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1 cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo

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cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre

Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo

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UNIV E RSID A D E F E D E R A L D A B A HIA

FA CULD AD E D E AR QUITETUR A

PR O GR A M A PÓS-GR AD UA Ç Ã O EM AR QUITETUR A E UR B AN ISM O

M AR IN A C AR M ELLO CUN H A

C ID A D E R EST O : O ESP A Ç O (D A) R O UP A E O Q UE [SO B R E]VIV E E N T R E B AIX A

D OS SAP A T E IR OS E P AR Q UE N O V O M UN D O

S A LV ADO R - B A

2014

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M AR IN A C AR M ELLO CUN H A

C ID A D E R EST O : O ESP A Ç O (D A) R O UP A E O Q UE [SO B R E]VIV E E N T R E B AIX A

D OS SAP A T E IR OS E P AR Q UE N O V O M UN D O

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Arquitetura em Urbanismo. Área de concentração: Urbanismo. Linha de pesquisa: Processos Urbanos Contemporâneos.

Orientadora: Profª. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela Coorientadora: Profª. Dra. Paola Berestein Jacques

S A LV ADO R - B A 2014

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C972 Cunha, Marina Carmello. Cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo / Marina Carmello Cunha. 2014. 114 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela. Coorientadora: Profª. Dra. Paola Berestein Jacques

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2014.

1. Sociologia urbana - Cidades e vilas. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. II. Portela, Thais de Bhanthumchinda. III. Jacques, Paola Berestein. IV. Título.

CDU: 711.4:316

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[Para minha amiga , e

os tantos outros que falam através

dela, eternizada nessa costura de

palavras. Com o amor e a dor que

cabem ao encontro]

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Agradecimentos

Agradeço a todos com quem me emaranhei por esses caminhos. Por me oferecerem

almoços e cafés, abrirem a porta de suas casas, doarem tempo, história e vida à esse

trajeto. À tudo que cabe dentro desse texto torto, como disse certo dia minha Mana

Preta, Pri: todos os afetos, ebós, choros e risos, todas as urgências, atrasos e o que mais

couber.

Aos distantes, mas sempre presentes, Dé, Fabis e Nan.

Ao meu mestre e boss Cassio Brasil, que eu vi trabalhar lindamente costurando vida e arte. Que me apresentou o Parque Novo Mundo e toda sua magia invisível.

À Paty, mulher iluminada a quem devo muito, principalmente por colocar meus pés no chão algumas vezes quando precisei.

Aos Borean, minha família porteña, que me transmitem força e carinho por todos os lados.

Ao querido Zé, companheiro dos momentos mais difíceis e divertidos. Meu amor e gratidão infinitos.

Aos amigos‐irmãos caipiras: Mama, Za, Du, Fe e Bidi que tem o dom de transformar a vida em felicidade. Obrigada por serem tudo o que são! Quanto amor!

À pequena família que tive a alegria de construir em Salvador: Nini, Rê, Pri, TT, Jana, Marcelo, Sara, Lu, Jujuba e o Barrigo, Gus, Tia Thai, Pablito, Clarita, OzLindo, Tai, Titi e vovó Suda. Seria impossível sem vocês!

À minha amiga Lis, pelas descobertas, as trocas e o amor todo. E à sua família, que virou um pouco minha.

À Carol Bierrenbach e Cris Mesquita, pela amizade, confiança e os caminhos abertos com delicadeza.

À Paola por caminhar junto, apontar caminhos e fazer comentários certeiros.

À Tai por aceitar remar comigo e fazer isso da maneira mais leve e bonita que poderia acontecer. Muito amor e gratidão.

Ao Guigo, por ter chegado a tempo de dar alegria à reta final de fechamento da dissertação.

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Ao Gag, que entrou na minha vida no dia da defesa, de forma linda e avassaladora. E desde então tem sido o maior estimulador das minhas vontades, realizações e amor. Muita alegria e aprendizado em sua companhia.

Aos dois pequenos que alegram minha vida e dão sentido aos esforços há um ano e alguns meses, Leonardo e Gabriel, meus sobrinhos e pontinhos de alegria diários.

Às minhas avós, pelas linhas todas.

À minha família, de poucos membros e alguns agregados (Mami, Papi, Tite, Osma, Rafa, Rô, Paulinha e Ana), essa ilha para onde remo o barquinho sempre que preciso de terra firme. Sem vocês perderia o prumo!

À CAPES, por ter sido uma boa mãe financiadora deste trabalho.

E à cidade do Salvador, que me transformou infinitamente.

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CUNHA, Marina Carmello. Cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo. 2014. 114 f. il. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

RESUMO

No contexto dessa pesquisa, acreditamos que está nos restos, no que é quase invisível, uma resistência potente a uma certa hegemonia de valores. Nesse sentido, nos perguntamos: aonde vão parar as coisas que já não servem mais à cidade formal, esta que é regida pelo poder hegemônico? O que acontece com elas? Como sobrevivem? Na intenção de trazer à tona pistas que nos levem a possíveis respostas a essas perguntas, nos encaminhamos através de conceitos como o do homem em farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros autores e do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg. É assim que este trabalho se faz, se utilizando de uma metodologia de catação de rastros, sobras, trapos, conceitos e restos de roupa, de cidade e de gente; vestígios tais que encontramos entre a Baixa dos Sapateiros, em Salvador e o Parque Novo Mundo, em São Paulo. Essa costura invisível nos leva a conhecer o que chamamos cidade resto, um lugar agenciado por sujeitos que vivem dos restos de outros sujeitos.

Palavras‐chave: restos; cidade; roupas; corpo; catação.

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CUNHA, Marina Carmello. City of Remains: the space (of) clothes and what survives between Baixa dos Sapateiros and Parque Novo Mundo. 2014. 114 f. il. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

ABSTRACT

In the context of this search, we believe that the remain is, as it is almost invisible, strong resistence to certain dominance values. In this sense, we ask: where will stop things that no longer serve more the formal city, which is governed by the hegemonic power? What happens to them? How they survive? Intending to bring up possible clues to answer these questions, we headed through concepts such as the man in rags, from Flávio de Carvalho, the ragpicker, from Walter Benjamin, the five skins, from Hundertwasser, the anthropophagy in Oswald de Andrade and other authors and the evidential paradigm, by Carlos Ginzburg. This is how this work is done, using a metodology of scavenging of traces, wastes, rags and clothing remains, city and people; this traces we can find between Baixa dos Sapateiros, in Salvador and Parque Novo Mundo, in São Paulo. This invisible sewing leads us to comprehend what we call the city of remains, a place intermediated by subjects who live within the remains of other subjects.

Key‐words: remain; city; clothes; body; scavenging.

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Lista de figuras

Fig.1, 2 e 3 30 Peças da linha ‘0’, de Martin Margiela, das coleções Primavera­Verão 2007, Outono­Inverno 2005 e Primavera­Verão 2008, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_archives/01_coll_­artisanal­/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013. Fig.4, 5 e 6 31 Peças da linha ‘0’, de Martin Margiela, das coleções Outono­Inverno 2008, Primavera­Verão 2007 e Outono­Inverno 2006, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_archives/01_coll_­artisanal­/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013. Fig.7 32 Imagem retirada de frame do filme Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise, de Dai Sijie, 2012. Fig.8 36 Ticket de entrada para o Ahsan Manzil Museum, em Bangladesh. Fonte: arquivo pessoal. Fig.9 40 Imagem retirada de frame do documentário Les Glaneurs et la Glaneuse, de Agnès Varda, 2000. Fig.10 44 Loja da Baixa dos Sapateiros, em Salvador, onde a primeira pista da pesquisa foi encontrada. Foto de arquivo pessoal, 2012.

Fig.11 48 Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Foto retirada do Google Maps, em setembro de 2012. Fig.12 49 Ilustração de Hundertwasser representando as cinco peles. Fonte: RESTANY, 2003, p.15. Fig.13 54 Manequins da loja de roupas usadas na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.14 58 Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Fonte: Google Maps, setembro de 2012.

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Fig.15 60 Entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.16 61 Misterioso corredor de entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012.

Fig.17 e 18 67

Local de trabalho da Costureirinha e ela mostrando um de seus muitos truques: a tesoura imantada que atrai alfinetes, em Salvador / BA. Fotos de arquivo pessoal, 2012. Fig.19 67 Corredor do ateliê da Costureirinha cheio de bolsas e mochilas consertadas por ela, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2012. Fig.20 e 21 69 O Catador mostra peça de roupa ainda sem uso e etiquetada, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.22 70 Em frente à loja do Catador roupas são jogadas na calçada para serem recolhidas pelo Rueiro ou pelo caminhão de lixo da Prefeitura, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.23 e 24 77 Local de trabalho da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2013. Fig.25 93 Cartografia bordada da dimensão da cidade de Salvador para a Costureirinha baseada em sua concepção temporal. Foto de acervo pessoal. Fig.26 94 Leitura das localidades da Costureirinha aos moldes urbanísticos, baseada em uma concepção espacial. Mapa retirado do site: http://www.meuclub.net/wp­content/uploads/2012/03/mapa­de­salvador­veja­aqui.jpg, com alterações e marcações nossas.

Fig.27 99 Cartografia bordada da Baixa dos Sapateiros a partir das relações da Costureirinha. Foto de arquivo pessoal. Fig.28 101 Cartografia bordada do Parque Novo Mundo a partir das relações do Catador. Foto de arquivo pessoal.

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Sumário

SOBRE A ESCRITA

o início 15

“canteiro de obras a céu aberto” 16

GUIA DE LEITURA 22

capítulo I

PUXANDO FIOS EMARANHADOS: CATAÇÃO DE CONCEITOS 23

a catação 24

Desalinhavo#1 30

puxando fios: Martin Margiela nos apresenta à moda 32

Desalinhavo#2 35

quando moda e cidade se encontram 36

A beirada 38

o resto 38

Desalinhavo#3 39

o corpo e o resto ou o “corpo­resto” 41

Desalinhavo#4 42

o espaço (da) roupa 46

capítulo II

ALINHAVANDO TRAPOS: QUANDO SE VAI À RUA 54

vestígios e vínculos:

primeiras pistas 56

memória 58

das desculpas e táticas 61

Desalinhavo#5 64

os aliados 66

fardo de miudezas ou o “dia­a­dia da roupa usada” 67

Desalinhavo#6 68

vão­se os dedos, ficam os anéis 74

Desalinhavo#sem número 75

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o lugar e o tempo 77

Desalinhavo#7 79

o Rueiro e suas múltiplas facetas 80

capítulo III

COSTURAS: QUANDO SE COLOCAM AS AGULHAS À PROVA 86

Desalinhavo#8 88

ferramentas e ofícios 89

o clarão da morte 94

o mapa e o mapeado 98

em outro canto, o mesmo conto? 102

O ARREMATE FINAL: CIDADE RESTO OU RESTO DE CIDADE? 107

referências bibliográficas 110

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“Vale a pena em certas horas do dia ou

da noite observar objetos úteis em

repouso: rodas que atravessaram

empoeiradas e longas distâncias, com sua

enorme carga de plantações ou minério;

sacos de carvão; barris; cestas; os

cabos e as alças das ferramentas de

carpinteiro...As superfícies gastas, o

gasto infligido por mãos humanas, as

emanações às vezes trágicas, sempre

patéticas, desses objetos dão à

realidade um magnetismo que não deveria

ser ridicularizado. Podemos perceber

neles nossa nebulosa impureza, a

afinidade por grupos, o uso e a

obsolescência dos materiais, a marca de

uma mão ou de um pé, a constância de uma

presença humana que permeia toda a

superfície. Esta é a poesia que nós

buscamos.”

(NERUDA, 1983 apud STALYBRASS, 2008, p. 31)

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SOBRE A ESCRITA

o início

Porque alguém com formação em Design de Moda busca investigar suas

questões em uma Faculdade de Arquitetura e Urbanismo? Em 2006, visitando a 27ª

Bienal de São Paulo pela segunda vez das quatro em que fui, assisti a um vídeo chamado

“Olive Green”, de uma artista peruana chamada Narda Alvarado. No vídeo, uma fila de

homens vestidos com fardas militares levava um prato nas mãos e caminhava como se

fosse atravessar uma rua pela faixa de pedestres. Quando o primeiro homem da fila

chegava ao outro lado da rua, todos eles paravam em cima da faixa, se viravam de frente

para os motoristas dos carros parados na via, tiravam do prato uma azeitona verde e a

comiam lentamente, roçando o caroço com os dentes até não sobrar nada comestível

da iguaria. Quando o último dos homens fardados colocava o caroço no prato, eles

seguiam seu caminho e terminavam de atravessar a rua. Os motoristas, por sua vez,

assistindo a tal cena que bloqueava sua passagem, buzinavam e gritavam indignados.

Não havia paciência para esperar nem mesmo o tempo de se saborear uma azeitona. A

Bienal, que tinha como tema: “Como viver junto?”, provocava meu primeiro ano

morando na grande capital do estado de São Paulo. Naquela tarde foi que percebi o

quanto vivíamos acelerados e eu, uma estudante de primeiro ano de Design de Moda,

entrei em crise com a cidade e, consequentemente com meu objeto de estudo, a roupa

e seus modos de fazer.

Somente alguns anos depois fui entender o que era o urbanismo em sua

constituição, sua base modernista, sua faceta mais desenvolvida e qual era a relação

dele com aquele vídeo de militares e azeitonas. O tempo do mastigar lento está fora dos

contornos espaciais e temporais propostos pelo urbano planejado nos moldes desse

urbanismo citado acima. A faixa de pedestres é feita para se atravessar, a rua é feita

para que os carros possam seguir um fluxo corrente e tudo deve se encaixar

harmonicamente para que a cidade funcione sem problemas. Mas a questão “Como

viver junto?” nos traz outras perguntas, que passam por lugares mais subjetivos e

profundos em relação à organização social e o cotidiano dos sujeitos na cidade.

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Questões estas que, por vezes, nos dão pistas da existência de lugares e acontecimentos

inalcançáveis por esse pensamento linear e formal. Foram essas questões, levadas a

diante nessa dissertação, que me fizeram chegar a um mestrado em Urbanismo. Minha

crise com a cidade se desdobrou em perguntas e curiosidades que passeiam por uma

questão principal: o que cabe e o que não cabe nos moldes desse urbanismo? Como não

poderia deixar de ser, um dos objetos fundamentais da pesquisa é a roupa, porém ela

não está sozinha, vem acompanhada de suas duas camadas mais próximas, o corpo e o

espaço por onde circula, nesse caso, a cidade. Através da roupa, suas camadas e dos fios

teóricos e experienciais que nos permite puxar é que pensamos o urbanismo e seu

alcance espacial, temporal e cotidiano. Ao contrário dos caminhos lineares ou radiais

pensados por essa disciplina, essa pesquisa segue tortuosa e sem limites determinados.

“canteiro de obras a céu aberto”

“eu acreditava entrar no porto, mas... fui jogado novamente em pleno mar” 1

Buscar um porto se faz desafio no viver. Quando se encontra um, a felicidade da

estabilidade, contrária ao marear das ondas, parece não durar muito tempo. Em um

diálogo virtual entre Piracicaba/SP e Barcelona/ES se encontram, no tatear da conversa,

algumas interpretações empíricas da frase com a qual decidimos introduzir esse texto:

‐ parece que ando assim o tempo todo...no fazer campo, na vida, em tudo...(risos) ‐ mas o que você acha disso? tá sendo bom ser jogada em pleno mar o tempo todo? ‐ por enquanto tô achando bom sim. meio cansativo né? mas bom...eu interpretei como se fosse assim, a cada porto, um monte de outras coisas a serem descobertas....um mar de coisas... ‐ humm...essa é uma boa interpretação...e dá pra pensar que ser jogado no mar é também questionar tudo que a gente vê como base pra gente, né? ‐ é, essa também é uma boa interpretação...duvidar do porto..

1 LEIBNIZ, Gottfried. Novo sistema da natureza, par.12 In DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.30.

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‐ mas acho que são interpretações complementares. e também pensar na transitoriedade das coisas, e como a gente não pode controlar nada. ‐ sim, complementares...exatamente...nada, nossa! nada mesmo!2

Duvidar do porto, ter ciência do descontrole das coisas, ver em cada atraque uma

nova perspectiva para olhar o mar. Assim se tentou levar esta pesquisa o tempo todo. A

pesquisadora, mareada, tateando com os pés a linha onde se equilibra, sem medo da

queda (cair em pleno mar pode ser delicioso ou extremamente perigoso), pois,

enquanto pesquisadora é sempre preciso assumir o risco. O chão estável do porto, que

poucas vezes esteve sob os pés desta pesquisa, teve o tempo todo o papel de lançador

do olhar para o horizonte3. Pelo trajeto da investigação, o resultado não poderia ser

outro: esse oscilar entre solo firme e mar aberto. A escrita não poderia se fazer

diferente: cambiável, mutante, mareada, em vai‐e‐vem.

Por isso, é necessário introduzir esse texto dando destaque principalmente à

falta de eixo ou cronologia nesta escrita. Os fatos dos quais aqui falamos não

necessariamente aconteceram na ordem tal em que foram organizados, os mergulhos

se confundem e as linhas dão nós. Nem mesmo os conceitos foram encontrados na

ordem que estão postos, pois a escrita quase sempre não tem fim, está em processo,

em movimento, é este porto que te lança o tempo todo de volta ao mar. É, muitas vezes,

um texto fragmentado, que desacredita da totalidade das coisas e prefere fazer a

tentativa de trazer as partes diversas de um todo heterogêneo que é a própria pesquisa.

Portanto, encarando esse trajeto fragmentado, enredado por desvios e rotas de fuga,

conclui‐se que, se houvesse mais tempo (ou menos), a escrita seria outra, a dissertação

diferente. É então, um processo vivo e sem fim, que não acaba mesmo depois da ilusória

finalização da escrita. Deste modo, esta, configurada aqui, neste momento, é um

resultado de inúmeros afetos que permitiram vir à tona diversas questões sobre a

2 Este diálogo foi feito em novembro de 2013 via Skype entre duas amigas pesquisadoras, as duas

se interessam pelos restos urbanos e veem na pesquisa um lugar tão des afiante quanto a vida. 3 Aqui preferimos conceber o horizonte pelas palavras de Deleuze e Guattari em O que é a

filosofia?: “Não o horizonte relativo que funciona como um limite, muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo observador, e que torna o acontecimento como conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria” (1992, p.46).

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vivência numa cidade, sobre o sistema da moda, o cotidiano, o capitalismo, a hegemonia

e a micropolítica. Essas questões postas culminaram no encontro de um prumo, mesmo

que nunca certeiro, mas um prumo para onde mirar: o resto urbano.

Apesar de usarmos como recurso de escrita a criação de personagens que nos

ajudam a dissertar, este texto não é uma ficção. Porém, seguindo os pensamentos de

Foucault, para criar esse discurso na tentativa de desvendar uma suposta cidade

resto, a qual, imaginamos, pode possibilitar a descoberta de outros modos4 de existir

no espaço urbano, decidimos “ficcionar”. Essa é, então, uma discussão acadêmica,

baseada em acontecimentos e descobertas reais, abordados de forma a configurar um

discurso, uma cartografia e levantar questões possíveis sobre as cidades. Segundo

Araújo,

“Em 1977, sendo entrevistado por Lucette Finas para La Quinzaine Littéraire, Foucault é inquirido sobre o aspecto ficcional frequentemente associado a seus textos. Sua resposta: ‘Quanto ao problema da ficção, ele é para mim um problema muito importante; eu me dou conta claramente que nunca escrevi nada senão ficções. Eu não quero dizer por isso que estas estejam fora da verdade. Me parece que é possível aí fazer trabalhar a ficção na verdade, induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção, e de fazê‐lo de tal forma que o discurso de verdade suscite, fabrique qualquer coisa que não existe ainda, e assim ‘ficcione’’”. (2011, p.58)

Foi nesse sentido então, que “ficcionar”, virou nossa estratégia de escrita. Criar

um discurso “na fronteira entre o dado e o criado” (PINTO, 2012, p.198), utilizando‐se

de recursos como a memória, a fotografia e o registro escrito, entendendo que ciência

e ficção, como pensadas por Certeau, não existem em suas “formas ‘puras’, mas tão

somente nessa estranha mistura” (PINTO, 2012, p.198), nessa existência não delimitada

e contaminada a todo o tempo.

O “ficcionar” deve ser entendido aqui como atitude literária que acontece com

o intuito de favorecer a experiência de leitura, é um modo de “opor‐se a totalizar”

(ARAÚJO, 2011, p. 61), “afinal, a ficção enquanto geradora de efeitos de verdade é uma

4 Outros modos estes que possivelmente burlariam, desviariam e se diferenciariam do modo

padronizado e ideal imposto pelo pensamento hegemônico, higienizado e l inear desencadeado a partir do capitalismo e do pensamento moderno.

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intervenção na ‘política do pensamento’” (ARAÚJO, 2011, p. 61). “Ficcionar” é então

“produzir efeitos de verdade”, é a tentativa de provocar no leitor uma “experiência de

liberdade, de autogoverno” (ARAÚJO, 2011, p. 70). É um ato processual, experimental e

indefinido. Com o qual se pretende dar ao leitor a possibilidade de outras formas de

leitura e entendimento da verdade.

É através de conceitos como o do homem em farrapos, de Flávio de

Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco peles, de Hundertwasser,

da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros autores, do paradigma

indiciário, de Carlos Ginzburg e de outros conceitos desenvolvidos pelo próprio

trabalho como o da cidade resto, do espaço da roupa e do espaço­

roupa, que esta pesquisa e esse texto se pretendem fazer, enquanto uma catação

de rastros, sobras, trapos e restos de roupa, de cidade e de gente na intenção de trazer

a tona um alinhavo entre Salvador e São Paulo. Alinhavar se diz do ato de se costurar

com pontos largos e à mão o que depois deve ser costurado com pontos mais estreitos.

É fazer uma costura “temporária” que depois deve ser reforçada por outra. Alinhavar a

escrita ou o mapa é ainda rascunhar o pensamento e a experiência. É juntar

acontecimentos a pontos largos, pontos tais que após serem feitos, observados e

aprovados podem ser reforçados por uma costura definitiva de pensamento, uma

reflexão mais madura, um traçado mais certeiro.

Esse processo de construção de dissertação é uma tentativa incessante de que

“os procedimentos de pesquisar/produzir/escrever não se separem do próprio objeto e

configurem uma viva tessitura, uma pesquisa como ‘canteiro de obras a céu aberto’” 5.

No entanto, a forma como se apresenta o texto, foi pensada de maneira que

facilite o entendimento de nosso assunto, metodologia e objeto. Por isso, iniciamos a

dissertação a partir de uma catação de conceitos teóricos que nos ajudarão a

5 Trecho retirado do parecer de Cristiane Mesquita para nossa primeira banca de qualificação. A

frase “canteiro de obras a céu aberto” teria sido dita por Rosane Preciosa em referência a alguém que Cristiane não se lembrava. Ficamos com a “imagem” da frase de Preciosa, como pretendia Cristiane em seu parecer. Para conhecer mais de Mesquita, ver: MESQUITA, Cristiane [tese]. Políticas do vestir: recortes em viés. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008. Para conhecer mais de Preciosa, ver: PRECIOSA, Rosane. Produção Estética – notas sobre roupas, sujeitos e modos de vida. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2005.

