Cidade e Cultura Renato Jales

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RENATO JALES SILVA JUNIOR

CIDADE E CULTURA MEMRIAS E NARRATIVAS DE VIVERES URBANOS NO BAIRRO BOM JESUS UBERLNDIA-MG 1960-2000

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA Instituto de Histria 2006

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RENATO JALES SILVA JUNIOR

CIDADE E CULTURA: Memrias e narrativas de viveres urbanos no Bairro Bom Jesus Uberlndia-MG 1960-2000

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal de Uberlndia, como Exigncia parcial para obteno do ttulo de mestre em Histria Social, sob a orientao da Professora Doutora Clia Rocha Calvo.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA Junho/2006

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ResumoEste trabalho tem por objetivo compreender como se transformaram os modos de viver na cidade de Uberlndia durante os anos de 1960 a 2000. Para a compreenso destas transformaes analisamos as intervenes promovidas a partir do bairro Bom Jesus, interpretando-o no como espao, mas como territrio constitudo a partir das relaes sociais construdas em seu interior e em relao com a cidade. Percebemos que estas transformaes quebraram antigas formas de viver a/na cidade. Evidenciamos tambm que os projetos hegemnicos implementados a partir deste processo foram de diversas formas questionados pelos moradores desta cidade no seu fazer-se dirio como sujeitos, que com outras estratgias buscaram fazer os seus projetos colocando outros valores em disputa. Procuro, ainda, recuperar outras memrias silenciadas por uma memria hegemnica que tenta se instituir como histria nica desta cidade. Colocar outras em movimento para pensar como os valores em torno do viver na cidade esto sendo disputados no presente. Trabalhamos com categorias analticas como cidade e cultura buscando inspirao na tradio marxista, principalmente a partir dos estudos culturais de E. P. Thompson, Raymond Williams, Richard Roggart.

Palavras chave: Memria; cidade de Uberlndia; narrativas orais; modos de vida; crescimento urbano.

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minha me que me ensinou as mais belas lies sobre amor, solidariedade e compreenso... ensinou-me tambm que as lutas do dia-a-dia so rduas para os que tem poucas armas, mas que apesar disso sempre possvel e necessrio criar estratgias para aumentar o seu poder de fogo...

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BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Clia Rocha Calvo - UFU (orientadora)

Prof Dr. Carlos Alberto de Oliveira - UESC

Prof. Dr. Helosa Helena Pacheco Cardoso - UFU

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Agradecimentos

Durante estes dois anos muitas pessoas cruzaram meus caminhos e de diversas formas deram fora para a realizao deste trabalho, queria aqui colocar alguns que marcaram minha experincia neste curto espao de tempo. Primeiro agradeo ao meu pai, Renato Jales Silva, pelo apoio, por sempre acreditar e por ensinar-me os significados de ser trabalhador. Aos meus irmos, Eduardo e Clvis, que em meio a muitas divergncias construmos uma relao de cooperao e compromisso. Agradeo ao Professor Mestre Srgio Paulo Morais que deste o incio acreditou neste trabalho. Ao professor Doutor Paulo Roberto de Almeida pelo apoio, pelas crticas s vezes duras, mas que me fez rever posturas e refazer algumas formas de olhar o social. professora doutora Helosa Helena Pacheco Cardoso que ajudou a organizar minhas idias e deu-nos segurana no momento em que tudo parecia disforme e com pouco sentido. Obrigado tambm pela leitura atenta e criativa do trabalho de qualificao. Ao professor Doutor Antnio de Almeida pelas valiosas colaboraes na banca de qualificao. Alm da discusso terica tenho muito a agradec-lo pelo que nos passou desde os primeiros anos da graduao e que, com certeza sedimentou alguns valores na minha formao do que ser professor de histria e ao mesmo tempo cidado. Aos companheiros de linha Jianni, Mnica, Ivani e Soene que dividiram mais de perto as angstias e incertezas do incio da caminhada e contriburam para um melhor entendimento dos caminhos e procedimentos adotados ao longo do texto. Aos velhos companheiros de reflexes Jane Machado, Edelson Matias, Jussara, agora separados pelos caminhos profissionais que vamos adotando ao longo da vida, mas ainda juntos nos sonhos e na percepo de que uma outra sociedade necessria. Ao amigo Raphael Alberto, grande companheiro das longas e agradveis tardes de conversas na universidade. Este espao pequeno para expressar o significado de sua amizade na minha formao. Sujeito de uma lealdade e de um esprito de solidariedade incomensurvel que, por outros caminhos, construmos sentidos para se pensar como transformar essa sociedade.

8 Aos amigos Rogrio e Elton, grandes companheiros dos bares e cervejas que ajudaram a desviar um pouco as minhas preocupaes sobre este trabalho e que souberam entender as chatices de um mestrando. Agradeo tambm os amigos da Universidade Estadual de Gois, Edinha, Ivonilda, Ktia, Florisvaldo pelas boas conversas nas rodovirias da vida, nesse novo ofcio de professor-caixeiro-viajante. Essa troca de experincias nestes lugares ajudaram muito na minha formao profissional e a diminuir inseguranas neste incio de carreira. Agradeo tambm a alguns alunos da UEG em especial ao Slvio Batista que vem dividindo sua experincia de ser trabalhador comigo nos projetos de pesquisa e, agora, na orientao da sua monografia. Sua fora de vontade nos d um gs a mais para continuarmos na luta por disputar as nossas concepes de histria nos mais diferentes lugares. Agradecimento especial aos moradores do bairro Bom Jesus que se dispuseram a refletir junto comigo sobre os caminhos e projetos disputados nesta cidade nestes ltimos quarenta anos. minha companheira Fernanda Ferreira que dividiu angstias e esteve ao meu lado nos momentos mais difceis quando no conseguamos visualizar um caminho para colocar as reflexes no papel. Passamos por outras dificuldades e vamos aprendendo a enfrent-las e encontrar o nosso caminho juntos. Aqui tambm um pedido de desculpas aos alunos da escola Municipal Otvio Batista Coelho Filho onde trabalhei no ano de 2004 pelas muitas vezes em que, na obrigao de priorizar tarefas neste tempo do mestrado me vi na obrigao de deix-los em segundo plano, o que gerou muitas reclamaes pela falta de opes nas nossas aulas e ainda assim foram muito solidrios comigo ao final do nosso trabalho. Para finalizar queria agradecer a professora doutora Clia Rocha Calvo pela orientao dedicada, solidria e companheira. Queria agradecer a pacincia, a fora e, principalmente a confiana expressa na execuo deste trabalho. Aprendi com a professora Clia no s os procedimentos de anlise, mas tambm a importncia de sermos militantes da histria e o compromisso de estarmos em uma universidade pblica, o que deu a estes dois anos uma importncia muito maior do que o direito de usar o mestre antes do meu nome.

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SUMRIO

1- Apresentao...................................................................................................

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2- Captulo I: Uberlndia cresceu junto comigo, eu cresci junto com Uberlndia.......

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3- Captulo II: Moramos numa ilha chamada Bom Jesus: algumas histrias sobre a avenida Monsenhor Eduardo.........................................................................

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4- Consideraes Finais.......................................................................................

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5- Fontes...............................................................................................................

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6- Bibliografia......................................................................................................

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APRESENTAO

Inicio este dilogo com o leitor e com os vrios sujeitos ouvidos nesta pesquisa apresentando, de forma geral, o meu tema e, no decorrer desta apresentao, como ele se desenrola no cho social1 da pesquisa. Tomo de emprstimo o termo de Helosa Faria Cruz para falar sobre o tempo em que esta dissertao foi escrita. Como um dos smbolos deste tempo, lembramos aqui de uma entrevista dada no dia 4 de junho de 2005 pelo ento presidente do Partido dos Trabalhadores, Jos Genono, na qual ele se defende de algumas acusaes de corrupo dentro do partido, irradiada no governo federal no programa Roda Viva da TV Cultura. Estas denncias vinham se arrastando; figuras da direo do partido, deputados e membros diretos do governo eram noticiados cotidianamente em um processo de crises construdas e reforadas por uma parte da imprensa. A entrevista com Jos Genono termina quando ele se emociona ao ser perguntado sobre a declarao de um membro do comando do exrcito que teria dito que este entregara seus colegas da Guerrilha do Araguaia sem que tenha recebido nenhuma agresso, somente com a possibilidade de ser torturado, dando a conotao de fraqueza do militante. Alm de legitimar a tortura, estas declaraes buscavam descaracterizar um grupo que estava frente do governo brasileiro. O que liga esses dois processos de forma to avassaladora? O que tem a ver a Ditadura Militar, suas torturas e o movimento de guerrilha com o governo do presidente Lus Incio Lula da Silva em 2005? E, mais do que isso, o que essas falas ligam, como a minha problemtica em torno de uma dissertao de mestrado em Histria Social? Que sentidos tm esta minha reflexo em meio a estas perturbaes e dvidas e a um processo violento de disputas polticas e execrao pblica? Que sentidos tm a minha dissertao neste momento para alm de um ttulo? este o turbilho de sentimentos que compem a minha experincia como sujeito no momento em que estou lendo obras, documentos, entrevistas e tentando construir uma reflexo. Refletindo sobre a experincia de um operrio na presidncia da

CRUZ, Helosa de Faria. Na cidade, sobre a cidade: cultura letrada, periodismo e vida urbana So Paulo 1890-1915. 1994. Tese (Doutorado em Histria) Universidade Estadual de So Paulo. p. 7.

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11 Repblica e todos os efeitos polticos desse momento vivido. Esse um pouco do que chamamos, aqui, de cho social, que est presente neste trabalho. Estas questes marcam a experincia do pesquisador e provocam

questionamentos sobre como pensar o social, o momento vivido, expressar posicionamentos, olhares polticos no momento de interpretar as relaes sociais nesta cidade. Busco, aqui, refletir sobre mudanas que levaram a construo de um conjunto de avenidas que passam a cruzar a cidade em vrias direes, dando um aspecto veloz aos seus lugares centrais. Ao mesmo tempo, procuro entender como estas intervenes so reelaboradas pelos muitos trabalhadores que utilizam estes lugares para suas moradias, trabalho, lazer, enfim, pelos que constroem laos e sociabilidades. Estes diferentes usos da cidade, amalgamados com estas experincias do tempo presente, trazem as primeiras questes sobre como homens e mulheres, no seu fazer cotidiano, intervm no fazer-se da cidade e constroem sentidos polticos e culturais para ela. A partir desta problemtica central, aparecem as categorias cidade e cultura, que se cruzam para pensar as muitas intervenes nos territrios urbanos, e a forma como so vivenciadas na experincia social e histrica dos seus moradores. Assim, possvel perceber como o fato de mudar, modificar lugares, pode interferir e criar prticas, transformar valores e sentimentos, atribudos pelos seus sujeitos nas suas vivncias e no modo como explicam e interpretam estas mudanas em suas vidas. Para entender as relaes sociais constitudas nesta cidade, partimos de um pedao especfico dela, o bairro Bom Jesus, sem ficar preso histria de um lugar, mas interpretando algumas memrias construdas sobre viveres neste territrio. A temporalidade das memrias lidas e construdas neste bairro levou-me para os anos 1960 e 1970, dcadas de mudanas e transformao nos modos de viver a/na cidade. Elas foram interpretadas pelos moradores deste bairro e sero reinterpretadas por mim luz de alguns supostos bsicos. Uma cidade feita de lugares e de pessoas2, esta afirmao de Alessandro Portelli d uma dimenso das inquietaes discutidas neste trabalho: trazer a cidade e a constituio dos seus espaos a partir dos significados de algumas histrias de

PORTELLI, Alessandro (Coord.). Repblica dos sciusci: a Roma do ps-guerra dos meninos de Dom Bosco. So Paulo: Editora Salesiana, 2004. p. 9.

