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Departamento de Ciências Sociais
CIDADANIA, RECONHECIMENTO E MOVIMENTOS SOCIAIS:
MOVIMENTO SEM-TETO E ACESSO À CIDADE
Aluna: Giulia Garuzi Luz Machado
Orientadora: Angela Randolpho Paiva
Introdução
O presente estudo, iniciado no primeiro semestre de 2012, tem suas origens no
projeto Cidadania, Movimentos Sociais e Esfera Pública: o Movimento dos Sem-teto,
cuja proposta inicial teve o intuito de compreender, à luz do movimento analisado, a
permanência dos déficits materiais básicos à mínima dignidade da vida, no caso, a
moradia, e ao mesmo tempo, refletir sobre a questão de gênero dentro deste movimento
social, em seu contexto reivindicatório.
Como continuidade da pesquisa, o projeto manteve o acompanhamento das
atividades realizadas nas duas ocupações sem-teto estudadas, localizadas na cidade do
Rio de Janeiro. Seus nomes não serão divulgados por desdobramentos recentes, dentre
eles o problema com o tráfico, preservando a segurança desses Coletivos. Assim, serão
chamados de Coletivo I e Coletivo II.
Neste período de trabalho de campo, foi possível apreender além da história,
estratégias e construção da identidade coletiva das duas ocupações, o difícil percurso
enfrentado por ambas durante a preparação da cidade para dois grandes eventos: a Copa
do Mundo de 2014, e as Olimpíadas de 2016. Tal processo se desdobrou em diversas
consequências para as duas ocupações, e, teve em última instância, a remoção, via
autorização estatal, dos moradores e moradoras de uma das ocupações que já habitavam
o local há aproximadamente oito anos.
Estas consequências trouxeram novas questões a serem analisadas, no que se
refere ao acesso à cidade por grupos populares e suas diferentes formas de integração ao
mundo urbano, assim como a lógica mercantilista de desenvolvimento do território
carioca. Essa lógica entra em conflito com a efetivação da universalização dos direitos
sociais, compreendendo que o acesso à moradia possui um papel fundamental para o
acesso dos cidadãos aos demais direitos. Torna-se importante também compreender o
papel do Estado neste processo.
Neste sentido, o intuito deste trabalho consiste em trazer para o debate a análise de
alguns aspectos considerados significativos no que tange ao relacionamento entre as
temáticas dos movimentos sociais, da habitação como direito social garantido
constitucionalmente, e, portanto, caracterizado como política social, e a relação deste
fenômeno com a administração pública.
De maneira especial, consideramos que tais aspectos estão diretamente
relacionados à intersecção entre pobreza e processo de modernização urbana, entre
princípios constitucionais que promovem justiça social, contrapostos aos interesses do
mercado no que se refere aos investimentos de “desenvolvimento” urbano e entre
organizações da sociedade civil e gestão pública.
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Metodologia
O método utilizado para o desenvolvimento da pesquisa se deu em cinco fases:
1- Análise documental sobre a questão habitacional brasileira, compreendendo o
papel do Mercado e do Estado para permanência do déficit habitacional;
2- Referencial teórico acerca das categorias analíticas que envolvem o tema central;
3- Pesquisa documental sobre o movimento sem-teto e acompanhamentos da
imprensa no período entre 2012 e 2014;
4- Pesquisa de campo, em movimentos sem-teto específicos, através de observação
participante, entrevista com lideranças dos movimentos, participação em atos
públicos, participação em atividades realizadas com as crianças por apoiadores
das ocupações, participação em reuniões entre moradores e apoios, e
participação na organização de um sarau realizado dentro de uma das ocupações.
1- Questão habitacional no Brasil
Segundo dados da Fundação João Pinheiro, do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento e do Banco Internacional de Desenvolvimento, o déficit
habitacional brasileiro é da ordem de 5.414.944. Paradoxalmente, estes organismos
apontam para a existência de 6.052.161 de imóveis vazios no mesmo território, situação
que reflete o alto grau de desigualdade social da sociedade brasileira.
Como consta no artigo 6° da Constituição Brasileira, e em diversas declarações
internacionais (Anexo I), como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a
habitação é um elemento fundamental para a superação das desigualdades sociais e para
o exercício dos demais direitos dos cidadãos.
Sem moradia, uma vida saudável torna-se pouco provável, além de ser um
obstáculo no acesso ao mercado formal de trabalho e/ou ao sistema educacional. Sem
registro oficial, o indivíduo passa da condição de cidadão para a de indigente, habitantes
de ruas, becos e viadutos. Antes desse extremo, contudo, submete-se a moradias
superlotadas, distantes de seus locais de trabalho e sem condições de habitação digna,
muitas vezes pagando ainda aluguéis incompatíveis com sua renda.
Por ser um elemento fundamental à vida, a habitação tornou-se direito
constitucional; assume também valor de mercado e gradativamente é transformada em
mercadoria, adquirível através da compra ou aluguel. Ao mesmo tempo, passa a ser
pauta de luta para movimentos sociais e ativismos urbanos.
Após o período de redemocratização brasileira, a reivindicação por melhores
condições de moradia geraram a criação de mecanismos de participação popular, como
os Planos Diretores e o Estatuto da Cidade1, que visam a atender a essas reivindicações.
No entanto, esses mecanismos não vêm, de fato, gerando melhorias nas condições de
vida e habitação para a grande maioria da sociedade.
Como solução para o déficit habitacional, diversas estratégias de ocupação do
terreno urbano foram realizadas pelos segmentos marginalizados. É possível afirmarmos
que no Brasil milhões de famílias vivem em loteamentos irregulares, por definição à
margem das cidades formais. Estudos, hoje, indicam que 30% da população das grandes
metrópoles brasileiras residem em áreas faveladas. No Rio de Janeiro, cidade que será
1 Estatuto da Cidade é criado em 2001, resultado das lutas de setores da sociedade – sobretudo daqueles
mais marcadamente excluídos do direito à cidade. Surge como possibilidade de redesenhar o modelo de
política urbana que tem imperado no Brasil. No entanto, a pesquisa coordenada pelo Observatório das
Metrópoles em 2011, mostra que a aplicação destes mesmos instrumentos ou a sua articulação com o
território e com estratégias de desenvolvimento urbano tem se mostrado muito deficiente. Mais em:
http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&id=104%3A10-anos-
do-estatuto-da-cidade&Itemid=171&lang=pt
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analisada neste relatório, cerca de dois milhões de habitantes vivem em territórios
informais, o que equivale a 1/3 de sua população.
Para além da ocupação de loteamentos irregulares, existem também outras
estratégias de moradia desenvolvidas pelas classes populares, como é o caso das
ocupações sem-teto. Nessas ocupações, articuladas a movimentos sociais e a ativismos
sociais, não se admite a venda ou aluguel, do lote ou da residência. O solo ou o quarto
destina-se, exclusivamente, à moradia e a atividades que tenham por objetivo a melhoria
da vida dos ocupantes, sendo essa a justificativa da política da ocupação. Enquanto na
favela e demais loteamentos irregulares, segundo Lícia Valladares [1], a residência é
adquirida, majoritariamente, através de relações comerciais, nas ocupações sem-teto, a
moradia é conquistada através de uma ação política.
Este relatório visa analisar duas ocupações sem-teto situadas na região central da
cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, torna-se importante compreender este espaço da
cidade, que possui forte importância para a escolha estratégica de local a ser ocupado
pelos movimentos sem-teto na maioria das cidades brasileiras.
1.2 – Região central e mercado imobiliário
Há aproximadamente 70 anos, em 1940, as duas maiores cidades brasileiras,
respectivamente São Paulo e Rio de Janeiro, tinham pouco mais de 1 milhão de
habitantes cada uma. A maior parte da população vivia no campo e a industrialização,
que atraiu milhões de migrantes para as cidades, ainda estava em seu início no país.
Já neste período, as condições habitacionais eram escassas. A população pobre
urbana vivia em cortiços, cômodos de aluguel e nas chamadas vilas operárias, que eram
conjuntos de casas que as empresas ofereciam aos empregados, que pagavam com parte
de seu salário, época em que os trabalhadores já lutavam por melhores condições de
moradia. A primeira grande mobilização conhecida em relação a essa questão foi entre
1917 e 1919, com a formação da Liga dos Inquilinos, contra despejos e os valores
abusivos, quando os manifestantes utilizaram como estratégia o não pagamento de seus
aluguéis. Entre 1945 e 47, também ocorreram grandes movimentos, em especial em São
Paulo e no Rio de Janeiro, com as mesmas reivindicações.