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entender o segundo capítulo, que consiste na escrita de nossa prática pela cidade, o

fazer campo. Porém, por serem indomados os fios dessa pesquisa, algumas vezes o

primeiro capítulo é atravessado por questões a serem desenvolvidas mais a diante, no

capítulo seguinte e no segundo, questões tratadas no primeiro atravessam o texto como

se quisessem puxar à memória o que já foi trazido ao leitor. Mais ao final, como se o

primeiro capítulo fosse um puxar de fios emaranhados e o segundo um processo de

alinhavar retalhos, chegamos ao terceiro com o intuito de costurar mais firmemente os

alinhavos com os fios conceituais desemaranhados, conscientes de que, por serem os

conceitos e a vivência em campo lugares sem limite definido, essa costura se faz

tortuosa, um tortuoso estabelecer de conexões entre conceitos e prática, numa possível

cartografia dessa cidade resto.

São apresentados no decorrer do texto, principalmente a partir do segundo

capítulo, alguns personagens conceituais que nos ajudam a puxar os fios emaranhados

dessa trama, num entendimento quase rizomático6 dos bairros em questão. Esses

personagens conceituais dialogam com os fios de conceito puxados no primeiro capítulo

e nos ajudam a encontrar e desvendar as pistas que nos levam em direção à descoberta

de uma possível cidade resto.

Entre tantos alinhavos que vamos tentando fazer destes retalhos e fios

recolhidos pela cidade, há ainda desalinhavos que não poderiam deixar de aparecer, são

questões, acontecimentos ou curiosidades que podem levar o leitor a outros caminhos,

dentro ou fora desta dissertação. Os desalinhavos aparecem algumas vezes no decorrer

do texto, como apareceram durante a pesquisa de campo e incitaram a vontade do

pesquisador de mudar a direção: são entrelinhas, dados marginais. Aqui, os

desalinhavos se tornam pequenas tentações para o leitor espiar por esta fresta, este

buraco na costura que permite ver algo além da parte exterior da roupa, se configuram

6 O pensamento rizomático proposto por Gil les Deleuze e Félix Guattari em seu livro Mil Platôs,

vol.1, diz de um sistema de pensamento não hierárquico, não‐ significante e heterogêneo, onde não há uma força coordenadora dos movimentos e cujos resultados não se pode prever ou organizar. O rizoma, “(...) é feito de direções móveis, sem início nem fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar” (PELBART, 2003, p. 216), portanto, “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê‐lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.22). É um pensamento sem eixo.

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como pistas que o leitor escolhe ler ou não, seguir ou não. Estas pistas são retalhos

catados durante a pesquisa, que não tivemos tempo de continuar costurando a esse

patchwork tentacular (mas que fazem sentido no processo desta dissertação), fica

apenas a vontade de desenvolver, de se enveredar por cada novo emaranhado, cada

novo trapo, que possivelmente nos levaria a outros, nessa rede infinita de fios e tramas

onde personagens se conectam e enlaçam através dos restos urbanos.

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GUIA DE LEITURA

Para ler esta costura/dissertação/cartografia é preciso entender algumas regras e os

termos englobados por elas. Segue abaixo um diagrama que facilitará a leitura do texto,

tire‐a da página e boa leitura!

Conceitos: homem em farrapos, trapeiro, cinco peles, antropofagia, paradigma indiciário, espaço da roupa,

espaço­roupa e cidade resto.

Palavras­chave: catação, o fazer campo, sobrevivência, memória, corpografia, personagem conceitual/figura

estética, desculpa, brecha.

Desalinhavos#

Costuras e descosturas abertas ao leitor.

Notas do fazer campo.

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capítulo I

PUXANDO FIOS

EMARANHADOS:

CATAÇÃO DE CONCEITOS

Qual é a relação do corpo com o espaço urbano? E quais são as interferências e

influências das roupas nessa relação? Esta pesquisa começou com essas questões

principais, uma simples inquietação nossa. Logo do fazer dessas questões, a imagem

que surgiu foi a do morador de rua, esse corpo que vagueia pelas cidades e geralmente

constrói seu espaço apenas com o corpo e os tecidos que o recobrem, as amarrações

que juntam seus objetos e seus cobertores à sua pele. Mas foi a mudança de São Paulo

para Salvador para frequentar as aulas na UFBA que fez nossos olhos perceberem outras

coisas. A necessidade de criar espaços através de poucos objetos e tecidos nessa

vivência na rua se fazia muito mais clara em São Paulo, onde possivelmente o clima e as

condições de sobrevivência na cidade favoreciam tais práticas. Percebeu‐se que o

morador de rua em São Paulo se fixava, o de Salvador caminhava e, quase sempre,

levava pouca roupa e nenhum objeto. A construção do espaço era outra e as roupas e

objetos quase não estavam implicados nessa construção. Nosso olhar estava atento

para encontrar um corpo que pudesse dizer desse espaço construído na cidade, mas eis

que durante algumas caminhadas pelo centro da capital baiana, fomos atravessados por

outras questões e essas percepções nos levaram a fazer um desvio de rota. O encontro

com a Baixa dos Sapateiros, em Salvador, e suas lojas de roupas usadas nos levou a

acionar antigas memórias e descobrir ligações deste bairro com o Parque Novo

Mundo, um bairro da periferia de São Paulo, onde anos atrás estivemos diversas vezes

com o intuito de selecionar e comprar roupas usadas para serem utilizadas em figurinos

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de teatro e cinema. Os encontros desse trajeto investigativo nos deram a possibilidade

de pensar estes dois bairros de cidades distintas através de uma matéria que resulta da

própria cidade: o resto. É então seguindo pistas que perpassam por esse estado de

matéria que a pesquisa vai se fazendo. O resto se torna objeto principal da investigação,

fio condutor do alinhavo.

a catação

Para encontrar o caminho da pesquisa foi preciso caminhar. Queremos dizer com

isso, que foi no decorrer da pesquisa que a metodologia (ou a catação de métodos)

usada em campo (aqui o campo inclui também a pesquisa teórica) se fez entender. Sem

estabelecer regras primárias, logo a relação entre pesquisador e cidade impulsionou

uma maneira particular de estar no espaço urbano. Tal maneira acabou sendo levada

também para nossas buscas conceituais e teóricas.

Esse conjunto de métodos descobertos e catados, se apresenta aqui em um

modo de escrita alegórico. Para Walter Benjamin (1984), o alegórico se aproxima do

simbólico, mas é diferente dele por acompanhar o fluxo do tempo, estar em constante

progressão e revelar a todo momento novas possibilidades de significação. Em seu texto

“Origem do drama barroco alemão”, Benjamin destaca a alegoria enquanto uma

expressão de múltiplos sentidos e a relaciona com o Barroco. Ele define tal período

artístico e a expressão alegórica como efêmeros, inacabados e fragmentários. A arte

barroca lhe parece sempre aberta, tumultuada diversa e confusa, uma arte que deixa

aberta a possibilidade de continuação, não tem fim, assim como a alegoria. Nesse

sentido, assumir um texto alegórico é deixar o caminho aberto, certo de que “cada

pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra” (BENJAMIN, 1984,

p.196). A alegoria, segundo Benjamin, tem uma “tendência destrutiva”, no sentido de

que desconstrói qualquer “falsa totalidade” (1984, p.246), apresentando os

acontecimentos em fragmentos. Portanto, a própria pesquisa se mostra como uma

expressão fragmentada, aberta, cheia de nuances e camadas – máscaras cambiáveis.

Tomando a alegoria como processo de constituição de sentido, preconizamos uma

essência fragmentária e selecionamos frações de acontecimentos que talvez, fora desse

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texto, não fizessem sentido. As organizamos de forma a constituir um todo

fragmentado, não totalitário, porém significante.

Para além da escrita, encontramos em nosso caminho diversas posturas

metodológicas que nos tornaram em certos momentos, devoradores da história7.

Engolimos pistas e fragmentos e os devolvemos em uma possível cartografia de afetos,

memórias e restos da efemeridade urbana. Descobrindo modos de relacionar pistas e

acontecimentos, tentamos fazer o encontro e a costura entre os retalhos conceituais e

o campo da pesquisa, agenciando‐os nessa descoberta de uma suposta cidade

resto.

Assim vai se fazendo nossa pesquisa, percebendo em tudo a possibilidade de

costura, não deixamos passar os trapos encontrados pelas ruas: uma catação de

rastros, sobras, farrapos e restos de roupa, de cidade e de gente na intenção de fazer

um alinhavo entre trechos de cidades e seus usos através de nossas descobertas.

Caminhamos entre bairros de Salvador e São Paulo, em busca de pistas para continuar

a perseguir os restos, possíveis reveladores de um existir na cidade que transgrida o

padrão hegemônico8 de pensamento. Em nosso trajeto, descobrimos as perguntas que

levarão a pesquisa adiante: onde vão parar as coisas que já não servem mais à cidade

formal, esta que é regida pelo pensar hegemônico? O que acontece com elas? Como

sobrevivem? Seguindo um percurso delimitado pelo processo da própria pesquisa, é na

perseguição dos restos que encontramos os personagens que poderão colaborar para o

desvendar dessas questões no âmbito urbano.

Percebemos então, que nos serão valiosas as características da “noivinha‐

antropófaga”, uma das noivinhas cartografadas por Suely Rolnik (2011), que “se guia

pelas causas estimulantes (afetos de um corpo que estimulam os afetos do outro corpo)

7 Questionamentos de historiadores como Aby Warburg e mais posteriormente Carlo Ginzburg,

nos fazem pensar sobre a história e sua maneira l inear e cronológica de ser contada. Os esforços destes dois estudiosos e de alguns outros para tentar encontrar outra maneira de narrar a história que passe por lugares mais subjetivos dos acontecimentos, como a memória, nos induzem a questiona r tudo o que já parece estabelecido em nossa sociedade. Quando devorada a história pode ser experienciada, virando outra coisa, fragmentando‐se.

8 No decorrer do texto definiremos melhor o “hegemônico” de que falamos.

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e não pelas causas finais ou determinantes” (ROLNIK, 2011, p.193), “embarca no

movimento (de desterritorialização e reterritorialização) e, de dentro dele, deixa que

seus afetos se atualizem na invenção de um território” (ROLNIK, 2011, p. 195). Através

dela chegamos à antropofagia que é, então, o artifício que utilizamos enquanto

postura metodológica.

Essa postura é inspirada no Movimento Antropofágico que ocorreu nas artes

durante as décadas de 1920 e 1930 e foi consolidado pelo Manifesto antropófago,

escrito por Oswald de Andrade, em 1928. Os artistas envolvidos no movimento tinham

por objetivo reagir contra a dominação artística estrangeira, mas sem negá‐la ou copiá‐

la. Eles “preconizavam devorar suas ideias (...), comer a arte europeia, ruminá‐la com

um molho nativo e popular e, finalmente vomitar a arte antropofágica, tipicamente

brasileira, com toda sua ironia e crítica subversiva” (JACQUES, 2012, p.98). Neste

sentido, usar a antropofagia enquanto postura metódica poderia ser devorar o que

o “outro” encontrado no fazer campo nos dá, ruminar esse material com nosso

repertório teórico e vomitar de outra forma.

Esse outro de que se fala é a alteridade que está relacionada às roupas e aos

restos urbanos. Sujeitos que, encontrados durante a pesquisa, se tornaram importantes

em relação ao contexto dos restos e dessa suposta “cidade resto”, agentes de

ressignificação desses objetos, espaços, ideias e corpos que sobram. Nesse sentido, não

é toda e qualquer alteridade, ou todo “outro” que é devorado por nós, mas sim os que,

como os índios antropófagos faziam, podem permitir a absorção de alguma qualidade,

convivência ou informação desejada.

Nosso então assumido estado antropofágico, faz pensar em que sentido essa

condição pode influenciar na apreensão desta cidade supostamente regida pelos restos.

Em sua tese denominada Exercícios de Leitoria, Jorge Menna Barreto9 (2012) faz uma

leitura interessante do livro de Hélio Oiticica, Aspiro ao Grande Labirinto, considerando

seu texto uma construção gerada a partir de uma prática antropofágica. Para Barreto,

no texto de Oiticica é perceptível a “deglutição, o engolir, os movimentos peristálticos,

9 Jorge Menna Barreto é Formado em Artes Plásticas pela UFRGS, mestre e doutor em Poéticas

Visuais pela USP.

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os ácidos críticos da saliva e do estômago que transformam a matéria e a preparam para

a absorção” (2012, p.114). Ele percebe no artista esse devorar do outro e faz um paralelo

entre deglutir e ver, duas maneiras de capturar a alteridade que se diferem

principalmente pela temporalidade do processo de captura.

“A apreensão do outro pelo sistema digestório é lenta. Envolve uma extensa jornada que atravessa o corpo e aciona intensos processos químicos e mecânicos de decomposição. Cada pedaço de alteridade tem que ser mastigado e vigorosamente modificado, quebrado em moléculas. (...) É muito diferente dos processos de incorporação pela visão, nos quais há uma imediaticidade enganosa (...). O olho acelera o processo de captura. Sua função não é de absorver a alteridade, mas de detectá‐la e reconhecê‐la. A alteridade só pode ser absorvida lentamente, mastigadamente, engolidamente, digestivamente, antropofagicamente. A radicalidade maior da antropofagia está na mudança, no desvio de modo e temporalidade na percepção do outro. Deixa‐se de usar o mecanismo ótico para usar o digestivo, que também envolve órgãos de leitura, mas não da imagem, e sim do valor nutritivo da matéria‐outro, reconhecendo o que deve ser ou não absorvido” (BARRETO, 2012, p.114, grifo nosso).

Foi inspirada na prática dos índios tupis que a antropofagia se consolidou

nas ideias dos artistas e nas palavras de Oswald de Andrade, fazendo migrar para a

cultura a relação com o outro, identificada no ritual do canibalismo. Os índios tupis

devoravam seus inimigos, não todos, apenas aqueles que, selecionados por suas

virtudes, pudessem favorecer o próprio devorador. É assim que, no chamado

Movimento Antropofágico, essa “fórmula de produção cultural” ganha visibilidade

(ROLNIK, 1998). Pode parecer que, justamente por enaltecer o “não europeu”, tal

movimento apenas persistiu na posição subalterna da cultura produzida nacionalmente,

mas não se pode deixar de lado que

“a força da Antropofagia é justamente a afirmação irreverente da mistura que não respeita qualquer espécie de hierarquia cultural a priori, já que para esse modo de produção de cultura todos os repertórios são potencialmente equivalentes enquanto fornecedores de recursos para produzir sentido” (ROLNIK, 1998, p.133, grifo nosso).

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Portanto, esta pesquisa só pode existir em relação ao outro, aos sujeitos que

encontramos em nosso trajeto, bem como o outro só existe aqui em relação a nós10.

Somos devorados o tempo todo por cada um dos sujeitos encontrados no fazer

campo que aqui são retirados da sua condição de sujeito para serem empregados

enquanto conceito que nos ajuda a pensar o que chamaremos de espaço­roupa. A

temporalidade, que sempre questionamos em nosso trajeto à cata de conceitos, é

subvertida também na maneira encontrada para se estar na cidade. Assim, o leitor verá

adiante em nossa prática de campo, a vontade de simplesmente estar, pois acreditamos

(metodologicamente) que é o tempo, e só ele, que pode fazer emergir do campo nossas

desejadas pistas, que nos permitirão seguir em frente.

É o resto na (ou da) cidade que se faz fio condutor das reflexões aqui

estabelecidas e é na perseguição deste estado de matéria que encontramos nossas

pistas. A intenção desobstinada é tratar a cidade e suas fronteiras por meio de um fazer

campo que vai acontecendo rizomaticamente, a princípio sem regras. Portanto, a

percepção da metodologia só acontece no meio do processo: basicamente encontra‐se

um composto, uma catação de métodos que poderiam ser úteis, cada um a sua

maneira, para o entendimento desta trama dos restos. O que devoramos em nosso

caminho são pistas encontradas na cidade.

É partindo do encontro com o paradigma indiciário, método proposto

pelo historiador Carlos Ginzburg11, que se decide efetivamente perseguir os detalhes, os

dados marginais. Aí se estabelece, através das descobertas da própria pesquisa, uma

primeira regra: nossos olhos e ouvidos devem estar atentos às pequenas coisas, dicas,

fatos e encontros pelo caminho. A primeira regra diz de uma maneira de estar em

10 A escolha pela escrita na 1ª pessoa do plural (nós) se deu pela percepção de que a escrita,

justamente por ser alegórica, se faz como se a pesquisadora pudesse vestir e desvestir diferentes máscaras no decorrer do texto e da pesquisa. Assim, a pesquisadora é modista, cartógrafa, catadora de pistas e escritora, além de ser afetada a todo o tempo pelo outro encontrado em campo, esse que também fala através dela.

11 Apesar de citarmos com maior importância o trabalho intelectual de Carlo Ginzburg, estamos cientes da influência que ele teve do historiador de arte Aby Wasburg. Ginzburg teria estudado no Warburg Institute de Londres e aprendido através dos estudos de Aby a pensar a História de uma forma diferente, não linear e possibil itadora de diálogos interdisciplinares. Para aprofundamento nas pesquisas de Warburg ver: DIDI‐HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2013.

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campo. Essas pequenas fontes, então, devem ser tomadas enquanto pistas, indícios,

sinais e vestígios sobre os quais muitas vezes devemos fazer uso de nossa intuição e

sensibilidade para encontrar o caminho da pesquisa (GINZBURG, 1990).

Método investigativo de produção de conhecimento, o paradigma

indiciário é colocado a serviço da história por Ginzburg, sendo usado para

descobrir e escrever a história do lugar, partindo do pressuposto de que as pistas são

necessárias para levantar dados que existiam no passado e não existem mais. Nos textos

em que fala dessa metodologia, Ginzburg utiliza fatos históricos para “justificar” sua

eficácia, trazendo para a discussão o Paradigma Venatório e o Divinatório. O primeiro,

relativo aos caçadores do Neolítico, tinha como instrumento de investigação pistas

como esterco, pelos, pegadas e plumas, o segundo trata dos adivinhos da Mesopotâmia

que observavam entranhas de animais, gotas de óleo na água, astros e movimentos

involuntários do corpo para decifrar o que viria a diante. Ambos os métodos eram

usados para descobrir pistas de eventos dos quais o observador não pôde participar ou

experimentar, seja porque ocorreu no passado ou porque ainda virá a acontecer no

futuro. Nos dois casos, o exercício de descoberta das pistas envolvia operações

semelhantes, como análises, comparações e classificações (GINZBURG, 1990).

Ginzburg questiona o papel e os modos de fazer da história, se pergunta sobre o

que é a verdade, principalmente em relação às interpretações e usos de documentos e

busca demonstrar que as provas visíveis e palpáveis não são as únicas possíveis de serem

averiguadas pela narrativa histórica. Ele afirma que os historiadores deveriam se

lembrar que todo ponto de vista pode ser seletivo e parcial (RODRIGUES, 2005). Para ele

“o historiador é, por definição, um investigador para quem as experiências, no sentido rigoroso do termo, estão vedadas. Reproduzir uma revolução é impossível, não só na prática, como em princípio, para uma disciplina que estuda fenômenos temporalmente irreversíveis enquanto tais” (GINZBURG, 1991, p.180).

Por isso, ele insiste numa maneira de fazer história que leve em consideração

pequenas pistas e fatos que poderiam revelar muita coisa. Segundo ele, essas pequenos

vestígios “são frutos do acaso e não da curiosidade deliberada. Surgem em algum

momento da pesquisa onde a sensação é de ter encontrado uma pista relevante e ao

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mesmo tempo a consciência aguda da ignorância sobre o que é ou significa” (Ginzburg,

2004, p.11). Nesse sentido, se há o recurso da memória, se há esse “estalo”, esse

lampejo do encontro entre o passado e o presente, esse “fruto do acaso”, será mesmo

que a experiência está vedada ao historiador?

Desalinhavo#1

“[...] num dia de inverno, chegando eu em casa,

minha mãe, vendo­me com frio, propôs que tomasse,

contra meus hábitos, um pouco de chá. [...] E

logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia

tristonho e a perspectiva de um dia seguinte

igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de

chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine.

[...] Mas no mesmo instante em que esse gole,

misturado com os farelos do biscoito, tocou meu

paladar, estremeci, atento ao que se passava de

extraordinário em mim. [...] E de súbito a

lembrança me apareceu [...]”.

(PROUST, 2002, p.50)

Para seguir essa pista leia PROUST, Marcel. No

caminho de Swamm ; À sombra das moças em flor.

Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. Ou vá até a página

55 dessa dissertação.

A memória, muitas vezes involuntária, se apresenta como uma pista para a

conexão de situações diversas e é caracterizada pela clara ligação entre linguagem,

história e tempo. Portanto, essas fontes involuntárias que atravessam a pesquisa

devem, segundo ele, ser questionadas com intuição e sensibilidade, já que a imagem

gerada pela memória é de extrema importância para indicar uma outra possibilidade de

contar a história, de uma maneira que nem sempre se valha do tempo linear12. Sobre a

narrativa histórica, o autor ainda afirma que teria sido feita pela primeira vez por um

12 Essas informações sobre a memória foram obtidas através de uma entrevista com Jeanne

Marie Gagnebin. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Dr7jJoqxFfU

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caçador, sendo este “o único capaz de ler, nas pistas mudas uma série coerente de

eventos” (Ginzburg, 1990, p.152) e, portanto, o primeiro capaz de transmitir tal leitura

para seu grupo. É este passado da caça que teria contribuído para o desenvolvimento

de inúmeras capacidades humanas, como o raciocínio lógico, a abstração, a percepção

e a imaginação. Ginzburg afirma que

“por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas. Gerações e gerações de caçadores enriqueceram e transmitiram esse patrimônio cognoscitivo”. (GINZBURG, 1990, p.151)

Por outro lado, encontramos em Rolnik a elucubração do que seria uma

subjetividade antropofágica (1998), onde a autora afirma que a antropofagia está

intrínseca na existência social dos indivíduos brasileiros. Seria uma característica

enraizada em nossa sociedade. Então, ser brasileiro é ter um “quê” antropofágico e ser

humano é ter um “quê” de caçador. Nós, enquanto caçadores de pistas e trapos que

falem sobre o tempo presente, não temos a pretensão de contar a História oficial de

uma localidade, por isso as pistas são devoradas e deglutidas com conceitos e

informações alheias ao fazer campo. É através dos indícios e das pistas capturadas

pelo tempo lento de deglutição antropofágico que inventamos nossas hipóteses e

buscamos desvendá‐las. Antropofagia e paradigma indiciário interferem

metodologicamente o tempo todo, ora a pista é encontrada e devorada, ora a deglutição

acontece primeiro para depois permitir que novos vestígios surjam em campo.

A segunda regra é então estabelecida: não fazer perguntas. Se a catação de

metodologias até então fala da temporalidade, da espera digestiva e do encontro de

pistas que não se buscam, perguntar estaria fora do que se acredita para este caminho

investigativo. É claro que perguntas diretas poderiam esclarecer dúvidas, mas nos

levariam para um caminho quase pré‐estabelecido, enquanto que as informações

obtidas metodologicamente através do silêncio, em que escutamos a resposta para

depois formular a pergunta, nos levam na direção de novas descobertas

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surpreendentes, mesmo que isso custe o “deixar de lado” de algumas informações. A

pesquisa se faz como uma escolha de caminhos, a escolha de que pistas seguir.

puxando fios:

Martin Margiela nos apresenta à moda

Levados pelas roupas, encontramos nossos pares: estilistas, costureiras,

separadores de roupa. Encontramos na maneira de olhar do outro, desvios

surpreendentes, a capacidade de ver no que resta alguma forma de transformação.

