CIDADANIA COSMOPOLITA, ÉTICA INTERCULTURAL E GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL

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    Revista Seqncia, n. 46, p. 29-49, jul. de 2003

    CIDADANIA COSMOPOLITA,TICA INTERCULTURAL

    E GLOBALIZAO NEOLIBERAL

    Maria de Ftima S. Wolkmer *

    Sumrio: Introduo. 1. A Construo da Cidadania Cosmopolita no Espao daInterculturalidade. Concluso. Referncias.

    Resumo: O objetivo deste artigo delinearos elementos da cidadania cosmopolita, cujaao aponta para a formao de um espaode encontro entre as diversas culturas eagentes de mudana. Procurou-se demons-trar que a confluncia da diversidade deatores em movimento, em defesa deinteresses comuns humanidade, que gestaa cidadania cosmopolita. Neste sentido,salientou-se a dimenso cosmopolita dacidadania, a partir de uma epistemologiadialgica e de uma tica-intercultural.

    Palavras-chave: Globalizao neoliberal;Mercado; Estado-Nao; Subjetividade;Sociedade civil; Epistemologia dialgica; ticaintercultural; Cidadania cosmopolita.

    * Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista emDireito Poltico pela UNISINOS-RS.

    Abstract: The aim of this article is to outlinethe elements of a cosmopolitan citizenshipwhose action leads to the creation of a meetingpoint for diverse cultures and agents ofchange. It is intended here to demonstratethat the confluence of diverse actors inmovement, defending common humaninterests, generates cosmopolitan citizenship.In this sense, the cosmopolitan dimension ofcitizenship was emphasized, from thestandpoint of a dialogical epistemology andan intercultural ethics.

    Keywords: Neoliberal globalization; Market;Nation State; Subjectivity; Civil society;Dialogical epistemology; intercultural ethics;Cosmopolitan citizenship.

    Introduo

    Os desafios polticos suscitados pelas crescentes desigualdades deriqueza, poder, conhecimento entre os diferentes pases exigemrespostas criativas que no podem ficar restritas a polticos e governantes.A elaborao de novas formas de regulao poltica, numa economia

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    globalizada, com responsabilidade democrtica implica necessariamentea participao da sociedade civil.

    As dificuldades so imensas, tendo em vista que nas ltimas dca-das as injunes internas feitas por organismos internacionais so decisivas.O Estado, a partir da dcada de 80, passou por uma redefinio de seupapel e de seus poderes. Sua soberania para regular autonomamente aeconomia, com decises orientadas pelo interesse nacional, foi drasticamentereduzida, seno anulada. Alm disso, a sua representatividade e credibili-dade foram afetadas, perdendo fora para mediar os conflitos que emergemda globalizao neoliberal. Tornou-se um ator cada vez mais frgil e impo-

    tente diante das imposies do FMI e do BM que defendem os interessesdo sistema financeiro e dos pases capitalistas.

    Pressionados pelas imposies dos mercados financeiros com a ameaade sada de capital, os governos nacionais tm sido obrigados a adotarestratgias econmicas (neoliberais) que promovem a disciplina financeira,a limitao do governo e uma apertada administrao econmica.

    Atravs dos chamados programas de ajuste estrutural e das re-

    formas de Estado, impingiu-se o iderio neoliberal ao Continente, apresen-tado como o nico pensamento correto pelos meios de comunicao demassa, que foram forjando um consenso com sua cruzada meditica emtorno da necessidade de um Estado mnimo e um Mercado Livre.

    O Mercado passou a regular no somente os processos econmicos,mas o conjunto das relaes sociais, educativas, culturais, ticas e estticas,como assinala Alejandro Caldera, o Leviat que era o Estado, segundo

    Hobbes, se translada agora para o Mercado.Assim, ocorre o reconhecimento do Mercado e da subjetividade

    prevatista, como articuladores da dinmica social, com nfase na liberdade,iniciativa privada, competncia, mrito e lucro.

    A globalizao neoliberal imps uma viso economicista e redu-cionista da realidade, da vida em sociedade. Para seus idealizadores, asociedade baseia-se em transaes econmicas, tendo como palco oMercado que o nico que permite a otimizao dos resultados. Aorevigorar as velhas idias do liberalismo ressaltam o individualismo segundoo qual cada um deve ser deixado livre para fazer e interagir no sentido de

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    maximizar os ganhos materiais e, portanto, sua realizao. Nesta perspec-tiva, o bem-comum a soma dos xitos individuais.

    Como resultado tem-se o crescimento alarmante da excluso social ea conseqente ampliao das desigualdades sociais que condicionam asoportunidades de vida dos indivduos e das coletividades, criando de acordocom Boaventura de Sousa Santos as pr-condies de um mundo caracte-rizado por espaos de estados de natureza e, por outro lado, uma crisedo tipo paradigmtico, epocal, que alguns designam por desmodernizaoou contramodernizao. , portanto, uma situao de muitos riscos.1

    Diante disso, o que se requer uma nova tica global, que reconhea o

    dever de cuidar, alm das fronteiras, bem como dentro delas, de uma novanegociao global entre naes ricas e pobres. Isso implica repensar ademocracia social e a cidadania como um projeto nacional, reconhecendoque, para continuar eficazes num mundo que se globaliza, ambas tem queestar inseridas num sistema reformulado e muito mais forte de gesto global,que procure combinar a segurana humana com a eficincia econmica.Entender as possibilidades que se abrem nos processos de Globalizao

    para o fortalecimento da democracia e da consolidao de espaos deencontro, objetivando uma cidadania cosmopolita, exige um esforoanaltico para ampliar a reflexo jurdico-poltica.

    com esse propsito que o presente artigo se destina: tendo em contao cenrio da globalizao neoliberal, estabelecer alguns subsdios paracompreender a cidadania cosmopolita como uma dimenso da cidadaniaque busca atingir os espaos de poder que esto acima do Estado-Nao e,por isso mesmo, so determinantes na luta pela democracia.