Mas neste período havia uma grande diferença em relação à cidade de hoje. A
periferia praticamente não existia. Os trabalhadores moravam em bairros centrais,
próximos do local de trabalho, com serviços públicos e infraestrutura. No entanto, a
partir da década de 50, se inicia o processo de grande migração de uma parcela da
população do meio rural para a cidade. Essas pessoas se deparam com a falta de
infraestrutura do meio urbano, em acolher este contingente de migrantes, tanto em
moradia, quanto em trabalho. Este fenômeno foi denominado por Lícia Valladares [2]
de superurbanização.
Como solução para este problema, as elites políticas e econômicas das grandes
cidades, alicerçadas ao Estado, realizaram a transferência do pobre urbano para regiões
mais distantes dos centros das grandes cidades brasileiras. Assim, demoliram os
cortiços, despejaram favelas e aumentaram o valor dos aluguéis, que se tornaram
inviáveis para a maior parte daqueles que antes viviam nos bairros centrais da cidade.
Ao mesmo tempo, abriram loteamentos clandestinos em áreas distantes, onde não havia
nada, para vendê-los para aqueles que não tinham mais onde morar.
Sem ter alternativa, os trabalhadores compravam estes lotes, tendo ainda que usar
os finais de semana para construir suas casas com as próprias mãos. Além disso, foram
jogados em locais com infraestrutura precária, e sem qualquer serviço público, como
saúde, creche, escola, dentre outros.
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A consequência deste processo é um modelo de cidade profundamente desigual e
opressor. Nas palavras de Lefebvre [3], torna-se a cidade do capital, modo que o
capitalismo desenvolveu o espaço urbano, gerando um modelo urbano que possui como
uma das características fundamentais a forte segregação socioespacial, causada pelo
domínio dos interesses privados.
A valorização é extremamente prejudicial à população urbana e de baixa renda,
pois a maior parte das casas em bairros periféricos é irregular, não possui escritura,
como também acontece nos loteamentos irregulares, por exemplo, a favela. Esta
valorização torna este segmento da população alvo constante de despejos que visam a
construção de novos empreendimentos, como também o aumento dos aluguéis, que
expulsam os inquilinos para regiões mais periféricas.
Para mitigar os problemas da desigualdade social desenvolvidos pelo modelo
capitalista de urbanização, o Estado deveria apresentar políticas habitacionais que
resolvessem o déficit habitacional brasileiro, gerando cidades com maior justiça social,
e que dessem a toda população os direitos sociais básicos para a mínima dignidade da
vida, principalmente o direito à moradia. Para tanto, torna-se importante analisar as
políticas públicas realizadas ao longo da história brasileira, para a compreensão da
permanência do déficit habitacional.
1.3- O papel do Estado: Programas habitacionais no Brasil
Esta parte do relatório visa mapear as características gerais2 das duas políticas
habitacionais de âmbito nacional que foram implementadas ao longo de toda a história
do país: o Banco Nacional de Habitação durante a ditadura militar, e o Minha Casa,
Minha Vida, a partir do governo Lula.
O Banco Nacional de Habitação, criado após o golpe de 1964, foi uma resposta do
regime militar à forte crise de moradia presente no país em um período que se
urbanizava aceleradamente Buscava, por um lado, angariar apoio entre as massas
populares urbanas, segmento que era uma das principais bases de sustentação do
governo de João Goulart, por outro, criar uma política permanente de financiamento
capaz de estruturar em moldes capitalistas o setor da construção civil habitacional,
objetivo que acabou por prevalecer.
A famosa frase – “a casa própria faz do trabalhador um conservador que defende
o direito de propriedade” – atribuída a Sandra Cavalcanti, primeira presidente do BNH,
expressa a preocupação de fazer da política habitacional baseada na casa própria um
instrumento de relação com a propriedade no país, em tempos de Guerra Fria e de
intensa polarização política e ideológica em todo o continente. No entanto, foi o papel
econômico desta política habitacional – que dinamizou a economia, através da geração
de empregos e fortalecimento do setor da construção civil –, que a transformou num dos
elementos centrais da estratégia dos governos militares.
A estratégia implementada pelo BNH beneficiou a construção civil que pôde
contar com uma fonte de financiamento estável para a produção de unidades prontas,
mas contribuiu pouco para enfrentar o problema que o órgão se propunha a resolver.
Ademais, utilizando apenas recursos retornáveis, sem contar com qualquer fonte de
subsídios e adotando critérios de financiamento bancários, o sistema excluiu parcelas
significativas da população de mais baixa renda do atendimento da política habitacional.
Das 5 milhões de casas financiadas pelo BNH, apenas 25% (1 para cada 4) foram
destinadas a famílias com renda menor que 5 salários mínimos. Isto correspondeu a
somente 12% do total de recursos aplicados pelo Banco. 2 BONDUKI, Nabil Georges. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas
perspectivas no governo Lula. Disponível em: www.usjt.br.
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A crise do modelo econômico implementado pelo regime militar, a partir da
década de 80, gerou recessão, inflação, desemprego e queda dos níveis salariais,
repercutindo na sua capacidade de investimento da política habitacional. Com a falência
do BNH em 1986, o país ficou mais de 20 anos sem ter qualquer política habitacional
nacional, até 2009, quando se cria o programa “Minha Casa, Minha Vida” no governo
do Partido dos Trabalhadores.
No entanto, a análise do programa habitacional do governo atual demonstra que a
distribuição do benefício também não corresponde ao grupo social que mais necessita
destes programas, isto é, aqueles que recebem até 3 salários mínimos. O programa foi
lançado em fevereiro de 2009, alguns meses depois da explosão da maior crise
econômica deste século, ocorrida em 2008, nos Estados Unidos. Depois deste período,
os investimentos na construção civil caíram brutalmente no mundo todo, inclusive no
Brasil. Por essas razões, o ano de 2009 caminhava para ser um período com poucos
lucros para as grandes empreiteiras brasileiras.
Segundo a visão de alguns analistas3, o programa Minha Casa, Minha Vida, foi
desenvolvido com o objetivo central de salvar o capital imobiliário, injetando R$34
bilhões em recursos públicos para as empresas privadas, processo que segundo o ex-
presidente Lula, fazia com que através do programa Minha Casa, Minha Vida fosse
realizado uma “reconciliação entre o capital e o trabalho” 4, atendendo os interesses de
todos, sem conflitos.
No entanto, com a valorização da construção civil, o programa manteve a mesma
lógica que foi vista no caso do BNH. Em relação à população atendida, cerca de 75% do
recurso e 60% das habitações do programa foram destinadas a famílias com renda maior
do que 3 salários mínimos, exatamente porque se tratando de imóveis mais caros, as
empreiteiras ganhavam mais.
Apenas 40% das moradias do programa são destinadas às famílias com renda
menor do que três salários, o que representa menos de 10% do déficit habitacional nesta
faixa de renda. Além disso, ao deixar nas mãos das empresas todo o processo de
construção, os conjuntos habitacionais são construídos em regiões muito periféricas,
com pouca infraestrutura, já que os terrenos ali custam menos para as empreiteiras. A
qualidade e tamanho das moradias são também os piores possíveis. Para as famílias com
menos de 3 salários, o parâmetro do tamanho das casas é de 32m².
Por outro lado, é fato que o programa representou um avanço importante em
relação à quantidade de subsídio para a aquisição da casa. O volume de subsídios que
envolveu, especialmente para as famílias com menos de 3 salários, é expressivo e
inédito, mas isso se combina com localização ruim, qualidade precária e quantidade
muito insuficiente das moradias para os mais pobres.