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12 moradores do bairro Bom Jesus. A cidade emerge, ento, a partir destes enredos, mas em dilogo com outros sujeitos e trazendo as muitas experincias do viver urbano na pluralidade de suas foras. Muitos dos questionamentos colocados neste trabalho vm da minha experincia, de filho de trabalhadores, conquistada na vivncia em alguns lugares desta cidade, aos quais atribu outros significados em funo dessa experincia e do conhecimento adquirido no curso de Histria. Nasci e me criei nesta cidade, os meus pais vieram do campo para Uberlndia no incio dos anos 1970, um tempo de investimentos de grupos econmicos que, juntamente com o acmulo de capital, buscavam a mo-de-obra destes trabalhadores. Neste contexto, meu pai conseguiu trabalho na Petrobrs, que acabara de assumir o controle da antiga Petrominas com investimentos capitaneados por uma parceria com a Prefeitura Municipal, que apoiava e detinha quadros no governo militar. Ao discutir a produo da memria sobre esse tempo de investimentos de grupos hegemnicos da cidade, Clia Rocha Calvo traz o ambiente das alianas polticas e articulaes que possibilitaram a atrao de grupos empresariais para Uberlndia com o investimento estatal como impulsionador:

Nesses tempos de silncio, imposto aos que eram contra a poltica instituda, os empresrios de Uberlndia viveram seus anos ureos de desenvolvimento. A intermediao poltica entre a cidade e o Estado foi estabelecida num clima de muito otimismo. Os quadros locais constitudos, antes, em torno da UDN e PSD, juntaram-se em torno da figura de Rondon Pacheco, que no apenas foi chefe da Casa Civil, mas responsvel pela articulao dos projetos do governo, em nvel nacional. Era presidente da Arena.3

Estes tempos de investimentos do capital privado e crescimento urbano foram tambm tempos de constituio de alguns lugares de moradia para esses trabalhadores. Nesse tempo, meus pais moraram prximos aos trilhos da Mogiana, na avenida Mato Grosso, at ento bairro constitudo por trabalhadores e trabalhadoras que buscavam essa cidade na luta pela melhoria de suas vidas. Depois, moramos no bairro Tibery, no incio dos anos 1980, quando l ainda no havia infra-estrutura bsica como asfalto eCALVO, Clia Rocha. Muitas memrias e histrias de uma cidade: experincias e lembranas de viveres urbanos Uberlndia 1938-1990. 2001. Tese (Doutorado em Histria Social) Pontifcia Universidade Catlica, So Paulo. p. 140.3

13 energia eltrica. Lembro-me muito bem das noites de domingo em que nos reunamos com a vizinhana para assistirmos futebol, com uma pequena televiso ligada a uma bateria de carro. Quero me reportar a uma experincia constituda nesses espaos de trabalhadores e nas estratgias criadas por eles para construrem seus lugares e estabelecerem relaes com seus pares a fim de diminuir as dificuldades encontradas. Depois do Tibery, nos mudamos para outro lado da cidade, para o bairro Roosevelt, onde moramos num imvel financiado pelo Banco Nacional de Habitao. O bairro Roosevelt fora constitudo por um grupo de conjuntos habitacionais, prximos rodoviria, ao lado da BR365, no final da dcada de 1970. Lembro-me, assim como muitos moradores ouvidos nesta pesquisa, de morar prximo ao mato e de aprender a utilizar essa caracterstica como forma de lazer, nas brincadeiras de criana. Estas foram opes de moradia apresentadas aos trabalhadores naquele momento, que, por outro lado, souberam criar, instituir seus modos de viver nestes lugares, recriando a cidade e deixando suas marcas. Passando por dificuldades, como falta de energia eltrica, asfalto e transporte coletivo, no incio dos anos 1980, assisti sob novos olhares s modificaes sofridas por esta localidade, que fora em outro momento lugar4 de trabalhadores. Assim, busco entender como este tempo lembrado, narrado e interpretado por outros trabalhadores, em uma outra relao que agora estabeleo com eles em seus lugares. A volta neste local de pesquisa tem tambm o intuito de dialogar sobre estas experincias e entender como os moradores desta cidade construram as suas estratgias, evidentemente que no da maneira como queriam, mas como fizeram, a partir de uma possibilidade de escolha, para reconstruir e dar seus significados aos lugares de moradia. Confesso que, mesmo vivenciando estas mudanas no lugar onde moro, a cidade, enquanto tema de pesquisa, pareceu-me distante e no me incomodou durante boa parte da graduao. Alis, a opo pelo curso de histria vinha de uma outra perspectiva, de um outro olhar. Buscava, inicialmente, entender como as pessoas

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Este termo ganha, aqui, uma dimenso mais ampla do que simplesmente uma localizao no espao urbano da cidade. Ao pensar a idia de lugar, estou dialogando com textos como o do socilogo Rogrio Proena Leite, para quem os lugares so demarcaes fsicas e simblicas no espao, cujos usos os qualificam e lhes atribuem sentidos de pertencimento, orientando aes sociais e sendo por estas delimitados reflexivamente. (Cf. LEITE, Rogrio Proena. Contra-usos da cidade lugares e espao pblico na experincia urbana contempornea. Campinas/SP: Editora da Unicamp; Aracaj/SE: Editora da UFS, 2004).

14 estavam trabalhando e vivendo em uma sociedade extremamente desigual, dissociada do viver a/na cidade. Ainda na poca em que era secundarista, a desigualdade visvel na sociedade, tanto no mbito da cidade de Uberlndia como numa perspectiva mais abrangente, me deixava apreensivo. Esse sentimento fora construdo na convivncia com moradias precrias, na dificuldade de nos mantermos na escola e na necessidade de comearmos a trabalhar ainda adolescentes. Essa formao me colocara aquilo que acreditava ser de minha responsabilidade: buscar uma forma de atuar para colaborar na superao desta situao. O curso de histria surge ento para superar um sentimento de impotncia e, em alguns momentos, aquilo que eu percebia como falta de compromisso com a mudana. Acreditava que, neste curso, encontraria a frmula para me tornar um sujeito ativo de uma mudana idealizada. Para isso, eu buscava participar de algumas instituies, como diretrios estudantis e sindicatos, que poderiam tambm me aproximar desta forma de atuar. Isso tambm me levava a perseguir temas que poderiam me colocar como sujeito ativo politicamente5. Na verdade, era a forma como pensava a histria que me distanciava do olhar para os modos de viver na cidade dentro destas relaes desiguais. Trata-se de uma concepo de histria ainda agarrada s instituies que diluam os sujeitos em grupos teoricamente organizados ou da noo de que a histria feita com as massas organizadas6. Essa noo inicial me levava aos partidos, aos sindicatos, s associaes de moradores. Ao andar pelo bairro e conversar com outros sujeitos, tive contato com alguns que traziam outras histrias ricas sobre a cidade e os seus lugares, sem que passassem por estas instituies (alguns muito crticos delas). Essas outras histrias me impuseram a responsabilidade de pensar outras questes que me ajudassem a aprofundar na noo de sujeito e nas suas relaes com a histria. Entendo agora que essas desigualdades, vistas e vividas juntamente com outros trabalhadores nesta cidade, so constitudas no modo de vida, na maneira como osFato caracterstico desta busca foi a minha adeso ao Projeto Memria Sintet-UFU: organizar a memria para discutir a histria, organizado pela professora doutora Clia Rocha Calvo, que tinha como objetivo preservar e organizar a memria social do movimento de lutas dos trabalhadores tcnicoadministrativos da Universidade Federal de Uberlndia. 6 Tema discutido e problematizado por CHAU, Marilena. A histria se faz com as massas organizadas. Ser? In: Seminrio: Sociedade, Cultura e Sindicato. Palestra transcrita na Coleo do Laboratrio de Ensino, Pesquisa e Aprendizagem do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia.5

15 moradores se fazem sujeitos nas formas de se relacionar na cidade e nas maneiras como potencializam suas aes para tensionarem estas relaes desiguais. Criando os lugares e instituindo suas marcas, a cidade passa a ser problema como espao destas disputas. Nesta noo de sujeitos, na qual homens e mulheres fazem a cidade e se fazem nesse processo, chego compreenso no de uma histria fruto de um olhar para a massa diluda, mas de uma interpretao e produto de muitas histrias. a partir deste primeiro entendimento que procuro apontar os caminhos na minha reflexo. No projeto para o mestrado, continuava na abordagem dos movimentos sociais, inspirados na reflexo do socilogo Eder Sader7, que constri a sua anlise na perspectiva dos sujeitos coletivos constitudos a partir desses movimentos, buscando suas estratgias de luta, as negociaes com o poder pblico, as resistncias e as formas como vivenciaram as mobilizaes no incio dos anos 1980. No entanto, essa abordagem encontrou alguns limites no momento em que volto a ouvir os moradores do bairro. Alguns no estavam com seus nomes ligados aos atos pblicos realizados no bairro, nas assemblias ou reunies da associao, porm recriaram, a partir de suas trajetrias, dificuldades, formas de se relacionar com o poder pblico, com as empresas, com outros trabalhadores e, neste fazer-se, trouxeram-nos experincias muito ricas sobre o viver nesta cidade. Essas outras formas de ler a realidade social e produzir histrias sobre ela tambm contou com valiosas contribuies nas discusses sobre memria e histria realizadas no interior da linha Trabalho e Movimentos Sociais do Programa de PsGraduao em Histria da Universidade Federal de Uberlndia que, alm das reflexes em sala de aula, nos proporcionou encontros valiosos nas oficinas oferecidas pelo projeto PROCAD (Programa de Cooperao Acadmica)8. Neste debate, entendi que falar de sujeitos sociais significa falar de uma multiplicidade de agentes. As reflexes colocadas na obra de Dea Ribeiro Fenelon contribuiu muito para este entendimento, sobretudo quando a autora trabalha a categoria cidade para alm de um conceito pronto:

[...] a cidade nunca deve surgir apenas como um conceito urbanstico ou poltico, mas sempre encarada como o lugar da pluralidade e da diferena, eSADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experincias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande So Paulo (197080). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 8 Oficinas com as professoras doutoras Maria Elisa Cevasco, Laura Antunes Maciel e Dalva Maria de Oliveira Silva.7

16por isto representa e constitui muito mais que o simples espao da manipulao do poder. E ainda mais importante, valorizar a memria, que no est apenas nas lembranas das pessoas, mas tanto quanto no resultado e nas marcas que a histria deixou ao longo do tempo em seus monumentos, ruas e avenidas ou nos seus espaos de convivncia ou no que resta de planos e polticas oficiais sempre justificadas como o necessrio caminho do progresso e da modernidade.9

Esta crtica nos ajuda a no cairmos em algumas armadilhas que as leituras do social s vezes nos apresentam. No intuito de valorizarmos outras memrias na pauta de construo das histrias de Uberlndia, corremos o risco de apenas invertemos a polaridade, isto , criticarmos a fora desigual que a memria hegemnica possui quando constri uma interpretao nica que elimina a diferena e a desigualdade, colocando para os seus executores uma exclusividade de aes, para outra tambm exclusiva de trabalhadores e moradores da cidade, eliminando o relacional, as tenses vivenciadas por estes grupos no cotidiano de suas aes. Entender a pluralidade e a diferena significa entender que no fazer-se da cidade esto as trajetrias dos moradores, suas estratgias, alianas, rompimentos, e, alm disso, significa perceber que so nessas aes que estes se fazem sujeitos em relao (e por vezes em disputa) com outros prefeitos, vereadores, jornalistas na luta pelo pertencimento cidade. Acredito que outra mudana fundamental nesse momento gira em torno da noo de poltica e cultura que eu vinha construindo at ento e da relao destas com histria e memria. um exerccio de reconstituio do terreno da poltica, como prope Yara Aun Khoury10. Essa mudana no se deu em funo nica das leituras e discusses tericas, mas foi provocada tambm pela investigao no campo da pesquisa, pelos enredos construdos pelos moradores, os quais me fizeram rever minhas noes e duvidar mais dos conceitos que eu estava trazendo na bagagem. Aqueles moradores ligados associao e os que participaram dos atos pblicos no bairro no deixaram de ter importncia na pesquisa, mas outros foram ouvidos e me fizeram repensar o que significa intervir nos lugares.

