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Parte 1 Aspectos Filosó icos, Ideológicos e Educacionais

1 A Era do Conhecimento _____________________________111.1 O conhecimento ilosó ico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

1.2 As relações homem-mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

1.3 A sociedade aprendente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

1.4 A condição humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

Resumo do Tema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

Exercício de Aprendizagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

2 Filoso ia e Ideologia ________________________________572.1 O processo de ideologização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

2.2 A construção da cidadania . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .66

2.3 O conhecimento e valores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

2.4 Educação e mudança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

Resumo do Tema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

Exercício de Aprendizagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

Sumário

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Parte 2 Ética e Cidadania

3 Ética e Educação _________________________________ 1073.1 Ética e moral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .108

3.2 O compromisso ético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .114

3.3 A formação do cidadão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .121

3.4 O ser humano integral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .130

Resumo do Tema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .139

Exercício de Aprendizagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .140

4 Ação Educativa e Cidadania _____________________ 1494.1 O exercício da cidadania . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .150

4.2 Ética, labor e trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .156

4.3 Vita activa: ética e ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .170

4.4 A utopia da esperança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .178

Resumo do Tema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .186

Exercício de Aprendizagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .188

Referências Bibliográ icas ___________________________ 198

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Ementa

A era do conhecimento: conhecimento filosófico, as relações homem-mundo, a sociedade aprendente, a condição humana. Filosofia, ideologia, edu-cação: o processo de ideologização, a construção da cidadania, o conhecimento e valores, educação e mudança. Ética e cidadania: ética e moral, o compromisso ético, a formação do cidadão, o ser humano integral. A ação educativa e cidada-nia: o exercício da cidadania, ética, labor e trabalho, vita activa: ação e ética, a utopia da esperança.

Justificativa

A tarefa da educação é a de formar homens e mulheres que se desenvolvam em todos os aspectos de sua condição humana. Isso implica numa ampla formação técnica e humana. A era do conhecimento precisa levar ao desenvolvimento da habilidade profissional, à capacidade de conviver em um mundo plural, pleno de diversidades e em que as diferenças levam ao enriquecimento individual e coletivo. A disseminação dessas ideias é o papel da Filosofia, como exercício da reflexão crítica sobre todas as realidades humanas. O foco da disciplina de Filosofia e Cidadania se insere nessa perspectiva de formação integral do ser humano. O mundo atual se apresenta de forma paradoxalmente carregado de possibilidades e, ao mesmo tempo, com problemas que o remetem a uma barbárie primitiva. Disso surge a exigência de que as transformações aconteçam urgentemente. Isso só será possível com a ação consciente, dinâmica e solidária de indivíduos que se constituam em cidadãos, ou seja, homens e mulheres fazedores de história. A utopia de um novo homem e de uma nova sociedade, vivendo em um mundo onde haja lugar para todos os habitantes do planeta, é o grande desafio histórico da atualidade.

Concepção da Disciplina

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Objetivos

evidenciar uma ampla compreensão do processo de desenvolvimento do conhecimento humano e da sua origem através das diferentes leituras de mundo, da interpretação filosófica, até chegar à ciência contemporânea.

identificar o significado e a importância da filosofia no conjunto dos conhecimentos construídos pela humanidade e a necessidade de se desenvolver uma postura reflexiva e crítica diante da realidade do mundo e da vida contemporânea;

perceber a sutileza dos processos de ideologização que movem e ma-nipulam os pensamentos, os comportamentos e os movimentos histó-ricos do mundo contemporâneo;

refletir sobre cidadania como valor e como exigência na construção de uma sociedade sustentável, em que a educação assume um papel fundamental;

identificar a ética como uma postura filosófica na construção de um novo homem e de uma nova sociedade;

desenvolver uma postura reflexiva e crítica que inspire e motive com-portamentos de cidadãos comprometidos com a construção de uma sociedade balizada por valores éticos.

Avaliação

A avaliação da disciplina será realizada a partir da:

Medida de Eficiência (ME): que deverá ser feita ao longo das Unidades no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) no total de duas ME por Uni-dade. O prazo para realizar a ME é de até 48h antes da data da avaliação (por Unidade). Para cada ME você terá duas tentativas de resposta;

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Organização da Disciplina

Bibliografia Básica

ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência. São Paulo: Loyola, 2007.

BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao Pensar. Petrópolis: Vozes, 2002.

CHAUÍ, Marilena. Convite a Filosofia. São Paulo: Ática, 2008.

Metodologia de estudo

O aluno terá o acompanhamento docente no Ambiente Virtual de Aprendiza-gem, tendo acesso a diversos recursos como: conteúdo textual web, vídeos, podcast, os quais servirão de apoio para a compreensão do conteúdo. Há também os fóruns e chat, que permitem a interação e o compartilhamento de ideias, além das atividades online como as Medidas de Eficiência. A disciplina possui uma dinâmica que permite a relação teoria e prática dos conteúdos e a interação entre professor/aluno e aluno/aluno, pre-sencial e a distância. O Livro Impresso faz parte da dinâmica de estudo e permite que o aluno, mesmo estando offline, estude os conteúdos necessários para a compreensão da disciplina. Assim, é de fundamental importância o autoestudo por parte do aluno, reser-vando um tempo para o leitura e o desenvolvimento das atividades na disciplina.

Exercícios de aprendizagem

Ao finalizar um Tema, o aluno terá a oportunidade de testar seu conhecimen-to respondendo o Exercício de Aprendizagem que é composto de quatro questões sub-jetivas, sendo uma para cada conteúdo e oito questões objetivas, sendo duas para cada conteúdo. O Gabarito das respostas estará no Ambiente Virtual de Aprendizagem.

Avaliação Presencial: é realizada presencialmente através de prova es-crita, sendo uma por Unidade, com o valor de 0,0 a 8,0 pontos. A avaliação é individual e sem consulta, com questões objetivas e subjetivas contextualizadas.

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Entendendo os ícones do livro

Ao longo do Conteúdo da Disciplina você irá encontrar no livro ícones que irão orientá-lo nos estudos. Conheça cada ícone:

Para Refletir: apresenta reflexões sobre o conteúdo abordado durante o texto a fim de desenvolver postura crítico – reflexiva sobre a realidade;

Atenção: destaca um conteúdo importante do texto para compreensão da temática;

Saiba Mais: são informações ou relatos de experiências considerados interes-santes para o entendimento do conteúdo que está sendo abordado;

Indicação de Leitura: ficará no final de cada conteúdo e seu objetivo é promover a fundamentação: sugestão de texto, livro ou site que reforçam ou ampliam o conteúdo;

Anotação: tem por finalidade o registro das reflexões dos alunos.

Está no AVA : indica acesso ao Ambiente Virtual de Aprendizagem para co-nhecer outros recursos que irão contribuir com o conteúdo estudado;

Exercício de Aprendizagem: indica uma atividade que está associada aos conteúdos estudados, que irá conter questões objetivas e subjetivas;

Resumo do Tema: síntese dos conteúdos do Tema abordado.

Onde tirar as dúvidas?

No Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), acesse o "fale conosco" no mural principal para registrar suas Dúvidas de Conteúdo com o professor da disci-plina e Dúvidas Técnicas quando for relacionado ao AVA.

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ASPECTOSFILOSÓFICOS, IDEOLÓGICOS EEDUCACIONAIS

Parte 01

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03Tema

Neste tema, vamos abrir uma perspectiva ampla do mundo em que vivemos como a era do conhecimento. A busca incessante do conhecimen-to se apresenta como um caminho que viabiliza a realização individual e coletiva. Portanto, é preciso lançar-se com muita força e esperança na aquisição do que temos como meio de conquistar o espaço que nos cabe em um mundo de imensas contradições e também de infinitas possibilidades.

É preciso fazer com que, através do co-nhecimento, sejam ampliadas as facilidades e di-minuidas as dificuldades da existência humana. A grande meta deste novo milênio é a construção de um mundo em que haja lugar para todos os habi-tantes do planeta.

Objetivos da AprendizagemAo terminar a leitura e as atividades do Tema 1, você deverá ser capaz de:

compreender o conceito, o significado e a importância do conhecimento filo-sófico no conjunto dos conhecimentos construídos pela humanidade;

identificar o que leva o ser humano a construir o conhecimento em sua relação com o mundo circundante;

identificar as características e os de-safios de uma sociedade aprendente;

compreender a condição humana atual a partir de suas contradições e possibilidades.

A ERA DO CONHECIMENTO

Tema

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1.1 O conhecimento filosófico

O processo de evolução do conhecimento acontece e exige dos seres humanos um incessante esforço de superação das dificuldades e ampliação das facilidades para existir em um mundo onde precisa haver lugar para todos os habitantes do planeta.

O ser humano se hominizará e se humanizará1 quanto mais cons-truir dentro de si e fora de si condições materiais, sociais, intelectuais e espirituais de melhor qualidade. Portanto, a humanização será um permanente processo de construção de sua própria vida. Para isso, é preciso conhecer cada vez mais o seu mundo para transformá-lo e nele se inserir de forma plenamente realizadora.

As hipóteses com as quais os cientistas atualmente trabalham a respei-to da origem do universo remetem a sua datação para quinze bilhões de anos. A vida sobre o planeta terra teria surgido a aproximadamente cinco bilhões de anos e os vestígios mais antigos de hominídeos remontam a sete milhões de anos. Portanto, embora sempre se trate de hipóteses, é considerável o tempo em que seres pensantes transitam sobre a terra.

A ação humana sobre o planeta se deu de forma lenta e temerosa ao longo de todo esse tempo. A vertiginosa velocidade que o processo de transfor-mações foi tomando, data de um período muito recente. Ocorre que, enquanto todos os demais seres do universo receberam um projeto de existência pronto e pré-determinado pela natureza, o ser humano recebeu uma mera possibilida-de de existir. Cabe a ele ajustar o meio para poder nele subsistir e sobreviver. Paradoxalmente, esse ser diferente de todos os demais – os seres inanimados, os vegetais e os animais – é o mais frágil e indefeso. Sua infância, até se tornar adulto e poder sobreviver por si mesmo, é a mais demorada de todas.

Todavia, com essa fragilidade, o ser humano recebe uma potencialidade infinita. Trata-se de uma dimensão que se revelará de múltiplas formas, através de suas capacidades intelectuais, emocionais e espirituais. Mesmo com o inexorá-vel processo de envelhecimento físico ao qual ele está submetido, inevitavelmente sucumbindo ao tempo, suas capacidades mentais poderão evoluir de forma ascen-dente e ilimitada. Existe, portanto, neste ser finito uma dimensão infinita que o projeta para uma transcendência sob todos os aspectos de sua condição humana.

1 Hominizar diz respeito à geração de um ser humano do ponto de vista biológico, enquanto hu-manizar se refere à construção de um ser humano em seus múltiplos aspectos a serem desenvolvidos.

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A discussão em torno da origem do universo e do homem é uma temá-tica que se manifesta em múltiplias posições e de forma inesgotável. Há quem entenda que tudo teria surgido por obra de um processo evolutivo. De formas mais simples da matéria, uma complexificação cada vez mais elaborada teria resultado no surgimento da vida sobre a terra e em níveis de consciência nos seres humanos. Todos os seres que compõem o universo seriam, portanto, re-sultantes de um processo evolutivo ascendente, de seres inferiores para seres mais complexos e, portanto, superiores na escala evolutiva. Na contrapartida, há quem defenda o creacionismo, isto é, a explicação de que o universo e tudo quanto nele existe, especialmente o ser humano, teriam sido criados por Deus em um tempo determinado.

O processo de hominização e de humanização acontece e exige dos se-res humanos um incessante esforço de superação das dificuldades que se im-põem a sua existência. O ser humano em parte coincide com a natureza e, em outra parte, dela se diferencia. Sua existência, assim, se constitui num somató-rio de dificuldades e de facilidades. Hominizar-se e humanizar-se são as tarefas que o desafiam permanentemente. Para isso, o ser humano haverá de buscar contínua e indefinidamente os múltiplos saberes necessários para se inserir em um mundo que parte coincide com ele e, em outra parte, diferencia-se dele e que precisa ser compreendido e ajustado. Portanto, todo o conhecimento será resultado dessa relação do homem com o seu mundo, que precisa se arrumado de acordo com sua condição de nele existir. Atualmente, a ação humana sobre o mundo se intensifica e se acelera, sob alguns aspectos, de forma assustadora,enquanto se pensa em um mundo bom para todos.

Mais do que as respostas, são as perguntas que movem a história. As trans-formações que ocorreram no mundo foram resultado do pensamento humano. A consciência de que o existir se apresenta como um problema a ser resolvido é que pode produzir os grandes avanços e as soluções ne-cessárias para a humanização do próprio homem e do ambiente circundan-te. Aqui se coloca a Filosofia como uma forma de conhecimento importante

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e necessária, desde o seu conceito mais simples do senso comum até o seu significado mais amplo e profundo.

Pode-se conceituar filosofia como sendo o simples modo de pensar de qualquer ser humano. A sua filosofia de vida é constituída por suas ideias, seus ideais e seus valores. Será de acordo com esse seu arcabouço mental que esse indivíduo conduzirá a sua vida. Muitas vezes, quando não consegue vi-ver coerentemente com sua forma de pensar, ele acabará modificando os seus pensamentos, adequando-os ao seu jeito de viver. Trata-se de uma questão de coerência com a forma de construir a sua vida.

Esse conceito simples acima exposto faz parte do senso comum e é per-feitamente válido. Todavia, essa é uma primeira forma de se conceituar filosofia. Ao longo da história, em suas origens, a filosofia surge com os pensadores gregos. Os filósofos - assim eram conhecidos e denominados esses pensadores - eram aqueles mestres que detinham a totalidade dos conhecimentos auferidos pela hu-manidade até então. Essa é a razão pela qual eles passaram a ser considerados amigos da sabedoria (filos=amigo e sofia=sabedoria) e assim eram chamados de filósofos. Eram os mestres, os educadores, os orientadores políticos, por vezes até mesmo orientadores religiosos e assim eram respeitados, ouvidos e seguidos pelos seus contemporâneos. Eram os sábios que sabiam tudo de tudo.

Diferentemente do senso comum, que é difuso e acrítico, e também avançando em relação à mitologia, uma linguagem ainda extremamente mar-cada por metáforas, pela oralidade e pelo conteúdo fideísta, a filosofia se apre-sentava como um grande esforço racional de entendimento e explicação de todas as realidades humanas. O resultado desse esforço foi o surgimento de renoma-dos pensadores, que produziram obras que passaram a inspirar toda a constru-ção do conhecimento humano até os dias de hoje.

A história da filosofia se constitui assim num capítulo importante da cultura humana. Foi através dos filósofos que a interpretação sobre o mundo se aprofundou e foram lançadas as sementes do que resultou modernamente na ci-ência contemporânea. O mundo não teria evoluído não tivesse havido o esforço de grandes pensadores que sobre ele se debruçaram em busca de seu entendimento.

Desde a Antiguidade até a Idade Média, portanto, há pouco mais de quinhentos anos, havia somente a filosofia a englobar a totalidade dos conhe-

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cimentos. Além da Filosofia, é preciso distinguir e destacar a Teologia, como a busca do conhecimento das coisas que remetem a humanidade para as ques-tões transcendentais. Alguns grandes filósofos foram também grandes teólogos como Santo Agostinho (354-430 d.C) e São Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.).

Eram os filósofos que cuidavam da matemática, das ciências naturais, da busca do entendimento dos fenômenos humanos, das práticas educativas e tudo o que poderia dizer respeito às realidades do mundo e do homem. Com o advento da Idade Moderna e a substituição da cosmovisão teocêntrica2 pela perspectiva antropocêntrica, em que a fé passava a ser substituída pela razão humana, os conhecimentos passam a se fragmentar cada vez mais, originando-se o conhecimento científico, produto da razão humana.

Cada área do saber começa a apresentar as suas especificidades e seus expoentes e pesquisadores. Os avanços da ciência e da técnica começam a se apresentar cada vez mais rapidamente e o que a humanidade não progrediu ao longo de milhares de anos, agora vai conhecer avanços cada vez mais acelera-dos. A idade contemporânea chega e se afirma cada vez mais com a convicção de que ciência e técnica finalmente resolveriam todos os problemas humanos.

A fragmentação dos saberes resultou em infindáveis listas de novas e específicas áreas do conhecimento, de sorte que, no caminho da máxima espe-cialização, o espaço dos generalistas3 foi perdendo o seu status e sua impor-tância. Impôs-se o mundo dos especialistas. E diante da infinidade das novas áreas do conhecimento e diante do volume imenso de novos conhecimentos a aumentar cada vez mais rapidamente, resta a pergunta:

Qual é o significado e a importância da Filosofia no conjunto dos conheci-mentos construídos pela humanidade, quais as questões que ainda restam para o filósofo e qual é o seu espaço e sua tarefa?

2 Cosmovisão teocêntrica é uma visão segundo a qual tudo era percebido e explicado como sendo obra de deuses ou de Deus... isso quando não se atribuí a seres da natureza a condição de divindade. Por exemplo, uma trovoada era compreendida como se fosse a presença de um deus embravecido.... e que teria que ser apaziguado para que não viesse a punir os homens...

3 Generalista é aquele que procura saber tudo de tudo, enquanto o especialista é aquele que procura saber tudo de um campo cada vez mais centrado e reduzido da realidade.

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O filósofo não é mais aquele que detém todo o conhecimento, até porque, diante da infinidade sem conta de novas áreas de conhecimento, seria absoluta-mente impossível alguém ter a pretensão de ser um especialista em todos os conhe-cimentos. Porém, a importância da Filosofia está na sua tarefa de pensar o mundo e refletir sobre seu significado. Assim, um pensador se dobrará sobre o seu mundo para percebê-lo com mais clareza a respeito de suas razões últimas.

A postura do filósofo se revela pela capacidade de perguntar. É o afã de construir permanentemente o que ainda não somos que nos leva ao questio-namento a respeito de tudo o que nos cerca. Nenhum outro ser conhecido faz uma pergunta. Repetindo o programa pré-determinado pela natureza, todos os demais seres do universo simplesmente realizam o que para eles já foi progra-mado pela natureza. Portanto, nenhuma nova indagação os inquietará.

O ser humano, desde que abre os seus olhos, pela primeira vez, já ma-nifesta a sua inquietação que o fará buscar respostas enquanto viver. A crian-ça pergunta insistentemente a respeito de tudo. Infelizmente, essas perguntas, muitas vezes, são ridicularizadas, sufocadas e silenciadas. Muitos professores, na escola, não gostam do aluno que faz muitas perguntas, enquanto os pais, na família, sem saberem o que dizer, silenciam e também fazem calar.

Diante de tantos mecanismos que buscam silenciar desde uma criança até adultos de todas as idades – um ser humano quieto não incomoda! – é preci-so verificar se ainda somos capazes de nos indignar com tudo o que acontece ao nosso redor. O filósofo ainda não morreu dentro da gente se ainda não nos acostumamos com o inaceitável diante de nossos olhos.

Com que facilidade nos acostumamos com tudo e nada mais nos in-comoda. É melhor ficar quieto. É melhor não reagir. É melhor não se envolver em confusão. Uma encrenca sempre dá trabalho. E assim vamos morrendo por dentro e vivendo no limite do inaceitável e intolerável. Porém, viver acostuma-dos com os absurdos que nos rodeiam é abrir mão da própria dignidade que nos faz sentir vivos, mais atores do que meros reatores diante dos acontecimentos.

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Assim, o mundo dominante nos quer passivos e acomodados. Na antiguidade greco-romana, oferecia-se pão e circo para as massas populares manterem-se passivas. Atualmente, basta oferecer o circo (futebol, novelas, etc.) e o povo se diverte, inconsciente e manipulado. A reação à essa passividade é um desafio à dignificação humana. Diante disso, a inquietação filosófica se coloca como um meio de humanização e de preservação da cidadania.

O filósofo é alguém que busca viver e conviver com as diferenças. O dife-rente é que nos instiga e encanta para além da acomodação. Já não existe mais um filósofo dentro de alguém que não sabe conviver com um pensamento diferente, com uma cultura diferente da nossa, de um credo, de uma cor, de um sabor ou de um jeito diferente de ser. As diferenças sempre serão um desafio para aprender e crescer. Jamais a atitude de nivelamento e de achatamento produzirá algo de sig-nificativo e interessante para mover a realidade. A convivência com o diferente só será possível se nos despojarmos de qualquer atitude preconceituosa e dogmática.

A postura filosófica brotará da saudável inquietude que nos leva a questionar o mundo que nos cerca. Não se trata de uma inquietação neurótica e de uma ansiedade patológica, mas de uma sensibilidade que se manifesta num profundo sentido de alteridade. O filósofo é alguém que se ocupa e se preocupa com o outro. Sua sensibilidade o faz perceber a alegria, a tristeza, o encanta-mento, o desapontamento, o medo, a raiva, o desânimo, a força e tudo o mais de que se compõe a personalidade humana. O filósofo se importa com o outro e tudo que diz respeito ao seu mundo. Ele está atento a tudo que se passa ao seu redor e buscará expressar essa percepção de alguma forma.

Naturalmente que a postura do filósofo não permanecerá somente ao nível do senso comum, dos sentimentos e de uma mera sensibilidade inicial e ainda descomprometida. O filósofo também se exercita e se constrói. Sua in-quietação o levará a sair de sua zona de conforto e exercer uma prática liberta-dora corajosa e transformadora.

O estudo da Filosofia, em nossa sociedade, acabou se transformando em um pesadelo para a maioria de nossos estudantes, restando uma experiência pou-co positiva. Dois aspectos explicam o fato: o primeiro é histórico e o segundo

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é pedagógico. Historicamente, precisamos lembrar que as últimas décadas da história brasileira foram marcadas por um obscurantismo cultural. Por oca-sião da revolução militar de 1964, atendendo aos objetivos desenvolvimentis-tas do capitalismo internacional, ajustou-se a educação aos modelos político autoritário e econômico associado e excludente aqui implantados. Para isso, excluiu-se das grades curriculares de todos os cursos médios e superiores todo e qualquer espaço reflexivo. Concomitantemente, submeteu-se à cen-sura tudo o que fizesse esse povo pensar, ou seja, os meios de comunicação e toda expressão cultural. Resultou em um verdadeiro atraso cultural. Um povo que não pensasse, não ouvisse e nada falasse, isso é, silencioso e passivo, estaria facilmente subjugado e dominado. Por outro lado, nos espaços reflexi-vos que ainda persistiram, ocupou-se o tempo em ler e decorar o pensamento dos clássicos da Filosofia, da Sociologia, da História etc., de tal forma que os estudantes passassem a rejeitar qualquer atividade cujo objetivo fosse des-pertar as consciências e toda e qualquer sensibilidade criativa. Restou uma educação a serviço de um modelo econômico determinado pela racionalidade tecnológica e economicista. Por essas razões, é preciso recuperar os espaços perdidos e fazer acontecer o despertar de um povo para a sua condição de cidadãos, donos e senhores de sua própria história. Filosofia e Cidadania se insere nesta busca e se constitui no espaço educativo cujo objetivo é aprender a pensar para fazer acontecer a história individual e coletiva da melhor forma possível. (Acesse a internet – no Google/You Tube – e escreva a pergunta Oque é Filosofia? Você encontrará uma sequência de vídeos sobre o tema).

O que é preciso para formar um filósofo?

Muito estudo. Estudar é ler o mundo e também ler o texto. Isso quer dizer que, para se exercitar o filósofo, é preciso leitura. Ler é algo árido e muitas vezes cansativo. Porém, somente quem lê muito, pensa bem, escreve bem e fala bem. Os neurônios se exercitam e as habilidades intelectuais não são resultado apenas de uma mera característica individual. É bem verdade que existem di-ferentes inteligências. Alguns serão naturalmente mais reflexivos. Outros terão uma habilidade especial para expressar seus pensamentos de forma verbal ou de forma escrita. Outros serão ainda mais práticos e operativos. Todavia, nada

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substitui a transpiração de quem se exercita em qualquer atividade humana. As-sim como uma habilidade física resulta de muito treinamento, também as habi-lidades intelectuais e mentais são fruto e produto de muito esforço e empenho.

Fazer silêncio. Para refletir é preciso criar espaços de silêncio. É co-mum que nossos estudantes tentem estudar com os fones de ouvido e o som nos últimos decibéis suportáveis aos ouvidos humanos. Mesmo que haja quem afirme que é assim mesmo que ele gosta de estudar, a super estimulação sonora é incompatível com o funcionamento das células nervosas do cérebro no que diz respeito à assimilação de conteúdos e da aprendizagem. Portanto, é preciso criar espaços interiores para que possa desabrochar a criatividade, a sensibili-dade e florescer o mundo das ideias.

Para produzir algo intelectualmente, é preciso desligar os aparelhos eletrônicos, buscar uma condição razoavelmente confortável e se concentrar. Sobretudo a reflexão filosófica, assim como a meditação e a oração, exige um mínimo de silêncio para que possa florescer na mente e no coração. É preciso começar já! Perguntou-se, certa vez, a um grande campeão de natação sobre qual era o momento mais difícil de sua vida esportiva. Ele respondeu que era o momento de saltar na água. Assim, uma longa jornada sempre se fará com oprimeiro passo. Não será diferente com a construção intelectual. É preciso dar apartida e, por fim, acaba-se tomando gosto e atingindo profundidade no saber.

O produto do pensamento filosófico poderá se manifestar das mais di-versas formas: há quem escreva textos de grande qualidade; há quem expresse seus pensamentos e sentimentos em poemas; há os que se manifestam em letras de música; outros escreverão peças de teatro; outros ainda disseminarão ideias geniais na forma de humor e, de forma jocosa, elegante e inteligente, farão o público rir gostosamente, levando-o a pensar nas verdades que foram ditas; há também quem expresse um mundo de pensamentos em simples traços em uma folha em branco.

Assim, a filosofia adquire seu espaço que, de fato, ela nunca perdeu, mas apenas se modificou. O que tem feito morrer o sentido reflexivo, sobretudo em nossos jovens, é uma maneira árida e cansativa de fazer decorar o pensamento de pensadores do passado. Esses tiveram o seu tempo, a sua importância e sua originalidade. É muito importante conhecermos o acervo que eles nos le-garam. Todavia, é preciso fazê-lo de forma prazerosa e, por certo, nunca será

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necessário decorar o que disse esse ou aquele pensador. Para beber na fonte dos grandes pensadores, bastará ir ao encontro deles nos livros e textos que deixaram.

Portanto, na sequência da reflexão que se desenvolverá, em busca de uma aproximação da filosofia com a cidadania, trataremos de questões que apontem para a possibilidade de construirmos um novo homem e uma nova sociedade. Isto quer dizer que, somente se compreendermos as contradições em que se movimenta o homem contemporâneo, poderemos desencadear um processo de transformação.

Superar o nível de consciência que mantém a massa humana na con-dição de mero objeto de controle e manipulação e fazer com que ela evolua para a condição de poder vivenciar a sua cidadania, é o desafio que terá, sobre-tudo, a educação como força mobilizadora. É no ato educacional que se realiza a construção do conhecimento e a formação de seres humanos. Sua tarefa não poderá se reduzir a uma mera transmissão dos saberes auferidos pela humani-dade, mas também é preciso que sua tarefa se amplie maximamente para que dela surjam cidadãos para uma nova realidade, em que o mundo seja um bom lugar para todos.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem e na participação do fó-rum de discussão.

SOUZA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências. 13. ed. Porto: Afrontamento, 2002.

A sociólogo português Boaventura de Souza Santos faz uma reflexão sobre o

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conhecimento desde o senso comum até a ciência. Mostra como as questões que brotam da simplicidade de um conhecimento ingênuo, difuso, acrítico, dogmático e simples, dá origem aos questionamentos que levam a um conhe-cimento altamente fundamentado e que precisa retornar à sua origem como um senso comum esclarecido.

GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

O filósofo norueguês Jostein Gaarder elaborou uma síntese de toda a histó-ria da Filosofia, desde a Antiguidade até os dias atuais, de forma sedutora e envolvente: uma adolescente recebe cartas anônimas em sua caixa postal e é desafiada a responder a instigantes perguntas para descobrir quem é seu correspondente anônimo. Assim, de desafio em desafio, vai revisando toda a evolução do pensamento filosófico, em um texto que arrasta para a leitura até o seu final.

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1.2 As relações homem-mundo

A existência humana constituir-se-á num permanente desafio de su-peração de problemas. Todavia, é preciso compreender a problematização4 da vida como uma grande possibilidade de crescimento. Ter que modificar algo que é inadequado e que, portanto, não serve, é o que faz com que tudo evolua no entorno e com que todas as coisas possam ser mudadas para melhor. Entretan-to, essa melhoria só poderá acontecer na medida em que se ampliar o nível de consciência das condições circunstanciais. Essa afirmação equivale a dizer que é preciso conhecer o mundo para nele se inserir de uma forma mais satisfatória e realizadora. Quanto mais o homem conhece e penetra nos segredos da natureza e descobre os princípios que a regem, tanto mais ele terá possibilidade de se ajustar a um mundo de forma realizadora e satisfatória.

São as ideias que movem o mundo. Durante muito tempo, a humanidade se manteve num processo lento de desenvolvimento por perceber o mundo pela ótica do sagrado, intocável e imutável. A postura diante desta realidade era de temor e submissão. Como seu deu a passagem de uma perspectiva fideista e teocêntrica para uma cosmovisão racionalista, dando origem às grandes e rápidas transformações históricas da idade moderna e, por fim, ao mundo tecnológico da idade contemporânea?

Ao longo da história, as relações entre os seres humanos e o seu mundo sempre foram marcadas pela maneira como estes conseguiam percebê-lo. Atuar ou não sobre a realidade vai depender de como ela é compreendida. No mundo primitivo, nossos ancestrais ainda não tinham condições de explicar o mundo

4 Problematizar é a capacidade de identificar o que precisa ser mudado... às vezes é difícil e doloroso mudar, mas é a única possibilidade que temos de crescer e se desenvolver... é assim que as pessoas crescem e o mundo evolui… Observe-se que essa questão da problematização também é a questão mais fundamental para o desenvolvimento da ciência. Levantar uma grande questão para ser resolvida é um desafio que produz conhecimento. Portanto, problematizar é a base de desenvolvimento da pesquisa científica.

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circundante. Sua interpretação acabava sendo pela ótica do sagrado. A natureza e tudo o que ela continha era explicada através de uma perspectiva teocêntrica e fideista. Todos os fenômenos eram fruto e produto da ação de Deus ou de deuses. O que fundava esse conhecimento era um fideísmo, ou seja, a crença na presença e ação de divindades.

Augusto Comte (1798-1857), filósofo positivista, afirma ter a humanida-de atravessado três estágios no que diz respeito à explicação do mundo: o estágio teocêntrico, o racional e o positivo. O teocentrismo caracterizou todo o período pré-histórico, a Antiguidade e toda a Idade Média. Os povos primitivos e antigos eram politeístas. Para eles, os deuses é que comandavam a vida e a morte de todos os seres. A natureza era sagrada e imutável. Não se poderia tocar em algo que fos-se determinado por uma divindade ou que até mesmo fosse identificando como sendo a própria divindade. O Cristianismo trouxe a crença em um Deus único. O monoteísmo cristão passou a determinar de vez a fé como explicação de toda a condição humana: as relações sociais, políticas e econômicas. Tudo se justificava em nome de Deus. A cultura estava circunscrita aos mosteiros e catedrais. Somen-te tinham acesso ao conhecimento mais elaborado os monges e alguns nobres.

Esta visão teocêntrica e fideísta de mundo não combinava com o desen-volvimento de uma ação mais efetiva sobre a natureza. Ao contrário, a crença no sagrado infundia um sentimento de temor e um comportamento de submissão. Quem ousasse pensar diferentemente do estabelecido pela ortodoxia vigente era taxado de herege e punido severamente. Todavia, houve homens e mulheres que tiveram a coragem de começar a questionar as verdades impostas e a du-vidar de tudo o que não era explicado pela razão humana. A idade moderna, a partir do século dezesseis, surge com a ação crítica de homens e mulheres que tiveram a coragem de afirmar suas novas perspectivas. Um exemplo paradigmá-tico se revela no pensamento de René Descartes (1596-1650). Um filósofo que inaugura um método da dúvida. Nada mais será aceito sem que passe pelo crivo da razão humana. Tudo precisava ser interpretado e compreendido através da razão. Assim, a dúvida metódica se coloca como um marco de um tempo em que a racionalidade humana vai conquistar e ocupar, cada vez mais, seu espaço na construção do conhecimento, dando início a era moderna. Junto de Descartes, outros pensadores vão concorrer para solidificar a revolução do pensamento humano, como Leonardo Da Vinci (1452-1519), Galileu Galilei (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626), Giordano Bruno (1548-1600), etc.

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Com uma nova compreensão de mundo, as transformações vão ocor-rer em todos os setores da vida humana. A partir do momento em que se afir-ma o heliocentrismo5, percebeu-se que daria para navegar sempre para a frente e que não se cairia nas garras de monstros, habitantes de abismos pro-fundos. Afirma-se o sistema planetário em substituição a uma compreensão de uma terra plana como uma mesa. Empreendem-se as grandes navegações e descobrem-se novas terras em todos os quadrantes do planeta. Afronta-se o poder da igreja romana com os questionamentos dos reformadores protes-tantes. Buscam-se inspirações na antiguidade greco-romana e a cultura dásaltos de excelência, constituindo-se num verdadeiro renascimento nas artes,na pintura, na escultura, na arquitetura, na música, na pedagogia etc. O de-senvolvimento da ciência e da técnica produz uma revolução que afetará as re-lações humanas sob todos os pontos de vista. O modo de produção se deslocado setor primário para o setor secundário e, a partir de meados do século XIX,a industrialização vai se constituir no mecanismo de produção de bens econô-micos. Os pensadores iluministas disseminaram ideias de liberdade, de igual-dade e de fraternidade. Por fim, os três séculos da idade moderna produzema derrocada do feudalismo, cuja estrutura garantiu os privilégios da nobreza edo clero durante mil e trezentos anos. Com a revolução burguesa, surge a novaordem econômica e social do capitalismo e sua contrapartida socialista.

A princípio, a natureza era tida como um obstáculo intransponível, já que era dominada por divindades que não permitiam que sobre ela se atuasse e se modificasse o que era prerrogativa exclusivamente sua. Pela ótica do Cristia-nismo medieval, sob a hegemonia da igreja romana, o conhecimento não pode-ria chegar ao alcance do povo para que interpretações errôneas não induzissem a heresias. Quem ousasse pensar diferente do que era estabelecido pela Igreja e pela sociedade dominante de então, poderia ser levado para a fogueira inquisi-torial. Muitos homens e mulheres, de fato, foram queimados, como a francesa Joana D’Arc (1412-1431) e o monge italiano Giordano Bruno (1548-1600). Ela, uma mulher guerreira, é queimada viva com a acusação de bruxaria, e ele, um cientista, é queimado, em Roma, sob a acusação de que seus estudos científicos eram contra a doutrina cristã. Na verdade, o que não se queria era correr o risco da perda de privilégios e de poder.

5 Heliocentrismo é a descoberta de que o centro do sistema planetário é o sol e não a terra... tudo gira em torno do sol e não da terra...

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Com o advento das idades moderna e contemporânea, a natureza passa a ser investigada em suas entranhas e seus princípios passam a ser dissecados. Surgem a ciência e a técnica. Os seres humanos não se submetem mais à na-tureza, mas aprendem com ela e a tornam coadjuvante em seu desenvol-vimento. Por fim, chega-se a um mundo em que a natureza é dominada. Desenvolvem-se imensas possibilidades de se criar um verdadeiro céu neste planeta. As ciências vão dissecando os mistérios mais profundos de todos os fenômenos e a técnica instrumentaliza os seres humanos, conferindo-lhes um extraordinário poder de transformação. As dificuldades são minimizadas sob todos os pontos de vista. As facilidades para se viver cada vez mais e em condi-ções cada vez melhores aumentam significativamente.

Na contrapartida, surge um paradoxo assustador: jamais houve tanto poder para se resolverem todos os problemas humanos, jamais se construíram tan-tas riquezas, jamais foi tão possível fazer deste planeta um lugar tão bom para se viver e, contudo, nunca houve tanta violência, nunca tantos seres humanos passaram tanta fome, nunca houve tanta destruição e morte e jamais houve tantas diferenças quanto ao longo do século vinte e vinte e um.

Diante disso, é preciso fazer-se algumas considerações que exigirão uma reflexão profunda:

• a grande maioria das pessoas se relaciona com o seu mundo de formasimples, ingênua, acrítica, imediata, difusa e dogmática. Isto quer dizerque sua interpretação da realidade é marcada por um nível bem redu-zido de consciência sobre as verdadeiras razões que movem os acon-tecimentos ao seu redor. Resulta que elas acabam sendo submetidas emanipuladas pelo contexto que as cerca, tornando-se muito pouco su-jeitos de sua própria história. Elas percebem os fatos acontecendo, massequer se questionam sobre os porquês e tampouco se darão conta dosmecanismos de manipulação dos quais acabam sendo vítimas;

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• o grande fascínio da humanidade foi e continua sendo o fantásti-co desenvolvimento tecnológico. O seu resultado se transformounuma parafernália que encanta homens e mulheres em todas asidades. Ficou muito mais fácil se viver no que diz respeito ao trans-porte, às comunicações, à manutenção da saúde e à cura de do-enças, à alimentação mais saudável, ao lazer com o aumento dotempo liberado de tarefas antes braçais e opressivas, o acesso aoconhecimento e à educação etc. Atingiu-se a culminância da enge-nhosidade humana com o desenvolvimento de uma tecnologia quesubstitui não somente a mão humana, mas o próprio pensamentohumano. A rapidez com que tudo acontece, o ritmo alucinante dasmudanças e inovações, criam um admirável mundo novo, na ex-pressão do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963);

• entretanto, como explicar os descaminhos pelos quais se embre-nha a humanidade na razão geométrica em que avança em suasconquistas? O fenômeno da massificação asfixia multidões em todoo planeta, num processo de despersonalização embrutecedora. Oconsumismo leva as pessoas à perda da própria identidade, em queter coisas há muito passou a ser mais importante do que ser gente.Tem-se a impressão de que as massas correm desenfreadamentepara o vazio do sem sentido, que se manifesta em neuroses, an-siedades, estresses e doenças psicossomáticas de todo tipo. As exi-gências de consumo de bens supérfluos impostos pela sedução dapropaganda produzem um ativismo enlouquecedor. É preciso tra-balhar cada vez mais para pagar o que se gastou com o que não eranecessário. A ansiedade, que resulta da pressão por sempre se gastarmais do que se pode, vai gerando conflitos internos e externos e umapressão desmedida.

O processo filogenético6 é reproduzido, em pequena escala, pelo proces-so ontogenético. Isso quer dizer que, assim como a humanidade se desenvolveu ao longo de milhões de anos, tendo um longo período de infância – pré-história,

6 Filogenia diz respeito à origem e evolução da humanidade, enquanto ontogenia diz res-peito à origem e evolução do ser humano individual.

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antiguidade, idade média, de adolescência – idade moderna, e de adultez, idade contemporânea, também um ser humano individual passa pelas mesmas fases. As-sim como a evolução de toda a humanidade foi determinada pela forma como foi compreendendo e atuando sobre o mundo, também o crescimento individual se dará pela maneira como ele se relaciona com o seu mundo. Assim, cada indivíduo vai até onde acredita que pode ir e terá o tamanho de seu pensamento. O que deter-mina grandemente o crescimento ou a estagnação pessoal são as crenças que cada um fixa em sua mente a respeito de seu mundo. Muitos indivíduos acreditam que nasceram para sofrer e que é vontade de Deus a sua condição de miséria e sofrimen-to. Todavia, quando alguém desperta e compreende que ninguém nasce para sofrer e que a miséria não é vontade de Deus, ele assume a tarefa histórica da transfor-mação pessoal e coletiva. Passa a estabelecer horizontes ilimitados e vai à busca da realização de seus projetos e propósitos. Portanto, desmistificar e desfazer crenças limitadoras para o próprio crescimento é um desafio que se impõe a todo ser hu-mano para romper com as amarras internas e externas. Assim como a humanidade foi avançando em seu processo de desenvolvimento, cada ser humano individual precisa compreender que, dentro do contexto em que ele se insere, é preciso que cada um seja o sujeito, dono e senhor de sua própria história.

O ser humano é o único ser que tem a tarefa de arrumar7 o mundo para nele se inserir. Esta é a razão pela qual ele busca o conhecimen-to. Vai depender da forma como ele percebe o seu mundo o tanto que ele vai avançar no seu desenvolvimento pessoal e coletivo. O conheci-mento sempre resulta da relação do homem com o mundo. Portanto, é preciso assumir uma postura de enfrentamento e de realização, de forma positiva e esperançosa, para que a sua travessia por este planeta seja marcada por realizações e conquistas e realizadoras. Você terá o tamanho do alcance de seu pensamento e irá até aonde você acredita que poderá ir. Pense alto e olhe para o infinito. Não haverá limites para sua possibilidade de crescimento.

7 Poderia utilizar outro termo?

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Assim se apresenta a realidade paradoxal de nosso mundo: um uni-verso de infinitas possibilidades e de aspectos assustadores e ameaçadores da própria condição de sustentabilidade da sobrevivência do próprio planeta. To-davia, é preciso encarar tudo o que se apresenta de forma realista: esse é o nosso mundo. Ele não é melhor e nem pior do que já foi ou que poderá vir a ser. Tudo vai depender de como haveremos de nos posicionar diante do que está posto. Assumir uma postura positiva e decisória frente ao mundo é uma necessidade fundamental. Isso quer dizer que precisamos encarar a realidade em sua verda-deira dimensão de fragilidade e de potencialidades. Novamente se nos impõe o desafio histórico de minimizar as dificuldades e ampliar as facilidades. Tudoisso resultará da postura e do engajamento de homens e mulheres conscientes,dinâmicos, e que acreditam na utopia de um mundo melhor para todos. Isso éque representa a postura de cidadãos a exercer a sua cidadania como um com-promisso ético fundamental. Toda a posição que prenuncia uma terra arrasadaprecisa ser abandonada e substituída pela esperança construída de que o mun-do é transformável, de que ainda há tempo e que a utopia de um mundo em quecaibam todos pode ser transformada em realidade.