    1. A construo da cidadania cosmopolita no espao dainterculturalidade

    Importa assinalar, primeiramente, que a cidadania cosmopolita maisdo que um catalisador de diferentes identidades culturais. A sua concepotem como pressuposto uma nova maneira de ver e edificar o mundo, ou

    1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Crtica da razo indolente... p. 185.

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    seja, tambm envolve a construo de uma nova subjetividade. Essa novasubjetividade expressa-se no modo de ser tico que implica a abertura

    alteridade do outro ou de si mesmo, a abertura para a virtual diferenciaoengendrada no encontro com o outro, tornando-se um veculo deatualizao desta diferena, um veculo de criao de novos modos desubjetivao, novos modos de existncia, novos tipos de sociedade.2

    A relao entre subjetividade e alteridade fundamental, porque nossacondio de afetar e sermos afetados pelo outro (no s humano), o queprovoca turbulncias e transformaes irreversveis em nossa subjetividade.Essa condio faz com que a natureza do nosso ser seja essencial-mente

    processual. Reconhecer a alteridade significa abrir-se para o outro. Abrir-separa o outro pressupe aceitar e viver a experincia de que no somos umaindividualidade, uma identidade fixa, mas um permanente processo desubjetivao, efeito do tambm permanente encontro com o outro.3

    Assim, a idia do sujeito, em seu sentido mais preciso, no se reduz do indivduo, mas, ao contrrio, implica uma transcendncia, umaultrapassagem da individualidade, encerra em si a intersubjetividade e,

    assim, a comunicao em torno de uma esfera comum de princpios e devalores. E , sem dvida, mediante essa articulao intrnseca entre sub-jetividade e inter-subjetividade que se trata de repensar o sujeito hoje.4

    Dentro dessa perspectiva, trata-se de construir novas prticas sociais(em diferentes mbitos), novas prticas de si na relao com o outro. Essasprticas j esto ocorrendo na sociedade civil local, nacional, regional eglobal, e representam a articulao de uma nova cidadania que investe nainveno de novas possibilidades de vida diante da globalizao neoliberale todas as formas de excluso.

    Para Antnio Sidekum, vive-se uma poca de agonia das grandesutopias. E quando uma sociedade no mais capaz de conceber e sustentarutopias, ela mostra-se doente. A utopia e o mito fazem parte essencial doindividual e do coletivo humano.5Neste sentido, escreve E. M. Cioran,

    2 Cf. GOMES, Iria Zanoni. Terra e subjetividade. p. 179-190.3 Cf. GOMES, Iria Zanoni. Terra e subjetividade. p. 179.4 Idem.5 SIDEKUM, Antnio. Multiculturalismo: desafios para a educao na Amrica Latina. p. 79.

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    A sociedade que no mais capaz de produzir uma utopia para o mundo, e desacrificar-se por ela, est ameaada de esclerose e de runa. A sabedoria para aqual no existem quaisquer fascinao aconselha-nos uma felicidade dada,

    acabada; o homem rejeita esta felicidade, e justamente esta rejeio que fazdele uma criatura histrica, ou seja, um partidrio da felicidade imaginada.6

    No entanto, somos muitas vezes tomados por um ceticismoutilitarista que transforma os sonhos, a cultura da esperana esolidariedade em fraqueza humana.7Ora, o princpio da esperana serencontrado na experincia da unidade e na multiplicidade, como poderde uma tica de solida-riedade sustentada no reconhecimento da

    alteridade absoluta do outro.8 S assim, com esse reconhecimento,observa Sidekum, da importncia de escutar o Outro, construiremos umacultura verdadeiramente dialogal.9

    Segundo Adela Cortina, no interior de cada pessoa est a verdade e preciso traz-la luz, atravs do dilogo entendido como busca coope-rativa do verdadeiro e do justo. Assim, o dilogo (...) um caminho quecompromete em sua totalidade as pessoas que esto envolvidas porque,

    neste contexto, deixam de ser meros expectadores para converterem-seem protagonistas de uma tarefa compartilhada, ou seja, a buscacompartilhada do verdadeiro e do justo, e a resoluo justa dos conflitosque vo surgindo ao longo da vida.10

    Um democrata, escreveu Albert Camus, aquele que admite que umadversrio possa ter razo e, portanto, o deixa expressar-se, e por outrolado, aceita refletir sobre seus argumentos.11

    Neste sentido, como aponta Norbert Bilbeny, as virtudes ou qualidadesdeliberativas, diferentemente da tolerncia (em sentido stricto) se constroemcom a vontade e a habilidade para entender o outro e entender-se com ele.12

    Porm, deliberar no equivale aqui a puro argumento, como aponta o autor,

    6 Idem.7 Idem .8 Idem .9 Idem .

    10 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 247.11 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 247-248.12 In: BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 141.