FENELON, Da Ribeiro (org.). Introduo. In: Cidades. Revista do Programa de Estudos PsGraduandos em Histria PUC/SP. So Paulo: Olhos dgua, 1999, p. 7. 10 KHOURY, Yara Aun. Muitas memrias, outras histrias: cultura e o sujeito na histria. In: FENELON, Da Ribeiro et al (orgs.). Muitas memrias, outras histrias. So Paulo: Olhos dgua, 2004. p. 119.

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17 Ao ampliar o dilogo com a pesquisa, construo tambm uma outra forma de lidar com os moradores deste lugar, saindo da posio de anlise para uma posio de dilogo, buscando construir uma reflexo compartilhada, em torno de temticas de estudo que so, em ltima instncia, problemticas sociais vividas11. Este o grande exerccio: construir uma interpretao na qual a cidade ressignificada na sua polifonia12, reconhecendo e dialogando com as muitas memrias que nos apresentam na pesquisa, sem nos impor como nicos capazes de interpretar o vivido. Nos caminhos da pesquisa, voltei a alguns arquivos da cidade13 para rever documentos e repensar a produo social da memria constituda nas vrias fontes trabalhadas14. A partir destes documentos e dos relatos dos moradores do bairro Bom Jesus, vou construindo um texto que entende a memria como um campo de disputa e um instrumento de poder. Nesse sentido, busco explorar como memria e histria se cruzam e interagem nas problemticas sociais15. Sob esta perspectiva, entendo que o trabalho do historiador tambm participa destes embates quando ele se coloca como outra memria produzida. Neste aprendizado de lidar com a memria, foi muito importante a experincia de trabalho que tive no Centro de Documentao e Pesquisa em Histria da Universidade Federal de Uberlndia16. A vivncia neste centro contribuiu para o meu olhar poltico sobre a cidade graas ao contato com colees que guardavam determinados documentos sobre a Universidade Federal e sobre a cidade de Uberlndia17.

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Ibidem, p. 124. SILVA, Lcia Helena Pereira da. Luzes e sombras na cidade: no rastro do Castelo e da Praa Onze 1920/1945. 2002. Tese (Doutorado) Pontifcia Universidade Catlica, So Paulo. 13 Entre eles, o Arquivo Pblico Municipal e o Centro de Documentao e Pesquisa em Histria da UFU. 14 Alm das entrevistas realizadas, foram levantadas fontes como o jornal Correio de Uberlndia, atas da Cmara Municipal, correspondncias recebidas pelo poder Executivo, mapas da cidade, entre outros que sero trabalhados ao longo dos captulos. 15 KHOURY, 2004, p. 118. 16 Esse contato foi possvel a partir de um estgio remunerado que realizei durante dois anos no Centro de Documentao e Pesquisa em Histria do Instituto de Histria da UFU. Foram dois anos riqussimos, tanto no contato com diversos documentos, como no aprendizado sobre a conservao e manejo destes documentos. Sob a direo da professora Maria de Ftima Ramos de Almeida, tivemos vrios encontros para discutir os centros de documentao, inclusive oficinas com a professora Da Ribeiro Fenelon, que me instigou a pensar com mais cuidado sobre a idia de conservao e memria e a funo poltica que permeia estes termos. 17 O Centro tem como mtodo de guarda e organizao a criao de colees que podem ser nomeadas em funo do doador ou de um tema especfico. Nesta proposta, existem colees como: Pr-memria UFU, Coleo Uberlndia, Olvia Calbria, entre outras.

18 Durante este trabalho, tive contato com outras interpretaes. Algumas das colees do centro de documentao produziam uma memria da cidade de Uberlndia muito diferente daquela vivida nos bairros em que morei. Estas colees passaram a despertar minha ateno em funo destas imagens construdas sobre a cidade, muitas delas destoadas da viso que eu tinha ao andar por ruas e avenidas. Umas das colees que me chamava a ateno foi intitulada Uberlndia bens imveis anos 80, que registra em fotos vrios lugares do centro da cidade. O interessante desse conjunto de fotos foi justamente os lugares escolhidos para mostrar a cidade ou registrar uma memria sobre ela em uma dcada especfica. Isto porque as fotos do Uberlndia Clube18, da praa Tubal Vilela e das vrias ruas do chamado centro comercial (Afonso Pena, Floriano Peixoto, Duque de Caxias, Olegrio Maciel) foram tiradas sem as pessoas, talvez aos domingos. No conseguia identificar esta cidade sem os trabalhadores das praas, sem o movimento das caladas, sem o trnsito contnuo de homens e mulheres que se utilizam deste espao para fazer suas compras, pagar dvidas, procurar emprego, tirar documentos pessoais e trabalhar. Ainda nestas interpretaes que construram algumas memrias sobre a constituio da cidade, encontrei um folder produzido no ano de 1988 pela historiadora Roslia Pires Gonzaga para comemorar o centenrio da cidade e divulgar o acervo do Centro de Documentao nas escolas de 1 grau da regio. Nesta verso, a cidade de Uberlndia reconstituda da seguinte maneira:

H uns 100 anos atrs, no interior de Minas Gerais, ainda no existia a cidade de Uberlndia. Ela comeou a se formar quando o governador permitiu a vinda das famlias Pereira, Rezende e Carrijo para a regio. Logo, outras tambm vieram e formaram uma pequena vila, o chamado arraial de So Pedro de Uberabinha, que foi se tornando povoado e produtivo, pois aqui as famlias produziam alimentos para o seu consumo e at para vender. No comeo era bem pequeno, com poucas ruas, ainda de terra, algumas casas, uma igreja, uma escola e uma pracinha. O pequeno comrcio que havia com as outras regies So Paulo, Rio de Janeiro e Gois era feito por tropas de burro em trilhas pelo mato. Naquele tempo as pessoas que moravam em So Pedro de Uberabinha desejavam o desenvolvimento e o progresso material do arraial e foram aos poucos construindo boas estradas, pontes sobre os rios, e at a primeira18

Clube de festas localizado na Avenida Santos Dumont, centro da cidade, cujo uso est restrito aos grupos de maior poder econmico da cidade.

19estrada de ferro da Companhia Mogiana, que existe at hoje e que serviria para receber e transportar mercadorias de toda regio. Assim, desde o incio, o comrcio foi a marca do desenvolvimento e a riqueza da cidade, transformando-a no que hoje um importante entreposto comercial do pas, que abriga importantes armazns, como o Martins, o grupo ABC e tambm a fbrica de cigarros Souza Cruz. Tornou-se ento Uberlndia, que quer dizer Terra Frtil, Terra de Progresso. Hoje, Uberlndia uma cidade comercial e industrial conhecida por todo o pas e at no exterior. Entretanto, apesar do desenvolvimento alcanado, Uberlndia tem hoje muitos problemas como desemprego, pobreza, violncia, crianas abandonadas, enfim, problemas que toda grande cidade possui, mas que no devem ser esquecidos e nem escondidos pela administrao local. 19

Primeiro, ocorreu a vinda das famlias Pereira, Rezende e Carrijo cidade destinada ao desenvolvimento e ao progresso, s estradas, pontes, rodovias e estrada de ferro, o que dava a ela o ttulo de importante entreposto comercial. Depois, veio o comrcio, os importantes armazns, a grande riqueza e, finalmente, Uberlndia uma cidade comercial e industrial. Estes so referenciais que compem nas mais diversas circunstncias a memria nica apresentada como sendo a histria, a qual fortalece uma verso hegemnica de uma cidade que no reconhece a ao de seus moradores. justamente por isso que os trabalhadores no tm o direito de sarem nas fotos guardadas nos arquivos acima citados. Este enredo versa sobre uma histria de Uberlndia construda nos referenciais do mercado que buscava divulgar a cidade para investimentos e criar outras possibilidades de ganho e acmulo de capital. Porm percebemos que ela chega a outros lugares sociais neste caso, a Universidade Federal de Uberlndia e realimentada. Encontrar este documento, elaborado em um espao acadmico da Universidade Federal de Uberlndia, me levou a questionar a fora que essa memria tinha para virar uma histria ensinada. Nos anos 2002 e 2003, ao participar de um projeto no mesmo centro de documentao20, realizamos vrias oficinas com professores da rede municipal de ensino e percebemos que a maioria tinha neste enredo a base do que ensinavam sobre a cidade. Algumas destas prticas de organizao da memria trabalhadas acima, alm de reforarem uma memria construda nos referenciais hegemnicos que dissimula a luta19

Uberlndia uma histria. Texto de divulgao do acervo do Centro de Documentao e Pesquisa em Histria da Universidade Federal de Uberlndia (grifo nosso). 20 Os sujeitos sociais e seus lugares: construindo uma Histria de Uberlndia, sob a coordenao da professora doutora Maria de Ftima Ramos de Almeida e financiado pela Pr-Reitoria de Extenso, Cultura e Assuntos Estudantis da UFU.