No próximo assunto trataremos das características da sociedade em que vivemos. É preciso compreender o tipo de sociedade que se apresenta para podermos pensar nos meios para nos inserir nela e nos realizar como seres hu-manos individuais e construir um mundo bom para todos. Verificaremos que se trata de uma sociedade do conhecimento e que o caminho será a busca inces-sante dos saberes como possibilidade de concretização da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem e participação do fórum de discussão do tema.

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ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.

O filósofo espanhol José Ortega Y Gasset faz uma análise de todo o processo de desenvolvimento da ciência e da técnica, desde a afirmação inicial de que o ser humano é o único que não recebeu a vida pronta e acabada e que, portan-to, terá que se fazer permanentemente, já que ele é o que ainda não é.

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 2001.

Os cientistas de vanguarda da atualidade, como Fritjof Capra, nascido na Áustria e radicado nos Estados Unidos, reconhecido como um físico proemi-nente, tornam-se filósofos na medida em que realizam importantes reflexões sobre sua atividade científica. O Ponto de Mutação é uma obra que demons-tra o profundo significado da mudança de paradigma científico que se estabe-leceu com o advento da física quântica e da teoria da relatividade.

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1.3 A sociedade aprendente

Um dos mais frágeis e dependentes seres que habitam o planeta é o ser humano. Este, porém, que leva muitos anos para crescer e se autono-mizar, recebeu uma potencialidade em desenvolvimento para se preparar etransformar o seu mundo. Mesmo com o declínio de suas forças físicas, porforça do tempo, seu potencial mental não conhece limites para sua amplia-ção e crescimento. O ser humano é o único que precisa ajustar o seu mundopara nele se alojar. Para isso, ele precisa conhecer a realidade circundante. Oconhecimento, como fruto e produto da racionalidade humana, está na basedo processo de hominização e de humanização. O conhecimento assume umsignificado e uma importância especiais para a construção do homem e domundo. Assim, é preciso destacar as razões que o colocam como pilar desustentação de um mundo melhor para todos.

O primeiro significado que o conhecimento assume no processo de construção humana está na revelação do desconhecido. Para se inserir no mun-do, é preciso conhecê-lo. O desconhecido, a princípio, sempre provoca temor e submissão. Na medida em que as luzes se acendem sobre uma realidade, a transformação se torna possível e o usufruto dos bens da terra se colocam à sua disposição. Portanto, quanto mais se conhecem os segredos do universo infinitamente pequeno, médio e infinitamente grande, tanto mais cresce a pos-sibilidade de se imprimir o jeito humano de ser e de viver em todos os espaços que nos rodeiam.

O conhecimento se constitui num direito fundamental de todo ser hu-mano. Aquele que não tem acesso ao saber, mantido em sua condição de cego de espírito, sempre será reduzido a um mero objeto de controle e de manipulação. Portanto, o conhecimento se transforma num instrumento de libertação huma-na. Quanto mais alguém cresce na dimensão do conhecimento, mais se instru-mentaliza para ser dono e senhor de sua própria história individual e também construtor da história coletiva.

Conhecer a realidade em que vivemos, confere a cada habitante des-te planeta condições de segurança e de firmeza diante da vida e na execução de seus projetos de transformação. O ser humano só se sente seguro quando conhece. Daí ser a superação da ignorância uma das exigências fundamentais no processo de desenvolvimento humano. O ser humano precisa assumir o seu

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papel transformador. Já que o mundo não lhe é dado pronto, cabe-lhe modificá--lo na perspectiva de sua realização plena. Isso significa que a condição humanaexige a busca do conhecimento para superar suas adversidades e assim desabro-char todas as suas potencialidades.

Desta forma, a sociedade aprendente8 elegeu algumas palavras chave como expressão das exigências da realidade atual: conhecer, fazer, conviver e ser. A inserção no contexto sócio-econômico sem o conhecimento se tornou algo impossível. O desafio de aprender se tornou uma exigência para toda a vida. Os saberes são substituídos por avanços científicos e técnicos numa exiguidade de tempo cada vez menor. A premência pela atualização se tornou uma constante com aspectos avassaladores. É preciso estar sempre apren-dendo, sem jamais parar de buscar novos conhecimentos. Cada qual com a sua capacidade de ler o mundo e sua forma de inteligência, terá que assumir uma postura de busca permanente de iluminação de sua realidade. Não há mais lugar para amadores e a desculpa de que não se sabia não serve mais de álibi para resultados negativos.

As formas de ler o mundo são múltiplas: do senso comum ao conheci-mento científico. O senso comum se constitui dos saberes simples do cotidiano, acríticos, difusos, orais, frutos da experiência do cotidiano. O senso comum é a compreensão simples e ingênua com que as pessoas enfrentam o seu dia a dia. Existe muita sabedoria também nesta forma de conhecer e viver a realidade cotidiana. É desta forma de conhecimento que surgem as grandes questões que desafiam a busca do conhecimento científico. Ciência não é outra coisa do que senso comum esclarecido. Portanto, o senso comum se constitui num grande começo para a ciência. Por fim, quando elevado à condição de conhecimento válido pela pesquisas, aprofundamento e comprovação, é preciso que os saberes

8 Sociedade aprendente é aquela em que o conhecimento assume uma importância funda-mental para a inserção de qualquer ser humano em suas relações. Aprender é uma tarefa para toda a vida...

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retornem para o cotidiano da vida das pessoas, na forma de uma disseminação das conquistas científicas.

Os mitos se constituíram no grande esforço de explicação do mundo exercido pelas comunidades primitivas. Esse legado nos vem até hoje numa lin-guagem metafórica, simbólica e que contem, em germe, a semente dos conheci-mentos que foram evoluindo ao longo dos tempos. O fenômeno da mitificação ainda se apresenta nos dias atuais na forma de manipulação e mascaramento da realidade. Criam-se mitos – pessoas, lugares, ideias etc. – para apresentar uma realidade fantasiosa que preenche as necessidades das massas carentes de tudo e que transferem para a magia do pensamento a satisfação não atingida na realidade. O risco disso tudo está no fato de que essas carências tornam as pes-soas presas fáceis de entendimentos equivocados da realidade e a manipulação do consumismo e da exploração de povos inteiros. Portanto, enquanto os mitos do passado se constituíram em semente do conhecimento moderno, o mundo da ciência e da técnica deslocou o seu significado e os instrumentalizou como ferramentas de manipulação e de controle. Portanto, é preciso aproveitar o que os mitos nos ensinam e desmascarar o que através deles nos é transmitido sub- liminarmente.

O conhecimento religioso, resultante da revelação divina, de acordo com a crença das diferentes religiões, projeta o sentido de transcendência para todos os seres humanos. Apresenta-se uma contradição aparente na medida em que a construção humana resulta do conhecimento científico e este é fruto da razão. Todavia, é preciso compreender que a visão religiosa não projeta o mes-mo objeto da perspectiva científica. A primeira confere um significa de infinito ou transcendente e a segunda busca a significação e o controle do finito ou ima-nente. Portanto, o que ambas busca não se contradiz, até porque são conheci-mentos diferentes. Bem colocados em suas tarefas, os conhecimentos religioso e científico não coincidem e não são excludentes, mas podem e devem se conciliar tanto na explicação de todas as realidades existentes, quanto na vida concreta de todos os seus habitantes. À religião cabe a tarefa de conferir o significado à vida humana e à ciência cabe explicar o mundo material que nos cerca. Portanto, são objetos diferentes que concorrem para a construção e realização da condição humana em sua pluridimensionalidade bio-psico-social-espiritual-material.

Assim, a construção da utopia de um mundo bom para se viver, um mundo sustentável, ou um mundo onde caibam todos os seres existentes, resul-

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tará da simbiosinergia de toda a teia da vida em que se constitui nosso planeta e todo o universo. Será através da evolução de todos os saberes e de sua colocação a serviço da realização da utopia de um mundo melhor que uma nova realidade poderá emergir.

Há algum tempo, conseguir um lugar em nossa sociedade, sem o estudo, era algo difícil. Hoje, conseguir sucesso pessoal e profissional, sem o estu-do, é quase impossível. Vivemos em uma era do conhecimento e a sociedade é aprendente. Portanto, uma das poucas chances que tem aqueles que não estão incluídos nesta sociedade por herança é através da busca do saber. La-mentavelmente, nosso mundo ainda é um lugar em que não há lugar para todos. Sendo assim, precisamos buscar conquistar esse lugar. A maneira que está ao nosso alcance, por mais difícil que possa ser, é através da educação. Cada vez mais, a seleção se fará pela competência. É na escola que havere-mos de buscar aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser.

A Organização das Nações Unidas (ONU), através da UNESCO, seu braço que cuida da educação, ciência e cultura no mundo, ao tentar vislumbrar as prospectivas para o novo milênio, identificou quatro pilares para o século XXI: conhecer, fazer, conviver e ser, anteriormente já mencionados.

Sempre o conhecimento foi o grande instrumento de transformação do mundo. Desde a realidade primitiva, os seres humanos se hominizaram e se humanizaram através do conhecimento. Se já era importante e necessário conhecer o mundo para nele se inserir de forma mais hominizado e humani-zadora, atualmente é muito difícil avançar, seja do ponto de vista individual, quanto do ponto de vista coletivo, sem a ampliação do conhecimento de si e de seu mundo. Estamos na era do conhecimento, por excelência. Tanto para os indivíduos, quanto para os povos, o mais importante caminho de desen-volvimento está na busca do conhecimento. É preciso que se invista, cada vez mais, na produção do conhecimento através da educação e da pesquisa.

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Para muitos, a única possibilidade de se furar o bloqueio dos mecanismos de exclusão social é através do conhecimento. Portanto, temos que despertar para o esforço individual e coletivo para que todos tenham acesso à educação e ao conhecimento. Ao se conseguir acessar os meios formais e informais de crescimento intelectual, é preciso que sejam aproveitadas todas as oportuni-dades que se apresentem para que se consiga avançar e conquistar espaços pessoais e profissionais.

O segundo pilar sobre o qual haverá de se estruturar o desenvolvimento do novo milênio será o aprender a fazer. Serão as habilidades exigidas por um mundo complexo que precisam ser treinadas. A multiplicidade de áreas técnicas que surgem em um mundo cada vez mais sofisticado exige empenho para a aqui-sição de suas especificidades. Um conhecimento sólido precisa vir acompanhado da capacidade de aplicar o que se aprendeu teoricamente. Tanto as escolas quanto o esforço individual precisam concorrer para que cada indivíduo possa ser umprofissional competente e capaz de responder à demanda de um mundo cada vezmais tecnificado e exigente em suas diversidades e complexidades.

O mundo dos generalistas foi substituído pelo mundo dos especialis-tas. Isso representou grandes ganhos e também algumas limitações. Ainda ne-cessitamos de uma massa imensa que se dedicará aos serviços gerais. Porém, é preciso que haja uma evolução no que diz respeito à valorização dessas ativida-des que não exigem maior preparo técnico. Como veremos à frente, o labor é tão necessário e importante quanto as atividades da alta especialização. Todavia, o mundo precisa aprender a valorizar as atividades que se restringem a esses afa-zeres. A possibilidade maior de avanço em um mundo tecnológico está na espe-cialização para responder às demandas e exigências atuais. Aprender a fazer é a chave maior para a inclusão no universo do trabalho cada vez mais exigente em suas especificidades. Todavia, o saber especializado não pode perder de vista o saber holístico, ou seja, a percepção do todo. Por exemplo, um especialista da área da saúde não pode esquecer que estará tratando um ser humano e não ape-nas uma doença. Precisa lembrar que uma doença não é apenas uma limitação de um único órgão do corpo, mas resultado da disfunção da totalidade do or-ganismo que se manifesta em seu ponto mais fraco. A reunificação dos saberes se coloca como uma busca de reintegração do que se fragmentou em demasia.

Dentre os quatro pilares de sustentação do desenvolvimento para o mundo de um novo milênio, o terceiro a ser apontado é o aprender a conviver.

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Verifica-se um avanço tecnológico que possibilita um mundo de infinitas possi-bilidades ao lado de dificuldades primárias no que diz respeito às relações entre os seres humanos. Tanto nas relações interpessoais de nossos espaços cotidia-nos quanto as relações entre os povos, o que se verifica são dificuldades imensas e que as remete à condições rigorosamente primárias e, por vezes, até mesmo a uma verdadeira barbárie humana. Vivemos em um mundo de entredevora-mentos primitivos e incompreensíveis diante do maravilhoso potencial humano que se desenvolve na atualidade. Para fazer acontecer o avanço para um mundo onde haja lugar para todos e em que todos possam viver em paz, faz-se neces-sário o aprender a conviver. Especialmente a educação precisa se constituir no principal espaço e instrumento de convivência humana. Iniciando-se na família e formando-se na escola, a sociedade necessita de homens e mulheres que sai-bam conviver em harmonia, fazendo de todas as diferenças possibilidades de enriquecimento individual e coletivo, com vistas a um mundo bom para se viver para todos os habitantes do planeta.

O quarto pilar a ser erigido pela sociedade atual é o do ser. O mundo redu-ziu o ser humano somente ao ter. Os direitos fundamentais do ser humano acaba-ram por serem suplantados unicamente pela necessidade de produzir e consumir. O ser humano precisa se desenvolver em seus múltiplas dimensões. Enquanto não houver a possibilidade de um indivíduo crescer sob todos os pontos de vista – bio-lógico, material, intelectual, social, espiritual, emocional, ético, estético etc. – não existirá um ser humano inteiro e feliz. Essa perspectiva da integralidade do ser hu-mano se constituirá na grande meta para a qual deverão concorrer todas as forças de que se compõe a realidade de nossa existência nesse planeta.

Há uma afirmação corrente a respeito do mundo em que vivemos no que diz respeito à busca de um bom lugar: com o conhecimento já está difícil con-seguir-se um bom lugar, sem o conhecimento é impossível! O que significa essa afirmação e em que medida a sociedade atual a está compreendendo e criando condições para que todos tenha acesso a uma formação humana e profissional de qualidade?

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Esse processo de desenvolvimento integral, caracterizando-se uma so-ciedade aprendente, haverá de acontecer ao longo de toda a vida. O mundo que se apresenta, em um ritmo vertiginoso de desenvolvimento, exige que as buscas do conhecimento, das habilidades do fazer, do aprender a conviver e da cons-trução do ser, façam-se ao longo de toda a vida. Não existe mais a possibilidade de alguém pensar que, uma vez formado em algum curso, estará pronto para sempre e que não precisará mais nada fazer para responder às exigências que se apresentarem. Essas exigências se modificam a cada instante e respondê-las é um desafio permanente de atualização e de renovação. Portanto, os cidadãos de um novo mundo são e serão cada vez mais homens e mulheres atentos a tudo de novo que, a cada dia, está a se apresentar e a exigir respostas inovadoras. So-mente assim será possível inserir-se em uma realidade paradoxal e desafiadora de uma sociedade aprendente.

Faremos agora, na sequência do quarto assunto, uma observação aten-ta da condição em que se apresenta a vida cotidiana dos seres humanos. É pre-ciso verificar em que e como os seres humanos ocupam predominantemente os seus dias e se encontram ou não a realização de seus anseios e necessidades mais primordiais.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem e na participação do fó-rum de discussão sobre o tema.

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DELORS, Jacques et al. Educação: um tesouro a descobrir. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

A UNESCO, órgão da ONU que cuida da educação, ciência e cultura no mun-do, organizou uma comissão de proeminentes da cultura mundial para dis-cutirem as perspectivas de desenvolvimento para o século XXI. Coordenada por um ex-ministro das finanças da França – Jacques Delors – prenuncia o conhecimento como a grande força que fará girar a roda da história nestenovo tempo em que vivemos.

CAPRA, Fritjof. Sabedoria incomum. São Paulo: Cultrix, 2002.

O renomado físico austríaco Fritjof Capra, radicado nos Estados Unidos, es-tabelece uma relação entre os diferentes paradigmas científicos e os rumos do desenvolvimento de uma perspectiva holística para os saberes do mundo contemporâneo.

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1.4 A condição humana

O ser humano é o único que tem que construir a sua vida e ela só avança na medida em que se perseguem metas consideradas, por vezes e de imediato, impossíveis e irrealizáveis. Nossa utopia é a de um mundo bom para se viver. É preciso construir uma realidade cada vez melhor para todos. Nossa reflexão filosófica vai percorrer os caminhos na busca da iluminação da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade. Haveremos de nos questionar sobre quais aspectos e por quais razões partimos do pressuposto de que o mundo que temos carece urgentemente de mudanças profundas. Buscaremos com-preender que somente uma postura de uma autêntica cidadania poderá levar à realização de um mundo mais justo e mais equitativo.

O ponto de partida de nossa reflexão vai abordar a condição humana, to-mando o pensamento da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) como fio condutor. A grande novidade da existência humana se faz pelo fato de alguém vir a este mundo e ter que fazer uma travessia realizadora. Sua pas-sagem vai se constituir em uma permanente atividade de transformação de si e de seu mundo, através do labor, do trabalho e da ação9. Transitando entre as três formas de atuação sobre o mundo ou se fixando em uma única maneira de fazê-lo, é assim que a condição humana haverá de se caracterizar. Sua passagem poderá ser realizadora ou, então, sucumbir em emaranhados de descaminhos desumanizadores e de frustrações.

Labor

Arendt (2007, p.90) inicia a reflexão sobre as atividades humanas dis-tinguindo-as em labor, trabalho e ação. Ao falar do labor, refere-se ao desprezo enraizado já na cultura da antiguidade grega a tudo que exigia esforço físico.

9 Destaca-se a importância de se definirem os termos, mesmo quando poderiam ser usados como sinônimos, para conferir um significado especial a um e outro.

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Desde então, para suprir as necessidades básicas da sobrevivência, executando tarefas servis, era preciso designar indivíduos como escravos, reduzindo-os à condição de animais domésticos. Estes, por força do que realizavam, não pode-riam ser considerados seres humanos. Esta era a condição do labor. “Laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condi-ções da vida humana” (ARENDT, 2007, p. 94). Para conquistar a liberdade era preciso escravizar outros indivíduos para executar as tarefas braçais e que eram consideradas indignas de um ser humano. Diferentemente dos tempos moder-nos, em que a escravidão tinha como finalidade a busca de mão de obra barata e de lucro, na antiguidade a escravização significava “a tentativa de excluir o labor das condições da vida humana. Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano” (ARENDT, 2007, p. 95). O escravo era conhecido como o animal laborans 1510.

Mais tarde, na conceituação moderna, as atividades humanas serão divididas – segundo Arendt (2007, p. 96 e 98), de forma não menos preconcei-tuosa – em trabalho manual e intelectual e trabalho produtivo e improdutivo. O labor é movido pelas necessidades imediatas de sobrevivência. Desta forma, tão logo ele é realizado, desaparece tão depressa quanto o esforço despendido e consumido para executá-lo. Um bom exemplo é a atividade do cozinhar. Pron-ta a comida, todos se alimentam e nada mais resta da demorada e cansativa atividade de quem ocupa o espaço da cozinha. Incluem-se aqui a gama imensa de atividades conhecidas como de serviços gerais, que não exigem maior espe-cialização, que são pouco consideradas e muito pouco valorizadas. Aqueles que as executam, raramente por escolha e satisfação pessoal, mas por necessidade e obrigação, sentem-se envergonhados do que fazem, sua autoestima é baixa e sua autoimagem é minúscula. Nesta condição, questiona-se sobre a possibilida-de de recuperar a cidadania de quem se sente menos e é visto como um indiví-duo de segunda categoria.

Arendt (2007) destaca, com o advento da teoria marxista, o processo de mudança desta mentalidade que colocava a atividade humana de sobrevivência (labor) da forma pejorativa como foi caracterizada. De acordo com a visão mar-xista, todo o trabalho é resultado da força humana, produzindo um excedente, isto é, além do necessário para a sobrevivência. Enquanto o sentido da vida hu-

10 Homo laborans é o homem cuja atividade é o labor cotidiano, simples, repetitivo, cansa-tivo e pouco valorizado em nossa sociedade.

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mana se reduz à produção de bens para construir o próprio corpo, desaparecem todas as concepções diferenciadas das atividades humanas. Tudo será trabalho, independente de sua qualificação e, portanto, precisará ser valorizado equitati-vamente. “Se o labor não deixa atrás de si vestígios permanentes, o processo de pensar não deixa coisa alguma tangível” (ARENDT, 2007, p. 101). Mesmo o re-sultado da produção intelectual necessitará das mãos para se evidenciar, tanto no que diz respeito ao pensamento em si mesmo, quanto na sua concretização em uma realidade material. De sorte que, de acordo com a perspectiva marxista, nada justifica a divisão e a hierarquização das diferentes tarefas humanas em trabalhos mais ou menos nobres.

A condição humana individual se dará sempre a partir de um contex-to de mundo pré e pós-existente à sua chegada e à sua partida. A sua vida se constituirá no “intervalo de tempo entre o nascimento e a morte” (ARENDT, 2007, p. 108). A vida biológica se dará em um movimento que repete os ciclos predeterminados pela natureza para todos os seres vivos. Dentro deste tempo, o ser humano fará acontecer a sua história. O processo biológico da vida humanae o crescimento e declínio do mundo se constituem no eterno ciclo da naturezaque se repete. É neste movimento que se dá a atividade do labor, encerrando-sesomente com a morte desse organismo. Esta é a permanente tarefa denominadalabor, prover a subsistência dos processos vitais, num movimento incessante, can-sativo e repetitivo. É o labor humano que busca preservar as condições dos seresvivos mediante o interminável movimento de crescimento e declínio de tudo o queexiste. Manter limpo o mundo e evitar o seu declínio é a implacável tarefa humana.Eis aí o seu significado e sua importância. Portanto, o labor sempre poderá ser eserá impregnado do exercício da cidadania. Por mais simples que seja a atividadehumana, ela é importante e necessária e quem a executa precisa ser valorizado edignificado como um cidadão.

Para se recuperar o significado e a importância das atividades laboriosas, é preciso que se faça acontecer uma profunda mudança de mentalidade. A força de uma herança histórica e cultural é poderosa. O preconceito com relação ao trabalho manual vem da moral dos senhores e dos escravos de Aristóteles, na antiguidade grega. Somos herdeiros de uma cultura greco-romana. Até hoje, temos profunda-mente enraizada em nossas mentes e corações a imediata distinção valorativa em relação às diferentes atividades humanas. Basta alguém se apresentar como exe-cutor de serviços gerais e sua apreciação social já se faz espontaneamente depre-

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ciativa. Quando, porém, em nossa perspectiva funcionalista, que avalia as pessoas por aquilo que tem e fazem, alguém se apresenta como um trabalhador de alta especialização, logo assume um status orgulhoso e, não raras vezes, de arrogância e prepotência em relação à todas as atividades mais simples e aqueles que as execu-tam. Portanto, estamos diante de um desafio ético que remonta a tempos pretéritos e, por isso, de difícil modificação em seus aspectos negativos e preconceituosos.

Trabalho

A durabilidade do mundo é produzida pelo trabalho. Enquanto o la-bor é marcado pela fugacidade das coisas que produz e que duram somente o tempo necessário para a sua produção e seu consumo, o trabalho “fabrica a in-finita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano” (AREN-DT, 2007, p. 149). O produto do trabalho são objetos duráveis, embora não de forma absoluta. Também estes envelhecem e, na medida do tempo, haverão de sofrer o desgaste, serão substituídos e acabarão desaparecendo. Sua durabilidade é relativa tanto pelo seu uso quanto pelo seu desuso. Se não forem utilizados, sofrerão a ação do próprio tempo e, aos poucos, perderão sua consistência, até sucumbirem e retornarem ao ciclo vital da natureza.

O que diferencia o desgaste de um produto do trabalho é que a sua finalidade não é desaparecer como algo produzido pelo labor, cujo sentido é ser consumido imediatamente. Esta condição o torna independente de quem o produz e de quem o utiliza. Será um objeto em si mesmo, sempre disponívelpara sua utilização por quem quer que seja, conferindo assim certa estabilidadeà vida humana.

Diz Arendt (2007, p. 150), “contra a subjetividade dos homens, er-gue-se a objetividade do mundo feito pelos homens”. É o ser humano arru-mando a casa para nela se instalar. O mundo lhe oferece facilidades e dificul-dades. É preciso minimizar as dificuldades e aumentar as facilidades de toda ordem. A natureza precisa ser domada para se ajustar às condições da exis-tência humana. Assim, ele cria meios para se proteger das intempéries, para vencer as distâncias, para preservar alimentos, para se vestir, para curar as doenças etc. O mundo natural precisa da artificialidade para se tornar habi-tável. Isto quer dizer que os produtos do labor são de consumo e os produtos do trabalho são de uso.

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Todavia, existe certa similaridade entre o labor e o trabalho no que diz respeito aos seus produtos. Ambos serão consumidos. Uns de forma imediata e outros mais lentamente. Este último, porém, é provido de certa reificação, ou seja, mantém a sua durabilidade enquanto é cuidado através de constante manutenção, podendo ser usado por muito tempo. A universalização consiste em fabricar algo a partir da matéria prima e colocá-lo a serviço, como instru-mento, para suprir necessidades humanas específicas. Enquanto o homo labo-rans está submetido à natureza, o homo faber aprende com ela, descobre os seus princípios, atua sobre ela e a domina, tornando-se seu senhor. Neste processo de humanização, ou seja, de impressão das marcas humanas sobre a natureza, sempre haverá certa ação destruidora. O homem se serve da natureza para so-breviver e, para isso, acaba exaurindo-a com certa violência. Trata-se, porém, da força engenhosa de seus instrumentos, criados para submetê-la e colocá-la sob seu domínio. Já não se nutre mais com o suor de seu rosto, mas com a soli-dez das ferramentas por ele fabricadas.

Outro aspecto da fabricação, apontado por Arendt (2007), refere-se ao modo como se dá a criação de instrumentos. O que precede a criação de um instrumento é sua concepção mental. Esta, por sua vez, depois que se efetivou a sua realização, permanece como modelo teórico para futuras aplicações e multi-plicações. Isto quer dizer que antes de qualquer coisa ser fabricada, ela já existe na forma de uma imagem e permanece depois como um modelo mental para futuras fabricações. Assim, a característica da fabricação e que a distingue das demais atividades humanas, está no fato de ter um começo e um fim bem de-finido. Além disso, outra característica é a reversibilidade do processo de produ-ção. Alguma coisa que venha a ser fabricada pode perfeitamente ser destruída e, portanto, deixar de existir, de acordo com a vontade do homo faber.11

Assim como o labor, o universo do trabalho também se constitui em uma das mais importantes questões a desafiar o mundo contemporâneo: de um lado penoso à instrumentalização tecnológica altamente desenvolvida e sofisti-ca facilitou-se enormemente a condição humana. Todavia, paradoxalmente, na medida em que aumenta a afluência incomensurável, em todo o mundo, de uma massa trabalhadora em busca de um bom trabalho, na contrapartida, a tecno-logia libera um contingente proporcionalmente da mesma medida. Resultam,

11 Homo faber é o homem que fabrica instrumentos mais duráveis e os dissemina para uso de todos e em todos os lugares.

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como espaço de trabalho ocioso, ou as tarefas simples e desgastantes do labor ou, então, os espaços da mais alta e seletiva especialização. Restam as questões de ordem econômica, política, social e ética: o que haverá de fazer profissional-mente essa massa humana, especialmente de jovens, no presente e no futuro que se vislumbra? Enquanto um número cada vez maior procura trabalho, a quantidade que é liberada ou que sequer tem acesso ao trabalho cresce nas mes-mas proporções.

Ação

A construção da cidadania pode ser identificada com a ação humana. O processo de humanização se faz através da temporalidade e da criticidade do homem, isto é, quando ele pensa, olha, escuta e age. A atividade humana que Arendt (2007) expressa como sendo a ação é aquela que se realiza sempre no universo das relações, resultando da característica humana fundamental da pluralidade. A ação humana perderia o seu sentido e, sequer existiria, se to-dos os homens fossem iguais. É na diferença que surgem as necessidades que produzem os desafios e que levam os indivíduos a agir, ou seja, não haveria o discurso e a ação sem a diversidade dos seres humanos. Todos os demais seres que habitam o universo são providos de diferenças mínimas entre os elementos de sua própria espécie e a comunicação entre eles é elementar, resultantes me-ramente de estruturas instintivas e respondendo a condicionamentos. Portanto, as diferenças precisam ser compreendidas e aproveitadas como infinitas possi-bilidades humanas.

Um dos maiores desafios do séc. XXI é encontrar um bom lugar para todos os seres humanos afluentes no mundo do trabalho, especialmente jovens e adul-tos excluídos. O que haverão de fazer essas multidões, tanto as que não tem acesso à educação, quanto aqueles que chegam ao nível educacional superior, em uma realidade onde os espaços de trabalho diminuem e a afluência é cada vez maior? É preciso pensar que não se trata de não haver o que fazer. O mundo está para ser construído e melhorado. O que importa é que tudo o que

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precisa ser feito tem que ser valorizado de forma justa e equitativa. Portanto, jamais deixe que entre em sua mente a ideia de que você não vai conseguir ser bem sucedido porque o mercado está saturado. Ele está saturado para uma realidade de exclusão e de injustiça social. Todavia, precisamos pensar em um mundo de inclusão e onde todos os espaços não sejam produto de um mercado, mas um direito garantido a cada cidadão habitante deste planeta.

Esta pluralidade humana se manifesta em um profundo sentido de alteridade. Isto quer dizer que o ser humano só existe, de maneira singular, na relação com os outros, expressando-se no discurso e na ação. Um indivíduo poderia, em sua existência, até mesmo decidir não fazê-los. Seria uma vida me-díocre e pobre. Se ele abrisse mão da comunicação e da ação, estaria colocando em risco a própria condição humana. Isto equivale a dizer que a sua vida “está literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens” (ARENDT, 2007, p. 189). Proferir a palavra e agir corresponde a nascer para a vida e para o mundo. O ser humano como cida-dão se define como tal pela sua palavra e pela sua ação. O primeiro nascimento se dá por um fato biológico, ainda restrito a uma condição física. O verdadeiro nascimento se dará na medida em que este indivíduo cresce e passa a se comu-nicar e a agir, isto quer dizer, apresentar a singular novidade de sua existência entre os demais seres humanos. Esta será a expressão maior de sua cidadania.

O nascimento se constitui no absolutamente novo e expressa a possi-bilidade do surgimento do imprevisível e surpreendente, resultando da plura-lidade humana manifestada pelo discurso. O indivíduo assume a sua condição humana através da ação e do discurso. É preciso agir e revelar a ação através da palavra. Somente a palavra identifica o autor da ação e este anuncia o que e para quem age. A passividade e o silêncio escondem o ser humano. Tanto suas qualidades e seus dons, quanto seus defeitos e limitações, permanecem ocultos. “O próprio ato do homem que abandona seu esconderijo para mostrar quem é, para revelar e exibir sua individualidade, já denota coragem e até mesmo ousadia” (ARENDT, 2007, p. 199).

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Como fazer acontecer esta utopia de uma nova condição humana, ou seja, de homens e mulheres que agem e se comunicam na intensidade de fazedores da história individual e coletiva, ou seja, como cidadãos em pleno exercício de sua cidadania?

A expressão maior da cidadania se dará pela ação consciente e livre. O ser humano se fará através de suas escolhas que se configuram num proje-to realizador e criativo. Essa condição possibilitará a expressão de todo o seu potencial e a concretização máxima de suas buscas ao longo de sua travessia humana. Somente assim ele se constituirá em fazedor de sua história e sujeito solidário com a realização da utopia de um mundo bom para todos os habitantes do planeta.

Portanto, labor e trabalho assumirão a verdadeira expressão humana na medida em que forem assumidos com consciência e liberdade. Todas as ati-vidades humanas poderão revelar a condição humana de dignidade e de reali-zação plena quando forem executadas por homens e mulheres sujeitos de sua história individual e coletiva. Isso quer dizer que, a ação humana brotará do dinamismo consciente e livre de quem faz as suas escolhas, percebe o sentido do que realiza e, assim, se torna participante ativo da construção da utopia de uma realidade melhor para todos.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem e na participação do fó-rum de discussão do tema, na resolução de problemas com ajuda do profes-sor e dos colegas através do chat e e-mails.

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ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

A filósofa alemã Hannah Arendt, de origem judia, transfere-se para os Es-tados Unidos, onde será reconhecida como uma das grandes pensadoras do século XX. Tendo vivenciado a experiência de regimes totalitários, constrói uma filosofia política, refletindo sobre a condição humana em tempos de violência e incertezas.

______. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

Hannah Arendt reflete sobre a possibilidade de recuperar a condição huma-na, a partir do fato mais importante de toda a existência que é o nascimento. A natalidade se apresenta como o que há de mais inovador e que funda a infinita possibilidade de realização humana.

O século XXI é e será cada vez mais uma era marcada pelo conhecimento. É preciso que sejam atingidas e ultrapassadas todas as fronteiras entre o que conhecemos e o que ainda não se conhece. É um desafio individual e coletivo para que se possa ajustar o mundo à condição humana plena. As abordagens na leitura do mundo se multiplicaram ao infinito através do desenvolvimento das mais diferentes áreas dos saberes. À filosofia cabe o papel de se dobrar sobre todo o mundo vivido e refletir sobre todas as realidades em busca de sua significação mais profunda. Todo o conhecimento se dará numa relação intensa entre o ser humano e seu mundo. Essa relação que, ao longo dos tem-pos, transitou entre uma atitude de submissão diante da natureza até uma ação predatória e destruidora, precisa voltar a ser uma relação de respeito e de colaboração. O ser humano não poderá mais transitar pelo planeta como

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se fosse o primeiro, o único e o último habitante. Muitas gerações já nos an-tecederam e outras tantas ainda haverão de chegar. Todos precisam herdar um mundo melhor para se viver e, sobretudo, um mundo onde caibam todos. Assim, a condição humana terá que se constituir na utopia de uma realidade equitativa, justa e solidária, o que equivale a dizer que precisamos construir um novo homem e uma nova sociedade. Todos os habitantes do planeta pre-cisam ocupar os dias de sua travessia de forma realizadora e feliz, seja onde e como desenvolverem sua ação, desde as formas mais simples e laboriosas ao universo dos trabalhos mais sofisticados e altamente especializados. Todos os seres humanos haverão de se constituir em donos e senhores de sua própria história individual e também fazedores da história coletiva.

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O que é preciso para que permaneça vivo o filósofo que temos dentro de nós?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Como o ser humano primitivo percebia e interpretava sua realidade cir-cundante e que tipo de relação se estabelecia entre ele e seu mundo?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Vivemos em um mundo em que a construção e a conquista do conheci-mento se apresentam como condição sem a qual não haverá inserção nem individual e tampouco coletiva. Trata-se da era do conhecimento e de uma sociedade aprendente. Precisamos aprender ao longo de toda a vida. Essa afirmação se refere exclusivamente à educação formal, realizada em esco-las, ou também se compreende a busca de conhecimento como uma prá-tica cotidiana através de todos os meios que ampliam nossa capacidade de ver o mundo e atuar sobre ele? Interprete as primeiras afirmações e responda a pergunta subsequente. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Seriam os que executam o labor menos felizes do que aqueles que, tendo suprido suas necessidades básicas, se abrem para um leque imenso de outras necessidades artificiais e de uma sofisticação exuberante?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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De acordo com a UNESCO, os quatro pilares da Educação para o século XXI, são: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Como relacionar esta perspectiva educacional com a disci-plina de Filosofia e Cidadania? Marque a resposta correta:

A disciplina de Filosofia e Cidadania se justificam pela lucidez da pers-pectiva da UNESCO com relação à educação para o século XXI, pois somente uma reflexão crítica séria e um engajamento de cidadãos re-sultará na utopia de um novo homem e uma nova sociedade.As perspectivas educacionais da UNESCO são utópicas demais para se-rem levadas a sério e serem concretizadas.Uma sociedade aprendente prioriza o conhecimento. Portanto, não é pre-ciso relacionar outros valores nessa construção que não seja conhecer.A disciplina de Filosofia e Cidadania tem objetivos que não se relacio-nam com as perspectivas da UNESCO para a educação no novo milênio.A Filosofia e a Cidadania tratam de temas que não se aproximam das perspectivas da UNESCO, preconizadas para o séc. XXI, mas somente de conteúdos que se referem à história, à política é à economia.

Na Antiguidade e até o final da Idade Média, a única forma de conheci-mento que englobava todos os saberes humanos era a Filosofia. Identifi-que e marque, nas respostas a seguir, qual delas explica o significado e a importância da Filosofia no conjunto dos conhecimentos construídos pela humanidade no mundo atual.

Com o advento da ciência moderna, a filosofia perdeu completamente o seu espaço e seu significado. Tanto é verdade que, nos dias de hoje,praticamente, desapareceram os cursos de filosofia e quase não hámais universidades que os ofereçam.O espaço da Filosofia no conjunto dos conhecimentos construídospela humanidade é o de refletir sobre todas as realidades humanas.Seu papel não é mais de ser a detentora de todos os conhecimentos,mas de refletir sobre seu significado. O cientista se pergunta como eo filósofo se pergunta por quê. Isto quer dizer que a filosofia se dobra

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na busca da significação mais profunda de todas as construções hu-manas da atualidade.A Filosofia continua sendo o campo de conhecimento que contém to-dos os saberes humanos. O filósofo é assim chamado por ser o amigo da sabedoria. Portanto, sua tarefa é ser um especialista que emite juí-zos a respeito do todas as áreas do conhecimento humano construído pela humanidade no mundo contemporâneo.Definitivamente, a Filosofia desapareceu diante dos avanços tecnoló-gicos do mundo contemporâneo. A realidade atual exige a objetividade do mundo científico e técnico e, sobretudo, ninguém mais sobrevive só do pensar. É preciso agir, ser prático, produzir e consumir.A Filosofia, diante do enorme desenvolvimento da racionalidade tec-nológica, perdeu por completo o seu significado e sua importância. O mundo atual exige que os seres humanos sejam eminentemente práti-cos e se constitui em algo anacrônico pretender ser reflexivo.

A transformação do mundo depende da maneira como o ser humano in-terpreta a sua realidade circundante. Ao longo dos milhões de anos da existência de seres pensantes sobre o planeta, a leitura que foi feita sobre o entorno a ser transformado se fez sob diferentes óticas e perspectivas. Oque vem a ser a forma de conhecimento chamada de senso comum?

O senso comum é uma interpretação científica a respeito da realidade,resultado de profundas investigações dos estudiosos.O senso comum é uma verdade religiosa que, como doutrina, é pregada para todos os crentes de uma determinada agremiação de fé.O senso comum é um conhecimento simples, acrítico, difuso, dogmáti-co e transmitido oralmente entre as pessoas, sem nenhum aprofunda-mento e busca de fundamentação. Portanto, senso comum, é a maneira simples com que as pessoas resolvem seus problemas do cotidiano.O senso comum é o sentido atribuído pelos pesquisadores às questões que surgem do universo popular.O senso comum é uma forma de conhecimento que se caracteriza pela

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sua base científica, resultado de um aprofundamento crítico atento e meticuloso.

O contexto da sociedade atual se apresenta como um mundo paradoxal, isto é, de um lado, uma realidade maravilhosa e cheia de possibilidades, e de outro, um panorama de misérias, violências, injustiças e explorações de toda ordem. A ideologia que legitima esse estado de coisas pode ser chamada de paradigma tecnológico. É o modelo que vigora em nossa socie-dade globalizada e neoliberal. Tudo isso quer dizer que:

Os valores predominantes em nossa sociedade são os da solidariedade, da justiça, da liberdade e da aceitação das diferenças.O modelo tecnológico, excludente e injusto, está a serviço da preserva-ção da cidadania e do desenvolvimento da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade.O potencial tecnológico que poderia resolver virtualmente todos os problemas humanos está a serviço de um desenvolvimento sustentável em todos os quadrantes do planeta.O modelo socioeconômico que vigora é o modelo em que se apregoa a liberdade como valor máximo e a máquina social funciona para excluir multidões em todo o mundo, resultando uma realidade de fome e de misérias por todos os cantos do planeta, junto de riquezas imensas nas mãos de poucos.O modelo socioeconômico baseado na racionalidade tecnológica que vigora em todo o mundo atual é a única forma que existe para se pro-mover o desenvolvimento e a justiça social, isto é, construir-se uma sociedade profundamente humanizada.

O que leva o ser humano, o único ser que não recebeu a vida pronta e acaba-da, a produzir conhecimento é... (completar com a sentença correta).

somente a necessidade de concorrer com os adversários para vencer na competição da existência de que se compõe a sua travessia.apenas a vaidade que lhe é inerente como ser competitivo e consumista.

Verifique no AVA as respostas do exercício.

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o princípio da acomodação a um mundo que já se lhe apresenta prati-camente completo e no qual há pouco a modificar.a necessidade de ajustar o mundo à sua condição humana, dimi-nuindo as dificuldades e aumentando as facilidades e, com isso,criando condições nas quais ele possa viver e se realizar cada vezmais plenamente.por ele ser movida pelo simples diletantismo de alguns indivíduos maiscuriosos e mais afeitos a uma busca de novos saberes, na satisfação deseus prazeres individuais.

A produção do conhecimento é sempre resultado das relações homem-mundo. Isto se explica por que... (complete com a afirmação correta).

ela não necessita obrigatoriamente que se estabeleçam relações entre o ser humano e o mundo que o rodeia. Também pode surgir desvincula-da da realidade do mundo.não existe conhecimento válido que não resulte do enfrentamento de problemas que se apresentam na relação com o mundo circundante. Todo conhecimento não é outra coisa do que a busca constante de re-solver os desafios de minimizar dificuldades e maximizar facilidades para a existência humana.o ser humano já recebeu o mundo pronto e acabado. Portanto, nada háque se fazer para que a existência humana se realize. De sorte que, mesmoque o indivíduo se isole de seu mundo, poderá evoluir intelectualmente.é preciso que o cientista se isole de seu mundo e, de forma alienada,procure em seu próprio pensamento construir saberes e assim se de-senvolver intelectualmente.é uma tarefa que se restringe exclusivamente a um exercício intelectuale que em nada carece de uma relação com o mundo circundante.

Uma sociedade movida por uma máquina de exclusão tem como conse-quência as mais graves situações enfrentadas por uma massa excluída da participação de tudo, como... (completar a sentença).