Uma pista dada a nós, nos leva a encontrar os restos reorganizados de Martin

Margiela e a puxar o que decidimos serem os primeiros fios deste emaranhado13 para,

enfim, refletir sobre a cidade. Mas como um designer pode colaborar para essas

reflexões sobre o urbano? O designer belga que questiona o sistema e a configuração

da moda, mesmo inserido nele, faz de sua marca de roupas, a Maison Martin Margiela,

um espaço de problematização e transgressão do sistema da moda. Desde sua fundação,

em 1988, Margiela não se deixa fotografar, não aparece no final dos desfiles como é de

praxe no meio da moda, em todo material de divulgação usa o pronome “nós”,

implicando toda sua equipe no processo de desenvolvimento das roupas e usa

etiquetas, caixas e sacolas brancas, sem logotipo. Ele “faz uma ode ao anonimato”

(RABELLO, 2011, p.82).

Sempre provocativo, Margiela questiona a velocidade da produção das roupas

através do inacabamento e da precariedade das peças. As costuras de algumas roupas,

bem como suas marcações de corte, fios, sobras de tecido e pespontos, que segundo a

tradição na confecção, ficam escondidos do lado avesso da peça, em muitas de suas

roupas estão do lado de fora (RABELLO, 2011). Tal atitude faz pensar a temporalidade

da produção de moda, em que muitas indústrias sacrificam seus funcionários e

13 Como dito anteriormente, os conceitos e fatos não seguem aqui uma ordem cronológica. Nossa

escolha foi montar o patchwork de trapos encontrados da maneira que nos pareceu mais compreensível para o leitor.

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maquinário para produzir uma quantidade exorbitante de peças em tempo recorde.

Como produzir roupas bem acabadas, com qualidade e desenvolvidas com delicadeza

se o sistema da moda impõe essa velocidade de produção extravagante? A velocidade

e volume de peças lançadas no mercado se somam a efemeridade do uso das roupas e,

em Margiela, estes três fatores são arguidos principalmente através de uma linha de

produtos de sua marca, a linha artesanal chamada oficialmente de linha ‘0’. Nesta linha,

o estilista e sua equipe usam roupas, acessórios e diversos objetos de “segunda mão”,

desenvolvidos a princípio para funções diversas, para serem transformados

manualmente em peças de vestir. Uma das características principais dessa proposta é

que cada peça seja feita completamente à mão.

Fig. 1, 2 e 3: peças da l inha ‘0’, das coleções Primavera ‐Verão 2007, Outono‐Inverno 2005 e Primavera‐Verão 2008, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela .tumblr.com/col lections#/en_US/10_archives/01_coll_‐artisanal ‐/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013.

Por conta disso, o tempo se torna um elemento importante para a valorização

das roupas e, nas etiquetas desta linha, a Maison Martin Margiela coloca as horas de

trabalho para a concepção da peça como informação tão importante quanto o tamanho

ou a composição do produto (RABELLO, 2011). Ao usar materiais simples, de baixo valor

de mercado, o estilista desconstrói alguns padrões da indústria da moda, transformando

matérias‐primas ordinárias na confecção de produtos luxuosos. Sua crítica vai em

direção “ao princípio de descarte e a efemeridade dos itens produzidos em massa pela

cadeia de moda e à submissão do público às tendências estilísticas do vestuário”

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(RABELLO, 2011, p.122). Seria então, segundo Margiela (2009, p.360.1‐360.b In

RABELLO, 2011, p.122), esta submissão dos consumidores que distorceria a percepção

de valores das roupas e acessórios no sistema da moda. Uma hegemonia de valores,

construída subjetivamente pela própria cadeia produtiva da moda e sua necessidade de

produção em larga escala.

Fig. 4, 5 e 6: peças da l inha ‘0’, das coleções Outono‐Inverno 2008, Primavera ‐Verão 2007, e Outono‐Inverno 2006, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela .tumblr.com/col lections#/en_US/10_archives/01_coll_‐artisanal ‐/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013.

É refletindo sobre o processo criativo de Margiela que nos sentimos provocados

a pensar a velocidade produtiva e a efemeridade do sistema da moda, fatores que

começam a parecer bastante importantes no processo de descarte de qualquer objeto

no espaço urbano. Temporalidade, descarte, autoria, desvio, transformação, modos de

usar e modos de produzir. O encontro com a roupa de Margiela traz inúmeras questões

que aparecerão em diversos contextos durante nossa trajetória, tais questões

colaboram para que o resto comece a se configurar diante de nossos olhos enquanto

estado de matéria que tem a capacidade de subverter e burlar o sistema através da

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transformação consentida por mãos como as dos profissionais da Maison Martin

Margiela.

Desalinhavo#2

O filme “Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise”

(2002), que em português é traduzido para “Balzac

e a Costureirinha Chinesa”, de Dai Sijie, se passa

na China dos anos 1960, sob a Revolução Cultural

de Mao Tse­Tung, quando as universidades foram

fechadas e muitos livros proibidos. Dois jovens

mandados para o campo a fim de serem reeducados

pelos camponeses encontram uma costureirinha e

uma maleta cheia de livros proibidos e juntos

descobrem uma realidade desconhecida além das

fronteiras da China. Através de escritores como

Balzac, Dostoievsky, Dumas e outros autores

estrangeiros, a costureirinha conhece um mundo

para além de sua aldeia apresentado pelos dois

jovens. As influências de suas leituras acabam

sendo vistas claramente nas roupas que ela e seu

avô, o alfaiate, costuram para as moças da aldeia.

No sentido contrário, os dois jovens que tinham a

intenção de abrir os horizontes para os moradores

do campo, acabam por conhecer e entender outros

valores, diferentes dos que trouxeram da cidade.

Fig. 7: imagem retirada de frame do filme Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise, de Dai Sijie. Para seguir esta pista vá para a página 63 desta

dissertação.

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quando moda e cidade se encontram

Esta condição de matéria (o resto) é resultado de uma temporalidade cada vez

mais efêmera, do desejo pelo novo, pela renovação, o consumo e o desprendimento

material (LIPOVETSKY, 2009). Foi a partir da Revolução Industrial que o acelerar da

produção fez mudar a relação das pessoas com os objetos e espaços; a facilidade, os

preços, as novidades, tudo passou a favorecer o crescimento do consumo de roupas, de

objetos decorativos, de utensílios para casa, de carros, espaços, tecnologias, serviços e

ideias. A facilidade crescente de comunicação e transporte fez promover ainda mais essa

temporalidade apressada e “a sedução e o efêmero tornaram‐se, em menos de meio

século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna” (LIPOVETSKY, 2009, p.13).

Esse sistema produtivo insano e polarizado em poucos pontos do globo, ganha potência

quando se trata especialmente de um objeto: a roupa14. Afinal, “o que poderia ser mais

efêmero e mutante que a moda?” (JACQUES, 2012, p.132). Na moda, como por nós

descoberto anteriormente através da Maison Martin Margiela, essa lógica é bastante

importante e aparente. É na cidade e sobre os corpos que as vestimentas têm seu ponto

auge, o qual acaba bastante rápido. As roupas, espaços vestíveis, cambiáveis e móveis,

que podem ser intervalo entre corpo e ambiente estão talvez entre os objetos mais

efêmeros15 desta cidade contemporânea que “ordena‐se sob a lei da renovação

imperativa, do desuso orquestrado, da imagem, da solicitação espetacular, da

diferenciação marginal” (LIPOVETSKY, 2009, p. 182).

14 Entre 1998 e 2005, a China investiu 800 bilhões de dólares em estruturas produtivas (JABBOUR,

2006), desde então a fabricação de diversos produtos, inclusive roupas, acabou sendo transferida e polarizada para este país, bem como para a Índia e a Tailândia. “A China já responde por 60% das confecções e 35% dos produtos têxteis importados vendidos no Brasil”. (MAWAKDIYE, 2010). De acordo com estimativa da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), o custo da mão de obra brasileira na indústria têxtil é 367% superior ao da chinesa e nossos direitos trabalhistas bem mais rígidos quanto ao tempo de trabalho e volume de produção, o que faz com que o país não seja capaz de competir financeiramente, temporalmente e em volume com países como a China (MAWAKDIYE, 2010).

15 Uma ressalva deve ser feita neste ponto, onde incluímos na “lista da efemeridade”, em primeiro lugar, os gadgets. Uma palavra inglesa que significa dispositivo, aparelho, engenhoca, é o termo usado para definir aparelhos eletrônicos portáteis, como celulares, pagers, tablets e smartphones. Para Marcela Antelo, os gadgets são “produtos do casamento da ciência e do capital” e “marcam com inutil idade o excesso da produção capitalista”. São objetos extremamente desejados, mas descartados frente à sua primeira atualização tecnológica. Para se aprofundar no tema ver: ANTELO, Marcela. Os Gadgets. Rev. Estud. Lacan, 2008, vol.1, n. 1, p.1‐16. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rel/v1n1/v1n1a14.pdf

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A hegemonia de valores que identificamos na moda se repete e amplifica quando

falamos de cidade. Sob esses valores e poderes hegemônicos, a cidade contemporânea

é entendida como este local de caráter descartável onde, “por natureza, o novo é

superior ao antigo” (LIPOVETSKY, 2009, p.185). A produção atual permite ver cada vez

com mais clareza o volume exagerado não só de objetos, mas de edifícios, espaços e até

ideias lançadas e descartadas a todo o momento. As diversas mudanças produtivas que

vem ocorrendo desde a Revolução Industrial e principalmente o caráter não controlável

deste processo, interferem intensamente no uso e na produção do espaço urbano.

Neste sentido, a partir do acontecimento do processo de urbanização dessa cidade

desordenada que estava a se formar, novos limites são determinados e os excessos

produtivos acabam por sobrar por suas beiradas. Eletrodomésticos, comida, edifícios,

espaços, ruínas, móveis, bairros, pessoas e roupas. Tudo que não cabe dentro dos limites

urbanos, sobra. Escolhemos seguir e refletir sobre o que resta à beira da cidade, o que

sobra e ainda assim sobrevive, porque acreditamos que está nos restos, no que é quase

invisível, uma resistência potente à essa hegemonia de valores.

Está dentro dessa lógica hegemônica o desejo pelo novo, pela novidade e,

portanto, o descarte do que já parece ultrapassado. A lógica econômica atual deixou de

lado o ideal de permanência e durabilidade, sendo a produção e o consumo dominados

pelo efêmero (LIPOVETSKY, 2009). A necessidade de se individualizar dos sujeitos

encontra no crescente aumento de modelos das mercadorias esta possibilidade, mesmo

que os produtos sejam fabricados em série e em monstruosa quantidade. A clara

separação do trabalhador, tanto do produto resultante de seu próprio trabalho, quanto

do processo de produção de mercadorias como um todo, vem promovendo mais

rapidamente a cultura do efêmero, pois sem o conhecimento dos processos de

fabricação dos objetos, estes acabam se tornando alienados e sem valor. A roupa, este

artefato que se encontra entre a necessidade e o desejo dos indivíduos, acaba se

tornando só mais um produto para o descarte. Para nós, que caminhamos na tentativa

de entender e seguir essa lógica do que já passou do prazo e é deixado de lado, o lugar

do resto vai parecendo suspeito: ele reside nas beiradas?

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A beirada16

Estar à beira, à margem é estar fora? A fronteira é entendida aqui enquanto

espaço poroso, por onde se pode entrar e sair, onde se pode estar, viver, sobreviver. É

ainda um espaço móvel, que transita e se modifica. Seguimos vestígios que nos levam a

ultrapassar fronteiras, caminhar por elas, sair e entrar. A beirada seria então a fronteira

enquanto emaranhado de relações porosas e permeáveis, mesmo que não lineares ou

contínuas. A fronteira permite passagem, deixa entrar e não se fixa (HISSA, 2006). Na

cidade a fronteira pode se tornar invisível, já que ela margeia geralmente ilhas

“luminosas” 17, bairros espetaculares e sobrevive nessa condição de invisibilidade. O

resto, estado de matéria que está entre o novo e o lixo18 é beiradeiro e invisível. É,

portanto, fronteiriço. Enquanto beirada e fronteira, o lugar do resto é sem limites

lineares, poroso, permite o entrar e sair, o transitar pelos espaços outros e ainda assim

é capaz de delimitar lugares. O resto seria então aquilo que não coube dentro dos limites

da cidade e foi sobreviver na fronteira, na beirada?

o resto

Este caráter efêmero identificado na cidade, necessário para a existência de

nosso objeto, o resto, é uma propriedade importante para a configuração do macro

sistema que incorpora a cidade contemporânea. A renovação constante de paradigmas

sociais e estéticos faz com que os antigos padrões desapareçam neste espaço, a partir

16 No ano de 2012, nos juntamos a alguns amigos e seguimos por uma deriva pelo sertão baiano.

Essa ideia de deriva partiu dos estudos de duas mestrandas do PPGAU‐UFBA, Jurema Moreira e Priscila Risi. A viagem resultou em uma grande aventura pelas cidades inundadas pela represa de Sobradinho / BA e em inúmeros encontros e conversas entre amigos pesquisadores. Jurema nos apresentou certa vez o conceito de territórios de beirada e seus “beradeiros”, que queria dizer dos moradores da beirada do lago de Sobradinho. Nos util izando de nosso método antropofágico, digerimos os termos trazidos por Jurema e os juntamos a nossas novas experiências.

17 Conforme termo de Milton Santos: “chamaremos de espaços luminosos aqueles que mais acumulam densidades técnicas e informacionais, ficando assim mais aptos a atrair atividades com maior conteúdo em capital, tecnologia e organização. Por oposição, os subespaços onde tais características estão ausentes seriam os espaços opacos” (SANTOS; SILVEIRA, 2002, p.264).

18 Gostaríamos de deixar claro que não consideramos resto e l ixo a mesma categoria de matéria. Entendemos o resto enquanto objeto que ainda pode ter uso, mas foi descartado pelos fatores de efemeridade dos quais já falamos no texto. O l ixo, para nosso entendimento, é uma categoria de matéria que já não tem nenhuma possibil idade de retorno socialmente falando, chegou ao seu fim extremo (aqui entram possibil idades de fim como incineração e aterro sanitário, que, a depender da maneira que são feitas, ainda podem permitir o retorno da matéria de alguma forma – energia, adubo, etc.).

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de uma suposta necessidade e do desejo das pessoas pelo novo; o espaço, as vontades,

as crenças, tudo pode ser renovado. O resto é o resultado material e concreto deste

processo, mas mesmo sendo palpável é de alguma forma invisível. E é este “estado de

eminente desaparecimento” do antigo que dá ao cotidiano sua “potência de

estranhamento” (JACQUES, 2012, p.131). Mas tudo que desaparece deve residir em

algum lugar e neste lugar fica até que possa ser percebido e explorado seu potencial

desviante dentro desta cadeia de processos molares19 (GUATTARI, 1985). Será este lugar

uma possível cidade resto onde os valores hegemônicos podem ser, de certa

forma, transgredidos? E essa cidade resto existe enquanto beirada do sistema? É

porosa, tortuosa e não se fixa?

Desalinhavo#3

Fig. 8: Ticket de entrada para o Ahsan Manzil Museum, em Bangladesh. O ticket foi encontrado no bolso de um casaco usado do Parque Novo Mundo. Siga esta pista indo para a página 70.

De certa forma, o que nos intriga é o fato de ser o resto quase sempre um corpo

escondido, na tentativa de ser invisível, perambulando pelas fronteiras da cidade,

fazendo da invisibilidade uma tática de sobrevivência, sendo a própria fronteira.

Se o que é promovido pelo sistema é o gosto pelo novo, o limpo, o esteticamente

padronizado, o resto seria matéria desgostosa de se ver, tortuosa, deformada e suja, por

isso, para que sobreviva, deve se esconder. Resto pode então falar de diversos tipos de

19 Processos molares e moleculares são termos tratados por Guattari em seu livro Revolução

Molecular (1985) para falar de processos macro e micro políticos, processos grandiosos e pequeninos, que não são dicotômicos ou binários, mas existem em função um do outro; permeando, atravessando e penetrando um ao outro.

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matéria: eletrodomésticos, gadgets, roupas, embalagens, alimentos e espaços urbanos.

Tudo que parece não ter mais serventia funcional ou social, ou o que simplesmente não

é mais novo, e é descartado. Mas é preciso então frisar que o descarte não é a

transformação da matéria diretamente em lixo. Muitas mãos passam pelos objetos

fazendo a triagem do que ainda pode ser útil e do que parece não ter serventia antes

que possa chegar efetivamente ao fim. Enquanto os artefatos não são escolhidos para

serem transformados ou efetivamente descartados, são o que chamamos aqui de resto.

O resto se configura então enquanto uma matéria em espera?

A espera parece definir um tempo lento e de ócio, um tempo de desperdício,

onde o olhar e o gesto do outro é necessário para que ela acabe ou se modifique. Ao

perceber o resto enquanto matéria que sobra e espera, que sobrevive à beira do sistema

e da cidade, questionamos: não seria então o morador de rua um “corpo‐resto”? Das

primeiras indagações desta pesquisa, interpeladas pelos desvios que a cidade impôs, ele

volta à nossa história, esse corpo moldado pelas calçadas das cidades. Volta como o

primeiro personagem dessa trama de restos, o .

Cabe ao termo “resto” englobar, nesta pesquisa, a situação do homem enquanto

morador de rua. Um corpo que vagueia pela cidade, ocupando fronteiras, tentando

sobreviver em sua camuflagem diária, na lentidão da busca pela sobrevivência e

no ócio cotidiano. Um corpo que resta do sistema, que não segue padrões, e que,

através de seus caminhos tortuosos e desregrados se insere na cidade formal e

urbanizada. Mas que fio puxamos para pensar o corpo do enquanto corpo‐

resto? O multifacetado Flávio de Carvalho, engenheiro, artista e provocador, traz à tona

em sua coluna “Casa, homem, paisagem”, no jornal Diário de São Paulo, em um conjunto

de textos denominados “A moda e o novo homem”, um corpo‐resto, vestido de resto

que ele chama de homem em farrapos. Ele enxerga este corpo que está à margem

e vê nele um sujeito capaz de imaginar e criar para além do que seria a subjetividade

capitalística trazida por Guattari (2005)20 devido a sua condição de “pária social” e sua

20 Para Félix Guattari, o capitalismo, apoiado por uma série de equipamentos coletivos ‐ a escola, a igreja, a família, a mídia, os partidos políticos, as empresas, sindicatos, revistas, programas de televisão, centros de saúde, etc – produz uma certa subjetividade que é hegemônica em nossa sociedade. Ou seja, essa

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necessidade de inventar outros modos de sobrevivência na cidade (JACQUES,

2012).

Flávio de Carvalho, ao falar do homem em farrapos, fala do morador de rua,

dos loucos, deste “Outro urbano radical” (JACQUES, 2012, p. 135) onde reside o

extremo, a necessidade de inventar por sobrevivência; o homem em farrapos,

enquanto morador de rua, ou inventa uma maneira de estar no espaço urbano ou é

engolido por ele.

“De tempos imemoráveis o homem em farrapos é um desclassificado, um posto de lado pela sociedade. Ele é o totalmente sem classe e sem hierarquia por ser o último, é o homem para o qual todas as portas se fecham. É ele um ser submetido permanentemente à dor, à miséria e ao desprezo. O homem em farrapos é o contrário do homem investido de autoridade, pela disciplina. A sua situação de último dos últimos o concede uma forma de libertação da disciplina hierárquica e por ser o último, está em estado semelhante a um estado anti‐hierárquico de começo” (CARVALHO, 2010, p.85, grifo nosso).

É este corpo em farrapos que lida diariamente com os restos da cidade, sobrevive

entre eles e tira deles seu alimento, sustento e, portanto, sobrevivência. Uma

pergunta nos intriga: será somente o o que trata dos restos na cidade

diariamente?

o corpo e o resto ou o “corpo‐resto”

Para Flávio de Carvalho,

“é pelo movimento que se processam as alterações nas formas fundamentais da moda. As formas fundamentais seriam forças latentes e adormecidas dentro da eternidade que conhecemos. O movimento desperta o homem do seu sono filogenérico, coloca‐o frente às exigências conscientes; é só pelo movimento que ele percebe e compreende a necessidade de mudar” (apud JACQUES, 2012, p. 136).

produção de subjetividade capitalística, pretende o assujeitamento dos desejos dos sujeitos aos valores intrínsecos ao capitalismo, padronizando esses desejos.

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Movimento tal que pode ser a errância do ou o movimento insistente do

corpo de um catador ou até de uma costureira para permanecer. Enquanto o morador

de rua erra para encontrar sobrevivência, os outros trabalhadores insistem pelo

mesmo objetivo. Entendemos então que devemos aceitar o desafio que a pesquisa

coloca, o de encontrar no corpo do trabalhador informal, do lumpemproletário21, o que

seleciona os farrapos e vive deles, essa corpografia dos restos, do corpo que se

implica na seleção ou na renovação principalmente de tecidos e vestimentas através da

catação ou da costura. Para Jacques (2007, p.95),

“a cidade é lida pelo corpo e o corpo descreve o que podemos passar

a chamar de corpografia urbana. A corpografia seria um tipo de

cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória inscrita no

corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia

urbana, da própria cidade vivida, no corpo de quem a experimenta”.

(Grifos nossos)

É através do trabalho não normatizado com os restos que o corpo se insere nessa

cadeia maior e se coloca no desvio, na produção de outro sentido para estar na cidade,

de uma ressignificação do corpo, do objeto e do lugar.

Desalinhavo#4

Agnès Varda: “Les Glaneurs et la Glaneuse” (2000),

que em português se traduz como “Os Catadores e

Eu”; um documentário onde a diretora encontra

vários catadores e catadoras que por necessidade,

acaso ou escolha, vivem de catar e recuperar os

restos de outras pessoas. Na verdade, a palavra

glaneur significa respigar, que é um ato muito

comum na França, o de recolher as espigas que

21 O termo lumpemproletariado foi trazido por Karl Marx para definir pejorativamente uma

categoria de trabalhadores que estaria abaixo dos operários assalariados, para ele esses trabalhadores eram danosos às intenções socialistas, já que ao invés de lutarem pela causa encontravam desvios para conseguir sobreviver na cidade. Este mesmo termo relido por Walter Benjamin é tomado enquanto desvio, potência positiva diante da monotonia do trabalho produtivo e burocrático. Para aprofundamento no termo ler BENJAMIN, W. “Paris do Segundo Império. Obras Escolhidas III”. São Paulo: Brasil iense, 1989, p.9‐101 e RAMIREZ, P. N. “A revolução vagabunda: Baudelaire, Walter Benjamin e o fim da história”. Revista eletrônica Ponto e Vírgula, São Paulo: PPGCS PUC‐SP, 2010, n.8, disponível em: http://www.pucsp.br/ponto‐e‐virgula/n8/artigos/htm/pv8‐15‐pauloramirez.htm

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sobram após a colheita no campo. Ou seja, é o ato

de recolher as sobras, os restos. O próprio filme

parece uma compilação de diversos personagens e

situações encontradas pela diretora que trabalha

a partir de associações e deslocamentos onde uma

descoberta leva a outra e, mesmo que distantes,

quando colocadas lado a lado, dão sentido a um

discurso construído por ela.