Em conclusão, é possível afirmar que o programa Minha Casa, Minha Vida
aprofundou, ao invés de combater, a lógica da moradia como uma mercadoria, e não
como um direito, aprofundando também o princípio de expulsão do trabalhador urbano
dos centros da cidade, deslocando-os para regiões cada vez mais periféricas, sem
3 Ver em: FERREIRA, João Sette Whitaker. Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um
Brasil urbano. Parâmetros de qualidade para projetos habitacionais e urbanos, São Paulo, 2011;
MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011;
FERREIRA, Regina Fátima C. F. Movimentos de moradia, autogestão e política habitacional no Brasil:
do acesso à moradia ao direito à cidade. 2º Fórum de Sociologia “Justiça Social e Democratização”,
2012. 4 Lula faz essa afirmação na abertura do 81º Encontro Nacional da Indústria da Construção (ENIC), no
Rio de Janeiro, em 2009. Ver mais em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3729&Itemid=79
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condições básicas de vida, como infraestrutura, serviços, lazer, dentre outros. Sem estas
condições básicas, não se pode falar em moradia digna.
Após este preâmbulo mais detalhado da questão habitacional, é importante ver
que referencial teórico nos ajudará a compreender melhor como se constitui a lógica do
movimento sem-teto, e todos os fatores que estão interligados à formação deste
movimento social, tendo como pano de fundo o déficit habitacional mostrado acima.
2- Referencial teórico
Trazendo a análise da questão habitacional brasileira para a introdução do tema
analisado, é possível apresentar uma moldura conceitual que será utilizada no presente
relatório. Torna-se, neste sentido, importante enfatizar o paradigma da universalização
dos direitos sociais, em especial o direito à moradia para formular como hipótese geral
desse trabalho a existência de um enorme déficit na fruição deste direito social nas
principais cidades brasileiras.
A análise de Celso Lafer [4] sobre os direitos humanos ajuda a entender o
problema no que se refere à questão da efetivação da cidadania de modo universal. O
autor apresenta o processo de reconstrução dos direitos humanos que tem como marco
para seu desenvolvimento o fim da Segunda Guerra Mundial, afirmando-se como
resposta às atrocidades e aos horrores cometidos pelo regime nazista. Esse momento
culminou com um pacto internacional que estabeleceu uma nova ordem fundada na
universalização dos direitos humanos, trazendo a necessidade de alicerçar o ideário dos
direitos através de normas internacionais. O marco fundador deste novo pacto foi a
Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
Com o intuito de proteger todos os indivíduos, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos afirma em seu preâmbulo que o “reconhecimento da dignidade
inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis
é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
Sendo assim, os direitos humanos alcançaram, no plano internacional, o status de
valores fundamentais. Como afirma Lafer, “tornaram-se, pois parâmetros das formas de
conceber a vida em sociedade, standards da legitimidade do poder das soberanias e
como tal indicadores e balizas do locus standi e da credibilidade dos Estados e de seu
acesso à cooperação internacional”.
Utilizando-se da teoria de Hannah Arendt [5], o autor afirma que a construção e
reconstrução dos direitos humanos são derivadas de processos históricos, e, portanto
não são um dado, mas um constructo, uma invenção humana, em constante mutação. A
partir dos problemas postos pelo totalitarismo, Hannah Arendt constata que o primeiro
direito que o ser humano deve ter é o direito a ter direitos. Para a autora, os direitos
humanos, com isso, só podem ser fruto da ação, ou seja, da vida activa, que implica no
movimento em direção à participação política no espaço público.
Para que os indivíduos possam agir livremente, Hannah Arendt fundamenta a
invenção dos direitos humanos na diferenciação entre público e privado: o espaço
privado seria o lugar onde os indivíduos construiriam suas personalidades e
singularidades, isto é, os aspectos que os diferenciam uns aos outros, enquanto que o
espaço público seria o local baseado na igualdade entre os indivíduos, e, portanto,
espaço de extrema importância para a práxis política, e consequentemente, para
ampliação dos direitos.
Neste sentido, a diversidade da esfera pública exige uma redistribuição que
permita a redução das diferenças sociais. Assim os indivíduos conseguiriam se
diferenciar na esfera pública e praticar a lógica da ação. Sem as condições para os
interesses ligados à vida, a ação na esfera pública é bloqueada. Outro elemento também
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é o direito à informação e educação como condições essenciais para a manutenção de
um espaço público democrático.
A mesma ideia de esfera pública é concebida por Habermas [6], quando o autor
analisa a “mudança estrutural da esfera pública”, tentando compreender a formação das
primeiras associações da sociedade civil burguesa a partir do século XVIII, momento
em que os indivíduos passam a se reunir em locais públicos em condição de igualdade e
autonomia em relação ao Estado e ao mercado, e tratam de questões que se tornam
publicamente relevantes.
Como aponta Charles Taylor [7], para se atingir o mínimo de igualdade na esfera
pública, é de crucial importância o reconhecimento de todos os indivíduos de
determinado Estado-Nação como detentores de igual dignidade.
A partir da leitura desses autores é possível mapear quatro condições básicas para
que ocorra a cidadania plena para os indivíduos: ela precisa ser universalizada, ou seja,
contemplar todos os membros de determinado Estado-nação; deve ser reconhecida na
esfera pública por todos os outros grupos; deve haver o princípio geral do cidadão com
o “direito a ter direitos”; e por fim necessita de um espaço público democrático, para
que a cidadania possa ser exercida.
Utilizando esta chave analítica, torna-se necessário compreender quais foram os
processos históricos brasileiros que dificultaram a efetivação da universalização dos
direitos, já tendo sido apontado, no início do trabalho, a continuidade de desigualdades
sociais ainda profundas em nossa sociedade, enfatizando aqui o déficit habitacional
estudado.
Para tanto, partiremos da premissa colocada por R. Bendix [8] sobre a importância
de se realizar uma análise histórico-sociológica para compreensão do processo de
modernização que cada Estado-nação desenvolve, pois segundo o autor, cada sociedade
conjuga a forma que ocorreu a sua integração nacional com a extensão dos direitos,
dando singularidade a cada processo. Esses direitos podem mitigar os efeitos da
desigualdade produzida pelo sistema capitalista.
Para se entender a análise histórico-sociológica da modernização brasileira,
Werneck Vianna [9], em A Revolução Passiva, e José Murilo de Carvalho [10], em
Cidadania no Brasil, analisam nosso país, observando o papel do Estado e da sociedade
civil nessa formação. Cada qual, em chave analítica distinta, mostra como foi
desencadeada a modernização conservadora brasileira. Como breve síntese, pode-se
dizer que ambos observam que a modernidade brasileira ocorreu sem a ruptura com a
base associativa da sociedade anterior, gerando uma sociedade hierarquizada e
excludente.
Werneck utiliza o conceito de Gramsci de revolução passiva, com o intuito de
demonstrar que o caso brasileiro pode ser analisado a partir dessa chave analítica:
porque ao invés de construirmos grupos ou classes sociais que se contrastassem aos
grupos tradicionais, como ocorreu na maioria das sociedades de classes, no caso
brasileiro não foi observada a dissolução dos grupos conservadores e tradicionais no
poder. Assim, todas as mudanças que ocorreram no país não podem ser denominadas de
revoluções, como afirma o autor, uma vez que estas transformações tiveram como maior
objetivo acomodações e arranjos que possibilitassem a continuidade do poder nas mãos
de poucos. Nesta conjuntura, o Estado estaria posto, diante da sociedade civil, em
posição de radical autonomia.
Apesar de Werneck Vianna apresentar a modernização brasileira como um
processo “sem revoluções”, o autor nos aponta que ao longo da história brasileira
ocorreram transformações moleculares que impulsionaram o país para o avanço de um
Estado democrático de direitos, ainda que essas ações moleculares estivessem
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controladas e dirigidas pela autoridade estatal. Estas mudanças e transformações
tiveram como marco de inflexão no processo histórico o período de redemocratização
pelo qual passou o Brasil durante a década de 1980, quando afloram diversas formas de
mobilizações e associativismos sociais, dentre os quais, os movimentos sociais, negando
as conceituações antes colocadas para a sociedade civil brasileira como amorfa e
passiva.
Constrói-se no momento de ampliação democrática uma nova Constituição, em
1988, cuja participação popular foi intensa, sendo a nova carta constituinte chamada de
Constituição Cidadã, conforme aponta José Murilo de Carvalho. O autor também
apresenta o período de redemocratização brasileira como momento de esforço de
construção e reconstrução da cidadania no país. Para compreensão deste percurso
constitutivo dos direitos, o autor utiliza a chave analítica de T. H. Marshall5,
apresentando-o a partir da leitura dos direitos civis, políticos e sociais, como um
fenômeno complexo e historicamente definido.