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desemprego em massa, salários aviltados e aumento da pobreza extrema.oportunidades sociais democratizadas.distribuição de renda equitativa e justa.oportunidades para todos que queiram participar dos bens da terra.a possibilidade de enriquecimento de todo aquele que se empenha, que é inteligente e dedicado: enriquecer, nesta sociedade, é só uma questão de esforço pessoal.

É preciso lembrar sempre que nossa grande meta é a construção da uto-pia de um novo homem e de uma nova sociedade. A Filosofia é que leva à grande reflexão e formação de uma consciência crítica que, por sua vez, fundamentam o exercício da cidadania transformadora. Todavia, de onde virão os instrumentos que darão origem a essa grande utopia? Pensamos que, inevitavelmente, a educação terá que assumir o seu espaço político nessa construção por que:

Serão os educadores os profissionais que atuam num espaço ambíguo e que, historicamente, sempre se prestou para reproduzir situações de controle e de dominação e assim haverão de continuar atuando.A educação se constitui num espaço neutro e que nada tem a ver com a construção da cidadania de um povo. Sua tarefa é a de transmitir conhecimentos e, cumprindo com essa tarefa de forma excelente, o seu papel já estará perfeito de acordo com as necessidades de uma socieda-de mecanicista, individualista e excludente.A educação sempre reproduziu e garantiu os interesses dos grupos pri-vilegiados. Como espelho a refletir e instrumento a reproduzir, é im-possível esperar que ela se contraponha àqueles que a mantém e ope-racionalizam.É a educação o espaço, por excelência, que forma as novas gerações. Portanto, é preciso que ela e os profissionais que nela atuam, deem-se conta da ambiguidade do papel que exercem, e optem por transformá-lo em instrumento de construção de um novo homem e de uma nova sociedade.

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Acreditar que a educação poderá ser a grande força social de mudança e de construção de um novo homem e de uma nova sociedade é uma ilusão. As mudanças sociais não passam pela educação, mas apenas pelos aspectos econômicos e políticos.

Verifique no AVA as respostas do exercício.

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Use a sua criatividade e registre aqui as ideias principais presentes no conteúdo estudado, buscando construir uma síntese pessoal sobre o tema.

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03Tema

Neste tema, vamos estudar o que é a disciplina de Metodologia Científica e por que ela é importante para a sua formação acadêmica e profissional. Como estamos no início dos conte-údos da disciplina, estudaremos também técnicas e procedimentos para organização dos estudos e um melhor aproveitamento no estudo de textos.

É importante destacar que o seu suces-so nos estudos e, consequentemente, profissional, depende apenas de você, da sua capacidade de ir em frente e de buscar “aprender a aprender”. Você perceberá que a Metodologia Científica vai se tor-nar uma auxiliar fundamental em seus estudos.

Objetivos da AprendizagemAo terminar a leitura e as atividades do Tema 1, você deverá ser capaz de:

entender a importância da disci-plina para a formação acadêmica e profissional;

adotar procedimentos e técnicas na organização dos estudos;

desenvolver o hábito pela leitura, realizando análises de texto;

praticar as técnicas de sublinhar, esquematizar, resumir e fichar no estudo de texto.

METODOLOGIA CIENTÍFICA E TÉCNICAS DE ESTUDO

03Tema

O segundo tema de Filosofia e Cidadania tratará dos instrumentos que formam as (in)consci-ências de um povo. Quando mecanismos de ideolo-gização atuam no sentido de manipular e controlar as massas populacionais, a cidadania lhes é negada.

É preciso que se promovam as defesas necessárias contra o processo de manipulação so-cial. A educação será sempre uma das principais forças a serviço da formação de cidadãos cons-cientes, dinâmicos e comprometidos eticamente.

Objetivos da AprendizagemAo terminar a leitura e as atividades do Tema 2, você deverá ser capaz de:

identificar os mecanismos de ideo-logização que impedem a constru-ção da cidadania;

apontar caminhos e instrumentos de formação de cidadãos comprometidos e engajados com a utopia de uma reali-dade mais justa e mais equitativa;

desenvolver o hábito pela leitura, realizando análises de texto;

demonstrar como tudo – a educação, o conhecimento, a religião, a política etc. – pode se transformar em instru-mentos de ideologização, a serviço da manipulação e do controle social;

afirmar a educação como impor-tante instrumento de construção da liberdade e da formação e preserva-ção da cidadania.

FILOSOFIA E IDEOLOGIA

02Tema

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2.1 O processo de ideologização

Uma das questões filosóficas que se impõe no processo de construção da cidadania trata de quando um pensamento se transforma em ideologia. O conceito de ideologia pode ser tomado de duas maneiras: de uma forma sim-ples, em que ela significa apenas o conjunto de ideias, ideais e valores de uma determinada pessoa, de um grupo; de uma forma mais complexa, em que a ide-ologia passa a representar o conjunto de ideias, ideais e valores subjacentes a todo e qualquer movimento histórico, sem que esses conteúdos apareçam de forma explícita. Neste último sentido, com uma forma dissimulada, a ideologia passa a servir como nuvem de fumaça para ofuscar os movimentos históricos, prestando-se como instrumentos de manipulação e de dominação.

Assim, tudo pode se transformar em mecanismo de ideologização: a fi-losofia, a religião, a ciência, a educação, os meios de comunicação etc. É preciso que uma reflexão filosófica desmascare os aspectos ideologizantes embutidos em todos os discursos para que se garanta a possibilidade do exercício da verdadeira cidadania. É o ambiente educacional o espaço privilegiado de formação, em que se reflete e se reproduz a sociedade que temos. Da mesma forma, será também através da educação que poderemos produzir as defesas contra os mecanismos de massi-ficação, de manipulação e de controle, em favor da construção de uma sociedade mais dinâmica e mais livre. Para isso, é preciso compreender como funcionam esses aparelhos ideológicos para que se possa educar um povo e garantir a sua cidadania. Veremos como tudo poderá ser colocado no desvio de seu verdadeiro significado e objetivos, a ciência, a religião, a política, a educação, os meios de comunicação etc.

Todo e qualquer processo de movimentação histórica transformadora sempre é gerado e impulsionado por forças ideológicas subjacentes. Entende-se aqui por ideologia o conjunto de ideias, ideais e valores que atuam provocando a mudança. Ocorre que, na maioria das vezes, estes aspectos ideológicos1 não

1 É preciso lembrar sempre que, por trás de qualquer ação humana, existem ideias, ideais e valores pelos quais elas se realizam e que não aparecem claramente para quem não presta muito atenção....Por exemplo: a quem serve a indústria de medicamentos? Está ela a serviço da saúde ou da acumu-lação do capital dos poderosos grupos que a exploram?!...

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aparecem explicitamente e nem sempre são percebidos por aqueles que neles estão envolvidos. Essa falta de clareza pode fazer com que equívocos históricos sejam cometidos e direcionamentos desastrosos sejam tomados. Daí a impor-tância fundamental da compreensão dos aspectos ideológicos que estão impli-cados no processo de construção da história.

Há milhões de anos que existem seres pensantes neste planeta. O pro-cesso evolutivo se fez de acordo com a compreensão que os seres humanos tive-ram a respeito de seu mundo, desde os períodos mais primitivos até o mundo contemporâneo. A lenta travessia da humanidade por um mundo fechado em sua perspectiva mágica e submissa diante da natureza, transitando por um raciona-lismo que irrompe com extrema dificuldade, explode finalmente num desenvolvi-mento tecnicista e cientificista exacerbado. O temor do homem primitivo diante da natureza, que obstaculizava a sua vida de todas as maneiras, cede espaço para uma natureza conhecida e coadjuvadora. Entretanto, essa descoberta e esse do-mínio da natureza, muitas vezes, transformaram-na em um terreno minado.

No passado, o homem dava a tudo uma explicação religiosa. A natureza era sagrada e imutável e o homem se dobrava, com temor, diante dos deuses e espíritos que impregnavam a todos os seres do mundo circundante. Hoje, ele reduz a natureza e o mundo todo a meros objetos, submetidos aos seus capri-chos e interesses predatórios. Nada mais o intimida e diminui o ímpeto de seu controle, manipulação e subjugação. Tudo o que é tecnicamente realizável e eco-nomicamente interessante é executado inapelavelmente. Com instrumentos po-derosos, produzidos por uma tecnologia cada vez mais sofisticada, nada escapa à ferocidade de sua ação devastadora. O homem se transformou em objeto e vítima do mundo que ele mesmo construiu. Submetido agora a novos deuses, erigidos pelas suas próprias mãos, a eles se dobra com fascinação e reverência. É a liturgia científica que canta hinos de louvor à tecnologia moderna como se ela fosse um valor absoluto. Os dogmas desta nova religião são as verdades da ciência. Nada existe e nada se sustenta fora dessa perspectiva. Só é verdadeiro o que pode ser tocado, experimentado, pesquisado, medido, comprovado e con-sumido. O cientificismo se constitui para o homem moderno na metáfora da religião a que se submetia o homem primitivo.

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O homem, desbancado de seu lugar de primazia, passa a ser um coadju-vante do moderno mundo da tecnologia. A ela se submete, com ela se satisfaz e em função dela vive; através dela, cria um mundo artificial que, às vezes, acaba se vol-tando contra ele próprio. É um terreno minado que pode explodir sobre sua própria cabeça. Jamais o homem conseguiu tanto poder através de seu arsenal tecnológico. Virtualmente, nada mais existe que não possa ser submetido e controlado. Na sua relação com o mundo, tudo a seu tempo, pode ser solucionado. Todavia, paradoxal-mente, o século da ciência e da técnica terminou e já se adianta em um novo milênio sem que se resolvessem os mais graves e primários problemas da humanidade. Ja-mais houve tanta miséria, tantas diferenças sociais e econômicas. Nunca o homem morreu tanto por falta de condições mínimas de sobrevivência. Além disso, ele paga um tributo muito caro à mega máquina que construiu: morre no trânsito e se mutila no lugar em que trabalha para ganhar o pão de cada dia. Essas são as contradições que precisam ser equacionadas pelo homem moderno.

O homem moderno se vê, de um lado, enredado por tecnologias que ele mesmo criou e, por outro, com a gigantesca tarefa de domesticá-las e colocá-las a seu serviço, minimizando a sua voracidade. Duas das primeiras contradições a serem desintegradas são os mitos do progresso indefinido e a crença inabalável na neutralidade científica. É preciso relativizar e reduzir o nível de absolutiza-ção2 que tais mitos atingiram. O progresso a qualquer preço, possibilitado por meios tecnológicos cada vez mais sofisticados e poderosos, deixou de ser uma condição humanizadora para se tornar um fim em si mesmo.

Do ponto de vista do senso comum, quando se fala em ciência, pensa-se logo nas ciências exatas, também denominadas ciências duras, de modo que os modelos de conhecimento científico que se impõem como ideais absolutos passam a ser a matemática, a física, a química, a biologia etc. Este conceito de ciência carrega em seu bojo a convicção de que os seus procedimentos, meios e fins, são pautados pela máxima objetividade, pelo rigorismo metodológico e pela mais absoluta neutralidade. Somente as ciências humanas, também deno-minadas ciências moles, são consideradas passíveis de relativização, por causa da natureza de seus conteúdos e pela postura daqueles que com elas trabalham. Assim, são questionados os historiadores, os estudiosos do comportamento hu-mano, os sociólogos e humanistas, mas nunca os que atuam num centro de pes-

2 Refere-se à crença nas verdades e no poder da ciência e da técnica como uma nova re-ligião, com seus deuses, sua liturgia, seus tributos e sua adoração...

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quisa genética, de química, em um instituto de física e matemática ou em um centro de pesquisas espaciais ou atômicas.

Essa perspectiva vulgar contribui para a disseminação da convicção de que tudo o que é produzido pela tecnologia é resultado de processos objetivos, amorais e desvinculados de qualquer contexto em que ela se insere. A acritici-dade, ou seja, a ausência de crítica ou questionamento, leva a absolutizações equivocadas e perigosas. Portanto, é preciso desmistifcar esse senso comum a respeito da ciência e da técnica.

Isto quer dizer que se faz necessário compreender que a ciência e a técnica são profundamente condicionadas pelas circunstâncias econômicas, po-líticas, sociais e culturais em que são produzidas. Assim, não podem existir de forma completamente pura e neutra. Elas são sempre realizadas dentro de um contexto que as condicionam poderosamente, ditando seus direcionamen-tos e objetivos e, portanto, colocando-se a serviço de quem as financia e manda executar. Tampouco é possível que o cientista e o técnico se dispam totalmente de sua subjetividade pessoal e de toda e qualquer influência interna e externa para realizar um trabalho absolutamente imparcial. A objetividade aparente consiste apenas no fato de que o discurso do cientista e a prática do técnico não se com-prometem diretamente com ideologias, paixões, subjetividades e juízos de valor. Porém, implicitamente sempre estarão impregnadas de aspectos ideologizantes.

A ciência é sempre, de um jeito ou de outro, uma interpretação da rea-lidade, válida até o momento em apareça uma nova percepção dos fatos, à luz de outro contexto histórico. A ciência é objetiva apenas em sua apresentação for-mal. Por isso, há que se buscar a ideologia subjacente a todo produto científico. É preciso descobrir em que condições concretas ele se tornou possível, a quem ele serve e com quais objetivos ele foi construído. Portanto, entender a ciência e a técnica como busca de valores absolutos e desinteressados é uma compreen-são mítica e consequentemente ingênua.

O homem atual está se dando conta muito rapidamente dessas contradi-ções inerentes ao processo de desenvolvimento científico. Pode-se observar isso pelas críticas que são feitas aos produtos tecnológicos, até mesmo pelas massas populares. Estes, enquanto beneficiam a vida, também apresentam perigos que a ameaçam assustadoramente. O homem moderno está se apercebendo dos ris-cos provenientes do envenenamento generalizado causado por agrotóxicos, pela poluição do ar e das fontes de água potável; está especialmente preocupado com

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as mudanças climáticas resultantes do superaquecimento do planeta e os con-sequentes fenômenos aterradores que têm acontecido; discute a ambivalência dos avanços da engenharia genética, no que diz respeito à ética da utilização de embriões humanos para a realização de procedimentos com células tronco; está notando, cada vez mais, o estresse resultante da poluição sonora e visual; não tolera, há muito, as perigosas experiências atômicas que proliferam pelo mundo na forma de usinas fora de controle, armamentos e explosões experimentais que ameaçam a vida na terra; toma consciência, cada vez de forma mais generali-zada, das contradições resultantes de uma farmacopeia que se coloca mais a serviço da saúde econômica dos laboratórios do que em favor dos benefícios que ela apregoa; sente na pele e teme as consequências da redução de elementos das camadas superiores da atmosfera que filtram as radiações nocivas aos seres vivos. E assim, toda sorte de paradoxos tecnológicos são percebidos como facas de dois gumes a espreitar e ameaçar o homem moderno.

Diante dessa realidade, o grande desafio que se impõe é ajudar o ho-mem de hoje a ampliar, cada vez com mais clareza, a consciência de si e do mun-do que o rodeia e, sobretudo, a superar as contradições concretas e ideológicas em que se vê mergulhado. Na medida em que o conhecimento científico se torna o ponto de partida, o meio e o fim de tudo, é preciso recuperar os verdadeiros valores da ciência e da técnica. É preciso que o homem seja recolocado no centro e no comando do sistema global. Isso só será possível com o desenvolvimento de uma postura ética na relação consigo mesmo, com os outros seres humanos, com todos os demais seres vivos e com todo o universo que o cerca.

Você compreenderá mais claramente o processo de ideologização se obser-var, por exemplo, um programa de televisão, uma novela, um noticiário ou discurso político e tentar identificar os valores subjacentes aos conteúdos veiculados. Observe o que é dito e o que é mostrado e verifique os conceitos de homem, de mulher, de consumo, de relações pessoais, de política etc. Se você prestar bem atenção, será fácil perceber que as maneiras de pensar e de agir do povo são formadas muito mais por aquilo que é ingerido homeopa-ticamente sem que os indivíduos se deem conta de que estão bebendo o que

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outros querem que eles pensem e façam. Comece esse exercício de analisar criticamente tudo o que lhe é passado e você estará desenvolvendo mecanis-mos de defesa para não se tornar alguém alienado, mas um cidadão lúcido e participativo.

Assim como a ciência, também a religião pode se transformar em aparelho de ideologização. No conceito original e simples de ideologia, a religião assume seu papel verdadeiro de transmitir ideias, ideais e valores. É a dimensão da fé que nos projeta para o infinito e nos confere um significado maior para a travessia huma-na. Assim, todas as religiões, em princípio, apresentam valores que conduzem para uma realidade imanente amorosa, solidária, ética e de esperança e apontam tam-bém para a dimensão do transcendente, ou seja, assim como iluminam a travessia terrena, indicam o caminho para a vida futura, na dimensão espiritual.

Porém, a melhor das doutrinas religiosas, quando mal apresentada ou mal compreendida, pode se transformar em instrumento de dominação, de alienação e de manipulação. Isso quer dizer que uma doutrina religiosa pode se transformar em instrumento de ideologização. Em nome de Deus já se comete-ram os maiores absurdos ao longo da história humana. Mesmo o cristianismo, doutrina de Jesus Cristo, foi utilizada para concentrar poder e riquezas, além de subjugar e matar muita gente. Talvez poucas instituições se prestam tanto para desvios e manipulações quanto as instituições religiosas. Assim como, em nome de Deus, a nossa vida adquire um significado maior, também se legitimam con-troles e se propagam interpretações enganosas e escravizadoras.

A política também é uma realidade essencial na construção e no exer-cício da cidadania e que se presta em seus discursos e, sobretudo, em suas prá-ticas, para a exploração de povos inteiros. Assim, um grupo de espertos, açam-barcando os espaços políticos, conduzem-nos em seus próprios benefícios, ao invés de transformar o poder em força de promoção do bem comum, que é o seu verdadeiro significado.

Os meios de comunicação social, como formadores de opinião, se pres-tam de um modo muito especial para a ambiguidade da manipulação ideologi-zante. Tudo o que é veiculado pode ser maquiado de forma que seja compreen-dido de maneira equivocada. Tudo vai depender dos conteúdos escolhidos, da como são trabalhados e comunicados e, sobretudo, dos objetivos que sempre

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estão por trás de tudo o que é disseminado para as massas. Em uma sociedade capitalista, os valores do individualismo e da acumulação das riquezas geral-mente se constituem na mola propulsora dos interesses dos meios de comuni-cação. Assim, tudo é usado em proveito dos que detém os meios para mobilizar uma população inteira em prol de seus próprios interesses. Na antiguidade se dizia que era preciso dar pão e circo para a população. Atualmente, nem mesmo o pão se faz necessário. Basta dar o circo para um povo inconsciente e massifi-cado e quem detém o poder auferirá todas as vantagens.

Os aparelhos de ideologização em poder dos donos do mundo tem uma for-ça sem medida para fazer a cabeça das massas populares. O exemplo mais comum e talvez o mais poderoso é a televisão. Ela mostra a realidade e a re-produz. O comportamento do povo é direcionado pela mídia. Você vislumbra alguma possibilidade de fazermos frente a esse poder de manipulação e de controle?

Assim, tudo poderá se constituir em instrumento de ideologização. Até mesmo a escola e os processos educativos, se não bem clarificados em seus ob-jetivos e práticas pedagógicas, podem se transformar em instrumentos em favor da formação de sujeitos individualistas, gananciosos e preocupados unicamente com seu próprio sucesso. Portanto, é preciso sempre ter bem claro os verdadei-ros objetivos subjacentes a todo processo de mobilização popular. Tanto se pode formar um povo lúcido, dinâmico, consciente, participativo e solidário, quanto se pode construir um povo constituído de uma massa informe, manipulada e controlada em benefícios daqueles que detém o poder.

Para que se construa a cidadania é preciso desenvolver uma consciên-cia crítica aguçada que leve ao compromisso histórico da participação na cons-trução de uma nova realidade, mais justa e mais humana. É o que veremos a seguir no próximo assunto.

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Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, nos objetos de aprendizagem e no fórum de discus-são do tema, na busca de respostas para problemas de conteúdo, por e-mail e no chat.

JOHANN, Jorge Renato (org.). Introdução ao método científico. 3. ed. Canoas: ULBRA, 2003.

O organizador desse livro escreve um dos capítulos intitulado Ciência e Ide-ologia, em que explicita todo o processo de construção do conhecimento, desde a Antiguidade até os dias atuais, demonstrando como os mecanismos de ideologização sempre estiveram presentes, movendo a roda da história da humanidade.

MANHEIM, Karl. Ideologia e utopia. São Paulo: LTC, 1986.

Karl Manheim faz a distinção entre ideologia total e ideologia parcial. A primeira se refere à ideologia como a simples construção de ideias, ideais e valores; a segunda se refere ao processo de mascaramento da realidade, de manipulação e de controle. Aponta a utopia de uma realidade em que, pelo processo de conscientização, os seres humanos podem se defender dos meca-nismos que os reduzem a meros objetos inconscientes.

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2.2 A construção da cidadania

O escola se apresenta como uma das forças sociais mais importantes no processo de construção da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade. As mudanças haverão de acontecer através da educação. Será educando e for-mando cidadãos que teremos um povo fazedor de sua própria história. Todavia, como isso se viabilizará se historicamente a escola e os processos educativos sem-pre se prestaram como instrumentos de reprodução da ideologia dominante?

A educação brasileira começa com a chegada dos jesuítas, em 1549, a partir do momento em que um papa romano declara que índio era gente. Por-tanto, se os indígenas passaram a ser considerados seres humanos, era preciso salvá-los. Isso significava a sua alfabetização no intuito de serem evangelizados. A educação jesuítica se estende por mais de dois séculos, reproduzindo uma ideologia religiosa e, ao mesmo tempo, veiculando a ideologia política de uma colonização predatória da coroa portuguesa.

Com a chegada da família imperial ao Brasil, em 1808, a educação bra-sileira vai ser promovida significativamente. Porém, o modelo econômico e po-lítico agroexportador engendrado ao longo de todo o período colonial, continua durante o período imperial, favorecendo os interesses do coronelismo. Também a educação se prestará somente como um produto de consumo das elites, ou seja, quem era educado eram os filhos dos donos das grandes fazendas. Assim a educação reproduz a estrutura de classes e a estrutura de poder.

Com a substituição do modelo econômico agroexportador coronelis-ta para o modelo industrializado, a partir de 1930, a educação vai ser pensada como uma força social a serviço de uma sociedade urbanizada e industrializa-da. Nesta condição, a educação se constitui num instrumento de formação da força de trabalho. A culminância desse modelo de desenvolvimento autônomo, abrangente e de ampla mobilização política e educacional se deu com a proposta da pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, no princípio dos anos sessenta.

Com a revolução militar de 1964, o autoritarismo se sobrepôs à socie-dade brasileira de uma maneira violenta, a serviço de um modelo de desenvol-vimento econômico associado ao capital multinacional e excludente do ponto de vista social. A educação passa a ser utilizada, a partir de então, como força de preparação de mão de obra barata, a serviço de um capitalismo concentrador e voraz. Produz-se um verdadeiro apagão cultural durante as décadas de sessenta,

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setenta e oitenta. Um povo silenciado e dominado é submetido a uma condição de prestador de serviços para os grupos multinacionais que aqui se instalaram. A estes não interessava um povo lúcido, dinâmico e participativo. Impõe-se a ideo-logia da exclusão e da concentração de poder e de riquezas. O modelo educacional brasileiro é ajustado de acordo com esses objetivos desenvolvimentistas.

O resultado de um processo histórico marcado pela hegemonia de grupos dominantes se expressa em uma realidade em que a educação não é contemplada re-almente como uma força social de construção de uma nação livre e independente. Em sua estruturação e em suas práticas revela-se o quanto sua função é de reprodutora de uma situação de dependência, em detrimento de sua função formadora da cidadania.

Como ter, na educação, um instrumento que venha a ser uma ferramenta, mes-mo que imperfeita, de formação desta realidade ética, se ela só existe enquanto serve a uma sociedade que lhe impõe sua maneira de ser e de funcionar?

Neste contexto, a escola passa a ser um lugar pouco atraente para a grande maioria dos alunos. Os espaços de aprendizagem não formais são mais atrativos do que ela. Professores com baixa autoestima, pouco valorizados e mal pagos, não conseguem entusiasmar os seus alunos. A prática pedagógica, dentro do modelo tecnológico, é paradoxalmente tradicional. Pouco ou nada, na escola, chega a despertar mais a motivação e o interesse do aluno do que as possibilidades eletrônicas a que ele tem acesso fora dela. Neste descompasso, o professor sabe e ensina e o aluno não sabe e aprende. O primeiro fala e o segundo escuta. Este último é o depositário de saberes que alguém, o professor, transmitir--lhe-á e que este deverá devolver exatamente como lhe foi transmitido.

A avaliação será medida numericamente por décimos de pontos. Os instrumentos que avaliam terão um valor absoluto por si mesmo e serão inques-tionáveis como forma de determinar a progressão do discente. O que será ava-liado e mensurado será rigorosamente a quantidade de informações que foram apreendidas e reproduzidas de acordo com as exigências do professor. A prática educativa constituir-se-á na transmissão dos saberes predeterminados em que

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se supervalorizam as ciências exatas. As ciências humanas, em que predomi-nam os aspectos da subjetividade, simplesmente são consideradas de segunda categoria e os cursos de quem as procuram como de status menor.

Formam-se profissionais “frios e calculistas”, para os quais só é digno de crédito o que pode ser objetivado, mensurado e avaliado do ponto de vista numérico e financeiro. Adaptam-se os indivíduos a uma sociedade hierarquiza-da em que, por exemplo, um engenheiro ou um médico tem muito mais valor do que um pedagogo ou músico. As profissões de alta tecnologia são para aqueles mais bem preparados e que necessária e fatalmente serão os mais bem sucedi-dos. As ciências humanas são para aqueles que não tiveram competência para disputar um concurso mais difícil e, portanto, haverão de ser sempre em manti-dos em tarefas menos importantes e muito mal pagas.

O comportamento do aluno será determinado por normas rígidas, em que ele deverá controlar “as suas emoções, a sua imaginação, a sua sensibilidade e a sua afetividade” (BERTRAND; VALOIS, 2005, p. 101). O aluno será conside-rado um número e como tal ele deverá se ajustar aos padrões e normas aceitos pela maioria. Sua história, sua carga emocional e suas características individuais precisam se diluir no nivelamento grupal. O aluno terá que se conformar às ex-pectativas da família, da sociedade do entorno e responder às leis do mercado.

A pretensa neutralidade científica, apregoada pelo paradigma tecnológico, não existe. Sempre que se constrói o conhecimento, esta construção é teleológica. Isto quer dizer que sempre a tarefa do cientista é condicionada pelos interesses de quem a financia e sempre haverá interesses em jogo. Toda prática científica está im-pregnada dos valores do contexto em que ela se realiza. Mesmo que um profissional da educação que atue dentro de e a partir de um paradigma tecnológico, industrial e racional, afirme a sua desvinculação de qualquer tipo de valores, estará implicita-mente fazendo uma opção pela defesa da situação dominante.

De acordo com o paradigma tecnológico3, os critérios para o di-recionamento das pesquisas científicas são determinados pelos ganhos finan-ceiros futuros e têm que ser levados adiante de qualquer jeito. A disseminação desta perspectiva desenvolve um senso comum de que tudo o que é produzido pela tecnologia é resultado de processos objetivos, amorais e desvinculados de

3 Paradigma tecnológico é o modelo de sociedade que se expressa na supervalorização de tudo o que é científico e técnico , em função de interesses econômicos imediatos a serem atingidos incondicionalmente, ou seja, a qualquer custo, mesmo que sejam prejuízos humanos e naturais.

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qualquer contexto em que ela se insere. É preciso que se faça urgentemente uma ciência da ciência, isto é, uma profunda reflexão ética que lhe devolva seu verdadeiro significado a serviço de um desenvolvimento sustentável.

Mudança de Paradigma

A educação aparecerá como uma possibilidade para que se construa um novo milênio de acordo com as exigências da dignificação humana. A aprendi-zagem se apresentará como um direito e a educação como um dever para todos os membros de uma sociedade. O progresso possível para a sociedade mundial se fará se a educação for colocada como a grande ferramenta construtora desta realidade. Este processo educativo, tanto formal, quanto informal, entendido tanto como dever quanto como direito de todos os seres humanos, haverá de se estender por toda a vida. Existir como ser humana haverá de ser, daqui para frente, um esforço contínuo de se educar.

Neste contexto atual, Baptista (2005, p. 62) reafirma a importância e o significado da presença do professor como um agente especial desta construção permanente, diz ela: “os professores farão a diferença”. O mundo incomensu-rável das informações poderá passar através das modernas tecnologias de co-municação, mas estas não poderão substituir a dimensionalidade do afeto e das trocas através das experiências vividas. A educação haverá de acontecer de fato no universo das relações que se estabelecem cotidianamente entre todos os en-volvidos no processo educativo. Baptista (2005, p. 63) conclui que “a autoridade pedagógica do educador está na sua atitude e na sua presença física”. O lugar da escola será o lugar em que todas as vivências são experiências entre pessoas vivas e atuantes, que se alegram, que sofrem, que vivem conflitos, que expe-rienciam sucessos e onde também terão que administrar resultados negativos, com tudo o que esta convivência representa de possibilidades e de dificuldades. E neste palco, o professor aparecerá como um dos atores principais e como um grande ponto de referência. Esta condição implicará a exigência de uma postura ética fundamental.

Uma exigência que brota deste contexto de uma sociedade aprendente é o compromisso que a escola terá de se abrir para todos os demais participantes desta sociedade. Impõe-se à escola a exigência ética de se transformar sempre mais em uma instituição inclusiva, onde caberão pessoas de todas as idades e de

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todas as condições. Ir ao encontro da família como parceira de todo o processo educativo será um desafio especial. A escola, na perspectiva de Baptista (2005, p. 70), haverá de aproveitar o capital social que as comunidades apresentam e aprenderá a se utilizar deste potencial de ajuda de forma efetiva.

Vivemos em um mundo plural, marcado por diferenças de toda ordem. Por se tratar de um mundo globalizado, em que não há mais barreiras físicas e culturais que possam ainda manter guetos isolados, precisamos aprender a conviver e construirmos juntos um mundo bom para todos. Essa tarefa resul-tará da cidadania exercida por todos os habitantes do planeta. Todavia, ser cidadão não é uma prerrogativa com a qual já nascemos. Temos que formar um cidadão. A cidadania será um valor aprendido na família, na escola e atra-vés de todos os meios informais de educação. Aprender a conviver é um dos principais desafios do mundo contemporâneo. A humanidade evoluiu fan-tasticamente do ponto de vista tecnológico e ainda se mantém numa barbárie assustadora no que diz respeito ao convívio com as diferenças. Só amamos aqueles que nos querem bem. Precisamos aprender a conviver com tudo e com todos, mesmo sendo muito diferentes, considerando as diferenças como infinitas possibilidades de crescimento. Esse é um exercício para ser feito em todos os momentos de nossa vida. Somente assim haveremos de expressar a cidadania através de comportamentos amorosos, solidários e acolhedores.

Esta tarefa histórica do educador inclusivo pautará sua prática em al-guns pressupostos fundamentais. O primeiro deles é o da perfectibilidade huma-na. Todo ser humano é educável. Na linguagem de Freire (2001), haveremos de transitar entre a ameaça do fatalismo de que nada é possível fazer e a esperança renovada de que, apesar de todas as dificuldades, é possível avançar. Baptista (2005, p. 79) fala da obstinação didática e da tolerância pedagógica. A paciência corajosa do educador não se confunde com o conformismo, a acomodação e a indiferença. Ser educador é conviver diariamente com respostas negativas dos alunos, ver seus esforços muitas vezes mal compreendidos e verificar resultados

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sofríveis. Será natural, na mente e no coração do mestre, o sentimento de rejei-ção e de revide. Porém, aqui se impõe a vigilância ética de lembrar sempre que ele é um educador e que se impõe permanentemente o esforço de se sobrepor a todos os dissabores com maturidade. À indiferença e à resistência cabem postu-ras firmes e serenas. Lançar a semente em terra árida muitas vezes será a marca da tarefa de um profissional da educação. Somente um profundo sentimento ético o manterá sereno e equilibrado diante dos desafios que se apresentam.

Nas palavras de Freire (2001), esta postura ética do educador exige dele o exercício pessoal de desenvolver e manter uma atitude positiva e deci-sória frente à vida. A esperança de que os seres humanos e o mundo são trans-formáveis não poderá arrefecer na tarefa cotidiana de um educador. Somos positivos não por ingenuidade ou por acreditarmos que tudo possa se resolver por um toque de mágica. Seremos homens e mulheres positivos e esperanço-sos exatamente porquanto compreendemos que os desafios são permanentes e que as dificuldades estarão continuamente a se interpor em nossos caminhos. A educação e os educadores podem muito, mas não podem tudo. Esta consciência propiciará a tão necessária serenidade e certeza de que, apesar de muitos desen-cantos, poderemos continuar a semeadura em todo tipo de terreno, do mais fér-til ao mais árido, escorregadio e arenoso. Os frutos aparecerão em quantidades por vezes surpreendentes e de onde menos se espera.

É conhecido, no ciclo biológico das águias, o momento em que os filho-tes são empurrados pela mãe para o precipício para que aprendam a voar. É um momento doloroso e difícil para ela. Os filhotes ainda nunca voaram. Porém, se não correrem o risco de despencar, com certeza jamais se soltarão e saltarão para as alturas. É a isso que Baptista (2005, p. 84) se refere quando fala do dever de antecedência. É na proximidade e na relação simbiótica4 com o educando que se desenvolve a aprendizagem e acontece o processo educativo.

A prática educativa exige o exercício da aventura para o desconhecido. Partindo de pontos de referência que nos dão a segurança necessária através de experiências já vividas, saltar no vazio do novo fará parte de prática cotidiana de um educador. A fidelidade a uma herança cultural não significa um atrelamento passivo a um passado anacrônico. Os valores recebidos são atualizados e refor-çados por uma nova interpretação crítica e criativa. Promover e estimular este

4 Relação simbiótica é uma profunda aproximação empática , solidária e de cumplicidade com o educando para fazer acontecer o processo educativo.

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discernimento responsável constitui-se em um imperativo ético fundamental que cabe à tarefa educativa. A vigilância ética da prática educativa haverá de evitar o processo de domesticação e de endoutrinamento, no dizer de Baptista (2005, p. 88).

Um professor forma através dos próprios valores. Antes de tudo, ele próprio será um modelo. Mais do que suas palavras, será a sua postura ética o prin-cipal modelador de valores para seus alunos. Por mais que se multipliquem os modelos impostos por uma sociedade pluralista e paradoxal, o professor haverá de se lembrar que a sua presença imprime marcas muitas vezes inde-léveis nas mentes e nos corações daqueles a quem ele atinge em seu espaço especial de atuação.

Diz Baptista (2005, p. 93) que “educar é entusiasmar, encher de espe-rança, alegrar dias de descoberta, animar fomes novas, despertar desejos. Mas educar é também contrariar, constranger e desagradar”. Isto quer dizer que ser professor implica também o exercício da autoridade. Exercer a sua autoridade não significa sucumbir em um autoritarismo, fruto de arrogância e de inseguran-ça. O educando necessita do balizamento seguro de quem indica os caminhos que podem e os que não podem ser seguidos. A contrariedade e a frustração muitas vezes farão parte de nossas vidas. Lidar com situações que nos impõem limites é condição de amadurecimento. Para isso, o professor terá que definir com clareza as regras que determinam o caminho a ser percorrido. A compreensão dos por-quês das exigências pedagógicas legitima o consenso em torno de sua anuência e acatamento. Nenhum tipo de proximidade afetiva com os alunos pode represen-tar um afrouxamento de parâmetros seguros para uma convivência enriquecedo-ra. A educação se dará na medida exata da firmeza e ao mesmo tempo da ternura com que os educadores se movimentarem em seu meio pedagógico.

A coerência entre o discurso e ação exige que a escola seja por excelên-cia um laboratório dos valores democráticos. A escola, como um dos primeiros e principais espaços de socialização, haverá de introduzir o educando nas primei-ras experiências democráticas de participação da vida coletiva.

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Os valores da cidadania se aprendem na escola. Todo o processo de gestão escolar acontecerá como resultado da consensualidade. Uma organiza-ção ética será resultado de uma gestão marcada pela responsabilidade e pelo compromisso individual e coletivo. O espaço da escola terá como vocação evo-luir para a condição de uma verdadeira comunidade. Diz Baptista (2005, p. 101) que “as escolas têm que ser lugares de hospitalidade, de reconhecimento, de proximidade e de encontro”. Um projeto de gestão tem como desafio fazer de tudo para que sejam criados lugares de proximidade e de partilha na comuni-dade escolar. Assim Baptista (2005) resume os princípios de uma gestão ética da escola:

compromisso incondicional com a educabilidade de todas as pesso-as: todos os envolvidos no processo educativo são conclamados a assumir uma postura de fé incondicional na possibilidade de todos os educandos avançarem em seu crescimento. Por certo, as diferenças, as dificuldades e as limitações e até mesmo as ne-cessidades especiais de alguns, representarão desafios ingentes. Contudo, quem pretende ser educador partirá do princípio de que haverá avanços na medida de cada um dos educandos. Uma expectativa negativa em relação a um só dos educandos, ou em relação a um grupo todo, é um determinante danoso e fatal no desenvolvimento da relação educativa. Pensar que alguém é limi-tado demais para crescer é rotulá-lo e é decretar, por antecipação, o seu fracasso como ser humano;

reconhecimento da centralidade do humano em todas as dimensões da vida organizacional: não obstante todas as limitações materiais de uma instituição educativa, acreditar na possibilidade de fazer acontecer a ação educativa é um pressuposto necessário. Quantas vezes, em escolas providas das mais invejáveis condições de infra--estrutura, os resultados nem sempre são condizentes com aquilo que seria de se esperar em condições tão favoráveis. Por outro lado, quantas vezes, de condições precárias, onde as carências de toda ordem se impõem dolorosamente, produzem-se resultados educativos surpreendentes. Isto se entende porque nada substi-tui o fator humano. É das pessoas envolvidas no processo, com suas motivações e atitudes de empenho, que resultam as conquis-tas mais significativas. Portanto, sob todos os aspectos, antes de

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qualquer outro componente do processo educativo, serão os seres humanos que haverão de ter a precedência e o fator humano será o determinante maior de seus resultados;

defesa do primado dos critérios pedagógicos sobre os critérios de or-dem financeira ou administrativa: infelizmente, em uma sociedade capitalista, a precedência na ordem dos valores que norteiam as ações educativas e pedagógicas são os valores materiais e finan-ceiros que predominam. Em outras palavras, a escola se tornou um bom negócio em nossa sociedade, onde o lucro acaba sendo o supremo escopo de toda atividade humana. O próprio ser hu-mano é reduzido a sua capacidade de produzir e consumir. Em uma sociedade do ter, o ser é retirado de seu lugar de original grandeza. Isto se manifesta nos mais variados momentos da vida da escola, da estrutura curricular ao processo de avaliação, das relações interpessoais às escolhas e decisões administrativas;

valorização da escola como laboratório de democracia: a busca de aproximação entre educação e ética inclui a substituição da auto-cracia pela participação de todos os componentes do espaço edu-cativo. Não haverá melhor lugar do que uma escola para o exer-cício da participação e da responsabilidade individual e coletiva. Esta experiência se dará desde a postura diretiva compartilhada até o envolvimento de todos os educandos no assumir de todas as tarefas que dizem respeito ao dia a dia da escola;

ênfase no componente axiológico dos projetos educativos: todos os projetos educacionais enfatizarão os valores que os nortearão. O sentido de direção é condição fundamental do sucesso de qual-quer iniciativa dentro da escola. Esta direção evidenciará uma grande e significativa razão de crescimento para todos os envol-vidos no projeto. Fazer por fazer, sem um porquê que lhe confere um significado relevante, na maioria das vezes, será algo desmo-tivador e inócuo. A razão da existência da escola estará bem clara para todos. Esta razão será definida em valores que a tornem uma grande motivação para se viver e para lutar pela sua consecução;

concepção da escola como comunidade estruturada em torno de va-lores, relacionamentos e ideais: estes valores estarão expressos no projeto pedagógico. Ocorre que, em nossas escolas, um projeto pedagógico geralmente existe por ser uma exigência legal até

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mesmo para seu credenciamento. Entretanto, não passa de um documento arquivado junto aos demais papéis que compõem o acervo burocrático da autorização de seu funcionamento. Um projeto pedagógico que clarifique e identifique uma comunidade estruturada em torno de valores e ideais, haverá de ser um baliza-mento vivo e presente nas ações e nas práticas cotidianas de todos os que compõem o corpo escolar;

entendimento da escola como instituição aprendente, prospectiva-mente orientada por uma ética do futuro, do bem comum, da solida-riedade, da paz, da esperança e da justiça: este entendimento re-sume todo o significado maior da existência de uma instituição educativa que pretenda aproximar a educação à ética. Um espaço especificamente organizado para a construção do conhecimento e da vida de cidadãos será orientado por uma perspectiva que apon-ta para a utopia de um amanhã melhor para todos.

Baptista (2005) reconhece no plano curricular um campo privilegiado para o exercício do compromisso ético e moral dos professores e elenca uma sé-rie de práticas que o viabilizam: estimular a curiosidade e o espírito crítico dos alunos; prestar atenção nas necessidades educativas especiais; propiciar acesso a recursos de aprendizagem; acreditar no sucesso educativo de todos os alunos; buscar meios para atualização das competências pedagógicas; inscrever a ética como conteúdo obrigatório dos cursos de formação de professores. Muitas vezes a prática pedagógica de muitos profissionais deixa de ser verdadeiramente uma experiência educativa por não perceberem ou compreenderem o que efetiva-mente se espera deles. Quando se fala de exigências éticas, estes não conseguem relacionar a sua prática específica como professores desta ou daquela disciplina com os valores que precisam impregnar a sua presença em sala de aula. Assim, o discurso monológico acaba embotando e silenciando toda a curiosidade, cria-tividade e criticidade dos alunos; tendo como desculpa a sobrecarga de trabalho e o grande número de alunos a serem atendidos, não se presta atenção para as necessidades e idiossincrasias dos que estão à sua frente; os recursos tecnoló-gicos para uma melhoria na aprendizagem não são manuseados por falta de treinamento ou por simples acomodação; a busca de aperfeiçoamento pedagó-gico não acontece pela carência de oportunidade, por falta de tempo ou simples-mente por desinteresse de quem deveria buscá-los. Assim se repetem durante

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anos os esquemas amarelecidos e repetidos à exaustão, sem nada acrescentar de estimulante e inovador; a ética como um tema a ser proposto continuamente na vida e nos espaços profissionais dos educadores, fica relegada a um mero assunto de discursos para momentos especiais de cultos ou de cerimônia de formatura.