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    (...) nem o argumento nem a simples tolerncia conseguem chegar por si mes-mos ao entendimento democrtico. Alm disso, muitas culturas no se reconhe-cem neles, inclusive podem v-los como mais um signo da colonizao ociden-

    tal. Porm, todos podemos concordar, primeiro, na tolerncia ampliada com adeliberao, para assim buscar melhor o entendimento. E, segundo, fazer dessadeliberao um exerccio da vontade e da habilidade intelectual ou no, querdizer, uma deliberao aberta a sensibilidade, coisa que todas as culturascompreendem bem. A disposio a escutar (...), retirada, por exemplo, no Shuraou consulta dos mulumanos, um resultado desse trabalho conjunto dointeresse, da razo e dos matizes da percepo.13

    As virtudes deliberativas combinam, portanto, a razo e a sensibi-

    lidade, os argumentos e a conversao em si mesmo, a viso de conjunto eo poder do detalhe, a fala e a escuta.14

    Neste contexto, aponta Adela Cortina,15 a tica discursiva queassinala as condies que deve reunir em dilogo, ou seja:

    1) No dilogo devem participar os que so afetados pela decisofinal. No caso da impossibilidade de todos participarem, devehaver algum que represente os interesses daqueles que no po-dem estar presentes;

    2) Quem leva o dilogo a srio no pode inici-lo convencido de queo interlocutor nada tem a contribuir, seno o contrrio. Est, por-tanto, disposto a escut-lo;

    3) Isso significa que sabe que no est de posse de toda a verdade, eque um dilogo bilateral, no unilateral;

    4) Quem dialoga a srio est disposto a escutar tanto para mantersua posio, se no lhe convencerem os argumentos do interlo-cutor, como para modific-la caso o convenam;

    5) Quem dialoga a sria est preocupado em encontrar uma soluojusta e, portanto, em entender-se com seu interlocutor. Entender-se no significa, no entanto, obter um acordo total, porm se des-

    1 3 BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 142-143.1 4 BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 146.1 5 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 146.

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    cobre tudo o que j temos em comum e nos permite ir precisandoaquilo que concordamos;

    6) Um dilogo srio exige, assim, que todos os interlocutores possamexpressar seus pontos de vista, colocar seus argumentos, replicaras outras intervenes;

    7) A deciso final, pode estar equivocada e por isso sempre tem queestar aberta a revises. Porm, quando as pessoas esto dispostasa determinar o justo seriamente, enquanto esta sua atitude, rati-ficar um erro o mais simples.

    Essa percepo da importncia do dilogo constri-se, por outro lado,com o valor de solidariedade. Solidariedade como valor moral (na visocosmopolita), s acontece quando no solidariedade restrita, alrgica auniversalidade, sendo, portanto, uma solidariedade universal. A solida-riedade universal acontece quando as pessoas atuam pensando no s nointeresse particular dos membros de um grupo, seno tambm de todos osafetados pelas aes do grupo. Neste sentido, escreve Adela Cortina16, a

    solidariedade significa ultrapassar as fronteiras dos grupos e dos pases,estendendo-se a todos os seres humanos, incluindo as geraes futuras. Ondesurge a percepo de trs novos valores ao menos: a paz, o desenvolvimentodos povos menos favorecidos e o respeito ao meio ambiente.17Estes valoresrequerem solidariedade universal e uma tica intercultural.

    A tica intercultural por sua vez implica que seja respeitada a diferenacultural. Antes da Globalizao se defendia a igualdade para conseguircoisas idnticas para todos: o respeito, a dignidade humana, a satisfaodas necessidades bsicas, os mesmos direitos e oportunidades. Tudo istocontinua sendo vlido na sociedade global, porm esta colocou pela primeiravez a igualdade para obter coisas diferentes entre si, e no h nenhumacontradio, pois, o contrrio da igualdade no a diferena, seno adesigualdade.18 Neste sentido, Boaventura de Sousa Santos prope umimperativo intercultural, ou seja, as pessoas e os grupos sociais tm o

    16 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 243.17 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 244.18 BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 118.

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    direito a serem iguais, quando a diferena os inferioriza, e o direito a se-rem diferentes, quando a igualdade os descaracteriza.19

    Agora, com a Globalizao, a igualdade (que no um valor formalou abstrato), h de servir tambm para que cada um e seu grupo culturalpossam expressar sem discriminao suas diferenas. A tica interculturalexpressa-se no respeito diferena e na coexistncia e retroalimentaodas culturas. Isso exige mudar alguns pressupostos sobre a identidade.Neste sentido, oportuno lembrar o que ensinam os autores globalistas,mencionados por Held e MacGrew, em relao percepo do que seja aidentidade. Para estes autores,

    cada vez mais, os indivduos tm compromissos de lealdade complexos eidentidades multifacetadas, correspondentes globalizao das foraseconmicas e culturais e reconfigurao do poder poltico. Os movimentosdos bens culturais atravs das fronteiras, a hibridizao e a mescla das culturascriam a base de uma sociedade civil transnacional e de identidadessuperpostas uma estrutura comum de entendimento para os seres humanos,que se expressa e une as pessoas cada vez mais em coletividades entrelaadascapazes de construir e sustentar movimento, rgos e estruturas jurdicas einstitucionais transnacionais.20