José Murilo de Carvalho também aponta que a cidadania desenvolveu-se de modo
simultâneo à formação dos Estados nacionais, processo que se inicia com a Revolução
Francesa. Assim, a luta pelos direitos é uma luta política nacional, isto é, que a
construção da cidadania tem a ver com a relação dos indivíduos com o Estado e com a
nação. Utilizando o caso inglês como modelo comparativo, formulado por Marshall, o
autor toma como conclusão que no caso brasileiro os direitos não vieram a partir de uma
ação política da sociedade civil, como ocorreu na Inglaterra. Ao contrário, eles foram
adquiridos via atribuição estatal, criados conforme interesses dos governantes e das
oligarquias políticas brasileiras, não estando o resto da sociedade no comando de suas
demandas políticas.
Corroborando com a análise de diversos cientistas sociais sobre a formação social
brasileira, o autor aponta que existiram na história do país dois obstáculos principais ao
desenvolvimento da cidadania: o legado da escravidão, cujo fim não trouxe a
emancipação efetiva dos ex-escravos, refletindo-se até hoje em tensões raciais no país, e
a existência de forte concentração fundiária, que perdura até os dias atuais. Elementos
que combinados, geraram como consequência grande concentração de renda e poder por
pequenos grupos detentores que, utilizando mecanismos estatais, tomaram decisões de
cima pra baixo, enquanto a população esteve por muito tempo alijada de qualquer tipo
de participação. Como consequência, ao invés da conquista da cidadania no Brasil, José
Murilo afirma que ocorreu outro tipo de processo, que cunhou de estadania: a
construção dos direitos de modo verticalizado, através da concessão do Estado, sem
autonomia para a sociedade civil, análise que complementa a teoria de Werneck Vianna.
O autor demonstra que o período de redemocratização brasileira gerou a esperança
na sociedade de que os problemas históricos e sociais do país seriam resolvidos, criando
assim uma nova relação entre Estado e sociedade civil, principalmente pela grande
participação política e a volta à democracia. No entanto, toda esta efervescência política
não modificou profundamente o quadro da nossa desigualdade social. Nas palavras do
autor, em 1991:
“Havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade
nacional. Pensava-se que o fato de termos reconquistado o direito de eleger nossos prefeitos,
governadores e presidente da República seria a garantia de liberdade, de participação, de segurança, de
desenvolvimento, de emprego, de justiça social. De liberdade ele foi. A manifestação do pensamento é
5 Para Marshall primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os
direitos políticos. Os direitos sociais foram conquistados no século XX. Para ele, trata-se de uma
sequência cronológica. “O surgimento sequencial dos direitos sugere que a própria ideia de direitos, e,
portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico” (p.11).
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livre, a ação política e sindical também. O direito do voto nunca foi tão difundido. Mas as coisas não
caminharam tão bem em outras áreas. Pelo contrário. Já 15 anos passados desde o fim da ditadura,
problemas centrais de nossa sociedade, como a violência urbana, o desemprego, o analfabetismo, a má
qualidade da educação, a oferta inadequada dos serviços de saúde e saneamento, e as grandes
desigualdades sociais e econômicas ou continuam sem solução, ou se agravam, ou quando melhoram, é
em ritmo muito lento”. (pg.24).
Vera Telles [11] analisa esse período pós-redemocratização, que desembocou na
Constituição mais democrática da história do país, mas que não se traduziu numa real
modificação do quadro das desigualdades sociais produzidas por nosso contexto
histórico. Como saldo analítico desse período, a autora apresenta que em nosso processo
de modernização foram mantidos sem resolução os problemas sociais histórico do país,
o que gerou a não inclusão de boa parte da sociedade brasileira nesta modernização.
Esta seria, na visão da socióloga, a tragédia social brasileira na atualidade.
Para a autora, a reestruturação industrial, as mudanças no padrão tecnológico e
transformações na composição do mercado vêm produzindo um novo tipo de exclusão
social, em que à integração precária no mercado se sobrepõem o bloqueio de
perspectivas de futuro e a perda de um sentido de pertinência à vida social. É o que ela
caracteriza como a chamada nova pobreza, uma vez que é impossível se pensar na
integração constante e regular através do mercado de trabalho, onde além do contexto
de subemprego, não chegam para esta parcela da sociedade os serviços de consumo
básicos para sua sobrevivência, como a moradia, saneamento básico, segurança, saúde.
Trazendo este debate para a cidade do Rio de Janeiro, onde se localiza o
movimento social a ser apresentado, é útil analisar o conceito de cidade escassa, de
Maria Alice Rezende de Carvalho [12]. A autora chama a atenção para o problema da
autonomização crescente da organização social em relação ao quadro político-
institucional, fazendo uma análise a partir do processo histórico e político de
modernização brasileira, que aparece, como sua consequência, a baixa legitimação da
autoridade política do Estado, uma vez que este possui baixa capacidade de articulação
dos apetites sociais à vida política organizada.
Em resumo, a “cidade escassa” estaria estreitamente associada ao não
cumprimento do Estado para com as suas obrigações, gerando, como consequência, a
organização da experiência social baseada em uma intensa fragmentação de juízos,
fenômeno que ocorre no Brasil como um todo, e que tem no Rio de Janeiro local
especial de análise.
Como referência histórica da cidade analisada, a autora observa a experiência do
Rio de Janeiro como sede do Estado imperial brasileiro, o qual, após pacificar os
diferentes segmentos da classe senhorial, imprimiu uma ordenação política centralizada
e eficiente, do ponto de vista da preservação territorial, porém excludente da maioria da
população. O Rio de Janeiro como corte conheceu uma enorme clivagem entre a vida
social e a esfera estatal organizada. Sociedade de um lado, política de outro, os nexos
desenvolvidos, então, foram sempre esporádicos, limitados em seu alcance, e informais.
Na República Velha desenvolveu-se ainda mais esse padrão de evolução política em que
o Estado ocupa integralmente o espaço público – como foi pontuado por José Murilo de
Carvalho como “estadania”.
No Rio de Janeiro, liberdade social e autonomia cultural, associadas à interdição
da participação popular na esfera política, emprestaram maior dramaticidade à
experiência de “estadania”, processo que se mantêm, na visão da autora, graças aos
intensos padrões de exclusão de grande parte da população, que não se reconhece como
membro integrante de uma trajetória coletiva, tornando a cidade objeto de apropriação
privatista e de disputa generalizada e violenta entre os seus habitantes.
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Destaca-se então, o fato de que a marginalização política dos segmentos populares
e o desenraizamento social das instituições democráticas, embora sejam fenômenos
comuns a todo o país, produziram, na cidade do Rio de Janeiro, estímulo à cisão da sua
população pobre em grupos e crescentemente antagônicos, por serem portadores de
chances desiguais de satisfação das suas demandas, dada a diferenciação do poder de
barganha. Como conclusão, sustenta-se que o ambiente social do Rio de Janeiro, com a
secular fragmentação da cidade, inibiu as possibilidades de comunicação e as práticas
de reciprocidade entre os diferentes atores urbanos.
David Harvey [13] ajuda a compreender de modo mais macroestrutural este
processo, apontando em seu artigo O Direito à Cidade, que para além das
especificidades históricas de cada país, a modernidade e a implantação do sistema
capitalista acirraram este modelo de cidade privatista. Com a inserção da lógica
neoliberal, que valoriza o individualismo e recusa as formas coletivas de ação política,
ocorreu o fortalecimento deste modelo para a socialização humana. Constatação que
apresenta grande perigo, uma vez que, segundo o autor, o modelo de cidade está
intrinsicamente ligada ao tipo de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza,
estilos de vida, tecnologias e valores estéticos realizados pela população que a habita. O
autor aponta a importância de se repensar as cidades, não como espaços de liberdade
individual para o acesso aos recursos urbanos, mas como um direito coletivo de modelar
e remodelar os processos de urbanização, de modo a englobar todos os indivíduos.
Apesar de sua análise ter uma perspectiva global, Harvey nos ajuda a
compreender as consequências da junção das características da cultura política
brasileira, em especial no caso do Rio de Janeiro, com o novo modelo globalizado de
urbanização, modelo que se baseia na valorização do lucro e da propriedade privada em
prol do direito à cidade que estão hoje interconectados no nosso contexto histório,
reforçando a estrutura de exclusão social nas grandes cidades brasileiras.