Fig. 9: imagem retirada de frame do documentário Les Glaneurs et la Glaneuse, de Agnès Varda. Para encontrar vínculos com esta pista vá para a

página 63.

O resto é ressignificado através desses sujeitos que selecionam, usam o corpo

como ferramenta de trabalho, quase numa coreografia de catar e restaurar. Assim como

uma costureira transforma a roupa que seria jogada fora para que seja usada

novamente, sobrevivendo deste trabalho diariamente, o vê no que sobra às

margens da cidade, nos farrapos, uma possibilidade de transformação e

sobrevivência. A imagem do homem em farrapos vai então se confundindo

com a do trapeiro, de Baudelaire, trazida por Walter Benjamin. Figura que mesmo

mergulhada na fugacidade do espaço urbano consegue ver nos trapos, nas sobras, nos

restos da cidade, algo de valor.

“Tudo que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as

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coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis” (BAUDELAIRE, apud BENJAMIN, 1989, p. 78).

Este corpo configurado a partir do gesto diário de quem “compila os anais da

devassidão” (BENJAMIN, 1989, p.78), num ato quase heróico dentro da cidade grande

(PIGNATON, 2011), reúne, seleciona e classifica tudo o que cata. A figura do trapeiro,

do e até mesmo da costureira nos remetem à imagem do trabalhador que se

move pelo objeto que separa, cata ou costura. Em movimentos repetitivos, o atrofiar

dos músculos e dos tendões modifica a postura do corpo do sujeito. O corpo se molda

através do trabalho. O separar e tratar dos restos imprime uma corpografia

particular em cada um, a corpografia gerada a partir dos restos urbanos. Mas

também se modifica no contato com a cidade. O corpo do andarilho, do , do

homem em farrapos deixa clara a transformação que ele faz na cidade e que a

cidade faz nele. O corpo que afeta o espaço, geograficamente ou socialmente, com suas

vestes improvisadas, suas amarrações e trocas. Seus usos fora de padrão. É também a

transformação do corpo pela cidade. A cor da pele que vai se acinzentando pelo ar

poluído, a poeira das calçadas, a estrutura do corpo que vai perdendo gordura,

enrijecendo os músculos, mudando a postura. Os hábitos que se tornam públicos: o

sexo, o banheiro, o sono. As táticas de sobrevivência – caixas de papelão, sacos de

lixo, jornais 22. O corpo transforma a matéria, mas a matéria também transforma o

corpo. E mais, essa transformação pode ser percebida também socialmente: “(...) as

coisas fazem as pessoas tanto quanto as pessoas fazem as coisas” (MILLER, 2013, p.200).

E é socialmente que Flávio de Carvalho coloca a transformação do homem em

farrapos através dos objetos. Para ele, é

“nos estados agudos do individuo que alcança o limiar de um mundo próprio, [que] aparecem as sobrevivências compensadoras graciosamente apoiadas no ornamento e no desejo de criação.

22 Para se aprofundar sobre os corpos que restam na cidade, em um texto cheio de analogias

muito interessantes do corpo modificado na rua com o corpo modificado a partir de intervenções corporais como piercings, tatuagens e todo tipo de body modification; um “compilar” de histórias de corpos na rua, com reflexões profundas sobre a materialidade e a sobrevivência na cidade, ler: BORGES, Fabiane Moraes [dissertação]. Domínios do Demasiado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.

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Encontramos pateticamente, nas ruas de toda parte, exemplares de homens e mulheres que perderam o controle dos seus desejos e das suas angustias e que se apresentam vagando pela rua, discursando histericamente para um publico, às vezes imaginário. Exibem profuso aparato e ornamento, cobrem‐se com flores e fitas, e cores e panos diversos que se desdobram, agradavelmente. Marginais descontrolados que falam a um mundo próprio, o mundo da loucura e do sonho. São estes os detentores da grande imaginação e da grande moda. São os supremos criadores da fantasia humana...e tão desprezados pelo povo que passa...” (CARVALHO, 2010, p.16, grifo nosso)

O desprezo de que fala Flávio de Carvalho nos remete novamente a invisibilidade

desse estado resto, invisibilidade que, veremos ao longo de nosso trajeto, permite a

sobrevivência dos corpos e matérias que se encontram enquanto sobra. Se

pudéssemos classificar o resto em uma linha categórica de diferentes nuances, o

estaria em um ponto extremo dessa categorização, sendo ele o que lida com as sobras

no intuito de sobreviver diretamente delas na cidade. Isso quer dizer que depois dele,

após o uso e reinvento da matéria o resto encontra um fim, vira lixo. Veremos adiante

(principalmente no desenrolar do fazer campo), que os outros personagens dessa

trama, que se aproximam do trapeiro ou da costureira, trabalham com o resto

enquanto mercadoria, moeda de troca. Na maioria das vezes revalidam os objetos no

intuito de tirar dele seu sustento23. O , ao contrário, vive dos trapos, é um homem

em farrapos, come e veste restos, sendo ele por isso possivelmente categorizado

socialmente enquanto o próprio resto. Para além das questões sociais imbricadas nessa

condição de sobrevivência através do resto, o que nos encanta neste pequeno

mundo encontrado até agora é a possibilidade de ter essa matéria transformada e

trazida de volta, neste jogo entre macro e micropolítica. O resto articulado aos corpos e

ao que é novo, nessa zona fronteiriça porosa, onde nada é fixo. Outras perguntas surgem

frente aos restos: se eles estão à espera, estão à espera do que ou de quem? Quem os

agencia? Onde estão? Porque são descartados? Porque perdem ou ganham valor?

23 Veremos adiante, que em algumas situações nossos outros personagens também vestem os restos, mas fica clara a diferença de sua relação com eles. Enquanto o morador de rua trata esta matéria como sua, os outros personagens a tratam como mercadoria.

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o espaço (da) roupa

Esta hipotética cidade resto, imperada pela espera e o tempo lento, é aqui

buscada através das roupas usadas, estas que aguardam para serem vendidas,

utilizadas, catadas, separadas ou reformadas. Estes lugares resto poderiam ser

categorizados enquanto espaços opacos (SANTOS, 1994), “espaços do aproximativo, da

criatividade, da lentidão, abertos, movediços e compartilhados, as zonas opacas dos

habitantes ordinários, os anônimos da cidade, considerados, pela lógica do espetáculo,

‘perdedores’” (OLIVIERI, 2011). Habitantes estes que podem ser “homens lentos”

(SANTOS, 1994), esses que vivem uma temporalidade substancialmente diferente da

imposta pelo poder hegemônico, diferente do pensamento que domina a lógica das

grandes cidades: a da velocidade, da higiene, das formas e caminhos determinados.

Por isso, quando assumimos a postura de digerir o campo antropofagicamente,

em um tempo não maquinal ou virtual, permitimos que nosso olhar fosse atravessado

pela cidade e seus restos. Restos estes que, como nosso olhar, tentam sobreviver na

subversão do hegemônico, mesmo impregnados por ele e somente existindo dentro e

por causa dele.

Quando nosso olhar foi atravessado pela cidade e seus restos, caminhávamos

por um bairro chamado Baixa dos Sapateiros, que fica em Salvador, na Bahia. No

momento em que viu uma loja que não tinha placa, apenas uma faixa com os dizeres:

“QUASE TODA A LOJA de 1 à 5 Reais”, tivemos estalada nossa curiosidade, seguimos o

que nos pareceu uma primeira pista e entramos. Dentro da loja vimos sacos cheios de

roupas com inscrições feitas à caneta piloto. Era a segunda pista, que levou nossa

memória a viajar alguns quilômetros e anos, até chegar ao Parque Novo Mundo, em

meados de 2009.

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Fig. 10: Loja da Baixa dos Sapateiros , em Sa lvador, onde a primeira pista da pesquisa foi encontrada. Foto de arquivo pessoal , 2012.

Este bairro, que beira a Rodovia Presidente Dutra e está localizado no distrito de

Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, se faz espaço de trabalho para algumas pessoas

que sobrevivem fazendo a “triagem” de roupas usadas. Estas roupas que se empilham

em montes de 2 a 3 metros de altura chegam ao bairro quase diariamente, vindas de

diversas instituições de caridade que recebem mais doações do que podem cuidar e

colocar em seus bazares ou distribuir para os que estão sob seus cuidados. Os

separadores das roupas as selecionam por tipo e estado de conservação, as colocam em

fardos que serão levados por caminhões para a distribuição em pequenas lojas de itens

usados espalhadas pelo país e em fazendas, nas quais as roupas são utilizadas pelos

trabalhadores rurais para proteção do próprio corpo e o não desgaste de suas roupas

pessoais24. Os sacos vistos por nós na loja de roupas usadas da Baixa dos Sapateiros

chegaram até ali de caminhão, vindos de São Paulo, embalados pelas mãos dos

separadores do Parque Novo Mundo25.

Estes lugares, de certa forma beiradiços, possibilitam o trafegar da roupa resto

pela cidade. Enquanto responsáveis pelo fim da espera do resto, os dois bairros e seus

24 Baseado em conversa com um separador, em uma ida ao Parque Novo Mundo, em 2011. 25 Informação obtida em conversa com a dona de uma loja de roupas usadas na Baixa dos

Sapateiros, em 2012.

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trabalhadores são a ligação dessa matéria que sobra com a cidade formal, regida pelo

novo e pelos padrões de poder hegemônico discutidos aqui anteriormente. Estes

lugares, associados a outros, onde a roupa também está, como shoppings e lojas de

departamentos, são lugares que chamamos aqui de espaços da roupa.

A Baixa dos Sapateiros, bairro que abriga muitos desses espaços, é

basicamente formada pela longa Avenida J. J. Seabra, rua esta que está localizada ao

lado do Centro Histórico da cidade e é um local de grande importância histórica para

Salvador. Já no século XVI, esta área, localizada em ponto estratégico da cidade, teve

importante função defensiva, já que sua geografia configurava‐se numa vala

acompanhada por um rio que volteava por trás a colina do alto da Bahia de Todos os

Santos. Este rio era chamado rio das Tripas e servia principalmente como esgoto e local

de descarte dos restos gerados por um matadouro que se encontrava no bairro de São

Bento, próximo ao local onde hoje se encontrar o terminal da Barroquinha. A rua, que

beirava o rio foi chamada primeiramente de Rua das Hortas, já que era nela que grande

parte da cidade se abastecia de frutas e legumes. Mas foi somente a partir da drenagem

do rio, feita na primeira metade do século XIX, que a rua pôde ser realmente habitada.

Passou a ser então chamada Rua da Vala e pode ser considerada a primeira das ainda

futuras avenidas de vale da cidade (NASCIMENTO, 2007). As casas construídas nesse

momento eram “casas modestas e pobres, térreas geralmente, raramente com um

andar, moradia de artesãos, principalmente sapateiros, que terminaram por transferir à

rua o nome que ela possui atualmente (…)” (SANTOS, 1959, p. 171). O nome popular

desta área associa a geografia e a profissão mais exercida por ali durante muitos anos:

Baixa dos Sapateiros. Oficialmente, depois das mudanças urbanas propostas por José

Joaquim Seabra para a cidade de Salvador, a rua passa a ter seu nome. O homem que

dá nome a rua foi governador do estado da Bahia por duas vezes, de 1912 a 1916 e de

1920 a 1924, mas foi em sua primeira gestão que desenvolveu os projetos que marcaram

seu governo. Influenciado pela urbanização do Rio de Janeiro de Pereira Passos, o então

governador fez importantes intervenções urbanas na capital. Na Cidade Baixa, o projeto

constituía na construção de uma nova urbanização e na Cidade Alta na inauguração de

“largas avenidas, numa tentativa de romper com seu passado” (PINHEIRO, 2011, p.213).

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É na Avenida J. J. Seabra, que se tornou importante centro comercial para a

cidade, que encontramos então os primeiros espaços da roupa desta investigação.

Tendo sido local de grande movimento no passado, foi através dos processos de

revitalização do seu bairro vizinho26, da instalação do terminal de ônibus da Lapa, que

desviou o trajeto de muita gente, da abertura de Shoppings como o Piedade aos

arredores da região, nos anos 1980, que o bairro passou a ser uma localidade que

sobrevive do que remanesce dessa revitalização e dos poucos transeuntes que ainda se

aventuram pelas ruas vazias da Baixa. A queda da frequência de transeuntes fica clara

com o passar dos anos27.

Desde sempre enquanto beirada, primeiro de um rio que se fazia fronteira da

cidade antiga, depois de um Centro Histórico que, ao mesmo tempo em que ofusca sua

existência, permite que muitos processos aconteçam livremente por suas ruas, não seria

a Baixa dos Sapateiros um bairro resto? Suas lojas, que vendem desde artigos

importados da China a artigos para festas, incluem araras cheias de roupas novas e

iguais, vendidas por preços baixos; prateleiras cheias de bolsas e mochilas; calçados de

plástico, borracha ou lona; camisetas esportivas penduradas nos toldos; manequins

vestidos com roupas justas ocupando as calçadas; nichos de madeira cheios de roupas

usadas vendidas a 1 ou 2 reais; e muitas outras coisas que vão configurando este

espaço onde a roupa está à espera. O espaço da roupa se estabelece enquanto

lugar que abriga a roupa.

Espaço que também é encontrado, de outra forma, no Parque Novo Mundo.

Este trecho de bairro, que está entre dois subdistritos que oficialmente se chamam Vila

Maria Baixa e Jardim Andaraí, ficou conhecido por esse nome e é assim chamado pelos

moradores há muito tempo28. O bairro começou a se formar na década de 70, quando

ainda era um lugar cheio de chácaras, pequenas lagoas e terrenos alagadiços. À beira

das lagoas aconteceram as primeiras ocupações informais, de barracos feitos de

26 Reconhecido como patrimônio histórico pela UNESCO em 1985, o Centro Histórico de Salvador,

mais conhecido como Pelourinho, começou a receber recursos financeiros para revitalização, reformas e investimento em turismo a partir da década de 1990, o que acarretou em inúmeras mudanças que transformaram muitas das casas coloniais do bairro em empreendimentos de cultura e lazer.

27 Baseado em conversa com a uma trabalhadora do local, em 2012. 28 Oficialmente, segundo mapeamento do plano diretor da cidade de São Paulo, o bairro com

nome de Parque Novo Mundo fica a algumas quadras das ruas aqui util izadas enquanto lugar de fazer campo.

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madeira, papelão e todo material estruturante que pudesse ser encontrado na rua. Ali,

em 1972, podia‐se comprar um barraco construído em palafita por mais ou menos 4 mil

reais29. Mas foi no fim da década de 80, quando o bairro já estava densamente ocupado,

que o governo de Luiza Erundina urbanizou algumas ruas, soterrou áreas alagadiças e

deu estruturas de alvenaria aos barracos30. O bairro, que beira a Rodovia Presidente

Dutra, está localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo. Os espaços

da roupa encontrados ali estão principalmente em um trecho de bairro delimitado

pela Rua Amadeu Conrado Marti e a Avenida Berimbau. São pequenas garagens cheias

de roupas usadas, amontoadas, que estão ali para serem separadas por inúmeros

trabalhadores. Quando se está passando pelas vias próximas ao bairro é muito difícil

conseguir vislumbrá‐lo, ele está escondido entre fronteiras, invisível – tática de

sobrevivência. O espaço da roupa está protegido.

Se configuram então, estes espaços, enquanto lugar de espera, de comércio,

de transformação do resto em mercadoria. É o entre, uma fronteira porosa e sem limites

claros onde se encontra a possibilidade de que agenciamentos micropolíticos

aconteçam a partir do encontro dos corpos – dos personagens a serem apresentados a

seguir – com essas roupas. A vestimenta descartada, que volta à tona, está fora de

moda, já despadronizada e por isso pode ser desviante, um artifício de

desterritorialização. É um objeto que permite ao sujeito, nos conceitos de Guattari

(1986, p.45) o “atrevimento de se singularizar” (apud PRECIOSA, 2012). É quando a

roupa reencontra o corpo que entendemos sua nova função, a de espaço. Temos

então o que chamamos aqui de espaço­roupa.

29 Informação obtida em conversa com trabalhador do bairro, em 2013. 30 Idem.

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Fig. 11: Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores . Foto reti rada do Google Maps , em setembro de 2012.

Pensando sobre o espaço como uma sobreposição de camadas, platôs

(ROLNIK, 2011) ou até mesmo peles, encontramos o conceito das cinco peles,

sobre o qual trabalhou o artista austríaco Hundertwasser. Para ele cada corpo é cercado

por cinco peles: a epiderme, a roupa, a casa, a identidade social e o meio global –

incluindo aí fatores como ecologia e humanidade.

A primeira pele, a epiderme, é invólucro, camada sensível, viva, constituinte do

corpo, inspira e expira as necessidades mais básicas do ser humano. É a ligação entre o

“Eu” e o mundo (RESTANY, 2003). É a camada que coloca o sujeito em contato com os

espaços que o envolvem. A epiderme tem ligação direta com a segunda pele, a

vestimenta. Para Hundertwasser, o vestuário é um meio de expressar a criatividade e

deve ultrapassar as barreiras da “uniformidade, da simetria e da tirania da moda”

(RESTANY, 2003, p.38). A segunda pele cobre, protege e abriga a primeira e é

diretamente ligada a quarta pele, o meio social. Podemos considerar nesse estudo o

meio social como a cidade por onde o corpo vagueia, onde a roupa é fronteira

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delimitadora de espaços que ora se expandem, ora contraem, regulando o vínculo entre

o corpo e seu entorno. Cada tecido e forma transmite para o corpo e para o mundo

alguma coisa. A roupa torna‐se um ambiente duplo, que se projeta para dentro e para

fora. Para dentro, é o primeiro e mais próximo contato da epiderme, provocando os

sentidos e, para fora, ilude os olhos do observador, revela ou esconde o corpo, cria

estruturas e sensações visuais (SALTZMAN, 2007).

Fig. 12 ‐ I lustração de Hundertwasser representando as cinco peles . Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser: o Pintor‐Rei das Cinco Peles. Köln: Taschen, 2003, p.15.

Para Jacques, “a diferença entre prédio e vestimenta estaria nos diferentes

níveis da ideia de habitar, e sobretudo do abrigar, em todos os envolvimentos possíveis

da interioridade, da pele às fronteiras” (2008, p.162). A roupa é abrigo, a proteção mais

simples, envolvimento têxtil do corpo. Objeto que se difere do edifício, para além do

“nível da ideia de habitar”, através do tempo: é mais efêmera, se sugere passageira,

cambiante, tem uma temporalidade diferente do “habitar”. E, se a roupa é abrigo, é

também um espaço móvel, movido pelo corpo que cobre. É então afetada e modificada

a cada mudança de entorno e, dependendo do contexto – paisagem, ambiente,

temperatura, luz, cultura, sociedade, tecnologia, recursos e economia ‐ tem a

capacidade de adaptar‐se e desempenhar funções distintas (SALTZMAN, 2007).

Enquanto espaço e objeto, a roupa também se deixa afetar e modificar pelos corpos.

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Traça caminhos, é levada pelo corpo, mas também o leva. Porque “a roupa é capaz de

carregar o corpo ausente, a memória (...)” (STALYBRASS, 2008, p.26, grifo nosso). “As

roupas recebem a marca humana e (...) duradouras, elas ridicularizam nossa

mortalidade” (STALYBRASS, 2008, p.11), porque continuam, duram mesmo após a

morte do corpo que a carrega. “Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses

corpos sobrevivem” (STALYBRASS, 2008, p.10). E essa sobrevivência é carregada

de marcas e histórias, o espaço­roupa é, portanto, abrigo temporário dos corpos e,

como casas, se desgastam, sujam e fissuram através do tempo e do sujeito que a habita.

No mesmo sentido, são modificadas e transformadas para abrigar o corpo da maneira

que melhor o agrade. As casas são pequenos mundos particulares fixos, as roupas, um

tanto mais efêmeras, são este espaço particular que se carrega diariamente. “As

roupas são, pois, uma forma de memória” (STALYBRASS, 2008, p.33). Um local onde

se sedimentam camadas de acontecimentos.

O espaço­roupa se configura a partir da roupa vestida, da união entre corpo,

vestimenta e cidade, fato que só é possível de acontecer através de mãos como as do

, do trapeiro, do homem em farrapos e dos outros personagens

conceituais ainda a serem descobertos nessa trama (no caso dos restos), que trabalham

em lugares como o Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros, aqui entendidos como

espaços da roupa. Assim, através dos usos e descartes, a trama do resto urbano

vai se complexificando, outros corpos e locais se ligam a ela, numa construção

tentacular, especialmente em se tratando, neste caso, dos restos das roupas. Vamos

descobrindo então, percorrendo esses espaços, que ao fazê‐lo transitamos por uma

“(...) sociedade da roupa, pois a roupa é tanto uma moeda quanto um meio de incorporação. À medida em que muda de mãos, ela prende as pessoas em rede de obrigações. O poder particular da roupa para efetivar essas redes está estreitamente associado a dois aspectos quase contraditórios de sua materialidade: sua capacidade para ser permeada e transformada tanto pelo fabricante quanto por quem a veste; e sua capacidade para durar no tempo”. (STALYBRASS, 2008, p.13)

E é a partir deste entendimento, que nos infiltramos nesta rede de relações,

descobrindo seus personagens conceituais, seus segredos e suas pistas. Vamos à rua.

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capítulo II

ALINHAVANDO TRAPOS:

QUANDO SE VAI À RUA

“Para conhecer os vaga‐lumes, é preciso observá‐los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê‐los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco mil vaga‐lumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela”.

(DIDI‐HUBERMAN, 2011, p. 52, grifo nosso)

Não seria nas ruas que a cidade acontece efetivamente? No encontro e na troca?

Não seriam as pessoas as responsáveis por “fazer a cidade” a cada passo que dão por

suas vias tortuosas ou planejadas? E nesse sentido, quais seriam as “possibilidades de

experiência da alteridade urbana” (JACQUES, p. 11, 2012)? Como essas possibilidades

de experiência podem se tornar potentes “na construção e na (contra)produção de

subjetividades, de sonhos e de desejos” (JACQUES, p. 11, 2012) na cidade?

Em nosso caminho trapeiro, encontramos diversos sujeitos que retiramos de sua

condição de sujeito para serem aqui personagens conceituais, alguns dos quais já

apareceram anteriormente neste texto, que nos encaminham, através das trocas, da

abertura de seus pequenos mundos aos nossos dentes devoradores, ao encontro de

nossas questões centrais e à possível descoberta de outras formas de estar na cidade e

produzir subjetividades, sonhos e desejos. Antes de serem claramente apresentados tais

personagens conceituais, é preciso fazer algumas observações sobre eles e sobre sua

relação conosco. Primeiro, em nosso trajeto investigatório, uma questão aflora e é

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reforçada pelas palavras de Gilles Deleuze e Félix Guattari: seria o “outrem (...)

necessariamente segundo em relação a um eu?” (2010, p.23).