Por tudo que foi refletido, é possível perceber que a educação será tan-to mais efetiva quanto mais se aproximar da ético, expressando-se em engaja-mento e comprometimento concretos com as suas exigências. De acordo com o rumo que a reflexão tomou até aqui, uma educação desvinculada da ética e da moral sempre resultará numa prática incompleta. A sua missão será a cons-trução de um novo homem e de uma nova sociedade. Para que isto aconteça, supõe-se que os profissionais da educação compreendam e assumam cada vez mais o seu papel de construtores desta utopia da esperança.

A aproximação entre a educação e a ética como princípio fundamental da cidadania é afirmada por Freire (2002, p. 36) de forma explícita em sua obra Pedagogia da Autonomia, ao dizer que “a prática educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decência...”.

O conceito freiriano de educação inclui o processo de conscientização. Para ele, educar é ultrapassar os níveis de uma consciência intransitiva, isto é, fechada em si mesma, sem pensar, sem ver, sem ouvir e sem falar; de uma cons-ciência transitiva ingênua, isto é, que pensa, vê, ouve e até fala, mas que se aco-moda; para constituir-se em uma consciência transitiva crítica, que pensa, vê, ouve, fala e assume o seu fazer cotidiano de libertação pessoal e coletiva. Esta prática será uma tarefa essencialmente ética.

Aqui o autor distingue o educar do mero treinamento. Não se pode re-duzir o processo educativo à mera transmissão de informações e de aquisição de algumas habilidades técnicas. Os conteúdos e exercícios práticos também serão importantes e necessários. Eles fazem parte importante do processo de ensino e aprendizagem. Porém, um conteúdo programático não pode ser desvinculado da formação dos valores que estruturarão uma personalidade humana.

Esta vinculação da educação à ética explicitada por Freire (2002) vai ao encontro das preocupações evidenciadas por Arendt (2007) a respeito das ambiguidades do desenvolvimento científico e tecnológico do mundo moder-no. Os aspectos desumanizadores inerentes ao seu uso equivocado poderão ser minimizados por uma prática orientada por uma dimensão ética. Também

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coincide com o pensamento de Ricoeur (1991), ao falar do pensar bem como condição educativa. As expressões que Freire utiliza são pensar certo e pensar errado (2002, p.37). O pensar certo se dará na medida em que o educador abandona uma postura dogmática a respeito de uma interpretação do mundo e de suas coisas.

Freire defende assim o princípio da pluralidade de pensamento, da hu-mildade de quem sabe mudar de ideia e assumir uma nova postura, a relativi-dade do mundo e dos fatos, a necessidade de dialogar e aceitar o pensamento de outrem e a coerência de quem é aberto, receptivo, acolhedor e sabe assumir a exigência de mudança. Tudo isso se constitui na construção de princípios éticos na prática educativa. Do ponto de vista do pensar certo não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente (FREIRE, 2002, p. 37).

Até aqui vimos o quanto é preciso buscar instrumentos que viabilizem uma construção de um novo homem e de uma nova sociedade. É preciso, so-bretudo, evitar todos os descaminhos cujos resultados sempre conduzem para equívocos de graves consequências. Na sequência de nosso estudo, veremos o quanto a ciência e a técnica precisam ser colocadas a serviço da vida e não da morte.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem e a participação no fórum de discussão do tema, perguntando por e-mail a respeito do que você tem dúvidas e no chat, conversando com o professor e com os colegas.

IMBERT, Francis. A Questão da ética no campo educativo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

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O educador francês Francis Imbert preconiza uma profunda inquietação ética como a fonte mobilizadora de comportamentos comprometidos e engajados eticamente.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 22. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

Paulo Freire, um dos mais importantes educadores do século XX, brasi-leiro, nordestino, propõe uma educação como prática da liberdade como instrumento maior de formação de homens e mulheres sujeitos de sua própria história individual e coletiva. Esse processo educativo se impreg-nado profundamente por valores éticos que promovam a autonomia e a dignificação de todos os seres humanos.

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2.3 O conhecimento e valores

Uma reflexão sobre o conhecimento acena necessariamente para o fato de que já não é mais possível falar em ciência como verdade absoluta e neutra, como pretende o paradigma tecnológico. O que existe no mundo das ciências são práticas que têm, como agentes, seres humanos carregados de subjetivida-de. E, além da intencionalidade dos sujeitos dessas práticas, existe toda uma política científica como fator externo a condicionar a busca do conhecimento. Para clarificar a questão da objetividade científica, é preciso refletir sobre o que possa vir a ser uma postura séria e honesta por parte dos construtores da ciên-cia, como condição de prática de liberdade e da promoção da cidadania.

A autêntica atitude de um cientista, comprometida com a busca sincera da objetividade na ciência, exige que ele assuma uma posição eminente-mente crítica em relação ao campo de trabalho e aos métodos utilizados. É preciso que ele se questione sobre a cientificidade e a objetividade de sua disciplina. É necessária uma verdadeira práxis científica, na qual a prática é acompanhada de uma profunda reflexão em torno da disciplina cien-tífica e seus métodos. Não se pode colocar a atividade do cientista como algo sagrado. Ao contrário, ela deve ser encarada como outra atividade qualquer. Como tal está sujeita a todo tipo de influências, como a ação de ideologias, juízos de valor, dogmatismos5 e autoritarismos.

A reflexão crítica honesta leva à percepção da ciência como um pro-cesso. O conhecimento como algo rígido e acabado deve dar lugar a uma cons-trução permanentemente inconclusa e aberta. A condição para que a ciência avance é que o saber científico seja assumido sempre de forma criticizada e temporalizada6, sendo continuamente questionado e reformulado. O dogma-

5 Dogmatismo é a rigidez de ideias que, de simples opiniões, são transformadas em ver-dades absolutas e indiscutíveis.6 Temporalidade e criticidade são as condições da travessia humana. A história do ser hu-

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tismo científico é a negação da própria ciência. No momento em que um conhe-cimento é absolutizado como algo indiscutível, eterno e imutável, deixa de ser ciência para se tornar um dogma. A produção científica nunca pode perder o seu caráter de verdade provisória. Como ela resulta de um contexto histórico-social, seu conteúdo também é eminentemente marcado pela historicidade. Disso re-sulta que tudo é objeto de discussão. Como não existem critérios de objetividade absoluta, o melhor critério será a postura permanentemente crítica do cientista.

Para o universo da ciência, a absolutização7 de uma teoria constitui--se em uma atitude extremamente limitadora. Não existe uma concepção cientí-fica que possa se arvorar a prerrogativa e a posição de verdade absoluta. Geral-mente este tipo de dogmatização é feito por quem desconhece uma globalidade científica e, como fruto de sua insegurança, precisa se apoiar naquilo que adqui-riu como esteio para não cair. A negação, a priori, daquilo que não se conhece é uma atitude tão anticientífica quanto a aceitação ingênua e simplista de tudo o que é apresentado sem comprovação. O medo do desconhecido é algo que emperra e impossibilita o avanço das descobertas científicas. O preconceito é uma das atitudes mais odiosas à verdadeira ciência. Somente a serenidade de quem admite um pluralismo de concepções poderá levar à aproximação cada vez maior da objetividade científica.

A apreensão de um fato de forma absolutamente objetiva não existe. O que se consegue é uma objetividade carregada de critérios subjetivos. A apreensão deste fato será sempre uma aproximação a partir de uma determinada ótica. Todo aquele que quiser ficar imune a qualquer juízo de valor, já estará valorando quan-do tomar esta decisão. Em toda investigação científica, desde a escolha do tema, a seleção da maneira de fazer a abordagem, o desenvolvimento da pesquisa até a sua aplicação prática, existirão fatalmente pressupostos baseados em juízos de valor. A objetividade será sempre aproximada.

Diante da impossibilidade de uma objetividade absoluta, torna-se ne-cessário que o cientista se posicione permanentemente de forma crítica em re-lação ao seu trabalho. Uma aproximação cada vez maior da objetividade advirá de seu esforço consciente de se proteger da deturpação ideológica dos fatos em

mano acontece no mundo, dentro das dimensões do tempo e do espaço. Porém, é preciso que ele tenha consciência e se situe neste mundo de forma ativa e dinâmica...7 Absolutização de uma teoria é transformá-la em verdade absoluta e irremovível. Nada mais poderá ser questionado e tampouco modificado. É nisso que se expressa o dogmatismo cientí-fico que entrava o desenvolvimento da ciência.

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favor de determinados interesses, clarificando para si mesmo os valores para os quais luta e trabalha. Isso será muito mais fácil de ser realizado quando feito em conjunto, ou seja, quando, como parâmetro da cientificidade, for tomada a crítica mútua entre aqueles que trabalham na pesquisa científica. Para isso, é preciso que haja uma boa dose de humildade, abertura e desprendimento por parte dos pesquisadores. Um grande cientista é humilde e sabe o quanto não sabe. O cientista medíocre se torna presunçoso, arrogante e prepotente. Pensa saber tudo e não admite qualquer intromissão em seu presumido vasto cabedal de conhecimentos.

O desenvolvimento científico alia ao seu caráter teórico, na atuali-dade, um aspecto eminentemente prático, isto é, a utilização imediata para a transformação ou manutenção da realidade e satisfação imediata dos in-teresses financeiros. Esta é uma das características básicas do paradigma tecnológico. Como assinala Japiassu (1975, p. 53), “o termo ciência passa, cada vez mais, a significar um saber eficaz”. A ciência desvinculada de in-teresses imediatos e teóricos, objetiva e neutra, cedeu lugar a uma ciência de encomenda para resolver questões de ordem prática e para utilização rápida. É a primazia da prática e da utilização sobre o conhecimento teóri-co. Este adquire seu significado a partir da possibilidade de sua aplicação imediata.

Para o mundo da ciência como um valor de uso, como preconiza o pa-radigma industrial, interessa saber o como. Não importa o para quê. É preciso descobrir os meios para se atingir os fins bem determinados, de forma ime-diata. Não vem ao caso o questionamento sobre a validade, as implicações e as consequências desta consecução. Para este caráter intervencionista da ciência não existem limites. O ser humano passa a ser submetido a sua própria obra. Deixando de fazer ciência como contemplação, na qual ele era o sujeito que agia sobre a natureza e a descobria, agora ele perde o seu verdadeiro lugar, tornan-do-se um objeto a serviço da ciência e da técnica. Não importam as questões de ordem ética, mas apenas aquilo que é economicamente interessante e tecnica-mente viável.

É tão grande o deslocamento da ciência como contemplação para a ciên-cia como valor de uso, que fica muito difícil distinguir até onde temos uma teoria científica e onde começa a ideologia. A ciência e a técnica perdem os seus signifi-cados maiores para se tornarem instrumentos de dominação e de concentração de

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poder. As ciências deixam de se colocar a serviço da humanidade para servirem ao sistema dominante, que detém o seu controle. Assim temos, por exemplo, a eco-nomia, a sociologia, a psicologia, a medicina, etc., deixando de ser ciência a serviço da humanidade, para responderem às exigências das instituições que delas tiram proveito. Isto quer dizer que se converteram em estratégias de ação dos grupos que se utilizam de seus benefícios científicos. Japiassu (1975, p. 66) afirma que “não podemos negar, portanto, que as ciências sejam cada vez mais utilizadas para fins não-científicos: são construídas para responder a todos os tipos de demanda”.

Este utilitarismo das ciências traz profundas consequências para a vida do homem moderno. A aplicação prática dos princípios da ciência a todos os campos da atividade humana acarreta modificações radicais na forma do homem viver e de se relacionar com seu meio natural e social. Este processo de modernização assume proporções tão avassaladoras a ponto de o ho-mem reduzir a própria natureza a um mero objeto, manipulado à exaustão e, muitas vezes, ferido mortalmente. O planeta todo está se tornando um terreno minado. Os instrumentos que a tecnologia moderna confere ao homem colocam em suas mãos um poder de tal grandeza, que nada escapa à fúria de seu controle e de sua voracidade. Ele cria, de um lado, um mundo bom para se viver e, de outro, um mundo perigoso e inseguro. Os seus aspectos contradi-tórios se exacerbam na medida em que ele absolutiza os valores auferidos pela ciência e pela técnica. O seu modo cientificista e tecnicista de ser e de viver faz com que perca a dimensão da sua própria condição de ser humano. Há um dito popular que diz: Deus perdoa sempre; o homem, às vezes; mas a natureza, nun-ca! Por isso, é preciso que o homem se dê conta desses paradoxos e recupere, em tempo, a sua condição humana privilegiada.

As possibilidades de se fazer deste planeta um verdadeiro céu para seus habi-tantes diante da atual potencialidade tecnológica se veem ameaçadas por um rastro de destruição e de catástrofes paradoxalmente dela resultante como um subproduto indesejável. De que depende fazer com que a ciência e a técnica sir-vam predominantemente como facilitadoras das condições de vida no planeta?

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Cientificismo e Tecnicismo

Para a concepção cientificista, a única maneira de se atingir a verdade é através da experimentação. Somente é verdadeiro aquilo que pode ser esmiu-çado objetivamente. A verdade científica passa a ser única e absoluta. Todas as realidades humanas devem ser reduzidas a objetos de análise e somente será válido aquilo que for objetivamente verificado.

O cientificismo tem suas raízes no século XVIII, com o pensamento do filósofo Emanuel Kant (1724-1804) que, concebendo a realidade como sendo o binômio nômeno (essência) e fenômeno (aparência), afirma ser unicamente pos-sível conhecer-se o fenômeno. Reduz todo o conhecimento e, como tal, toda a verdade, ao dado fenomenológico. Porém, é no século XIX, com o grande floresci-mento da filosofia naturalista – com Darwin (1809-1882), Spencer (1820-1903), Comte (1798-1857), etc. – que o cientificismo se transforma na atitude intelectual dominante. A partir daí, "aquilo que a ciência reivindica de modo exclusivo é o fenômeno. Mas ela o reivindica de forma total, ou seja, para além do fenômeno nada existe senão outros fenômenos" (JAPIASSU, 1975, p. 77). Com este natura-lismo chegou-se à autossuficiência absoluta das ciências físicas e naturais. A cer-teza científica passa a ser a única e exclusiva certeza que se pode ter. Ela se funda na razão humana e tem como instrumento básico o método experimental.

O cientificismo é uma mentalidade que se enraíza cada vez mais no pensamento e no coração do homem moderno, preconizado e afirmado pelo paradigma tecnológico. Ele determina um novo tipo de educação em todos os níveis, onde a supremacia absoluta está com o pragmático e o objetivo. Cria-se uma verdadeira religião, na qual os sacerdotes são os cientistas, donos da supre-ma verdade e sumos pontífices dos tempos modernos. Cria-se o mito que leva a ciência a se tornar um fim em si mesma, indiscutível em seus princípios e fins.

O cientificismo8, como ideologia da industrialização, serve para justifi-car e legitimar a estrutura de uma sociedade fundada na divisão de classes e onde uma classe, detentora dos bens de produção, explora as demais que compõem a força de trabalho. O cientificismo confunde a repartição do saber com a vulgariza-ção do saber. Ora, encher um povo de ufanismo porque seus cientistas descobriram isto ou aquilo não quer dizer que o acesso a esses benefícios será franqueado a to-

8 O cientificismo e o tecnicismo são ideologias que afirmam o dogmatismo da ciência e da técnica: tudo o que é científico é verdadeiro e tudo o que é técnico e economicamente produtivo passa a ser realizado como valor incondicional.

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dos. Cria-se, com isso, uma tecnocracia a serviço dos donos do mundo, na qual são justificados os mitos do desenvolvimento tecnológico como progresso sem limites. Modernização, porém, não significa automaticamente desenvolvimento.

A crítica do cientificismo nasce das lacunas apresentadas pelos mitos que ele erige. Não se concretiza a ideia de que, lenta e progressivamente, ciência e téc-nica resolverão todos os problemas e responderão a todas as questões que possam um dia vir a preocupar a humanidade. O desenvolvimento científico, na verdade, tem se mostrado ambivalente na sua evolução. Ele não consegue resolver todos os problemas e, tampouco, responder a todas as perguntas que o homem possa formular. O mito de que, com a tecnologia moderna, sobrevirá necessariamente a felicidade para todos, tem se mostrado falho e discutível. A prova está no fato e na vida de muitos que conseguiram conquistar toda a riqueza do mundo e, assim mesmo, naufragaram na insatisfação e na infelicidade pessoais.

Por fim, querer reduzir todo o real ao racional e resumir toda a verdade ao quantificável esbarra em inúmeras contradições. O ser humano ultrapassa cada vez mais a possibilidade de redução do conhecimento a simples números e dimensões quantificáveis. Na medida em que ele é objeto de conhecimento científico, também é o seu sujeito. E, nesta condição, ele imprime dimensões subjetivas ao desenvolvimento da ciência. De sua subjetividade dependerá o uso das conquistas científicas. Portanto, é preciso que essas conquistas defato coloquem o próprio homem integral no centro de suas buscas.

O cientificismo se funda na concepção da onipotência e da onipresença da ciência e, sobretudo, na absoluta neutralidade de seus esforços cognitivos. Entretanto, esses pressupostos cientificistas sofrem o impacto das evidências que denunciam as contradições apresentadas pelos resultados nefastos do mau uso dos produtos científicos e pela constatação da grande parcialidade da pes-quisa científica. No mundo todo, funda-se, cada vez mais, uma consciência so-cial do cientista, enfraquecendo-se, consequentemente, a pseudomoral9 da

9 Pseudomoral é uma falsidade que, de tanto ser afirmada, passa a ser aceita como algo

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neutralidade científica. Este movimento dá origem a uma verdadeira “ciência com consciência”, como afirma Morin (2001), ou seja, a busca da compreensão do verdadeiro papel das ciências no contexto da sociedade atual.

A ciência com consciência leva à construção de uma verdadeira ciência da ciência, constituindo-se na busca de todos os fatores que possam influenciar a atividade científica, desde os fatores econômicos e políticos, até os fatores psicoló-gicos, sociológicos, históricos e sociais. Até há bem pouco tempo, a postura dos cientistas frente à influência de fatores externos sobre a atividade científica era de completa alienação. Não reconheciam essa influência e a negavam. Afirmavam-se neutros em suas especialidades. Hoje, constata-se uma politização cada vez maior dos pesquisadores e uma crescente preocupação com o significado social de suas atividades. Tem-se, como exemplo e prova disso, a recente discussão sobre a questão da clonagem, da utilização de embriões humanos como células tronco, etc. Se já se produziram clones de animais e vegetais, a possibilidade de se produzirem clones humanos é algo absolutamente consequente. Entretanto, o que isso significaria para a humanidade? Que consequências acarretariam taisavanços da engenharia genética para o futuro dos seres humanos? Tais questõesbrotam da parte dos próprios cientistas e da massa pensante, em todos os qua-drantes do planeta, como um clamor generalizado. Portanto, a exigência por umaética científica se impõe cada vez mais, na medida em que a tecnologia vai tomandoconta de todas as realidades do mundo moderno.

Ao longo do século XIX, com o desenvolvimento da revolução industrial, expressando-se em um processo de tecnificação cada vez mais sofisticado – disseminação do uso da eletricidade, descoberta do motor a explosão, etc. – chegou-se a pensar que a ciência e a técnica seriam a solução para todosos problemas humanos. Esse pensamento filosófico se estruturou nas obrasde pensadores, especialmente do filósofo Augusto Comte. Todavia, o sécu-lo XX chegou e, com ele, já na primeira metade, o resultado foi um grandedesenvolvimento com a utilização desse potencial todo para uma destrui-ção sem precedentes em toda a história humana. As guerras como exemplo

verdadeiro.

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maior levaram a humanidade a se assustar demais com o que poderia ser feito se a tecnologia fosse mal utilizada. A ambiguidade desse processo de desenvolvimento tecnológico só pode ser revertida pela consciência ética de quem o utiliza. A ciência e a técnica vieram para minimizar as dificuldades e aumentar as facilidades para a vida do planeta. Isso só haverá de acontecer de forma mais plena na medida em que homens e mulheres assumirem a sua condição de cidadãos do mundo, ou seja, passarem a se servir de todo o potencial humano e tecnológico para cuidar do planeta e de tudo e todos que nele habitam.

O cientificismo, como um produto de uma ideologia de dominação, apregoado pelo paradigma tecnológico, transporta-se para a educação na medida em que a reduz a um mecanismo de mera transmissão de conhecimentos. A escola abre mão de seu papel de educadora ou formadora de sujeitos pensantes, para produzir técnicos ou peças para a grande máquina social.

Não existe a verdade como uma fórmula universal e única. O conheci-mento não pode ser entendido como uma posse de algum iluminado, mas sim como uma constante busca do desvelamento sempre maior da realidade, na di-reção de uma verdade cada vez mais construída e clarificada. O professor dono da verdade é aquele que acaba por fazer da educação um mero instrumento de dominação e de reprodução do status quo. Todo objetivo desta educação domes-ticadora reduz-se ao fazer, eliminando-se os aspectos educativos fundamentais do pensar e do criar. A super especialização buscada pela maioria das escolas pode induzir a um fechamento das consciências e a uma fragmentação mental execrável.

O sentido dos espaços educativos é o de ser um lugar no qual, por exce-lência, possam germinar propostas de transformação da sociedade. Entretanto, o que se observa é que esta visão universalizadora é embotada em função de umaperspectiva alienada e estreita de um saber compartimentado e estreito. Pare-ce que o único objetivo é a adaptação do indivíduo ao preestabelecido. Quantomenos um educando questionar a realidade que o cerca, quanto mais passivo ecalado ele for, mais será aplaudido e considerado bom aluno, bom profissionale bom cidadão, no futuro. Nessa pedagogia da dominação, o educando encon-trará sempre respostas prontas, acabadas e indiscutíveis; e os educadores que

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sucumbirem à máquina de ideologização, permanentemente a espalhar a se-mente da conformidade e do descompromisso, terão dificuldades em perceber a ambiguidade da tarefa profissional que exercem. Mais difícil ainda será fazer com que estes profissionais descubram e transformem sua prática cotidiana em uma ação historicizadora, ou seja, uma ação comprometida com a construção da cidadania. Todavia, é preciso acreditar na possibilidade da mudança. É o que veremos a seguir.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem, a participação nos fó-runs de discussão do tema e a possibilidade de tirar dúvidas através de chats e e-mails.

MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

Com o advento da era moderna – a partir do século XVI – a hegemonia dos fi-lósofos como os detentores de todo o conhecimento, foi suplantada pela frag-mentação do conhecimento em inúmeras áreas de saberes. O generalista deu lugar para o especialista. Essa fragmentação chegou a tal ponto que se perdeu a perspectiva do todo integrador. O sociólogo francês Edgar Morin preconiza a reunificação dos saberes e a recuperação da perspectiva holística como o grande desafio epistemológico do século XXI.

______. Ciência com consciência. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

A hegemonia da ciência e da técnica, no mundo contemporâneo, produziu um cientificismo e um tecnicismo exacerbados. Isso quer dizer que se erigiu

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uma nova religião, com seus dogmas, sacerdotes e rituais, ou seja, a ciência, a técnica, os cientistas e técnicos e seu poder avassalador. Os resultados fo-ram de uma ambiguidade sem precedente. Junto das infinitas possibilidades auferidas pelo poderio tecnológico, apresentou-se um subproduto de morte e destruição. Fazer da ciência e da técnica instrumentos de vida e não de morte, é uma tarefa que se realizará pela consciência dos próprios cientistas e técni-cos sobre a ambivalência de seus produtos.

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2.4 Educação e mudança

Passamos a refletir sobre a aproximação entre o processo educativo e a ética que se constituirão na base da cidadania que buscamos, ou seja, a trans-formação de toda uma massa humana informe em um povo consciente, dinâmico e fazedor de sua própria história. Partimos, portanto, do pressuposto de que a cidadania será resultado de um processo de educação que coloque os valores éticos como base para todo o seu desenvolvimento.

Percebe-se que muita gente já desacreditou da possibilidade da concretiza-ção da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade, sucumbindo a um ceticismo total; outros acreditam, porém, mantém-se numa postura neutra e descomprometida, encontrando uma boa razão para manter-se em sua acomodação; todavia, há quem ainda acredita de forma incondicional na possibilidade de construção de um novo homem e de uma nova sociedade. Justifique o seu posicionamento diante desta realidade.

Refletir sobre a educação, seu significado, sua importância e seus obje-tivos é uma das principais questões da filosofia. A filosofia da educação precisa-rá elucidar os caminhos da construção da cidadania que leve à concretização da realidade de um novo homem e de uma nova sociedade. Se a cidadania resultará de um processo educativo, é preciso compreender o que se entende por educar e como se define a sua tarefa primordial.

Por onde começar a mudança de uma realidade ambígua que se apresenta em nosso cotidiano? Vivemos em um mundo maravilhoso. Porém, por outro lado, temos muitos medos e medo de tudo. Viver passou a ser algo perigoso. Temos medo de não conseguir o suficiente para sobreviver; temos medo da

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violência; temos medo em nossos relacionamentos pessoais; temos medo da destruição do próprio planeta. Quem e como fará acontecer a modificação da rota desta aeronave a deriva e que, a seguir o rumo que está tomando, have-rá de fatalmente se autodestruir? Somente com uma mudança individual e coletiva, fruto de um processo de conscientização que leve a assumir o com-promisso ético de, desde as pequenas coisas do nosso cotidiano, até grandes projetos políticos, fazer acontecer ações efetivas de transformação. Para isso, precisamos ser educados e educar nossos filhos, nossos alunos e nosso povo numa grande corrente de cidadania.

Um ser humano adquire a sua plena humanização na relação com outro ser humano que lhe servirá de ponto de referência. Assim, a história só existe com o surgimento do homem e sua ação sobre o mundo. No começo do processo de hominização, encontramos um ser natural, que ainda não produziu história, nem educação e nem ética. É um hominídeo, isto é, um ser semelhante aos demais seres que habitam o planeta, como os seres inanimados, os vegetais e os animais. Estes apenas repetem um programa predeterminado pela natureza. Nada têm que acrescentar para existirem. São movidos por impulsos e por ins-tintos. São seres completos em suas realidades, em seu universo e em seus níveis de existência. Em suas relações, vigorará a lei da selva, ou seja, a lei do mais forte, ditada pelo instinto de sobrevivência. O que se impõe é a completa amoralidade, isto é, a ausência de toda moral. É uma condição de anomia, como inexistência de qualquer tipo de regras, a não ser o programa pré-estabelecido pela natureza.

Na medida em que o processo de hominização se completa e se inicia o processo de humanização, o ser humano passa a se apresentar como um seraberto e inconcluso. É o único ser deste planeta que não recebe a vida pronta eacabada, diferentemente dos demais seres. Este recebe uma mera possibilidadede existir. Sua grande tarefa será a sua própria construção, a sua própria fabri-cação, de acordo com as palavras de Ortega y Gasset (1963). O seu ser se consti-tui fundamentalmente naquilo que ele ainda não é. Sua vida se constituirá per-manentemente num contínuo vir a ser, ou seja, num projeto continuado de ser.

A ruptura do fechamento em que se movimentam os seres não plena-mente humanos se evidencia pela transgressão da ordem natural das coisas. Esta se revela como a possibilidade de abertura e de diferenciação diante de

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tudo e todos os demais seres existentes. O ser humano descobre que pode ir além do estado natural em que jaz imerso e fechado. Neste momento, ele se apresenta como abertura, ou seja, como poder ser. Aqui se inscreve o fenômeno da educação como possibilidade de ser diferente, de ser mais e melhor e de se apresentar de forma ilimitada. Das três primeiras possibilidades que se apre-sentam ao ser humano, duas são essencialmente éticas. Ser diferente, ser mais e melhor, são tarefas que implicam em comprometimento ético. Estas tarefas são fundamentalmente tarefas educativas. Portanto, a construção de um ser humano pleno sugere a inclusão de dimensões éticas em seu desenvolvimento.

A educação sempre implicará um processo amplo de transformação e de-senvolvimento do ser humano, em toda a sua pluridimensionalidade, isto é, a dimensão social, econômica, política, religiosa, lúdica etc.. A educação se dará quando forem mobilizadas as potencialidades humanas de um ser bio-psicossocial. O ser humano haverá de ser tanto mais humanizado quanto pu-der avançar no desenvolvimento de suas potencialidades.

Sempre que aqui se falar em educação, estaremos fazendo referência a um processo amplo, completo, profundo e altamente comprometido com a mobilização de todas as potencialidades humanas. Teremos somente um ser humano educado na medida em que ele crescer e for melhor sob todos os pontos de vista. Isto quer dizer que a educação mobilizará sempre suas múltiplas dimensões de um ser bio-lógico, social, espiritual, intelectual, psicológico, material, estético, ético etc. Será neste sentido que se poderá falar em filosofia, educação, ética e cidadania e em uma aproximação necessária entre elas. Portanto, esta aproximação será sempre um processo constante, em busca de um desenvolvimento humano integral.

Contudo, para que o conceito de educação se clarifique um pouco mais, é preciso lembrar sempre da sua inserção no contexto em que ela se faz. A edu-cação aparece sempre como um fenômeno social e nunca como uma força isola-da, como já foi amplamente refletido no segundo capítulo deste texto. Portanto, buscar uma aproximação entre filosofia, educação, ética e cidadania só será pos-

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sível se isto se fizer dentro de um contexto por se tratarem de ações e valores que se realizam e se expressam sempre em nível relacional.

Para pensar a busca de se aproximar educação com ética para que a cidadania possa desabrochar, a proposta de educação que se fez mais clara é a pedago-gia do oprimido, de Paulo Freire. Freire aponta o tempo todo para a esperan-ça de uma transformação possível de um homem e de um mundo que ainda não existem, mas que se constitui numa utopia viável10.

Todo o trabalho de Freire se inicia e se realiza a partir de uma perspec-tiva dos oprimidos. Considerando-se que a educação, ao longo da história, espe-cialmente da história brasileira, sempre se constituiu em um produto de consu-mo das camadas mais privilegiadas da população, é preciso pensar-se e fazer-se uma educação como instrumento de libertação dos menos favorecidos. Segundo Freire (2001), a educação se expressará como uma pedagogia do oprimido, isto é, como uma prática da liberdade e da esperança.

A educação, segundo Freire (1985), se constituirá na construção do sermais de todos os seres humanos. Em um contexto de mundo, onde somente os donos de tudo têm vez e voz, é preciso que seja recuperada a dignidade de cada ser humano. A massa populacional é reduzida à sua condição de ser menos, silencio-sa, submissa e excluída de tudo. A estratégia desta recuperação se dará através da conscientização. Cada indivíduo precisa ser despertado de sua inconsciência, de sua ingenuidade e de sua passividade, para assumir a sua condição de agente da própria história e da história de seu povo. A condição do ser menos corresponde à anulação de alguém e sua redução a mero objeto de manipulação e de exploração. A vocação de cada ser humano é a de ser mais. Ser mais quer dizer ter garantida a sua possibilidade de desabrochar em todas as suas potencialidades. Só assim alguém poderá exercer a sua liberdade e a sua dignidade humanas.

10 Utopia viável, expressão de Paulo Freire, é um sonho possível de ser realizado. Assim, precisamos estabelecer utopias viáveis, ou seja, sonhar sonhos possíveis e buscar incessantemente a sua realização.

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Este processo de libertação não se dará de forma espontânea e mágica. Um ser humano que vive numa condição de opressão e, por conseguinte, de in-dignidade, jamais despertará em uma bela manhã, iluminado espontaneamente pela consciência de sua realidade opressiva e disposto a mudar a sua condição. Será preciso que isto se faça pela ação coletiva dos que o rodeiam, em que um vai clarificando o outro. Juntos farão acontecer o desabrochar de uma nova realida-de para todos. Aí entra o papel da educação como instrumento de libertação e de esperança. Os educadores precisam compreender o seu papel como semeadores de esperança. Esta atitude, baseada na fé incondicional na educabilidade do ser humano, precisa suplantar o sentimento fatalista de que nada é possível fazer.

Esta educação se fará numa relação educador-educando. Tanto quem tem o papel de ensinar, quanto aquele que estaria ali para aprender, ambos estarão um educando o outro dialogicamente. Mais do que meramente trans-mitir conteúdos, estarão vivendo uma experiência solidária de busca do conhe-cimento, isto é, de saberes que representarão experiências vividas e caminhos a serem ainda percorridos por ambos. Mais do que somente acumular respostas já encontradas, ambos lançarão permanentemente perguntas desafiadoras. Tão importante quanto responder a estas perguntas, será aprender a fazer novas perguntas. Freire (1985) chama a isso de problematização.

A educação que só reproduz o universo vivido será chamada de bancária. Nesta, o educador, como um depositário de uma mina de imensa riqueza de sa-ber, depositará, em recipientes vazios, os seus conteúdos insossos, indigestos, de-sinteressantes e pouco significativos. A problematização, ao contrário, instigará a atitude de busca incessante e de partilha de descobertas enriquecedoras. A atitu-de entre ambos, educador e educando, será sempre marcada por uma relação de respeito e acolhimento do outro. Ambos partirão de suas leituras e de suas lingua-gens. Serão diferentes. Porém, ambos serão cultos, cada um de seu jeito. O senso comum e a simplicidade de um e o academicismo de outro não os farão superiores um ao outro. A troca fará com que ambos cresçam e se eduquem mutuamente.

Para Freire (1985), a leitura do mundo e a leitura da palavra são duas formas de construir o conhecimento e de fazer acontecer educação. Assim tam-bém a expressão destes saberes se dará pela palavra. O ser humano se humaniza e se descobre na sua humanização ao dizer a sua palavra. Uma forma de negar o ser humano é impedir que ele diga a sua palavra. Libertá-lo é possibilitar asua emergência como um ser humano pleno, que assume o seu espaço expres-

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sando todas as suas potencialidades. Reduzir alguém ao silêncio é impedir a sua possibilidade de humanização.

No pensamento de Freire, os conteúdos não deixarão de ser importan-tes na prática educativa. Porém, “o problema fundamental [...] é saber quem es-colhe os conteúdos, a favor de quem e de que estará o seu ensino, contra quem, a favor de que, contra o que” (FREIRE, 2001, p. 110). Portanto, a prática da educação libertadora não minimiza o significado e a importância dos conteúdos a serem transmitidos e assimilados. O que é preciso que seja destacado e bem clarificado é a sua significação e direcionamentos.

No conceito de educação de Freire, que estamos assumindo para ali-nhá-lo com o conceito de ética e na construção da cidadania, os conteúdos sem-pre serão importantes e significativos na medida em que forem selecionados e assumidos por professores e alunos, numa atitude de busca prazerosa e desa-fiadora, movida pela curiosidade construtora de todo o conhecimento. E toda educação será, sobretudo, uma construção profundamente amorosa e ética. Na pedagogia dos dominadores, os conteúdos sempre expressaram uma re-alidade que pouco ou nada tinha a ver com a massa dos oprimidos. Agora os conteúdos, na pedagogia do oprimido, terão que brotar do mundo vivido por aqueles que buscam aprender.

A pedagogia do oprimido de Freire se apresenta como uma educação como prática da liberdade ou também como uma pedagogia da esperança. O pon-to de partida é a prospectiva de futuro. Ter uma postura positiva e decisória frente ao mundo, fundada na esperança de que o ser humano e o mundo são trans-formáveis é condição fundamental para uma ação educativa. A expressão dessa prática educativa se fará através do diálogo, suplantando o silêncio promovido pelo monólogo. O educando sempre será aquele ser problematizador, ou seja, in-dagador, questionador, que faz perguntas. Como sujeito de sua própria história, consciente, dinâmico e participativo, haverá de fazer escolhas e assumir sempre o seu compromisso de fazer acontecer a ação cotidiana da busca de crescimento elibertação. O comportamento libertário brotará sempre da indignação diante detudo o que é desumano e, portanto, inaceitável. Contudo, diante de um mundoque ainda não é aquele com que sonhamos, jamais podemos perder a esperança ea alegria pela graça imensa da vida e de se fazer parte da história humana.

A pedagogia da esperança se funda numa visão holística, ou seja, na percepção de todos os seres do universo como fazendo parte de uma teia de

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elementos interconectados e interdependentes de forma plena. As diferenças sempre aparecerão como condições complementares e enriquecedoras de uma mesma realidade. Tudo o que representar desarmonia nas múltiplas formas de violência destruidora são incondicionalmente consideradas inaceitáveis. O que realmente conta é um profundo sentido de alteridade, ou seja, o cuidado, a in-clusão e o acolhimento do outro como princípio ético a ser permanentemente promovido e desenvolvido. Assim haverá de se inventar o futuro fundado na fé e na esperança.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem, participação do fórum de discussão do tema, no acesso ao espaço para tirar dúvidas de conteúdo e através de e-mail.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 26. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

Nesta obra, o autor apresenta o ser humano imerso em sua condição que nem sempre lhe possibilita a dignidade compatível com a de um cidadão, reduzido a um mero objeto, silenciado e oprimido, sem consciência de si e tampouco de seu mundo. A mudança só poderá brotar de um processo de despertar desta consciência para que esse indivíduo se transforme no sujeito de sua própria história e de seu povo. Como isso nunca acontecerá de forma espontânea, será preciso que ele seja educado para assumir a sua condição de sujeito livre, no exercício de sua cidadania.

______. Pedagogia da autonomia. 22. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

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Um ser humano autônomo e livre só poderá emergir de um processo educati-vo que promova o despertar das consciências de cada indivíduo para assumir a sua condição de cidadão.

O que move a roda da história são as ideias. O ser humano se diferencia de to-dos os demais habitantes do planeta pela sua capacidade de pensar. Por não receber um mundo pronto e acabado como os demais seres do universo, cuja evolução acontece de acordo com um processo predeterminado pela nature-za, o homem precisa dobrar-se sobre o mundo vivido para minimizar as di-ficuldades e ampliar as facilidades. Para isso, sua compreensão da realidade precisa ser a mais clara possível para não se direcionar de forma equivocada. Quando, nas suas múltiplas relações, o seu entendimento é manipulado por quem logo descobre um jeito de dominar e controlar, a massificação resulta em concentração de riquezas e na exclusão de massas imensas da participa-ção de tudo. É o processo de ideologização que se serve dos mais diferentes instrumentos de controle – os meios de comunica, a política, a educação, a religião, a ciência, etc. – para manter um número sem conta de seres huma-nos como massa de manobra para os interesses dos grupos que dominam. A reação e a defesa contra um mundo de exclusão se fará pela formação da cidadania. Cidadãos serão homens e mulheres conscientes, lúcidos e compro-metidos eticamente com um mundo bom para todos. Para isso, tudo precisa concorrer em um processo simbiosinérgico, ou seja, em que se concentrem todas as energias em favor de um mundo de justiça e de liberdade, em que todos participam dos bens da terra. Como não existe o espontaneismo histó-rico, ou seja, isso não se fará de forma mágica e espontânea, será preciso que os cidadãos sejam fruto e produto de um processo educativo que se constitua em uma prática de liberdade e de cidadania.

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O processo de ideologização pode ser compreendido como fazer a cabeça de alguém. Isso quer dizer que a ideologia pode ser construtiva e, por ou-tro lado, instrumento de manipulação. Explique e exemplifique o que se entende por isso. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Como será possível construir-se uma sociedade marcada profundamente pela participação de cidadãos éticos se o conjunto de ideias, ideais e va-lores que impregna todo o mundo atual não contempla a ética como algo necessário? ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Quando e como o conhecimento em suas múltiplas formas e áreas se transforma em instrumento de ideologização, ou seja, instrumento de do-minação e de controle?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Na ânsia de satisfazer todas as necessidades sentidas e percebidas, não se cairia em uma busca desenfreada de coisas e em um consumismo tão neurotizante quanto a humilhante condição de não conseguir o mínimo para sobreviver?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Verifique no AVA as respostas do exercício.

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A Filosofia, no conjunto dos conhecimentos construídos pela humanida-de, assume a tarefa de refletir criticamente sobre todas as realidades hu-manas. A doutrina, por sua vez, propõe e defende o conjunto de ideias, ideais e valores de forma clara e explícita. A utopia se constitui na grande meta a ser alcançada e pela qual é preciso viver e lutar. Todos esses con-ceitos, todavia, podem se transformar em ideologia. De acordo com estas afirmações, complete a sentença correta: Entende-se por ideologia...

uma doutrina explicitada e defendida pelos seus seguidores no intuito de convencer e conquistar mais adeptos para suas ideias, ideais e va-lores.uma utopia reveladora de uma realidade inatingível e sem sentido para a construção de um novo homem e uma nova sociedade. o estudo dos comportamentos humanos que são evidenciados nas prá-ticas de cada profissão de nível superior.um conjunto de ideias, ideais e valores, que são utilizados tanto paraformar opiniões e comportamentos, quanto para mascarar a realidadee, assim, fazer com que os detentores do poder manipulem uma socie-dade inteira.uma filosofia que apresenta o pensamento dos principais pensadoresde qualquer época da história.

Em uma sociedade onde os mecanismos de ideologização mantém uma massa passiva e inconsciente, a possibilidade de se garantir a formação da cidadania como condição de construção da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade resulta de um processo educativo que forme ho-mens e mulheres lúcidos, dinâmicos, solidários e comprometidos etica-mente com a construção desta utopia. De acordo com essa perspectiva histórica, são verdadeiras as seguintes afirmações:

I. Permitindo-se que as leis de mercado – da oferta e da procura – dirijamo rumo de uma sociedade para um equilíbrio espontâneo e natural.

Verifique no AVA as respostas do exercício.

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II. Compreendendo-se que a exclusão de uma grande maioria da popula-ção da participação de tudo é muito mais uma questão de culpa e desin-teresse individual do que um processo resultante de uma máquina social.III. Os mecanismos de ideologização atualmente são tão poderosos, sutise sedutores, que é absolutamente impossível preservar nem mesmo umapequena parte da população de seu processo de manipulação e de contro-le.IV. Pela ampla distribuição de programas de doação de alimentos e di-nheiro para famílias pobres.V. Pela promoção de uma sociedade mais justa e equitativa, especialmen-te, através do acesso à educação que promova uma condição de cidadania,isto é, a consciência do compromisso e engajamento éticos de quem des-perta para a responsabilidade social individual e coletiva.