    Para os dogmticos, assevera Norbert Bilbeny, h que recordar quetoda identidade humana composta e hbrida, no nica nemmonoltica. Ou seja, mesmo que os liberais no sejam dogmticos,concebem todavia o eu como monocntrico e individualista. Para os plura-listas, ao contrrio, que assumem a noo da identidade como de um

    modo ou de outro mestia, o eu policntrico e interativo.21

    No sepode ter assim lealdades exclusivas e abstratas, como faz o dogmtico,nem um porte egocntrico, como tem um liberal.22

    Em funo disso, conclui-se que os

    1 9 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia. p. 122.

    2 0 HELD, David; MacGREW, Anthony. Prs e contras da globalizao. p. 88.2 1 BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 127.2 2 Idem.

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    direitos, os deveres e o bem-estar dos indivduos s podem ser satisfatoriamentegarantidos se, alm de sua articulao adequada nas constituies nacionais,forem respaldadas por regimes, leis e instituies regionais e globais. A promoo

    do bem poltico e de princpios igualitrios de justia e participao poltica buscada, com acerto, nos nveis regionais e global. Suas condies de pos-sibilidade esto inextricavelmente ligadas criao e desenvolvimento deorganizaes transnacionais slidas e de instituies de governo regional eglobal. Numa era global, estas ltimas constituem a base necessria para asrelaes de cooperao e a conduta justa.23

    Assim sendo, o mundo contemporneo no um mundo de comu-nidades fechadas, com modos de pensar mutuamente impenetrveis, econo-mias auto-suficientes e Estados idealmente soberanos. Conseqentemente,no apenas o discurso tico separvel das formas de vida numa comu-nidade nacional, como ele vem se desenvolvendo, hoje em dia, na inter-seco e nos interstcios de comunidades, tradies e lnguas que se super-pem. Cada vez mais, suas categorias resultam da mediao de culturas,processos de comunicao e formas de entendimento diferentes.24No hum nmero suficiente de boas razes, em princpio, para que os valores de

    determinadas comunidades polticas suplantem ou tenham precednciasobre os princpios globais de justia e participao poltica.25

    Em funo disso, no contraditrio, a partir de uma viso cosmo-polita que no implique uniformidade, nem o colapso das diferenas, quese busque um marco para a existncia de uma soberania pluriestatal, acida-dania cosmopolita, a educao intertnica e a tica intercultural.26

    Na viso intercultural, conceito de cidadania deve levar em conta as

    diferenas, na medida em que os direitos de cidadania, originalmentedefinidas por e para os homens brancos, no podem dar resposta as neces-sidades especficas dos grupos minoritrios.

    Estas demandas de cidadania colocam srios problemas e desafios concepo preponderante de cidadania, ou seja, segundo Adela Cortina,

    23 BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 127.

    24 HELD, David; MacGREW, Anthony. Prs e contras da globalizao. p. 89.25 HELD, David; MacGREW, Anthony. Prs e contras da globalizao. p. 89-90.26 BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 127.

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    os cidados de uma comunidade poltica se identificam precisamente por-que se sabem diferentes daqueles que no pertencem a ela. Justamente o

    que identifica, segundo a autora,

    com os seus concidados o que o diferencia das outras pessoas, o pertencer auma comunidade poltica se gera a partir do jogo da incluso e da excluso. E,no entanto, desde a irrupo do universalismo moral da mo do estoicismo e docristianismo foi lanada uma semente de universalismo que est entranhadanos seres humanos, uma semente que foi transformada em rvore atravs dastradies herdadas do universalismo tico, tanto religiosas como polticas(liberalismo, socialismo). Umas e outras convergem com Kant em que a

    humanidade tem um destino, o de forjar uma cidadania cosmopolita, possvelnum tipo de repblica tica universal.27

    Num cenrio globalizado, assinala Renato Ortiz, a diversidadecultural deve ser pensada de um ponto de vista cosmopolita. Somenteuma viso universalista pode valorizar realmente o que denominamosdiferena. Isso exige, queiramos ou no, relativizar a maneira comoestvamos habituados a pensar a cultura nacional.28 As proposies

    do iluminismo europeu preconizavam que o universal se realizariaatravs da nao. Liberdade, igualdade e democracia foram princpiosque nortearam a emergncia das naes (...). A prpria luta anti-colonialista se fundamentava nessas premissas. Para existirem enquantopovos livres foi necessrio aos pases colonizados romper com asmetrpoles e constiturem-se em naes independentes.29 Contudo, orelacionamento entre nao e universal se rompeu, na verdade, o autorconsidera que a modernidade-mundo recoloca o problema em outrasbases, na medida em que a nao perde a primazia frente ao processoglobal de ordenar as relaes sociais. Seu territrio atravessado porforas que a transcendem. As formaes nacionais constituem-se agoraem diversidades (e no em ponto terminal da histria como queriam ospensadores do sculo XIX), o que significa dizer que as culturas nacionais

    2 7 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 252.2 8 ORTIZ, Renato. Diversidade cultural e cosmopolitismo. p. 87.2 9 Idem.

