Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE
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CIDADES SUSTENTÁVEIS e as fronteiras de risco e respeito
ao sistema socioambiental
de Fortaleza, CE
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
PABLO PIMENTEL PESSOA
Pessoa, Pablo Pimentel.
Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE /
Pablo Pimentel Pessoa; orientador Saulo Rodrigues Filho. Brasília,
2014.
146 p.
Dissertação de Mestrado. Centro de Desenvolvimento Sustentável,
Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2014.
É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta disser-
tação e empresar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e cientí-
¿FRV��2�DXWRU�UHVHUYD�RXWURV�GLUHLWRV�GH�SXEOLFDomR�H�QHQKXPD�SDUWH�GHVWD�GLVVHUWDomR�de mestrado pode ser reproduzida sem a autorização por escrito do autor.
Pablo Pimentel Pessoa
CIDADES SUSTENTÁVEIS e as fronteiras de risco e respeito
ao sistema socioambiental
de Fortaleza, CE
PABLO PIMENTEL PESSOA
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Dissertação de mestrado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentável
da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos necessários para obtenção do
Grau de Mestre em Desenvolvimento Sustentável, área de concentração em Política e
Gestão da Sustentabilidade.
Aprovado por:
Saulo Rodrigues Filho, Doutor, Universidade de Brasília
�2ULHQWDGRU�
Marcel Bursztyn, Doutor, Universidade de Brasília
�([DPLQDGRU�,QWHUQR�
2WWR�7ROHGR�5LEDV��'RXWRU�([DPLQDGRU�([WHUQR�
Brasília-DF, abril de 2014
A essa cidade moribunda
e ao pulso de vida baldia.
iv
AGRADECIMENTOS
Antes, aos gigantes de fundas pegadas que me precederam e ao vagalume da
ignorância, que nos permite, livres da vertigem e do medo de altura, cumprirmos com
a escalada de ombros. E, é claro, aos mirantes fabulosos que daí se nos apresentam;
Aos meus progenitores. Não porque me conceberam, mas porque estão, da-
quele dia até hoje, comprometidos e seguirão, eu sei, até os últimos dias envolvidos
nessa labuta alegre de mostrar a nós que a vida é coisa do maior quilate;
À minha irmã, o gigante lá de casa, que tá sempre à frente – desde quando o
mundo todo era um condomínio residencial no Parque Manibura –, abrindo caminho
na mata e segurando o carrasco pra não cravar meu couro de caçula;
Aos amigos todos. Ao Pedro e à Karina, minha segunda base e abrigo, sempre
que os ventos tempestuosos teimam em dar as caras. Ao Miyamoto e sua prole cigana,
FXMD�SDUWLGD�PXLWR�PH�LQVSLUD�D�LU�SRU�RQGH�RV�JRVWRV�DÀRUDP��$R�7XQLFR��FRPSDQKHLUR�
GH�DJUXUDV�H�HUUkQFLDV�TXH��VRPHQWH�RV�ORERV�VDEHPRV��QRV�IRUWDOHFHUDP�D�¿EUD��$R�
Pinto, pela guarida e desbrave de uma cidade inteira, por ser essa porta de transcen-
dência através do som e pelas canções todas a viajar. Ao Marcelo e à Lila, pelo nos-
so pequeno projeto quase diário de viver a cidade e cantarmos a alegria quando as
poeiras de faroeste tomaram as ruas e parte do meu peito. À Jade e à Ju Parente, à
&OiXGLD�H�j�7DWL��DR�&DLR�H�j�5D¿QKD��YDORURVRV��KiEHLV�H�QREUHV�DOTXLPLVWDV�GD�UHMX-
YHQHVFrQFLD�EHOFKLRULDQD�GR�PHX�VHU��$R�(ULF�H�j�0DUL��j�,DUD�H�DR�7K\DJR��SHOD�Ip�GH�
que ‘seja o que for desse trabalho, parece ser coisa boa’. À Luna pela muamba toda
que me trouxe de contrabando desse fantástico mundo dos sonhadores de cidades e
pela própria coisa do sonhar. Aos luchadores brechtianos e poetas daquilo que será:
7LWLOKD��-~OLR��3RWL��/LYLQKD��*HUPDQR�H�WRGRV�RV�HVWUDQKRV�IDPLOLDUHV�DFDPSDGRV�GR�
�2FXSH&RFy���2FXSHR$FTXiULR��j�3RQWH�9HOKD�H�D�WRGDV�DV�JHQWHV�H�FRLVDV�TXH�UH-
sistem. À Ju pela presença forte, companhia e apoio em quase todas as etapas disso
tudo, desde quando eu não passava de um ‘menino do interior’ desbravando a capitar
ao episódio dramático dos ataques covardes aos pés de minha porta. Aos biozarros e
¿JXUDV�LOXVWUHV�D¿QV��'HERUDK��6R¿D��+LOWRQ��,YDQ��/LOLDQ��0DOGHYDU��%UXQR��/LOD��&pOLR��
3ULVWLQD�H�7HOHV��D�PROHTXLFH�SDVWHO{QLFD�p�TXDOTXHU�FRLVD�LPSUHVVD�IXQGR�HP�WRGRV�
v
QyV��UHD¿UPDGD�DQR�D�DQR��¬�7KDO\��SHoD�FKDYH�QR�DWR�¿QDO�GHVWD�REUD��SRU�PH�OHP-
brar que ‘a hora do sim é o descuido do não’ e por segurar as pontas comigo quando
o objeto de estudo quis me abater;
À minha família recifense e seus mais novos raminhos, em especial pelo auxílio
luxuoso dos tios: César, Jesus e Mirna, com a leitura carinhosa dos artigos sob feitura;
Ao Ziggy, cão fênix, mi deber nerudiano de vivir, morir, vivir;
Ao pessoal do CDS. À minha turma e à turma irmã do doutorado, pelas con-
versas, permutas e pães de queijo. Brasília está pra saber como se faz um happy
hour, mas vocês foram massa ainda assim. Ao Alan, à Paula, à Andréia, ao Sérgio, ao
$QGUpV�H�j�'LDQD��SRU�PRPHQWRV�H�IRUoDV�GLYHUVDV��$R�SHVVRDO�GR�$OIUHGR¶V��2VPDU��
grande e incontestável achado desse mestrado, Babi, Sílvia, Ana, Michelle, Pati, Mar-
OD�H�0DUFRV��YRFr�VDEHP�YLYHU��9RX�FRQJHODU�FDGD�XP��PLQLDWXUL]DU�H�OHYDU�QR�EROVR�
DRQGH�HX�IRU��$R�/XL]�&OiXGLR�H�j�9HU{QLFD��SHODV�VHVV}HV�GH�/LEHUW\�0DOO�H�RXWUDV�
alegrias sutis. Aos verdadeiros mestres e pessoas admiráveis que encontrei nesse
FXUVR�SHUFXUVR��(OLPDU��0DXUtFLR��&ULVWRYDP��0DUFHO��'UXPPRQG��'RULV��0{QLFD��7KR-
mas, Frédéric, Ludivine, em especial, ao Saulo, porque me adotou como orientador
mesmo ciente do meu pensamento arredio e topou comigo esta difícil empreitada. Por
¿P��DR�7DLQi�H�j�/XGPLOD��j�5DL]D�H�DR�3DXOR��JUDQGHV�HVStULWRV��TXH�ID]HP�HVWD�VD-
ída da terra natal, sem dúvida alguma, ter valido à pena. Ao moleque-piranha, minha
mais nobre insígnia, porque não deve ter sido fácil me aguentar quase que em tempo
integral. A ti, que a vida te abra o olho esquerdo, toda a felicidade e incríveis novas
aventuras para nosotros.
vi
RESUMO
A partir da concepção de cidades como sistemas socioambientais complexos,
procurou-se discutir aspectos considerados menores ou secundários no tratamento
corrente das questões urbanas no contexto do desenvolvimento sustentável. Este tra-
balho foi estruturado sob três eixos abordados cada qual em um artigo independente.