I e II.II e IV.III e I.I e V.Somente a V.

A construção da cidadania implica uma prática educativa marcada por uma dimensão ética em todos os seus aspectos, isto é, não existe cidadania sem ética. O que fundamenta essa afirmação é...

a construção da cidadania se fundamenta em uma educação ética pela própria possibilidade da perfectibilidade humana, isto é, o mundo é transformável, o ser humano é educável e essa utopia tem que ser per-seguida por todos os que acreditam e esperam um mundo melhor, es-pecialmente através da educação.a impossibilidade de existir uma educação voltada para a cidadania, já que a própria escola é um instrumento de reprodução de uma socieda-de que não contempla a ética como condição necessária e fundamental.

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que a educação, a cidadania e a ética são elementos que não se conju-gam pelo simples fato de que a sociedade moderna não tem na ética um pressuposto para seu desenvolvimento, mas a lei da vantagem dos mais bem preparados, mais espertos e mais fortes.que a cidadania se constitui numa condição que já nasce com as pes-soas. Portanto, de pouco adiante querer promover uma educação ética para quem já vem de um ambiente em que os valores apontam para o individualismo, a competição, a ganância e o entredevoramento.que a cidadania e a ética são conceitos excludentes na medida em que a cidadania implica somente aspectos econômicos e políticos. Dentro destas duas dimensões da realidade social não cabe a discussão de questões éticas.

A cidadania exige a aprendizagem da convivência. Para aprender a convi-ver é preciso...

aprender a se relacionar somente com aquelas pessoas que amamos e que estão mais perto de nós.partilhar aquilo que sobra em nossa mesa e distribuir os restos de tudo que não queremos e não precisamos mais.querer bem aqueles que nos amam e isolar a todos os que apresentam diferenças com as quais temos dificuldade em sintonizar. transitar pelo planeta de uma forma mais leve e tranquila, amorosa e cordial, tratando bem a todos e não somente aqueles que mais quere-mos e que também nos amam.só se aprende a conviver se formos fortes e aguerridos, ou seja, como diziam os antigos gregos e latinos, se queres a paz, prepara-te para a guerra. Portanto, a convivência humana só pode resultar dos exercícios de beligerância e de confronto.

O conhecimento religioso é um conhecimento revelado por Deus e se ba-seia na fé. O conhecimento científico é fruto e produto da inteligência hu-

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mana e se baseia na razão. Esses conhecimentos são coincidentes, exclu-dentes ou é possível conciliá-los?

Pela natureza de seu objeto, ambos os conhecimentos – religioso e científico – são completamente excludentes.Ambos os conhecimentos são diferentes. O conhecimento científico tem como tarefa explicar as coisas do mundo material; o conhecimento religioso explica e aponta para a realidade espiritual. Portanto, é per-feitamente possível conciliá-los na vida de um ser humano, na medida em que se referem a dimensões diferentes da existência humana.Conhecimento científico e conhecimento religioso são coincidentes. Isto quer dizer que o que um não consegue explicar, o outro explica; a busca de respostas, ora por um, ora por outro, depende da situação vivida pelos indivíduos e pelos povos.Um cientista nunca poderá ser um homem de fé. A razão está no fato de que o ser religioso acredita nas explicações de fé e um pesquisador só pode seguir os caminhos da razão.A ciência e a religião são conhecimentos coincidentes: quando a ciência chega ao seu limite e não consegue explicar algo, então entra a religião como suas verdades de natureza espiritual e vice-versa.

Em períodos muito remotos da história humana, a natureza era conside-rada um obstáculo intransponível para os seres humanos. Todavia, como o único ser que não recebeu a vida pronta e acabada, eles tiveram queaprender a conviver com a natureza e a transformá-la em coadjuvadora.Por fim, a humanidade foi descobrindo todos os segredos da natureza ea dominá-la inapelavelmente. Ocorre que, por força da atuação sobre omundo, a humanidade passou a agredi-la mortalmente. Essa ação traba-lhosa e predadora fez dela um terreno minado. Como reverter, em tempo,essa ação predatória para que a natureza não se vingue e venha a reagirde forma tão violenta que acabe com as condições da vida humana sobreo planeta?

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Já não há mais tempo. Há um dito popular que afirma o seguinte: Deus perdoa sempre, o homem de vez em quando e a natureza nun-ca. Portanto, a natureza ferida pela ação humana vai acabar com quem a feriu.Toda história humana é cíclica. Houve tempos de grande desenvolvi-mento e depois tudo desapareceu. O processo recomeçou e o mundo se apresenta hoje do jeito como o conhecemos. De sorte que tudo vai e volta ciclicamente, o que nos leva a concluir que não adianta cuidar do planeta diante do processo natural que faz com tudo avance, atinja o seu ápice e depois declina. O que é preciso fazer é viver como se fos-semos os primeiros, os únicos e os últimos habitantes deste planeta.A insanidade humana é tão grande que o ser humano é o único quesuja a água para bebê-la em seguida. Assim, não haverá nada que pos-sa frear a destruição que apresenta suas consequências gravíssimas eevidentes.O trabalho, enquanto humaniza, também traz aspectos desumanizado-res, como a agressão à natureza. Por essa razão, trabalho e cidadanianão se conjugam como possibilidade de humanizar e arrumar o mundode forma mais prazerosa e confortável.Ainda há tempo se a humanidade se conscientizar e se engajar rápidae efetivamente com ações preservadoras e recuperadoras da nature-za. A esperança está, sobretudo, na sensibilidade e na consciência dasnovas gerações que se comprometem em não mais feri-la e tampoucodestruí-la.

É preciso lembrar sempre que nossa grande meta é a construção da uto-pia de um novo homem e de uma nova sociedade. A Filosofia é que leva à grande reflexão e formação de uma consciência crítica que, por sua vez, fundamentam o exercício da cidadania transformadora. Todavia, de onde virão os instrumentos que darão origem a essa grande utopia? Pensamos que, inevitavelmente, a educação terá que assumir o seu espaço político nessa construção por que...

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é a educação o espaço, por excelência, que forma as novas gerações. Portanto, é preciso que ela e os profissionais que nela atuam, deem-se conta da ambiguidade do papel que exercem, e optem por transformá-lo em instrumento de construção de um novo homem e de uma nova sociedade.serão os educadores os profissionais que atuam num espaço ambíguo e que, historicamente, sempre se prestou para reproduzir situações de controle e de dominação e assim haverão de continuar atuando.a educação sempre reproduziu e garantiu os interesses dos grupos pri-vilegiados. Como espelho a refletir e instrumento a reproduzir, é im-possível esperar que ela se contraponha àqueles que a mantém e ope-racionalizam.a educação se constitui num espaço neutro e que nada tem a ver com a construção da cidadania de um povo. Sua tarefa é a de transmitir conhecimentos e, cumprindo com essa tarefa de forma excelente, o seu papel já estará perfeito de acordo com as necessidades de uma socieda-de mecanicista, individualista e excludente.os determinantes dos comportamentos humanos são resultantes de múltiplos fatores, como os hereditários, os familiares, os religiosos etc., de sorte que a educação pouco ou nada pode fazer para que desabroche uma postura de um cidadão.

Em uma sociedade onde os mecanismos de ideologização mantém uma massa passiva e inconsciente, a possibilidade de se garantir a formação da cidadania como condição de construção da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade resulta de um processo educativo que forme ho-mens e mulheres lúcidos, dinâmicos, solidários e comprometidos etica-mente com a construção desta utopia. De acordo com essa perspectiva histórica, são verdadeiras as seguintes afirmações:

I. Permitindo-se que as leis de mercado – da oferta e da procura – dirijamo rumo de uma sociedade para um equilíbrio espontâneo e natural.

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II. Compreendendo-se que a exclusão de uma grande maioria da popula-ção da participação de tudo é muito mais uma questão de culpa e desin-teresse individual do que um processo resultante de uma máquina social.III. Os mecanismos de ideologização atualmente são tão poderosos, sutise sedutores, que é absolutamente impossível preservar nem mesmo umapequena parte da população de seu processo de manipulação e de controle.IV. Pela ampla distribuição de programas de doação de alimentos e di-nheiro para famílias pobres.V. Pela promoção de uma sociedade mais justa e equitativa, especialmen-te, através do acesso à educação que promova uma condição de cidadania,isto é, a consciência do compromisso e engajamento éticos de quem des-perta para a responsabilidade social individual e coletiva.

I e II.II e IV.III e I.I e V.Somente a V.

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Use a sua criatividade e registre aqui as ideias principais presentes no conteúdo estudado, buscando construir uma síntese pessoal sobre o tema.

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ÉTICA ECIDADANIA

Parte 02

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O terceiro tema tratará da construção da cidadania e da formação do cidadão. A ética se apre-senta como a condição fundamental da educação que se constitua num dos principais instrumentos para a realização da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade. O compromisso e engaja-mento éticos resultarão de um processo educativo que desperte as consciências dos educandos para o desafio de se construir um mundo onde haja lugar para todos os habitantes do planeta.

O ponto de partida é a compreensão dos conceitos filosóficos que levem ao entendimen-to do que vem a ser ética e moral. Aos aspectos conceituais seguem-se as condições de formação de cidadãos, seres humanos engajados e com-prometidos eticamente com a integralidade da condição humana individual e coletiva.

Objetivos da AprendizagemAo terminar a leitura e as atividades do Tema 3, você deverá ser capaz de:

conceituar e distinguir ética e moral; despertar a consciência, a sensibilida-

de e a inquietação como condições de compromisso e engajamento éticos;

destacar o processo educativo na formação do cidadão;

apresentar a formação integral do ser humano como condição de reali-zação de um novo homem e de uma nova sociedade.

ÉTICA E EDUCAÇÃO

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3.1 Ética e moral

A meta deste estudo é buscar uma aproximação entre a educação, ética e cidadania. Falar e fazer educação implica pensar e agir eticamente, de acordo com a afirmação de Baptista (2005, p. 9). Na grande obra da construção humana, a educação entra como uma tarefa indispensável, atuando em um mundo e sobre seres marcados por diversidades incontáveis. Diante deste universo de diferenças, de complexidades e de paradoxos, a dimensão valorativa se impõe por se tratar de uma ação de sujeitos sobre o contexto circundante e por se dar em um espaço de vida de educandos e de educadores. As exigências do saber pedagógico como um sa-ber teórico-prático envolvem posturas éticas e morais desde a clarificação das fina-lidades da educação até a sua prática como um compromisso individual e coletivo.

Entre na Internet - Google – e escolha os vídeos do You Tube sobre Ética e Moral. Você encontrará uma sequência de abordagens que servirão de ilus-tração e aprofundamento do tema.

Entretanto, é preciso ter claro que a busca de uma educação marcada por aspectos éticos que levarão à construção da verdadeira cidadania nunca se dará de uma forma absoluta e completa, como já foi dito anteriormente. Estamos sempre tratando da condição humana que, naturalmente, é marcada pela imperfectibi-lidade1 e pela incompletude. Por tudo isso se impõe a ideia de se buscar uma edu-cação em que os aspectos éticos estejam presentes. Contudo, isto sempre se dará de uma forma incompleta e imperfeita. Por isso, haveremos de falar, não na impossibi-lidade absoluta de haver uma educação sem ética, mas de uma busca de aproxima-ção entre ambas. Porém, sabe-se que a justa medida será sujeita a tantas variáveis quantas são as relações humanas; isto quer dizer, serão infinitas as interveniências na construção de uma educação ética. O ideal será sempre algo a ser atingido e nun-ca algo dado de forma acabada e perfeita. Perseguiremos, portanto, os múltiplos

1 A condição humana é sempre imperfeita. Porém, tudo é transformável. Sempre é possível mudar e melhorar qualquer realidade dentro e fora do ser humano.

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caminhos que apontam para uma aproximação entre a educação e a ética, sem po-dermos quantificar os seus limites. Nesta primeira parte do estudo, para explicitar e fundamentar a busca de uma aproximação entre educação e ética como base para a construção da cidadania, partir-se-á da clarificação de alguns conceitos básicos.

Para avançarmos na compreensão da relação entre educação, ética e cida-dania, faz-se necessário clarificar a compreensão dos termos ética e moral. Muitas vezes eles são empregados como sinônimos, o que não vem a ser algo impreciso de todo. Originalmente, ambos os termos se referem às mesmas realidades, ou seja, costumes, modos de ser e de agir. Todavia, diferenciá-las encaminha o entendimento para os seus significados específicos, embora não haja sempre um consenso entre os autores a respeito desta questão. Vasquez (1978) e Imbert (2002) coincidem a este respeito.

Para eles, ética se refere a uma postura reflexiva sobre as questões dos valores; enquanto a moral se refere à expressão normativa resultante deste es-clarecimento. A primeira se refere a questões teóricas e a segunda a questões práticas. Uma, porém, está contida na outra e ambas não se excluem mutua-mente, sendo a ética reflexiva e a moral normativa.

Uma postura ética compreendida como uma reflexão que leva à inter-nalização de valores ultrapassa o formalismo dos códigos morais. Leis morais e jurídicas existem em profusão e não são garantia de uma sociedade marcada por comportamentos éticos efetivos. Um indivíduo poderá se submeter às leis e normas e, contudo, não ser ético. Seu comportamento é adequado somente enquanto estiver ao alcance das normas sociais e morais. Tão logo se vê fora do controle ostensivo de mecanismos eletrônicos ou de autoridades postadas em pontos estratégicos, passa a revelar sua anomia2 comportamental de imediato. Portanto, é preciso que a ética seja a grande iluminadora da moral. Ambas se fazem necessárias. Todavia, a primeira é a luz que impregna comportamentos

2 Anomia é a inexistência de regras, normas ou leis. A atitude que resulta da anomia é de alguém que vive como se para ele não existisse lei alguma.

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efetivamente comprometidos, engajados e movidos por valores profundamente enraizados na construção de um mundo melhor para todos. Será a ética a base da cidadania plenificadora da vida de um povo.

Tanto a reflexão sobre os princípios quanto as normas que os aplicam são importantes para orientar o comportamento humano. Submeter-se a uma norma, simplesmente porque ela é imposta, despersonaliza e massifica. A afirmação de sujeitos livres e autônomos exige uma compreensão ética e o assumir consciente dos ditames de uma lei moral ou jurídica. Somenteuma compreensão ética constrói a capacidade de tomar decisões e de agircom responsabilidade.

Conforme Baptista (2005, p. 23), sensibilidade, prudência, solicitude ou bondade, são marcas de uma ação ética investida e que requerem o exercí-cio pessoal de uma consciência crítica. O exercício ético resulta de uma prática filosófica que desinstala, inquieta e rompe com toda sorte de dogmatismos. A permanente reflexão crítica leva a salvaguardar a liberdade individual e coletiva de submissões escusas e de manipulações indignas. Portanto, ao longo de todo o desenrolar deste trabalho, as expressões ética e moral serão entendidas e apli-cadas de acordo com esta compreensão acima explicitada.

Imbert (2002) analisa as contradições em que está mergulhado o mun-do atual, desde as realidades econômica, política, social, religiosa e cultural. Os conflitos do macrocosmo se refletem no universo do microcosmo individual de cada ser humano. A crise generalizada de valores se reflete em comportamentos desprovidos de qualquer ponto de referência ou marcados por uma rigidez con-troladora em todos os níveis: é o Estado impondo as regras e exercendo o seu controle de forma autoritária, em pseudo-democracias que se perdem no cuida-do dos interesses das minorias privilegiadas; são as famílias que sucumbem a um descompromisso ético de um lado ou, de outro, impondo regras a qualquer custo, na tentativa de não sucumbirem na desestruturação; são as escolas que oscilam entre cobranças desmedidas e a permissividade perigosa, num esfor-ço ingente de manter o controle sobre seus alunos; são indivíduos, de todas as

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idades e de todas as condições, errando sem saberem conduzir as suas vidas, à deriva do não discernimento entre o que é certo e o que é errado.

As mais espetaculares criações da inteligência humana, produtos da ciência e da técnica, se apresentam carregadas de ambiguidades na sua disse-minação e no seu usufruto. Enquanto a humanidade criou possibilidades para resolver virtualmente todos os problemas da terra, a destruição e morte cam-peiam por aí de forma descontrolada e sem medida. Enquanto o potencial do desenvolvimento cresce num ritmo vertiginoso, os seres humanos se apresen-tam cada vez mais estressados, ansiosos, depressivos e infelizes.

Diante de tudo o que se nos apresenta nesta realidade paradoxal, im-põem-se as perguntas: Qual é a raiz destes descaminhos? O que fazer? De onde virão soluções para todos estes graves problemas humanos? Como imaginar e propor uma educação identificada com uma postura ética em um mundo onde a ética não é contemplada como um valor imprescindível?

Sempre é importante se definirem os termos que utilizamos em nossa pro-dução acadêmica. Por exemplo, ética e moral podem ser utilizados como sinônimos. Sua origem etimológica é a mesma, embora uma seja grega e a outra latina. Todavia, assumem uma significação específica em função de um destaque especial que queremos lhes proporcionar quando as diferenciamos. Explicite o que vem a ser a ética e o que compreende a moral, exemplificando o universo dos valores éticos e das normas morais.

Só será possível pensar-se em uma aproximação entre a educação e a ética como base para a construção da cidadania através da busca constante de engajamentos e comprometimentos cada vez mais intensos de todos os cidadãos na construção desta nova realidade. Será através de uma profunda inquietaçãoética que poderá brotar um engajamento individual e coletivo, do qual poderão surgir as soluções desejadas por todos. O dramático seria uma acomodação e o ceticismo desesperançado de que nada é possível fazer. Portanto, é preciso fun-dar a esperança de que o mundo é transformável.

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Pode-se fundar a esperança de que o mundo é transformável na medi-da em que a semente da ética vai sendo plantada. Ela haverá de brotar, nascer, crescer, florescer e produzir os seus frutos, sobretudo nas mentes e nos corações das crianças e dos jovens, seres ainda moldáveis. Na contrapartida de tantos desencantos, evidenciados em toda parte, verifica-se uma quantidade inco-mensurável de seres humanos, homens e mulheres, tomando consciência desta realidade paradoxal, comprometendo-se e engajando-se na construção de um mundo melhor, mais justo e mais solidário. Para Imbert (2002), é a educação que se constitui no espaço e no instrumento, por excelência, de implementação deste engajamento ético.

A compreensão teórica do que vem a ser ética e moral não leva, por si só, a um compromisso ético existencial. Somente uma profunda consciência a respeito da realidade que exige uma postura ética como condição de evolução, movida por uma inquietação que compele os cidadãos ao compromisso efetivo em um engajamento ético é tema sobre o qual refletiremos a seguir.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem), na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem, participação no fórum de discussão, chat e tirando dúvidas de conteúdo.

JOHANN, Jorge Renato. Educação e ética: em busca de uma aproximação. Porto Alegre: EDIPURCRS, 2009. Edição digital, disponível no link www.edipucrs.com.br/educacaoeetica.pdf.

O autor defende a tese de que é preciso aproximar a educação da ética para que se formem cidadãos para uma nova realidade humana, mais justa e equi-tativa. O processo da construção da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade será fruto e produto de um processo simbiosinérgico, em que

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a educação será o principal meio de consecução da utopia de um mundo me-lhor para todos os seres vivos.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 1978.

Um texto clássico de Ética, em que o mexicano Adolfo Sánchez Vázquez abor-da todos os seus aspectos fundamentais: conceitos, valores, aspectos históri-cos, econômicos, políticos, culturais, religiosos etc.

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3.2 O compromisso ético

Na busca de uma aproximação entre a educação, ética e cidadania, servimo--nos mais uma vez dos argumentos de Imbert (2002), que defenderá a ideia de umnecessário engajamento ético3 efetivo na prática educativa como formadorade cidadania. Estes argumentos ultrapassam a afirmação da mera possibilidade deuma aproximação entre a educação e a ética e colocam-na como necessidade inarre-dável ao afirmar que “o engajamento ético leva-nos a enfrentar a questão do sujeito; oreconhecimento de sua essencial singularidade...” (IMBERT, 2002, p. 66).

Imbert (2002) inicia seu questionamento sobre a ética no campo edu-cativo pela distinção entre ética e moral, como já foi destacado anteriormente. Para ele, o engajamento ético difere da simples obediência às regras morais. A moral é composta por leis e normas, tendendo a ser lógica, previsível, repetitiva, calculista, conformista e controladora. Assim, de acordo com a perspectiva moral, a educação tem como objetivo a aquisição de hábitos virtuosos, o que pode ser entendido como treinamento ou condicionamento. Desta forma, é possível que alguém se submeta a uma norma de maneira inconsciente, passiva e acrítica.

Neste sentido, uma escola orientaria pedagogicamente pela regulari-zação e pela moralização da criança, rejeitando o seu modo de ser espontâneo, inquieto e criativo. Deste jeito, esta criança estaria sendo informada e treinada, tal como se condiciona um animal. Portanto, a moral tende a produzir sujeitos passivos e que se submetem às normas. Isto se contrapõe ao verdadeiro senti-do do engajamento, que depende de um comprometimento ético consciente e efetivo. A ética substitui a perspectiva de uma fabricação de hábitos que garan-tem a boa conduta através da conformidade às normas. Esta se expressa pela consciência de si, do seu mundo e do profundo sentido de direção que implica a sua existência. Um ser humano sujeito de sua história se completa no assumir o compromisso que brota de sua inquietude permanente pela realização de suas metas individuais e coletivas. Esta é a base do exercício da cidadania.

O engajamento ético não se caracteriza pelo controle e posse. A ética se constitui num questionamento existencial profundo, permitindo ao ser humano adquirir o discernimento e a capacidade de ter uma perspectiva crítica, sem se

3 Engajamento ético é assumir efetivamente o compromisso com a construção de um mun-do melhor, fundado em valores que, de fato, representem uma realidade melhor para todos os hab-itantes do planeta.

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deixar englobar e massificar. A ética promove uma postura de engajamento, de fundamentação crítica, questionando a ordem e o controle produzidos pela dis-ciplina moral acrítica. O engajamento ético, portanto, resulta de uma profunda consciência dos valores implicados nos atos humanos. Somente esta consciên-cia poderá resultar em um verdadeiro comprometimento com uma postura éti-ca fundamental, constituindo-se na base da formação da cidadania.

Assistir ao filme Derzu Uzalá: uma história encantadora que mostra o profundo sentido de alteridade de um ser humano em condições inimagi-náveis no que diz respeito à necessidade de se pensar no outro.

• Sinopse: Conta a história de um explorador do exército russo, que éresgatado na Sibéria por um caçador asiático, dando início a uma forteamizade. Quando o explorador decide levar o caçador para a cidade, seuscostumes se confrontam de forma esmagadora com o modo de vida bu-rocrático na cidade, fazendo-o questionar diversos padrões da sociedade.Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

É preciso reafirmar que não haverá espontaneísmo4 nesta constru-ção, mas será necessária uma interação entre a educação e a ética, ao longo de todo o processo educativo. Isto quer dizer que todo o processo educativo precisará ser iluminado pela perspectiva ética para se constituir em um pleno processo de humanização, ou seja, de construção da utopia da realidade de um novo homem e de uma nova sociedade.

Assim como Imbert (2002) fala de engajamento ético5, Baptista (2005) usará a expressão compromisso ético para se referir à questão da eticidade da educação. Também esta autora percebe o desafio ético como uma possibilidade de aproximação, diante de uma realidade carregada de ambigui-

4 Espontaneismo diz respeito a algo que acontece ao natural, sem esforço algum.5 Engajamento ético é o assumir o compromisso ético de, através da educação, criar es-paços de formação da cidadania. O engajamento ético é uma exigência que se estende a todos os momentos, espaços e atividades humanas.

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dades e paradoxos. Os educadores precisam se movimentar, em sua prática educativa, administrando possibilidades éticas em um contexto impregnado de moralismos descomprometidos. Muitos educadores se veem condiciona-dos pela obrigatoriedade de se submeterem a normas as mais diversas e, por vezes, de pouca significação. Submetidos assim a contingências não-éticas, acomodam-se em legalismos que pouco ou nada acrescentam ao verdadeiro sentido educativo.

Diante de uma realidade cada vez mais complexa, as exigências que se sobrepõem à prática educativa desgastante aumentam cada vez mais e cobram dos educadores uma preparação contínua e permanente. Baptista (2005, p. 27) chega a chamar a tarefa do professor de profissão de “alto risco e de certo modo uma missão impossível”, tamanha é a sua responsabilidade de construir seres humanos livres, responsáveis, competentes e autônomos.

Esta tarefa não pode ser reduzida a uma mera preparação técnica para um fazer competente, mas implica a construção de seres humanos por inteiro. Segundo a autora, os aspectos éticos se inserem na essência desta construção para garantir o ponto de equilíbrio entre a teoria e a prática, entre a racionalidade e a sensibilidade e outros aspectos que perfazem o humano. Uma mera preparação técnica, baseada mesmo que na excelência de informa-ções, não construiria seres humanos inteiros. Constituir-se-ia em um ensino a reduzir-se em treinamento e ajustamentos de peças para uma grande engre-nagem social.

A responsabilidade social da escola implica uma exigência ética que vai muito além de uma mera explicitação formal em códigos e documentos nor-mativos. A complexificação da vida e do mundo, neste novo milênio, exige uma reflexão aprofundada, um diálogo permanente e uma busca incessante dos ca-minhos nos meandros de uma realidade marcada pela incerteza, por paradoxos desconcertantes e consequentemente por um mar de dúvidas. Somente através de uma reflexão ética comprometida e movida pela sensibilidade dos educado-res é que estes caminhos poderão ser clarificados, fazendo com que a soma de acertos seja maior do que o acúmulo de equívocos e de erros que possam ser cometidos.

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Esta reflexão se faz necessária, porquanto uma postura ética nunca é resul-tado apenas de uma bondade natural das pessoas. Os seres humanos não são naturalmente responsáveis, comprometidos e solidários, no dizer de As-smann (2000, p. 20). Estes são valores que precisam ser semeados e culti-vados incessantemente. Esta aprendizagem ética é tarefa da educação e será fruto de uma decisão consciente, de uma prática reflexiva permanente e que leve a ações efetivas e realizadoras.

Mais uma vez, na tarefa desta iluminação reflexiva entra a educação com uma de suas finalidades primordiais, que é "tornar as pessoas capazes de fazer a sua diferença no tempo, contra a indiferença, a descrença, o pessimismo e a tentação da inocência" (BAPTISTA, 2005, p. 39). É nisto que se constitui o grande compromisso ético da educação, em que se evidencia claramente a ne-cessidade da aproximação entre ambas.

A proposta de Baptista (2005, p. 40) é a de uma ética que possa “sal-vaguardar a possibilidade de futuro "e que ela chama também de" responsabi-lidade prospectiva”. A autora se recusa a aceitar o medo como argumento ético e propõe a crença na força do bem. Será através de um debate criativo e pros-pectivo, exercitando a sua capacidade de sonhar e construir, que a humanidade poderá fazer a diferença, garantindo “o direito à vida, o respeito pela liberdade e dignidade de cada ser ou a recusa de práticas de discriminação e de violência” (BAPTISTA, 2005, p. 41).

À ética cabe dar o sentido de direção e à moral cabe balizar o cami-nho. Cabe à ética a tarefa principal. Porém, a moral não pode ser subestimada na sua função de demarcação concreta para um andar seguro. Esta prospectiva se estribará numa retrospectiva e numa perspectiva do momento presente. O olhar precisará estar sempre voltado para o futuro, como esperança de um so-nho possível. Mas isto só não sucumbirá em um futurismo alienante, se não se perderem a dimensão do que ficou para trás e a compreensão do que se passa no momento presente. Diz Baptista (2005, p. 43), que “o futuro representa a dimensão de alteridade que fecunda qualquer possibilidade de presente”. A ta-

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refa do educador ético é a de dar rosto ao futuro, levando o educando a se situar nas diferentes dimensões do tempo e a assumir o exercício de sua liberdade na construção do novo amanhã.

O compromisso ético resulta da consciência emergente no ser humano de que ele precisa construir uma sociedade onde caibam todos, no dizer de Ass-mann (2000, p. 13). Da consciência de sua incompletude e de sua existência no mundo, que precisa ser ajustado à sua condição humana, fundamenta-se a dimensão ética de seu existir.

Esta tarefa ele não a realizará sozinho. Como diz Freire (2001, p. 36), “ninguém liberta ninguém; ninguém se liberta sozinho; os seres humanos se libertam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Deste compromisso indi-vidual e coletivo, surgem exigências imperiosas, pois transitar coletivamente em um mundo complexo, plural e paradoxal, implica um movimento profunda-mente ético.

Os companheiros de travessia não podem ser percebidos como amea-ça. Suas diferenças precisam ser compreendidas como riqueza e possibilidade. A liberdade, como diz Baptista (2005), não termina com a presença do outro, mas exatamente começa com a entrada do outro no seu mundo de relações. Aqui a educação e a ética se aproximam através da convivência humana como uma das mais importantes questões éticas e que precisam ser equacionadas pela educação.

Assume-se aqui, portanto, o conceito de ética como uma permanente reflexão a respeito dos valores que orientarão a travessia humana. A ética pode-rá se expressar em normas que explicitarão os balizamentos desta caminhada. Porém, sempre serão iluminadas pela criticidade ética6 que impedirá o lega-lismo7 estéril de regras absurdas e sem sentido. Somente a reflexão ética poderá

6 Criticidade ética é refletir e escolher valores que, de fato, levem à construção de um novo homem e de uma nova sociedade.7 Legalismo é a submissão cega às leis. Assim, alguém poderá até cumprir rigorosamente as leis enquanto houver controle externo. Porém, o legalista não internaliza valores para conduzir

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levar ao discernimento do que, de fato, se constitui em valor, apontando para tudo o que acrescenta na construção de um ser humano pleno. Somente uma profunda sensibilidade ética poderá fazer brotar no ser humano comportamen-tos construtivos, gerados pela bondade, pela prudência, solidariedade, justiça, autonomia, liberdade, o que equivale a dizer, a verdadeira cidadania.

Formar um cidadão não será uma tarefa que brote espontaneamente de uma condição meramente individual. A cidadania sempre será resultado de um processo educativo que se inicia desde o princípio da vida de uma pessoa e perdura por toda a trajetória humana. É o que se fundamentará no próximo capítulo.

A realidade que nos é apresentada cotidianamente está repleta de exemplos de práticas éticas e antiéticas, morais, amorais e imorais. Os meios de co-municação veiculam cenas escabrosas de roubos, de falcatruas e obscenida-des repugnantes ao lado de exemplos maravilhosos de comprometimentos e engajamentos éticos. O que faz com que indivíduos, ocupando cargos im-portantes na realidade nacional, comportando-se de maneira indecorosa e até mesmo criminosa e, por outro lado, indivíduos simples do povo, como taxistas e garis, devolvendo dinheiro encontrado em seus espaços de trabalho - expressem comportamentos tão negativos e tão positivos nas mais diversas situações? O que determina a qualidade do comportamento das pessoas?

Buscaremos, daqui para frente, mais argumentos que possam nos aju-dar a clarificar a necessidade de que, diante de uma realidade existencial tão ambivalente, se torne possível a aproximação da educação e da ética como con-dição de formação da cidadania. Já tomamos como fio condutor desta análise, o pensamento da filósofa Hannah Arendt, Francis Imbert, Paulo Freire e Isabel Baptista. Ainda continuaremos nos servindo desses pontos de referência teóri-cos, especialmente os da filósofa alemã Arendt. Mais adiante, serão acrescenta-

corretamente sua vida sem a permanente ameaça de punição.

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dos outros autores para reafirmar esta linha de raciocínio segundo a qual não há cidadania sem educação e ética. Cada um deles será apresentado na medida em que seus pensamentos forem iluminando nossa reflexão.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem na participação do fórum de discussão do tema, na busca de esclarecimentos através do chat e de e-mail.

BACH, J. Marcos. Consciência e Identidade Moral. Petrópolis: Vozes, 1985.

O jesuíta Marcos Bach faz uma reflexão sobre a consciência e a liberdade como condições fundamentais de toda moral e de toda ética, enquanto abor-da os seus múltiplos aspectos: psicológicos, espirituais, sociais, políticos, eco-nômicos, ecológicos, históricos, culturais, sexuais etc.

JOHANN, Jorge Renato. Educação e a Utopia da Esperança: um novo homem e uma nova sociedade. Canoas: ULBRA, 2008.

O autor gaúcho JR Johann apresenta a educação como o grande instrumento de construção da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade, em uma perspectiva de esperança de que o mundo é transformável.

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3.3 A formação do cidadão

A trilha na busca de uma aproximação entre a educação, ética e cidada-nia vai se abrindo à medida que nos aprofundamos na reflexão sobre a realida-de em que os seres humanos se movimentam nos dias atuais. Os paradoxos do mundo em que vivemos e as ambiguidades e contradições comportamentais se revelam constantemente em todos os momentos de nosso cotidiano. Desta per-da de pontos de referência éticos resulta uma perplexidade e uma desorientação generalizadas no que diz respeito a quase todas as ações humanas. A quebra de paradigmas tradicionais não significou uma clarificação ética ao natural. Os va-lores que, no passado, davam segurança para gerir os comportamentos, sofreram profundos questionamentos e resultaram em transformações radicais. Todavia, nada se colocou em seus lugares e o vazio ético se aprofundou de tal maneira que o relativismo lançou as pessoas numa desorientação preocupante. Isto se revela em todos os aspectos da vida: nas práticas econômicas e políticas; nas relações interpessoais; nas expressões da espiritualidade; nos comportamentos afetivos e sexuais; nas relações entre os povos; na relação com a natureza; na veiculação dos conteúdos dos meios de comunicação; na desintegração dos moldes tradicionais de instituições, como a família, e uma legitimação de relações antes consideradas impensadas; enfim, uma verdadeira revolução dos costumes se verifica em todos os setores da vida humana e em todas as partes do mundo.

Isto não quer dizer que a ética deixou de existir. O que se verifica é o surgimento das mais diferentes práticas éticas. Por exemplo, não se pode dizer que uma sociedade capitalista neoliberal8, individualista e excludente, não tem ética. A sua ética é exatamente privilegiar única e exclusivamente o processo de acumulação e de concentração dos bens da terra nas mãos de um grupo cada vez menor dos que detém o poder. Mesmo que a sua justificação seja uma merito-cracia, que não discute as verdadeiras causas de seus aspectos nefastos, é assim que ela se orienta, age e se legitima. Aliás, é preciso dizer que, para este modelo de sociedade capitalista, a exclusão da maioria sequer é considerada algo escan-daloso. De acordo com a sua ética, eliminar o maior número de concorrentes é sinal de competência e é algo que precisa ser destacado e premiado.

8 É o modelo econômico vigente em todo o mundo e cuja base é a livre concorrência e seu objetivo maior é o lucro.

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A cidadania surge da simples bondade das pessoas? Algumas pessoas já nas-cem propensas a se comprometer com o cuidado das outras, assim como os individualistas e descomprometidos são assim por um modo de ser herdado e nada mais é possível fazer? Ou será que cidadania se aprende e o compro-misso e engajamento éticos podem ser produto de um processo educativo e da cópia de modelos positivos?

Diante desta realidade, pensamos sobre a prática educativa como uma força social que tem como finalidade básica a formação de seres humanos e, por conseguinte, de uma sociedade em que todos possam se realizar e ser felizes. Tomamos como pressuposto de que a educação formal – propositadamente não incluímos nesta reflexão a ampliação do conceito de educação para outros espa-ços educativos que não o universo escolar – tem como objetivo a construção de um ser humano e de uma sociedade marcados por valores que os harmonizem sob todos os pontos de vista, superando as contradições, ambivalências e para-doxos do mundo contemporâneo.

Esta afirmação aponta para a aproximação entre a educação e a ética. Po-rém, de imediato, temos que admitir que a própria educação nem sempre se volta para estes objetivos e, contudo, continua sendo uma prática educativa. A educação está inserida no contexto que a realiza e, em princípio, ela o deverá reproduzir. Com esta constatação é que nos lançamos no encalço de caminhos que possibilitem uma busca efetiva de aproximação entre ambas, no encalço da utopia da construção de um novo homem e de uma nova sociedade. Esta se refere a um ser humano e uma sociedade equilibrados, justos, solidários, harmonizados e felizes.

O processo de passagem de uma condição de hominização para uma condição de humanização não se dará de forma espontânea e tampouco instin-tiva. Hominizar refere-se simplesmente ao fato de alguém ter nascido de um homem e de uma mulher. Humanizar quer dizer realizar a construção de um ser humano cada vez mais lúcido, consciente, dinâmico, participativo e fabricante de sua própria existência e de uma realidade coletiva que contemple a inclusão de todos os que o rodeiam. É exatamente nesta passagem da hominização para

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a humanização que se apresentarão os fatores determinantes da educação e da ética como propulsores desta utopia que acalentamos. Vislumbramos assim al-guns caminhos que, buscando aproximar a educação e a ética, poderão ser per-corridos, não como uma receita de bolo, mas como possibilidades efetivas de sua realização e de construção da cidadania.

Destacamos, como primeira pista de aproximação, a perspectiva de Fran-cis Imbert. O caminho apontado por Imbert (2002) para uma aproxima-ção entre educação, ética e cidadania é fazer acontecer a passagem de uma autonomia para uma heteronomia. Ser heterônomo quer dizer assumir o cuidado do outro de tal forma que este se coloca como uma primazia em relação até mesmo ao cuidado de si mesmo. Somente um indivíduo mo-vido por uma profunda inquietude em relação ao outro é que assumirá a prática ética de cuidar do outro. A educação será, por excelência, uma prá-tica ética quando deixar de ser meramente informadora ou moralizadora, isto é, apenas transmissora de informações e normas. Será através de uma prática educativa impregnada de ética que se dará a construção de um ser humano bem formado e, por conseguinte, de uma sociedade que resulte de uma autêntica cidadania de seus componentes.

Para Imbert (2002), a perspectiva ética se apresenta como caminho de enfrentamento de todos os dramas humanos da atualidade. Será através de uma prática da cidadania, mobilizada por uma profunda inquietação ética, que poderão surgir soluções para as graves contradições que afligem a humanidade. Este engajamento ético será promovido pela educação. Engajar-se quer dizer assumir a responsabilidade individual e coletiva na construção de um mundo em que todos os seres humanos possam ter o seu lugar e a sua vez para viverem de forma cada vez mais digna e assim conseguir a felicidade para a qual foram criados. A prática educativa exige o compromisso ético. Com a internalização dos valores9, estes passarão a ser assumidos como compromissos viscerais, en-

9 Internalização de valores é fazer com que eles sejam plantados profundamente em nossa

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raizando-se na estrutura da personalidade formada pelo processo educativo.A busca de aproximação entre educação, ética e cidadania elegeu tam-

bém os pontos de referência apresentados por Arendt (2007) como fio condutor desta reflexão. E é dela que tomamos a segunda pista a orientar o caminho de aproximação entre a educação e a ética. Ela parte do mais primordial dos fenô-menos humanos que é o nascimento de um novo ser. Deste inacabamento, ha-verá de se construir um ser humano inteiro e completo. Este processo de desen-volvimento não poderá se resumir a um simples labor, atividade de provimento da subsistência biológica, nem tampouco através da fabricação, fruto e produto do trabalho humano. A plenificação humana se dará pela ação consciente e lúci-da de seus fazedores de história. Para que desabroche este sujeito de sua própria história, é preciso que a educação assuma o seu papel de estimuladora desta ação temporalizada. O recém-chegado terá que ser acolhido e cuidado com ca-rinho.

Esta é a função da educação, o que implica um profundo engajamento ético. A educação não exclui a atividade do labor e nem do trabalho. O labor, por mais simples e primitivo com que se apresente, mesmo que de forma incipiente, também necessitará de alguma eticidade na sua consecução. Da mesma forma, também o trabalho que, com facilidade, se transforma em mera fabricação, pre-cisa da educação e da ética para que se constitua num processo mais humaniza-do. Mas é na ação e no discurso, de acordo com a conclusão de Arendt (2007), que se plenifica a atividade humana. A ação resulta da postura de um ser sujeito de sua própria história. Este é alguém que pensa, enxerga, ouve, fala e assume na prática cotidiana a tarefa de transformação com a qual se compromete. O discurso, ou seja, a sua palavra proferida o identifica como um ser único e espe-cial, da mesma forma como afirma Paulo Freire.

Na ação e no discurso propostos como o essencial da atividade e da rea-lização humana, Arendt e Freire se aproximam. Em que pese a diferença de suas matrizes teóricas – Freire emerge da perspectiva dialética marxista, enquanto Arendt funda sua teoria nas origens da filosofia grega – podemos alinhar os aspectos teóricos de ambos: para Freire (2003), ser humano é aquele que diz a sua palavra. É pela palavra que ele se identifica e assume o seu significado como sujeito de sua própria história. A palavra é fruto e produto de seu nível de cons-

mente e em nosso coração e, sem que seja necessário o controle externo, haveremos de buscar sempre o melhor para nós próprios e para os que nos rodeiam.

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ciência crítica. Esta consiste na percepção de si e de seu mundo e da ação que ele exerce sobre a sua realidade, ultrapassando a condição de mero objeto, para tornar-se sujeito. Também desta forma temos mais um elemento de aproxima-ção entre educação e ética.

Freire (2003) evidencia que o próprio conceito de educação inclui a dimensão ética. E é baseando-se nele que descrevemos os elementos fundamen-tais constitutivos de um conceito de educação. Para ele, ética e educação se im-bricam visceralmente na grande utopia da criação de um novo homem e uma nova sociedade. Entretanto, é preciso, como diz o autor (2006), cultivar uma esperança histórica. Isto porque teremos que conviver com uma educação que é muito pouco ética. E é na reversão desta realidade que se constitui a tarefa dos educadores. A educação terá que se transformar em uma prática da liberdade. Todavia, esta utopia haverá de se construir gradativamente através de um pro-cesso conscientizador de aproximação. Esta ação de Freire é a mesma de que fala Imbert. Ambos os autores se referem a uma postura como identificadora de um ser humano consciente e dono e senhor de sua própria história.

