela:

    certo que, assim como no ciborgue, os limites de significao dociberespao esto diretamente relacionados com a inteligibilidade que a pro-

    duo e o progresso tcnico e cientfico tm no senso comum. Apesar doconceito do computador digital existir desde 18394 e o computador eletrnicoter surgido na dcada de 1940, o ciberespao foi, at o incio da dcada de1970, uma abstrao lgica e matemtica compartilhada apenas por especia-listas e tcnicos. E durante muito tempo, foi o texto, na forma de complexoscdigos de signos lgicos e mnemnicos textuais, e no a imagem visual, amediao por excelncia entre as mquinas computadoras e o homem.

    O texto introduziu, aos antigos computadores baseados em cartes perfurados, o teclado e o display alfanumricos. A mediao derradeiraentre o homem e a mquina so os bits: pequenos sinais fsicos que podemassumir apenas dois valores, convencionalmente representados por um ezero. O bit o tomo da informao eletrnica: tudo que armazenado,processado e intercambiado dentro dos computadores e entre eles so, fisi-camente, extensas seqncias binrias organizadas em bytes, agrupamentosformados por oito bits. O que temos no disco rgido, CD, disquete ou naInternet so, em ltima instncia, apenas cadeias binrias. O que trafegapelo cabo da impressora, pela linha telefnica ligada ao modem ou pelo cabo

    da rede so bits. A prpria indexao das cadeias corretas que compemum arquivo ou um programa est em outras cadeias binrias.Grosso modo, um byte a menor unidade de significao digital. Um

    byte pode assumir 256 valores (28bits) que podem ser expressos nas maisvariadas notaes de nmeros (por exemplo, representados por 0 a 255,0 a 11111111 ou 0 a FF, na base decimal, binria ou hexadecimal,5

    respectivamente) ou outros signos textuais. Desde cedo, na informtica,

    4 Charles Babbage desenhou e desenvolveu o que considerado o primeiro computador digital.A sua mquina diferencial era um computador mecnico projetado para solucionar proble-mas matemticos, incluindo equaes diferenciais. Apesar de no ter sido construda, jincorporava muitos princpios que foram redescobertos no desenvolvimento posterior demquinas de processamento de dados. (Winegrad; Akera, 1996).

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    17/21

    215Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    convencionou-se tabelas de converso dos bytes para caracteres textuais: noASCII (American Standard Code for Information Interchange), o padro

    quase universal, por exemplo, as letras maisculas de A Z correspondemaos valores de 41 a 90 das 256 possibilidades do byte (Norton, 1996, p. 339-342).

    Ora, quais seriam as tradues possveis de uma realidade abstrata quese expressa antes por cdigos textuais do que por imagens sensveis? Comose d sentido imagtico quilo que essencialmente no possui expressovisual? a imagem, ou melhor, so os sistemas de imagens articulados pormodelos de simulao que possibilitaram realidades nas quais clicar earrastar documentos com um mouse faz mais sentido do que digitar move

    C:/dir_1/dir_N/meu_arquivo.DOC C:/dir_2/dir_N. Enquanto imagens,elas no nos permitem entender o modelo abstrato que as engendra, masabrem uma janela para ele (Queu, 1993, p. 92). Aqui, o olho acoplado aomouse torna-se o rgo do conhecimento ttil que, interagindo com as simu-laes imagticas dos softwares, passa a ser como a mo do cirurgio quecorta e entra no corpo da realidade para apalpar as massas palpitantesdentro dela (Taussig, 1993, p. 31, traduo minha). No se trata de maisum gadget [] surge uma nova relao entre a imagem e linguagem.Agora o legvel pode engendrar o visvel. Pela primeira vez, formalismos