2�SULPHLUR�FDStWXOR�WUDWD�GRV�HORV�HQYROYLGRV�QDV�UHODo}HV�GH�ULVFR�VRFLRDPELHQWDLV�urbanos, tomando como exemplo a modelagem diagramática das conexões causais
entre o problema recorrente das inundações urbanas nas cidades brasileiras e os pro-
cessos sociais de exploração do trabalho, especulação imobiliária e espoliação urba-
na na construção das situações de vulnerabilidade. A teoria de riscos aqui é utilizada
como instrumento de revelação da complexidade nos sistemas socioambientais e da
QHFHVVLGDGH�GH�FRQVLGHUDomR�GD�LQFHUWH]D�QDV�JHVW}HV�XUEDQDV�GLWDV�VXWHQWiYHLV��2�segundo capítulo tenta destrinchar os principais modelos de desenvolvimento urbano
sustentável e discuti-los à luz das principais questões relativas ao campo geral da
VXVWHQWDELOLGDGH��&RP�EDVH�QDV�YLUWXGHV�H�GH¿FLrQFLDV�GH�FDGD�FRUUHQWH��IRL�SURSRVWR�o conceito de fronteiras do respeito como princípio balizador da busca pela susten-
WDELOLGDGH� XUEDQD� HP� VHQWLGR� DPSOR��3RU� ¿P�� QR� WHUFHLUR� FDStWXOR�� WRPD�VH� R� FDVR�da cidade de Fortaleza e de seus processos históricos de consolidação e expansão
urbanas como porta de acesso ao mecanismo de produção das insustentabilidades
nos espaços urbanos dos países subdesenvolvidos. A disseminação epidêmica da
violência e a proliferação dos assentamentos informais, em um cenário de profunda
desigualdade social, são apresentados como sinais de ruptura da resiliência do siste-
ma socioambiental urbano e como parâmetros para a percepção do posicionamento
da cidade quanto às fronteiras de risco e respeito.
Palavras-chave: cidades sustentáveis; sustentabilidade urbana; riscos socioambien-
tais, fronteiras locais, Fortaleza.
vii
ABSTRACT
From the conception of cities as complex socio-environmental systems, this
work discuss aspects of urban crisis commonly treated as secondary issues in the
VXVWDLQDEOH�GHYHORSPHQW�FRQWH[W��7KHVH�DVSHFWV�ZHUH�H[SORUHG�LQ� LQGHSHQGHQW�DUWL-
FOHV��FRPSRVLQJ�D�WKUHH�FKDSWHUV�WKHVLV�VWUXFWXUH��7KH�¿UVW�FKDSWHU�DGUHVVHV�WKH�OLQNV�
involved in socio-environmental risk relations, using as example a diagramatic repre-
VHQWDWLRQ�RI�JHQHULF�EUDVLOLDQ�FLWLHV�XUEDQ�ÀRRGLQJ�SUREOHP�DQG� LWV�VRFLDO�SURFHVVHV�
causal linkages. Cindinics theoetical frame was used here as key instrument to access
urban complexity and to reveal the necessary regard of uncertainty in sustainable
XUEDQ�PDQDJHPHQW�GHFLVLRQ�PDNLQJ�SURFHVV��7KH�VHFRQG�FKDSWHU�FRYHUV�WKH�PDMRU�
urban sustainable development models confronting with the central debate topics re-
ODWHG�WR�VXVWDLQDEOH�JHQHUDO�¿HOG��%DVHG�RQ�VWUHQJWKV�DQG�ZHDNQHVVHV�RI�HDFK�PRGHO�
we establish the concept of respect boundaries as a guideline compass in the seeking
of sustainable city broad sense. Finally, in the third chapter, we analyze the case of
Fortaleza city, looking for actual unsustainabilities traits and its roots in the foundation
RI�WKH�FLW\�DQG�LWV�XUEDQ�VSUDZO�KLVWRULF�SURFHVV��7KH�HSLGHPLF�JURZWK�RI�XUEDQ�YLROHQ-
ce rates and the endless spread of informal settlements, specially of those exposed
to risk situations, are presented as evidence of alarming resilience disruption of urban
VRFLDO�HQYLURPHQWDO�V\VWHP��7KH�KLVWRULFDO�FRQVLGHUDWLRQ�RI�WKH�SUHVHQW�XUEDQ�FULVLV�RI�
brasilian cities may serve as evaluation parameters on how distant our metropolis are
from the desirable state suggested by the respect boundaries concept.
Keywords: sustainable cities; urban sustainability; socio-environmental risks, local
boundaries, Fortaleza.
viii
CAPÍTULO 1
Figura 1. Classes de riscos naturais de acordo com os recortes conceitu-
DLV�GH�9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������H�5HEHOR�������Figura 2. Elementos e variáveis envolvidas da produção social do risco de
inundação em um sistema urbano brasileiro genérico
)LJXUD����,QWHUUHODo}HV�GLUHWDV��FRQWtQXDV��H�LQYHUVDV��SRQWLOKDGDV��HQWUH�componentes de um sistema urbano brasileiro genérico
Figura 4. Áreas do conhecimento envolvidas da construção do risco de
LQXQGDomR�XUEDQR�LQGLFDGRUDV�GH�FRPSOH[LGDGH�ÀDJUDQWH)LJXUD����5HFRUWH��HP�D]XO��HYLGHQFLDQGR�R�HQTXDGUDPHQWR�WUDGLFLRQDO�GDV�inundações como riscos naturais
CAPÍTULO 2
Figura 1. Panorama do campo da sustentabilidade e subcampos. Adapta-
GR�GH�+RSZRRG�������Figura 2. Posicionamento de agentes e discursos no campo. Adaptado de
+RSZRRG�������4XDGUR���(FRQRPLD�FRPR�VXEVLVWHPD�GH�XP�VLVWHPD�7HUUD�IHFKDGRQuadro 2. Caracteres identitários dos principais modelos de desenvolvi-
mento urbano sustentável e posicionamentos sobre o campo da sustenta-
bilidade
)LJXUD����(L[R�GH�LUUXSomR�GR�XUEDQR��$GDSWDGR�GH�/HIHEYUH�������
CAPÍTULO 3
Figura 1. Quadro de honrarias, mural de notícias
)LJXUD����7D[D�GH�KRPLFtGLRV�HP�)RUWDOH]D������������)LJXUD����'DGRV�JHUDLV�GR�PXQLFtSLR�GH�)RUWDOH]DFigura 4. Divisão administrativa atual por bairros e secretarias executivas
Figura 5. Municípios cearenses com mais de 100 mil habitantes
)LJXUD����%DFLDV�H�VXE�EDFLDV�KLGURJUi¿FDV�GH�)RUWDOH]D)LJXUD����&RPSDUWLPHQWDomR�JHRPRUIROyJLFD�GR�VtWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D)LJXUD����6tWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D��D��0DSD�KLSVRPpWULFR���E��0DSD�GH�declividades
)LJXUD����6tWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D���D��6LVWHPDV�$PELHQWDLV���E��9XOQHUD-
bilidade Natural
)LJXUD�����3ULPHLUD�SODQWD�GD�9LOOD�1RYD�GD�)RUWDOH]D�GH�1RVVD�6HQKRUD�da Assumpssão da Capitania do Siará Grande, atribuída ao capitão-mor
0DQXHO�)UDQFrV��������D���H�SDUWH�GR�OLWRUDO�FHDUHQVH�QR�3HTXHQR�$WODV�GR�
p. 24
S���
S���
S���
S���
p.46
p.48
p.58
p.62
p.65
p.86
S���p.88
S���S���S���S���S���
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LISTA DE QUADROS E FIGURAS
ix