20 de classe e a desigualdade vivida por muitos trabalhadores na cidade, silenciam alguns sujeitos e apagam memrias divergentes que possibilitariam construir outras histrias, as quais eu mesmo havia vivenciado por muitos anos como trabalhador e morador desta cidade. Entre estes acervos, me deparei tambm com o que fora organizado com o material da Associao de Moradores do bairro Bom Jesus. O acervo traz uma srie de documentos registrados pela associao (jornais, fotografias, correspondncias, documentos da prefeitura, panfletos e atas de suas reunies), o que me possibilitou ter uma interpretao de como alguns moradores do bairro, mais diretamente ligados a ela, pensavam suas estratgias para se colocarem frente ao poder pblico e aos grupos econmicos que disputavam os lugares do bairro. E foi justamente a ao poltica registrada nos documentos da Associao de Moradores do bairro Bom Jesus que me deu a escolha do tema e me levou construo das primeiras entrevistas21. Num primeiro momento, esta documentao me apontava para uma intensa mobilizao e organizao de moradores na cidade de Uberlndia, que, unidos sob um determinado objetivo, questionavam o poder pblico, lutando por modificaes no bairro em que viviam. Estas primeiras evidncias me levaram s entrevistas. Wilma Ferreira de Jesus foi a primeira diretora da associao e responsvel pelos primeiros registros em ata das reunies, ela teve sua formao poltica ligada s comunidades eclesiais de base e depois militando no Partido dos Trabalhadores. Atualmente, ela assessora do deputado federal Gilmar Machado, representante de Minas Gerais na bancada. Dona Maria Aparecida Rosa tambm participou das reunies no salo paroquial da Igreja, mas nunca dirigiu a associao. Sua entrevista foi muito significativa na construo de algumas interpretaes sobre a relao da igreja com outras instituies que dialogavam com os moradores. O senhor Iverso Miranda tambm dirigiu a associao e, por no residir mais no bairro, trouxe outros significados tanto para o processo que vivenciou, como para o bairro hoje. O distanciamento entre estas entrevistas selecionadas e outras que utilizamos acompanha um pouco o movimento da lgica histrica neste trabalho, na21

Wilma Ferreira de Jesus. Entrevista realizada em 20 de janeiro de 2003; Maria Aparecida Rosa. Entrevista realizada em 17 de maro de 2003; Iverso Rodrigues Miranda. Entrevista realizada em 06 de junho de 2003.

21 medida em que so construdas a partir de questes que a prtica de pesquisa e as evidncias do social foram me colocando. Por isso tambm mantive as entrevistas de 2003, para dar o movimento da pesquisa ao texto. O perfil destes sujeitos apresenta um campo de foras que estiveram disputando a cidade neste processo de muitas intervenes. Trazer as primeiras entrevistas nesta parte do texto no significa separar estes sujeitos de outros, ou construir temticas isoladas que amarram a reflexo, mas sim mostrar como as diferentes prticas sociais e maneiras de viver e disputar a cidade constroem as muitas memrias que vo compondo o meu enredo de trabalho. No momento em que ouvia estes moradores, a minha preocupao centrava na idia de movimentos sociais e participao poltica, que aparece como uma das muitas formas de interveno na construo dos espaos na cidade. Trabalhava aqui o conceito de cultura numa anlise sobre como as pessoas se envolviam nestes movimentos populares e como tratavam as suas experincias no seu interior. A preocupao em torno dos sujeitos estava em entender como maneiras particulares de vida se interagiam no processo de luta22, o que dava a este conceito uma noo ainda muito prxima ao indivduo. Outro agente produtor de memrias que manuseei neste trabalho foi o jornal Correio de Uberlndia. O diretor proprietrio deste veculo na dcada de oitenta, Srgio Martinelli, mantinha uma coluna chamada mini news, atravs da qual pude perceber quem so os seus interlocutores, em sua maioria homens e mulheres que tinham lugar na Associao Comercial Industrial de Uberlndia, no Sindicato Rural, no Rotary Clube, no Lions Clube, na CTBC, na Fundao Manica, comandantes do 36 Batalho de Infantaria Motorizada, alm de scios do Praia Clube e pessoas ligadas TV Tringulo e TV Paranaba, nas quais o diretor apresentava um programa de entrevistas. Em outro momento, a jornalista Gleide Corra constri uma histria para este veculo, que traz os grupos que detiveram o controle da palavra impressa em suas folhas:

22

Cf. SILVA JR., Renato Jales. Cidade, cultura e movimentos sociais: a mobilizao dos moradores do Bairro Bom Jesus em Uberlndia (1982-1990). Monografia Universidade Federal de Uberlndia, Uberlndia/MG, 2003.

22O produtor rural Osrio Jos Junqueira vindo de Ribeiro Preto comea, em 1938 a publicar o Jornal Correio de Uberlndia. No incio a periodicidade era irregular, ocasionado pelas dificuldades inerentes implantao do novo negcio. Junqueira j possua outros veculos de comunicao inclusive o Correio do Oeste de Ribeiro Preto no estado de So Paulo. Osrio Junqueira era dono de outros sete jornais e vinha em Uberlndia apenas duas vezes por semana. Quem tomava conta do jornal era seu filho, Luiz Nlson Junqueira. Na poca da fundao Abelardo Teixeira era o redator-chefe. Jos Osrio vendeu o jornal na dcada de 1940 para um grupo de cotistas ligados UDN Unio Democrtica Nacional , entre eles: Joo Naves de vila, Nicomedes Alves dos Santos e Alexandrino Garcia. Em 1952, assume a direo do peridico Valdir Melgao Barbosa, vereador e depois deputado estadual pela UDN e, mais tarde, Arena Aliana Renovadora Nacional. () Neste perodo o jornal circulava de tera a sbado com 8 pginas e posteriormente com 12. As mquinas linotipo foram reformadas e uma clicheria nova foi adquirida. Finalmente em 1986 o grupo Algar, por meio da Sabe - Servios de Informaes, assumiu o controle acionrio do jornal e o mantm at os dias atuais (2003) 23.

Muitos destes nomes esto na memria hegemnica da cidade, nos monumentos oficiais, em ruas e avenidas reformadas na concepo dos grupos dirigentes da cidade. Estas alianas, que em um primeiro momento se deram entre sujeitos ligados Unio Democrtica Nacional para construir um meio de disputar a cidade com outros grupos, ganham outros contornos a partir da compra pelo grupo empresarial Algar, hoje um dos maiores grupos de comunicao da cidade24. Atravs das linhas editoriais e da forma como foi sendo construdo seu noticirio, o grupo demonstrava seus pactos com polticos da cidade, governadores e deputados que afinavam com seus projetos. Os pactos construdos entre estes grupos tiveram um papel muito importante na materializao de uma forma de conceber a cidade e, posteriormente, na produo social e divulgao dessa perspectiva. Ele transmitia uma imagem que, alm de homognea, buscava se sedimentar em adjetivos como cidade sem crises, metrpole do cerrado ou cidade jardim. Na tentativa de cumprir este papel, o veculo no s buscava transformar em verdade absoluta aquilo que noticiava, como tambm tentava excluir trabalhadores que no se encaixavam no perfil que construam em conjunto com os membros das instituies acima citadas. Foi assim com os trabalhadores do bairro Bom Jesus no23

Histria. 65 anos de jornal Correio. Disponvel em: . Acesso em 10 de fevereiro de 2006. 24 Possuem uma empresa de telefonia CTBC (Companhia Telefnica Brasil Central) que opera linhas fixas e celulares, possuem empresas de propaganda (ABC propaganda), atual tambm na rea de informtica, sendo proprietrias de um provedor, alm de alianas com empresas de televiso e rdio na cidade.

23 tempo das Tabocas. Em contraposio aos desbravadores, aos empreendedores, estes sujeitos moradores eram vistos como vadios, cachaceiros, e as mulheres, como magrelas e esqulidas, cujos filhos eram moleques sem educao. Partindo da anlise da composio social do jornal e dos grupos para quem este jornal falava em muitos momentos, alm das leituras e dos debates promovidos nas disciplinas do mestrado, entendi que as imagens construdas sobre a cidade nestes veculos no eram verses exclusivas de uma cultura letrada na figura dos seus editores e jornalistas , mas sim de uma luta constante destas diferentes memrias produzidas por construir outras histrias. Mais do que construir alguns significados para a cidade e para alguns grupos de moradores dela, o jornal Correio de Uberlndia tentou (e ainda se mantm nessa tarefa) fazer de sua verso a de todos. O contato com o jornal foi importante para perceber as suas estratgias para compor suas memrias sobre a cidade e as formas utilizadas para instituir estas memrias como histria. No queremos, aqui, contrapor memrias como se estas fossem produzidas de forma isolada. Como produtor de uma memria e detentor de meios de perpetuao pelo domnio de alguns meios, o jornal se torna um veculo para entendermos formas de dominao e consolidao de memrias hegemnicas, bem como da construo de outras que tensionam, que colocam valores em disputa e pem vida na cidade. Laura Antunes Maciel foi uma leitura importante para pensarmos procedimentos que nos ajudassem a entender esse movimento vivo do social quando nos chama a ateno para a importncia de se pensar a imprensa e a memria no como espaos prfixados, mas como lugares sociais de disputas:

O ponto central de nossas reflexes passa por uma ateno s disputas e lutas que marcam a produo social da memria, considerando a imprensa um dos lugares privilegiados para a construo de sentidos para o presente e uma das prticas de memorizao do acontecer social.25

25

MACIEL, Laura Antunes. Produzindo notcias e histrias: algumas questes em torno da relao telgrafo e imprensa 1880/1920. In.: FENELON, Da Ribeiro, et. al (orgs.). Muitas memrias, outras histrias. So Paulo: Olhos dgua, 2004, p. 15.

24 Este jornal e os seus profissionais estiveram ao lado dos grupos econmicos dominantes da cidade. Os sentidos produzidos pelo jornal estiveram em sintonia com grupos determinados,

Confiando que o povo vai reconhecer a magnfica administrao Virglio Galassi e que Uberlndia, mais uma vez, vai dar mostras de que o partido da situao dever ser majoritrio no pleito deste ano, o PDS local acredita numa vitria maiscula de seus candidatos, pois, pelos bons servios prestados at aqui, pelos polticos que esto integrando a sigla do governo, de se crer que a oposio mais uma vez vai soprar, mas no o vento do deserto, devendo ser, diante dos eleitores esclarecidos, uma pequena brisa na embarcao vitoriosa do Partido Democrtico Social. A situao est confiante e tem certeza de que no haver decepo, uma vez que colocar a oposio no poder, ser abrir uma lacuna na vida administrativa da cidade e por em dvida, a seqncia da intocvel e expressiva administrao Virglio Galassi.26

As alianas expressas neste editorial do incio dos anos 1980 mostram os pactos construdos e a tentativa de fazer destes grupos a opo de todos. H uma diferena quando este jornal fala para o seu grupo privilegiado e quando imagina estar falando para a populao de forma geral. Essa diferena sentida no uso da linguagem. A linguagem no uma simples organizao de palavras para traduzir um enunciado27. Na perspectiva que trabalhamos, ela pensada enquanto espao de disputas, de tenses sociais, e como prtica concreta que realiza tarefas de dominao e de poder, ainda que aparea como um dado natural e neutro da vida social28. Nesse sentido, percebemos a tentativa de se colocarem do mesmo lado desse abstrato povo. Imprensa e povo constituem a turma de c. Os que reclamam e falam mal do governo constituem a turma de l. Outro dado importante desta notcia so os termos usados para dar significado aos grupos que esto tentando compor: patriotismo, trabalho e nao, valores universais que, trabalhados pelo jornalista, passam a compor o elo que liga a opinio pblica aos grupos especficos parceiros do jornal na futura candidatura do PDS.