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    adquirem um peso relativo. Passam a ser vistas no mbito das outrasdiversidades existentes.30

    Cabe reconhecer, como aponta o autor, que a histria do univer-salismo encerra inmeros percalos da razo instrumental, como diziaAdorno, ao etnocentrismo arrogante.

    O universal no existe em abstrato, espcie de a-priori kantiano cuja presenaseria imanente mente humana. Apenas uma perspectiva cosmopolita podeafirmar, por exemplo, o direito dos povos indgenas de possurem suas terras.Ao reconhec-los como diferentes e no iguais (o que distinto de desiguais) eulhe atribuo, por causa dos ideais anteriores, uma prerrogativa de direito. Noestou pois me referindo ao universal colonizador de nossos antepassados. Ape-nas uma perspectiva cosmopolita permite-me criticar a pretenso do mercadoem se constituir como nica universalidade possvel. De nada adiantaconsiderarmos a categoria totalidade como um antema (um sinal detotalitarismo). Historicamente as diferenas s podem existir quandorecortadas por foras integradoras que as englobam e as ultrapassam.31

    Trata-se de verificar que o mercado, como aponta o autor, em sua

    dimenso planetria, no deixa de se revelar um

    (...) discurso no qual sua universalidade conveniente apenas para os grandesgrupos econmicos e financeiros. Por isso, o debate sobre a diversidade culturaltem implicaes polticas. Se quiser-mos escapar retrica do discurso ingnuo,que se contenta em afirmar a existncia das diferenas, esquecendo-se que elasse articulam segundo interesses diversos, preciso reivindicar que se d a elasos meios efetivos para se expressarem e se realizarem enquanto tal. Ideal polticoque no pode evidentemente se circunscrever ao horizonte deste ou daquele

    pas, deste ou daquele movimento tnico, desta ou daquela diferena. Elevislumbra uma sociedade civil que ultrapassa o crculo do Estado-nao e quetem o mundo como cenrio para o seu desdobramento.32

    Por isso, para forjar uma cidadania cosmopolita, como aponta AdelaCortina, o desafio contemporneo pensar o universal e que este seja,

    30 ORTIZ, Renato. Diversidade cultural e cosmopolitismo. p. 87.31 ORTIZ, Renato. Diversidade cultural e cosmopolitismo. p. 87-88.32 ORTIZ, Renato. Diversidade cultural e cosmopolitismo. p. 88-89.

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    com efeito intercultural. Certamente, projetos realistas, que partam da-quilo que j faz parte da pessoa, podem ter xito, e o ideal cosmopolita

    est latente no reconhecimento de direitos aos refugiados, na denncia decrimes contra a humanidade, na necessidade de um Direito Internacional,nos organismos internacionais e, sobretudo, na solidariedade de umasociedade civil, capaz de ultrapassar todas as barreiras.33

    Em face da Globalizao do mundo contemporneo, o conceito deuniversalidade para uma cidadania cosmopolita, no conduzir a novosmodelos hegemnicos e totais, mas a uma universalidade surgida dorespeito diferena, e da coexistncia e retroalimentao das culturas.

    Isto , que seja fruto da unidade na diversidade.34

    Na verdade, essa a possibilidade de forjar uma cidadania cosmo-polita convertendo o conjunto dos seres humanos numa comunidade.Porm, no tanto no sentido de que vo estabelecer entre si relaesinterpessoais, coisa cada vez mais possvel tecnicamente, seno porque oque constri comunidade , sobretudo, ter uma causa em comum. Porisso, pertencer por nascimento, ou raa a uma nao muito menos

    importante que buscar com os Outros a realizao de um projeto. Estatarefa comum livremente assumida o que cria laos comuns, o quecria comunidade.35Necessita-se pois, da construo de uma nova iden-tidade cvica mundial, que v alm das diferenas culturais e nacionaisque, no esqueamos, devem ser respeitadas. O desenvolvimento destaidentidade compartilhada, como observa Norbert Bilbeny, no vaiacontecer da noite para o dia, pois,

    A prpria identidade nacional, necessitou, desde a Idade Mdia at a Europade Napoleo, quase cinco sculos para consolidar-se. A era global, muito maisacelerada em todos os aspectos, pode fazer que a nova identidade transnacionalprecise muito menos tempo para configurar-se (...). Dever, enquanto isso, desen-volver-se enquanto pensamento inclusivo, no-disjuntivo ou separatista.Portanto, a educao torna-se indispensvel nesse processo.36

    3 3 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 252.

    3 4 CALDERA, Alejandro S. Os dilemas da democracia. p. 127.3 5 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 253.3 6 BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 139-140.