Este modelo global de urbanização segundo a lógica capitalista gera em certas
áreas, em particular as de localização central, a derrubada das casas dos segmentos
marginalizados, colocando no seu lugar lojas, armazéns e edifícios públicos. Este
processo é denominado pelo autor de acumulação por desapropriação (outros autores o
chamam de “gentrificação”), deslocando as populações de baixa renda, que em muitos
casos vivem ali há muitos anos, originando conflitos sociais em torno da disputa destas
terras. No entanto, é uma disputa de poder assimétrica, que na maioria dos casos as
massas populares sofrem mais com as consequências.
Combinando a problemática da desigualdade social gerada no interior de nosso
processo histórico ao novo modelo global de urbanização que se encontra também
vigente nas grandes metrópoles brasileiras, os horizontes para a resolução da questão
social brasileira se encontram em difícil equação. Nessas condições, os ideais de
identidade urbana, cidadania e pertencimento se tornam muito mais difíceis de
sustentar.
Harvey também salienta que a redistribuição privatizada por meio de atividades
criminosas se torna uma ameaça à segurança individual, provocando a demanda popular
pela repressão policial. E mesmo a ideia de que a cidade possa funcionar como um
corpo político coletivo, um lugar dentro do qual e a partir do qual possam emanar
movimentos sociais progressistas, parece implausível. Há, porém, segundo o autor,
movimentos sociais urbanos tentando superar o isolamento e remodelar a cidade
segundo uma imagem diferente daquela apresentada pelas incorporadoras imobiliárias,
apoiadas pelos financistas, as grandes corporações e um aparato estatal local com
mentalidade cada vez mais influenciada pelos negócios. Como combate a este modelo
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de cidade cada vez mais influenciado pelos negócios, o ideal de cidadania e direito à
cidade devem tornar-se então um slogan a ser utilizado pelos movimentos sociais.
Elisa Reis [14] também aponta a necessidade de resistência e de amplo debate no
meio público, uma vez que o conflito seria um componente necessário para ampliação
dos direitos e desenvolvimento de um país mais justo e humano, já que eles redefinem a
relação entre o Estado e seus cidadãos. Com visão weberiana do Estado, a autora aponta
a falta de universalismo de procedimentos, e a necessidade de se acabar com o
corporativismo estatal, que está sempre em prol de interesses de pequenos grupos, ao
invés de oferecer o bem social através do gerenciamento dos direitos básicos.
Este maior envolvimento entre movimento social e Estado seria de extrema
importância na visão de Elisa Reis. Estas organizações auxiliariam na melhor
compreensão do conceito de cidadania por possuírem como essência a estratégia
política, vislumbrando os espaços públicos como campos de batalha e levando para
dentro desta esfera o conflito, que seria importante para construção de demandas e,
consequentemente, para a ampliação da cidadania.
Objetivando o campo dos direitos como um conjunto de práticas, discursos e
valores que estabelecem uma forma de sociabilidade e reciprocidade, Vera Telles afirma
que a resposta para este dilema aparece na necessidade de se desenvolver uma
reinvenção das leis da cidade, através da valorização de fóruns e modos alternativos
para problematizarmos as questões que envolvem o país, através também de uma nova
relação entre movimentos sociais e Estado, uma vez que os direitos são reguladores das
práticas sociais e auxiliam na construção de uma gramática civil.
Já Evelina Dagnino [15] afirma que o termo cidadania deriva e está
intrinsicamente ligada à experiência concreta dos movimentos sociais, tanto os de tipo
urbano, quanto os movimentos identitários, em que a luta por direitos, tanto o direito à
igualdade quanto o direito à diferença, constituiu a base fundamental para a emergência
de nova noção de cidadania.
Este relatório tem o intuito de analisar o movimento sem-teto, um dentre os
diversos movimentos sociais urbanos existentes no Brasil. Para a sua compreensão, será
utilizada a corrente teórica culturalista-identitária que constitui os chamados novos
movimentos sociais. Maria da Glória Gohn [16] destaca que as novas ações dos
movimentos sociais contemporâneos abrem espaços sociais e culturais, são compostas
por sujeitos e temáticas que não estavam anteriormente na esfera pública ou não tinham
visibilidade, como por exemplo, o movimento de mulheres, negros, dentre outros.
Ao desenvolver a abordagem culturalista, os autores que a utilizam destacaram a
questão da identidade dos movimentos sociais, deixando como resultado a capacidade
dos movimentos de produzirem novos significados e novas formas de vida e ação
social, apresentando uma pedagogia no processo de ação coletiva, como aponta Maria
da Glória Gohn [17]. Esta corrente teórica corrobora com a análise de Harvey sobre a
importância dos movimentos urbanos para a criação de novos modelos de cidade
possíveis.
Essas mobilizações contemporâneas não possuem uma base social demarcada, e
seus atores não se definem mais por uma única atividade, por exemplo, o trabalho, mas
por diferentes formas de vida. Assim, a partir da década de 1960, esses novos
movimentos sociais trazem reivindicações não mais relacionadas à classe, sindicatos, e
tampouco aos partidos políticos, formas clássicas de mobilizações em todo o mundo6.
6 Não é o objetivo tratar do estudo das diversas interpretações teóricas dos vários movimentos sociais.
Mesmo os movimentos contemporâneos que se articulam em torno das precárias condições materiais
serão tratados na chave dos direitos não contemplados na nossa desigualdade estrutural, uma vez que é a
demanda preponderante nos vários movimentos sociais.
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Seus atores constituem grupos marginais em relação aos padrões de normalidade
sociocultural, isto é, fazem parte de minorias excluídas e teriam em comum uma atitude
de oposição.
Angela Randolpho Paiva [18] mostra que o período de redemocratização se torna
marco para análise dos “novos” movimentos sociais brasileiros, que após quase duas
décadas de repressão, começam a pautar a esfera pública agora democrática do país,
trazendo demandas antigas, como o acesso à terra e o direito de associação sindical, e
demandas mais recentes, como o movimento gay ou de pessoas com deficiência.
Outros, como o movimento negro, de mulheres ou indígena, trazem tanto questões
antigas, como a desigualdade social produzida por sua subalternidade histórica, quanto
questões recentes de reconhecimento de uma nova subjetividade – de gênero, de raça ou
de etnias – com reivindicações específicas para maior equidade na participação social.
Parte-se aqui da hipótese de que com a redemocratização brasileira, a sociedade se torna
mais complexa porquanto mais diferenciada, uma vez que antes da redemocratização
brasileira não se pôde observar o protagonismo dos movimentos sociais, autônomos do
Estado. Ao passo que a partir deste momento histórico, vê-se a configuração de novas
relações que se estabelecem entre Estado e sociedade civil.
Observando uma ambivalência na compreensão da prática democrática atual no
país, Leonardo Avritzer (apud Angela Paiva) ressalta que o pano de fundo da
redemocratização se torna a luta pela fruição dos direitos. Analisando duas culturas
políticas no Brasil, o autor aponta-as: uma anterior, cujos pontos de relação entre o
Estado e o sistema político ainda mantém práticas antidemocráticas e a atual, que requer
novas práticas do aparelho do Estado e suas relações com os atores sociais. É o que
Sidney Tarrow [19] vai chamar de momento de oportunidades políticas, quando
mudanças nos constrangimentos para a participação podem criar incentivos importantes
para novos ciclos de reivindicações.
Objetivando compreender mais profundamente o movimento sem-teto brasileiro,
torna-se importante o entendimento da lógica da ação coletiva sustentada. Para tanto, é
preciso verificar quais os componentes necessários à passagem de uma mobilização
coletiva para um movimento social. Neste percurso metodológico, o artigo de Angela
Randolpho Paiva será utilizado, auxiliando na compreensão de autores importantes na
atualidade para a compreensão da constituição de um movimento social.