26 27

Poltica. Jornal Correio de Uberlndia, 08 de Janeiro de 1982, p. 01 (grifo nosso). Uma importante discusso sobre a funo poltica da linguagem encontramos em: WILLIAMS, Raymond. Introduo. In.: Cultura e sociedade, 1780-1950. So Paulo: Editora Nacional, 1969, p. 1521. 28 MACIEL, Laura Antunes. Cultura e tecnologia: a constituio do servio de telgrafo no Brasil. In.: Revista Brasileira de Histria. ANPUH/Marco Zero, vol. 21, n 41, p. 129.

25 Por outro lado, o contato com demais fontes, como a da Associao de Moradores do bairro Bom Jesus e a do Centro de Memria Popular, me trazia outros registros que colocavam a presena e as reivindicaes de outros sujeitos. No caso especfico do bairro Bom Jesus, moradores que tinham olhares divergentes e que lutavam para questionar os projetos de reformas nos lugares do bairro, neste processo, respondiam e tencionavam as verses que lhes taxavam como pedaos podres da cidade. Foi muito interessante olhar a documentao da associao e ver que ali os responsveis pela seleo do material recortaram e guardaram vrias reportagens desse veculo e de outros29. A forma como selecionaram os registros da imprensa mostrou-nos como o processo social complexo e como as lutas do social ganham contornos interessantes. Os registros da imprensa que em um dado momento poderiam ser expresses de projetos hegemnicos serviram tambm de recorte para dar suporte s reivindicaes e de material de divulgao para o grupo que estava frente da associao. Estes outros usos das matrias dos jornais vinculados aos sentidos dos sujeitos demonstraram a complexidade das disputas do social. Produes que, ao irem para o papel, tm uma inteno e foram apropriadas por outros grupos e utilizadas como meio de reivindicar e lutar. Essa documentao da associao de moradores e, posteriormente, da imprensa apontava para a dcada de 1980 como um momento de tenses, vindo de vrios setores da populao. Isso ocorreu num embate direto com o projeto hegemnico posto em prtica na cidade, que atentava para diversas mudanas nas reas centrais30 para benefcio de uma parcela pequena da populao em nome de um desenvolvimento particularizado. A partir destas primeiras evidncias, foram construdos alguns marcos. A dcada de 1980 aparecia como um momento atpico31 nas discusses sobre os projetos para a

Entre estas: Zaire recebe documentos pela retirada dos trilhos e terminais de petrleo, Correio de Uberlndia, 27 de setembro de 1984; Zaire recebe documento com 8.293 assinaturas, Primeira Hora, 27 de setembro de 1984; Atlantic ser a primeira a deixar o centro da cidade, Primeira Hora, 05 de outubro de 1984; CNP autoriza transferncia de companhias e trilhos podero ser arrancados, O Tringulo, 12 de fevereiro de 1985; Trilhos da Monsenhor Eduardo sero desativados brevemente, Correio de Uberlndia, 18 de junho de 1986. 30 Cf. CALVO, Clia Rocha, 2001; MORAIS, Srgio Paulo. Trabalho e cidade: trajetrias e vivncias de carroceiros na cidade de Uberlndia. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Uberlndia/MG, 2002. 31 Para E. P. Thompson, geralmente, um modo de descobrir normas surdas examinar um episdio ou uma situao atpicos. Um motim ilumina as normas dos anos de tranqilidade, e uma repentina quebra de deferncia nos permite entender melhor os hbitos de considerao que foram quebrados. Cf.

29

26 cidade de Uberlndia. As evidncias apontavam para um tempo de maior interveno dos moradores na constituio das polticas urbanas32. A mobilizao que me chamou a ateno para este bairro foi promovida pelos moradores para que fossem retirados os terminais de combustveis das empresas Atlantic, Esso e Texaco e os trilhos de ferro da Ferrovia Paulista S/A. Essa mobilizao teve incio em 1983 com a criao da Comisso de Moradores, que ganhou fora e trabalhou durante os anos 1984 e 1985, organizando atos pblicos, abaixo-assinados, visitas Cmara, reunies com empresrios e o prefeito, a fim de que fosse firmado um compromisso para as devidas retiradas. Todo esse processo vai levar reconfigurao fsica do bairro, com a retirada dos trilhos, e reurbanizao da sua avenida central, a Monsenhor Eduardo. A partir deste roteiro inicial, passei a procurar os moradores para ouvi-los. A questo central do dilogo era entender como os moradores interpretavam o conjunto de reformas promovidas pelo poder pblico no bairro. Encontrei, nas narrativas, outros referenciais de mudana no viver urbano. A maioria destas entrevistas apontava para uma cidade vivenciada nos anos 1960 e 1970 e para aquela percebida hoje, evidentemente que no movimento do presente para o passado, mas o que aparecia de novidade era o tempo da mogiana. Para uns, a cidade da Mogiana; para outros, a cidade da tranqilidade, dos passeios noturnos, das msicas nos bares, do cinema, da segurana construda na confiabilidade, do tempo em que se sentavam porta para conversar. Portanto, o sentido das transformaes era outro. A estao da Mogiana foi derrubada em 1970. Esta estao aparece como marco em muitas narrativas ouvidas neste trabalho, acredito que, como coloca Clia Rocha Calvo, puseram no cho muito mais do que um amontoado de cimento e pedra, mas uma cidade33, que aparece nestes enredos em valores que ainda esto sendo colocados em disputa.

THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e histria social. In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. p. 238. 32 Podemos perceber essa interveno na quantidade de atos pblicos promovidos em alguns bairros da cidade e mesmo na quantidade de abaixo-assinados recebidos pelo prefeito atravs da Cmara Municipal. Entre esses atos esto a mobilizao dos moradores do bairro Bom Jesus pela retirada dos trilhos de ferro; a mobilizao dos moradores do bairro Tibery pela retirada das mquinas beneficiadoras de arroz; a mobilizao no bairro Alvorada; e a discusso de emendas populares para a Assemblia Constituinte. 33 CALVO, 2001, p. 212.

27 O primeiro passo na compreenso destas narrativas foi entender as funes do tempo na histria oral34. Com a leitura do texto de Portelli, entendemos melhor o trabalho da memria, primeiro ao perceber que o momento da vida em que a estria contada um fator crucial na sua moldagem35 e, segundo, ao ler estes enredos e ter o presente como referencial nos sentidos atribudos ao passado naquilo que Portelli chama de movimento de lanadeira. O caminho destas histrias estava em temas que davam sentidos em suas vidas. O ir e vir no tempo tem como funo relacionar as experincias que ajudam na construo destes sentidos. Estes enredos me fizeram repensar alguns supostos e tentar romper com uma perspectiva positivista, cronolgica e objetiva, alm de questionar o sentido das mudanas nos modos de viver no bairro Bom Jesus e na cidade de Uberlndia. Nesse contexto, as fontes orais deram importantes contribuies nas interpretaes aqui construdas. No que estas tenham a funo de confirmao do que a escrita nos diz ou mesmo o contrrio, da negao, mas pela importncia de sua utilizao na sua origem as fontes orais do-nos informaes sobre o povo iletrado ou grupos sociais cuja histria escrita ou falha ou distorcida36 , e no seu contedo a vida diria e a cultura material dessas pessoas e grupos37. A seleo dos moradores foi construda para que fosse possvel entender a forma como vivenciaram as reformas urbanas e que significados davam a elas na sua experincia. Nesta perspectiva, entrevistei tambm pessoas que no moram mais na regio. No fiz esta opo numa busca pelo distanciamento, mas sim para entender outros sentidos dados s mudanas sofridas neste lugar especfico e, ainda, para compreender de que maneira essas diferentes lembranas compem outros sentidos e significados para os espaos transformados. Quando entrevistei estes moradores e li o enredo construdo nas narrativas, entendi que no dilogo que construram comigo estavam tambm as verses oficializadas da memria. Verses estas que esto postas nos referenciais do poder, no noticirio da34

PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida funes do tempo na histria oral. In: FENELON, Da Ribeiro, et. al (orgs.). Muitas memrias, outras histrias. So Paulo: Olhos dgua, 2004. 35 Ibidem, p. 298. 36 PORTELLI, Alessandro. O que faz a histria oral diferente. In: Revista Projeto Histria, PUC/SP, So Paulo: EDUC, n. 14, 1997, p. 26. 37 Ibidem, p. 27.

28 imprensa, na edificao das grandes obras e na constituio do patrimnio como memria. Essa leitura foi importante para perceber que no existe uma memria pura, mas sim elaboraes trazidas das relaes construdas nos vrios momentos e significadas por estes entrevistados no encontro com o historiador. Nesse sentido, quando construmos uma problemtica sobre a cidade, nos debruamos sobre as fontes e construmos nossa interpretao adotando uma perspectiva de pensar um texto que dialogue com muitas memrias. Ao trazermos, principalmente, aquelas enterradas pela memria hegemnica, acabamos por participar de uma produo social da memria38. Entendemos que esta produo no linear e nem global, pelo contrrio, fruto de muitas disputas justamente por compor uma das muitas esferas do social. Esta participao no se d apenas como lembrana de fatos, mas tambm como construo de significados para o que estamos vivendo, com as leituras do social que os entrevistados fizeram naquele momento e o que projetavam para o futuro. Este foi um momento importante, que me ajudou a ter maior clareza da opo terica e metodolgica que eu queria percorrer na academia, da linha que me ajudaria a entender melhor as questes que me angustiavam. Partiam dessa pesquisa os primeiros contatos com E. P. Thompson, Raymond Williams, Richard Hoggart, Eric Hobsbawn, Alessandro Portelli, Yara Aun Khoury, Da Ribeiro Fenelon, entre outros, com os quais tomaremos o cuidado de dialogar com mais detalhes ao longo do texto. Nesse sentido, passo a trabalhar a cidade de Uberlndia buscando as memrias dos moradores do bairro Bom Jesus e compreendendo como eles compem os sentidos de suas experincias, ora disputando, ora construindo pactos com outros sujeitos dos processos vivenciados. Nesse caminho, busco refletir os espaos desta cidade na expresso das temporalidades de memrias compostas como lembranas sobre as relaes vividas e como estas representam as marcas desses significados, deixados como projees e mudanas no seu jeito de viver e disputar a cidade.39 Na busca por esta experincia, diferentes fontes foram encontradas e produzidas. Alm das fontes produzidas pelo jornal Correio de Uberlndia e a Associao de Moradores, as quais j mencionei, trabalhei com atas da Cmara de Vereadores eEsta discusso apresentada, de forma muito rica, em: GRUPO DE MEMRIA POPULAR. Memria popular: teoria, poltica, mtodo. In: FENELON, Da Ribeiro, et al (orgs.). Muitas memrias, outras histrias. So Paulo: Olhos dgua, 2004. 39 CALVO, 2001, p. 10.38