O outrem, “sempre percebido como um outro”, se faz condição para que o eu

passe do mundo em que se encontra a um distinto (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.26). É

o outro que se faz condição para a percepção de si e do meio e, consequentemente, é

necessário para a mudança e o movimento destes. Os “outrens” encontrados por nosso

caminho estão aqui colocados enquanto condição de nossa existência (enquanto autor

/ pesquisador) e movimento. Esses personagens podem ser configurados enquanto

“personagem conceitual” e “figura estética” (DELEUZE, G.; GUATTARI,

F., 2010), em um possível “lugar de encontro entre” (MESQUITA, 2008, p.31) os dois

conceitos. Ambos se diferem por ser o primeiro “potência de conceitos” e o segundo

“potência de afectos e perceptos” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.80). Para Deleuze

e Guattari, o personagem conceitual não é histórico, é sim um acontecimento,

existe em trânsito e tem contornos irregulares (MESQUITA, 2008). Ele tem ainda o papel

de “manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações absolutas do

pensamento” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.84). Enquanto que as figuras

estéticas, “são sensações: perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires”

(DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.209). Devires tais que também se encontram nos

personagens conceituais. No entanto, “o devir sensível é o ato pelo qual algo

ou alguém não para de devir‐outro (continuando a ser o que é), (...) enquanto que o

devir conceitual é o ato pelo qual o acontecimento comum, ele mesmo, esquiva o que

é” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.209). Os personagens desta dissertação ora são

sensações, ora acontecimentos. Ora são personagens conceituais, ora figura

estética. Ora são algo entre os dois conceitos, como se fosse possível que se

produzissem entre eles “não somente alianças, mas bifurcações e substituições”

(DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.81).

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Os personagens31 encontrados não pretendem aqui ser explicados ou

categorizados. Eles não são metáforas nem a generalização de pessoas reais. Eles

acontecem, portanto, enquanto conceito e sensação. Não falamos então dos sujeitos

em si, mas sim da potência conceitual encontrada neles ou através deles e que nos

aproximou do que é para nós o espaço­roupa.

Apresentamos a seguir os encontros urbanos pelos quais nos deixamos levar, os

sujeitos que vieram a ser personagens e que afetaram nossas reflexões e caminhos

nessa jornada. Através das posturas metodológicas descobertas durante o próprio

trajeto, uma suposta cartografia vai se fazendo e parece não ter fim. É a partir daqui que

nossos caminhos vão para além dos livros e conceitos, é entre ruas e múltiplos encontros

que nos deparamos com nossos aliados e ganhamos nossas valiosas pistas. É através de

nossos cadernos de campo que seguimos com essas reflexões.

vestígios e vínculos

primeiras pistas

Algumas páginas de nosso caderno de campo serão transcritas a seguir a fim de

trazer ao leitor uma proximidade dos acontecimentos da pesquisa. A primeira página

apresentada fala do momento em que o caminho da pesquisa mudou, através de

algumas conexões entre acontecimentos do presente e do passado.

Caminho por um dos quarteirões da Avenida J.J. Seabra, na Baixa dos

Sapateiros, em Salvador, vejo pelo menos três lojas de roupas usadas. A

descoberta dessas lojas resulta na imediata vontade de entrar, tocar as

31 Deve‐se deixar claro que a palavra personagens a partir daqui pode querer dizer de

personagem conceitual e/ou figura estética, já que os dois conceitos se apresentam imbricados nesse texto.

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roupas, sentir o cheiro gasto, desvendar os mistérios daqueles

estabelecimentos; continuar a perseguir a roupa – ato este inevitável e

recorrente mim. Com as memórias ativadas, passam por meus olhos

anos passados, em que roupas usadas eram meu objeto de trabalho e se

transformavam em figurinos para personagens de filmes e peças de

teatro.

Passados alguns minutos dentro de uma dessas lojas, uma atendente

chega mais perto e oferece seus serviços. A pergunta que eu faço,

desconcerta‐a: “Essas roupas são usadas?”. Ela, uma senhora que

imagino ser uma das donas da loja, dá voltas nas palavras e responde que

parte delas é usada, mas a maioria é nova, justifica que isso só acontece

pelo fato de comprarem as peças pelo telefone, de um lugar em São

Paulo, que lhes envia sem escolherem o que vem. É visível pelos puídos,

as cores e as formas que todas

as roupas são usadas. Eu sei!

Caminhando mais um pouco

pela loja, meus pés quase

tropeçam em grandes fardos de

roupas escondidos debaixo das

araras. Neles se pode ler uma

inscrição em caneta piloto:

“NOME DO DESTINATÁRIO

SALVADOR – BA

SSA MULHER”

Fig. 13: Manequins da loja de roupas usadas na Baixa dos Sapateiros , em Sa lvador – BA, onde a vimos os fardos de roupa pela primeira vez. Atrás dos manequins se lê: não efetuamos troca. Foto de arquivo pessoal , 2012.

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Memória

“Tudo que não invento é falso” (BARROS, 1996)

Um lampejo aceso a partir do encontro do passado e do presente, a memória é

estratégia de investigação, atividade intelectual. É uma faculdade paradoxal que é, ao

mesmo tempo, ligada a um acontecimento voluntário do lembrar e a algo involuntário:

lembranças, imagens que afetam quem lembra. Portanto, quando se lembra

voluntariamente de algo, outras lembranças surgem, coisas que talvez não se pretendia

lembrar. Assim sendo, muitas vezes “o lembrar e a lembrança se contradizem”32. A

lembrança é capaz de trazer de volta sensações e acontecimentos passados, produz

imagens, imaginação. Possibilita uma transformação do passado, uma vez que a

lembrança ocorre num momento presente e é, de certa forma, influenciada por esse

momento. Esse encontro do “Outrora” com o “Agora” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.62)

configurado em imagens mentais involuntárias, transforma a lembrança do passado e

pode colaborar para a mudança do presente (GAGNEBIN, 2006). Nesse sentido,

“se a imaginação – esse mecanismo produtor de imagens para o pensamento – nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se liberarem constelações ricas de Futuro, então podemos compreender a que ponto esse encontro dos tempos é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado reminiscente” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p. 62).

É decisivo, pois é através desse encontro, desse acontecimento mental, que se

passa à narrativa, ao discurso, seja ele histórico ou não. Para Gagnebin, a memória é

acaso, não enquanto “irrupção estatística de coincidências”, mas por ser algo que “não

depende de nossa vontade ou de nossa inteligência, algo que surge e se impõe a nós e

nos obriga, nos força a parar, a dar um tempo, a pensar” (GAGNEBIN, 2006, p.153). “Não

se trata de um resgate voluntário do passado, senão um passado que se apossa

involuntariamente de nosso presente e de nossos atos” (RAMIREZ, 2011, p. 120), nos

fazendo reconhecer no presente elementos remanescentes do já acontecido.

32 Frase retirada de entrevista com Jeanne Marie Gagnebin sobre a memória. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=Dr7jJoqxFfU

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Trazendo outra vez a discussão já posta anteriormente, quando falávamos da

metodologia de Ginzburg, o paradigma indiciário, esse acaso

“só pode ser percebido se há como um treino, uma ascese da disponibilidade, uma “seleção”, umas “provas” que tornam o espírito mais flexível, mais apto a acolhê‐lo, esse imprevisto, essa ocasião – kairosl – que, geralmente, não percebemos, jogamos fora, rechaçamos e recalcamos” (GAGNEBIN, 2006, p.153).

Como diz Ginzburg, é necessário prestar atenção e “ouvir” as pistas com cuidado,

aflorando a intuição e aguçando os sentidos. Talvez as pistas só funcionem quando, de

alguma forma, causam esse lampejo de memória. A ocasião é então aproveitada, não

criada (CERTEAU, 1994). A memória traz para o momento a pequena peça de encaixe

que faltava, “como os pássaros que só põe seus ovos no ninho de outras espécies, a

memória produz num lugar que não lhe é próprio” (CERTEAU, 1994, p. 162), realoca

imagens do passado no presente, obtém sua força de intervenção de “sua própria

capacidade de ser alterada – deslocável, móvel, sem lugar fixo” (CERTEAU, 1994, p. 162).

“Longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a memória vive de crer nos

possíveis, e de esperá‐los, vigilante, à espreita” (CERTEAU, 1994, p. 163). Ela fica a espera

da ocasião, do momento em que aparecerá em forma de lembrança para trazer a tona

o acaso, o lampejo, o “clique”. Sem se limitar ao passado, essa capacidade intelectual

vive em uma pluralidade de tempos não lineares (CERTEAU, 1994), por isso, essa

memória involuntária seria capaz de anular distâncias temporais entre o passado e o

presente, como se fez em nós. É por meio da lembrança estalada através de um

acontecimento presente que a Salvador de 2012 e a São Paulo de 2008 se encontram.

Voltando ao questionamento de Guinzburg sobre a impossibilidade do

historiador reviver um momento histórico, nos deparamos com o pensamento de

Walter Benjamin sobre o manejar do passado através da história. Para ele, "articular

historicamente o passado não significa conhecê‐lo 'tal como ele propriamente foi'.

Significa apoderar‐se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo" (In

GAGNEBIN, 2006, p.40), assim sendo, a memória nos parece outra vez intrinsecamente

ligada à narrativa histórica. Novamente afirmando, porém, que não nos interessa fazer

um levantamento histórico dos dois bairros em questão ou até mesmo criar uma

narrativa histórica, falar sobre a memória e sua narrativa pode colaborar para o maior

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entendimento do próprio fazer campo e da maneira como ele é colocado para o

leitor. Afinal, o que garante a fidelidade das imagens lembradas? E da narrativa criada?

Voltamos aqui a pensar no estado ficcional do texto, no encontro com os personagens,

na criação de um discurso a partir de acontecimentos verdadeiros. A memória ajuda a

preencher nossos cadernos de campo e a articular nossas vivências do presente com

acontecimentos do passado. Ela nos ajuda a “ficcionar” (FOUCAULT, 1977 apud.

ARAÚJO, 2011, p.58).

(Sobre São Paulo, se não me falha a memória, em meados de 2008)

A primeira vez que fui ao Parque Novo Mundo, fui de carro, por um

caminho que não se poderia errar (o erro me daria alguns quilômetros de

pista até o próximo retorno). Fui até lá para selecionar roupas para o

figurino de um longa‐metragem. Beirando a Rodovia Presidente Dutra, o

bairro localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, tem

apenas um acesso pela Marginal Tietê que, se fosse perdido, faria com

que eu desse uma grande volta de alguns quilômetros de Rodovia. É

preciso estar atento para encontrar o bairro. Se fosse conhecedora da

área, poderia ter chegado também por dentro de outros bairros, ou de

ônibus, por uma linha que me deixaria em uma de suas ruas internas. Me

lembro que quando cheguei ao bairro pensei: “se são tantos caminhos,

como nunca passei por aqui”?

Mas foi caminhando por suas pequenas vias deterioradas e passando

entre a Rua Amadeu Conrado Marti e a Avenida Berimbau que eu

realmente me surpreendi. Em um quadrado de ruas que abriga vários

quarteirões, estão os vestígios do processo de industrialização, vestígios

dos restos que a urbanização preferiu tirar das vistas. Eu estremeci

surpresa: garagens e cômodos inteiros cheios de montes de roupa, com

2 ou 3 metros de altura, onde imagino que 40 ou 50 pessoas trabalham

separando as peças por qualidade e tipo. Vi o Catador pela primeira vez,

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ele escrevia nos fardos com uma caneta piloto, sinalando da seguinte

forma:

“NOME DO DESTINATÁRIO “ABREVEATURA DA CIDADE CIDADE – ESTADO” CATEGORIA DA ROUPA”

Fig. 14: Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Foto reti rada do Google Maps, em setembro de 2012.

das desculpas e táticas

Nos vemos sozinhos na Baixa dos Sapateiros, um território desconhecido, mas

temos vontade de estar ali, de descobrir os segredos dessa trama que começa a se

apresentar diante de nosso estômago33. Queremos correr o risco e pagar o preço da

descoberta de novas pistas que possivelmente nos levarão a descobrir outras ligações

entre Salvador e São Paulo além dos fardos de roupas usadas. Nos lembramos então

de uma longa conversa com outros pesquisadores34 e da necessidade de todos, ao

chegar em um local desconhecido, de criar uma tática, descobrir uma desculpa

33 Brincando com as palavras: Já que nossa metodologia é antropófaga e não visual, tudo se

devora, tudo se digere, nada simplesmente se vê ou se apresenta diante dos olhos. 34 Conversa ocorrida em outubro de 2012 com pesquisadores do Laboratório Urbano, grupo de

pesquisa do Programa de Pós‐graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, sobre trabalhos de campo.

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possível para se estar neste lugar. Se lembra que “criar é resistir” (DELEUZE;

GUATTARI, 1992, p.133) e vai em busca da brecha necessária para essa invenção que,

espera, possibilitará sua efetiva entrada na Baixa dos Sapateiros.

A tática, segundo Michel de Certeau, está presente e diversas camadas

estruturais de nossas cidades e opera em diversas situações enquanto instrumento de

sobrevivência social, principalmente enquanto ferramenta para os “fracos” e está

mais ligada ao tempo que ao lugar. É como o lampejo da memória, trabalha sobre

ocasiões, brechas, chances de ação, associações que podem ser capazes de gerar outra

coisa.

“(...) Ela (a tática) opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não‐lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia” (CERTEAU, 1994, p. 100).

A tática que encontramos para frequentar o bairro está baseada nos mesmo

princípios táticos cotidianos de convívio na cidade. “Muitas práticas cotidianas (falar,

ler, circular, fazer compras ou preparar as refeições etc.) são do tipo tática” (CERTEAU,

1994, p. 47).

Quando a memória entra na história, vem com ela a necessidade da

investigação. Como ligar os vestígios? Como estabelecer vínculos entre

memórias e pistas? Eu preciso encontrar uma maneira de manter minha

presença na Baixa dos Sapateiros. Preciso chegar mais fundo. Preciso

estar ali para continuar a investigar a roupa usada.

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Saindo da loja em que estava e continuando meu trajeto, atento o paladar

e algumas lojas depois encontro meu passe de entrada. Vejo duas placas

penduradas em uma pequena porta que dá para um corredor bem fundo:

VENDE­SE DUAS MÁQUINAS

INDUSTRIAL E

COSTUREIRA ACEITA­SE ENCOMENDAS

CONSERTOS DE BOLSAS EM GERAL

Fig. 15: Entrada do atel iê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Sa lvador – BA. Foto de arquivo pessoal , 2012.

No fim do corredor vejo uma mulher séria sentada em frente a uma

máquina de costura. A desculpa se apresenta: “quero comprar uma

máquina de costura”, parece funcionar. Percebo então que sem a

desculpa não poderia estar ali, porque não tenho a permissão de

ultrapassar essa fronteira, de conversar com aquela mulher. A

desculpa me deixa entrar, depois dela a conversa toma outros rumos.

A me abre as portas da Baixa dos Sapateiros.

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Fig. 16: Misterioso corredor de entrada do atel iê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal , 2012.

Desalinhavo#5

“Na Baixa do Sapateiro”, música de Ary Barroso

Na Baixa do Sapateiro eu encontrei um dia

A morena mais frajola da Bahia

Pedi­lhe um beijo, não deu

Um abraço, sorriu

Pedi­lhe a mão, não quis dar, fugiu

Bahia, terra da felicidade

[...] Ô Bahia

Bahia que não me sai do pensamento...

Para seguir esta pista vá para a página 94. Ou

procure escutar a canção de Ary Barroso.

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A brecha se apresenta em forma de placa, indicando um caminho escuro por

um pequeno corredor onde, no fundo, se encontra a luz: a . A associação

feita para chegar ao impulso da desculpa passa pela memória e pela tática. Para se usar

da tática tem‐se “constantemente que jogar com os acontecimentos para os

transformar em ‘ocasiões’” (CERTEAU, 1994, p. 46), jogo este que não pretende

configurar um “discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’”

(CERTEAU, 1994, p.46).

É a partir de então que passamos a frequentar esse trecho da Avenida J. J. Seabra

algumas vezes por semana, com a desculpa de visitar a e conhecer

seu trabalho e seu dia‐a‐dia. Todos os dias, antes de chegar ao ateliê de nossa álibi,

passamos pelas lojas de roupas usadas para descobrir qualquer novidade e levamos

conosco um pequeno caderno para anotações e uma câmera fotográfica analógica35

para registrar eventuais situações.

Peço para passar algumas tardes com ela durante um tempo, para vê‐la

trabalhar, aprender com ela. Conto que faço um trabalho nessa região

para a faculdade, uma pesquisa de campo. Ela parece não se importar, o

que a interessa é ter minha companhia, alguém para conversar. Não me

pergunta nada sobre a pesquisa, mas conversamos sobre igreja, televisão

e o pé de Araxá na casa dela.

Desta vez decido conversar com o , contar que estou fazendo

uma investigação sobre a roupa usada e pedir para ficar ali convivendo

com ele durante alguns dias. Sua esposa está na loja, mas ele não.

Converso primeiro com ela, conto meu interesse sobre a roupa usada,

35 A escolha pelo sistema analógico se dá exatamente pelo tempo de maturação deste material.

Só se vai rever a fotografia muito tempo depois do momento fotografado, o que traz novas reflexões e reaviva certas memórias. É o tempo de deglutição da antropofagia. Um registro lento e que possibil ita diferentes ponderações sobre o momento.

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aqui a desculpa é a própria investigação, a Universidade, as

orientadoras, a bolsa Capes. O chega no meio da conversa, volto

ao início e lhe conto a mesma coisa que contei à sua esposa. Ele me olha

com ares de dúvida e me diz que pode me contar tudo: preços, como

chegam e como saem as roupas, como separam, quem traz, quem leva,

quem compra. Eu lhe digo que isso tudo me interessa, mas me interessa

mais estar ali, convivendo com eles, vendo o trabalho que eles fazem

diariamente e é então que sua esposa me ajuda a definir a pesquisa e

resume em uma pequena frase tudo que eu mesma queria dizer: “ela

quer conhecer o dia‐a‐dia da roupa usada”. É isso! Quero conhecer o dia‐

a‐dia desse resto urbano que se reinventa através das mãos desses

trabalhadores. O se dispõe a me ajudar.

Qual a diferença de se estar em campo com a certeza da desculpa? Que

segurança ela pode trazer à pesquisa? Vivemos situações diferentes nos dois bairros:

um é bastante central e, por isso, parece comum que alguém passe por ali todos os dias,

mesmo que sem se relacionar com ninguém, ao contrário, ficar parado ali poderia

parecer estranho para os trabalhadores e moradores locais. O outro bairro, periférico,

não é passagem comum para pedestres e qualquer pessoa desconhecida que passe por

ali é notada e, possivelmente, corre riscos. Ter aliados, os protetores de nosso portal de

entrada aos bairros, nos garantem a segurança da pesquisa e a possibilidade de seguir a

diante e conhecer outros personagens participantes dessa trama.

os aliados

Estamos agora seguros ao lado de nossos personagens. É preciso então explica‐

los. A , o e o , principais agenciadores dessa trama,

podem ser a costureira de qualquer bairro, o catador de qualquer rua, o rueiro da praça

de qualquer cidade. Eles são o nosso encontro com os restos urbanos, eles são os

principais agentes dessa trama complexa, são a profusão de acontecimentos do fazer

campo, que não necessariamente aconteceram do nosso contato com um único sujeito.

Enquanto acontecimento e sensação, esses personagens podem ocorrer em qualquer

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sujeito que esteja imbricado na rede dessa suposta “cidade resto”. São

personagens criados para traduzir e levantar questões, conceitos, “afectos”. A

, como a de Balzac (veja desalinhavo#2, na página 26 desta dissertação),

costura de forma a modificar o entorno, a desviar das imposições do sistema, do poder

hegemônico, porém com o propósito de sobreviver e resistir na cidade. Costura para

contar histórias de livros revolucionários ou para fazer sua própria história

revolucionária. O separa o que são para ele pequenos tesouros que a cidade

deixou de lado, como o trapeiro, ou como os próprios Catadores de Vardá (ver

desalinhavo#4, na página 34 desta dissertação), que veem nos restos uma possibilidade

de recomeço, desvio ou construção de uma outra forma de estar na cidade.

fardo de miudezas ou

o “dia‐a‐dia da roupa usada”

Ele termina de colar um coturno, se levanta e me chama para entrar. Vai

explicando cada monte de roupa já separada e dobrada. Calças sociais de

primeira, calças sociais de segunda, camisas masculinas, lençóis, roupas

femininas, ‘fardo de miudezas’. Ele me explica que as roupas de primeira

ele vende mais caro, geralmente para lojas, as de segunda ele vende mais

barato e até onde sabe são roupas usadas por trabalhadores de lavoura.

As roupas de segunda tem bastante aceitação também no Paraguai. As

camisas masculinas tem boa saída e geralmente são vendidas em um saco

que vai metade calça social, metade camisa. Mas as camisas brancas

geralmente saem bem pouco, pouca gente quer. As roupas femininas

também saem menos e geralmente vão organizadas em um ‘fardo misto’

que leva 300 peças e custa R$100, também podem ser classificadas como

de primeira ou de segunda. O ‘fardo das miudezas’ é um saco menor que

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é cheio de peças miúdas: roupas de bebe, meias, roupa intima. Esses

fardos não tem quantidade de peça certa, o preço é dado no fardo cheio,

‘socado’ como diz o .

Esta catação de trapos, acontecimentos fragmentados pela memória e

configurados em ficção é como o fardo de miudezas do Pequenos fatos

(meias, sutiãs, cuecas) ‘socados’ em um saco que, quando aberto, é desencadeador de

surpresas e desterritorializações. Não se sabe que peça será tirada do fardo, não se sabe

a cor, o estado de conservação, a matéria prima, o valor comercial. Mas cada peça traz

consigo uma história, um possível desencadear da memória, um possível “acaso”, um

puxar de fios.

Desalinhavo#6

Receita de moqueca de peixe, feijão de leite e peixe

frito. Presente da Costureirinha para nós, escrita por

sua sobrinha.

Para seguir esta pista, compre os ingredientes e vá para a cozinha. Ou siga para a página 103 dessa dissertação.

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A está encurtando algumas calças jeans, transformando‐

as em bermudas.

‐ Nossa, mas essas calças são novas, não são? Porque te pediram para

fazer isso?

‐ Aqui faz muito calor, eles compram essas calças baratas e vale a pena

pra eles me pedirem pra reformar. Assim vende mais. Eu faço um preço

pelo pacote e fica bom pra eles.

Pergunto ao qual é o preço de uma bota de couro marrom. Ela

está praticamente nova. Ele me olha com certa desconfiança e me

responde:

‐ Essa bota é boa, por isso é mais cara. Tá conservada. Custa R$2,50.

No solado e na palmilha da bota posso ler sua marca, que provavelmente

ele desconhece. Essa mesma bota deve custar em torno de R$300,00 na

loja oficial. Compro‐a.

Chego e encontro a remendando e colocando etiquetas

de diferentes marcas nas roupas usadas que são vendidas na loja ao lado.

A está colocando zíperes novos e trocando cursores de

zíperes de mochilas da loja de bolsas chinesas da rua. Muitas delas já

chegam na loja quebradas, outras estouram na primeira vez que são

abertas.

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Fig. 17 e 18: Loca l de trabalho da Costureirinha e ela mostrando um de seus muitos truques: a tesoura imantada que atra i a l finetes , em Sa lvador / BA. Fotos de arquivo pessoal , 2012.