Alan Touraine [20], um dos pesquisadores que há mais tempo trabalham com o
tema dos movimentos sociais na Europa, estrutura sua análise a partir do que se
convencionou chamar de paradigma acionalista: toda ação é uma resposta a um
estímulo social, ou seja, a conduta dos indivíduos e grupos é baseada em termos de
conflito ou de integração. Vislumbrando a vida social como autoprodução conflitiva,
para o autor, o próprio centro da vida social é a luta permanente pelo uso de novas
tecnologias e pelo controle social das próprias capacidades de transformação da
sociedade. Nas palavras de Touraine, o conflito define-se como “parte das sociedades
cada vez mais complexas, fragmentadas por um grande número de conflitos que
surgem, desenvolvem-se e são resolvidos independentemente uns dos outros”.
Por esse motivo, os movimentos sociais, considerados agentes essenciais de
conflito, são a sua preocupação. O conceito central focalizado é o da ação coletiva,
tendo em sua análise uma recusa à visão da sociedade dominada pelas macroestruturas.
O que ele propõe é uma análise centrada no desempenho dos atores sociais enquanto
sujeitos que atuam na sociedade com suas culturas, seus pertencimentos e sua
historicidade.
Observa-se que Touraine confere em sua teoria importância aos sujeitos da
história como agentes dinâmicos, produtores de reivindicações e demandas, ao invés de
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simples representantes de papéis pré-estabelecidos pelo lugar que ocupam no sistema de
produção. O dinamismo dos atores é visto em termos culturais, de confronto de valores.
Assim sendo, uma teoria dos movimentos sociais deve ser construída, para Touraine, ao
redor das ações coletivas, das representações e luta dos atores.
Deste modo, sua sociologia se fundamenta na busca de compreensão da
orientação que os atores dão às suas condutas e ações. Neste processo, os atores criam
valores, interferem nos processos sociais, criando e desenvolvendo uma identidade com
o grupo que compõem, baseada em crenças e valores compartilhados. Assim, os
próprios atores coletivos são criados no curso das atividades, eles se constituem a partir
dos atributos que escolhem e incorporam como sendo os melhores para definir suas
ações. O ator individual transforma-se em ator coletivo no processo da ação coletiva,
ganha identidade nova, que não é só sua, mas ganha existência enquanto parte do
coletivo.
Como aponta Paiva, a principal característica do ator social, na visão de Touraine,
diz respeito ao processo que se dá na passagem de sua construção de identidade
individual para a identidade coletiva, em um processo de abertura para a solidariedade
social. É o surgimento da empatia que ocorre quando a referência para a orientação do
indivíduo se amplia, passando por um processo de reflexividade ao reconhecer a si
mesmo, aos outros, e aqueles em que o sujeito partilha consensos em comum.
Outro autor importante para a compreensão da formação dos movimentos sociais
é Alberto Melucci [21]. Segundo o autor, os movimentos oferecem um modo distinto
para designar os conflitos do cotidiano, desafiando os códigos culturais a partir de bases
simbólicas, construindo identidades próprias. Os novos movimentos seriam, então,
formas particularistas de resistência, reativas aos rumos do desenvolvimento
socioeconômico em busca da reapropriação de tempo, espaço e relações cotidianas, com
contestações que possuem ordem simbólica, voltada para a construção ou o
reconhecimento de identidades coletivas.
Para Melucci, os atores constroem a ação coletiva à medida que se comunicam,
produzem e negociam significados, avaliam e reconhecem o que têm em comum,
tomam decisões. Assim:
“A identidade coletiva é uma definição interativa e compartilhada, produzida por numerosos
indivíduos e relativa às orientações da ação e ao campo de oportunidades e constrangimentos no qual a
ação acontece” (pg. 342).
Analisando a formação da ação coletiva diferentemente de Touraine, Melucci
define os movimentos sociais não como agentes, mas como forma de ação coletiva que
surge a partir de um campo de oportunidades e constrangimentos, e que possui
organização, lideranças e estratégias. No entanto, essas atividades ocorreriam através de
um processo de construção da identidade coletiva, sendo negociada, sujeita
continuamente à redefinição, conforme as negociações entre os atores.
Assim, podemos observar que tanto Touraine quanto Melucci observam os
movimentos sociais como produtores de modelos organizacionais, influenciando
instituições e atores sociais, possuindo a potencialidade de transformação da cultura a
partir de suas atuações, uma vez que eles institucionalizam práticas sociais e mudam a
linguagem cultural de uma época. Isto porque ao realizarem este processo de passagem
de uma mobilização para um movimento social, com a construção de uma identidade
coletiva e a transformação dos atores sociais em sujeitos, ocorre um processo
denominado por Tarrow de realização da solidariedade social. Como aponta Angela
Paiva, esta é a condição básica para a realização de um movimento social, o momento
em que há a liberação dos mais profundos sentimentos de solidariedade e identidade,
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pontos importantes para a constituição de novos modelos culturais de sociabilidade,
pautados na justiça social.
A partir destes referenciais teóricos para a análise dos movimentos sociais
contemporâneos, torna-se importante compreender mais profundamente a constituição
da ação coletiva do movimento sem-teto, em especial as ocupações sem-teto estudadas
neste relatório.
3- O movimento sem-teto
O movimento sem-teto nasce após a redemocratização brasileira, e através de suas
várias organizações, atua, basicamente, utilizando duas estratégias. A primeira é a
ocupação de terrenos ociosos e utilizados para fins especulativos nas regiões próximas à
cidade; e a segunda consiste em ocupar imóveis abandonados, geralmente de
propriedade do Estado, nas áreas centrais das grandes metrópoles brasileiras, por
possuírem infraestrutura e serviços coletivos, apesar de normalmente encontrarem-se
degradados e inabitáveis.
As organizações do movimento dos sem-teto também se diferenciam em relação
ao seu modelo de organização: as que adotam traços de hierarquia e outras que
organizam suas ocupações através de um formato horizontalizado – no qual a instância
máxima de discussão e deliberação é a assembleia de moradores, também denominada
de Coletivo. Nestas ocupações que possuem modelo horizontalizado, todos os
moradores possuem direito à voz, os votos são distribuídos de acordo com unidades de
moradia, sendo um voto para cada uma.
Nathália Oliveira [22] afirma que as organizações sem-teto são constituídas por
famílias, ou seja, participam delas pais, mães, filhos, avós, jovens e crianças. Há uma
grande diversidade entre os comportamentos, necessidades, e ações desses membros, e,
portanto, suas bases não são homogêneas no que se refere a gênero, etnia e geração. No
entanto, dentro da análise sobre as redes de movimentos sociais populares de luta pela
moradia feita por Maria da Glória Gohn [23], a autora observa a grande presença de
mulheres, especialmente entre os sem-teto. Esta constatação vem sendo apresentada
também em diversas pesquisas acadêmicas7.
A maioria dos integrantes deste movimento social encontra-se desempregada ou,
dentre os empregados, as principais ocupações são: pedreiro, ajudante de servente,
servente de pedreiro, auxiliar de entregas, cobrador de lotação, caminhoneiro, garçom,
lavador de carros, mecânico, pintor de paredes, ambulante, doméstica, auxiliar de
enfermagem, aposentada, costureira, dona de casa. Assim, todos os que estão nos
movimentos dos sem-teto se encontram em uma situação socioeconômica parecida,
partilhando carências e lutando pela mesma coisa: no limite, uma moradia digna para
suas respectivas famílias.
Como aponta Guilherme Boulos [24], um dos líderes do Movimento dos
Trabalhadores Sem-teto (MTST) em São Paulo, os integrantes destes movimentos ao
enfrentarem a não integração ao mercado formal do trabalho ou a integração subalterna,
acabam não tendo condições de pagar por uma moradia digna. Para o militante, os
programas habitacionais do Estado deveriam resolver este problema, no entanto, vimos
neste relatório que o déficit habitacional se mantêm, e o programa Minha Casa, Minha
7 Ver em: MACEDO, Filho Renato. Onde mora a cidadania? Visibilizando a participação das mulheres
no movimento sem-teto – Salvador/BA , Doutorado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, 2010; GONÇALVES, Renata. Acampamentos: novas relações de gênero
(com) fundidas na luta pela terra. Lutas sociais, n° 13/14, São Paulo, 2005; SOUZA, Helaine Pereira de.
Mães da resistência: histórias de vida de jovens mães do movimento dos sem-teto da Bahia. Mestrado.
Salvador: Universidade Católica de Salvador, 2011.