29 correspondncias recebidas pela prefeitura. Dentre as fontes produzidas, esto as entrevistas e fotografias feitas no interior do bairro. No trabalho com estes documentos de natureza e lugar social muito diferentes, busquei, na inspirao da reflexo de Yara Aun Khoury, um olhar que demande maior ateno e sensibilidade s mltiplas foras que atuam no fazer-se dirio da histria, s mltiplas expresses e linguagens por meio das quais ela se forja e, acima de tudo, questo do sujeito na histria40. No se trata do fato de se ter fontes de diferentes agentes produtores, mas sim da concepo de histria que pretendo colocar em movimento nesta interpretao aqui construda. Trata-se de uma concepo de pensar um texto no qual estabelecemos um dilogo com os sujeitos e sempre dentro da perspectiva de construir um conhecimento histrico que incorpore toda experincia humana e no qual todos possam se reconhecer como sujeitos sociais41. Trabalhar nesta concepo no significa uma histria de todos ou uma histria para todos, porque fazemos a leitura desta diversidade para, juntamente com os sujeitos aqui escolhidos, disputar estas histrias hegemnicas sobre Uberlndia, saber como so produzidas determinadas memrias e como elas se instituem como histria, no singular. Busco tambm entender estas fontes como produto de linguagens culturais que revelam a cidade nas suas complexas teias de relaes sociais. Na luta pelo direito cidade, os moradores do bairro Bom Jesus criam instrumentos no s de assimilao como tambm de resistncia e ressignificao do hegemnico. na busca por entender estas batalhas e a complexa rede de produo de sentidos sobre o viver na cidade que a diferena ganha relevncia. A minha perspectiva aqui colocar a cidade em movimento nestas muitas histrias construdas na experincia social, partindo de uma verso que parece simples, mas que ainda se reproduz nas disputas polticas na cidade. Portanto, as interpretaes dos moradores me ajudaram a construir esse dilogo com outras interpretaes, com a memria oficializada pelo poder e com os trabalhos construdos no debate acadmico. A partir destes enredos, problematizo a construo destas imagens sobre a cidade na perspectiva de seus moradores: uma cidade recomposta nas suas memrias e narrada em encontros do pesquisador com moradores do bairro Bom Jesus, ocorridos em 2003, 2004 e 2005.40 41

KHOURY, 2004, p. 122. Ibidem, p. 128.

30 Moradores estes como o senhor Fernando Naves, que esteve at 2005 na Avenida Ivaldo Alves do Nascimento, no interior do bairro Bom Jesus, a duas quadras da Monsenhor Eduardo. Este morador um freqentador assduo de vrios cursos e espaos da UFU, mesmo sem ser matriculado em nenhum, conhecido como professor de redao e costuma colaborar com correes gramaticais para universitrios com dificuldades financeiras. O senhor Fernando aparece na pesquisa em meio s tpicas conversas nos corredores e bancos da universidade. Ele se apresentou como um morador e como algum que vivenciou de muito perto a reurbanizao do bairro com a retirada dos trilhos e a reconstruo da avenida, participando da coordenao dos trabalhos na associao de moradores. Alm de conceder esta entrevista, ele serviu de contato para conversa com outros moradores do lugar. Foram ouvidos tambm moradores como o senhor Jos dos Santos42, que reside na Rua Buriti Alegre. Conheci este senhor no momento em que buscava conversar com antigos moradores do bairro para entender como algumas mudanas fsicas da cidade levaram a mudar modos de vida dos trabalhadores, especificamente neste espao. Este senhor tem hoje sessenta anos e me foi indicado justamente por ser um morador conhecido em alguns circuitos especficos de relaes e prticas sociais. Alm disso, pelo fato de ser violeiro inclusive dessa prtica que vem seu apelido, Flor do Campo , como ele mesmo colocou em sua narrativa, moda de viola, a verdadeira msica sertaneja n! isso a que a gente faiz43. Morador de uma casa alugada, prxima Igreja Bom Jesus, este violeiro tambm, dono de um bar localizado na mesma quadra. A sua entrevista foi realizada na sala de visitas onde mantinha fotos da famlia, dos filhos e netos e alguns violes expostos. Os trabalhos produzidos na historiografia que envolve o tema tambm me ajudaram muito nesse debate e no dilogo com estes sujeitos. No inteno aqui fazer uma reviso historiogrfica sobre o tema nos moldes de avanos e retrocessos, mas sim olhar esta produo como prticas sociais que se inserem na disputa pela construo de outras memrias que visam novas interpretaes com uma perspectiva poltica de interveno e transformao. Tomarei o cuidado de dialogar com estas pesquisas de forma pormenorizada para no incorrer no erro de tambm homogeneiz-las.42 43

Jos dos Santos, entrevista realizada em 13 de maro de 2005. Idem.

31 Este olhar dissertao de mestrado de Srgio Paulo Morais ajudou-me, em um primeiro momento, a desconfiar do carter desenvolvimentista desta cidade, como algo inerente a ela ou condio metafsica adquirida inexplicavelmente44. Ao trabalhar com um tema que envolve cidade e trabalho, Morais possibilitou-me a entender a constituio de sujeitos ativos no processo de transformaes da cidade de Uberlndia. Ao construir o debate com trabalhadores que utilizam de carroa, o autor apresenta prticas talhadas nos embates vivenciados no dia-a-dia do viver urbano. Mais do que isso, este trabalho contribui ao levantar questionamentos sobre termos como crescimento e desenvolvimento, consagrados na verso hegemnica e, muitas vezes, usados sem a devida ateno para o posicionamento poltico que carregam. Outro trabalho importante no debate aqui proposto a dissertao de Rosngela M. Silva Petuba45 que, a partir da luta dos trabalhadores ocupantes de terra, interpreta um processo mais amplo de constituio da cidade e/ou da luta pelo direito a ela. neste processo de luta pelo pertencimento que a autora traz a cidade constituda na experincia dos seus moradores. Partindo de um aspecto especfico a luta pela posse da terra urbana , a historiadora contribui ao mostrar uma cidade construda a partir da trajetria destes moradores, suas estratgias de sobrevivncia, dificuldades com a moradia e projetos de vida. O trabalho de Luiz Carlos do Carmo46 tambm contribuiu significativamente para a pesquisa por ser um trabalho de anlise de ofcios de trabalhadores negros na cidade de Uberlndia no tempo da Mogiana. Essas funes de preto, como o autor as caracteriza, foram exercidas por alguns dos sujeitos ouvidos no meu trabalho, que, em sua maioria, residiam no bairro Bom Jesus quando este ainda era conhecido como Vila das Tabocas. Do Carmo constri o ambiente e o modo como estes sujeitos viviam neste lugar entre os anos de 1945 e 1960 e mostra que estes trabalhadores negros procuraram meios de suprir as necessidades do seu modo de ser, de construir espaos de trabalho que lhes permitissem escapar da condio de perpetuao da misria47.

MORAIS, 2002. p. 10. PETUBA, Rosngela M. Silva. Pelo direito cidade: Experincia e Luta dos Trabalhadores Ocupantes de Terra do Bairro Dom Almir Uberlndia (19902000). Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade Federal de Uberlndia, 2001. 46 CARMO, Luiz Carlos do. Funo de preto: trabalho e cultura de trabalhadores negros em Uberlndia/MG 19451960. Dissertao (Mestrado em Histria Social). Pontifcia Universidade Catlica, So Paulo, 2000. 47 Ibid., p. 69.45

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32 A dissertao da historiadora Sheille S. de Freitas Batista trouxe-nos outras contribuies. Em seu estudo, ela discute as estratgias de sobrevivncia criadas pelos moradores do bairro Vila Marielza, em Uberlndia, e mostra que a luta por pertencimento cidade constituda nestas mesmas estratgias, construda nos modos de viver na cidade. Este pertencer para alguns est na moradia e trabalho, e para outros, no ter acesso educao, assistncia mdica, gua e energia eltrica. Mas, de qualquer forma, pertencer reflete alcanar a dignidade almejada e elaborada durante suas vidas48. J a tese de doutorado de Clia Rocha Calvo49 trouxe outras contribuies especficas ao debate sobre a constituio da cidade como categoria da prtica social constituda na cultura dos seus habitantes. Vem da leitura desse trabalho a inspirao para trabalhar a cidade de Uberlndia nas imagens referendadas na memria e na histria de seus habitantes50. Uberlndia surge, ento, como lugar simblico da memria em disputa, cabendo a ns compreendermos esta cidade, buscando os marcos dos sujeitos silenciados na memria oficializada pelo poder. Outros trabalhos que no tinham como foco a cidade de Uberlndia tambm deram substanciais contribuies para responder a algumas das minhas questes. A tese da historiadora Lcia Helena Pereira da Silva ajudou-me muito a entender a noo de territrio como expresso da singularidade materializada pelos agentes sociais e, alm disso, que a materialidade descortinada no est isenta de intencionalidade s porque da esfera fsica, principalmente porque sua produo poltica por excelncia51. O modo como as pessoas vivem determinadas relaes e mudanas na cidade deixa marcas que so produzidas em meio a uma disputa de valores52 sobre os espaos vivenciados. Acredito tambm que o to aclamado debate interdisciplinar pode ajudar muito na compreenso das questes colocadas no trabalho do historiador. Esse debate no est ligado somente ao tema, mas, fundamentalmente, ao olhar poltico que nos inspira aBATISTA, Sheille S. de Freitas. Buscando a cidade e construindo viveres: relaes entre campo e cidade. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, 2002. p. 14. 49 CALVO, 2001. 50 Ibidem, p. 10. 51 SILVA, Lcia Helena Pereira da. Luzes e sombras na cidade: no rastro do Castelo e da Praa Onze (19201945). Tese (Doutorado em Histria) Pontifcia Universidade Catlica, So Paulo, 2002. p. 8. 52 ARANTES, Antnio A. Paisagens paulistanas: transformaes do espao pblico. Campinas: Editora da UNICAMP; So Paulo: Imprensa Oficial, 2000. Obra que tambm nos inspirou muito nesse olhar.48

33 pensar procedimentos de anlise. Alguns trabalhos vindos da literatura, sociologia e antropologia53 tambm ofereceram importantes contribuies para a perspectiva que assumi neste trabalho. neste sentido que levantamos aqui as contribuies oferecidas pela literatura de intelectuais como Beatriz Sarlo, Maria Elisa Cevasco e Stuart Hall. A leitura do texto do antroplogo Antnio A. Arantes54 ajudou-me a problematizar o sentimento de pertencimento construdo pelos entrevistados quando falavam do lugar, no como configurao fsica, mas nos modos como atribuam significados s suas vivncias. Ainda no campo da sociologia o trabalho de Rogrio Proena Leite55 que, ao falar das atuais polticas de revitalizao de determinados espaos da cidade, constri uma anlise muito rica sobre os lugares enquanto espao de disputas prticas e simblicas exercidas na experincia cotidiana que subvertem os sentidos esperados pelas reformas, pelas tentativas de impor aos espaos relaes mercantis56. Dentre estes debates, busquei me posicionar frente aos estudos sobre o conceito de cultura, entendendo-a como modos de vida que em determinados momentos se transmutam e como modos de luta57. A anlise centrada nesta categoria vem das necessidades apresentadas pela realidade social e do entendimento de que sendo a cultura um elemento fundamental da organizao da sociedade , portanto, um campo importante na luta para modificar essa organizao58.