Fig. 19: Corredor do atel iê da Costureirinha cheio de bolsas e mochi las consertadas por ela , em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal , 2012.

As ações executadas pela e pelo passam pela

necessidade de estar na cidade, é preciso resistir e sobreviver diariamente, para isso

aprendem, apreendem, desenvolvem e se utilizam de táticas e truques. Através do

trabalho, do remendo, do uso de retalhos e da invenção de uma nova categoria de

objeto essa maneira de estar na cidade vai contra o caminho normatizado do trabalho

formal.

Se a vida urbana impõe a pergunta: “que possibilidades restam de criar laço, de

tecer um território existencial e subjetivo na contramão da serialização e das

reterritorializações propostas a cada minuto pela economia material e imaterial atual”

(PELBART, 2003, p. 22), o Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros com seus sujeitos

agentes, aqui trazidos enquanto personagens, exibem sorrateiramente uma resposta, e

é essa própria trama de cidade resto uma das possibilidades,

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“em que o desperdício, longe de figurar como resíduo irracional, recebe uma função positiva, substituindo a utilidade racional numa funcionalidade social superior e se revela, no limite, como a função essencial – tornando‐se o aumento da despesa, o supérfluo, a inutilidade ritual do “gasto para nada”, o lugar de produção de valores, das diferenças e do sentido – tanto no plano individual como no plano social”. (BAUDRILLARD, 2008, p. 40)

Estes espaços e corpos resistem, resistem por serem resto? Muitas vezes

aparentam ser como um morador de rua: estão em ruínas, escondidos por uma parede

social e invisível, são homens lentos, errantes, em farrapos, vagabundos36. Habitam uma

beirada e configuram sua existência em outro tempo, que não o fugaz e efêmero da

cidade hegemônica. Há tempo para olhar, esperar, analisar, investigar e catalogar. Ali

onde as regras são ditadas mais vezes pela sobrevivência que por outros fatores

de natureza mais normativa, essas roupas resto são então objetos desterritorializados e

desviantes, pois instigam outros universos de referência, estão permeando o sistema,

quase invisíveis, mas com muita potência. Micro potência.

O que está em voga é o desvio, pois quando a roupa, o espaço e o corpo são

resto, as regras que se configurem enquanto macropolítica nem sempre são seguidas.

Por isso ao perguntar ao sobre o preço da bota ele categoriza‐a como “boa” e

por isso justifica seu alto preço de R$2,50, não sabendo ele, que a mesma bota, no

shopping mais próximo deve custar em torno de R$300,00, devido à marca que leva

impressa em seu solado. Da mesma forma, em Salvador, a é contratada

pelo dono da loja de roupas usadas para costurar etiquetas nas roupas na tentativa de

referenciá‐las como novas ou importantes dentro da lógica capitalista, o dono da loja

subverte e boicota o sistema, se inserindo nele, de uma maneira quase contraditória.

Tudo é reapropriado e ressignificado rapidamente. O mesmo se dá quando alguém

decide vestir uma roupa que era resto, pois ao vesti‐la deve adaptá‐la ao corpo, agir de

improviso usando os recursos que estiverem à mão; assim, estará de alguma forma indo

contra os padrões estabelecidos pelo sistema, provocando os olhos alheios pelas ruas

36 Termos util izados respectivamente por Milton Santos, Paola Berenstein Jacques, Flávio de Carvalho e

João do Rio para falar de homens e mulheres que vagueiam pela cidade sem compromisso com a velocidade e as imposições da contemporaneidade.

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da cidade e possibilitando que a partir de seu improviso criado aconteça o

estranhamento e, consequentemente, o desvio. O espaço­roupa vai se

apresentando para nós em todas estas situações: é fazer corpo, fazer vestimenta e fazer

cidade, acontece em diversas camadas. Assim como pensado por Hundertwasser, várias

peles se sobrepõe neste nosso conceito, peles do espaço­roupa resto.

Reformulação dos desejos, inversão de valores, possibilidade de resistência,

invisibilidade, desvio, ressignificação. Micro fatores que funcionam para despistar a

cidade como sistema capitalista, de macro acontecimentos. O que incide entre Parque

Novo Mundo e Baixa dos Sapateiros é uma sorrateira ação micropolítica, mesmo que

não consciente, uma ação de “microcombate” ao hegemônico, ao pré‐estabelecido. É a

construção de outros modos de existir na cidade.

Ele me mostra um dos sacos que chegaram hoje com roupas novas, ainda

dentro do saco transparente da loja, com etiqueta de preço e tudo. Vejo

uma blusa feminina: R$27.

Fig. 20 e 21: O Catador mostra peça de roupa a inda sem uso e etiquetada, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013.

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Eu pergunto se ele usa as roupas que aparecem ali, ele me diz que sim,

que sempre aparece roupa boa e ele pega pra usar. Tem muita roupa que

chega nova e ele pega. Começa a contar que tem gente que tem medo de

usar roupa usada (se diverte com isso, ri) porque pensa que a pessoa que

era dona da roupa já morreu. Ele ri e diz que temos que ter medo de gente

viva, gente morta não faz mal pra ninguém. A única coisa é que tem que

lavar a roupa direitinho, porque vai que a pessoa tinha uma doença

transmissível? Aí é só lavar e passar bem e pronto, pode usar.

Ajudo o a arrumar algumas roupas. Uma das funções é olhar

dentro dos bolsos. Em um deles encontro um pequeno papel que parece

um ingresso para museu de algum país do oriente. Mostro o papel para

ele com surpresa, ele não se importa tanto com a descoberta, pergunto

então se ele encontra muita coisa nos bolsos, ele conta que antes

encontravam mais, mas que ele próprio nunca encontrou muita coisa,

que um parente já encontrou uma joia que vendeu por 3 mil reais. Ele

acha que agora as próprias instituições já olham os bolsos, a roupa passa

por muitas mãos antes de chegar ali.

Fig. 22: Em frente à loja do Catador roupas são jogadas na calçada para serem recolhidas pelo Rueiro ou pelo caminhão de l ixo da Prefeitura, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013.

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vão‐se os dedos, ficam os anéis

Qual seria, afinal, a lógica dessa relação que se constrói diariamente com os

objetos? O desapego, o desconhecimento de seus processos e origens, a carga

sentimental que depositamos sobre eles. As coisas carregam em si camadas e camadas

de acontecimentos, que persistem desde o início de sua existência ou até mesmo antes

de se tornarem matéria, quando ainda eram apenas ideias.

Depois de serem separadas pelas mãos de gente como o , o que seria

resto é revertido e mandado de volta para ser comercializado e reutilizado. O ,

o motorista do caminhão, o lojista ou o trabalhador que recebe as roupas, a

, o futuro usuário, o figurinista e os atores do filme que usarão o

figurino, o que pegou na rua as roupas que o considerou ruins a roupa

e os corpos formam uma rede de relações. A roupa é um objeto que traça caminhos, é

levada pelo corpo, mas também o leva. Porque “a roupa é capaz de carregar o corpo

ausente, a memória (...)” (STALYBRASS, 2008, p.26, grifo nosso) (não só ela, mas o mapa,

a cartografia, a dissertação e até mesmo a cidade) A roupa vai alinhavando e

desalinhavando territórios através de pessoas. Territorializa o espaço‐roupa que, por

sua vez, territorializa os espaços das cidades. É através da roupa, dos corpos e espaços

com os quais ela interage, sendo vestida ou não, que uma série de tramas urbanas se

revelam, ou o avesso delas.

E é passeando por essas tramas, tocando as roupas, vestindo‐as ou colocando as

mãos em seus bolsos, encontrando vestígios e pistas do passado que se pode tocar a

memória da matéria, imaginar a história da roupa e dos corpos que já passaram por ela.

As roupas (ou as coisas) são também uma forma de memória (STALYBRASS, 2008). Peter

Stalybrass, em seu livro O casaco de Marx: roupas, memória, dor, fala sobre a

experiência de vestir o casaco de um velho amigo que faleceu:

“Eu vesti a jaqueta de Allon. Não importa quão gasta estivesse, e la sobreviveu àqueles que a vestiram e, espero, sobreviverá a mim. Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meia‐verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem” (STALYBRASS, 2008, p.10).

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Esse é, segundo ele, o “terror do traço material”, essa capacidade da matéria de

carregar em si estes extratos da existência. Essa capacidade de ser, ela mesma,

memória. Memória que carrega os traços de quem lidou com ela.

Desalinhavo#sem número (ou ‘escolhe‐se não categorizar a morte’)

Há um momento em que o desvio e o burlar diário

não são suficientes para garantir a sobrevivência na

cidade. A Costureirinha adoece. Tem o corpo mais

magro, a barriga inchada e não consegue se

alimentar. Ela vai ao pronto socorro, nós a

acompanhamos. Vamos de ônibus e ao desembarcar

temos que andar uma certa distância, pela qual a

pede nosso braço como apoio.

Chegamos ao pronto socorro e as portas estão

fechadas, um guarda informa que o hospital está

em reforma e não está fazendo atendimentos de

urgência. Indica outro pronto socorro pertencente

a um posto de saúde distante umas duas quadras

dali. A se sente fraca e quer

desistir, mas insistimos e seguimos a diante.

Chegando ao outro pronto socorro há uma fila de

aproximadamente 30 pessoas que esperam da maneira

que podem, sentadas nas poucas cadeiras da sala

de espera, em pé, sentadas no chão ou na sarjeta

do lado de fora. As que sentem ânsia, vomitam, as

que salivam, escarram. Uma situação

constrangedora em uma sala de espera pequena e

escura. Depois de uma espera de 3h a Costureirinha

é atendida.

________

Descobrimos que a Costureirinha está internada e

decidimos visitá­la para saber os detalhes da sua

situação. Ela está no Hospital do Subúrbio, um

hospital novo e bem equipado, porém muito

distante. Para chegar do centro da cidade é

necessário tomar dois ônibus e o trajeto leva

aproximadamente 2h. A Costureirinha está deitada

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em uma maca no corredor. Parece melhor, mas ainda

não consegue comer.

________

A Costureirinha não resiste.

Sai de cena.

________

Para seguir esta pista vá para a p. 90 dessa

dissertação.

Começa então a analisar ternos pretos, separa‐os e dobra‐os com muito

capricho. Olha dentro dos bolsos, coloca a calça dobrada ao meio dentro

do paletó e fecha os botões do paletó. Dobra os braços do paletó em ‘X’

e então o dobra ao meio. Antes de separar e dobrar as peças elas estão

amontoadas em uma grande caixa de madeira, as calças estão enfiadas

nas mangas de seu respectivo paletó.

O corpo de quem lida com a matéria, dos trabalhadores, está completamente

ligado a essa estratificação de acontecimentos sobreposta nos objetos. O do

Parque Novo Mundo, que separa, organiza e cataloga as roupas que antes eram resto é

como o trapeiro e, enquanto lida com os trapos, seu próprio corpo se estende a eles

e vira trapo. Da mesma forma, a da Baixa dos Sapateiros, ao remendar

e renovar os trapos têm seu corpo estendido à máquina, ao tecido e à roupa. Nossos

personagens trabalham com farrapos e assim se tornam o próprio farrapo? Lidando com

restos, estas profissões, corpos e finalmente essa cidade construída para além das

fronteiras formais poderiam ser também consideradas resto?

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o lugar e o tempo

Um bairro formado por ocupações irregulares bastante recentes e densas, o

outro com uma história antiga, a cada dia tem mais edifícios abandonados, ruindo.

Bairros bastante diferentes e com uma dinâmica cotidiana bastante parecida. A

convivência diária entre moradores e trabalhadores dá às duas localidades um ar

parecido, onde vizinhos de trabalho ou de moradia, compartem as necessidades e se

ajudam dentro do possível. É o tempo o fator crucial para a percepção dessa dinâmica.

É ele também o que propicia a existência da mesma. Costureirinha e Catador, por

exemplo, construíram amizades, parcerias e relações de vizinhança vivendo e

convivendo durante muitos anos nesses bairros.

De um lado um lugar que, por sobrar à beira da cidade, possibilitou a densa

ocupação de suas ruas com edificações irregulares; do outro, um lugar que sobrevive na

invisibilidade de suas ruínas, moradias abandonadas por diversos fatores. Seriam esses

bairros restos de uma cidade formal?

Quando ele chegou ali onde hoje é a R. dos Figos tinha uma lagoa onde

se jogava muito lixo, era como um lixão mesmo. Chegou e comprou um

barraco por mais ou menos R$4 mil. O barraco ficava em cima do lago e

era bem simples, construído com madeira e papelão. Depois de um

tempo ele mudou para um barraco melhor, com chão de cimento,

construído com Madeirit. Em 1980, ele comprou o terreno onde hoje é

sua loja e sua casa e em 1981 já tinha terminado de construir a casa e se

mudou, tudo com o dinheiro das roupas. Ele diz que ganhou muito

dinheiro com as roupas.

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A me conta que tem 65 anos e trabalha na Baixa dos

Sapateiros há pelo menos 50. Primeiro foi vendedora, depois ajudante

em um ateliê que trabalhava com couro, do outro lado da rua. O mesmo

ateliê se mudou para onde ela trabalha hoje, ali ela aprendeu algumas

coisas sobre costura, mas não trabalhou como costureira. Foi a morte de

seu patrão, que tinha como pai, que a possibilitou aprender a costurar

para permanecer ali. A família dele deixou o espaço e as máquinas para

que ela cuidasse e ela teve que aprender de tudo para ganhar a vida.

Costura desde sapatos até roupas delicadas, passando por mochilas,

barras de calças jeans, troca de zíperes e ajustes em geral. O que não sabe

fazer tenta mesmo assim. Improvisa. Pede ajuda aos vizinhos e à

sobrinha, que a ajuda com alguns ajustes mais delicados em casa.

Uma mulher sai da portinha que fica ao lado da loja e vem conversar com

o , ela pede dinheiro emprestado para colocar crédito no celular,

precisa de R$13, o diz que só tem R$10, que foi o que ele vendeu

no dia, mas empresta pra moça e diz pra ela pedir o resto do dinheiro

para outra mulher. Ela vai pedir. O me conta que ela é sua

inquilina e que paga tudo direitinho. Entrando naquele corredor ele tem

11 aluguéis, o que lhe rende 5mil reais por mês. Ele construiu vários

apartamentinhos no terreno para poder alugar.

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Desalinhavo#7

O me conta que existe um projeto para

demolir algumas casas naquela rua para fazer a

ligação direta do Viaduto Curuça com a Marginal

Tietê, cortando o bairro ao meio. Então, quem

comprar essas casas corre o risco de ter que sair

depois e a prefeitura paga mais ou menos R$5 mil

por andar. Sua vizinha, por exemplo, que poderia

vender a casa agora por 150 mil, ganharia da

prefeitura cerca de 15 mil reais sem indenização,

porque o terreno já é da prefeitura e a construção

irregular.

Para seguir esta pista vá para a página 97 dessa

dissertação.

Dentre as funções que ela me dá, encomendo o lanche ou a marmita para

o almoço, vou comprar botões na loja da Ladeira da Praça, busco mochilas

na loja do chinês, entrego as reformas já feitas e a acompanho no fim do

dia até o ponto de ônibus, quando no caminho, ela vai me apresentando

para os funcionários das lojas vizinhas:

‐ sua sobrinha?

‐ não, não, ela é minha amiga.

A vizinha veio tirar satisfação com a esposa do porque ela disse

para um amigo que ela estava pedindo 250 mil pela casa dela, mas ela

está pedindo 150. Depois da intriga resolvida, a esposa mostra uma

planta para ela pelo celular e ela diz que acha que tem uma planta dessas,

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vai até sua casa, que fica bem na frente da loja, para buscar a planta.

Enquanto isso a esposa me fala da vizinha, que ela sabe que dessa casa

não sai escritura, por isso não pode vender mais caro (a casa tem 3

andares e está completamente reformada, com varanda e porta

comercial de aço no térreo). Porque ali as únicas casas que tem escritura

são as casas “de Cohab” que ficam “pra lá da R. dos Figos”, porque ali foi

a prefeitura que construiu. O resto é ocupação irregular. A vizinha volta

com a planta e ambas vibram por ser a mesma. Trocam informações

sobre o cuidado da planta. A vizinha vai embora.

Fig. 23 e 24: Loca l de trabalho da Costureirinha na Ba ixa dos Sapateiros , em Sa lvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2013.

o e suas múltiplas facetas

O , em sua existência ambulante, se desdobra em múltiplas facetas que

vão se revelando a depender da necessidade momentânea de seu estar na cidade. O seu

corpo resto, que caminha pelas brechas e beiradas da cidade formal redesenhado pelas

próprias ruas, nos aparece algumas vezes, sempre transformado. Como numa

brincadeira sobre sua própria vida, ele troca de máscaras a todo o tempo, desvia, se

esconde em suas próprias aparições. É como se ele se configurasse enquanto múltiplos

espectros dos quais, mesmo os olhos mais atentos, poderiam duvidar. É ele mesmo a

imagem do “ficcionar”.

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Enquanto conversamos chega um e pede uma calça. O

fala que não tem, que já conhece ele e que ele pede ali todo dia, que não

vai dar nada. O insiste e ele continua negando. Entra na loja e se

aproxima de mim procurando alguma coisa por traz, como se fosse pegar

algo e correr. Não faz isso. Pergunta pela última vez:

‐ não tem não, né?

‐ não rapaz, eu te conheço, não vou te dar nada.

Ele sai e vai pedir na loja da rua em frente. O me conta que o

pede roupas para trocar por droga.

‐ Pega a roupa e vai lá trocar por pedra. Conheço ele.

Logo um rapaz sai da portinha que fica ao lado da loja com um saco nas

mãos, entrega ao sem falar nada e vai embora. Ele deixa o saco

ali enquanto conversamos mais um pouco. Depois resolve abrir o saco e

me explicar:

‐ esse é o rapaz do quintal, ele morava na rua, agora ele mora ai atrás. Eu

comecei pedindo pra ele me dar 150 reais em roupas por mês, ele faz

direitinho e ainda ajuda a varrer, botar o lixo. Essas roupas as pessoas dão

pra ele e ele me vende em troca da moradia. Mas as roupas dele eu já

nem conto mais, ele traz e eu aceito. Ele come na casa dos outros, porque

ai não tem nem fogão. Eu acolhi ele da rua, sabe?

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Chega um com uma sacola na mão, o , sempre muito

direto:

‐ fala meu rapaz!

‐ bom dia.

‐ ah! Que bom que ele falou! Bom dia!

O tira da sacola uma colcha vermelha com escritos japoneses,

oferece ao e ele diz que paga R$3. Tira então outro tecido da

sacola. É um lençol de solteiro. O se adianta:

‐ dá R$5?

‐ olha! Já está por dentro dos preços, né? (para mim) Nesse aqui eu pago

R$2 porque é de solteiro.

O tira os R$5 da carteira para dar para ele, que tira do bolso duas

notas de 4 e uma moeda de 1 e coloca sobre o :

‐ tem nota de R$10?

O dá a nota e fica com os trocados.

O vai embora e o diz que com aquele dinheiro já “dá

duas pedras”. Segundo ele o é um usuário de crack e no ponto de

venda não se aceita moeda, por isso queria a nota de R$10. Assim que

eles conseguem algumas peças que dão R$5 eles correm pra vender.

‐ eu não tô vendendo droga, nem me drogando, tô fazendo meu trabalho.

Quer se matar, se mata.

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Caminho pelas ruas do Parque Novo Mundo, muitos montes de roupas

estão nas calçadas, os lançam das portas de suas garagens as

peças que não lhes interessa. O lixeiro passa e leva tudo. Os

continuam na mesma função mesmo depois do caminhão passar. Vejo

então alguns selecionando roupas e acessórios.

É ele que nos dá então essa clareza da percepção do resto enquanto moeda de

troca clandestina. Ao utilizar dessa matéria para financiar seu consumo de drogas ou

simplesmente para conseguir algum dinheiro, ele se alinha com o e com a

nessa possível categoria de agenciador do resto. Se antes ele se

apresentava enquanto usuário, explorador da matéria para vestir o próprio corpo, agora

faz às vezes de negociador, do que tem a necessidade de utilizar o resto para o seu

sobreviver dentro do sistema capitalista.

Suas ações de troca se caracterizam enquanto táticas de sobrevivência, ou

até mesmo táticas do consumo, o que para Certeau são “engenhosidades do fraco para

tirar partido do forte” (CERTEAU, 1994, p. 45). Tais artifícios são capazes, então, de

provocar uma certa “politização das práticas cotidianas” (CERTEAU, 1994, p. 45). Estas

práticas acontecem diariamente, de diversas formas, agenciando diversas situações,

porém, elas estão invisíveis diante dos olhos do poder hegemônico, pois tudo o que ele

contabiliza é “aquilo que é usado, não as maneiras de utilizá‐lo” (CERTEAU, 1994, p.98).

É por isso que, para Certeau, essas práticas cotidianas se tornam invisíveis, já que as

ferramentas utilizadas para “mapear” as ações cotidianas são do universo da codificação

e da estatística. Para ele, “a enquete estatística só encontra o homogêneo. Ela reproduz

o sistema ao qual pertence e deixa fora do seu campo a proliferação das histórias e

operações heterogêneas que compõe o patchwork do cotidiano” (1994, p.46). Em se

tratando dos restos, matéria que já nos parece bastante invisível diante da configuração

urbana que encontramos, essa negociação, de certo modo clandestina e de valores

diversos, acontece de forma bastante heterogênea. Os valores dados à matéria tem

parâmetros divergentes daqueles com os quais o poder hegemônico está acostumado a

tratar. Nesta economia da roupa usada, “as coisas adquirem vida própria, isto é, somos

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pagos não na moeda neutra do dinheiro, mas em material que é ricamente absorvente

de significado simbólico e no qual as memórias e as relações sociais são literalmente

corporificadas” (STALYBRASS, 2008, p.15). Neste caso, o tempo, a estratificação de

acontecimentos, o gosto e o afeto podem ser também fatores de influência na

negociação.

A me conta que só tem R$4,00 na carteira, que espera

que no dia seguinte o pagamento (aposentadoria?) caia, se não vai ficar

sem dinheiro. Estou pronta a oferecer alguma coisa quando um cliente

entra. Ele é muito simpático com a , parece ser cliente

antigo. Tira uma calça de dentro de uma sacola e pede para que ela faça

a barra na medida que ela sempre faz. Não prova a calça para que ela

meça. Diz que quer pagar adiantado (vibro por ela!), tira R$10,00 da

carteira e pergunta se o serviço ainda custa R$5,00 ou se subiu. Ela

reponde rápido que agora subiu para R$6,00. Ele paga, ela dá os R$4,00

que tinha. Esperta, varia o preço do serviço a depender dos trocos que

traz na carteira.

Ele me fala que as roupas que ele vende ali vão com transportadora e

levam nota de um imposto bem baixinho, já que, segundo ele, essas

roupas já tiveram seu imposto pago e o governo deve achar até bom que

se pague duas vezes pelo mesmo produto.

E a negociação acontece também enquanto tática, pois vai influenciar a

resistência do “fraco” para estar em seu lugar. Assim, a Costureirinha modifica o preço

de seu serviço devido a sua disponibilidade de troco e o Catador paga menos impostos

do que deveria para poder manter‐se trabalhando. “Em suma, a tática é a arte do fraco”

(CERTEAU, 1994, p.101), que se utiliza dela para continuar e persistir.