Apontando outro aspecto importante na busca de aproximação entre educação, ética e cidadania, chamamos a atenção para o quanto cada ser huma-no é fruto e produto de sua própria história. Cada ser humano tem dentro de si, impresso pelas mais diferentes maneiras – seja por uma herança de uma me-mória genética, seja por um inconsciente coletivo, seja por condicionamentos intra-uterinos ou por qualquer outra forma de estruturação de personalidade, a criança que foi e que continua sendo até mesmo na idade adulta. Todavia, é um princípio da educabilidade humana o fato de que não somos prisioneiros de nossa história. Por pior ou por mais grave que tenham sido as condições e as experiências pregressas de qualquer indivíduo, sempre será possível cicatrizar as feridas emocionais, transformar-se e mudar os rumos a serem tomados. De uma situação de profundas marcas negativas impressas na mente e no coração de qualquer ser humano, é possível fazer com que, através da educação, novos valores e direcionamentos sejam aprendidos e assumidos.

Com este pressuposto, não esgotamos a discussão em torno da possibi-lidade de recuperação humana. Há quem afirme que existem situações em que nem a educação mais bem elaborada e exercida poderá modificar seres humanos completamente deteriorados. Contudo, em princípio, afirmamos a educabilida-de humana como pressuposto para, pelo menos, tentarmos realizar a mudança,

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independentemente do quanto atingiremos os objetivos de transformação. Diante da brutalidade que o mundo conheceu no último século e que

continua nos ameaçando cotidianamente até hoje, violências que se apresentam em todos os cantos e que já estão batendo em nossa porta, urge que a educação seja ética e forme cidadãos, enquanto os prepara para suas especificidades téc-nicas. O sentido de alteridade é uma sensibilização que precisa ser aprendida pelas nossas crianças, jovens e educandos de todas as idades. Criar condições que despertem nos seres humanos o sentido de cuidado para com quem está ao nosso lado é tarefa da educação, ou seja, uma tarefa essencialmente ética. Com isso, entendemos que a violência também tem como causa, entre outros tantos determinantes, a falta de uma aprendizagem ética, estabelecendo-se aqui como tarefa educativa essencial.

Assista O Clube do Imperador. O filme trata da formação do caráter do cida-dão, abordando as relações que se estabelecem em uma instituição educati-va tradicional.

Um mundo plural, marcado por diferenças étnicas, religiosas, culturais etc., não pode mais entender as suas diversidades como entraves à sua convi-vência e desenvolvimento. Isto será possível pela emergência de uma nova cons-ciência histórica que brota por parte de todos os indivíduos e povos que se veem na condição de excluídos com relação às possibilidades de superação de sua ex-clusão. Verifica-se, de fato, em todo o mundo, como esse processo viceja através de reuniões em que se discutem os problemas globais, especialmente das comu-nidades mais excluídas, marginalizadas e empobrecidas. Há sinais evidentes de que a busca da equidade social é uma preocupação em todo o mundo, seja pela preocupação com a auto-preservação ou por um sentido de alteridade10 que, de fato, já estaria emergindo nas mentes e nos corações da humanidade como um

10 Sentido de alteridade é a sensibilidade que faz com que nos preocupemos e ocupemos com quem está ao nosso lado. Alter, no latim, quer diz outro. A alteridade é que nos leva a cuidar do outro, seja ele quem for.

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todo. Tem-se, como exemplo, os ventos que varrem o planeta todo no sentido de acolhimento das diferenças como riquezas a serem compartilhadas. Na contra-partida de um mundo que acentua as diferenças por atitudes preconceituosas e discriminatórias, apresenta-se uma reação contundente a toda e qualquer ma-nifestação de preconceitos de qualquer natureza.

Da mesma forma, referimo-nos à ambiguidade antes citada dos meios de comunicação. Estes tanto podem levar para uma massificação alienante e avas-saladora, quanto podem se constituir em instrumentos de disseminação das cul-turas inter-relacionadas, num processo de enriquecimento mútuo e generalizado. Assim, a mídia poderá ocupar um papel preponderante na semeadura de uma alteridade ética. Em vez de se prestar mais para disseminar os valores do indivi-dualismo, da competição predatória, do consumo desenfreado, da banalização e legitimação de toda sorte de contra-valores, poderá assumir o seu papel na edu-cação e formação de homens e mulheres comprometidos com o cuidado do outro.

Assim, os seres humanos haverão de compreender que assumir as ne-cessidades dos outros será condição de vida e de sobrevivência de toda a hu-manidade. Caberá à educação assumir a tarefa importante de disseminação de alteridade ética. Somente um processo educativo comprometido com uma prá-tica ética que impregne o educando destes valores, do princípio ao fim da vida, poderá sensibilizar para a criação de comportamentos de construção da vida. O produto da ação educativa será homens e mulheres livres, responsáveis, compe-tentes e autônomos. Estas características identificam seres humanos marcados e comprometidos com valores éticos. A tarefa educativa não poderá ser redu-zida a uma preparação técnica apenas, mas terá que mobilizar o ser humano por inteiro. Enquanto se verificam as exigências corporativistas impondo pla-nos pedagógicos que excluem qualquer formação humana em favor da exclusiva especificação tecnológica, urge a recuperação da inclusão de um currículo que integre a busca do conhecimento e das habilidades práticas com os valores da convivência e da construção da totalidade do ser humano.

Buscar a aproximação entre a educação, ética e cidadania é condição de garantia de um futuro melhor para o planeta e para toda a humanidade. Os en-traves para esta construção são o imobilismo, o ceticismo e o fatalismo da terra arrasada, ou seja, a crença de que nada é possível fazer. É da educação e da ética que virá o sentido da ação criadora e da moral o direcionamento do caminho a ser percorrido. É esta esperançosa visão de futuro que iluminará a construção

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da utopia de um mundo melhor. Isto só será possível se os protagonistas deste amanhã a ser construído forem temperados eticamente. A formação de um ser humano resultará de uma prática educativa em que todos os valores lhe serão passados como moldes a serem assimilados e por ele incorporados como novas maneiras de ser e de viver.

Diante da questão ética como condição fundamental para a viabiliza-ção de uma condição humana digna e construtiva, há quem assuma uma postu-ra frontalmente marcada pela anomia, há quem declara sua neutralidade ética e há quem assume conscientemente o seu compromisso ético. No capítulo se-guinte, refletiremos sobre a impossibilidade de haver uma realização humana individual e coletiva plenas sem que o desenvolvimento se faça sob todos os aspectos da pluridimensionalidade do desenvolvimento humano.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, objetos de aprendizagem, participação no fórum de discussão do tema, chat e na busca de ajuda através do quadro para tirar dúvidas.

BOFF, Leonardo. Ética da Vida. 2. ed. Brasília: Letraviva, 2000.

A grande questão ética na atualidade não diz mais somente respeito à con-dição humana, mas o que está em jogo é a própria condição da existência humana, ou seja, a vida no planeta. Leonardo Boff reflete e expõe contunden-temente o desafio de cuidarmos do planeta para que ele não se transforme em um planeta cadáver.

___. O Despertar da Águia. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

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As mudanças só poderão acontecer a partir do despertar de todos os seres humanos para o cuidado que precisamos ter para com tudo e todos que nos cercam. Faz-se premente a necessidade de que cada cidadão do planeta assu-ma a sua parte e formemos um coletivo que cuida da própria casa. O tempo urge e a gravidade de uma situação de destruição e de morte se expande rapi-damente. O clamor do planeta ferido se faz ouvir de todas as formas em todos os cantos do mundo.

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3.4 O ser humano integral

Para explicitar mais o sentido da ação educativa na construção da cida-dania, considerando-se que Arendt não estabelece explicitamente esta relação, e ampliar cada vez mais a busca de sua aproximação com a ética, acrescentam--se os argumentos de autores que se alinham, embora cada um a sua maneira, ao seu pensamento. Estes autores reafirmam a tese de uma educação ética e corroboram os argumentos que foram elencados até agora em seu favor.

Reafirmando o pensamento de Arendt (2007), cabe aqui acrescentar o pensamento de Ricoeur (1991), que também se debruça sobre a identidade do sujeito que age e sobre as condições em que esta atuação se constrói. Ele parte do pressuposto de que a ação só poderá ser plenamente compreendida depois que ela se encerra e é narrada. Assim como as indagações de Arendt, suas grandes perguntas sobre a ação humana são: quem é que age e qual é a sua identidade?

Responder às perguntas sobre os autores da ação e suas identidades exige uma reflexão que precisa ir além da identificação de nomes próprios. É preciso compreender todo o processo de construção de suas identidades. A tese fundamental de Ricoeur (1991) é que esta travessia humana se constitui narrati-vamente, isto é, através das leituras históricas e da ficção. Somente dentro desta perspectiva é que ela se situa e poderá ser compreendida.

Assim Ricoeur (1991) estabelece a relação entre educação e narração e apresenta argumentos que fundam a possibilidade de pensar a educação como o processo de construção de uma identidade narrativa. Este enfoque tem se tor-nado cada vez mais atual, na medida em que, na crise de uma perspectiva posi-tivista, impõe-se uma perspectiva crítica cada vez mais localizada, substituindo-se a racionalidade por abordagens de cunho emocional, afetivo e de natureza biográfica. Para ele, a vida humana é essencialmente histórica, concretizada e narrada em tempo e em espaço bem definidos. Esta grande aventura tem como protagonista o ser humano que a expressa em sua biografia e a repensa na for-ma de um relato. A construção da própria identidade humana precisa ser inter-pretada narrativamente.

Nesta perspectiva é que se dá a contribuição de Ricoeur (1991) para a compreensão da ação educativa. O ser humano não pode se compreender di-retamente, mas através de signos que estão fora dele mesmo, como a cultu-

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ra, a religião, a sociedade, a história, a linguagem, os símbolos e os mitos. Seu autoconhecimento, sua auto-compreensão e a consciência de si só podem ser atingidos através dos produtos que ele mesmo cria. Ele se apresenta como um ser eminentemente interpretativo, buscando sua significação através de meios intermediários.

Esta condição de necessidade de interpretação do mundo exige o exer-cício da leitura. É através desta tarefa que será possível descobrir o mundo e saber quem somos. Esta é a principal tarefa da educação narrativa. O ser huma-no vai absorvendo, desde o seu nascimento, toda uma carga de cultura através de todas as instituições pedagógicas encarregadas de transmiti-las, formal e in-formalmente. Resulta que a identidade dos seres humanos, desde a mais tenra infância, é construída narrativamente, ou seja, através das formas de mediação simbólico-narrativas (linguagem, regras de conduta, concepções de mundo, ideologias...) que condicionam seu ser no mundo. Até para transformar esta realidade é preciso conhecê-la. E só se conhece algo que já foi narrado, isto é, interpretado e relatado.

Assim, a educação se constitui na formadora da identidade pessoal através dos textos históricos e de ficção. É isso que faz nascer e se desenvolver o de-sejo de continuar transmitindo aos recém-chegados todas as experiências vividas. É no colo da mãe, ou seja, através da linguagem materna, que se transmitem, simbolicamente, as primeiras lições de vida. É estimulando a imaginação infantil – os conteúdos fictícios – que se desenvolvem adultos criativos no enfrentamento da realidade. É nisto que se constitui a tarefa da educação, como algo eminentemente narrativo. E a infância é a época em que somos educados ouvindo histórias. A infância se caracteriza pelo lúdico e pela compreensão animista do mundo. Resulta que o mundo da criança se consti-tui em um mundo mágico e criativo e tudo pode se transformar em histórias para serem contadas e recontadas.

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Aprender a ser humano é assim como aprender a ler e a narrar em um mundo que percebemos como plural e diverso. A literatura recria, reconstrói a ação e lhe dá um sentido. Para Ricoeur (1991), poetizar é representar de maneira criadora, original e nova o campo da ação humana, estruturando-a ativamente mediante a invenção de uma trama, de um relato. Afirma assim, cada vez mais claramente, o quanto a ação educativa se funda na imaginação e na invenção, como formadora de identidade. A narração remete à vida. Lê-la é um modo de viver. Isto desafiará o leitor a construir o seu próprio texto vital. Isto obriga o ser humano a afastar-se de si mesmo para chegar ao autoconhecimento. Isto é pos-sível através da leitura. O leitor se reconhece através dos personagens fictícios.

Assim, para Ricoeur (1991), é possível refigurar o personagem que somos através da leitura. Escutando relatos e narrações, melhoramos a capa-cidade para compreendermos a nós mesmos e as diferentes etapas de nossas vidas. Assim, a literatura se coloca como um laboratório para experiências de pensamento e de vida. E a educação terá como grande tarefa introduzir os seres humanos na leitura do texto e do mundo em que vivemos.

A aproximação entre a educação e a ética se baseia no próprio con-ceito de ética explicitado por Ricoeur (1991, p. 211), ao falar sobre “a defi-nição da perspectiva ética: é visar à verdadeira vida com e para o outro nas instituições justas”. Uma escola se constituirá em uma instituição educativa à medida que criar as condições para que os educandos se construam como seres solidários, com uma boa autoestima e que possam viver bem com e para os outros.

Cabe também acrescentar, como elemento de reafirmação da tese de aproximação entre a educação e a ética como fundamentos da cidadania, as ideias básicas de Emmanuel Levinas. A razão de mais esse acréscimo se deve ao alinhamento dos pensamentos destes dois filósofos com as ideias de Arendt: assim como Ricouer (1991), Levinas (1988) vai conferir um referencial especial, propondo a formação de um profundo sentido de alteridade para a relação hu-mana. A procura do outro haverá de se constituir no jeito singular de ser da ta-refa de um educador. Este sentido de alteridade, por sua vez, se constitui numa postura ética fundamental e necessária. Educar é ir ao encontro do educando. O fazer de um educador, em que pesem as dificuldades e contradições de sua prática cotidiana, será sempre a construção de seres humanos comprometidos e abertos às necessidades dos outros.

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O contexto do qual emergiu a construção do pensamento de Levinas foram os horrores que se produziram ao longo do século XX. O grande questio-namento que a humanidade moderna se fez foi no sentido de explicar e compre-ender as razões de tamanhas ambiguidades deste tempo de tanto desenvolvi-mento, em todos os sentidos. O mesmo ser que foi capaz de conquistar espaços siderais é o ser que destrói com requintes de barbárie jamais vistos em toda história humana. O mesmo ser que se emociona diante de uma obra de arte é o ser que vai para o trabalho em um campo de concentração.

Estes paradoxos do mundo moderno levaram Levinas a questionar uma pro-posta pedagógica e ética que se fundasse na racionalidade e na autonomia dos seres humanos. Este questionamento o levou a propor uma pedagogia e uma ética baseadas na heteronomia, caracterizando a ação educativa como uma relação de alteridade, de hospitalidade, de acolhida, isto é, um movimento de encontro do recém-chegado, de acordo com as palavras de Arendt (2007). Nesta relação solidária e amorosa, o ser ético se apresenta como uma condi-ção essencial.

Esta é a proposta fundamental de Levinas (1988). Para ele, a autono-mia não será substituída pela heteronomia, mas colocada em segundo lugar. Ser autônomo não é garantia de interpretações, de escolhas e de ações adequadas. A autonomia não pode ser a primeira palavra. A heteronomia aparece como uma resposta à expressão do rosto do outro. Esta relação será marcada profun-damente pela responsabilidade para com o outro. A própria liberdade pessoal cederá espaço ao chamado do outro. Ir ao encontro do outro é exigência que se sobrepõe ao próprio cuidado de si mesmo, como uma responsabilidade que antecede até a liberdade individual. Nisto consiste o sentido de heteronomia. A autonomia só adquire o seu verdadeiro sentido ao se expressar no compromisso da heteronomia.

Levinas (1988) explicita amplamente o conceito de outro e do rosto. É este outro que será a condição de possibilidade da constituição ética do sujeito e da re-

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configuração ética da subjetividade. O rosto é a interioridade, o rastro e a presença viva do outro. O rosto não se vê, se escuta. O rosto não é a face visível, mas a presen-ça mais profunda do outro. O rosto do outro transforma a ação educativa em uma recepção e em resposta a uma chamada sua. O rosto faz da educação responsabili-dade. A ética não começa com uma pergunta, mas como uma resposta à demanda do outro. Isto é o que significa a heteronomia: responsabilidade para com o outro. A responsabilidade é a condição da liberdade, isto é, ela é anterior a todo compro-misso livre. A subjetividade humana se constitui na escuta e na resposta atenta da palavra do outro, uma resposta ao seu apelo e à sua demanda.

A educação será entendida como uma tarefa de hospitalidade. O en-tendimento da pessoa sempre se dará através de sua bagagem histórica. O que leva ao encontro e ao entendimento do outro é a resposta e o cuidado que se tem para com ele. O percurso para se chegar a esta alteridade não é uma mera projeção mental, mas um profundo sentir com o outro. De um eu fechado em si mesmo, chega-se à grande luz da alteridade. Esta grande luz é o rosto do outro. O rosto abre a consciência e atinge o eu, único e próprio. O eu só pode ser aco-lhido pela hospitalidade. A identidade profunda de cada ser humano só pode ser conhecida pela própria revelação. Este rosto se identifica pela palavra que expressa o grande clamor pela vida.

A questão fundamental para a filosofia da educação de Levinas (1988) é a responsabilidade e o cuidado do outro. É o rosto que abre a relação. É através do rosto que se busca o outro e ele se revela. Através da alteridade se apreende o outro. Esta é a primeira tarefa e o primeiro exercício de um professor. O rosto é como o infinito. Pode ser tocado, mas nunca definido. Podemos nos aproximar do rosto, mas jamais açambarcá-lo e apreendê-lo de todo.

O rosto é o contínuo apelo de justiça. É o pedido incessante para que não se deixe o outro morrer. Enquanto o vestígio de Deus é a ordem do bem, a ordem do mal se manifesta através da fome como a marca mais profunda de morte no mundo de hoje. O ser humano não se constitui somente como ser in-dividual, mas fundamentalmente na relação solidária com o outro. É disto que surge e se fundamenta a questão ética. O eu e o rosto precisam estar permanen-temente em diálogo. Nesta condição, processa-se a revelação livre de um para com o outro.

O bem é todo o rosto humano. Educar é fazer com que o outro cresça, melhorando a sua qualidade como ser humano. Uma boa educação desperta

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fundamentalmente a dimensão ética. Para que a educação assim se apresente, é preciso clarear cada vez mais os seus objetivos. Somente tendo-se clareza a respeito dos fins a que a educação se propõe, será possível direcioná-la para a verdadeira construção humana. Sem uma utopia que a oriente, será muito difí-cil fazer com que a educação se constitua em força de plenificação humana. Para Levinas (1988), é preciso que a educação se expresse, cada vez mais, como um exercício da hospitalidade e do cuidado, baseando-se assim na ética da atenção.

Assim como Arendt (2007), a condição humana é refletida por Baptista (2005) na procura de uma construção social realizada através de uma prática educativa que se ilumine pelos princípios éticos. Esta reflexão esbarra num per-manente desafio de conciliação entre os legados culturais que nos advêm dos que nos antecederam e a necessidade de responder eticamente às exigências de um mundo que avança, marcado por diferenças de toda ordem. A complexidade das novas questões que exigem respostas adequadas a um novo tempo carac-terizado pela perda de pontos de referência éticos joga homens e mulheres, de todas as idades, e também os educadores, num mar de dúvidas e incertezas.

De pouco adiantaria assumir-se uma postura saudosista e anacrônica, apelando-se para os supostos valores que vigoraram no passado. São muitos os que afirmam repetidamente que bom e certo era o que se viveu antigamente e que hoje o mundo está perdido. É preciso conciliar os valores que herdamos com as suas necessárias reinterpretações à luz das novas realidades que se apre-sentam. Sem sucumbir em posturas marcadas pelo relativismo, fatalismo ou ceticismo, é preciso reafirmar a certeza de que, o que se apresenta de forma caó-tica e assustadora, também pode representar um momento frutífero, de grandes oportunidades de mudança e de esperançosas transformações.

Mais uma vez, na tarefa desta iluminação, agora na afirmação de Bap-tista (2005, p. 39), entra a educação com uma de suas finalidades primordiais, que é “tornar as pessoas capazes de fazer a sua diferença no tempo, contra a in-diferença, a descrença, o pessimismo e a tentação da inocência”. É nisto que se constitui o compromisso ético da educação, em que se evidencia a necessidade da busca de uma aproximação entre ambas.

A proposta de Baptista (2005, p. 40) é a de uma ética e de uma moral que possam “salvaguardar a possibilidade de futuro "e que ela chama também de" responsabilidade prospectiva”. A autora se recusa a aceitar o medo como argu-mento ético e propõe a crença na força do bem. Será através de um debate cria-

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tivo e prospectivo, exercitando a sua capacidade de sonhar e construir, que a humanidade poderá fazer a diferença, garantindo o “direito à vida, o respeito pela liberdade e dignidade de cada ser ou a recusa de práticas de discriminação e de vio-lência” (BAPTISTA, 2005, p. 41). À ética cabe dar o sentido de direção e à moral cabe balizar o caminho. Cabe à ética a tarefa principal. Porém, a moral não pode ser subestimada na sua função de demarcação concreta para um andar seguro.

Esta prospectiva se estribará numa retrospectiva e numa perspectiva do momento presente. O olhar estará sempre voltado para o futuro, como es-perança de um sonho possível. Mas isto só não sucumbirá em um futurismo alienante, se não se perderem a dimensão do que ficou no passado e a compre-ensão do que se passa no momento presente. Diz Baptista (2005, p. 43), que “o futuro representa a dimensão de alteridade que fecunda qualquer possibilidade de presente”. Estas palavras da autora apontam a ajudam a clarificar a busca de uma aproximação entre educação e ética. O futuro clama por uma realidade construída de acordo com valores que a tornem melhor. E mais uma vez se co-loca a educação como instrumento de construção desta utopia e que ela não se dará como um fato pronto e acabado, mas sempre como uma prospectiva ilumi-nadora a se fazer progressivamente. A tarefa do educador ético é a de dar rosto ao futuro, levando o educando a se situar nas diferentes dimensões do tempo e a assumir o exercício de sua liberdade na construção do novo amanhã.

A aprendizagem da convivência é uma das grandes tarefas da educação para este novo milênio. A partilha dos bens da terra é um dos grandes desafios do futuro imediato. As possibilidades de se construir um mundo bom para todos são sem limites e as riquezas para isso são incomensuráveis. Mas, como isso se fará, se “os seres humanos não são tão naturalmente solidários (Assmann, 2002, p.20)? Esta dimensão ética somente florescerá se for plantada e cultiva-da no coração humano através da educação. Esta tarefa se exercitará desde os pequenos gestos cotidianos entre as crianças em uma sala de aula. Um cidadão adulto, solidário, criativo, perguntante, que saiba conviver com as diferenças, que ainda saiba se indignar diante de tudo o que acontece ao seu redor e que nunca perde a alegria de participar da grande festa da vida, existirá se for plas-mado pela ação educativa.

Este comportamento ético não pode somente se reduzir a uma relação amorosa e cordial com os que estão mais próximos de nós e que são naturalmente os mais queridos. Ser homens e mulheres amorosos em todos os espaços pelos

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quais transitamos é uma exigência ética permanente. Tratar bem a todas as pes-soas em todos os lugares revela uma eticidade essencial e contagiante. E, na con-clusão de Baptista (2005, p. 50), “é preciso instaurar dinâmicas de hospitalidade entre povos e culturas”. Transitar pelo planeta de forma mais leve e tranquilo é uma exigência que se impõe para que se tenha um mundo mais humano. Os gestos de acolhimento, de cuidado e de ternura, precisam se manifestar em todos os momentos e em todos os lugares, sobrepujando as distâncias e as diferenças. Assim, Baptista (2005) se alinha à proposta de Levinas (1988), propondo uma prática educativa como uma ação de hospitalidade e de alteridade.

No mundo em que vivemos, o ser humano está reduzido ao ter. Os valores predominantes são produzir e consumir. Portanto, ter muito dinheiro, ter muitas coisas, ter fama, ter poder, ter... ter... ter...é o que importa! O ser da pessoa não conta mais. Até mesmo a felicidade é reduzida às coisas que con-seguimos amealhar. Será que é possível alguém, de fato, ser feliz somente com a riqueza que conseguiu auferir? Um ser humano se completa somente com bens materiais? Ou será que a felicidade, além da matéria, conta também com a satisfação de outras necessidades? Que necessidades seriam essas que precisam ser satisfeitos para que se tenha um ser humano integral e feliz?

Um dos grandes descaminhos do mundo moderno, apontados por Arendt (2007), se revela no grande desenvolvimento racional, distanciado e desprovido de toda a sua humanidade. O mundo se desenvolveu fantasticamen-te sob os aspectos materiais e tecnológicos e se perdeu no que diz respeito aos mais elementares valores humanos. Ao deslumbramento com o advento da ci-ência e da técnica, sobreveio uma perplexidade aterradora com os seus resulta-dos desconcertantes e destruidores. A sofisticação da parafernália tecnológica não pode esconder a percepção do brilho de um rosto. Este rosto será sempre mais do que uma simples face de alguém com quem entramos em contato, mas a revelação de um sujeito inteiro do qual nos aproximamos. Esta é a proposta de Levinas, preconizando uma ética da alteridade, da proximidade ou do cuidado

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(apud IMBERT, 2002, p. 52). Segundo este autor, é da interação entre as histó-rias humanas, únicas e por vezes misteriosas, que poderá emergir a riqueza de cada indivíduo e de seu respectivo mundo.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, e objetos de aprendizagem, na participação dos fó-runs de discussão do tema, chat e na busca de ajuda para tirar dúvidas.

BAPTISTA, Isabel. Dar rosto ao futuro: a educação como compromisso ético. Porto: Profedições, 2005.

A educadora portuguesa Isabel Baptista reflete sobre a importância e a ne-cessidade de uma impregnação ética em todo o processo educativo para a formação de um cidadão. Somente um mundo que recuperar seus referen-ciais éticos poderá se configurar em rostos plenamente humanos e em uma natureza como terra mãe de todos os seus habitantes.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas, SP: Papirus, 1991.

O filósofo francês Paul Ricoeur se alinha ao pensamento de seu conterrâneo Emmanuel Levinas ao preconizar o profundo sentido de alteridade, expresso no movimento histórico de cada travessia humana, como condição da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade. O cuidado do outro compreen-dido como heteronomia será a base de um mundo melhor para todos.

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A cidadania se constitui fundamentalmente no universo de valores que trans-formam um indivíduo massificado e inconsciente em um ser humano cons-ciente, lúcido, dinâmico e comprometido eticamente com a construção da própria vida e da vida da comunidade em que ele se movimenta. Portanto, cidadão é um fazedor de história e não um mero objeto de controle e de ma-nipulação. Na constituição básica da cidadania surgem a ética e moral como condições fundamentais. A ética se revela como a reflexão em torno dos va-lores que nortearão a prática da cidadania e a moral se apresenta como a normatização dos caminhos a serem percorridos. A ética é reflexiva e a moral é normativa. Ambas são importantes e complementares. Enquanto se pen-sa sobre a adequação dos valores, será preciso codificar os parâmetros valo-rativos para a orientação dos caminhos a serem percorridos pelos cidadãos. O comprometimento com esses valores será fruto de uma inquietação a ser plantada na mente e nos corações de todos. Essa sensibilidade para com os valores éticos e o respeito às normas morais haverão de se iniciar como seme-adura na família e terão na escola um espaço de formação especial. A educa-ção não poderá mais ser restringida a uma mera transmissão de conhecimen-tos e de informações. Será preciso que a educação seja integral, ou seja, o ser humano precisa ser educado em seus múltiplos aspectos de um ser material, biológico, social, intelectual, psicológico e espiritual. Um cidadão, portanto, será um ser humano que revela a integralidade de seu ser e a cidadania será a expressão dos valores assumidos individual e coletivamente, com vistas a um mundo bom para todos.

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Como é possível compreender, de acordo com a distinção que fazemos en-tre os conceitos de ética e de moral, que alguém possa ser um cumpridor das leis morais e, contudo, não ser um sujeito ético?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Como compreender a afirmação de que não existe realização humana completa sem que se construa uma pessoa por inteiro. É possível que al-guém se ocupe apenas com a matéria, descuidando totalmente dos outros lados de sua personalidade, e assim mesmo ser plenamente feliz?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Quais são e como se manifestam os compromissos éticos e morais de um cidadão profundamente engajado na construção de um novo homem e de uma nova sociedade? ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Como é possível fazer com que a educação assuma a sua tarefa de ser um instrumento de transformação social e construção da cidadania que se ex-presse em um novo homem e uma nova sociedade? ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Em uma sociedade mergulhada em profunda crise de valores, onde nin-guém mais tem clareza a respeito do que é certo e do que é errado, onde é que a sociedade busca predominantemente seus modelos para orientar

Verifique no AVA as respostas do exercício.

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a sua vida e suas práticas políticas, econômicas, seus relacionamentos so-ciais, afetivos, sexuais e até mesmo religiosos?

Os grandes modeladores ainda continuam sendo somente os valores propostos pela família. A família ainda continua sendo o grande ponto de referência para a educação da sociedade e, sobretudo as crianças e os jovens, têm em seus pais os únicos modelos que eles copiam e se-guem fielmente.A sociedade como um todo está buscando unicamente na religião, vivi-da de forma séria, comprometida e coerente, os valores que orientam a sua vida. É a força da religião que se constitui ainda no ponto de refe-rência maior para toda a sociedade atual.Há muito que a família e as igrejas deixaram de ser o grande ponto de referência moral. Os indivíduos, sobretudo crianças e jovens, estão buscando fora de casa os seus modelos comportamentais: especial-mente os modelos propostos pelos meios de comunicação, ou seja, os mitos criados pelas novelas, pelos esportes e por toda a mídia escrita e falada.Os principais modeladores da ética e da moral são unicamente os líde-res políticos. Como paradigmas da ética e da moral, são os políticos que apresentam ao povo o que é certo e o que é errado. É assim que se está construindo uma cidadania de futuro e de esperança.O que determina os comportamentos de toda a humanidade são os pa-drões estabelecidos pela ética cristã. É por esta razão que temos um mundo em que predominam de forma completa os valores da solida-riedade, da partilha, da alteridade e da paz em todo o planeta.

Identifique quais comportamentos humanos revelam uma postura de um cidadão, assinalando as assertivas corretas:

I. A competição, a ganância e o individualismo.II. A livre iniciativa e a acumulação de riquezas somente para si.

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III. Somente a busca de vantagens e interesses particulares.IV. O sentido de alteridade, a solidariedade e a justiça.V. Um verdadeiro cidadão é um sujeito que consegue atingir o sucesso pessoal por força de sua esperteza e oportunismo e que sabe tirar proveito de todas as oportunidades, já que os fins justificam qualquer meio para alcançá-los.

II e IV.II e V.Somente a IV.IV e V.I e V.

A fundamentação da ética e da moral está enraizada na própria condição da pluridimensionalidade humana. Isto quer dizer que:

O ser humano precisa se construir somente do ponto de vista biológico e material para ser feliz.A ética e a moral são aspectos da vida de um cidadão que não carecem necessariamente de um desenvolvimento. Um cidadão pode viver bem em sociedade sem sequer se preocupar com qualquer tipo de valor que venha a organizar as suas relações.A ética e a moral dizem respeito exclusivamente à dimensão espiritual dos seres humanos e, portanto, são ditadas pelas diferentes doutrinas religiosas.O processo de humanização só se completa quando um indivíduo de-sabrocha sob os múltiplos aspectos de sua condição humana: é pre-ciso que se desenvolva biologicamente, socialmente, espiritualmente, intelectualmente, materialmente, esteticamente, eticamente, afetiva-mente etc. Sua dimensão ética e moral surge, fundamentalmente, de seu aspecto social. Para conviver, ele precisa organizar as suas relações através de uma pauta de valores que tornam possível a convivência em sociedade, garantindo a liberdade individual e coletiva.

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A pluridimensionalidade humana é uma condição da qual não depende o desenvolvimento individual: é perfeitamente possível ser feliz desen-volvendo apenas um aspecto da condição humana como, por exemplo, enriquecendo apenas materialmente. Riquezas materiais são suficien-tes para fazer alguém plenamente feliz e realizado.

Os conceitos de ética e de moral podem ser tomados como sinônimos, já que sua origem etimológica é a mesma: ethos = comportamento (do grego) e mos = comportamento (do latim). Todavia, dentro de um rigor acadêmico, é pre-ciso distingui-las e conferir-lhes um significado teórico e prático próprios:

Ética se refere às leis, às normas e às regras, expressas em códigos. Enquanto a moral diz respeito à dimensão reflexiva a respeito dos com-portamentos humanos.Ética e moral não se distinguem e não existe a possibilidade de querer conferir-lhes um significado distinto.Distinguir ética e moral se constitui num academicismo desnecessá-rio e inócuo. Esses conceitos não são distinguíveis e é preciso sempre tomá-los como sinônimos.Ética e moral expressam realizações absolutamente distantes uma da outra e querer aproximá-las é impossível por se tratar de temas com-pletamente diversos.Ética se refere à dimensão reflexiva a respeito dos valores humanos e a moral expressa a construção prática das normas, das regras e das leis; por-tanto, cabe à ética refletir criticamente sobre a qualidade da moral que normatiza os comportamentos humanos e modificá-los, se for preciso.

O que se entende por Cidadania e em que ela se relaciona com a Fi-losofia?

Cidadania se refere aos habitantes das zonas urbanas e nada há que se relacione com Filosofia.

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Cidadania é um valor que se refere à garantia dos privilégios dos de-tentores do poder político de uma sociedade e a Filosofia concorre para esclarecer quais são essas vantagens a serem preservadas.Filosofia e Cidadania são abordagens sobre a condição humana que em nada podem se relacionar. Portanto, o filósofo é um sonhador e o cidadão é um político preocupado com suas próprias vantagens indi-viduais.A Filosofia, que aponte para a construção da cidadania como funda-mento de uma sociedade justa e equitativa, constitui-se num pensa-mento e numa proposta utópica e, portanto, irrealizável.Cidadania é um valor que se expressa na garantia dos direitos de todos os componentes de uma sociedade e na exigência do cumprimento dos deveres que concorrem para que haja uma condição de dignidade para todos; e a Filosofia, como reflexão crítica, leva à compreensão do que seja ser um cidadão engajado e comprometido.

Completar a sentença com a resposta correta: Entende-se por Cidadania...

algo que se refere aos habitantes das zonas urbanas e nada há que se relacione com Filosofia.um valor que se refere à garantia dos privilégios dos detentores do po-der político de uma sociedade e a Filosofia concorre para esclarecer quais são essas vantagens a serem preservadas.um valor que se expressa na garantia dos direitos de todos os habitan-tes de uma sociedade e a exigência do cumprimento dos deveres que concorrem para que haja uma condição de dignidade para todos os que compõem esse grupo humano, sendo que a Filosofia, como reflexão crítica, leva à compreensão do que seja um cidadão engajado e com-prometido.o pensamento filosófico que aponte para a construção de um projeto político, como fundamento de uma sociedade justa e equitativa, cons-tituindo-se numa proposta utópica e, portanto, irrealizável.

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algo que trata de questões exclusivamente que dizem respeito à política partidária e, portanto, não há nenhuma relação com o conhecimento filosófico.

A formação humana só se completa por uma construção que desenvol-ve as múltiplas dimensões de seu ser bio-psico-social. Em que medida a cidadania faz parte desta pluridimensionalidade e se constitui em uma condição absolutamente necessária para sua concretização?

Não existe ser humano completo, tampouco um verdadeiro cidadão, sem que sua formação aconteça sob os múltiplos aspectos da forma-ção de sua personalidade. Portanto, um cidadão haverá de se expressar como um ser biológico, social, espiritual, ético, estético, econômico, material etc. Enquanto um dos aspectos não for privilegiado, não tere-mos uma cidadania por inteiro.A cidadania não depende de um desenvolvimento integral do ser hu-mano. Ser cidadão é se preocupar unicamente com os aspectos econô-micos e políticos que concorram com o enriquecimento individualiza-do de cada habitante de um país.É perfeitamente possível desenvolver um ser humano com a hiper-trofia espiritual. Basta ser um sujeito ligado às coisas espirituais, sem que se preocupe com o seu irmão, que seu desenvolvimento já será completo.A cidadania independe do desenvolvimento da pluridimensionalidade humana. Pode-se ser um cidadão que se preocupe somente com seu partido, as eleições e o poder a ser garantido em favor dos correligio-nários.A construção de um ser humano é um processo que pode perfeitamen-te se dar sob uma única direção, ou seja, se um indivíduo é bem suce-dido materialmente ele já pode se dar por satisfeito e plenamente feliz.

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A construção da cidadania implica uma prática educativa marcada por uma dimensão ética em todos os seus aspectos, isto é, não existe cidadania sem uma formação ética. O que fundamenta essa afirmação é:

a construção da cidadania se fundamenta em uma educação ética pela própria possibilidade da perfectibilidade humana, isto é, o mundo é transformável, o ser humano é educável e essa utopia tem que ser per-seguida por todos os que acreditam e esperam um mundo melhor, es-pecialmente através da educação. a impossibilidade de existir uma educação voltada para a cidadania, já que a própria escola é um instrumento de reprodução de uma sociedade que não contempla a ética como condição necessária e fundamental.educação, cidadania e ética são elementos que não se conjugam pelo simples fato de que a sociedade moderna não tem na ética um pressu-posto para seu desenvolvimento, mas a lei da vantagem dos mais bem preparados, mais espertos e mais fortes;a cidadania é uma condição que já nasce com as pessoas. Portanto, de pouco adianta querer promover uma educação ética para quem já vem de um ambiente em que os valores apontam para o individualismo, a competição, a ganância e o entredevoramento; cidadania e ética são conceitos excludentes na medida em que a cida-dania implica somente aspectos econômicos e políticos. Dentro destas duas dimensões da realidade social não cabe a discussão de questões éticas.

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Use a sua criatividade e registre aqui as ideias principais presentes no conteúdo estudado, buscando construir uma síntese pessoal sobre o tema.

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03Tema

O quarto e último tema de Filosofia e Cidadania vislumbra a possibilidade de concre-tização da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade através da utilização de todas as forças de que se compõem o mundo em que vive-mos. Será através do processo educativo que se fundará um mundo em que haja lugar para todos os habitantes do planeta.

O primeiro aspecto a ser abordado é o que fundamenta o exercício da cidadania. O destaque que se apresenta como fio condutor da reflexão aponta para a condição humana que se expressa nas múltiplas atividades de que se compõem o coti-diano das pessoas que é o labor e o trabalho. Essas atividades precisam se constituir em ações cons-cientes, dinâmicas e comprometidas eticamente. Somente assim haverá de se fundar a esperança de que a utopia de um mundo melhor para todos se transformará em realidade concreta.

Objetivos da AprendizagemAo terminar a leitura e as atividades do Tema 4, você deverá ser capaz de:

examinar as condições que haverão de despertar e promover o compro-misso ético do exercício da cidadania;

compreender o significado da ação humana que liberta, humaniza e re-aliza através das múltiplas ativida-des do cotidiano;

explicitar a utopia da esperança de que o mundo é transformável.

AÇÃO EDUCATIVA E CIDADANIA

04Tema

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4.1 O exercício da cidadania

Só será possível a construção da cidadania através da ação educativa. Assim, continuaremos a reflexão tomando como ponto de referência o pensa-mento da filósofa Hannah Arendt. Verificaremos a relação que se estabelece entre a educação e os diferentes momentos da construção humana quando ela se expressa como labor, como trabalho e como ação criadora, aspectos já expli-citados no terceiro capítulo.

A reflexão de Arendt (2007) se inicia com a referência à nova cosmo-visão resultante do início da conquista do universo pelos seres humanos. As viagens espaciais deram à humanidade a certeza de que a terra se tornara muito pequena e de que era preciso se libertar de seus limites. O início foi feito pela conquista do planeta mais próximo. De qualquer sorte, já foi possível olhar a terra de um outro ângulo e se assumir, diante dela, uma nova posição de atu-ação e controle. Além disso, aqui mesmo, neste planeta, o mandado bíblico de dominar a terra, cada vez mais, foi sendo executado à exaustão. A tecnologia se tornou, nas mãos humanas, um potencial inesgotável de ações transformado-ras. Os segredos da terra e do universo, gradativamente, vão sendo desvendados em toda a sua profundidade.

As consequências destas conquistas da humanidade vão assumindo implicações de toda ordem: econômicas, políticas, éticas, educacionais etc. O primeiro aspecto se refere à hegemonia sobre o planeta. Quem chegou primeiro anunciou pretender ser o dono da terra e do céu. Assim, durante décadas, os po-derosos dividiram o mundo entre leste e oeste e se digladiaram perigosamente para afirmar a sua supremacia sob a égide tecnológica, ideológica e econômica. As forças em conflito se polarizaram entre o leste comunista e o oeste capitalis-ta, tendo como protagonistas a Rússia e os Estados Unidos. Até que, por fim, a história caminhou e eles perceberam que, no universo das conquistas espaciais, era melhor se darem as mãos. Isso já representou um avanço na eticidade hu-mana no que diz respeito à hegemonia planetária.

Porém, estas novas relações não significam necessariamente uma so-lidariedade incondicional. As disputas políticas, de forma mais dissimulada, não conseguem esconder a ferocidade latente no jogo do poder entre as nações. E, naturalmente, a questão deixou de ser ideológica para se transformar numa questão de interesses econômicos. O poder está nas mãos de quem determina

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os rumos da economia globalizada1. Para se atingir estes fins, o meio mais eficaz está no poderio tecnológico.

As consequências deste desenvolvimento se apresentam de forma pa-radoxal. De um lado, o mundo conhece um avanço sob todos os pontos de vista. Entretanto, a ambivalência maior se constitui no fato de que emerge um meca-nismo de exclusão a deixar de fora destes benefícios boa parte dos habitantes do planeta.

Como será possível fazer com que o domínio do universo se constitua num benefício para todos os seres humanos? As conquistas de conhecimentos cada vez mais elaborados estão ampliando as possibilidades da vida na terra ou, paradoxalmente, estariam se prestando para o exercício do controle e da dominação de uma minoria sobre a maioria dos seres humanos? Eis as questões éticas que se impõem e exigem uma resposta urgente.