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Vida – apesar de avançar no subsídio para famílias com menor renda – está focado no
atendimento de quem ganha mais que 3 salários mínimos, faixa que representa apenas
10% do déficit habitacional brasileiro.
A primeira versão do Minha Casa, Minha Vida estabeleceu a meta de 1 milhão de
casas. Dessas, somente 400 mil foram destinadas para famílias com renda menor do que
3 salários. E, em poucos meses de cadastro aberto pelas prefeituras ao redor do país,
estima-se que cerca de 18 milhões de famílias se cadastraram, a grande maioria
realizada pela população de baixa renda. A segunda versão do programa, apesar de
melhorar os números e a proporção, não muda a proposta. Com um milhão de casas, e
18 milhões de cadastrados, o que fazer com os 17 milhões restantes?
Como a maioria destes segmentos marginalizados não consegue comprar uma
casa através do mercado, por conta dos valores elevados impostos pela especulação
imobiliária, e os programas habitacionais não atendem à maioria, especialmente entre os
mais pobres, a única solução seria o aluguel. No entanto, os aluguéis aumentam a cada
dia acima dos índices de inflação, também por conta da especulação, e nesta situação,
muitas famílias deixam de manter condições básicas para viver, precisando mudar para
áreas distantes das regiões centrais da cidade, com infraestrutura precária e serviços
públicos inexistentes ou insuficientes para todos os moradores.
O direito à moradia, garantido constitucionalmente, e, portanto, garantido como
um direito fundamental à vida é o móvel da ação concertada do movimento sem-teto.
Mais do que a “invasão” de um prédio abandonado ou de uma fazenda improdutiva, a
estratégia de ocupação e ação direta pode ser vista como um ato de desobediência civil
na reivindicação por direitos constitucionais, visto que a função social da moradia e da
terra esta contemplada na Constituição brasileira. Como afirma uma das entrevistadas,
porta-voz do Coletivo II:
“A falta de uma política habitacional e de planejamento urbano que realmente beneficie a
população de baixa renda obriga milhões de famílias humildes a morar sem a mínima dignidade,
enquanto mais de cinco milhões de habitações encontram-se desocupadas hoje no país. Crime tanto do
ponto de vista moral, já que tanta gente precisa de moradia, quanto do ponto de vista legal, já que deixar
um imóvel sem uso durante anos contraria a Constituição Federal (Art. V) e o Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001).”
Torna-se então importante compreender a lógica da ação coletiva sustentada pelos
movimentos sem-teto analisados na cidade do Rio de Janeiro, tentando compreender o
processo pelo qual passam atualmente. Através da compreensão mais apurada destas
ocupações, será possível observar não só as situações enfrentadas por estas
organizações, mas também suas contradições aqui elencadas.
4- Pesquisa de campo: as ocupações na cidade do Rio de Janeiro
As idas ao campo compreenderam várias atividades: entrevistas realizadas com
moradores e moradoras das duas ocupações, participações em atividades realizadas por
apoiadores com as crianças pertencentes às organizações sem-teto analisadas,
participação em atos públicos, em reuniões entre moradores e apoios e contribuição na
organização de um sarau realizado dentro do Coletivo I, para comemoração de dez anos
da ocupação.
O intuito foi compreender mais profundamente a lógica dos movimentos
analisados, assim como as dificuldades encontradas pelos moradores com a
“requalificação urbana” que ocorre na região central da cidade do Rio de Janeiro, mais
especificamente na Zona Portuária da cidade, local onde se localizam as duas ocupações
estudadas.
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Elas possuem características muito semelhantes na sua concepção, estratégias e
modos de luta. Têm como foco a ocupação de prédios públicos abandonados na região
central da cidade e, após a ocupação do local, constroem um regimento interno de
autogestão. São movimentos apartidários e possuem discurso antissistema. Apoiadas
inicialmente por dois movimentos sociais populares, a Central de Movimentos
Populares (CMP), atualmente extinta, e a Frente de Luta Popular (FLP), cada ocupação
já reside em seus respectivos prédios há aproximadamente 10 anos, o Coletivo I, e há 8
anos, o Coletivo II. No início das ocupações, viviam em torno de 50 a 70 famílias em
cada. Para a organização do espaço, ainda no período das reuniões para a ação direta, foi
estabelecido um regimento interno para organizar o grupo, um conjunto de normas de
convivência, dentre as quais a colaboração de cada morador com o Coletivo nas obras e
melhorias do prédio.
Outro ponto a ser destacado é que ambas pontuam a importância da mulher
popular brasileira, demonstrando a preeminência do discurso feminino dentro do
movimento dos sem-teto. Seus nomes têm o intuito de valorizar o papel da mulher, e,
além disso, a importância deste Coletivo como espaço de resistência do povo negro,
defendendo o local como também um espaço de valorização da cultura negra e seu
resgate, um espaço de construção e identidade. A criação do nome foi explicada por
uma das entrevistadas, vista como uma das porta-vozes de uma das ocupações:
“O nome foi escolhido no primeiro processo, ainda quando era organizado em Vila Isabel. E foi
escolhido por uma moradora, que nem chegou a ser moradora, defendendo a proposta que deveria ser
(...) porque era um espaço onde os negros podiam ter sua cultura, podiam resgatar sua cultura. Não um
espaço de fuga, mas um espaço de construção, espaço de identidade. (...) porque as mulheres ao longo
da história sempre foram negligenciadas, raramente nos livros de história se conta a luta das mulheres,
da vanguarda, de estar à frente da luta, e, sobretudo hoje pela mulher, pela característica que ela exerce
como mãe, como provedora, na sua grande maioria na sociedade. A mulher como pai, mãe... prestar uma
homenagem a essas mulheres.”
A fala da entrevistada reitera a preocupação do movimento em evidenciar a luta
da mulher popular brasileira, além de referirem-se sempre ao nome da ocupação
utilizando artigo definido feminino na frente, ao invés de masculino, com o intuito de
enaltecer o gênero feminino presente na ocupação. Foi assim um espaço de identidade
coletiva construída, como ressalta Alberto Melucci, essencial para dar partida para a
ação coletiva.
O vínculo estabelecido por estas duas ocupações refere-se ao mesmo processo de
organização pelo qual passaram. Os militantes que auxiliaram na criação do Coletivo I,
ao estabelecer este espaço, tinham o objetivo de criar mais ocupações na cidade, criando
entre elas uma rede, que possibilitasse uma organicidade e poder maior para levar suas
demandas ao espaço público. Com este objetivo, nasceu uma demanda maior do que a
possibilidade do prédio um ano depois, o que propiciou o desenvolvimento de novas
reuniões para construção de uma segunda ocupação. O local escolhido neste segundo
momento também se situava na região central, sendo um prédio público que estava
desocupado há mais de duas décadas.
Através do relato dos moradores, foi possível observar que as condições dos
prédios eram de extrema precarização. Ainda sim, com a ajuda de todos os ocupantes
em mutirões de limpeza e organização transformaram o local, antes impossível de ser
habitado, em um espaço que apesar de todas as suas limitações quanto à infraestrutura,
poderia abrigar as famílias dos moradores e moradoras sem-teto.
Desde que as ocupações se estabeleceram, atividades com as crianças e
adolescentes que lá moram eram feitas semanalmente. Para além dos Coletivos, estas
ocupações possuíam redes de colaboradores dos mais variados grupos sociais, que se
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identificavam com a luta dos sem-teto que, denominados de Apoio, realizavam
atividades variadas com os moradores, adultos e crianças das ocupações, participando e
contribuindo em atos públicos e ajudando na articulação desses movimentos com outras
instâncias da sociedade.
Estes apoiadores promoveram diferentes encontros e ações, trabalhando com
música, artes plásticas, literatura, cinema, criação e confecção de jogos e brinquedos.
Havia também passeios mensais para museus, exposições, mostras culturais e espaços
de convivência diversos. As crianças organizaram, com a ajuda destes apoios, um
grande armário onde guardavam brinquedos, jogos, bicicletas e materiais coletivos, os
quais usavam toda semana. Contavam também com uma sala conhecida como a
“escolinha”, organizada por uma moradora, onde eram realizadas atividades
pedagógicas.