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    No mesmo sentido, mas fundamentado em outros valores, as basesde um plano para educao segundo Kant devem ser cosmopolita, pois

    essa exigncia um princpio tico, destacando o autor, as dimenses quedeviam compor a educao cosmopolita.37Primeiramente, imprescindveliniciar a formao nas habilidades necessrias para alcanar quaisquerfins, que o que Kant denomina formao escolstico-mecnica, porqueaprender que meios preciso adotar para alcanar um fim ou outro, oque ensinam as diversas escolas e pratica-se depois mecanicamente.38

    Em segundo lugar, indispensvel educar tambm na prudncianecessria para saber adaptar-se a vida em sociedade. A esta dimenso de

    educao Kant chama civilidade que ele supe ser as boas maneiras,amabilidade e uma certa prudncia para saber usar as demais pessoaspara os prprios fins39, coisa que, obviamente, adverte a autora, poucotem a ver com a moralidade. Para Kant, ento, quem sabe servir-se dosoutros prudente e cvico e, portanto, compem a imagem de um bomcidado, porque sabe comportar-se com destreza no mbito pblico.40Noentanto, este cidado egosta no alcanou ainda a moralidade pois, aformao moral, pelo contrrio, a que permite distinguir entre fins quenos propusemos alcanar os quais so bons, sendo bons aqueles que cadaum aprova e que tambm podem ser fins para os outros homens. Por isso, moralmente educado, para Kant, quem tem em conta em seu agir finsque qualquer ser humano poderia querer, o que o leva a ter por referenteuma comunidade universal.41

    Evidentemente, esta autenticidade do cidado egosta que instru-mentaliza os outros cidados, no a autenticidade que deve fundamentar

    uma cidadania, seno aquela que deseja participar numa comunidadejusta.42 Com o que aponta Adela Cortina, deve o cidado do mundocomportar-se, como cidado moral, porque, hoje em dia, no podeconsiderar-se justa uma comunidade poltica que no leve em conta, por

    37 BILBENY, Norbert. Democracia para la diversidad. p. 141.38 In: CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 252.39 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 253.40 Idem .41 In: CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 253-254.42 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 254.

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    exemplo, os estrangeiros alm de atender os seus. Frente a Kant, entende-mos que o famoso aprendizado para resolver conflitos, to em moda, de-

    vem ser resolvidos com justia. Aprender a conviver no basta: precisoaprender a conviver com Justia.43

    Portanto, conclui a autora, para ser hoje um bom cidado de qual-quer comunidade poltica preciso satisfazer a exigncia tica de ter porreferentes os cidados do mundo.44

    Neste sentido, fundamental, de acordo com a pensadora espa-nhola, que se universalize a cidadania social. Na sociedade global, o pensa-mento cosmopolita dever sentir horror excluso, principalmente aexcluso econmica. O globalismo neoliberal torna excedente grandeparte da po-pulao. A globalizao neoliberal cria uma distncia cadavez maior entre os que tm e os que no tm em decorrncia das regrasdo livre mercado, com uma economia sem controle poltico. Com a novaordem financeira internacional, os excludos de trabalho e consumoperdem progressivamente as condies materiais para exercerem osdireitos humanos.45Hoje, diz Liszt Vieira, rompe-se at mesmo os limites

    antropolgicos do pensamento ocidental, fundado este no sujeito dedireitos, na liberdade de pensamento e no indivduo autnomo; almdisso, perde-se mais do que direitos, desaparecendo de maneira essencial,a prpria noo de direitos a ter direitos.46

    Convm ento determinar, segundo Adela Cortina, quais so os bensque pertencem a todos os seres humanos:

    Os bens da Terra esta seria a primeira afirmao so bens sociais. E no esta uma concesso bem intencionada, seno um reconhecimento de sentidocomum, para que cada pessoa possa desfrutar de uma quantidade de bens pelofato de viver em sociedade. O alimento, a educao, o vesturio, a cultura e tudoo que nos separa do homem selvagem so bens dos quais desfrutamos porsermos um ser social.47

    4 3 Idem.4 4 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 254-255.

    4 5 VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalizao. p. 49.4 6 VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalizao. p. 49.4 7 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 256.

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    Ora, mesmo num mundo de muitas formas ilegveis, o que essencialpara o ser humano no mudou. Sendo o homem um ser natural, a satisfao

    das necessidades tem uma raiz insubstituvel que se baseia na sua natureza,ou seja, na sobrevivncia.

    Assim, torna-se insustentvel a teoria do individualismo possessivo,com a qual se iniciou a economia moderna, onde cada homem dono desuas faculdades e do produto destas, sem dever por isso nada socie-dade.48Isso um equvoco, na medida em que foroso reconhecer queo desenvolvimento das faculdades humanas (inteligncia, vontade,corao) deve muito famlia, escola, ao grupo de amigos etc.49Inclusive

    a sociedade internacional, em tempos de economia global, onde os diferentesprodutos so o resultado do trabalho de diferentes pessoas. Da queafirmar que uma pessoa dona de suas faculdades e do produto delas,no s uma demonstrao de egosmo, seno de ignorncia.50

    Os bens do universo, pelo contrrio, conclui Adela Cortina, soproduto das pessoas que vivem em sociedade e, portanto, so bens sociais.Sendo assim, devem ser tambm socialmente distribudos para que se possa

    chamar essa distribuio de justa.51Dessa forma, deve-se estabelecer um processo interativo comum, na

    busca do bem-comum, gestado por interaes concretas, que Boaventurade S. Santos identifica com o cosmopolitismo que se expressa nas diferentesrearticulaes de atores sociais para redefinir o processo de globalizao.Neste sentido, percebe-se diferentes materializaes deste processo no Direito,ou seja, a globalizao hegemnica se expressa como lex mercadoria, aopasso que a contra-globalizao no-hegemnica se expressa na heranacomum ou no assim chamadojus humanitatis. Esse ltimo definido comoa expresso da aspirao a uma forma de governana dos recursos naturaisque devem ser considerados como possudos globalmente e geridos no inte-resse da humanidade, como um todo, tanto no presente quanto no futuro.52

    48 Idem .49 Idem .

    50 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 256-257.51 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 257.52 AVRITZER, Leonardo. Em busca de um padro de cidadania mundial. p. 48-49.