Um dos aspectos do desenvolvimento tecnológico abordado por Arendt (2007), e que se coloca no centro das discussões na atualidade, diz respeito às questões referentes ao domínio da vida no planeta. Pela época em que a autora escreve a sua obra A Condição Humana – 1957 – a referência se resume genericamente às descobertas de seus segredos e a possibilidade de repro-duzi-la artificialmente. Hoje a questão assume proporções de uma realidade concreta, em que a engenharia genética obtém resultados cada vez mais sur-preendentes. O exemplo mais contundente desta conquista genética está na reprodução através de células-tronco e através da clonagem. Junto com estas conquistas, vicejam questões de natureza ética a envolver a humanidade toda. Em que medida estes resultados bem sucedidos se agregarão ao potencial de humanização do planeta? Ao se prosseguir este desenvolvimento tecnológico, qual será o limite e quais serão suas implicações na artificialização da existên-cia humana? Em que medida, para se atingirem os objetivos desejados, todos os meios serão válidos?

1 Economia globalizada se constitui em um mundo sem fronteiras para o poder econômico.

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Já em seu tempo, Arendt (2007) acenava para os riscos de uma tecnologia a serviço da dominação humana, em que o criador poderia ser escravizado pela sua própria criação. Ao se referir à possibilidade de perdas com os avanços tecnológicos, Arendt (2007) aponta para a liberação do homem de tarefas que o subjugam, mas que, por outro lado, poderiam acomodá-lo a ponto de sequer desenvolver o seu pen-samento. Seria o resultado de uma acomodação e superficialidade eticamente inacei-táveis a que os seres humanos se entregariam. Atualmente se fala nos mecanismos da massificação que reduzem um número sem conta de indivíduos a uma massa passiva, disforme e despersonalizada. Todas estas questões se constituem assim num desafio ético e que se relaciona com a educação como possibilidade de minimização de seus resultados indesejáveis e a maximização dos resultados desejáveis e positivos.

A reflexão arendtiana continua com a análise sobre as atividades de que se compõe a condição humana neste planeta. O ser humano se enquadra, na sua ativi-dade – vita activa2 – a três tipos de tarefas: o labor, o trabalho e ação. A diversidade de atuações resulta da pluralidade humana. Cada ser humano é único e irrepetível. Por esta razão, ele atuará de modo especial sobre o contexto em que se movimenta.

Começa pelo fato mais importante de sua existência que se constitui no dado absolutamente original de seu nascimento. O fato de ter vindo e ser um recém-chegado, o põe na condição de fazer história. Esta se fará desde o seu nascimento até a sua morte. A forma como ele haverá de exercer esta sua traves-sia vai ser marcada pelos valores que determinarão as suas escolhas.

Portanto, a sua existência implicará, a cada momento, conteúdos de na-tureza ética. Da qualidade de suas ações resultarão os movimentos mais ou me-nos construtivos, sofrendo sempre as consequências de seu agir. O ser humano, assim, condicionará o seu mundo pelo seu modo de ser e agir e também, na con-trapartida, será condicionado pelo tipo de mundo que ele haverá de engendrar.

O exercício da cidadania se revela em todos os momentos de nossa vida e em todos os espaços de nosso cotidiano. Ser cidadão não se reduz somen-te ao compromisso de homens e mulheres que ocupam cargos de relevância

2 Vita activa quer dizer vida ativa, em latim. Arendt se utiliza da expressão para se referir às diversas atividades que compõem o cotidiano dos seres humanos: o labor, o trabalho e a ação.

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em um país. A cidadania é o cuidado permanente que precisamos ter com tudo e com todos. Em todos os espaços, independentemente das funções que exerçamos, é preciso que os valores que caracterizam o perfil de um cidadão sejam revelados em ações concretas. Desde o nascimento, é mais um cida-dão que veio ao mundo. Ele já chegou como uma infinita possibilidade e com a missão de ser mais alguém para fazer uma travessia individual e coletiva amorosa e enriquecedora. É o que nos propõe para refletir o fio condutor do pensamento político de Hannah Arendt.

A vita activa e a forma como o ser humano venha a exercê-la será fru-to de uma aprendizagem. Portanto, a educação implicará uma dimensão ética a imprimir as suas condições de construção ou de destruição. O ser humano aprenderá a prática do cuidado para com tudo e todos os que o rodeiam.

Sempre de acordo com Arendt (2007), a natalidade se constituirá no valor predominante e não a mortalidade, em que pese ser esta última uma con-tingência de finalização temporal. O fato primordial da natalidade haverá de se apresentar como uma acolhida amorosa. O recém-chegado será recebido com as boas vindas de quem é introduzido num mundo em que ele tudo terá que aprender. Todas as tarefas necessárias para sua sobrevivência lhe serão ensi-nadas para que sua travessia seja feliz e realizadora. Desde o labor até a ação contemplativa serão frutos de sua aprendizagem.

Arendt (2007) chama a atenção para o perigo do ativismo3. A aprendiza-gem da ação humana terá que levar o seu sujeito a uma prática cotidiana equilibra-da entre o agir e o contemplar. Sucumbir em um ativismo desmedido seria uma es-cravização perigosa e desumanizadora. O próprio processo de aprendizagem seria comprometido pela agitação e pelo barulho. O ser humano aprenderá a equilibrar a utilização de todas as suas potencialidades. A ação humana haverá de ser exerci-da pela utilização de suas energias externas e internas. Seu crescimento haverá de acontecer para fora de si e também no seu universo interior. A busca deste equilí-brio fará parte do processo educativo que levará à construção de um ser humano equilibrado e inteiro no que diz respeito à pluralidade de seus potenciais.

3 O ativismo se refere à corrida cotidiana frenética atrás da busca de tudo o que a gente necessita e mesmo do que a gente não precisa, mas acha que não pode deixar de ter... trabalha-se dia e noite para podermos responder aos apelos do consumo que nos são impostos...

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De acordo com Arendt (2007), este processo de crescimento sempre se fará na relação com os outros seres humanos. Ela repete uma afirmação que advém da filosofia grega, de que o homem não existe só. O ser humano é, essencialmente, um ser social. E é desta condição que resulta a dimensão ética do existir humano. O homem é um ser de relações. Estas relações implicarão sempre valores que de-terminam a qualidade desta interação. Tudo o que existe só adquire um significado pela presença humana. E o que determina o ponto de referência desta valoração é a presença de outro ser humano. Somente diante de outro ser humano é que um indivíduo poderá aquilatar a justa medida de sua presença e de seus atos.

Entrar na Internet e acessar o You Tube: escolher vídeos que apresentam ex-periências que evidenciam o exercício da cidadania em todas as partes do mundo, como sinal de esperança de que esse mundo é transformável. Para isso, basta pesquisar com palavras chave (cidadania, ética e cidadania, sus-tentabilidade etc.).

Este universo humano poderá se expressar tanto de modo privado, quanto público. Ambas as dimensões não se excluem, mas se complementam. É preciso que o sujeito tenha preservada a sua individualidade e seu espaço priva-do para que possa se revelar e interagir na esfera pública. Tanto o fechamento em sua privatividade significaria uma asfixia pessoal quanto à exposição perma-nente produziria uma despersonalização neurotizante.

Assim como o espaço vital precisa ser preservado, Arendt (2007) tam-bém se refere à legitimidade da propriedade privada, desde que esta não se cons-titua numa acumulação com um fim em si mesma, às custas do empobrecimento de outros tantos. O espaço privado nunca poderá significar um individualismo egocêntrico, mas a preservação da individualidade autônoma e construtiva.

Até aqui se retomou resumidamente alguns dos aspectos apresentados por Arendt (2007) sobre a condição humana da vita activa. Esta se realiza num universo de atividades cotidianas, desde as mais simples até as mais elaboradas por proces-sos mentais altamente complexos. Evidenciam-se as implicações éticas em todos os

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aspectos da travessia humana e o quanto os valores éticos dependem de uma apren-dizagem. Desta forma, ética e educação precisam se fazer num processo de aproxi-mação permanente para que se atinja uma condição humana cada vez mais plena. Examinar-se-á, daqui para frente, o entrelaçamento e as implicações educativas e éticas destas atividades – labor, trabalho e ação - na busca desta aproximação como condições de desenvolvimento da vita activa e da construção da cidadania.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, nos objetos de aprendizagem, na partici-pação do fórum de discussão do tema, tirando dúvidas por e-mail e no estudo coletivo do chat.

LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, 2007.

O filósofo francês Emmanuel Levinas preconiza o desenvolvimento do profundo sentido de alteridade como o caminho da concretização da utopia de um mundo melhor. Será na descoberta do rosto do outro que as pessoas haverão de estabelecer relações que revelem o compromisso ético da cidadania.

______. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993.

Levinas propõe a precedência da heteronomia ao desenvolvimento da auto-nomia. O que num primeiro momento parece estranho, logo se clarifica pelo pensar o cuidado do outro como o maior ponto de referência para a desco-berta de si mesmo.

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4.2 Ética, labor e trabalho

A vita activa tem, na sua primeira e mais simples forma de realização, a atividade do labor. É a expressão do homo laborans. É através do labutar cotidia-no que o ser humano resolve as questões que dizem respeito à sua sobrevivência. É a eterna repetição cotidiana de tarefas que visa sua sobrevivência biológica. Ele as executa sozinho. Mesmo quando o labor é realizado em conjunto, nada mais é do que uma justaposição de indivíduos que não necessariamente estão relacionados entre si. É uma atividade monótona, sempre igual, inconsciente e extenuante. Tanto é uma atividade primitiva que, na antiguidade, ela era reser-vada aos escravos. Estes trabalhadores braçais sequer eram considerados seres humanos.

Como herdeiros da cultura greco-romana, até hoje, de forma dissimu-lada, existem os trabalhos considerados de grande status – os de natureza inte-lectual – e os trabalhos dos quais os próprios indivíduos têm constrangimento – os de natureza braçal. Consequentemente os primeiros são mais valorizados e os servis são reduzidos a uma condição de indignidade no que diz respeito à sua valorização.

O labor se constitui de tarefas que só são percebidas quando não são realizadas. Quando alguém as repete incansavelmente, dia após dia, por mais que todos delas necessitam para sobreviver, pouco são notadas e muito menos valorizadas. Assim, as pessoas que as executam, aos poucos, vão perdendo o seu encanto por elas e também perdendo a sua própria autoestima, considerando-se indivíduos de menos valor por terem que realizá-las. Diante de outros trabalha-dores considerados nobres por aquilo que executam, estas atividades vão assu-mindo a sua condição subalterna e subserviente. Geralmente estas tarefas não carecem de grande preparo e treinamento. São atividades simples e rotineiras, aprendidas pelo exercício que se inicia na mais tenra idade e se repetirá pelo resto da vida. Não se precisa de estudo para realizá-las, tampouco diploma e, por conseguinte, sua dignificação é ínfima.

Quantos seres humanos gastam as suas vidas envolvidos com a eterna repetição do labor cotidiano?

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Sem terem tido oportunidade para aprender qualquer coisa que lhes desse possibilidades de desabrocharem seus potenciais, acabam repetindo um programa que a vida lhes impôs pelas próprias circunstâncias em que nela entraram. Seus pais foram pessoas simples, envelheceram e morreram na simplicidade e na pobreza de uma vida humilde e laboriosa. Jamais con-quistaram qualquer coisa que não, na melhor das hipóteses, o pão de cada dia. Assim, tampouco, tiveram condições de proporcionar aos filhos algo que os lançasse para uma condição melhor. Assim como vivem, acabam pensando. Convencem-se de que esta condição é predeterminada e, não raramente, passam a acreditar, até mesmo, de que nasceram para sofrer e que tudo isso é vontade de Deus.

A massa de indivíduos que atravessa a sua existência nesta condição laboriosa não é desafiada a qualquer tipo de mudança em suas vidas. Seu ní-vel de consciência será caracterizado por Freire (2002) como marcado pela in-transitividade4. Isto quer dizer que a sua percepção da realidade circundante permanece ingênua, simples, acrítica, imediatista, dogmática e alienada. Este indivíduo simplesmente está no mundo. Nele permanece como um objeto de uso e não como sujeito atuante e transcendente. Seu projeto será sempre o de repetir um programa predeterminado, sem avançar rumo a uma nova realidade. Manter-se-á “como um ser de contatos e não de relações. Está no mundo e não com o mundo” (FREIRE, 2002, p. 30).

Um nível de consciência intransitiva não permite ver, ouvir, sentir, ex-pressar e atuar sobre o mundo. A leitura que ele faz de seu mundo é ingênua. Ele o apreende da forma imediata como este lhe é apresentado. Toma conhe-cimento dos fatos. Porém, não chegará a compreender as razões e os efeitos resultantes. Acaba acolhendo a realidade de forma simples e absorvendo opini-ões como verdades inquestionáveis e de forma dogmática. Assim, permanecerá no fechamento de uma consciência, reduzindo seu existir ao tamanho que ele

4 É um nível de consciência muito pequeno... de quem pouco percebe de seu mundo, das causas e dos efeitos de tudo o que acontece...

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próprio lhe confere em sua simplicidade e ingenuidade. Seu horizonte, portan-to, permanecerá sempre limitado à percepção estreita e limitada a respeito da realidade que o cerca.

A partir desta realidade e destes seres reduzidos à mera condição de objetos é que Freire (1985) pensa e propõe a sua Pedagogia do Oprimido. O que justifica uma pedagogia dos oprimidos é o fato de que a pedagogia sempre foi pensada e proposta pelos dominantes. Interpreta, daí para frente, dialeti-camente, a realidade que se apresenta por relações de dominação. Há os que assumem a condição de opressores e os que acabam se submetendo à condição de oprimidos.

Os mecanismos que caracterizam e que mantém este binômio opres-sores/oprimidos se manifestam de múltiplas maneiras, destacando-se especial-mente a antidialogicidade5. Quem conquista e monopoliza a palavra é aquele que assume o comando da relação e passa a determinar os rumos até mesmo da vida dos que o rodeiam.

Sob este aspecto, retomamos o alinhamento que esta perspectiva assu-me com o pensamento de Arendt (2007), ao propor a ação e o discurso como a essência da vita activa. Nada cria mais condições de opressão do que silenciar alguém. Impeça-se que alguém manifeste o seu pensamento e este haverá de se embotar e se anular como ser humano. O homo laborans é aquele que só labuta e não pensa. Sua condição de vida passa a ser uma condição semelhante à de um animal ou, na linguagem freireana, reduzido a mero objeto.

Do ponto de vista da educação, um indivíduo reduzido à condição do homo laborans é alguém que é excluído do processo educativo.

A quem interessa um povo cuja maioria apenas labuta e se submete passiva e quietamente, sem pensar e sem exigir melhores condições de dignifi-cação para sua existência?

É de se perguntar por que razões o sistema educacional brasileiro ain-da se alinha entre os mais precários e atrasados dentre os povos do mundo?

Há uma escola para ricos e uma escola para pobres. Os abonados têm acesso a uma educação em instituições particulares de excelente qualidade; en-quanto a grande maioria do povo só tem, como opção, uma escola pública suca-teada e de discutível qualidade. Serão estes que estão sendo preparados para as-sumir as atividades subalternas do labor. Os primeiros estão sendo preparados

5 Antidialogicidade refere-se a tudo que se contrapõe ao diálogo... é o antidiálogo.

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para assumir o comando hegemônico da sociedade em escolas caras e de acesso exclusivo para quem pode arcar com os seus custos.

Paradoxalmente, nas escolas de nível universitário, supostamente de-mocráticas em seu acesso, a competição é tão grande que somente os mais bem preparados chegarão a usufruí-la. Resulta que os mais bem preparados sempre serão os que virão das melhores escolas. Portanto, acaba acontecendo que uma sociedade pobre patrocina uma escola gratuita para os privilegiados, sobretudo em nível superior, com o argumento legitimador da meritocracia. Observe-se, por exemplo, se numa universidade pública existe a preocupação de ajustar os horários para que os estudantes possam também trabalhar para se sustentar. As disciplinas são espalhadas nos três turnos, de sorte que é impossível alguém que tenha que trabalhar, tentar concomitantemente levar um curso em escola pública de nível superior.

Assim, de acordo com o pensamento de Freire (1985), os mecanismos de opressão e de dominação se perpetuam através de artifícios plenamente jus-tificados do ponto de vista legal. Entretanto, resta a pergunta: do ponto de vista ético, como justificar os mecanismos de exclusão através dos quais se mantém interminavelmente uma história de privilégios e de reprodução de uma socieda-de marcada por diferenças descomunais?

Verifica-se que é difícil falar da aproximação entre educação e ética quando se tem um sistema educacional em que a clientela proveniente do uni-verso do labor dele não tem acesso. E se consegue ser incluído, sobretudo em níveis básicos do sistema, sucumbem pela necessidade de terem que sobreviver, evadindo-se para o mundo do labor subalterno ou para a exclusão do desem-prego. Assim se repete o círculo vicioso da dominação e da reprodução de uma sociedade excludente. A educação, desprovida de sua necessária eticidade, re-presenta uma oportunidade somente para alguns. Trata-se assim de forma igual os desiguais. Nada mais equivocado e nada mais injusto eticamente do que se desconsiderarem as diferenças.

É preciso se perguntar se, de fato, não existiriam alguns aspectos de natureza educativa e ética na atividade do labor. Em que pesem todas as suas características que o tornam uma atividade primária de sobrevivência, não exis-tiriam alguns valores que lhe confeririam um significado e uma beleza que jus-tificassem a sua execução por parte de um número imenso de seres humanos ao longo de toda a vida? Um labor exercido com amor e dedicação, apesar de

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sua repetitividade e de seu cansaço inerentes, não dignificaria um ser humano de forma muito satisfatória? As atividades de subsistência não precisariam, por mais simples que sejam, de uma aprendizagem prévia e, desta forma, estariam vinculadas aos processos educativos? A realização responsável e dedicada das tarefas do labor não se constituiriam em pressuposto ético extremamente sig-nificativo?

A vida humana se constitui num contínuo e constante laborar. Passamos a maior parte de nossa vida nas atividades cotidianas, ou seja, trabalhando. Toda a atividade humana é necessária e importante quando se constitui numa ação construtiva. Todavia, em nossa sociedade, algumas tarefas foram convencionadas como mais importantes do que as outras. Por uma herança histórica, as tarefas manuais são menos importantes do que a atividade in-telectual. Esse preconceito resulta em consequências significativas e, muitas vezes, nefastas para o convívio social. Quem esgota todas as suas energias em atividades simples não é considerado sob ponto de vista algum. Outros, por terem galgado status profissional de alta especialização, recebem toda a valorização e importância. Será que podemos pensar e, sobretudo, fazer com que tenhamos um mundo mais justo e mais equitativo? Será que é possível promover uma cultura de valorização de toda e qualquer atividade humana, independente do que esteja sendo realizado? Não se trata de uma proposta de nivelamento social absoluto, mas da promoção da justiça social.

Ao respondermos a essas perguntas, podemos afirmar que no labor se apresentam elementos, mesmo que de forma incipiente, que o vinculam às dimensões da educação e da ética. Em primeiro lugar, é certo que, por mais que signifiquem um mero treinamento, nada impede que assumam aspectos educativos ao serem assumidos de forma positiva e dedicada. Mesmo que um ser humano se mantenha por toda a vida na atividade laboriosa, com certeza, poderá haver uma postura de valoração no que se faz, adquirindo assim um sig-nificado de realização e até mesmo de satisfação em executá-la. Percebe-se que,

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portanto, mesmo que em sentido lato, o labor apresenta alguns aspectos que se acrescentam à necessidade de se aproximar educação e ética.

Pode-se afirmar que a educação, para que haja uma aproximação com a ética e resulte na construção da cidadania, não poderá ser reduzida a um sim-ples labor apenas no sentido estrito do termo. É de todo desejável que esta apro-ximação se dê numa ação efetiva. Porém, é possível conferir-se beleza e gran-deza na atividade do labor. Desta forma, também nele acrescentam-se aspectos educativos e éticos. Sendo assim, é preciso avançar na busca de uma atividade humana educativa que, de fato, apresente mais plenamente as possibilidades de uma aproximação entre ambas.

Depois do labor, a atividade humana se expressa através do trabalho. Enquanto o labor está relacionado às questões da sobrevivência e seus resul-tados desaparecem tão rapidamente quanto levam para ser produzidos, o tra-balho se constitui na produção de coisas marcadas pela durabilidade, mesmo que relativa. O homo faber, de acordo com a divisão das atividades humanas elaborada por Arendt (2007), dedica-se à fabricação dos objetos de uso, por ela denominados de artifícios humanos. Através da fabricação, o homem assume o domínio da natureza, criando condições para nela se instalar com mais con-forto. Antes, através do labor, a natureza se apresentava ao homem como uma natura obstans6. Agora, através do trabalho, o ser humano descobre os seus segredos, aprende a conviver com ela e a transforma numa natura coadjuvans7. Assim, diferentemente do labor, a fabricação resulta de um objetivo planejado e de uma finalidade bem definida.

Arendt (2007) apresenta o trabalho através do qual são fabricados os ar-tefatos que, a princípio, são construídos para facilitar a vida humana, como uma atividade que também apresenta ambiguidades de toda ordem. Apresenta, em primeiro lugar, a obsolescência8 dos artefatos construídos. A fabricação se ca-racteriza pela durabilidade dos seus produtos. Entretanto, estes já são planejados para não durarem sempre e, mais do que isso, são planejados para durar, por interesses econômicos, por um tempo bem definido e cada vez mais reduzido.

6 natura obstans: a natureza que se apresenta como obstáculo ao homem, oferecendo-lhe mais dificuldades do que facilidades para sua sobrevivência.7 natura coadjuvans: a natureza se apresenta como coadjuvadora do ser humano, oferecendo-lhe cada vez mais facilidades, fruto da própria atuação do homem sobre ela.8 Obsoleto quer dizer velho, ultrapassado... esse envelhecimento é planejado, com o tempo de durabilidade bem definido...

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Outro aspecto que se verifica no desvio dos fins a que se destinam está o fato de os objetos fabricados assumirem outra significação que não sua origi-nal. Assim, de um instrumento de facilitação, poderão se transformar em uma arma e se voltar contra o próprio homem. Além disso, verifica-se o perigo de que, em vez de os instrumentos se ajustarem ao homem, é o homem que tem que se ajustar às máquinas, submetendo-se ao seu ritmo e ao seu jeito de funcio-nar. A ergonomia9 é um campo de estudos muito recente e recém agora passa a ser uma preocupação no universo do trabalho.

Na contundência dessas ambiguidades, apresentam-se ainda desvios de consequências mais sérias, como a destruição da natureza para se fabricar muito mais objetos de troca do que objetos de uso. Isto se refere ao fato de que os fins justificam todos os meios de fabricação. O único critério que passa a reger o sistema produtivo é sua factibilidade e suas vantagens econômicas. De resto, os fins utilitaristas justificam todos os meios para sua consecução. Resulta que esta mercantilização10 acaba se transformando num processo de acumulação predatória e gerando um consumismo sem limites. O próprio ser humano passa a ser reduzido e avaliado pela sua capacidade de produzir e de consumir.

Esta exacerbação da produção e do consumo11 atinge níveis tão extremados que coloca em risco a própria possibilidade da manutenção da vida sobre o planeta. Este risco que se configura de uma forma cada vez mais real e ameaçadora poderá ser expresso como sendo a natura minans12. A natureza ferida transforma-se num terreno minado. Isto é, um terreno perigoso e que po-derá se voltar contra o ser humano a qualquer momento. As evidências desta re-alidade se apresentam de múltiplas formas. A reação da natureza confirma um dito popular segundo o qual Deus perdoa sempre, os homens de vez em quando e a natureza nunca. Para comprovar isso tudo, estão aí os fenômenos naturais catastróficos dos tsunamis; dos vulcões, entrando em erupção em todas os can-tos do mundo; as secas e as altas temperaturas avassaladoras; as tempestades e baixas temperaturas desumanas, por todos os lados; o aquecimento do planeta e o degelo das calotas polares, fruto de um aquecimento global; as radiações

9 Ergonomia é o estudo das condições em que as máquinas deverão ser ajustadas ao homem...10 Para a ideologia da mercantilismo a única lei que vale é a do lucro resultante de mercado livre e da livre concorrência. 11 Produzir e consumir é necessário para a vida humana. O que é inaceitável é reduzir o próprio ser humano àquilo que ele produz e consome...12 natura minans: a natureza se apresenta como um terreno minado. Ferida pela ação pre-datória do próprio homem, defende-se, reagindo violentamente.

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cósmicas descontroladas, resultantes da poluição que leva à destruição da ca-mada protetora de ozônio etc.

Assista ao filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin: trata-se do último fil-me mudo de Chaplin, que focaliza a vida urbana nos Estados Unidos nos anos 30, imediatamente após a crise de 1929, quando a depressão atingiu toda so-ciedade norte-americana, levando grande parte da população ao desemprego e à fome. A figura central do filme é Carlitos, o personagem clássico de Cha-plin, que ao conseguir emprego numa grande indústria, transforma-se em líder grevista conhecendo uma jovem, por quem se apaixona. O filme focaliza a vida do trabalhador na sociedade industrial caracterizada pela produção com base no sistema de linha de montagem e especialização do trabalho. É uma crítica à “modernidade” e ao capitalismo representado pelo modelo de industrialização, onde o operário é engolido pelo poder do capital e persegui-do por suas ideias “subversivas”.

Outro aspecto que, em função do tempo em que Arendt (2007) ela-borou suas reflexões, foi apenas mencionado sem maior ênfase, diz respeito à substituição do homem pela máquina. Esta realidade hoje se apresenta de for-ma contundente e preocupante. A grande massa de trabalhadores, sobretudo os jovens que recém estão chegando ao mundo do trabalho, dele são excluídos, sem terem o que fazer e onde se integrar como força ativa. O universo do traba-lho deixou de ser um direito de todos os seres humanos, para se transformar em um mercado, com suas exigências e seus mecanismos altamente seletivos. Sem dúvida alguma, um dos grandes problemas e um dos maiores desafios deste novo milênio, é como equacionar o mundo do trabalho, ou seja, o que e como ocupar a imensa massa afluente de seres humanos que precisa se ocupar, ter um trabalho digno e poder, através de sua ação, construir um bom lugar para se viver.

O homo faber revela um elemento de violência e de manipulação da na-tureza, comportando-se como dono e senhor de toda a terra. A fabricação fun-

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ciona segundo a lógica da racionalidade instrumental13, a partir da relação meios/fins. Isto quer dizer que se confundem os meios e os fins e, muitas vezes, os fins, mesmo que discutíveis, justificam os meios para auferi-los.

Assim também funciona a educação orientada pelo paradigma da ra-cionalidade tecnológica, com seus objetivos norteados pela busca incessante do tecnicismo utilitarista. Além do mais, o processo de fabricação é organizado dentro de um planejamento de tempo bem determinado, em que o indivíduo deve ficar educado e formado. O resultado final do processo de fabricação está determinado desde o princípio, de sorte que a identidade deixa de se construir, podendo resultar em sujeitos individualistas, competidores ferozes e para os quais só interessará o sucesso material a qualquer preço. Pela fabricação se re-aliza uma construção humana de acordo com um modelo pedagógico reprodu-tivista de sociedade. De acordo com este modelo, os indivíduos são reduzidos a meros objetos manipulados e manipuladores.

Segundo Bárcena e Mèlich (2000), o drama não radica somente na fa-bricação em si mesma, mas, sobretudo, na sua transferência a todas as esferas da existência humana. Pela generalização da fabricação, o utilitarismo individu-alista é estabelecido como a norma última para o mundo e para todos os homens que nele se movimentam. O mundo da fabricação não tolera a pergunta pela razão da utilidade e não se pode questionar o seu valor de uso. É o predomínio da lógica da razão instrumental, isto é, o melhor e maior resultado, com o míni-mo de custo e de esforço, funcionando através de uma estrutura burocrática. Na educação, a fabricação pedagógica tem como sinônimas a instrução e a rigidez dos currículos.

Diante desta realidade descrita e inspirada nas análises de Arendt (2007), colocam-se as questões da educação e da ética. Voltando aos pressupostos iniciais de que é a educação um dos instrumentos que refletem esta realidade e também a reproduzem, qual é o papel que ela assume neste contexto rela-

13 Racionalidade instrumental diz respeito à lógica do que dá para fazer e dá lucro... é a suprema lei do mundo tecnológico e capitalista... tudo o que é tecnicamente possível e economica-mente interessante é realizado a qualquer custo, mesmo do prejuízo humano e natural.

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cionado ao mundo do trabalho? Quais implicações éticas se ajustam a uma proposta educativa cujos objetivos são determinados pelas exigências de um mundo de produção e de consumo?

É preciso lembrar que o mundo do trabalho que se apresenta na atuali-dade é profundamente marcado pela ideologia que perpassa todos os movimen-tos humanos. Vivemos numa sociedade globalizada e neoliberalizante. Os valo-res que a direcionam são impostos pela ideologia do liberalismo. Esta ideologia precisa ser compreendida para que se busquem caminhos para uma travessia mais humanizadora. Com este objetivo, segue uma análise inspirada no filósofo Antônio Sidekum, que vê uma possibilidade de se realizar esta aproximação en-tre a educação e a ética no mundo do trabalho, como veremos adiante.

O desafio que se impõe, nesta época marcada por profundas e descon-certantes incertezas, é como estabelecer uma relação entre as exigências da éti-ca e os valores sobre os quais se estriba uma sociedade globalizada e neoliberali-zante. Sidekum (2001) investiga a possibilidade de estabelecer esta relação à luz da ética da alteridade de Emmanuel Levinas, procurando responder a pergunta de “como a ética de Levinas rompe com o conceito de totalitarismo cultural, da unidimensionalidade da globalização da economia mundial contemporânea e com o pensamento político único” (SIDEKUM, 2001, p. 166).

Na busca desta resposta, o autor acena para “a emergência de uma consciência ética fundada, na identidade cultural e no pluralismo” (SIDEKUM, 2001, p. 166). Enquanto Levinas apresenta os conceitos de totalidade, alterida-de, infinita responsabilidade ética para com o outro, a globalização traz no seu bojo a marca do individualismo e da acumulação. Como equacionar um binô-mio tão contraditório?

Empresas e instituições internacionais se interligam, possibilitadas pelas redes de computadores e telecomunicações. Esta possibilidade ilimitada produz relações as mais ambíguas na medida que viabilizam a onipresença14 instantânea e, ao mesmo tempo, uma massificação generalizada. Na esteira do processo da globalização econômica vem um caldo de exclusão sem precedentes. Diante disto, na contrapartida, Sidekum (2001, p. 167) acena para “uma nova consciência histórica que emerge nos países e comunidades que se encontram

14 Onipresença é a possibilidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo...

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excluídas”. Da parte do modelo econômico, surge uma evolução para o chamado capitalismo tardio (SIDEKUM, p.183), segundo o qual se apresenta um avanço para um neoliberalismo ocupado com a superação dos conflitos econômicos e ideológicos e na busca de uma equidade social. Este neoliberalismo se manifes-taria nas chamadas Sociais Democracias, como um esforço de superação dos aspectos danosos produzidos pela globalização, considerando “de maneira oti-mista alguns fenômenos emergentes dessa era globalizada” (SIDEKUM, 2001, p. 184). Estes se expressariam pela generalização da riqueza do pluralismo ét-nico e cultural, em que as diferenças e diversidades passam a ser consideradas como ganhos.

Os princípios éticos precisam se inserir na tarefa da minimização dos aspectos nefastos da globalização e na emergência de suas possibilidades cons-trutivas. O autor reforça a importância de se “sustentar o direito de ser diferente, um novo horizonte de respeito aos direitos humanos e dos povos excluídos[...] um encaminhamento do diálogo intercultural [...]” (SIDEKUM, 2001, p. 187-188). Assim, por exemplo, um dos elementos básicos da globalização é que a comunicação de massa se transforme em instrumento, não de massificação alie-nante, mas de relações criativas e humanizadoras entre os povos. A globalização não será mais entendida somente como um fenômeno de natureza econômica, mas como uma infinita possibilidade de estabelecimento de relações, da univer-salidade da cultura e dos valores da dignidade humana (SIDEKUM, 2001, p. 190).

Sidekum (2001, p.168) busca em Emmanuel Levinas a fundamentação da proposta de uma globalização orientada pela alteridade ética. Trata-se do conceito de alteridade como infinita responsabilidade ética do Eu para com Outro. As estruturas injustas do mundo contemporâneo somente serão rompidas atra-vés do reconhecimento da alteridade ética.

O que pode se contrapor aos aspectos excludentes da globalização são exatamente as necessidades do outro. Estas exigências, segundo Levinas (1988), são de dimensões imensas. Este senso de responsabilidade para com o outro diminui a ânsia de poder exacerbado e insere também o profundo sentido de justiça e de verdade. “A relação com o Outro faz a verdade ser possível. Estar em relação com a mestra verdade é emergir na relação social e na relação com o Terceiro, que é justiça” (LEVINAS, apud SIDEKUM, 2001, p. 171). Levinas apresenta a justiça como a interpelação face-a-face com o outro. Nesta inter-pelação ética, que se expressa pela responsabilidade incondicional pelo outro,

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é que se fundam a verdade e a justiça. A partir desta concepção levinasiana de ética como a interpelação do outro é que se impõe a necessidade da criação de paradigmas sociais que contemplem esta exigência. Assim, o lado perverso da globalização poderá ser suplantado pela alteridade ética.

Em todo o mundo se dissemina uma consciência cada vez mais clara de que a globalização da miséria e da exclusão de povos inteiros é algo cada vez mais inadmissível. Generaliza-se o clamor por uma nova ordem social que contemple as condições mínimas de cidadania para todos os habitantes do planeta. Não são mais guetos isolados a sofrer a sua exclusão e escravização de forma silenciosa e ignorada. É uma concepção positiva da globalização que acena para “um novo horizonte de respeito aos direitos humanos e o reconhecimento da alteridade das pessoas e dos povos excluídos” (SIDEKUM, 2001, p. 188).

Esta forma de globalização, apresentada pelo autor citado acima, ace-nando para a esperança de que o mundo é transformável, inclui-se na tarefa que cabe à educação. É a educação que se constitui na prática por excelência, já que molda novos seres humanos desde a mais tenra infância. Transformar as políti-cas e as práticas educativas em paradigmas de inclusão é um dos discursos mais recorrentes em todo o espaço educacional da atualidade. Sempre que uma rea-lidade se exacerba em seus aspectos de perversidade, surgem, na contrapartida, como uma reação natural de sobrevivência, as reservas de energia acumuladas e fundadas no cabedal de eticidade dos indivíduos e dos povos. A capacidade de se indignar e de reagir para que se promovam mudanças em favor de valores efetivamente voltados para o que há de melhor, mantém-se latente e, em tempo, vem à tona.

Assim, verifica-se em todos as partes do mundo, homens e mulheres de todas as raças, religiões e culturas, clamando e se organizando para constru-írem um mundo onde haja lugar para todos. A cultura da paz se fortalece cada vez mais como um antídoto contra a disseminação de conflitos e violências. Um movimento simbiosinérgico15 por um mundo melhor ecoa e se faz sentir em propostas concretas.

O trabalho, dentro deste contexto de realidade, apresenta-se como um produto de mercado. Sua eticidade advirá de sua transformação em um direito de cada cidadão. Cada ser humano tem como vocação construir-se e construir o

15 Simbiosinergia refere-se à soma de todos os tipos de energias para a construção de um mundo melhor...

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seu mundo através de um trabalho que lhe confira condições dignas de existên-cia. O direito ao trabalho assume um sentido de realização humana. O trabalho tem um valor em si mesmo, seja ele qual for. Enquanto o indivíduo trabalha, constrói a si mesmo, fabrica para si e para todos os que o rodeiam. Resulta que a educação e a ética serão elementos-chave para a consecução desta realidade do mundo do trabalho. A educação vai se constituir em preparação para a reali-zação profissional. Porém, um técnico preparado para uma atividade específica não poderá esconder o ser humano que a realizará. Isto implica os valores éticos de que se constituirá toda prática educativa.

Na sequência da reflexão sobre a condição humana, buscar-se-á a com-preensão do que efetivamente pode levar à realização cada vez mais plena na travessia dos seres humanos pelo planeta: somente uma ação consciente os fará construtores de sua própria história e a da história de seu povo.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, nos objetos de aprendizagem, na participação do fórum de discussão do tema, na busca do esclarecimento de dúvidas através de e-mails, do espaço para tirar dúvidas de conteúdo e no chat.

SIDEKUM, Antônio. O traço do outro: globalização e alteridade ética. Fi-losofia Unisinos, São Leopoldo: Unisinos, v. 2, n. 3, dez/2001, p. 165-192.

O filósofo gaucha Antônio Sidekun elabora um artigo, em seu programa de pós-doutoramento, em que contextualiza a importância e a necessidade de se promover a sustentabilidade em uma sociedade globalizada e neoliberal através da promoção da alteridade. Vislumbra assim aspectos positivos nos múltiplos aspectos em que se apresenta o fenômeno da globalização.

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BÁRCENA, Fernando; MÈLICH, Joan-Charles. La educación como acontecimento ético: natalidad, narración y hospitalidad. Barcelona: Pai-dós, 2000.

Os educadores espanhóis Bárcena e Mélich fundamentam a eticidade educa-tiva inspirada nos filósofos Hannah Arend, Paul Ricouer e Emmanuel Levi-nas. Defendem a impossibilidade de haver uma educação sem ética. Somente uma educação impregnada profundamente pela ética poderá ser uma força social para a construção da utopia de um novo homem e de uma nova socie-dade.

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4.3 Vita activa: ética e ação

Das três expressões da vita activa apresentadas por Arendt (2007), é a ação humana a que se refere à atividade mais completa do ser humano. Ela é fruto da pluralidade dos seres humanos e se faz sempre dentro do universo das relações. É na ação, portanto, que se construirá a prática educativa de forma mais ética possível. Desenvolver pessoas, convivendo com as diferenças, cons-tituir-se-á numa tarefa ética por excelência. Somente um profundo sentido de alteridade poderá criar as condições necessárias para que se faça uma educação que atinja plenamente os seus objetivos.

Para Arendt (2007, p. 189), não há vida humana sem ação e sem discurso. Com a palavra e a ação, nos inserimos na existência humana. Atuar significa tomar a iniciativa e começar. Desde o seu nascimento, o ser humano é desafiado a agir. O verdadeiro nascimento comporta fundamentalmente a novidade, a imprevisibilidade e a irreversibilidade. A verdadeira educação é ação quando rompe com o previsível e se abre para a surpresa. Em um nascimento, que ir-rompe como um verdadeiro milagre, com a avassaladora força do imprevisto e do imprevisível, temos a melhor metáfora para um processo educativo ba-seado na ação. Por esta capacidade radical de surpreender e de inovar é que o ser humano se torna um ser insubstituível, único e irrepetível.

A ação, como novidade radical, está ligada ao discurso, fundando o seu caráter revelador. Sem a pergunta proporcionada pela narração, o ser humano seria um robô e a educação um adestramento; é como se o educador fosse re-duzido a um funcionário que nada interroga, que só executa e repete mecani-camente as tarefas que lhe são impostas pelo patrão. A formação narrativa da identidade torna possível que o ser humano descubra o que é e consiga tramar mais ou menos coerentemente o relato de sua existência.

Para Arendt (2007), a educação não é fabricação, mas ação. Para ela, a educação não pode ser entendida como trabalho. A ação educativa é a constru-

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ção do relato de uma identidade, isto é, o relato de uma vida. A ação tem lugar no presente e atesta o caráter não linear da história. Não há previsão na ação porque não se pode prever a sua ruptura histórica. O entrelaçamento do presen-te, do passado e do futuro, numa ordem linear e previsível, só é afirmado pela lógica da fabricação. Nesta lógica, não se admitem o diferente, a ruptura da or-dem estabelecida e o não previsto, o não avaliado e o não controlável. O trabalho funciona de acordo com o logos, ou seja, a evolução pelo controle do processo. Nele, o tempo aparece como uma entidade mensurável quantitativamente.

Acessar a Internet – Google – e pesquisar Trabalho e Ética. Uma sequência de textos e filmes possibilitarão a complementação de seu estudo.

Para Arendt (2003, p. 223), a essência da educação é a natalidade16. Nas-cer é a expressão maior de todo e qualquer começo. O recém-nascido é a mani-festação da mais radical novidade. Todo nascimento interrompe e transtorna a tranquilidade de um mundo mais ou menos organizado, constituindo-se em uma experiência que obriga a pensar e que exige muita capacidade de compreensão. Um recém-nascido é um recém-chegado, isto é, alguém que terá que ser iniciado e introduzido em tudo. Isto implica a ética da hospitalidade e do acolhimento.

Assim como a construção da vida humana se faz através da ação e da palavra, também a prática educativa tem ambas como elementos fundamentais. Agir e se comunicar serão a base para o desabrochar de todo ser humano. Aren-dt (2007) sempre destaca o nascimento biológico como o princípio fundamental e primeiro de tudo que compõe a realidade humana. Nascer, para ela, é a maior novidade que pode existir na face da terra. O fato de termos nascido constitui-se na maior graça que existe. O desabrochar desta vida de um recém-chegado haverá de acontecer na medida em que ele é acolhido e puder se comunicar com o mundo e com todos os demais seres humanos. O ser humano será único

16 Arendt destaca como o acontecimento mais importante de toda a realidade o fato de al-guém ter nascido, ou seja, ter vindo a esse mundo. A palavra chave de toda a filosofia arendtiana é natalidade. Viver é falar e agir.

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e irrepetível ao se manifestar através de sua palavra e de seu discurso. A ação humana precisa ser comunicada, mesmo que o sujeito, com isso, haverá de se expor e desnudar. É preciso correr este risco da exposição, sob pena de que a sua travessia não seja notada e haverá de perder todo o seu significado em função de seu fechamento.

Portanto, todo ser humano se insere na vida mediante a ação e o relato. Todavia, isso não significa que seja o autor único da história de sua própria vida. O relato da vida de um deve ser escrito por outro. Somos os protagonistas da his-tória de nossas vidas. Porém, não somos os únicos autores, mas sim co-autores.