Além disso, ocorreu ao longo desses anos, algumas experiências de grupos de
reforço escolar compostos por apoiadores, que auxiliavam as crianças e os adolescentes
e os ajudavam a estudar para provas e concursos. Já houve também outras atividades de
leitura para as crianças, educação de moradores das mais variadas idades e oficinas de
Teatro do Oprimido. Atividades que tiveram como consequência a inserção de jovens e
adultos das ocupações ao ensino superior, transformando e gerando novas chances e
condições de uma vida melhor.
Após muitos anos habitando estes prédios, com muitas dificuldades, as duas
ocupações tiveram avanços institucionais para permanência e legalização de ambos os
espaços. O Coletivo I teve seu prédio contemplado com o recurso do Fundo Nacional de
Habitação de Interesse Social, para projeto e obra, vivendo durante um determinado
período a sensação de uma estabilidade legal.
O Coletivo II, apesar de não permanecer no prédio ocupado, teve como acordo
com o governo o remanejamento para um local próximo, onde será construído um
prédio, que alojará esses moradores e outro movimento sem-teto. O espaço também
conta com recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, mas
contemplado na modalidade de ação “Apoio à Produção Social da Moradia”, o que
necessita que os moradores contribuam na construção do prédio através de auxílio nas
obras.
No entanto, ainda que os moradores venham se reunindo mensalmente desde o
princípio, o projeto até hoje não saiu do papel, passando ainda por processos
burocráticos, sem previsão para o início das obras. Caminhando algumas vezes pelo
local no período de meses, e ainda nesta data em que escrevo este relatório, o espaço
ainda se encontra na mesma situação, tendo apenas uma placa com o possível nome que
será dado a este prédio de habitação popular.
Apesar da difícil luta apresentada por esses Coletivos em nossa cidade, no
primeiro momento da pesquisa foi possível pensar que ambas haviam conquistado o
direito à moradia. Os desdobramentos atuais mostram, no entanto, a dificuldade de
resolução do déficit habitacional brasileiro e do fortalecimento dos movimentos sociais
populares em nossa cidade. Com a preparação da Copa do Mundo e das Olimpíadas
para serem realizadas em nossa cidade entre 2014-2016, iniciou-se um novo contexto de
“revitalização urbana” na Zona Portuária, localizada na região central da cidade, e local
de habitação dessas ocupações.
Justificado em base ao declínio de áreas urbanas degradadas, mas dotadas de
infraestrutura urbana e de equipamentos públicos, tais projetos ganham visibilidade em
obras emblemáticas que, no caso do Rio de Janeiro, ganham forma, sobretudo, no
chamado “Porto Maravilha”. O mesmo processo ocorre com o elevador do Morro do
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Cantagalo, o teleférico no Morro do Alemão, e a passarela da Rocinha, que têm como
objetivo fazer da favela um ponto a ser visitado no turismo da cidade.
Tais iniciativas modelam a imagem de uma cidade ordeira e pacificada, junto com
o auxílio das políticas de segurança, concretizadas nas chamadas Unidades de Políticas
Pacificadoras – UPPs -, projetando-se para o exterior, no sentido de vender a cidade
como marca que, capaz de competir com outras grandes metrópoles, pode induzir o
capital internacional a investir na escala local.
No entanto, essas experiências ditas de “requalificação” urbana são responsáveis
por processos de gentrificação, valorização de capitais privados e especulação
imobiliária, em sintonia com os padrões culturais dominantes, apontados por David
Harvey.
Nesse sentido, a política de reestruturação que se tenta impor é, ao mesmo tempo,
econômica, espacial e simbólica, responsável por dinâmicas transformadoras que podem
alavancar o desenvolvimento, mesmo que isso resulte no aprofundamento da
fragmentação social. Isto porque, neste processo, todos aqueles que ali habitam esses
espaços revitalizados são atingidos pelas “intervenções necessárias”, produzindo as
remoções. Este foi o caso de uma das ocupações sem-teto analisadas neste relatório, o
Coletivo II.
Com os grandes eventos sendo preparados na cidade, a ocupação passou por um
processo de remoção e o uso do terreno terá como finalidade a construção do maior
complexo de torres comerciais do Brasil, o Trump Towers Rio de Janeiro. Ao mesmo
tempo, o espaço para o qual os moradores seriam redirecionados, conforme acordado
com o Estado, não teve suas obras iniciadas sequer. Com a reintegração de posse
realizada pelo próprio Estado, uma vez que o terreno ocupado era propriedade da União,
os moradores e moradoras da ocupação tiveram que escolher caminhos individuais para
a moradia, recebendo apenas o aluguel social, valor dado às famílias removidas de suas
casas durante determinados meses, de uma quantia de aproximadamente R$400,00, o
que dentro da lógica de aluguéis em nossa cidade, é quase impossível atualmente alugar
algum local com este valor. Com todas as dificuldades em se manter, os moradores
tentam a grande custo não dissolver a organização coletiva, que denominam de
Coletivo. Para isso, mantêm atividades no espaço prometido a eles como moradia
popular, com o intuito de pressionar o Estado para construção do prédio prometido.
Por sua vez, a ocupação mais antiga, ainda que se encontre hoje em situação legal
estabilizada, passa mais uma vez por dificuldades por conta da implementação da
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em favela próxima ao prédio ocupado, que
expulsou o tráfico que ali se encontrava, levando-o para locais próximos da
comunidade, como por exemplo, para a rua da ocupação.
Esta situação gerou enormes consequências para a ocupação, uma vez que o
problema com a presença do tráfico perdurou durante muito tempo. Dentre estas
consequências, pode-se destacar a relação de muitas crianças e jovens moradores e
moradoras com os traficantes, que iniciaram através deste contato atividades ligadas a
venda de drogas, roubo e porte de armas, muitos neste caminho sendo mortos ou
encontrando-se presos atualmente. Tentando resolver este problema, alguns integrantes
tentaram se mobilizar para conseguir o início da obra de revitalização do prédio, já
atrasada há alguns anos. Porém, nesta tentativa muitos sofreram ameaças do tráfico e da
própria polícia, o que dificultou uma maior presença e organicidade no movimento de
todos os moradores, pois muitos ficaram amedrontados com a situação.
Como resultado da presença do tráfico, o Coletivo I, que já vinha sofrendo
grandes dificuldades de manter a organicidade, as reuniões e assembleias frequentes,
anda passando por um desmantelamento. As reuniões que antes eram necessariamente
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frequentes para decisões sobre os andamentos da ocupação, tornaram-se quinzenais e
atualmente ocorrem apenas quando é acionado algum tipo de necessidade específica, e
ainda sim, é muito difícil ter um número expressivo de moradores presentes.
Conclusões Tais consequências apontam para a discussão anterior acerca da cidade escassa,
denotam a dura realidade de segmentos da cidade que, sem a presença de um Estado que
mitigue as desigualdades socioeconômicas colocadas pelo mercado, se encontram
segregados e excluídos, sem possuir os direitos básicos para a mínima dignidade da
vida. Os Coletivos analisados já tiveram maior organização, identidade, estratégias de
luta e poder de mobilização. Com o revés da modernização do local (Coletivo II) e o
impacto do tráfico (Coletivo I), suas expectativas de ser um cidadão com “direito a ter
direitos” ficaram frustradas, mas a demanda de seu reconhecimento [25] como cidadão
de igual valor continua.
Assim, os atores do movimento sem-teto aparecem na cena pública com o registro
político, ou pré-político, de estarem repensando o pacto social brasileiro, questionando
os padrões culturais de desrespeito social presentes na não consideração e
reconhecimento de seu igual valor, denunciando a injustiça social de que são vítimas.
Utilizando-se da esfera pública, os movimentos de ocupação de prédios públicos
se articulam para derrubar os muros materiais e simbólicos que explicam e justificam o
uso da intolerância, fazendo da desobediência civil e da ação direta um caminho
criativo. Impondo-se pela sua presença, esses sujeitos agem publicamente rompendo o
cordão de isolamento a que a sociedade quer condená-los e constroem redes sociais
cujos fios tecem ligações entre diferentes agentes.
Os atores dessas lutas se articulam na disputa pelo espaço público que, acirrada
com a aproximação dos Megaeventos em nossa cidade, amplia as possibilidades de
articulação de um discurso cuja linguagem dos direitos humanos denuncia os “usos e
abusos da cidade”, modelados no campo da exceção.
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