0DUDQKmR�H�*UmR�3DUi��GH�-RmR�7HL[HLUD�$OEHUQD]�,��������E��)LJXUD�����3ODQWD�GR�3RUWR�H�9LOOD�GD�)RUWDOH]D��GH�6LOYD�3DXOHW��������D���H3HUVSHFWR�GD�9LOOD�GD�)RUWDOH]D�GH�1RVVD�6HQKRUD�GD�$VVXPSVVmR�RX�3RUWR�GR�6LDUi��DWULEXtGR�D�)UDQFLVFR�$QW{QLR�0DUTXHV�*LUDOGHV��������E��)LJXUD�����3ODQWD�GR�3RUWR�H�GD�9LOOD�GH�)RUWDOH]D��GH�6LOYD�3DXOHW���������E��H��D��GHVHQKR�VLPSOL¿FDGR��FRP�LQGLFDo}HV�GH�HVWUDGDV��ULDFKRV�H�HGL-¿FDo}HV�)LJXUD�����3ODQWD�GD�&LGDGH�GH�)RUWDOH]D��GR�3DGUH�0DQRHO�GR�5rJR�GH�0HGHLURV��������D���H�3ODQWD�GD�&LGDGH�GH�)RUWDOH]D�H�6XE~UELRV��GH�$GRO-IR�+HUEVWHU��������E�)LJXUD�����3ODQWD�([DFWD�GD�&DSLWDO�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������D���H�3ODQWD�GD�&LGDGH�GD�)RUWDOH]D��FDSLWDO�GD�SURYtQFLD�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������E��Figura 15. Detalhes da Planta da Cidade da Fortaleza, capital da provín-
FLD�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������D��$VLOR�GD�0HQGLFLGDGH�H�5LDFKR�3DMH~���E��$UUDLDO�0RXUD�%UDVLO�H�5LDFKR�3DMH~�Figura 16. Abastecimento de água e esgotamento sanitário nos bairros de
Fortaleza
)LJXUD�����'RPLFtOLRV�FRP�EDQKHLURV�H�HQHUJLD�HOpWULFD�QRV�EDLUURV�GH�Fortaleza
Figura 18. Coleta de lixo e índice sintético de condições domiciliares nos
bairros de Fortaleza
)LJXUD�����,'+��FRQÀLWRV�GH�WHUULWRULDOLGDGH�H�WD[DV�GH�KRPLFtGLR�PDLV�H[-
pressivas nos bairros de Fortaleza
Figura 20. Rendimento pessoal e pobreza extrema nos bairros de Fortale-
za
p.104
p.105
p.106
S����
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S����
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x
APRESENTAÇÃO
NOTA INTRODUTÓRIA
CAPÍTULO 1. Desastres naturais de sinergia antrópica
1.1. Introdução: De limites a fronteiras
1.2. Sociedade e epistemologia dos riscos
�����7LSRV�GH�ULVFR��ULVFRV�XUEDQRV�H�D�QDWXUH]D�DPEtJXD�GDV�LQXQGDo}HV1.4. Relações de risco
�����,QXQGDo}HV��HVWUXWXUDQWHV�FOLPiWLFRV��¿VLRJUi¿FRV�H�VRFLRHFRQ{PLFRV�����&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV��(P�EXVFD�GD�UHVLOLrQFLD�GR�VLVWHPD�XUEDQR
CAPÍTULO 2. Cidades sustentáveis e as fronteiras do respeito
2.1. Introdução: Dos maus negócios
2.2. Sustentabilidade: Um campo cambiante
�����$ERUGDJHQV�GH�GHVHQYROYLPHQWR�XUEDQR�VXVWHQWiYHO2.4. Cidades e paisagens: ruptura e reconciliação
�����&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV
CAPÍTULO 3. Cidade de Fortaleza: insinuações de risco e respeito
�����,QWURGXomR��1mR�p�SRVVtYHO�WHQWDU�R�SQHXPRWyUD["�����&RQVLGHUDo}HV�PHWRGROyJLFDV�H�SUHGLVSRVLo}HV�VXEMHWLYDV�����6DOD�GH�KRQUDULDV�H�D�SRQWD�DPRODGD�GR�LFHEHUJ�����(VWDGR�GD�DUWH�DWXDO��¿FKD�WpFQLFD�GR�PXQLFtSLR�����$�EROD�GH�QHYH�GR�VHPL�iULGR�����$YDODQFKH��6LQDLV�GH�UXSWXUD�����&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV
PALAVRAS FINAIS
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15
16
����28
����
42
��45
50
����
��
��81
82
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146
SUMÁRIO
11
APRESENTAÇÃO
� 6REUH�VXVWHQWDELOLGDGH�DSUHQGL�TXH��IUHQWH�DRV�GHVD¿RV�FLYLOL]DWyULRV�GH�DJRUD�
em diante, das décadas vindouras, pouca importância haverá de se dar às nossas
limitadas individualidades. Mesmo que as relações humanas substanciais se restabe-
leçam no futuro próximo, que grandes soluções um indivíduo em estado de iluminação
que seja seria capaz de propor a um mundo tão imensamente complexo e tão intensa-
PHQWH�PXWDQWH"�$�XOWUDPRGHUQLGDGH�QDXVHDQWH��D�HVWHLUD�GH�FDPXQGRQJRV�GH�QRVVD�
sina subdesenvolvida, a fragilidade das instituições democráticas que oscilam entre
EHODV�OHWUDV�PRUWDV�H�HPHQGDV�PXWLODGRUDV�GH�QRUPDV�TXH�DPHDoDP�JDQKDU�H¿FiFLD��
'H�IDWR��7RP�-RELP�IRL�FHUWHLUR��HVWH�SDtV�QmR�p�SDUD�SULQFLSLDQWHV��2�TXH��HQWmR��QHV-
VH�HVWDGR�H�JUDYLGDGH�GH�FRLVDV��SRGHULD�HX�SUHWHQGHU�SDOSLWDU"
A escolha do tema desta dissertação, desde sua concepção enquanto projeto
de pesquisa é fruto de uma perseguição particular e, em certa medida, de difícil ne-
gociação. Em função de minha tenra formação como biólogo, pude ter contato com a
história das iniciativas de proteção à natureza no Brasil e dali passei a descrer das ra-
]}HV�¿QDOtVWLFDV�HQYROYLGDV�QDV�SROtWLFDV�PRGHUQDV�GH�FRQVHUYDomR�GR�SDUWLP{QLR�QD-
WXUDO��$TXHODV�PHWDV��SDUD�PLP��QmR�SDUHFLDP�VH�MXVWL¿FDU�QHP�GH�XP�SRQWR�GH�YLVWD�
HFROyJLFR�QHP�GH�XP�SRQWR�GH�YLVWD�VRFLRHFRQ{PLFR��)RL�HVWD�FRQVWDWDomR�H�D�EXVFD�
pelo que chamava de demandas por degradação que me conduziram ao estudo das
cidades. Entendi que, por excelência, partiam dos núcleos urbanos, especializados no
consumo da produtividade dos escossistemas, as tais demandas.
A partir dali, começaria a lançar o olhar de estranhamento sobre tudo o que
FRPS}H�R�IHQ{PHQR�XUEDQR��$¿QDO��H[LVWH�XPD�QDWXUH]D�XUEDQD"�'H�TXH�PDWpULD�p�
IHLWR�XP�WHFQRHFRVVLVWHPD"�$�TXH�VH�UHIHUHP�RV�MXULVWDV�TXDQGR�WUDWDP�GH�PHLR�DP-
ELHQWH�DUWL¿FLDO��FXOWXUDO�RX�GR�WUDEDOKR"�(�RV�DUTXLWHWRV�H�HQJHQKHLURV��TXH�HQ[HUJDP�
no meio ambiente construído, nas manchas de sistemas vivos residuais antes de pro-
SRUHP�VXD�XUEDQL]DomR"�4XH�VLJQL¿FD�SDUD�HOHV�XUEDQL]DomR"�0HVPR�TXH�SHUVLVWDP�
IUDJPHQWRV� ÀRUHVWDLV� H� FRUUHGRUHV� IXQFLRQDOPHQWH� FRQHFWDGRV�� TXH�PRWLYRV� WHPRV�
SDUD�PDQWr�ORV� IUHQWH�jV�GHPDQGDV�VRFLDLV�SRU�VROR�XUEDQR"�6H�R�VtWLR�XUEDQR�p�R�
pequeno espaço reservado na crosta terrestre à antropização, por que não prescindir
12
GD�ELRGLYHUVLGDGH�SHOR�PHQRV�DTXL"�2X��FRPR�GLULD�1XULW�%HQVXQVDQ��VHUi�TXH�QmR�
³VHULD�PHOKRU�PDQGDU�ODGULOKDU´"
Nessa empreitada terminei por transpor o cercado que me mantinha protegido
na seara disciplinar das ciências biológicas, da ecologia e das chamadas hard scien-
ces. Para cada espaço disciplinar, é um processo de alfabetização que tem início.