Aqui Arendt (2007) distingue a história real da história fictícia. Na pri-meira, estamos envolvidos visceralmente, enquanto a outra é escrita por relato-res. Para conhecer a verdadeira identidade de alguém, é preciso conhecer a sua biografia, ou seja, saber como ele foi percebido pelos demais. A dificuldade maior deste se dá a conhecer, da revelação da essência do ser humano, de acordo com Arendt (2007), está no risco de que o atingível acabe sendo somente a aparência. Inevitavelmente o conhecimento do ser mais profundo se dará através do relato da multiplicidade das relações cotidianas que configuram a história de cada um. Esta história será sempre narrada por outrem. O sujeito só será conhecido através de sua biografia. Portanto, esta teia de relações contadas pelos outros implicará dimensões valorativas, emergindo o conteúdo ético em todos os seus momentos pelo fato de que este relato sempre expressa a subjetividade de juízos de valor.

Outro aspecto apontado por Arendt (2007) a respeito da ação humana e que assume um significado relevante na busca do desenvolvimento da prática educativa de acordo com princípios éticos refere-se ao determinismo histórico como uma ação coletiva. Mesmo sendo de iniciativa individual, os fatos his-tóricos significativos haverão de repercutir coletivamente, produzindo reações e sendo narrados posteriormente. É a escola, depois da família, o espaço pri-mordial do processo de socialização dos educandos. Ensinar a conviver é tarefa da educação. Esta aprendizagem se constitui numa vivência de natureza ética, com aspectos marcadamente individuais. Porém, não existe realização humana plena somente de forma individualizada. Uma gama significativa de desafios da humanidade exige soluções de ordem coletiva. Portanto, educar e ser educado implicará sempre ações individuais e coletivas.

Outra questão arendtiana relevante trata do poder. O exercício do po-der se vincula à exigência de uma ação e um discurso coerentes. A vontade de

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poder, tanto na sociedade quanto na escola, poderá significar um impulso para a realização de tudo o que for necessário. Porém, se esta vontade perder a di-mensão da justa medida, poderá se exacerbar e cair num totalitarismo violento. O poder sempre será necessário como uma possibilidade de prestação de servi-ços aos outros. Para que assim se mantenha, é preciso que ele se funde na ação e no discurso. Será através do diálogo que se fará o entendimento e o poder será exercido com justiça e equidade.

Este aspecto do poder se abre também para a questão dos limites. A im-posição de limites já foi compreendida como um cerceamento da liberdade. O resultado foi uma queda num relativismo comportamental nefasto, com conse-quências muito negativas para a educação da personalidade de crianças e jovens. Tudo era permitido. Nada se podia contrapor à vontade e desejos infantis e juve-nis. A perda dos valores referenciais para o comportamento de gerações inteiras redundou em insegurança, incerteza e descaminhos de toda ordem. Finalmente, pais e educadores voltam a discutir e a propor os limites como um balizamento indispensável para a construção da personalidade humana. Valores como o res-peito, a disciplina, a obediência aos poderes legítimos de quem tem obrigação de exercê-los, são reafirmados como bases educativas. A ação educativa se ex-pressará também através de um discurso que estabelece, sem falsos pudores, o balizamento dos caminhos a serem percorridos pelos educandos como seres em formação e que necessitam aprender pontos de referência para suas vidas.

A ação e o discurso sempre acontecerão na forma de processo, isto é, num permanente movimento dialético. As ações realizadas terão uma reper-cussão em cadeia e seus efeitos se prolongarão indefinidamente. Diante desta irreversibilidade das ações humanas, acrescenta-se outra questão importante na reflexão sobre a aproximação entre a educação e a ética. Trata-se de como remediar os equívocos cometidos pela ação humana.

Como articular estas ações dentro das práticas educativas para que sejam fundadas por valores éticos?

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Como já vimos anteriormente, Arendt (2007) sugere o perdão como a melhor forma de se fazer a ruptura com os equívocos e dar continuidade para a ação humana. Inspirada textualmente nos princípios evangélicos, apresenta o perdão amoroso como o modelo regenerador das relações humanas. Assim também o exercício do perdão será um conteúdo de aprendizagem e, como tal, tarefa da educação. Por outro lado, diante de equívocos e erros graves, a única forma de regeneração apresentada é a punição. Arendt (2007) admite e propõe a punição como forma de se restabelecer o vínculo com o passado e dar conti-nuidade à ação presente, como uma possibilidade extrema. Resta discutir-se, na prática educativa, em que condições e como se executará a ação punitiva para que seja adequada e justa.

A teoria da educação de Arendt se constitui em uma filosofia da natali-dade. Afirma ela que “a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo” (ARENDT, 2003, p. 223). O que existe de radicalmente novo é o fato de um ser humano chegar a este mundo. A capacidade humana de começar algo completamente novo se manifesta no nascimento.

Isto quer dizer que o ser humano recém-chegado é capaz de ações pro-fundamente inovadoras. Este dinamismo se constitui na ação básica e funda-mental do processo educativo, assumindo uma dimensão essencialmente ética na medida em que ele sempre se dá na relação com os outros homens. Isto é explicitado quando ela afirma que “nenhuma vida humana é possível sem um mundo que testemunhe a presença de outros seres humanos” (ARENDT, 2007, p. 31). Nossa capacidade para atuar coincide assim com a faculdade de começar, de intentar, de tomar uma iniciativa. Aí entra a educação como possibilidade in-finita de um novo começo, de natalidade como o poder sempre aberto à força do que nasce. A educação, norteada por princípios e valores bem definidos e bem claros, precisa ser um permanente exercício de inovação. Um novo cidadão terá na escola, depois do espaço familiar, a instituição cuja finalidade fundamental é introduzi-lo no processo de construção do conhecimento e de socialização.

Cabe à educação a tarefa de imprimir os valores que exigem o compro-misso do cuidado da vida e do planeta em cada recém-chegado e em todos os que por aqui já transitam há mais tempo. A condição humana, portanto, será desenvolvida pela ação educativa. Este compromisso decorre da consciência do fato salientado por Arendt (2007) como primordial e básico em toda ação hu-mana, que é a natalidade e não a mortalidade. Toda a ação humana precisa criar

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condições para que o advento de novos seres humanos se transforme em um acolhimento e em uma saudação de boas vindas. O desencadear desta ação se constituirá no desafiador compromisso ético e educativo, pois é “a ação a ativi-dade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político” (ARENDT, 2007, p. 17). Nascer e construir a vida da melhor forma possível, portanto, haverão de se constituir na tarefa primordial da existência humana. Como o ser humano é o único ser que não recebe esta tarefa pronta, será preciso que ele aprenda a realizá-la.

A condição humana que se aufere ao nascer, sendo a natalidade o fato mais importante e significativo da vida humana, precisa ser ajustada de forma realizadora e feliz. A plenificação da existência humana se dará por uma vida ativa adequada e produtiva. O ser humano precisa ser acolhido na grande festa da vida como quem foi convidado. Para isso seu desabro-char, desde a mais tenra infância até o término de sua travessia, precisa se constituir de uma passagem luminosa e digna. Esse ser humano, sujeito de sua própria história e da história solidária com os que o rodeiam, have-rá de se fazer através de sua ação e de seu discurso. A liberdade será uma conquista que terá o exercício da palavra como expressão maior. Matar alguém é impedir que ele diga a sua palavra. Portanto, a ação humana se plenificará pela consciência com que se faz a inserção no mundo e sua expressão pela palavra reveladora de um ser sujeito.

Em seguida, Arendt (2007) apresenta dois outros valores éticos funda-mentais – a fé e a esperança – como possibilidade de significação da travessia humana, referindo-se explicitamente à sua origem evangélica. Acreditar em si mesmo, isto é, nas potencialidades recebidas para desabrochar a partir do nas-cimento até cumprirem-se os desígnios para os quais viemos a este mundo, é uma postura indispensável para crescermos como seres humanos. Ter um senti-do de infinito, na perspectiva de fé em Deus, nos confere uma significação maior e definitiva para toda a travessia humana. Assim como a esperança permanente

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de que tudo, sempre, poderá dar certo e que, um dia, completaremos nossas realizações no plano infinito de Deus, plenificando a condição humana.

Desta forma, Arendt (2007) confere um significado maior à vida huma-na. Deste testemunho podemos depreender também a função maior da educa-ção como uma prática ética indispensável e necessária. Existirá, por certo, uma educação desprovida destes valores. Entretanto, haverá de se identificar apenas como uma prática laboriosa e trabalhosa, tendo como finalidade o sucesso ma-terial e econômico. Contudo, esta será uma prática educativa que limitará o ser humano à condição da produção e do consumo, enquanto a plenificação huma-na precisa mobilizar todos os aspectos de sua potencialidade de realização. Só assim teremos um ser humano inteiro. Quanto mais seus talentos forem mul-tiplicados, tanto mais haverá de se completar como ser humano, cuja vocação só se plenificará totalmente no infinito, em Deus. Portanto, compreendendo-se a educação como a tarefa de construção de seres humanos cujas possibilidades não precisam se submeter a limitações, ela se constituirá numa prática plena e plenificidadora enquanto for iluminada, cada vez mais, pelas luzes da ética.

No encaminhamento das considerações finais do texto de Filosofia e Cidadania, é preciso apontar para os sinais que fundam a esperança de que os seres humanos e o mundo são transformáveis. Também precisamos vislumbrar possibilidades concretas e caminhos possíveis de serem transitados para que se realize a utopia de um novo homem e de uma nova sociedade.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, nos objetos de aprendizagem, no fórum de discus-são do tema, na busca de esclarecimento de dúvidas e dificuldades através de e-mails e chat.

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BOFF, Leonardo. Ética da vida. 2. ed. Brasília: Letraviva, 2000.

O filósofo, teólogo e antropólogo Leonardo Boff direciona, cada vez mais, suas reflexões para as questões éticas que dizem respeito à integração de todos os habitantes do planeta. A centragem ética não diz mais somente respeito à condição humana, mas à defesa da vida e de todos os meios que a possibili-tam em uma terra (des)cuidada em todos os seus aspectos.

______. Ética e eco-espiritualidade. Campinas: Verus Editora, 2003.

Todos os habitantes do planeta se integram e interagem como uma teia para a preservação da vida. O universo por inteiro vibra em uma sintonia cósmica e é nisso que consiste a dimensão ética que envolve todos os seres criados por Deus e que evoluem indefinidamente.

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4.4 A utopia da esperança

O seu mais leve olhar vai me fazer desabrochar, apesar de eu ter me

fechado como um punho cerrado. Você me abre sempre, pétala por

pétala, como a primavera abre, tocando de leve, misteriosamente, sua

primeira flor (E.E. Cummings).

A esperança que acalentamos e que pretendemos transformar em re-alidade é a de um mundo onde caibam todos, no dizer de Assmann (2000, p. 13). Este será um mundo em que os seres humanos poderão viver em paz. Para isso é preciso, como preconizam os relatores da UNESCO, coordenados por Jacques Delors, em Educação, um Tesouro a Descobrir, ao elencarem os pilares da educa-ção para o século XXI, que a humanidade aprenda a conviver. Entretanto, como continua afirmando Assmann( 2000, p. 20), “os seres humanos não são natu-ralmente tão solidários quanto parecem supor nossos sonhos de uma sociedade justa e fraternal”.

Essa aprendizagem se constitui em uma das grandes tarefas da edu-cação. Como será possível encarar esses desafios da construção de um mundo mais solidário, de mais fraternidade e de mais ternura?

Existir é construir. A aventura humana consiste em fazer-se a cada mo-mento sob múltiplos aspectos. A condição bio-psico-social17 do ser humano exige um desenvolvimento de todos os lados deste mero projeto em que ele, a princípio, se constitui. Enquanto toda a multiplicidade de suas dimensões não for acionada, não existirá um ser completo e feliz. Um ser humano inteiro preci-sa estabelecer uma relação harmoniosa e madura consigo mesmo e com o outro (irmão-mundo-Deus). Eis a grande tarefa histórica de cada caminhante que faz a travessia humana.

A primeira parte desta caminhada é a procura de si mesmo. O homem não é um ser humano apenas porque foi gerado por um homem e por uma mu-lher. Haverá de se hominizar e humanizar na medida em que assumir a sua cons-trução material, física, espiritual, emocional, intelectual e comunitária. A sua per-sonificação e seu amadurecimento se darão através de uma inserção adequada no

17 A integralidade do ser humano se expressa em um ser de múltiplas dimensões e que pre-cisam desabrochar harmoniosamente.

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contexto que o cerca. Ele se fará tanto mais ser humano quanto maior for a sua consciência de si e do seu mundo. A percepção de si implica o autoconhecimento e a aceitação de seu eu e da história passada da qual ele é produto.

A consciência do mundo impõe uma percepção correta da realidade circundante e a ocupação de todos os espaços que lhe cabem como fazedor de história. Uma personalidade madura faz girar o seu eixo bem centrado dentro de si próprio. Seus pontos de referência estão fundados e estabelecidos em va-lores enraizados profundamente em sua mente e em seu coração. Daí resulta a sua autonomia e independência em relação ao universo externo do qual ele se movimenta. Um ser humano amadurecido sabe ser responsável por tudo o que determina o seu comportamento. Ele é muito mais um ator e produtor de tudo o que acontece do que um mero reator, que apenas sofre as consequências. O único ponto de referência fora de si que ele admite como absoluto está na sua transcendência, que o projeta para a dimensão do infinito. A sua fé faz com que ele funde e oriente a travessia na direção de Deus.

Entretanto, é no que diz respeito à busca de si mesmo que o homem moderno tem experimentado mais perdas e frustrações. No dizer do poeta, o homem moderno alcançou os espaços infinitos, mas tem se mostrado incapaz de encontrar a si mesmo. São muitos aspectos que levam a humanidade a es-tar reduzida a uma massa disforme, teleguiada e manipulada. Uma quantidade sem conta de seres humanos é mantida na mais primitiva inconsciência. Sem percepção alguma de sua condição e de sua dignidade – e muito menos de seu contexto – sem rosto e sem voz, não contam para nada e para ninguém. Deser-dados de tudo, são reduzidos a meros tubos digestivos que a tudo consomem passiva e quietamente.

Daí deduz-se que é preciso acordar. É preciso que cada ser assuma a sua condição humana em toda a sua pluridimensionalidade. Isto se resume em seu processo de conscientização. A medida da construção de um ser humano está na medida da evolução de sua consciência. É preciso ultrapassar os níveis de um fechamento total da consciência e de uma consciência emergente, mas ainda ingênua e acomodada, para refletir criticamente a realidade. Isto fará de um indivíduo um ser verdadeiramente humano, dono e senhor de sua própria história. Como tanto insistia em afirmar FREIRE (2001).

Todavia, a construção da vida não se faz de forma isolada. Ninguém se constrói sozinho. Os homens se constroem em comunhão. É esta dimensão

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que se impõe ao homem de forma desafiadora: abrir-se na direção do outro. A razão da existência humana só se completa em um projeto de amorização18. É o amor a si próprio e ao outro (irmão-mundo) que confere um sabor e um sig-nificado maior à travessia humana. Contudo, a caminhada tem se apresentado muitas vezes árida para o homem de nosso tempo. O homem moderno, como em tempo algum antes, tem sentido necessidade de encontrar companheiros. Ansiosamente tem buscado resolver o binômio EU + TU. Mas o que tem encon-trado é um somatório de perdas e muita solidão. Os pensadores existencialistas ateus (Jean Paul Sartre – 1905/1980 – e Albert Camus – 1913/1960) já há muito tempo desistiram de acreditar na possibilidade deste equacionamento. Segundo eles, o ser humano terá que se conformar com uma existência absurda e sem significado. Só e sem razão para existir, resta somente ao homem aguentar até que se consuma o nada – o vazio – para o qual tudo se dirige inexoravelmente.

Assistir ao filme O Ponto de Mutação, do livro homônimo, do físico austríaco Fritjof Capra. A reflexão entre uma cientista, um político e um poeta leva à busca de uma síntese integralizadora da condição humana entre o que é essencial e o que é circunstancial e tran sitório.

Por vezes, diante de tantos desencontros, quase que se impõe esta con-vicção de que é impossível estabelecer relações amorizadas e gratificantes. As relações de amizade são marcadas pelo utilitarismo ou sucumbem ao sem tem-po que caracteriza o cotidiano. As relações entre pais e filhos se constituem em conflitos de toda ordem por causa das diferenças – idades, interesses etc. – que os colocam geralmente em polos antagônicos e opostos. As relações conjugais, que começam com um encantamento sem fim, acabam em incompatibilidades intransponíveis e o consequente esfriamento inapelável. O mundo do trabalho tem se revelado o palco por excelência a expressar os anseios e os conflitos do mundo atual. É nele que a ideologia da máxima produção/consumo se traduz

18 Amorizar não se reduz unicamente a um sentimento, mas a comportamentos eticamente comprometidos com a construção de um novo homem e uma nova sociedade.

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em práticas desintegradoras e neurotizantes. O homem moderno tem estabele-cido o seu ponto de referência fora de si mesmo. O próprio conceito de homem foi reduzido às coisas que ele tem. Diante disto, alguns se neurotizam por não conseguirem o mínimo suficiente para sobreviver e outros porque têm demais e se empanturram de tanto consumir. Afeitos a egoísmos e a entredevoramen-tos, as relações humanas são marcadas pela competição desmedida e por uma ganância sem limites. Assim se constrói um mundo à revelia do homem e quiçá contra ele próprio.

É, sobretudo, no campo da educação que estas relações desumanizadas se refletem e se reproduzem. A escola já recebe a criança marcada e ferida pro-fundamente por um contexto familiar e social desestruturado. Um mundo indi-vidualista e fetichista produz crianças e jovens que consomem vorazmente e que têm dificuldade de repartir. São estas crianças e estes jovens que se constituem no objeto da atuação de uma escola que, por sua vez, também está inserida e é produto deste mundo feroz. Resulta que aí, consequentemente, as relações tam-bém se revelam competitivas, excludentes e autoritárias. Diante de tudo isto, é preciso recuperar a dimensão plenamente humana das relações em todos os espaços em que elas se estabelecem. O que significa isso? Como fazer com que isso aconteça? Em que pontos de referência devemos fundamentar relações que sejam amorizadas, compensadoras e gratificantes?

Com certeza, é na prática educativa que se dever exercitar a construção de um novo homem e de uma nova sociedade. De que homem e de que socie-dade estamos falando? A resposta é a de um homem amoroso e solidário, cujo compromisso maior será seu engajamento na construção de um mundo bom para todos. Vivemos em uma época em que se exacerbam as diferenças, em que os paradoxos se tornam cada vez mais contundentes e as possibilidades de vida e de morte atingem um potencial cotidiano avassalador. É preciso que rapida-mente se assumam posturas em favor da vida, do próprio homem e de todo o planeta. De novo perguntamos: será que a escola, depois de tantos clamores e de tantas lutas pela liberdade, está assumindo o seu papel na construção desta utopia? Especialmente nas escolas que formam os futuros profissionais da edu-cação, será que as práticas pedagógicas são coerentes com este conceito de um novo homem e de uma nova sociedade?

Antes de tudo, é preciso acreditar na infinita possibilidade de trans-formação do homem e do mundo. Diante de tudo o que as circunstâncias atu-

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ais nos apresentam, está muito difícil manter os olhos iluminados. É natural que, diante de tantos desencantos, sobrevenha a tristeza e a desconfiança. Entretanto, é preciso construir dentro de si muito mais do que um simples otimismo. Ser otimista é fácil quando o céu é de brigadeiro e o voo é tranquilo. Diante da tempestade, porém, o medo e a insegurança serão resultantes inevi-táveis. Mas é exatamente aí que é preciso manter acesa a esperança, fundada na certeza tranquila de que, por mais grave e difícil que seja o momento pelo qual se estiver passando, a seu tempo, tudo se resolve. Para tudo existe um jeito. Todos os problemas têm solução. Depois da escuridão mais profunda, sempre surge a luz.

Esta postura positiva e decisória frente à vida e frente ao mundo precisa se manifestar em pensamentos, palavras e comportamentos. Revela--se, através dela, uma personalidade bem construída e bem fundada. Toda a construção da personalidade humana se inicia ainda no ventre materno. Mesmo na barriga da mãe, a criança está gravando tudo o que se passa com ela. É como se fosse a memória de um computador, onde se registra uma quantidade infinita de informações, ou como se fosse uma terra preparada para o plantio. É da qualidade das informações que resultarão os bons pro-gramas. De uma boa semente é que se terá uma boa colheita. Assim, é preciso que o conteúdo mental seja da melhor qualidade. É preciso que nossa mente seja repleta de pensamentos de boa qualidade. Sempre que um pensamento negativo de qualquer natureza – fracasso, doença, carência, rancor, ódio, maledicência etc. – tentarem se alojar em nossa mente, é preciso substituí--los imediatamente por pensamentos construtivos, de vida, de saúde, de su-cesso, de amor e de paz.

Cada personalidade humana é resultado do tipo de programas ou de semen-tes de que se nutre o seu mundo interior. Os pensamentos plasmam a rea-lidade do sujeito. Na medida em que se alojam e se enraízam na mente, se transformam em energia que impulsiona ou trava qualquer avanço. Daí que este conteúdo precisa ser o melhor possível. Cada pessoa é aquilo que pensa e, na sua vida, vai até onde acredita que pode ir. Este pensamento positivo

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não se confunde com alienação, inconsequência, simplismo ou fuga. É preci-so se nutrir de uma energia mental positiva, não porque se nega ou se subes-tima a seriedade e a gravidade das situações a serem enfrentadas, mas pela consciência que se tem do tamanho do enfrentamento. É porque os desafios precisam ser encarados que a estrutura interna precisa ser reforçada.

A consciência crítica não pode ser confundida com uma postura ran-çosa e desesperançada. A autêntica criticidade19 histórica se expressa sempre numa postura positiva e esperançosa frente à vida. Isso tudo precisa se revelar em palavras que reflitam um interior iluminado e rico. As palavras são carre-gadas de energia e têm poder de criar a realidade. Tudo o que se profere com emoção, acaba se concretizando. As palavras mobilizam as energias internas. Daí que, onde quer que elas sejam reveladas, precisam sempre ser a expressão de energias que constroem. A resultante será comportamentos que manifestam personalidades bem plantadas e que, onde estas se movimentarem, haverão de plasmar um mundo bom para se viver.

Uma pessoa bem centrada, harmonizada e feliz, estabelece relações gratificantes, compensadoras e duradouras. Antes de tudo, ela entra em comu-nicação, compartilha e torna-se comum com outra pessoa inteira, sem defini-la ou congelá-la com preconceitos rígidos e imutáveis. Aproxima-se dela com a mente e o coração desarmados, movido pelo senso de descoberta, de escuta e de acolhimento. Se ficar longe demais, a partilha se inviabiliza. Se dela se apro-ximar demais, corre o risco de asfixiá-la, invadindo perigosamente o espaço da outra e nutrindo o seu ser mais às custas do seu ser menos. A verdadeira comu-nicação se dá na tangência ou intersecção de espaços de vida e de caminhada. Contudo, jamais duas individualidades deixarão de partilhar de forma autôno-ma e livre.

Estas relações humanizadoras haverão de se nutrir de estímulos da me-lhor qualidade. Toda relação positiva e duradoura precisa ser alimentada para que se mantenha e aumente a frequência da resposta desejada. Do contrário, comportamentos que não são estimulados acabam se extinguindo. Nenhum com-portamento ou relação se mantém se não houver estímulo, se os estímulos forem

19 Criticidade é um nível de consciência que leva o ser humano a ter uma real percepção de si e de seu mundo e atuar sobre ambos de forma simbiosinérgica.

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reduzidos demais ou se eles forem somente negativos. Por exemplo, se determi-nada tarefa nunca é valorizada, mas só é notada quando não é feita, a pessoa que a realiza não manterá por muito tempo a sua execução em nível desejável. Carecerá de estímulos para isso. Os estímulos aversivos da cobrança, da crítica e da puni-ção até podem produzir respostas positivas. Entretanto, seus efeitos serão limita-dos ao tempo em que estiverem sendo dados. Dificilmente serão internalizados e transformados em comportamentos positivos e permanentes.

Entrementes, são estes estímulos negativos que predominam em nos-sas relações e em nossa educação. Desde muito cedo, os comportamentos das crianças são estimulados por um grande não. As expressões que se repetem con-tínua e constantemente são: Você não pode isso... Você não pode aquilo! Desse jeito, você nunca será nada na vida!... E assim se sucedem e se enraízam na mente da criança expressões que a condicionam de uma forma profundamente negativa. O estudo é (des)motivado pelo medo da nota baixa e de não ser aprovado no final do ano. Amam-se os pais por medo de perdê-los e se sujeitam a eles por medo do castigo. As leis são obedecidas por medo das multas e da prisão. As-sim se evidencia um baixo nível de consciência de um povo que só age adequa-damente pelo tacão que o pune. Do contrário, comporta-se de forma inconse-quente, imatura e irresponsável. As relações afetivas nascem e crescem regadas com uma super estimulação. Depois fenecem pela ausência total de qualquer estímulo que as possa manter. Quando algum estímulo é acionado, será sempre para magoar e ferir. As relações de trabalho se mantêm pela cobrança, por con-troles aversivos e se nutrem dos estímulos negativos da competição fratricida e da exploração. É assim que o homem moderno se depara com um mundo que muitas vezes o tritura e esmaga.

Falamos em utopia como algo irrealizável. Como então falar em utopia da esperança? Esperar por um mundo melhor é uma utopia? Todavia, há um outro significado para utopia que se aplica ao que estamos falando: a utopia é algo que não existe ainda, mas que será construído. O mundo não teria evo-luído não tivesse havido homens e mulheres que fizeram acontecer o possível de imediato e acreditaram que o impossível haveria apenas de demorar um

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pouco mais. Assim, lançaram seu olhar para além de seu tempo. Por vezes, foi necessário ainda muito tempo, até mesmo séculos, para que seus sonhos se realizassem. Por isso, é preciso acreditar. Porém, esse acreditar não é uma mera passividade de quem espera imobilizado. Acreditar é fazer acontecer, mesmo que gerações futuras venham a colher os frutos do que foi semeado.

A dimensão humana nas relações de vida exige a trilha da amorização. Este caminho passa pela construção de uma consciência cada vez mais clara e comprometida com o gesto que viabiliza um mundo solidário e bom para to-dos. Até quando haveremos de nos nutrir das vísceras de quem está ao nosso lado, acreditando que, com isso, estamos construindo nossa própria felicidade? É preciso que a mão que fere e que mata, comece a acariciar e a construir; que a palavra que ataca e machuca, estimule e incentive e que o gesto que exclui e impede a partilha, se transforme em sinal de acolhida e ternura. Que o nosso povo, um dia, não tenha mais fome e nem medo. Fazê-lo assim terá que ser a nossa vida como educadores. Só então teremos um novo homem e uma nova sociedade.

Você encontrará todo o conteúdo no Ambiente Virtual de Aprendizagem, na forma de vídeos, podcast, nos objetos de aprendizagem, no fórum de discus-são do tema, na busca de esclarecimento de dúvidas através de e-mails, chat e do espaço especial para tirar dúvidas técnicas e de conteúdo.

JOHANN, J.R. Modificação do Comportamento e Auto-Realização. 12.ed. São Paulo: Paulus, 2006.

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O autor preconiza, como caminho de autorrealização, a modificação dos comportamentos como ação individual e coletiva. Está ao alcance de cada ser humana dar início ao processo de mudança para que a realização, sob todos os pontos de vista, se concretize. Se existem inúmeras causas externas que impedem que uma quantidade imensa de seres humanos possa se realizar e ser feliz, na contrapartida, há posturas internas que podem ser modificadas para que eles não sejam submetidos de forma esmagadora em suas vidas. É preciso descobrir os talentos que Deus deu a cada ser humano e buscar, de todas as maneiras, um jeito de multiplicá-los.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Ter-ra, 2001.

O educador Paulo Freire faz perpassar toda a sua obra pelo prisma da espe-rança: a esperança de que o mundo é transformável, a fé incondicional na capacidade de cada ser humano se transformar em agente de sua própria li-bertação e da de todos os que o rodeiam, a esperança fundada em homens e mulheres assumirem o seu compromisso ético na realização de sonhos vi-áveis, ou seja, na construção da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade.

O grande desafio que se impõe a todos os habitantes do planeta é a constru-ção da utopia de um mundo bom para se viver e, sobretudo, um mundo onde caibam todos. Fala-se em desafio por causa dos paradoxos que se apresentam diante de nossos olhos: vivemos em um mundo com infinitas possibilidades e aspectos imensamente positivos, ao lado de contradições e ambiguidades assustadoras e que colocam em risco a própria condição de vida de plane-ta e de tudo que nele habita. Porém, esse é o nosso mundo, nem melhor e nem pior. Encará-lo de forma realista, positiva e enfrentadora é a postura que expressa o exercício da cidadania. Toda postura de terra arrasada em nada colabora para que tenhamos um mundo melhor. Ainda haverá tempo

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de transformar o que de inadequado existe e fazer acontecer a realidade de um mundo melhor. Para isso, todas as atividades humanas terão o seu sig-nificado e sua importância, desde a simplicidade do labor, à sofisticação da alta especialização dos cientistas e dos técnicos. Essa recuperação da digni-dade da condição humana de todos os habitantes do planeta se coloca como o desafio ético fundamental. Ninguém é mais do que ninguém pelo simples fato de exercer essa ou aquela atividade. Todas as atividades humanas são necessárias e importantes e assim precisam ser consideradas e valorizadas. O que fará acontecer essa transformação é um desabrochar de consciência e se iniciará com quem se vê na condição de inferioridade. É preciso que cada ser humano seja ajudado a perceber a si próprio e ao seu mundo com os olhos da dignidade e da autoestima. Um ser humano que aprende a se ver como um sujeito de sua própria história e não como um objeto de menor valor, já terá condições de assumir uma postura positiva e decisória frente à vida. Com relação ao mundo, durante muito tempo tudo representou mais dificuldades do que facilidades para os seres humanos. Com o avanço da ciência e da téc-nica, tudo ficou melhor e mais confortável. Todavia, a voracidade de produzir e consumir como valores absolutos, está estragando tudo o que nos cerca e os seres humanos naufragando sobre os próprios dejetos. Frear esse processo desmedido de acumulação e consumo, viver com mais simplicidade e com menos coisas, para voltar a ser mais como pessoa é o exercício da cidadania e a recuperação de um mundo mais humano. Um mundo que se globalizou, disseminou aspectos positivos e também generalizou muita destruição e mi-séria. Aprender a repartir, abrir espaço para todos os habitantes do planeta e cuidar dele para que todos possamos sobreviver é a tarefa ética imediata que se nos impõe. É o sentido de alteridade, a rejeição à toda forma de violência e a prática da inclusão que se constituem na responsabilidade ética urgente e inadiável. A utopia da esperança é a certeza de que, se o que temos não nos agrada e não serve mais, haveremos de construir a realidade de que ne-cessitamos, começando cada um consigo mesmo, cuidando de tudo e todos que nos cercam e compreendendo que não vivemos sozinhos nesse universo. Somos parte de uma obra criada e evoluída ao longo de tempos incomensurá-veis e que se projeta para o infinito tanto do ponto de vista individual quanto do ponto de vista de tudo o que existe no universo.

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Paulo Freire afirma que é preciso assumir uma postura positiva e deci-sória frente ao mundo. Como entender a possibilidade de ser positivo e enfrentador diante de uma realidade que nos apresenta tantos desafios, tantas diferenças e obstáculos assustadores?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Em uma sociedade de desiguais, onde alguns se acham mais importantes do que os outros pela simples função que executam, como garantir a ci-dadania daqueles que exercem um mundo de atividades absolutamente necessárias e indispensáveis, denominadas de LABOR?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Vivemos em um mundo em que o grande desafio histórico e ético também se apresenta no mundo do trabalho: uma massa imensa de seres humanos não tem acesso ao trabalho e buscam sobreviver de forma marginal; outros tantos conseguem entrar no mercado de trabalho – ironicamente chamado de mercado, quando o trabalho deveria ser um direito de todo ser humano – enquanto outros ainda se submetem a qualquer atividade apenas para garantir ganhos financeiros ou por status. Quais são as exigências que se impõem para que o trabalho seja uma atividade humana plenamente reali-zadora e garantia da expressão da cidadania daqueles que o exercem?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Como compreender a afirmação de Hannah Arendt e também muitas ve-zes reafirmada por Paulo Freire de que o processo de humanização depen-de da ação e da palavra?

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5º) Completar a sentença com a resposta correta: Entende-se por Cida-dania...

algo que se refere aos habitantes das zonas urbanas e nada há que se relacione com Filosofia.um valor que se refere à garantia dos privilégios dos detentores do po-der político de uma sociedade e a Filosofia concorre para esclarecer quais são essas vantagens a serem preservadas.um valor que se expressa na garantia dos direitos de todos os habi-tantes de uma sociedade e a exigência do cumprimento dos deveres que concorrem para que haja uma condição de dignidade para todos os que compõem esse grupo humano, sendo que a Filosofia, como refle-xão crítica, leva à compreensão do que seja ser um cidadão engajado e comprometido.o pensamento filosófico que aponte para a construção de um projeto político, como fundamento de uma sociedade justa e equitativa, cons-tituindo-se numa proposta utópica e, portanto, irrealizável.algo que trata de questões exclusivamente que dizem respeito à política partidária e, portanto, não há nenhuma relação com o conhecimento filosófico.

6º) Identifique e assinale a assertiva que apresenta os corretamente com-portamentos humanos que revelam a postura de um cidadão:

I. A competição, a ganância e o individualismo.II. A livre iniciativa e a acumulação de riquezas somente para si.III. Somente a busca de vantagens e interesses particulares.IV. O sentido de alteridade, a solidariedade e a justiça.

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V. Um verdadeiro cidadão é um sujeito que consegue atingir o sucesso pessoal por força de sua esperteza e oportunismo e que sabe tirar proveito de todas as oportunidades, já que os fins justificam qualquer meio para alcançá-los.

I e II.II e III.III e IV.IV e V.Somente a IV.

Observando-se as diferentes atividades humanas, percebe-se quanto os que exercem o labor são desconsiderados e a cidadania lhes é sonegada, reduzindo-os a seres sem voz, sem vez e sem rosto. Em que situações des-critas abaixo comprova-se a herança da moral grega que afirmava que todo aquele que trabalhasse com as mãos era indigno de ser chamado de um ser humano?

Na atividade do médico, com seu jaleco e sua postura de onipotência, como quem é o poderoso salvador de todos os males e que, por isso, pode cobrar altos valores por seus serviços.Na postura de um professor universitário, ostentando sua formação de mais alto nível, apresentando para todos o seu título de doutor, onis-ciente e bem remunerado.Nas atividades exercidas por indivíduos altamente preparados, com titulação de nível superior e de excepcional preparação tecnológica e, consequentemente, muito bem pagos pelos seus trabalhos. Na postura de arrogância e prepotência de um político de alto escalão, que não se digna dirigir a palavra para qualquer simples mortal e, tam-pouco, escutar alguém que se aproxime e que não seja de sua enverga-dura pessoal e social.Nos trabalhadores dos serviços gerais em qualquer empresa, seja ela

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uma fábrica ou uma universidade, para os quais ninguém olha e tam-pouco confere a menor importância. Seu serviço só é notado quando não é feito ou quando é mal feito. Quando está tudo arrumado, limpo e em seus devidos lugares, ninguém se lembra de destacar e valorizar.

A cidadania só pode ser exercida no mundo do trabalho quando algumas condições se somarem: um trabalho realizador, isto é, poder fazer algo com que se identifica, gosta e expressa seu potencial e suas habilidades e onde haja o reconhecimento humano e financeiro, isto é, a possibilida-de de garantir uma vida digna através do fruto do trabalho. Dificilmente essas condições se juntam e o trabalho passa a ser, na maioria das vezes e para a maioria das pessoas, um fardo pesado demais. Como falar em exercício de cidadania nessas condições tão penosas?

O trabalho sempre foi e continuará sendo sempre um peso a ser car-regado como um castigo tanto quando não se consegue um trabalho digno, como quando é preciso trabalhar de sol a sol. Portanto, não há exercício de cidadania através do trabalho.Poder exercer um trabalho realizador e gratificante é a preservação e o exercício máximos da cidadania. É preciso fazer com que, de preferên-cia, todos os seres humanos tenham acesso ao direito do trabalho. Que o trabalho deixe de ser um produto de mercado, mas uma realidade para todos os seres humanos que precisam construir a sua vida com dignidade. Aí está a construção da cidadania no mundo do trabalho.Ninguém gosta de trabalhar. Todos preferem o fim de semana e o dia feriado. Portanto, trabalho é só cansaço, preocupação e insatisfação. Não há cidadania no mundo do trabalho.Há um dito popular que diz que o trabalho enobrece o homem. Nada mais equivocado. O trabalho embrutece e reduz os seres humanos a máquinas de produção. Não será através do trabalho que se construirá a cidadania. Falar em cidadania nesse contexto de um mundo onde o trabalho é

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um produto de mercado e um bom trabalho somente é reservado para uma minoria privilegiada e bem preparada, é absolutamente impossí-vel. Diante de tanta ganância e prepotência dos incluídos nas leis de mercado, jamais será possível esperar por um mundo mais justo e mais equitativo.

É preciso lembrar sempre que nossa grande meta é a construção da uto-pia de um novo homem e de uma nova sociedade. A Filosofia é que leva à grande reflexão e formação de uma consciência crítica que, por sua vez, fundamentam o exercício da cidadania transformadora. Todavia, de onde virão os instrumentos que darão origem a essa grande utopia? Pensamos que, necessariamente, a educação terá que assumir o seu espaço político nessa construção por que:

Serão os educadores, profissionais que atuam num espaço ambíguo e que, historicamente, sempre se prestou para reproduzir situações de controle e de dominação, haverão de continuar atuando no sentido de perpetuar essa realidade.A educação sempre reproduziu e garantiu os interesses dos grupos privi-legiados. Como espelho a refletir e instrumento a reproduzir, é impossível esperar que ela se contraponha àqueles que a mantém e operacionalizam.É a educação o espaço, por excelência, que forma as novas gerações. Por-tanto, é preciso que ela e os profissionais que nela atuam, dêem-se conta da ambiguidade do papel que exercem, e optem por transformá-lo em ins-trumento de construção de um novo homem e de uma nova sociedade.A educação se constitui num espaço neutro e que nada tem a ver com a construção da cidadania de um povo. Sua tarefa é a de transmitir conhecimentos e, cumprindo com essa tarefa de forma excelente, o seu papel já estará perfeito de acordo com as necessidades de uma socieda-de mecanicista, individualista e excludente.Acreditar que a educação poderá ser a grande força social de mudança e de construção de um novo homem e de uma nova sociedade é uma

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ilusão. As mudanças sociais não passam pela educação, mas apenas pelos aspectos econômicos e políticos.

Em uma sociedade onde os mecanismos de ideologização mantém uma massa passiva e inconsciente, a possibilidade de se garantir a formação da cidadania como condição de construção da utopia de um novo homem e de uma nova sociedade resulta de um processo educativo que forme ho-mens e mulheres lúcidos, dinâmicos, solidários e comprometidos etica-mente com a construção desta utopia. De acordo com essa perspectiva histórica, são verdadeiras as seguintes afirmações:

I. Permitindo-se que as leis de mercado – da oferta e da procura – dirijam o rumo de uma sociedade para um equilíbrio espontâneo e natural.II. Compreendendo-se que a exclusão de uma grande maioria da popula-ção da participação de tudo é muito mais uma questão de culpa e desin-teresse individual do que um processo resultante de uma máquina social.III. Os mecanismos de ideologização atualmente são tão poderosos, sutis e sedutores, que é absolutamente impossível preservar nem mesmo uma pequena parte da população de seu processo de manipulação e de controle. IV. Pela ampla distribuição de programas de doação de alimentos e di-nheiro para famílias pobres.V. Pela promoção de uma sociedade mais justa e equitativa, especialmen-te, através do acesso à educação que promova uma condição de cidadania, isto é, a consciência do compromisso e engajamento éticos de quem des-perta para a responsabilidade social individual e coletiva.

I e II.II e IV.III e I.I e V.Somente a V.

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A cidadania tem sua expressão máxima na ação humana plural e coletiva. O desenvolvimento de pessoas, convivendo com as diferenças e com um profundo sentido de alteridade, criará as condições para uma educação para a cidadania. Essa afirmação reitera a certeza de que:

Já existe um movimento em todas as partes do mundo no sentido de que é possível viver em paz e que as diferenças podem ser tomadas como fator de enriquecimento e de partilha. Portanto, esse profundo sentido de alteridade se manifesta como uma prática educativa forma-dora de cidadania.O mundo das diferenças tem se acentuado demasiadamente. O resulta-do é o avanço da ferocidade humana e a disseminação de conflitos em todas as partes do planeta. Portanto, não há como esperar que a paz seja resultado de uma cidadania expressada pelos habitantes do planeta.Não existe mais possibilidade de que tenhamos um mundo bom para todos; tampouco pela educação advirá uma solução para tanta destrui-ção e tanta miséria que existem no mundo.Não existe mais nada que possa mudar os rumos da educação no sen-tido de que se transforme em formadora de cidadania. A educação que temos mascara, em discursos sobre alteridade e paz, seu verdadeiro e exclusivo objetivo de formadora de peças prontas para a engrenagem do mercado capitalista que nos governa. Acreditar na possibilidade de que, algum dia, a humanidade haverá de amadurecer no sentido de uma relação marcada pela alteridade e pelo profundo respeito às diferenças, é uma expectativa utópica e ingênua, isto é, o entredevoramento sempre será a lei da selva humana.

Como se expressa uma postura filosófica e qual a sua importância para a formação da cidadania?

Uma postura filosófica se expressa pela capacidade de refletir critica-mente sobre toda a realidade circunstancial e que possa resultar em

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compromisso e engajamento de um cidadão consciente, dinâmico e participativo;A formação da cidadania depende de uma educação formal que não contempla a Filosofia como disciplina em seu programa;Uma postura filosófica se expressa pela ingenuidade do entendimento da realidade e não tem nenhuma importância para a formação da ci-dadania;A importância da Filosofia para a formação de um cidadão se resume apenas no discurso vazio com que intelectuais apresentam os valores que não são assumidos por ninguém;A postura filosófica se manifesta através de um comportamento so-nhador e completamente desprovido de qualquer critério reflexivo e racional.

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Use a sua criatividade e registre aqui as ideias principais presentes no conteúdo estudado, buscando construir uma síntese pessoal sobre o tema.

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