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É perpassando tais táticas, costuras diárias de resistência, que nossos

personagens insistem, desejam sobreviver na cidade através dos restos que agenciam e

parecem ser eles próprios. Permanecer em seu lugar ou em seu nomadismo37 é questão

de sobrevivência.

37 Ser nômade é não ter habitação fixa, viver frequentemente mudando de lugar. Mesmo depois da formação das cidades e das sociedades sedentárias, ainda existem sujeitos que vivem o nomadismo, como o , dentro do contexto de nossa pesquisa. Pode‐se ler mais sobre o nomadismo no espaço urbano em JACQUES, Paola. Elogio aos errantes: breve histórico das errâncias urbanas. Salvador: EDUFBA, 2012.

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capítulo III

COSTURAS:

QUANDO SE COLOCAM AS AGULHAS À PROVA

“Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito”

BARROS, Manoel de.

As coisas e os espaços parecem perder o mistério e o interesse a medida em que

os usamos. Os espaços sem gente parecem mais perfeitos, assemelhados ao seu projeto,

ao ideal desenhado por um sujeito. Ao ser ocupado, ao ter as paredes manchadas, o

piso desgastado, os móveis improvisados, os aparatos diários fora de seus lugares

certos, o espaço parece perder valor. As rachaduras nas paredes, golas puídas, as

manchas dos vazamentos e dos suores, a pele suja do asfalto, o bolso furado, o cinto

inventado, o ventilador empoeirado, a panela furada, as unhas sujas. “[...] Em meio à

avalanche de propósitos, à avareza minuciosa incrustada na fracção circular de cada dia”

(RAMOS, 2008, p.170), o desgaste, a poeira, o desuso e o tempo são elementos

perturbadores.

O uso, esse relacionar de corpo‐objeto, corpo‐espaço, corpo‐corpo, objeto‐

espaço, é o que define a cidade. A cidade resto é resto, portanto, pelo seu uso. É

esse lugar subjetivo da existência de objetos, pessoas e espaços que levam consigo o

peso de uma temporalidade que muitas vezes transgride o proposto ou imposto pela

vivência nas grandes cidades. Ela existe no vazio do interesse urbanístico hegemônico,

político e capitalístico e carrega em si o questionamento desse modo de existir nesses

espaços, o questionamento da própria existência e da vida enquanto ciclo. A cidade

resto sobrevive entre os interesses que regem o urbanismo e é também uma das

forças que age sobre ele. Existe dentro e fora dessa camada invisível que se instaura

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sobre todos os sujeitos e domina pensamentos e vontades, é às vezes agente dessa

camada, outras vezes infringe suas regras.

Os caminhos irregulares ou tortuosos, a falta de calçada, a cusparada dada no

chão ao lado do banco onde se senta diariamente, outra noção de higiene que não priva

o corpo de experiências necessárias, como separar roupas de pessoas completamente

desconhecidas, muitas vezes já mortas, ou revirar sacos de lixo na rua. E ao mesmo

tempo a transformação de sua existência na cidade resto em uma possibilidade de

transgredir esse viver, de acompanhar os desejos capitalísticos comuns, uma

possibilidade de, através dos agenciamentos que faz na cidade resto, poder

participar de um consumo pacificado, se inserindo de alguma forma na sociedade do

espetáculo (DEBORD, 1997) na qual o resto não é bem‐vindo. A cidade resto

possibilita a sobrevivência de sujeito resto de formas capitalísticas, assim, apesar de

usarem as roupas que separam ou costuram, os sujeitos agentes da cidade resto

que encontramos pelo caminho, consomem televisores de última geração, celulares

touch, câmeras fotográficas, assistem filmes da sessão da tarde e não leem livros, a não

ser a bíblia. Fazem de seu trabalho resto, a possibilidade de estarem inseridos na esfera

do pensamento hegemônico. É, portanto, um lugar transgressor, que carrega em si

valores outros que não os padronizados pelo pensamento hegemônico. Apesar disso, é

esse pensamento dominante que possibilita sua existência; e é essa existência que, por

sua vez, possibilita a sobrevivência de espaços, objetos e indivíduos “descartados”,

garantindo através deles a sobrevivência da própria cidade resto, a qual possibilita

à esses sujeitos, espaços e objetos uma certa participação renovada nesse lugar do que

predomina, nessa cidade formal, hegemônica, formatada para satisfazer as vontades de

um poder dominante. A constatação da existência dessa cidade resto é a

percepção da existência de muitas camadas porosas que compõe nossas cidades e de

um ciclo que não se encerra na transgressão nem na participação do hegemônico, é

contínuo e sem fronteiras delimitadoras.

Nesse sentido, o resto se configura, em meio a esse desejo de “não‐vida”

(RAMOS, 2008, p.160), de esterilidade do espaço e das coisas, de repetição simultânea,

enquanto um intervalo, “pequenas células de inutilidade ou de utilidade

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incompreensível” (RAMOS, 2008, p.170), capaz de trazer a memória à tona, tornando

sua própria sobrevivência única e singular, transformando o meio onde está e logo

sendo absorvido novamente pelo ciclo do qual faz parte.

Como o pão, que embolora aleatoriamente, em diversas partes de seu “corpo”,

sem ordem ou lógica perceptível, o resto vai se alojando e sobrevivendo dentro dos

limites desse hegemônico, e é o próprio hegemônico que embolorou. Não existe

delimitação ou corte entre esses retalhos, eles se tocam, são costurados lado a lado e

sobrepostos, suas tramas se confundem, se misturam.

Desalinhavo#8

“Manifesto do Mofo contra o racionalismo em

Arquitetura”, Hundertwasser (1958)

“Quando a ferrugem ataca a lâmina de barbear,

quando o mofo forma­se num muro, quando o musgo

nasce num canto e atenua os ângulos, nós

deveríamos nos alegar de que a vida microbiótica

entra na casa e nos damos conta que somos

testemunhas das mudanças arquitetônicas em que

temos muito a aprender. [...] Para salvar a

arquitetura funcionalista da ruína moral uma

substância corrosiva deveria ser jogada nos muros

de vidro e superfícies de concreto liso para

permitir ao mofo que se fixe sobre eles. É tempo

de que a indústria reconheça que a missão

fundamental é a produção do mofo criativo!”.

Para seguir essa pista continue lendo o Manifesto

no livro Hundertwasser Architecture: for a more

human architecture in harmony with nature.

Alemanha: Taschen, 1997. p. 46­48. Ou acesse

(traduzido) em:

http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresen

tacao.php?idVerbete=41&langVerbete=pt

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ferramentas e ofícios

As tesouras e agulhas da e de Margiela são ferramentas para

cortar, alinhavar, desalinhavar, alinhavar outra vez e, por fim, costurar uma roupa ou

um tecido que venha a se reconfigurar a partir dessas ações listadas acima. Como uma

cartografia em movimento, nas mãos desses costureiros, a roupa pode traçar diversos e

inúmeros caminhos, pode ser desfeita e refeita, costurada e descosturada, mas cada

decisão e movimento realizado neste processo pode deixar marcas sobre o material

costurado, marcas estas que afetam o todo da peça, que ferem o tecido, que ficam como

cicatrizes sobre a matéria. O urbanismo se faz ferramenta feito as tesouras e agulhas de

nossos aliados e é através do urbanista, de outros profissionais que pensam a cidade e

do Estado que se pronuncia sobre a cidade: cortando, alinhavando, desalinhavando,

alinhavando outra vez e, por fim, costurando.

Porém, ao pensarmos sobre o poder dessa ferramenta e o que ela possibilita a

quem a utiliza, encontramos outros fatores e camadas que podem vir a influenciar o

peso da mão de quem a emprega. Vemos como o grande desafio na gestão de nossas

cidades a sua ordenação “por parâmetros socialmente mais justos” (WHITAKER, 2014),

a necessidade urgente de modificar a “dinâmica segregadora de produção de cidade”

(WHITAKER, 2014) dentro da qual nos encontramos hoje. Em forma de projeto ou de

planejamento, o urbanismo no Brasil acontece a princípio e principalmente como forma

de controle de uso do solo urbano. A maneira segregadora de crescimento das grandes

cidades é resultado de um problema que, pode se dizer, se resume à falta de terra. Ou

melhor, a falta de terra com valor acessível. Esse problema, por sua vez, é resultado de

um conflito de interesses: “de um lado, a cidade, o espaço urbano da maioria e, de outro,

os interesses imobiliários” (VILLAÇA, 1995, p.50), turísticos ou comerciais, ou seja,

capitalísticos. Esses interesses divergentes acabam por fazer do urbanismo uma

ferramenta contraditória, já que, quando é utilizada, acaba sendo para “favorecer a

ordem atual das coisas” (WHITAKER, 2014). Assim, quem tem poder, seja ele financeiro

ou político, acaba impondo seus interesses para favorecer suas próprias necessidades.

Desse modo, se uma cidade já está dividida em zonas elitizadas e não elitizadas,

industriais e não industrias, de interesse social e de interesse do capital imobiliário, a

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tendência é que essas zonas sejam cada vez mais bem definidas e separadas, primeiro

pelo valor agregado a cada zona, possibilitando a moradia em certas áreas apenas para

quem “pode pagar”, depois pelos próprios interesses dos quais já falamos acima, que

parecem querer construir uma cidade ainda mais valorizada do ponto de vista

imobiliário. Nosso trajeto de campo nos possibilitou vivenciar essa segregação que

acontece tanto em São Paulo, pela valorização imobiliária de certos pontos da cidade,

quanto em Salvador, pelo mesmo motivo, mas somado aí um interesse turístico de

supervalorização de algumas áreas históricas ou privilegiadas pela natureza.

Assim, esses espaços produzidos pela racionalização do urbano, resultado desses

interesses dominadores, tem o intuito de manter separados elementos centrais e

marginais, ou seja, os espaços luminosos e opacos (SANTOS, 1997), os espetacularizados

e os invisíveis. Porém, como temos visto aqui, são as práticas ordinárias e cotidianas dos

sujeitos (SANTOS,1997; CERTEAU,1994) que possibilitam essa articulação não desejada

por esse urbanismo e, o tempo e a vivência dessas pessoas no espaço, dão a ele uma

outra atmosfera, construindo nele um sentido de lugar. Para Certeau (1994), o lugar só

passa a sê‐lo pela multiplicidade de pessoas e acontecimentos que o habitam e pelo

tempo que possibilita a segmentação de camadas de história e memória num espaço. A

articulação entre espaço e tempo nos parece ser a responsável por essa construção de

sentido.

Para entender essa produção de espaço urbano, voltamos a olhar para as roupas

e a costura e percebemos que o arremate da costura, seu ponto final, representa o

estágio no qual ela, aparentemente, persistirá. Porém, a roupa desafia os moldes em

que foi feita e até mesmo o sistema ao qual pertence e se modifica através do uso. Com

as cidades é a mesma coisa. Elas se apresentam como a água que se diz ser Manoel de

Barros no trecho que citamos no início do capítulo, escorrem pelos espaços que lhes

sobram e constroem seus próprios caminhos através do tempo e das intervenções de

uso dos sujeitos. Essas interligações entre a costura e esse urbanismo nos levam a

pensar sobre seus moldes, que passados pelos ares de um racionalismo modernista,

ligado a industrialização e ao capitalismo, se esforçam por padronizar corpos e espaços.

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O sistema da moda deseja facilitar e acelerar a produção, desenvolvendo modos

e moldes de padronizar tamanhos e cortes. O urbanismo tenta encontrar a fórmula

espacial perfeita para abrigar estes corpos padronizados, estabelecer limites e descobrir

maneiras de construir cidades coerentes com os modos de produção que se

desenvolveram, mais acelerados e ambiciosos, permitindo seu funcionamento sem

interrupções.

Atuando entre isso tudo, o espaço­roupa, principalmente em seu estado

resto, se mostra como potente possibilidade de desvio a esses moldes intrínsecos ao

sistema da moda, ao urbanismo e a outras diversas disciplinas com bases no

pensamento moderno. Ao abrigar corpos, o espaço­roupa é capaz de desconstruir

tendências de moda, transformar os modos de interação nas cidades, tensionar a

temporalidade imposta por elas e questionar suas regras se utilizando de ferramentas

próprias do sistema capitalista. Como já falamos acima, os espaços sem gente parecem

mais perfeitos, assemelhados ao seu projeto. Assim, o encontro do espaço com o

corpo, já é transgressão, pois sendo o corpo uma superfície que não tem padrões e varia

de sujeito a sujeito, tudo o que é projetado segundo generalizações deve ser adaptado,

principalmente se a matéria de construção do espaço­roupa é o resto.

Nesse sentido, qual seria o alcance desses moldes urbanistas nessa “cidade

resto”? Seriam capazes de atingir os micro acontecimentos percebidos e encontrados

através dessa pesquisa? E essa “cidade resto”, configurada através de uma

temporalidade mais lenta, como cabe e se adapta a esse urbanismo de tempo rápido,

de planejamento imponente e padronizado?

O tempo lento e antropofágico descoberto no decorrer desta pesquisa passa a

ser uma reflexão que deve ser considerada em diversos âmbitos e que, em nosso caso,

é uma brecha para pensar o urbanismo. Está claro que o tempo se apresenta para nós

enquanto uma questão de enorme importância. Levando em consideração algumas das

palavras‐chave trazidas nesse texto, entendemos que muitas delas dependem do tempo

para se configurarem de uma maneira ou outra. A sobrevivência, a memória, a

desculpa e a brecha só acontecem da maneira que propomos aqui devido a ação

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de um tempo que difere do tempo capitalístico (GUATTARI, 1985) e que, portanto, não

é linear nem cronológico. A memória se apresenta enquanto uma artimanha do tempo

para nos propor associações, acasos e descobertas, é construída em camadas móveis,

que se sobrepõe, se acumulam e comparecem aparentemente sem coerência. A

desculpa é sempre apresentada para que o tempo se estenda e que o jogo do fazer

campo tenha seu fim adiado. E a brecha nos parece ser um intervalo de tempo que

segue outra velocidade, um buraco que nos permite ver acontecimentos e coisas que

durante um tempo linear e rápido estariam invisíveis. Estas três pequenas palavras

estariam ligadas à sobrevivência, enquanto instância temporal e espacial de

continuidade. Sobreviver quer dizer de um corpo ou um fator subjetivo que persiste em

um lugar e um tempo, muitas vezes, como vimos em toda a pesquisa, a depender da

ajuda dessas pequenas palavras: memória, desculpa e brecha.

A “cidade resto” sobrevive feito vaga‐lume. Sendo o resto um estado de

matéria errático por não ter local delimitado ou fixo, é muitas vezes intocável e, por isso,

resistente. Se mostra a uma luz fraca, emanada de sua própria existência. E é esse

intervalo vazio, essa falta de intervenção e de vislumbre em meio às estruturas vigentes.

Sua sobrevivência, assim como a dos vaga‐lumes, está garantida por seu pequeno

lampejo, visto apenas em um certo momento do dia ou da noite, por sujeitos que devem

estar atentos às minúcias do momento. Didi‐Huberman, em seu livro Sobrevivência dos

vaga‐lumes, traz, através do cinema e dos escritos de Pier Paolo Pasolini, questões

bastante importantes sobre o domínio cultural e político na época do fascismo italiano.

Diante dos holofotes iluminados desse pensamento que se fez hegemônico e

persistente, a sobrevivência dos pequenos pirilampos, apesar de “fugaz e frágil”, se fazia

potente:

“[...] ainda era possível, nos tempos do fascismo histórico, resistir, ou

seja, iluminar a noite com alguns lampejos de pensamento, por

exemplo, relendo o Inferno de Dante, mas também descobrindo a

poesia dialetal ou simplesmente observando a dança dos vaga‐lumes

em Bolonha, em 1941” (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.28)

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Diante dos holofotes que iluminam amplas áreas das nossas grandes cidades, da

experiência de espaço e troca que nos é dada como única, baseada em moldes

modernos, arriscamos dizer que os restos são esses pequenos lampejos que,

diariamente, assombram nossos olhos com sua existência e, principalmente, com sua

capacidade de sobrevivência. A poeira, o mofo, o desgastado, o engordurado e tantas

das qualidades naturais do tempo que age sobre os objetos e corpos são definidas como

inaceitáveis dentro desses moldes iluminados do espetacular. Porém, é quando nos

deparamos com essas condições que, muitas vezes, somos atingidos pela reflexão de

nossa própria existência na cidade, porque vislumbrando o tempo que age sobre as

coisas temos a possibilidade de perceber o tempo da própria vida e nos encontramos,

por alguns instantes enquanto dentro desse pensamento, resistentes às imposições

desse poder político, midiático e mercadológico que muitas vezes nos toma por inteiro.

Assim como Didi‐Huberman, não podemos nos conformar com o desaparecimento dos

vaga‐lumes “na ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores: projetores dos mirantes,

dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão” (DIDI‐HUBERMAN,

2011, p.30), porque isso seria

“[...] agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a

máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não

ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço – seja ele intersticial,

intermitente, nômade, situado no improvável – das aberturas,

dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo”. DIDI‐

HUBERMAN, 2011, p.42)

O resto é para nós, “aquilo que aparece apesar de tudo” (DIDI‐HUBERMAN, 2011,

p.65) diante dos olhos atentos, enquanto uma pequena contemplação diária, feito vaga‐

lumes, e que revela um mundo.

Por isso, nossas reflexões feitas aqui sobre esse urbanismo dominado por

diversos interesses e baseado em moldes modernos nascem a partir do vivido, desse

fraco cintilar luminoso que os restos nos possibilitaram ver mesmo sob a ofuscante luz

desse cotidiano não inventivo. O urbanismo, assim como a moda e outras disciplinas

com bases na racionalização moderna, desejam transformar o tempo em algo acelerado,

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linear, controlado e estabilizado, produzindo subjetividade nesse sentido e não

prevendo nem desejando intervalos, brechas ou lentidão; afetando (de muitas

formas) a experiência cotidiana, a memória coletiva, a estratificação dos

acontecimentos e subjetividades dos diversos segmentos sociais. Esse pensamento, não

deseja conviver com surpresas, mas projeta para desenvolver espaços controlados e

normatizados. Em uma cidade fragmentada como Salvador, por exemplo, utilizar a

ferramenta do urbanismo na tentativa que construir um espaço totalitário e luminoso

pode ser, de certa forma, agressivo com seus moradores. Foi através da morte da

que nos deparamos com reflexões importantes neste sentido, na

descoberta de um urbanismo segregador, já que a morte é o retrato mais palpável do

tempo e nos faz pensar as condições da própria sobrevivência.

o clarão da morte

A morte apareceu no meio do caminho para mostrar que o descontrole do

campo e da vida é completo. Ela é um acontecimento que faz parte do trajeto da

pesquisa, do caminho trilhado por nós e que, surpreendentemente, nos esclarece

muitas coisas. Trazer à tona a morte de um personagem é uma escolha como todas as

outras. Aqui esse evento nos permite vislumbrar um universo de questões ainda não

discutidas, que estão envolvidas com o urbanismo e sua maneira de agir nas cidades.

A , moradora de um bairro periférico chamado Mussurunga,

todos os dias pegava duas conduções para chegar ao seu trabalho, um ateliê na Baixa

dos Sapateiros, área central da cidade de Salvador. Certo dia, já bastante doente, chegou

em casa, depois de pegar suas duas conduções diárias e achou que deveria chamar uma

ambulância. A ambulância veio, socorreu‐a e levou‐a para a internação. Devido aos

poucos leitos vagos e as condições ruins de muitos hospitais, a foi

levada ao Hospital do Subúrbio que é um ótimo e novo hospital, porém está do outro

lado da cidade em relação à casa dela e de seus familiares, que também moram em

Mussurunga.

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A foi morar em Mussurunga por ter se inscrito em um programa

habitacional da prefeitura, em meados da década de 1970. Havia um escritório na

Avenida Sete, no centro da cidade, onde a população podia se inscrever no programa

para ter sua casa no conjunto habitacional. A antes morava na Baixa

dos Sapateiros, de aluguel, a algumas quadras do trabalho. Logo que se mudou para

Mussurunga, a cidade se modificou para ela. O trajeto casa‐trabalho, que antes fazia a

pé, tomou outra dimensão: duas conduções diárias para ir e duas para voltar, o que lhe

tomava em torno de 4 ou 5 horas diárias. Próximo a sua casa, que tem um grande quintal

com árvores como Araxá, das quais ela tira frutas para o lanche da tarde, não havia

nenhum ponto de ônibus, por isso ela e os outros trabalhadores do bairro caminhavam

aproximadamente dois quilômetros até chegar ao lugar onde a condução passava. Com

os anos, a estrutura do bairro se modificou e por isso, de alguma forma, acabou se

aproximando do centro da cidade, o transporte chegou até mais perto, o comércio do

bairro se desenvolveu, escolas e hospitais foram sendo construídos38. Porém, mesmo

com o desenvolvimento do bairro, quando uma de suas moradoras necessita, ela precisa

ser internada no outro extremo da cidade.

Para facilitar a compreensão espacial do cotidiano da após sua

mudança para Mussurunga, achamos interessante mapear tais distâncias. A princípio a

melhor forma que encontramos foi utilizar um mapa, localizando os pontos principais

de seu convívio: sua casa e seu trabalho, bem como o hospital onde foi internada

quando doente. Logo percebemos que assim fazíamos uma abordagem segundo os

moldes desenvolvidos pelo urbanismo, já que uma de suas principais ferramentas é o

mapa, que distancia o observador da realidade da localidade, colocando seu olhar de

maneira verticalizada. Dessa forma, todo o nosso esforço para que os acontecimentos

emergissem do fazer campo através de fatores como tempo, convivência e memória, se

esvaiam ao localizarmos por pequenos pontos uma estrutura muito mais complexa de

vivência. Outro motivador de duvidarmos do mapa foi lembrar que a

nunca nos dava dados de distâncias espaciais, mas sempre temporais ou relativas à

38 Estas informações sobre o bairro de Mussurunga foram obtidas em conversa com a Costureirinha, em 2012.

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quantidade de ônibus que utilizava para realizar tais distâncias. Dessa forma, o mapa

que trazemos abaixo é aqui colocado para tensionar os modos de fazer de disciplinas

como o urbanismo.

Fig. 25: Lei tura das loca l idades da aos moldes urbanísticos, baseada em uma concepção espacial. Mapa reti rado do s i te: http://www.meuclub.net/wp‐content/uploads/2012/03/mapa‐de‐salvador‐veja‐aqui.jpg, com a l terações e marcações nossas .

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Ao nos depararmos com essa dúvida, e entendermos que uma atitude

cartográfica de outro tipo poderia se fazer muito mais coerente com nossa abordagem

teórica e conceitual, decidimos utilizar materiais e técnicas encontrados em nosso fazer

campo traduzindo as distâncias espaciais em distâncias temporais. A feitura da

cartografia com a técnica do bordado se faz também com a intenção de trazer o

questionamento sobre a velocidade com que se levantam diagnósticos e resultados

sobre a população e suas necessidades. Toda essa reflexão sobre o encontro do tempo

com o espaço e o que emerge disso resulta em algumas cartografias que serão

apresentadas ao longo do texto.

Fig. 26: Cartografia bordada da dimensão da cidade de Salvador para a Costureirinha baseada em sua concepção

temporal . Foto de acervo pessoal .