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    A questo da cidadania (cosmopolita), recuperada a partir de umeixo de contra-globalizao, expresso pelas categorias de cosmopolitismo

    e herana comum, categorias essas que ligam a cidadania, portanto, auma dimenso universal, criam, segundo Boaventura de S. Santos, a possibi-lidade de contrapor-se aos efeitos perversos das formas hegemnicas deglobalizao.53Sendo assim, na medida em que, Boaventura de S. Santosadmite que a globalizao mltipla e policntrica,

    Consegue mostrar que existem diversas formas de abstrao as ligadas expanso do mercado mundial, as ligadas internacionalizao do Estado e

    homogeneizao cultural e que cada uma delas produz um concreto especfico,ou seja, um globalismo localizado e, na medida em que, os indivduos semovimentam para fora do Estado Nacional, eles precisam de uma proteocidad, que deve assumir elementos transnacionais e, portanto, abstratos.54

    Seria, ento, possvel pensar no mundo da globalizao em duascategorias de cidadania, a abstrata e a cosmopolita. A primeira delas uma cidadania legal transnacional, capaz de dar direitos civis s pessoas.

    A segunda categoria seria de uma cidadania social transnacional, capazde assegurar, no plano internacional, direitos sociais bsicos.

    Como entender o problema da cidadania cosmopolita, no que tangeao concreto, ou seja, como participao entendida esta como expressoemprica da autonomia individual ou coletiva.

    Examinando os trabalhos mais recentes de Boaventura de S. Santos,o cientista poltico, Leonardo Avritzer, constata que ele designa seis tiposde concretos o espao domstico, o de produo, do mercado, o dacomunidade, o da cidadania e o do espao mundial como locais, nosquais, se manifestam diferentes formas de poder.55

    Para Boaventura de Sousa Santos, o cosmopolitismo e o patrimniocomum da humanidade constituem a Globalizao contra-hegemnica,na medida em que lutam pela transformao de trocas desiguais em trocas

    5 3 In: AVRITZER, Leonardo. Em busca de um padro de cidadania mundial. p. 50.5 4 AVRITZER, Leonardo. Em busca de um padro de cidadania mundial . p. 51-52.5 5 AVRITZER, Leonardo. Em busca de um padro de cidadania mundial . p. 52-53.

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    de autoridade partilhada no espao mundial. Segundo o autor, estatransformao dever ocorrer em todas as constelaes de prticas

    assumindo um perfil distinto em cada uma delas. No espao

    das prticas interestatais, a transformao tem de acorrer simultaneamente aonvel dos Estados e do sistema interestatal. Ao nvel dos Estados, trata-se detransformar a democracia de baixa intensidade, que hoje domina, pela democraciade alta intensidade. Ao nvel do sistema interestatal, trata-se de promover aconstruo de mecanismos de controle democrtico atravs de conceitos, como ode cidadania ps-nacional e o da esfera pblica transnacional.56

    Por outro lado, diz o autor que, no espao das prticas capitalistasglobais, a transformao contra-hegemnica consiste na globalizao daslutas que tornem possvel a distribuio democrtica da riqueza, ou seja,uma distribuio assente em direitos de cidadania, individuais e coletivos,aplicados transnacionalmente.57

    Por ltimo, a transformao contra-hegemnica no espao das pr-ticas sociais e culturais transnacionais

    a transformao contra-hegemnica consiste na construo do multicul-turalismo emancipatrio, ou seja, na construo democrtica das regras dereconhecimento recproco entre identidades e entre culturas distintas. Estereconhecimento pode resultar em mltiplas formas de partilha tais comoidentidades duais, identidades hbridas, inter-identidade e transidentidade ,mas todas devem orientar-se pela seguinte pauta trans-identitria e transcul-tural: temos o direito de sermos iguais, quando a diferena nos inferioriza e desermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.58

    Cabe a cidadania cosmopolita, no espao intercultural da sociedadecivil global reclamar para que todos os seres humanos tenham seus direitoseconmicos, sociais e culturais garantidos. Frente todas as excluses, suma lcida e sabia solidariedade, observa Adela Cortina, uma atitudetica acertada para acabar com a excluso e fazer participar dos bens da

    56 SANTOS, Boaventura de Sousa. Globalizao: fatalidade ou utopia. p. 79-80.57 Idem .58 SANTOS, Boaventura de Sousa. Globalizao: fatalidade ou utopia. p. 80.