Podemos apontar alguns trabalhos relevantes para o debate, como o do antroplogo HOLSTON, James. A cidade modernista: uma crtica de Braslia e sua utopia. Traduo de Marcelo Coelho. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. Ao fazer a crtica do projeto urbanstico e arquitetnico da cidade de Braslia, Holston mostra que a cultura, a histria e a produo da verdade so domnios entrecortados por relaes de poder; idias, em suma, que relativizam os fundamentos do natural e do real onde quer que exista a pretenso de apont-los como tal. Outro trabalho o do gegrafo Roberto Corra, que trabalha com o conceito de espao urbano como produto social, e nesse sentido fruto de aes humanas, de agentes sociais, que rompe com a idia de espao neutro, resultado de um mercado invisvel ou espao organizado, Cf. CORRA, Roberto L. Quem produz o espao urbano?. In: O espao urbano. So Paulo: tica, 1989. E, por fim, o trabalho do socilogo Rogrio Proena Leite, que contribuiu de forma significativa no debate acerca dos lugares e a apropriao poltica dos espaos. Cf. LEITE, Rogrio Proena. Contra-usos da cidade lugares e espao pblico na experincia urbana contempornea. Campinas/SP: Editora da Unicamp; Aracaj/SE: Editora da UFS, 2004. 54 ARANTES, A. Antnio. Paisagens paulistanas transformaes do espao pblico. Campinas/SP: Editora da Unicamp; So Paulo: Imprensa Oficial, 2000. 55 LEITE, Rogrio Proena. Contra-usos da cidade lugares e espao pblico na experincia urbana contempornea. Campinas/SP: Editora da Unicamp; Aracaj/SE: Editora da UFS, 2004. 56 Idem, p. 284. 57 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979; THOMPSON, E. P. Costumes em comum. So Paulo: Companhia das Letras, 2002; HALL, Stuart. Da dispora. Identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: UFMG; Braslia: UNESCO, 2003; e HOGGART, Richard. As utilizaes da cultura: aspectos da vida da classe trabalhadora com especiais referncias a publicaes e divertimentos. Portugal: Editorial Presena, 1973. 58 CEVACO, Maria Elisa. Dez lies sobre estudos culturais. So Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 111.

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34 Trata-se de perceber valores construdos por homens e mulheres na produo da vida diria que apontavam para outras funes aos lugares em disputa. E, alm disso, trata-se de ver como os momentos de reforma e mudanas podem produzir questionamentos e disputar a hegemonia das grandes linhas culturais, para questionar a legitimidade de sua imposio, embora talvez nunca chegue a completar essa batalha simblica59. Acredito que o movimento apresentado nas narrativas conta com essa batalha no como resistncia pura, mas como ressignificao dos valores e construo de outros num constante movimento dialtico de construo/resistncia da hegemonia. Ao discutir o partidarismo na arte, Beatriz Sarlo nos coloca a importncia do debate que travamos na sociedade, apresentando anlises e perspectivas que apontam para um olhar que busque a ruptura e a vontade de projeo60 e, assim, deixamos claro os compromissos e os pactos assumidos na reflexo. Estes so temas caros para o trabalho, temas que compem um esforo coletivo para trazer tona memrias silenciadas nestas construes hegemnicas e para entender a cidade como espao da diferena. O lugar, chamado hoje de Bom Jesus, est localizado prximo regio central da cidade e foi alvo de constantes reformas urbanas em tempos histricos diferenciados. Esta localizao tambm uma problemtica no texto, porque guarda, para os moradores dali, marcas de lutas por permanecer na cidade. Essa discusso ser tratada ao longo do primeiro captulo. Para compreender esta produo conjunta, dividi o trabalho em dois captulos. No primeiro, Uberlndia cresceu junto comigo, eu cresci junto com Uberlndia, busco interpretar os sentidos construdos em torno dos significados das mudanas empreendidas na cidade de Uberlndia e compreendidas nesta noo do crescimento. Procuro entender este processo no dilogo com os moradores do Bairro Bom Jesus. Nesse caminho, foi possvel perceber como estes sujeitos fazem a cidade ao mesmo tempo em que se fazem nela. Para este entendimento, ouvi alguns moradores do bairro e trabalhei com alguns mapas que interpretavam as mudanas fsicas da cidade, mas nomeando e privilegiando determinados espaos. Ainda neste captulo, interpreto as reformas promovidas na cidade durante as dcadas de 1960 e 1970, nos significados

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SARLO, Beatriz. Paisagens imaginrias: intelectuais, arte e meios de comunicao. So Paulo: EDUSP, 1997, p. 60. 60 Ibidem, p. 55.

35 construdos pelos sujeitos para o lugar onde moram. No caso especfico do Bom Jesus, busco entender como os moradores vivenciam a experincia de morar em uma vila nos anos 1960, vistos pela imprensa como elementos exgenos cidade. Alm disso, procuro trabalhar os significados que do hoje experincia de morarem em um lugar considerado regio central. Em linhas gerais, busco compreender a idia de crescimento urbano dialogando com os sujeitos deste pedao da cidade. No segundo captulo, Moramos numa ilha chamada Bom Jesus, algumas histrias sobre a Avenida Monsenhor Eduardo, fao uma reflexo sobre os significados da reconstruo da avenida Monsenhor Eduardo na vida destes sujeitos. Procuro aqui entender os projetos colocados em disputa no momento em que retiram os trilhos que ali existiam e iniciam o processo de reurbanizao do local. Atravs das entrevistas, dos documentos da associao de moradores e de algumas fotos por mim registradas, interpreto as disputas abertas entre engenheiros e empresrios ligados ao poder pblico e os moradores do bairro para traarem e recriarem o lugar atravs de valores especficos destes grupos. Os primeiros tentando dar continuidade aos projetos relacionados cidade nos anos 1970, na lgica do mercado que buscava favorecer o trnsito de mercadorias e privilegiar os automveis que nelas circulavam. E, em contrapartida, os moradores privilegiando o que chamavam de segurana e lazer, atividades que carregavam uma gama de valores que no estavam limitados ao uso da avenida, mas tencionavam os caminhos projetados para a cidade de Uberlndia. Pautado no entendimento de que a produo desta memria coletiva, porm de uma fora desigual, que a memria dominante produzida no transcorrer dessas lutas e sempre est exposta contestao e que, enfim, escrever sempre alinhar-se61, quero finalizar esta primeira conversa reafirmando o compromisso de reunirmos todos os esforos intelectuais para construirmos um trabalho no qual nossos sujeitos possam se reconhecer. E, alm disso, para que possamos apontar para uma crtica sistemtica dos valores liberais de mercado que nos aproxime do objetivo trabalhado por muitos e transcrito pelo historiador Josep Fontana, o de supresso de todas as formas de explorao do homem: de uma sociedade igualitria, na qual se tenha eliminado toda coero62.

CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. So Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 21. FONTANA, Josep. Histria: anlise do passado e projeto social. Bauru, So Paulo: EDUSC, 1998. p. 12.62

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UM Uberlndia cresceu junto comigo, eu cresci junto com Uberlndia.

A afirmao que abre este trabalho do senhor Jos dos Santos63 que, durante toda sua fala, retoma o enredo condensado na frase, o qual expressa um suposto bsico deste estudo: os sujeitos fazendo a cidade ao mesmo tempo em que se fazem. Juntamente com este trabalhador, e outros ouvidos durante a pesquisa, vou ao longo deste texto discutir as relaes sociais na cidade de Uberlndia nos ltimos quarenta anos. Estes foram tempos de mudana. Tempos que significaram para muitos trabalhadores transformaes nos seus modos de viver a/na cidade. Transformaes estas experimentadas por alguns como possibilidade de trabalho e por outros como educao para os filhos e luta por equipamentos bsicos de infra-estrutura. Mas esta experincia tambm est no sentimento de excluso, de violncia, e na criminalizao dos seus modos de viver no bairro, que trazem nas suas memrias processos de luta para pertencer cidade, mesmo contra vises que os desqualificavam ou tentavam ilh-los nos seus territrios de convivncia. justamente a partir desse processo vivido que, nas prximas linhas, proponho algumas questes. De forma geral, estas questes apontam para os sentidos dados por estes sujeitos, que so mediados por outros com quem se relacionaram para o crescimento da cidade. Antes, porm, permita-me o leitor falar um pouco sobre a cidade de Uberlndia a partir de alguns referenciais. Para comear esta apresentao, exponho aqui um mapa que nos ajudar a seguir pistas para construir algumas imagens sobre esta cidade:

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Jos dos Santos, entrevista maro de 2005.

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MAPA 1 Localizao do bairro Bom Jesus em 2001. In: SILVA, Marta Maria da. Reestruturao urbana no bairro Bom Jesus Uberlndia. Monografia Centro Universitrio do Tringulo, Uberlndia, 2001. Digitalizado pelo autor.

Sabemos que a imagem posta no papel como mapa da cidade no um mero desenho neutro, mas uma construo, fruto de uma interpretao que carrega um sentido

38 poltico e histrico dado ao espao geogrfico da cidade64. O mapa acima foi desenhado a partir de uma base cartogrfica da Secretaria de Planejamento da Prefeitura Municipal de Uberlndia e foi retirado de um trabalho monogrfico de uma ex-moradora e participante da associao de moradores. O seu desenho foi feito com a finalidade de pensar formas de reurbanizar o bairro e valoriz-lo dentro da lgica do mercado imobilirio. Marta Maria da Silva esteve presente nos acontecimentos da dcada de 1980, ajudou a pensar algumas mudanas que pudessem, na sua concepo, melhorar o lugar onde morava e os transformou em trabalho monogrfico. A monografia foi escrita para o curso de urbanismo e traz no s no desenho, mas na concepo que permeia o seu trabalho, um dilogo muito prximo com os valores hegemnicos difundidos pela cidade que nomeia e d sentido aos vrios territrios. A setorizao segue os padres postos por uma lgica de investimentos e valorizao do capital privado e est em sintonia com os saberes dos chamados tcnicos que pensam estes lugares a partir do potencial de retorno e acmulo deste capital, neste sentido que o bairro Bom Jesus aparece compondo, juntamente com o centro propriamente dito e outros bairros vizinhos um setor central. Essa noo de lugar no est somente na viso da urbanista e ex-moradora, mas na fala de outros que ouvimos. Porm estar neste setor tem outros significados importantes para os sentidos que muitos construram para o pertencimento cidade e para organizar neste tempo presente os seus enredos. Sentimentos que no esto limitados em dizer que moram em um lugar mais ou menos valorizado, mas que do o sentido s suas trajetrias, seus lugares sociais e, suas vidas neste lugar. Esse dado muito significativo para comearmos a pensar o processo de mudanas na cidade de Uberlndia, entendendo que a constituio destes lugares no est na nomeao de ruas, praas ou bairros, mas nas relaes sociais vivenciadas e nas experincias trazidas a partir delas. Para os muitos trabalhadores desta cidade e, em especial, os ouvidos neste trabalho, esta diviso tem significados bem diferentes. Ao refletir sobre a cidade a partir desta construo, fui tentando puxar sentidos para estes diversos setores a partir da minha experincia como morador e trabalhador que transitou por estes lugares sem ter atentado ainda para as localizaes e os seus significados histricos e polticos.64

KNAUSS, Paulo. Imagem do espao, imagem da histria. A representao espacial da cidade do Rio de Janeiro. Tempo. v. 2. n. 3. Rio de Janeiro,1997. p. 135148.