Munidos dessas ponderações, nos questionamos sobre o que deseja atingir esse

urbanismo que constrói conjuntos habitacionais distantes do centro da cidade, de uma

infraestrutura básica e do transporte, afastando as pessoas de suas realidades, sua

vizinhança e atingindo sua memória e sua produção de subjetividade.

Em nossas cartografias inventadas a partir da busca de pistas, percebemos algo

importante em nosso trajeto logo após a morte da . A reflexão mais

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pertinente que nos veio, caminhando pela Baixa dos Sapateiros foi principalmente sobre

a quantidade de edifícios em ruinas ou abandonados nas cercanias do Centro Histórico

de Salvador. Não é difícil chegar à pergunta que chegamos: porque escolas, hospitais e

moradias não são estruturadas nesses edifícios à espera? E estes edifícios estão à espera

de que? Serão estes espaços, espaços resto? Da mesma forma que nosso conceito de

espaço­roupa somente se mostra e se configura quando abriga um corpo ou é por

ele agenciado, as outras camadas, as outras peles de Hundertwasser, só acontecem em

relação ao corpo, à primeira pele, à epiderme. Nesse sentido falar de objetos e espaços

à espera é também falar do vazio. E vazio não somente pela falta de preenchimento,

mas também pela falta da relação da qual falamos acima: corpo‐objeto, corpo‐espaço,

corpo‐corpo, objeto‐espaço, relação tal que é um agenciamento social e político, o qual

só pode acontecer através de sujeitos. Esse vazio é onde sobrevive a cidade resto,

que muitas vezes é o vazio do interesse urbanístico hegemônico.

o mapa e o mapeado

“Mas os vaga‐lumes desapareceram nessa época de ditadura industrial e consumista em que cada um acaba se exibindo como se fosse uma mercadoria em sua vitrine, uma forma justamente de não aparecer. Uma forma de trocar a dignidade civil por um espetáculo indefinidamente comercializável”. (DIDI‐HUBERMAN, 2011, p.37)

Em junho de 2013, o então governador do estado da Bahia, Jaques Wagner,

assinou a ordem de serviço para o início de obras de requalificação da Baixa dos

Sapateiros. A obra, que foi orçada em R$13,8 milhões para a primeira fase e R$12,8 para

a segunda, visa, a princípio fazer uma “vala única, por onde passarão redes de

infraestrutura subterrâneas (energia elétrica, telefonia, operadoras de internet), a

pavimentação das vias, recuperação de praças e passeios” (CONDER, 2013), fazendo

melhorias na iluminação e limpeza pública. A ação pretende valorizar o comércio local e

preservar o patrimônio histórico, já que a Baixa dos Sapateiros também faz parte do

Centro Antigo da cidade e tem grande importância histórica. A segunda parte do projeto

almeja fazer melhorias nas fachadas dos antigos casarões, “serviços de limpeza, pintura

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e recuperação das coberturas da edificações, remoção de estruturas, revestimentos e

demolição de marquises” que, supostamente, “contribuem para a degradação da área”

(CONDER, 2013). O projeto prevê ainda a criação de uma praça a ser nomeada Ary

Barroso, em homenagem ao compositor de música popular que fez uma canção em

homenagem à Baixa. Além disso, o Governo do Estado vai reformar o prédio do Quartel

dos Bombeiros, que fica na esquina da Avenida J. J. Seabra com a Ladeira da Praça e o

Mercado de São Miguel. Para a Conder (Companhia de Desenvolvimento Urbano do

Estado da Bahia), responsável pelas obras, e o governador do estado, o novo aspecto

urbanístico a ser trazido para a Baixa, já atrai investimentos privados e vai melhorar as

vendas de todo o comércio local. Segundo reportagem da Tribuna da Bahia (2012), a

falta de infraestrutura, limpeza urbana, iluminação e o transporte público precário

fizeram com que muitos comerciantes deixassem o local onde, na década de 1990, ainda

tinha as ruas disputadas pelos transeuntes e consumidores principalmente perto de

datas festivas, como São João e Natal. Ainda segundo a mesma reportagem, a Baixa dos

Sapateiros gera cerca de 3 mil empregos diretos e 2 mil indiretos e há a preocupação

em mantê‐los. Além disso, outra grande preocupação que estimula a efetivação do

projeto é a J. J. Seabra ser “uma importante artéria do Centro Histórico, que pode servir

inclusive como entreposto durante a Copa do Mundo de 2014”, já que a avenida dá

acesso à Arena Fonte Nova, ao Pelourinho, à Praça da Sé e adjacências.

Todos os esforços demonstrados para olhar em direção a essa região não

parecem conseguir ver o potencial do que já existe ali.

Muitos projetos de revitalização do Centro Antigo e das cercanias do já

revitalizado Centro Histórico, mais conhecido como Pelourinho, tem sido divulgados,

propostos e inicializados nos últimos meses. Suas intenções são de melhorar a visão que

os próprios moradores da cidade e os turistas tem desses locais, estimulando o

crescimento do comércio e do turismo. Para isso, algumas desapropriações devem ser

feitas e algumas lojas, moradores, empresas e escritórios terão de deixar seus locais a

pedido da Conder. Na Avenida J. J. Seabra, por exemplo, segundo reportagem do Correio

24 Horas (2013), 27 imóveis serão esvaziados para que possam ser reformados. Segundo

Nilson Sarti, Presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado

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Imobiliário da Bahia (ADEMI‐BA), a “arrecadação desses imóveis é um grande benefício”

(2014) para a cidade de Salvador, já que a maioria deles estão “abandonados por falta

de pagamento dos tributos ou não cumprimento da função social”. Ainda segundo Sarti,

esses edifícios tendem a ser utilizados para a instalação de órgãos municipais que ainda

não tem sedes próprias, para a instituição de parcerias na utilização do espaço e para a

venda dos mesmos. “Ocupar uma região hoje abandonada é uma maneira de gerar

movimentação financeira e estímulo ao desenvolvimento do mercado imobiliário e do

setor de serviços local” (SARTI, 2014) e, principalmente, fazer crescer o valor do solo na

região, limitando o uso da área para aqueles “que podem pagar”.

Nesta “região abandonada” uma série de acontecimentos enchem as ruas todos

os dias. Os moradores das localidades próximas confiam a ida dos filhos à escola aos

amigos que trabalham nas lojas da Avenida; os lojistas, passam mais tempo ali do que

em suas próprias casas, dividem almoços, conversas e afetos; entre um ônibus e outro

que passa pela rua alguém grita de uma calçada para que do outro lado outra pessoa

continue a conversa. Ali, os trabalhadores das lojas vizinhas viam a Costureirinha chegar

e ir embora, o rapaz da padaria já sabia qual era o lanche diário dela e o morador da vila

de casas próxima ao seu ateliê confiava seu cágado aos cuidados dela. Na loja de roupas

usadas, onde alguns fiéis clientes passam pelo menos uma vez por semana, as

vendedoras dão conselhos de moda, de como vestir‐se bem para uma festa ou de que

sapato combinar com a roupa provada. Este trecho aparentemente abandonado está

apenas configurado, de certa forma, fora dos padrões desejados para que possa ser

considerado espetacularizado, para que possa atender os interesses de uma minoria.

Suas lojas de roupas baratas vindas da China, suas fachadas tradicionais escondidas por

letreiros e placas já gastos, os manequins que ocupam as ruas, os moradores de rua e

consumidores de crack que circulam por ali pedindo dinheiro ou alguma mercadoria:

tudo colabora para que, diante dos olhos do hegemônico, esse lugar seja resto. E resto,

apesar de sua capacidade de burlar regras e transgredir fronteiras, não tem lugar

pensado diante dos holofotes.

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Em nenhum momento as propostas citadas acima parecem privilegiar melhorias

habitacionais e de transporte ou a implementação de hospitais, pronto socorros e

escolas, iniciativas estas que poderiam fazer aumentar a frequência de pessoas no

bairro, principalmente se houvesse o estímulo da chegada de novos moradores na

região. Nesse caso, se as propostas não tocam nesses pontos e parecem apenas ter a

intenção de espetacularizar a área e privilegiar alguns, qual seria o propósito de

“revitalizar” um local que, nos parece, já tem vida?

O espaço­roupa, agenciado pela na Baixa dos Sapateiros se

faz interlocutor dos corpos dos sujeitos. É, portanto, um fazer corpo, fazer vestimenta e

fazer cidade. É ele o responsável pela vida que nos foi possível conhecer e vivenciar ali,

mas que existe de outras formas em todos os lugares. Ali o espaço­roupa era resto

ou vinha da China, em outros lugares é importado, de luxo ou sustentável. De qualquer

forma, quando o espaço­roupa está ativo e presente, existe para os sujeitos a

possibilidade de se transformar, socializar e dar vida a uma série de acontecimentos,

pois o simples ato de vestir uma roupa possibilita sua própria (re)invenção e, apesar de

parecer contraditório quando se pensa na produção em massa da indústria, potencializa

a possibilidade do sujeito de se singularizar.

Outra vez, a necessidade de cartografar o agenciamento desse espaço­roupa

pelas mãos da nos levam, como antes nos levou a necessidade de

dimensionar seus espaços, a pensar um modo de trazer as relações de nossa

personagem com os outros trabalhadores e espaços da Baixa dos Sapateiros e seus

arredores. Outra vez o bordado se apresentou como técnica mais coerente para tal

narrativa, a qual trazemos abaixo:

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Fig. 27: Cartografia bordada da Baixa dos Sapateiros a partir das relações da Costureirinha. Foto de arquivo pessoal .

em outro canto, o mesmo conto?

Cabe ao urbanismo ser ferramenta, instrumento a ser usado nesse fazer cidade.

Porém, como toda ferramenta, ele está a serviço de quem o carrega, a serviço da força

que rege sobre ele. Nesse sentido, de certa forma, o urbanismo corre o risco de ser ele

próprio o responsável por “engessar” o espaço urbano. Empunhado pelo poder dos

grandes investidores do mercado imobiliário, o urbanismo está a serviço de interesses

financeiros. Enquanto que a dinâmica da cidade, o quanto ela é para todos ou não, o

quanto ela é democrática ou não fica comprometida, levada a diante com preocupações

tão especificas que impossibilitam a visualização do espaço urbano como um todo.

Nas estreitas ruas do Parque Novo Mundo por onde circulamos, onde carros

passam lentamente e com cuidado por causa do pouco espaço, o tempo da cidade de

São Paulo parece parar, ou pelo menos desacelerar. No miolo do bairro, a vida acontece

nas ruas, entre vizinhos, nas trocas diárias e cotidianas. Porém, o bairro parece estar

como um obstáculo que dificulta a passagem dos carros que vêm do viaduto Curuçá para

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a Marginal Pinheiros. Pela Rua Queirós Veloso, os carros e caminhões passam um pouco

mais rápido, por ser a via de acesso principal, porém em relação a grandes vias

expressas, é ainda muito lenta e segue os padrões do bairro. Acontece que o ,

em uma conversa casual, nos contou que essa rua está visada para virar uma via

expressa que conduziria os carros da Vila Maria para a Marginal Pinheiros. Para que essa

via exista é preciso que um dos lados da rua seja desapropriado, demolido e asfaltado.

Tal projeto, que circula boca‐a‐boca pelo bairro, assusta alguns moradores que, como a

vizinha do , decidem se desfazer do imóvel onde vivem antes que tenham que

ser desapropriados, o que os daria bem menos retorno financeiro, já que, segundo ele,

o valor da indenização por desapropriação pagaria bem menos do que realmente vale o

imóvel. A via expressa que cortaria o bairro, cortaria também as relações já

estabelecidas ali e transformaria a área onde antes era uma lagoa, em uma espécie de

ilha de ocupações irregulares, porém atenderia as necessidades de grandes empresas

que almejam facilitar a saída de seus produtos da cidade de São Paulo.

Por outro lado, outros projetos também estão sendo planejados para a área,

através de um programa de urbanização de favelas chamado Renova SP, da Secretaria

Municipal de Habitação (SEHAB) de São Paulo. Segundo o diagnóstico desse projeto, a

área onde está o e seus espaços da roupa usada está dentro de um

perímetro chamado Jardim Japão e nos documentos do levantamento está nomeada

“Marconi Curuçá / Vila Maria III”, tendo como área de assentamento 18675m² e

comportando 700 domicílios. Metade dessa área está categorizada como “Favela” e a

outra metade como “Empreendimento”. Dentre as propostas do projeto em relação a

nossa área de maior interesse, está a “qualificação dos assentos habitacionais precários

através da inserção de áreas livres associadas à implantação de equipamentos públicos

de pequeno porte; novas conexões e percursos entre pontos e centralidades

identificados.” (SEHAB, 2012) Para a realização das propostas, o pequeno trecho de

bairro teria cerca de 140 remoções, ou seja, 20% dos domicílios.

Essas famílias retiradas provavelmente receberiam da Prefeitura o seguro

aluguel que, segundo o , vale mais ou menos R$500, até que conseguissem ser

privilegiadas por algum programa de habitação social do governo. Novamente algumas

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questões nos surgem. Imaginando para onde iriam tais famílias que vivem ali há pelo

menos alguns anos, não conseguimos encontrar algum local próximo ao bairro onde

pudessem alugar uma moradia em boas condições por esse valor, levando em conta o

suposto interesse em melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, já que as famílias

retiradas, imaginamos, devem ser compostas em média por, pelo menos, quatro

pessoas. Suponhamos então, que essas famílias logo consigam sua moradia própria

através de algum programa do governo. Nos perguntamos: onde estão sendo

construídas as habitações de interesse social para onde serão destinadas essas pessoas?

Quem serão seus futuros vizinhos? Onde comprarão pão, pegarão ônibus para ir ao

trabalho ou beberão cerveja no fim da tarde?

Essas relações sócio espaciais, muitas vezes desconsideradas pelos

levantamentos urbanísticos, emergiram de nosso fazer campo e a maneira cartográfica

que encontramos de apresenta‐las segue a baixo:

Fig. 28: Cartografia bordada do Parque Novo Mundo a partir das relações do Ca tador. Foto de arquivo pessoal .

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Nesse sentido, o espaço­roupa vem a ser um conceito que direciona nosso

olhar para outros tipos de acontecimentos na cidade, que ocorrem de forma espraiada,

pequena e nômade, possibilitando o exercício de olhar para o que também existe na

cidade além do que se pode ver à primeira vista. O espaço­roupa nos leva a enxergar

a cidade através de suas tramas e desvia nossos olhos do espetacular, surpreendendo

nossa percepção de cidade. A construção desse espaço se faz em relação ao corpo que

abriga e a seu entorno, a sua casa, ao bairro onde vive, as ruas pelas quais caminha. Por

isso o espaço­roupa do morador de rua é acinzentado, sujo, desgastado, por que se

constrói diariamente nas ruas. Por isso o espaço­roupa de um morador do Parque

Novo Mundo quando deslocado ou removido da área onde se configurou, sofre

alterações muitas vezes violentas. Ao servir aos interesses de uma minoria que tem o

poder em mãos, o urbanismo fica cego às necessidades reais da maioria da população

da cidade e ai é que sobram pelas beiradas trechos de cidade, sacos de roupas, grupos

de gente. Essas sobras, que em toda sua potência não se deixam vitimizar, se configuram

enquanto resto e driblam fronteiras e regras para sobreviver de alguma forma. O

urbanismo deixa escapar as sobras e, uma vez que permite isso, já não as pode alcançar

para inseri‐las nessa cidade que utopicamente deseja construir, uma cidade que seja

para todos por direito. Desse modo, o urbanismo que vem regido por esse poder

hegemônico, permite que um sujeito viaje 4 horas por dia em transporte público para

servir a alguém que mora ou tem sua empresa em localidades centrais ou elitizadas. Ao

servir ao capitalístico, esse fazer cidade cai em uma emboscada: perde entre seus limites

temporais, espaciais e sociais um tanto de matéria que poderia lhe servir na construção

dessa cidade.

Todo nosso trajeto de catação de conceitos, descobertas de pistas, encontro

com sujeitos que transformamos aqui em personagens conceituais, alinhavos,

desalinhavos e costuras nos fazem refletir sobre as condições das dinâmicas em locais

como Salvador ou São Paulo que, mesmo muito diferentes entre si, sofrem com as

mesmas questões que envolvem o urbanismo e a construção de cidade. Nas duas

cidades, conversando apenas com as pessoas dos bairros em questão, vivenciando seu

cotidiano, flagrando suas táticas de sobrevivência, experimentando um pouco de

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sua maneira de existir na cidade em relação ao espaço­roupa, percebemos que

questões muito maiores do que as que podem alcançar esses sujeitos é que controlam

a ferramenta do urbanismo. Questões maiores não em importância, mas em influência

e poder. Questões que privilegiam os interesses de poucos e com isso levam o

urbanismo a deturpar toda uma cidade.

O espaço­roupa resto se mostra para nós o tempo todo enquanto matéria

potencializadora do existir no espaço urbano, transgredindo a cidade resto e, até

mesmo, essa construção de cidade segregadora. Através das mãos de nossos

personagens conceituais, que nos ajudaram o tempo todo a encontrar o caminho dessa

pesquisa e de tantos outros sujeitos que poderiam ser inseridos nessa configuração da

cidade resto, entendemos a importância dessa micro resistência na cidade que, ao

infringir certas regras e desejos hegemônicos garante a sobrevivência de pequenos

vaga‐lumes que vagueiam ao anoitecer pelas ruas, deixando persistir a magia da vida

nas grandes cidades.

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O ARREMATE FINAL:

cidade resto ou resto de cidade?

“Se não formos capazes de enlouquecer o ocorrido – entendê‐lo como louco (não incompreensível, mas louco) –, de injetar variantes nele, mostra‐los sempre à beira do apagamento, sempre à borda de outra interpretação, se o que ficar de um fato não for a borra de múltiplos fatos possíveis, se o efetivo não prestar homenagem a tudo que não subiu à superfície, se não cantar o réquiem dos acontecimentos que morreram, as notas inaudíveis de seus berros, bem, então será melhor recitar alto, todos os dias, as manchetes que a gente lê nos jornais, porque isso vai se resumir a nossa vida.” (RAMOS, 2008, p.167)

Talvez ainda estejamos em processo. Um processo longo e lento em busca de

uma maneira de fazer cidade, urbanismo e roupa. Maneira essa que talvez dependa do

aprender a ver e sentir o espaço e sua temporalidade, que precise do olhar para o que

sobra por suas beiradas não como sobra, mas como parte desse todo fragmentado,

como possibilidade de existência, como uma outra maneira, diferente apenas, não

errada ou subversiva. Talvez ainda estejamos em busca de entender esse corpo que

habita o espaço e que o constrói e o modifica, em busca de perceber novas e velhas

necessidades que podem ser atendidas em prol da construção de um lugar mais

articulado e que preze pelo tempo da própria existência e da memória. Esse tempo que

é lento, como o tempo da vida, que fica visível quando se planta em uma horta ou se

vive do tempo da natureza. Talvez estejamos em uma crise de velocidade e na rapidez

em que andamos não damos brecha para que as coisas que estão à nossa volta emerjam

e nos mostrem as reais necessidades das cidades, dos corpos e da própria vida.

É como se houvesse na cidade espaços que sobram. Como terrenos baldios.

Lugares que restam mesmo não sendo vazios. Eles tem um motivo qualquer para

estarem ali. Especulação, esquecimento, abandono, descaso, desgaste ou simplesmente

falta de uso. A cidade resto existe às beiradas desse urbanismo orgânico (OLIVIERI,

2011) porque ele não deseja vê‐la, não pode alcançá‐la. Quando o faz, é ainda deixando

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rebarbas, refugos espalhados pelos cantos. O urbanismo, que guiado por mãos

poderosas, tenta construir uma cidade totalitária, acaba por fragmentar territórios,

segregar pessoas, deixa escapar pedaços.

Nesse caminho nos ocorreu diversas vezes acabar esse texto de outras formas

além da escrita, nos deu vontade de sair do papel, virar tecido, roupa. Deu vontade de

que a dissertação seguisse esse seu tempo antropofágico, ruminante, do deglutir do boi

que passa os dentes sobre o alimento muitas vezes antes de realmente engoli‐lo, em

outras plataformas. Ruminar. Essa palavra é o resumo desse processo todo. Um vai e

vem, um mastiga e engole e mastiga de novo. E esse processo todo, que se fez na

lentidão necessária para sua concretude nos fez refletir sobre o fazer roupa e as linhas

que possibilitam esse processo. Linhas não enquanto categorias, mas enquanto matéria

que costura, que junta retalhos, que dá nó, se emaranha, arrebenta e borda. Linhas que

são como as relações entre pessoas e espaços, que vão se embolando, entrecruzando,

cada qual continuando a ser ela mesma, mas em função da outra, amarrada nela, sendo

apoio ou dependendo dela. Costurar, esse ato milenar de construir o abrigo diário se

transforma diariamente e, o tempo lento que antes se abrigava nesta prática, vai se

distanciando dela. As costureiras recebem por quantidade de peças produzidas e isso

faz com que precisem aumentar a velocidade da produção. Os alfaiates, aqueles que se

encontravam em todo centro de cidade, vão virando uma lenda escondida entre as

camadas dos ternos industrializados vendidos a cada esquina. Mas apesar de toda

mudança estrutural, de velocidade e de valores, ainda persistem algumas mãos lentas.

Essas como a da Costureirinha, do Catador ou do Rueiro, que fazem a vida como se faz

o espaço­roupa: abrigo, fronteira, espaço e ainda pode ser outras coisas. Pode ser

potência política de transformação cotidiana, pode ser a possibilidade do sujeito de se

singularizar e de modificar seu modo de existir.

Esses fios encontrados através dessas mãos lentas e emaranhados,

configurações provisórias do se relacionar, foram nos dando as pistas, táticas de

pesquisa, para encontrar caminho por onde seguir. Como se um fio puxasse o outro,

essa pesquisa se fez em um tricotar conjunto, de muitas mãos, que guiaram a escrita em

busca do compreender desse espaço urbano por vias vestíveis e espaços têxteis. Não

falamos apenas de espacialidades, mas de tempo, como se um não pudesse existir sem

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o outro, já que não há construção de espaço sem estratificação de acontecimentos e

memória.

Pelas mãos do , do e da , personagens

conceituais extraídos de sujeitos encontrados por nosso caminho, encontramos os

restos, sua potência transformadora do cotidiano e algumas reflexões sobre uso da

ferramenta do urbanismo. Costurando essas reflexões aos conceitos do homem em

farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco

peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros

autores, do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg, chegamos ao encontro

da cidade resto, onde pudemos notar que, pelas mãos de diversos sujeitos e sua

maneira de inventar o cotidiano (CERTEAU, 1994), é possível tensionar os limites

impostos pelo poder e pensamento hegemônico.

Seguimos puxando os fios dessa costura tentacular e sem fim e descobrindo

diariamente potenciais transformadores da cidade que, mesmo sem formação ou

estudo, sabem como fazê‐lo, como construir algo em sua micro potência, dentro do raio

de seu alcance: uma cidade mais justa e aberta, quase sem fronteiras, cidade esta que

encontramos a cada porta aberta, café servido e história de família compartilhada

durante esse fazer campo. Cada um revolucionando sua existência e seu entorno dentro

da pequenez de sua capacidade política, de sua potência humana. Afinal, qual deve ser

o tamanho das ações que realmente vão transformar as cidades? Quem será que

empunha realmente a ferramenta do urbanismo?

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