Confesso que minha primeira alegria foi no encontro com a geomorfologia urbana
e de saber que para cada compartimento geossistêmico tradicional estavam sendo
propostas novas categorias voltadas à compreensão das particularidades daqueles
HOHPHQWRV�QD�FRQMXQWXUD�XUEDQD��+DYLD�RV�VRORV�XUEDQRV��DV�HQFRVWDV�XUEDQDV�H�DV�
EDFLDV� KLGURJUi¿FDV� XUEDQDV�� DOpP� GH� XPD� UHVLJQL¿FDomR� TXDVH� TXH� FRPSOHWD� GR�
olhar sobre os problemas ambientais naquele contexto.
É daí que, para mim, apresenta-se a dimensão social. Não que antes não fosse
sensível a este aspecto da vida, mas é apenas com o endereçamento dos problemas
e riscos envolvidos no uso e ocupação ambientalmente inadequados do solo urbano
que percebo uma aproximação apreensível desses dois planos, até então, paralelos.
7RGR�HVWH�SHUFXUVR�GH�GHVFREHUWDV�VH�IH]�PDUFDGR�QD�FRQFHSomR�H�QD�HVWUXWXUDomR�
GHVVH� WUDEDOKR��2�SUySULR�GHVHMR�GH�GHVHQYROYr�OR� MXQWR�DR�&HQWUR�GH�'HVHQYROYL-
PHQWR�6XVWHQWiYHO��&'6�8Q%��H�DV�GLVFXVV}HV�FRP�DV�TXDLV�WLYH�FRQWDWR�DWUDYpV�GR�
centro estão aí impressas, assim como as mudanças de estratégia de abordagem do
WHPD��GL¿FXOGDGHV�H�FDPLQKRV�HQFRQWUDGRV��,PDJLQR�H�GHVHMR�TXH�R�OHLWRU�QDV�SUy[L-
mas páginas seja capaz de acompanhar este processo de aprendizado e que com
isso possa partilhar de meus insights e descobertas. Como iniciei dizendo, não creio
que para os problemas postos haja formação ou indivíduo apto a prover respostas
satisfatórias, mas ainda assim podemos e devemos revolver o terreno.
Ao optar pela estruturação em artigos independentes, tomei o cuidado de pen-
sar introduções e considerações panorâmicas para cada capítulo, de modo que o as-
SHFWR�DPSOR�FRQWH[WXDO�GD�VXVWHQWDELOLGDGH�FRPR�GHVD¿R�FLYLOL]DWyULR�QmR�YLHVVH�D�VH�
perder. Em todo modo, eis o que considero a essência desta dissertação de mestrado:
todos os deslocamentos efetuados e as ponderações aqui trazidas apontam no sen-
tido da desconstrução da urbanização como, em primeiro lugar, oposição à natureza,
sobretudo intraurbanamente; e, também em primeiro lugar, dividindo o pódio, da urba-
nização como privilégio de poucos, ou a defesa do direito à cidade como mecanismo
de alcance da sustentabilidade urbana como colocada adiante.
13
Ao conceber este trabalho, objetivamos lançar luz sobre questões tidas como
VHFXQGiULDV�QR�HTXDFLRQDPHQWR�WUDGLFLRQDO�GRV�SUREOHPDV�XUEDQRV�D�¿P�GH�OLEHUDU�RV�
modelos brasileiros de gestão urbana dos ciclos viciosos das soluções emergenciais,
que frequentemente acirram mazelas. Desta forma, procuramos inicialmente explorar
dois grandes terrenos de estudo: o da teoria de riscos, que pressupõe o enquadra-
mento do urbano enquanto sistema socioambiental particular; e a literatura, até então,
GLVSHUVD�HP�WRUQR�GRV�TXDOL¿FDGRUHV�cidades sustentáveis e sustentabilidade urbana.
No capítulo um, “Desastres naturais de sinergia antrópica: inundações urba-
nas”, preparamos o ingresso à discussão da complexidade urbana, contextualizando
a crise urbana como uma das muitas manifestações de uma crise civilizatória maior
em curso. A literatura de risco aqui mobilizada lança um alerta para a necessidade
de se expandir o foco de ação das políticas pontuais de condução da vida comum
nas cidades, tomando como exemplo as relações de sinergia desencadeadas pelo
WHUUHPRWR�GH������QD�7XUTXLD��$R�¿QDO��p�DSUHVHQWDGD�XPD�SURSRVWD�GH�FRQVLGHUDomR�
dos riscos de inundações nas cidades brasileiras, não como um problema em si, mas
como decorrência dos padrões de uso e ocupação do solo e do processo tradicional
de produção e reprodução do espaço urbano brasileiro.
Em “Cidades sustentáveis e as fronteiras do respeito”, o capítulo dois, procu-
ramos organizar as correntes de pensamento e os modelos de desenvolvimento ur-
bano ditos sustentáveis, confrontando-os com as principais frentes de debate afeitas
ao campo geral da sustentabilidade. Desse exercício de cotejamento, sugerimos o
conceito das fronteiras do respeito como princípio balizador a um sentido de susten-
WDELOLGDGH� SDVVtYHO� GH� DSURSULDomR� ORFDO� SHOR� IHQ{PHQR� XUEDQR��$V� QDUUDWLYDV� DTXL�
reunidas expõem as virtudes e as limitações dos modelos discutidos e indicam pontos
potenciais de ruptura com a fragilidade dos discursos e práticas de sustentabilidade
urbana, abrindo espaço para uma reorientação substancial futura dos sistemas socio-
ambientais urbanos.
� 3RU�¿P��QR� WHUFHLUR�FDStWXOR�� LQWLWXODGR� ³&LGDGH�GH�)RUWDOH]D�� LQVLQXDo}HV�GH�
risco e respeito”, percorremos os caminhos históricos de formação socioambiental da
Nota introdutória
14
capital cearense como subsídio argumentativo à sustentação da tese de uma estru-
tura urbana atual em vias de quebra da sua resiliência ou dos elos fundamentais que
PDQWpP�R�IXQFLRQDPHQWR�VLVWrPLFR��2�OHLWRU�GHYHUi�SHUFHEHU�DTXL�XPD�PXGDQoD�GH�
abordagem quanto ao que vinha sendo pavimentado nos capítulos anteriores. A expli-
citação da necessidade de uma gestão equilibrada na distribuição das infraestruturas
e condições de vida por toda a cidade estava prevista para ser acessada segundo as
FRQWULEXLo}HV�GH�FDGD�XQLGDGH�XUEDQD��HVSDoRV�IRUPDLV�H�LQIRUPDLV��j�SURGXomR�GR�
ULVFR�GH�LQXQGDo}HV��'L¿FXOGDGHV�PHWRGROyJLFDV�H�FRP�D�REWHQomR�GRV�GDGRV�QHFHV-
sários à análise espacial conduziram-nos à procura de uma abordagem alternativa.
Foi então que optamos por construir o quadro problema em questão partindo da vio-
lência urbana como porta de acesso às demais fragilidades locais.