    abstratos podem produzir, diretamente, imagens (Quau, 1993, p. 91). Aimagem gerada pelo computador no apenas imagem de algo, resultadode simulaes de modelos que reformulam de modo sensvel os conceitoslgicos e matemticos contidos nos dados e nos programas de computador:Se alguma coisa preexiste ao pixel e imagem o programa, isto ,linguagem e nmeros, e no mais o real. Eis porque a imagem numrica norepresenta mais o mundo real, ela o simula (Couchot, 1993, p. 24). Essasimagens sintticas so resultado do domnio da imagem matricial pelo com- putador. No meramente o domnio da reproduo de cpias, mas asintetizao de imagens a partir da manipulao numrica do tomo daimagem eletrnica: opixel. Toda imagem eletrnica um mosaico matricialde pequenos pontos, os pixels, cada qual com uma gradao de luz e cor.Ao contrrio da televiso, onde opixel resultado de um processo mimticode contgio da luz atravs dos vrios suportes pticos e eletrnicos, ocomputador domina cada ponto da imagem: ele substitui o automatismoanalgico das tcnicas televisuais pelo automatismo calculado, resultante dainformao relativa imagem. [] Cada pixel um permutador minsculo

    entre imagem e nmero (Couchot, 1993, p. 38-39).

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    18/21

    216 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    O que chamamos de realidade virtual a camada de interao sensvelentre o homem e o ciberespao. Mas as representaes imagticas da

    informao digital implicam uma descontinuidade entre aquilo que vemos eaquilo que realmente est por trs da simulao. A realidade virtual operaem dois sentidos, um que cria mundos sensoriais da informao digital eoutro que trabalha ocultando a estrutura essencial e material do ciberespao.So movimentos indissociveis e, por mais perfeito que venha a ser ummodelo de simulao, ele ser sempre ambguo: o mesmo poder de simularmundos o poder de falsificar e mascarar (Taussig, 1993, p. 42-43, traduominha).

    A tecnologia para que o computador passasse a ser o lugar por exce-lncia de um espao virtual foi inicialmente desenvolvida pela Xerox, em1971, com um prottipo de interface grfica: era o primrdio daquilo queviria ser chamada de user friendly interface, popularizada com o lana-mento do Macintosh uma dcada depois (Negroponte, 1995, p. 90). O nossocomputador de hoje um desktop virtual, um plano de signos organizadosseletivamente e baseados em expectativas de similaridade para construir umsimulacro visual, mediador da nossa relao com o ciberespao. No planodessa realidade sensorial, o cursor do mouse o nosso dedo virtual que

    arrasta outros objetos virtuais para o lixo virtual ou aciona o telefone(modem ligado linha telefnica) que nos conecta a outros sistemas e Internet.

    O quanto de cpia deve a cpia ter para ter efeito sobre aquilo de que cpia? Quo real a cpia deve ser? (Taussig, 1993, p. 51, traduominha). Os infogramas que compem a realidade virtual do ciberespaoso ideogramas pobremente executados ( poorly executed ideogram),componentes semnticos que articulam as semelhanas entre os objetoscibernticos que mascaram e os objetos materiais que mimetizam.

    Enfim, quanto mais humanizamos e tornamos amigvel a nossa rela-o com o ciberespao, por meio de simulaes que imitam a nossa reali-dade no-virtual, mais nos tornamos cibernticos. A contrapartida da natu-ralizao do ciberespao que nos tornamos, tambm, extenso dele: medida que a virtualidade se transforma em campo de ao prtica, cadavez mais a realizao total do ser humano prescinde de sua insero comocoisa virtual do ciberespao. Da nossa fascinao e temor em relao aoshackers, que tanto trafegam como sujeitos virtuais do ciberespao como

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    19/21

    217Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    manipulam os cdigos secretos por trs das realidades virtuais. Figura decondio ambgua, notoriamente imaginada como algum que no nem

    criana e nem adulto, mas um adolescente, o hacker refernciaemblemtica da cibercultura. Ele, por um lado, objeto de estranhamentoporque est associado justamente s zonas mais ambguas do ciberespao.Mas por outro lado, o hacker a prpria sntese da apologia ao mundosinttico como extenso do homem, incorpora a imagem daquele que trans-cende a condio de objeto virtualizado e torna-se sujeito capaz de superara mediocridade e o estranhamento que temos em relao ao nosso prpriocotidiano cibernetizado.

    Referncias

    ABBATE, Janet. Cyborg by Martin Caidin. [s.l.]: 1999. Disponvel em:. Acesso em: 23 jan. 2004.