39 Moro no bairro Presidente Roosevelt, no setor norte. Neste setor existe um conjunto de bairros que foram criados a partir do final dos anos 1970, alguns com financiamento federal (por meio da Caixa Econmica Federal), outros com dinheiro do Estado (financiado pela Minas Caixa). Esses conjuntos, criado pelo Sistema Nacional de Habitao, constituiu um complexo de bairros destinados aos trabalhadores de Uberlndia, em determinado momento. Nesse amplo territrio, est ainda, localizado ao fundo, o Distrito Industrial. Outro setor do mapa geral, que desperta algumas reflexes o setor leste, que no mapa aparece com uma grande rea limpa e com o bairro Morumbi ao fundo. Prximo ao setor central e ao fundo do bairro Umuarama, comea a se desenhar uma regio privilegiada dos atualssimos condomnios fechados, ligados ao aeroporto. O que na minha memria aparecia como lugar deserto, quando na dcada de 80 amos ao Clube Tangar naquele tempo, clube de lazer voltado para trabalhadores , aparece agora como regio de investimento de um outro capital especulativo, no mais voltado para captar os anseios populares de luta pela moradia, mas sim capitalizando o isolamento daqueles que expropriaram o trabalho e agora se fecham no isolamento privado e protegido. Neste mesmo setor, podem ser percebidas outras formas de lutar pela cidade. Embora no posto no mapa, na regio esto tambm os bairros Dom Almir, Prosperidade e Joana DArc, constitudos por ocupantes de territrios urbanos em uma batalha por permanecer e pertencer a esta cidade, luta que ganha outros contornos nesse momento65. Tive uma experincia muito interessante neste setor como um todo, porque no incio do ano de 2004 fui professor na Escola Municipal Dr. Joel Cupertino Rodrigues e, no deslocar-me cotidiano, vivenciei de perto a execuo desses projetos to desiguais para a cidade de Uberlndia. Os setores desenhados no mapa no do conta dessa experincia social complexa. em busca dessa experincia social, das formas complexas de constituio dos territrios urbanos, que sairemos do mapa e entraremos no Bairro Bom Jesus. Vamos comear esta histria dialogando com o senhor Jos dos Santos, muito conhecido no bairro como Flor do Campo, seu nome artstico e tambm o nome do seu bar. O SenhorA luta pela posse destas terras pelos moradores ocupantes analisada em PETUBA, Rosngela M. Silva. Pelo direito cidade: Experincia e Luta dos Trabalhadores Ocupantes de Terra do Bairro Dom Almir Uberlndia (1990-2000). 2001. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Uberlndia.65

40 Jos mora de aluguel na Rua Ivaldo Alves do Nascimento, em uma casa pequena, muito prxima Igreja Bom Jesus, umas das principais referncias para os moradores do bairro. Ele possui um bar na Avenida Marciano de vila, onde esto concentrados os principais estabelecimentos comerciais e um lugar de referncia na cidade como espao de violeiros. O senhor Jos dos Santos, como a maioria dos moradores que ouvi, veio de outras cidades, neste caso de So Francisco de Oliveira, oeste de Minas Gerais. Ele chegou a Uberlndia na dcada de 60. Este trabalhador tem uma fala firme que, de certa forma, transparece ao interlocutor uma confiana ao narrar suas experincias na cidade e, principalmente, no bairro em que mora, onde criou os filho tudo. Ao perguntar para este trabalhador sobre a cidade neste tempo, este nos narra da seguinte forma:

[] Eu lembro porque eu sou uma pessoa o seguinte, Renato, n? Eu sou uma pessoa o seguinte, Renato, eu tenho a memria muito ruim pra algumas coisa e muito boa pra outras, e eu tenho uma memria pra uma pessoa, assim se eu v uma pessoa uma ou duas vezes e pass um ms sem v eu j no conheo mais, mas o que passou comigo na minha infncia eu recordo muito bem, por exemplo: Uberlndia cresceu junto comigo, eu cresci junto com Uberlndia! , eu vim pra c em 1960, ento Uberlndia era pequeneninha, aqui tinha dois coletivos, um fazia o bairro Martins e o outro o bairro Operrio, entendeu? Ento quer dizer um corria o bairro Martins e o outro corria o bairro Operrio, no tinha esses bairros em volta, Uberlndia tinha, por exemplo, Roosevelt, Saraiva, Tibery, Tubalina, Patrimnio e mais um ou dois bairros, no tinha esses bairros em volta no. Uberlndia tinha o qu? Uberlndia tava com 60 mil habitantes quando eu vim pra c...66

Uberlndia cresceu e eu cresci! Existe um crescimento na cidade que o senhor Jos reconhece, que passa inclusive pela nomeao do lugar onde mora, como setor central, porm existe tambm um crescimento pessoal que faz parte do crescimento da cidade. Podemos refletir um pouco mais sobre estes sentidos de crescimento em outro trecho de sua entrevista:

Eu vim pra c, eu gostei do bairro, no sei no eu gosto demais do bairro aqui, eu no saio desse bairro de jeito nenhum, eu gosto demais daqui, eu poderia at ganhar um prmio sozinho na Sena que eu no sairia desse bairro de jeito nenhum, gosto muito daqui, acostumei, meus filhos criou tudo aqui. [] eu66

Jos dos Santos, maro de 2005. (destaque nosso).

41conheo todo mundo aqui, eu olhando a pessoa eu sei quem que onde mora, sei tudo!67

Como podemos pensar esta noo de crescimento pessoal e crescimento urbano sem cairmos na armadilha da meritocracia liberal? No seu crescimento este trabalhador traz a sua trajetria pessoal e nesta mostra como permaneceu, deu condies para que seus filhos estudassem. No conseguiu sair do aluguel, mas conseguiu ter o seu comrcio. Para o senhor Jos dos Santos, viver e persistir neste local ganhou outro sentido nesse momento. Ficar nesta regio, ser reconhecido entre os moradores, ver a cidade crescer e, mais do que isso, ser sujeito desse crescimento, d a ele o sentido de pertencer. nessa regio que ganhou sua vida, suas amizades, criou e educou seus filhos com a fora de seu trabalho. O senhor Jos dos Santos tem hoje uma relao totalmente diferente com a cidade. Ao ser perguntado sobre o seu primeiro trabalho, nos traz uma reflexo sobre outras experincias, dos sujeitos que no tempo da chegada na cidade no tinham tantas opes de trabalho:

Entrevistador: Quando o senhor veio pra c? Como era a sua vida? O senhor j trabalhava com comrcio? Jos dos Santos: No, no! Quando eu vim pra c, os meus meninos eram pequenos, meu caula tinha trs anos e eu trabalhava numa cerealista aqui nessa avenida Floriano Peixoto. Trabalhei muitos anos no Arroz Carrijo, na Cerealista Rana Rana, mexia com sacaria, n? Essas coisas. A mogiana ali embaixo, que a gente falava, no era certo, ali a mogiana, era aqui onde a Srgio Pacheco, a inscrio do trem era ali. Os trilhos passava aqui na Monsenhor Eduardo.68

Na pergunta que fiz ao senhor Jos dos Santos, estava a minha busca: pensar as transformaes vividas neste pedao da cidade, nestes tempos construdos nas memrias dos moradores. O tempo da chegada na cidade, da busca por um lugar de moradia e os significados destas memrias para a constituio de alguns espaos. Este trecho significativo para pensarmos a experincia social destes sujeitos que vinham de outras regies, com filhos para criar, precisando encontrar trabalho e local de moradia. Para estes, a Vila das Tabocas se tornava um lugar onde poderiam encontrar meios de67 68

Idem. Idem.

42 suprir as necessidades do seu modo de ser, de construir espaos de trabalho que lhes permitissem escapar da condio de perpetuao da misria69. No relato acima, ele disse que quando veio para Uberlndia encontrou emprego nas casas de beneficiamento de arroz. Hoje este senhor tem um comrcio e, alm disso, tem trnsito freqente nos espaos institucionalizados como cantor popular70, da o nome Flor do Campo. O fato de dizer que no se muda nem com o prmio da loteria (poderia comprar uma casa em um condomnio fechado) carrega os significados da sua experincia atual, de algum que se sente valorizado e que melhorou as suas condies de trabalho na cidade. Advm dessa experincia o sentido da afirmao do seu lugar, do reconhecer-se pertencente quele espao compartilhado. justamente por se tratar de uma regio de trabalhadores pobres, das dificuldades com o trabalho pesado, do preconceito com o trabalhador negro, que se torna muito importante ficar ali. No simplesmente o espao fsico, mas no se mudar carrega o sentido da persistncia de quem se viu morando em uma favela e conseguiu chegar em 2004 com os filhos encaminhados e, agora, residindo prximo ao centro da cidade. Ter um bar, tocar viola, andar pelo bairro e ser reconhecido d a mediao entre os crescimentos colocados na sua fala. Colocar esta anlise no incio deste captulo importante porque este territrio se constitui nesta mediao, o que significa que o crescimento do senhor Jos no est isolado, est dentro de um processo social onde outros sujeitos se colocam e interpretam o avano das fronteiras urbanas. Muitos moradores deste local trazem este enredo de crescimento mesmo no usando este termo nas suas histrias. Esta interpretao est organizada nas suas trajetrias, e nas formas como estabeleceram relaes com outros sujeitos desta cidade. Ao ser perguntado sobre como e quando foi morar no bairro Bom Jesus, ele narra sua trajetria:

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CARMO, Luiz Carlos do. Funo de preto: trabalho e cultura de trabalhadores negros em Uberlndia/MG 1945-1960. 2000. Dissertao (Mestrado em Histria) Pontifcia Universidade Catlica, So Paulo, 2000. p. 69. 70 Existe uma rede construda pela da Secretaria de Cultura e por alguns produtores na cidade que propicia espaos para apresentaes de cantores da chamada msica caipira. Estes espaos possibilitaram aos sujeitos em questo o reconhecimento e a conquista de novas apresentaes.

43Eu vim pass o Natal com o meu tio aqui em Uberlndia. Eu fui criado sem pai e sem me, fui criado com minha av. Eu tinha vindo a primeira vez pra c em 1950, eu tava com cinco anos, a meu tio, que estava servindo o tiro de guerra aqui, ele ficou e ns voltamo pra nossa terra. A quando foi em 1959 pra 60, ele foi me busca pra mim passa o Natal com ele aqui. A a gente veio passa o Natal e ficou e eu no voltei mais, achei boa a cidade, quetei por aqui, me acomodei.71

A lembrana de vir sem pai e sem me tem um sentido forte no enredo construdo pelo senhor Jos dos Santos, na prpria estruturao da sua entrevista e no sentido que traz das disputas na cidade. Isso porque, a forma como ele busca o seu lugar e o seu reconhecimento est ligada de permanncia neste lugar. Este tempo da memria, que traz a chegada cidade, deixa abertas algumas reflexes sobre os sujeitos dos quais estamos falando aqui e as circunstncias em que eles se movimentaram na cidade at estabelecerem moradia e acomodao em algum lugar. Antes de falar um pouco mais sobre estas experincias, apresento para reflexo outro mapa da Uberlndia, este construdo para representar a cidade entre os anos de 1950 e 1960:

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Jos dos Santos, maro de 2005.

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MAPA 2 Uberlndia na dcada de 1950 e 1960. In: DAMASCENO, Fernando Srgio. Condies de vida e participao poltica de trabalhadores em Uberlndia nos anos de 1950/60. 2003