Assim, procuramos reunir um apanhado de pesquisas e compor um panorama
de dados secundários e narrativas capazes de satisfazer a duas formulações bá-
VLFDV�����De que forma os caminhos e escolhas de desenvolvimento em Fortaleza
terminaram por assumir um caráter perverso de produção e reprodução social ur-
banas?��H����A saturação atual dos espaços favoráveis à ocupação no sítio urbano,
aliado às tendências macrocefálicas da região metropolitana, explicam a promoção
das vulnerabilidades sociais e o acirramento das fragilidades ambientais?; Buscando
esclarecer esses pontos e tomando por base as evidências da conformação histórica
de Fortaleza, trazemos à tona nas páginas que seguem um retrato dos processos de
vulnerabilização ativa que sucederam e ainda sucedem a diversas capitais e cidades
brasileiras. A persistência desses processos, presentes na base das relações urbanas
e promotores de riscos diversos, segue minando as possibilidades presentes e futuras
GH�XPD�H[SHULrQFLD�XUEDQD�LGHQWL¿FDGD�FRP�XP�VHQWLGR�GH�VXVWHQWDELOLGDGH�HP�UHV-
peito a pessoas e a processos naturais fundamentais.
CAPÍTULO 1 DESASTRES NATURAIS
DE SINERGIA
ANTRÓPICA
16
Capítulo 1. Desastres naturais de sinergia antrópica: inundações urbanas
Pablo Pimentel Pessoa
5(6802
Sob as bases interpretativas de uma epistemologia de riscos, empreendeu-se um
DMXVWH�GH�FODVVL¿FDomR� WLSROyJLFD�H�XP�DSURIXQGDPHQWR�VLVWrPLFR�GD�FRPSUHHQVmR�
corrente acerca das variáveis envolvidas na construção do risco de inundação urbana.
Uma proposta de arranjo entre elementos e variáveis componentes do sistema urbano
brasileiro é apresentada de forma genérica e discutida a partir do enfoque das relações
GH�ULVFR��3RU�¿P��RV�PRGHORV�UHSUHVHQWDWLYRV�DSUHVHQWDGRV�QHVWH�HVWXGR�UHVVDOWDP�
a contribuição ativa de vetores de promoção das vulnerabilidades social e ambiental,
tradicionalmente relegada a segundo plano na gestão dos riscos naturais.
1. Introdução: De limites a fronteiras
“Se a noite não tem fundo, o mar perde o valor
2SDFR�p�R�¿P�GR�PXQGR�SUD�TXDOTXHU�QDYHJDGRU
Que perde o oriente e entra em espirais
E topa pela frente um contingente que ele já deixou pra trás”
Meia-noite, Chico Buarque e Edu Lobo
A celeridade das mudanças, que moldou a singularidade histórica das
últimas décadas, semeou também os elementos que viriam a constituir o caráter da
PRGHUQLGDGH�GR�VpFXOR�����6HYFHQNR��������S�����FRPSDUD�HVWD�WUDMHWyULD�FLYLOL]DWyULD�
a um passeio de montanha-russa. Para ele, inovações tecnológicas transformam
profundamente o seio das sociedades, mas apenas o fazem de maneira consequente,
com a cautela de que o lado fraco da corda carece, quando ensejam o exercício da
crítica.
Acontece que a volta da virada do último século tem sido um trecho conturbado
17
do passeio, uma espécie de loop prolongado. A velocidade da sucessão dos
fatos nesse estágio teria levado a um rompimento do diálogo entre a técnica e as
suas necessárias ponderações. Uma avaliação criteriosa do novo estaria assim
comprometida, na peculiaridade desse momento histórico, em função da vertigem
provocada pelo turbilhão do progresso.
Assim, o percurso de ascensão que principia na Europa do século 16, pelo
conhecimento e domínio de poderosas forças naturais, encontra o primeiro vale em
PHDGRV� GR� VpFXOR� ����$� 5HYROXomR� &LHQWt¿FR�7HFQROyJLFD� UHSUHVHQWD� XPD� TXHGD�
vertiginosa em que a velocidade dos processos em curso se acirra, deixando para trás
DV�UHIHUrQFLDV�GR�HVSDoR�H�GDV�FLUFXQVWkQFLDV�DQWHULRUHV��7RGD�H[SHULrQFLD��SRUpP��
por mais nauseante, é posta uma outra vez em perspectiva ante a intensidade dos
URGRSLRV�QD�HVSLUDO�TXH�VH�VHJXH��6(9&(1.2��������S������
Nesse ponto do percurso descortinam-se três problemas estruturais de cunho
epistemológico: o problema lógico, que remete à dimensão da complexidade; o problema
da desordem, que remete à dimensão da instabilidade; e o problema da incerteza, que
UHPHWH�j�GLPHQVmR�GD�LQWHUVXEMHWLYLGDGH��9DVFRQFHOORV��������S������H[SOLFD�TXH�HVVD�
tríade de questões apresenta-se inicialmente como problema no seio das ciências
duras, em especial, a Física. A saber: a questão da contradição onda/corpúsculo
�3ODQFN��(LQVWHLQ�H�%RKU���D�TXHVWmR�GD�GHVRUGHP�PROHFXODU��%ROW]PDQ��H�R�SULQFtSLR�
GD�LQFHUWH]D��+HLVHQEHUJ���$�DGPLVVmR�GD�FRPSOH[LGDGH�SHOD�)tVLFD��XPD�FLrQFLD�GH�
PHWLr�WLSLFDPHQWH�VLPSOL¿FDGRU�LQDXJXUD��D�SDUWLU�GD�VHJXQGD�PHWDGH�GR�VpFXOR�����
XP�QRYR�SDUDGLJPD�FLHQWt¿FR� IXQGDGR�QR�DEDQGRQR�GRV�SUHVVXSRVWRV� WUDGLFLRQDLV��
GD�VLPSOLFLGDGH��GD�HVWDELOLGDGH�H�GD�REMHWLYLGDGH�GR�XQLYHUVR��9DVFRQFHOORV��������S��
�����FKDPD�HVVD�HSLVWHPRORJLD�GHEXWDQWH�GH�3HQVDPHQWR�6LVWrPLFR�
Paralelamente às rupturas paradigmáticas nas ciências, transformações de
RXWUD� RUGHP� �SROtWLFD�� HFRQ{PLFD� H� FXOWXUDO�� DQXQFLDYDP�VH� FRP� D� HPHUJrQFLD� GD�
questão ambiental. Desastres notáveis como as centenas de mortes e doenças no
Japão provocadas pelo envenenamento por mercúrio entre os habitantes da Baía
GH�0LQDPDWD��LQYHVWLJDGR�HP��������H�R�UHODWR�GR�PDOHV�DVVRFLDGRV�DR�XVR�GR�''7�
GHVFULWRV�QR�OLYUR�3ULPDYHUD�6LOHQFLRVD�GH�5DFKHO�&DUVRQ��SXEOLFDGR�HP�������IRUDP�
conduzindo a comunidade global a um despertar para os riscos da modernidade
�%856=7<1��3(56(*21$��������S���������
� 2� UHVSDOGR� FLHQWt¿FR� GHVVDV� DPHDoDV� GHX�VH�� FRPR�PDUFR�� HP� ����� FRP�
18
a publicação do primeiro relatório do Clube de Roma, o Limites do Crescimento
�0($'2:6�HW�DO����������8P�JUXSR�GH�SHVTXLVD�GR�0,7�²�Massachusetts Institute of
Technology�²�PRGHORX�DV�FRQVHTXrQFLDV�GR�FUHVFLPHQWR�HFRQ{PLFR�HP�SURMHo}HV�GH�
curvas de consumo para diversos recursos-chave e atividades essenciais, lançando
um alerta para o risco de colapso das sociedades se mantido, nas economias de
centro, e expandido para as periferias o nível de consumo dos países desenvolvidos.