    AMERICAN SOCIETY FOR CYBERNETICS. Sumary: the Macyconferences. [s.l.]: [s.d.]. Disponvel em: . Acesso em: 3 dez. 2003.BETHKE, Bruce. Cyberpunk: a short story by Bruce Bethke. [s.l.]: [s.d.].Disponvel em: . Acessoem: 30 jan. 2004.

    BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construo social da realida-de. Petrpolis: Vozes, 1998.

    CAIDIN, Martin. Cyborg. New York: Arbor House, 1972.

    COUCHOT, Edmond. Da representao simulao: evoluo das tcnicas

    e das artes de figurao. In: PARENTE, Andr (Org.). Imagem mquina.So Paulo: Editora 34, 1993, p. 37-47.

    DIAS, Carlos. Quase melhor que o original. Super Interessante, So Paulo,ano 13, n. 1, p. 42-46, 1999.

    DITLEA, Steve. Experincias com o Corao Artificial. Scientific American Brasil, So Paulo, ano 1, n. 3, p. 34-43, ago. 2002.

    DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Lisboa: Edies 70, 1991.

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    20/21

    218 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Joo Ho Kim

    ESCOBAR, Arturo. Welcome to cyberia - notes on the anthropology ofcyberculture In: Bell, David; Kennedy, Barbara M. The cyberculturesreader. London: Routledge, 2000, p. 56-76.GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1989.

    GIBSON, William. Neuromancer. New York: Ace Books, 1984.

    HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: cincia, tecnologia e feminismo-socialista no final do sculo XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.).Antro- pologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autntica, 2000. p. 37-129.

    LODATO, Franco.Bionics: nature as a tool for product development. [s.l.]:2001. Disponvel em: .Acesso em: 24 jan. 2004.

    LVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edies 70, 2000.

    LVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus,2002.

    KUNZRU, Hari. Genealogia do ciborgue. In: SILVA, Tomaz Tadeu da(Org.).Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autntica, 2000. p. 131-

    139. NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. So Paulo: Schwarcz, 1995.

    NORTON, Peter. O conjunto de caracteres do PC. In: NORTON, Peter. Desvendando o PC. Rio de Janeiro: Campus, 1996. p. 339-358.

    PYLE, Forest. Making cyborgs, making humans: of terminators and bladerunners. In: BELL, David; KENNEDY, Barbara M. The cyberculturesreader. London: Routledge, 2000. p. 124-137.

    QUAU, Philippe. O tempo do virtual. In: PARENTE, Andr (Org.). Ima-

    gem mquina. So Paulo: Editora 34, 1993. p. 91-99.RAPPORT, Nigel; OVERING, Joanna. Cybernetics. In: RAPPORT, Nigel;OVERING, Joanna. Social and cultural anthropology: the key concepts.London: Routledge, 2000. p. 102-115.

    SHELLEY, Mary W. Frankenstein ou o moderno prometeu. So Paulo:Publifolha, 1998.

    STERLING, Bruce. The hacker crackdown: law and disorder on theelectronic frontier. New York: Bantam Books, 1992.

  • 8/7/2019 CIBERNTICA, CIBORGUES E CIBERESPAO

    21/21

    219Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p. 199-219, jan./jun. 2004

    Ciberntica, ciborgues e ciberespao...

    SAHLINS, Marshall. Ilhas de histria. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

    TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular history of senses.New York: Routledge, 1993.

    VINCENT, Julian F. V. Stealing ideas from nature. [s.l.]: [s.d.]. Disponvelem: .Acesso em: 23 jan. 2004.

    WALLEIJ, Linus. Copyright does not exist. [s.l.]: [s.d.]. Disponvel em:. Acesso em: 30 jan. 2004.

    WIENER, Norbert. Cybernetics: or the control and communication in theanimal and the machine. Massachusetts Institute of Technology, 1948.

    WIENER, Norbert. Ciberntica e sociedade: o uso humano de seres hu-manos. So Paulo: Cultrix, 1984.

    WINEGRAD, Dilys; AKERA, Atsushi. A Short History of the Second American Revolution. [s.l.]: 1996.Disponvel em: . Acesso em: 30 jan. 2004.

    Recebido em 31/12/2003Aceito em 01/03/2004