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    terra, os que so seus legtimos donos: os seres humanos. Diante dos cami-nhos universais no cabe, portanto, seno a resposta de uma atitude tica

    universalista, que tenha por horizonte, ao tomar as decises, o bem uni-versal, ainda que seja preciso constru-lo a partir do local.59

    Por outro lado, com o multiculturalismo, se impem no s o respeitomas tambm o dilogo, pois: Um dilogo que, como diz Huntington, uma questo de sobrevivncia, pelo desejo de evitar futuras guerrasmundiais. Recordemos que, segundo ele, a fonte fundamental dos conflitosno futuro ser cultural, que tais conflitos acontecero entre grupos dediversas civilizaes (...).60

    Trata-se como diria Rawls no de assegurar a estabilidade polticade uma sociedade liberal com um pluralismo razovel, seno deestabelecer um direito dos povos, propondo os mnimos que poderiamaceitar todas as sociedades: que sejam pacficas, que seu sistema jurdicoesteja guiado por uma concepo de justia baseada no bem comum,de forma que imponha deveres e obrigaes a todos seus membros, querespeite direitos humanos bsicos (como o direito vida, a liberdade

    frente escravido ou aos trabalhos forados, propriedade e umaigualdade formal).61

    Segundo Liszt Vieira, h vrios nveis para se conceber a extenso dacidadania, alm das fronteiras tradicionais do Estado Nacional.62

    Em primeiro lugar, trata-se de uma aspirao ligada ao sentimentode unidade da experincia humana na terra e que abre caminho a valorese polticas em defesa da paz, justia social, diversidade cultural, democracia

    e sustentabilidade ambiental em nvel planetrio.63

    Em segundo lugar diz respeito ao processo objetivo de globalizao,que est promovendo uma integrao global, especialmente econmica,enfraquecendo o Estado-nao e corroendo a cidadania nacional.64

    5 9 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 261.6 0 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 262.6 1 In: CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo... p. 263.

    6 2 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. p. 250.6 3 Idem.6 4 Idem.

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    Por ltimo, o relativo consenso na opinio pblica de que, noque diz respeito energia e aos recursos naturais, a vida da espcie

    humana pode estar ameaada se no forem efetuadas mudanas nospadres de consumo e produo em nvel global.65 Implcito nesseimperativo ecolgico encontra-se uma poltica de mobilizao, expressana militncia transnacional e centrada na convico de que importantetentar fazer o impossvel acontecer, por meio de uma ateno motivadapelo desejvel, e no pelo provvel, a fim de sensibilizar os centros deci-srios na esfera global.66

    Sendo assim, os elementos se entrecruzam na formao do que, hoje,

    poderia ser considerado um cidado cosmopolita so: dilogo, participao,respaldo em leis e instituies regionais e globais (ainda insuficientes), ticaintercultural (a unidade na diferena), solidariedade frente todas asformas de excluso, e um projeto comum para a humanidade, cujo ncleovnha a ser o respeito vida.

    A possibilidade de construo de novas formas de viver, que respeiteo direito a diversidade cultural, as diferenas, a natureza, a igualdade,

    liberdade etc., tem seu processo iniciado na produo de uma subjetividade,na emergncia do modo de ser tico, que tem como critrio de suas pr-ticas o respeito vida.

    Neste sentido, a construo da luta frente crise planetria (econmica,ecolgica) que se vive hoje, aponta o espao-intercultural e solidrio, como olugar de encontro, onde discutir-se- o modo de viver no planeta.

    A superao da crise, dentro dessa perspectiva, significa no s

    a construo de uma nova percepo do mundo, mas novos valores,atitudes, estilos de vida, novas formas de organizao social e derelao com a natureza.

    Enfim, tendo em conta os fatores apontados neste artigo, a cidadaniacosmopolita pode ser interpretada como a expresso da luta em defesa dosbens do universo (materiais e imateriais), numa participao fundamentada na

    autonomia da pessoa ao atuar em movimentos, ONGs, associaes etc., de

    65 Idem .66 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. p. 251.

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    dimenses transnacionais, criando perspectivas normativas comuns, um novo

    contrato social, para a vida partilhada num espao-global, articulado por uma

    tica intercultural e pelo respeito vida.

    Concluso

    O mundo visto a partir da perspectiva da cidadania cosmopolitaaparece fecundado por valores e por aes que distanciam-se da concepomercadolgica e apontam para um futuro solidrio para a humanidade.

    Neste sentido, a mudana j pode ser sentida nas foras que searticulam nas ruas e nas redes que criam vnculos, somando esforospara uma troca justa, assim como nas diferentes lutas pela cidadania,incluindo o acesso a cuidados com sade, moradia, o trabalhosignificativo com salrios justos.

    O esforo dessas manifestaes individuais e coletivas ao contrapor-se a globalizao neoliberal, voltam-se no s para transformar aeconomia numa atividade que busca assegurar uma vida digna para todos,

    mas tambm estabelecer uma nova relao entre Estado/Sociedade Civil/Mercado, pois na medida em que este uma relao social, deve sersocialmente orientado.

    Assim sendo, se no cenrio internacional, por um lado, contempla-seuma nova geometria de poder que vm excluindo grande parte da populaomundial de seus xitos econmicos, por outro, a cidadania cosmopolitaprocura conquistar espaos pblicos de mediao que tornem possvel o

    encontro entre as diversas culturas que buscam construir um mundo melhor.

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