Entre mudanças de postura política progressistas e retrógradas, desde o
lançamento do relatório, muitos estudos foram empreendidos, acordos e esforços de
FRRSHUDomR�LQWHUQDFLRQDO�¿UPDGRV��QR�HQWDQWR��HP�UHODomR�j�UHGXomR�DEVROXWD�H�DR�
controle efetivo dos processos causadores de impactos e promotores de riscos, foram
incipientes, até então, as conquistas alcançadas. Isso é o que aponta Rockström e
FRODERUDGRUHV���������HP�XP�HVWXGR�DFHUFD�GR�HVWDGR�GD�DUWH�GR�SODQHWD��6HJXQGR�
o grupo de trabalho do Stockholm Resilience Centre, quatro de nove fronteiras para
a existência segura da humanidade já tiveram seus níveis de alerta ultrapassados.
Esta mudança de tratamento do tema entre o primeiro relatório para o Clube de Roma
e este último estudo: de limites para fronteiras, atualiza a compreensão acerca das
capacidades de suporte da biosfera. Sabe-se hoje que as referidas raias de segurança
podem ser negligenciadas e transpostas sem que as consequências das rupturas
recaiam imediata ou diretamente sobre os principais transgressores. A incerteza que
paira sobre os efeitos deletérios da quebra de resiliência dos sistemas de suporte à
vida direciona o debate de limites para o âmbito da segurança em múltiplas dimensões.
É através desse prisma novo-paradigmático do pensamento sistêmico
e na perspectiva da busca de formas de uso e ocupação do espaço orientadas à
sustentabilidade que se pretende esmiuçar as relações-chave que suportam e criam
o universo de riscos a que as comunidades humanas modernas tem sido submetidas,
em especial nos centros urbanos. Dessa forma, espera-se que a complexidade
GRV� IDWRUHV� HQYROYLGRV� HP� XP� IHQ{PHQR� GDQRVR� GH� FDXVDV� � � DPEtJXDV� FRPR� DV�
inundações urbanas possa ser melhor acessado, gerido e reduzido em seu aspecto
FDWDVWUy¿FR��UHLWHUDGDV�YH]HV�WLGR�FRPR�IDWDOLGDGH�
19
2. Sociedade e epistemologia dos riscos
“Oh! Deus, será que o senhor se zangou
(�Vy�SRU�LVVR�R�VRO�DUUHWLURX��ID]HQGR�FDLU�WRGD�D�FKXYD�TXH�Ki
Oh! Deus, se eu não rezei direito o senhor me perdoe
Eu acho que a culpa foi desse pobre que nem sabe fazer oração”
Súplica Cearense, Gordurinha e Nelinho
� +i�XPD�HVSHFL¿FLGDGH�HQWUDQKDGD�QRV�SURFHVVRV�H�HYHQWRV�TXH�VH�VXFHGHUDP�
no século 20 e que interessam a esse esforço de compreensão da natureza das
FDWiVWURIHV�XUEDQDV��6LP��RV�ULVFRV�VmR�IHQ{PHQRV�LQHUHQWHV�D�TXDOTXHU�DomR�KXPDQD��
&ROXPHOD�H�3OtQLR��R�9HOKR�DGYHUWLUDP�j�5RPD�GR�VpFXOR����D�UHVSHLWR�GD�DPHDoD�GH�
quebras de safra e erosão dos solos que a má gestão dos recursos à época traria. As
FLYLOL]Do}HV�GD�$PpULFD�&HQWUDO�FRODSVDUDP�QR�VpFXOR�����HP�IXQomR�GR�FUHVFLPHQWR�
populacional e da erosão dos solos. Em 1285, na Inglaterra foram apresentadas queixas
j�-XVWLoD�FRQWUD�IRUQRV�GH�FDO�TXH�LQIHFWDYDP�R�DU��2UGHQV�UHDLV�H�UHJXODPHQWDo}HV�GH�
�����H������WHQWDUDP�QRUPDWL]DU�R�GHVSHMR�GRV�UHVtGXRV�ORQGULQRV�SDUD�SHUtPHWURV�
FDGD�YH]�PDLV�GLVWDQWHV�GD�FLGDGH��+i�UHODWRV�GR�VpFXOR����GH�PRUWHV�GH�PDUXMRV�TXH�
FDtDP�QR�ULR�7kPLVD��R�PHVPR�RQGH�DQWHV�VH�RULHQWDYD�R�GHVSHMR�GR�OL[R���QmR�SRU�
afogamento, mas, sim, por intoxicação de vapores e gases tóxicos contidos no córrego
LQJOrV��2V�ULVFRV�GR�GHVHQYROYLPHQWR�LQGXVWULDO�FHUWDPHQWH�R�DFRPSDQKDUDP�GHVGH�
DV�SULPHLUDV�DWLYLGDGHV�IDEULV��ULVFRV�ODERUDLV��j�VD~GH��GD�SREUH]D�H�GH�TXDOL¿FDomR��
Da mesma forma, riscos naturais como erupções vulcânicas, queimadas, secas,
ataques de predadores, doenças transmissíveis por vetores, avalanches e terremotos
também não são preocupações originárias do século 20 ou deste (BECK, 2010, p. 26;
%856=7<1��3(56(*21$��������S������
� 2�PDUFR�GD�PRGHUQLGDGH�WDUGLD��TXH�OHYD�%HFN��������D�HQ[HUJDU�RV�FRQWRUQRV�
de uma nova sociabilidade, reside na globalidade do alcance dos riscos e ameaças
HYLGHQFLDGRV�QHVVH�SHUtRGR��)HQ{PHQRV�FRPSOH[RV�FRPR�R�VXUWR�GH�H[WLQo}HV�HP�
PDVVD�GR�$QWURSRFHQR��DV�PXGDQoDV�FOLPiWLFDV�H�D�DFLGL¿FDomR�GRV�RFHDQRV�S}HP�
em risco a vida no planeta sob todas as suas formas (BECK, 2010, p. 26; PRIMACK
� 52'5,*8(6�� ������ S�� ���� 52&.675g0� HW� DO��� ������� 2� GHVHQYROYLPHQWR� GH�
20
VXUSUHHQGHQWHV� IRUoDV� SURGXWLYDV� TXtPLFDV� H� DW{PLFDV� WUDQVFHQGHX� RV� OLPLWHV� GDV�
IiEULFDV�H��PDLV�TXH� LVVR�� UHVVLJQL¿FRX�DV�QRo}HV�GH�HVSDoR�H� WHPSR�� HPSUHVD�H�
(VWDGR��OLPLWHV�GH�EORFRV�PLOLWDUHV��IURQWHLUDV�SROtWLFDV�H�JHRJUi¿FDV��'HVDVWUHV�FRPR�
os de Bophal, de Chernobyl e o constatado poder de extermínio das bombas nucleares
ODQoDGDV�HP�+LURVKLPD�H�1DJDVDNL�VLWXDP�QRV�DR�SDWDPDU�LQpGLWR�GR�SRGHU�GHVWUXWLYR�
DOFDQoDGR�SRU�HVVDV�LQRYDo}HV�WHFQROyJLFDV���%856=7<1��3(56(*21$��������S��
����
Não há necessariamente um consenso a respeito dos termos e conceitos usados
entre os estudiosos da ciência cindínica, termo cunhado ao longo de eventos promovidos
SHOD�81(6&2�HP������H������SDUD�UHXQLU�FRUUHQWHV�GH�HVWXGR�GH�ULVFR��'$*1,12��
-81,25���������'LDQWH�GHVWH�FHQiULR�HP�YLDV�GH�FRQVROLGDomR��WRPDUHPRV�DOJXPDV�
posições suleadoras baseadas nos pressupostos novo-paradigmáticos apresentados
SRU�9DVFRQFHOORV��������
Riscos, aqui, serão entendidos como percepções acerca de ameaças. Esta
noção pressupõe a existência de um ou vários entes (indivíduos, grupos, comunidades,
HFRVVLVWHPDV��SDLVDJHQV��FLGDGHV��HWF���VRE�VLWXDomR�GH�SHULJR��0DUDQGROD�-U��H�+RJDQ�
������� WUDoDP�R�SHU¿O� HYROXWLYR�GRV�HVWXGRV�FLQGtQLFRV�QDV� VHDUDV�GD�*HRJUD¿D�H�
GD�'HPRJUD¿D��2V�DXWRUHV� UHYROYHP�SHVTXLVDV�VHPLQDLV�VREUH�R� WHPD�H�DSRQWDP�
WHQGrQFLDV�GH�HQIRTXH�REMHWLYLVWDV��HSLULFLVWD�UHDOLVWDV��H�VXEMHWLYLVWDV��LGHDOLVWDV��FRPR�
referenciais ontológicos extremos. Conforme esta revisão, escolas tradicionalmente
afeitas ao estudo dos perigos naturais de causas tidas como essencialmente
ELRItVLFDV�GLUHFLRQDUDP�VHXV�HVWXGRV��QRV�¿QV�GRV�DQRV������H�������SDUD�R�WHUUHQR�
dos perigos sociais e tecnológicos. Embora os geógrafos, por exemplo, tenham,
desde o início, tratado de perigos em consideração à probabilidade de populações
KXPDQDV�VHUHP�DWLQJLGDV��D�UHD¿UPDomR�GHVVDV�SUHRFXSDo}HV�RULHQWDUDP��HP�WRGR�R�
FDPSR�GD�FLQGtQLFD��XPD�DWHQomR�PDLV�GLUHWD�D�DVSHFWRV�VRFLRHFRQ{PLFRV�H�FDXVDV�
eminentemente sociais.
Esta ênfase à dimensão humana nos estudos de riscos veio a promover o
aprofundamento das distinções entre vulnerabilidade, álea e risco:
Independentemente das palavras utilizadas, está, na prática, aceite, por quase
todos os que se dedicam a este tipo de estudos, que o risco é, então, o somatório de
algo que nada tem a ver com a vontade do homem (aleatório, acaso, casualidade ou
21
SHULJRVLGDGH��� FRP�DOJR�TXH� UHVXOWD�GD�SUHVHQoD�GLUHFWD�RX� LQGLUHFWD�GR�KRPHP��D�
YXOQHUDELOLGDGH���5(%(/2��������S������
Áleas ou perigos são eventos prováveis, acontecimentos possíveis de natureza
GLYHUVD��WHFQROyJLFD��QDWXUDO��VRFLDO�RX�HFRQ{PLFD��$V�YXOQHUDELOLGDGHV�GL]HP�UHVSHLWR�
às condições de susceptibilidade do ente ameaçado. Elas guardam relações com
a magnitude do impacto de um perigo sobre um determinado alvo e, assim como o
ULVFR��HVWD�p�XPD�QRomR�SUREDELOtVWLFD��9(<5(7��������S�������&RUUHQWHV�PDLV�FUtWLFDV�
defendem o uso conceitual de vulnerabilizações em vez de vulnerabilidades, como
forma de rejeição à ideia de fragilidades intrínsecas aos entes e alvos considerados.
Referir-se às condições de susceptibilidade diferenciais, dessa forma, seria admitir
a existência de processos ativos de construção das vulnerabilidades (ACSELRAD,
�������
A medida da vulnerabilização é apreendida pela probabilidade de dano
�QtYHO�GH�H[SRVLomR��H�SHOD�SUHYLVmR�GD�FDSDFLGDGH�GH�UHVSRVWD�GR�DOYR�DR�HYHQWR�
GDQRVR��+i��QHVVH�HVSHFWUR��UHVSRVWDV�GH�FXUWR��PpGLR�H�ORQJR�SUD]R��'H�XP�ODGR��
ações emergenciais de caráter imediato, como evacuação de áreas e prestação de
socorro a vítimas e, de outro, adaptações biológicas e culturais que demandam de
décadas a séculos para se processar. As respostas de médio e longo prazos são
conhecidas como ajustamentos, que podem ser incidentais ou intencionais. Uma
atenção especial tem sido dada às adaptações intencionais, que abrem um panorama
DPSOR�GH�SRVVLELOLGDGHV�GH�HVFROKDV��FROHWLYDV�H�LQGLYLGXDLV��H�SURSRVWDV�GH�SROtWLFDV�
S~EOLFDV�TXH�HQYROYHP�LQWHUYHQomR��SODQHMDPHQWR�H�JHVWmR�FRP�¿QV�j�PLWLJDomR�GH�
SHUGDV�H�DXPHQWR�GD�VHJXUDQoD��0$5$1'2/$�-5���+2*$1��������
� 2XWUR�FRQFHLWR�HVVHQFLDO�DR�HVWXGR�GH�ULVFRV�p�R�GH�FDSDFLGDGH�GH�DEVRUomR��
Esta noção advém do conceito físico de resiliência, apropriado pela Ecologia e
DPSODPHQWH�GLIXQGLGR�QR�WUDWDPHQWR�GH�TXHVW}HV�DPELHQWDLV��7UDWD�VH�GD�TXDOLGDGH�
elástica e/ou plástica de absorção de um dado impacto e recuperação, sem que o
HVWUHVVH�VLJQL¿TXH�UXSWXUD�GRV�HORV�IXQGDPHQWDLV�TXH�LGHQWL¿FDP�R�VLVWHPD��$�TXHEUD�
GD�UHVLOLrQFLD�GH�XP�VLVWHPD��VHMD�HFROyJLFR��VRFLDO��SROtWLFR�RX�HFRQ{PLFR�SURGX]�XP�
novo arranjo, cujo funcionamento não se pode prever. Em abordagem de riscos, seja
qual for a dimensão e a escala de realidade trabalhada, estarão implicadas questões
de segurança e estabilidade sistêmicas, porque as propriedades de absorção de
22
impactos pontuais dos sistemas mascaram as evidências da dilapidação gradual dos
seus elos fundamentais. Rupturas nesse nível frequentemente conduzem a mudanças
FDWDVWUy¿FDV��6&+())(5��:$/.(5.��������
A sociedade dos riscos estrutura-se no terreno movediço da ameaça civilizatória
indissolúvel. Considerando que cada elemento introduzido em um sistema gera novos
padrões de interação, a profusão de inovações combinada à síndrome do loop e às
OLPLWDo}HV�GD�KHUDQoD�FDUWHVLDQD� ODQoDP�GHVD¿RV�KRPpULFRV�jV�JHUDo}HV�DWXDLV�H�
IXWXUDV��2�SURFHVVR�GH�PRGHUQL]DomR�JXDUGD�HP�VL�HVWD�DPELJXLGDGH��QD�SURGXomR�
VRFLDO�GR�EHP�HVWDU�H�GD�ULTXH]D�JHVWD�VH�RV�ULVFRV��$VVLP��VREUHS}HP�VH�RV�FRQÀLWRV�
GLVWULEXWLYRV� GD� VRFLHGDGH� GD� HVFDVVH]� FRP� RV� FRQÀLWRV� GD� SURGXomR�� GH¿QLomR� H�
GLVWULEXLomR�GRV�ULVFRV�FLHQWt¿FR�WHFQROyJLFRV��%(&.��������S��������
A interpretação recursiva da sociedade de riscos possibilita a revelação do
caráter de autoameaça dos perigos da modernidade tardia. Ao apontar o cunho social
GD�SURGXomR�GRV�ULVFRV��%HFN��������UHLWHUD�D�QHFHVViULD�GHSHQGrQFLD�FRJQLWLYD�GRV�
riscos socialmente construídos. Ele afasta a possibilidade de tratamento objetivo
dos riscos produzidos e os distingue das ameaças sensorialmente perceptíveis. As
ameaças típicas desses tempos apresentam-se pulverizadas na teia de atividades
cotidianas e são invisíveis aos cinco sentidos humanos. Por isso, sua explicitação
GHPDQGD�D�PHGLDomR�GH�XP�UREXVWR�DSDUDWR�FLHQWt¿FR��
Daí decorre o papel central da ciência, antes de tudo, no rompimento com o
WRUSRU�JHUDO�DFDUUHWDGR�SHOR� WXUELOKmR�GH�SURJUHVVR��2V� UXPRV�GH�GHVHQYROYLPHQWR�
e suas consequências indesejáveis carecem da crítica para que se possa ponderar
DOWHUQDWLYDV�WHFQROyJLFDV��RUJDQL]DFLRQDLV��SROtWLFDV��FXOWXUDLV�H�HFRQ{PLFDV��3RU�PDLV�
TXH�D�FUtWLFD�SRVVD�YLU�GH�IRUD�GDV�VHDUDV�FLHQWt¿FDV��GHFLVLYRV�VHUmR�RV�HPEDWHV�QRV�
espaços de construção e legitimação do conhecimento, onde a ruptura com o senso
comum e com a noção de um sentido natural percorrido pela humanidade torna-se
possível.
Além disso, cabe à Academia reconhecer as limitações do saber técnico-
FLHQWt¿FR��PHVPR�QRV�DPELHQWHV�LQWHUGLVFLSOLQDUHV��GLDQWH�GDV�DPHDoDV�FLYLOL]DFLRQDLV�
crescentes. A experiência interdisciplinar tem apontando a necessidade de se fazer
conversar o técnico com o prático-popular, pois existe uma sociedade em franco
SURFHVVR�GH�FRPSOH[L¿FDomR�H�TXH��DWp�FHUWR�SRQWR��LPS}H�VHX�GLQDPLVPR�j�RUGHP�GH�
funcionamento dos sistemas naturais, recriando a natureza em natureza construída.
23
A formação técnica verdadeiramente apta a contribuir com a construção das formas
seguras de uso e ocupação do espaço, portanto, deverá buscar, em toda nova
intervenção, suprir as lacunas do alcance disciplinar e por-se ativamente em abertura
DR�GLiORJR�GH�VDEHUHV�FLHQWt¿FRV�H�QmR�FLHQWt¿FRV��/())��������S��������
3. Tipos de risco, riscos urbanos e a natureza ambígua das inundações
� 2�HVIRUoR�GH�FRPSUHHQVmR�GRV� ULVFRV�QRV� OHYD�j�EXVFD�GH� WLSL¿FDo}HV�TXH�
possibilitem distinções de caráter prático em um universo amplo de ameaças. Ao
DSUHVHQWDU�D�WHVH�GD�VRFLHGDGH�GH�ULVFR��%HFN��������S������GLIHUHQFLD�RV�SHULJRV�H�DV�
inseguranças, dominantes em eras remotas, das incertezas de hoje. Sendo risco um
conceito moderno, convencionou-se chamar de “ameaças” as doenças, as guerras e
as epidemias de outrora. Por riscos, diferentemente, pressupõe-se decisões humanas
e futuros humanamente produzidos. Portanto, nem os desastres naturais, atribuídos a
YRQWDGHV�GLYLQDV�RX�jV�IRUoDV�GD�QDWXUH]D��DPHDoDV��QHP�DV�LQFHUWH]DV�FDOFXOiYHLV�H�
SDVVtYHLV�GH�DVVHJXUDomR�H�FRPSHQVDomR�PRQHWiULD��ULVFRV��GmR�FRQWD�GD�QDWXUH]D�
desta terceira categoria: a das “incertezas fabricadas”.
� 6mR�DV� LQFHUWH]DV�IDEULFDGDV��XP�WLSR�HVSHFt¿FR�GH�ULVFR��TXH�SURWDJRQL]DP�
o cenário de perigos da modernidade tardia. Elas também dependem de decisões
humanas, mas se impõem coletivamente, de forma tal que o indivíduo não pode
delas se esquivar. Não são externalizáveis, calculáveis, controláveis ou asseguráveis
privadamente, porque rompem com a experiência passada e com as respostas de
rotina.
� 2XWURV� DXWRUHV� WUDWDP� FRP� PHQRV� ULJRU� HVWD� TXHVWmR� KLVWyULFD� H� UHFRUUHP�
D�XPD� WD[RQRPLD�DWHPSRUDO� GRV� ULVFRV��'DJQLQR�H�&DUSL� -XQLRU� ������� GLVWLQJXHP�
quatro macroclasses: naturais, tecnológicos, ambientais e sociais. Estas categorias
não são excludentes, ao contrário, superpõem-se, mas virtualmente mostram-se úteis
à demarcação de grupos de naturezas diversas.
� 2V�riscos naturais��SRU�GH¿QLomR��HQJOREDP�LQFHUWH]DV�FXMD�FRQVWUXomR�VRFLDO�
tem origem em um processo físico pressentido, percebido e suportado por um dado
JUXSR��9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������S�����VXEGLYLGHP�RV�HP�de origem
litosférica e de origem hidroclimática�� 7HUUHPRWRV�� GHVPRURQDPHQWRV� GH� VROR� H�
24
HUXSo}HV�YXOFkQLFDV�LGHQWL¿FDP�RV�SURFHVVRV�ItVLFRV�GR�SULPHLUR�JUXSR�H��QR�VHJXQGR��
engloba-se impactos decorrentes de ciclones, de tempestades, de nevascas intensas,
de chuvas fortes e de granizo ou das secas.
� 5HEHOR� �������S�� ���� UHIHUH�VH�GLUHWDPHQWH�D� ULVFRV� WHFW{QLFRV��PDJPiWLFRV��
climáticos, geomorfológicos e hidrológicos, um tratamento, portanto, menos hierárquico.
De uma forma ou de outra, a singularidade dos riscos naturais reside sobre as causas
físicas dessas áleas, que escapam largamente à intervenção humana. Sevá Filho
�������S������FKDPD�RV�riscos telúricos��UHODWLYR�j�7HUUD��H�DFUHVFHQWD�j�VXD�GHVFULomR�
um aspecto de globalidade e incontrolabilidade, que encerra a fragilidade humana
frente a estas áleas.
Figura 1.�&ODVVHV�GH�ULVFRV�QDWXUDLV�GH�DFRUGR�FRP�RV�UHFRUWHV�FRQFHLWXDLV�GH�9H\UHW�H�
0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������H�5HEHOR��������
Acerca dos riscos sociais ou societais�� 9LHLOODUG�%DURQ� ������� S�� �����
25
FKDPD�D�DWHQomR�SDUD�DV�LPSUHFLV}HV�UHFRUUHQWHV�QR�XVR�GHVVHV�FRQFHLWRV��+i�XPD�
polissemia intimamente associada à expressão “risco social” que decorre da própria
QRomR�GH�ULVFR��6H�GH¿QLPRV�ULVFR�FRPR�D�SHUFHSomR�GH�XP�RX�PDLV�VXMHLWRV�DFHUFD�
da ocorrência de uma ameaça e vulnerabilidade como uma demarcação necessária
da dimensão humana do risco e do alcance do dano, podemos dizer que toda espécie
de risco prevê consequências humanas.
Esta ambiguidade também, de certa forma, põe em xeque a categoria dos
riscos naturais, uma vez que não há risco livre de construção social. No entanto,
estas noções tem sido largamente utilizadas e requisitar uma nova terminologia seria
DFUHVFHU� XP� HOHPHQWR� FRPSOLFDGRU� D� XP� FRUSR� FLHQWt¿FR� DLQGD� HP� FRQVROLGDomR��
7DLV� UHGXQGkQFLDV�SRGHP��VHP�HPEDUJR��VHU�GLULPLGDV�D�SDUWLU�GD�H[SOLFLWDomR�GRV�
VLJQL¿FDGRV�SUHWHQGLGRV�DRV�WHUPRV�
Como foi dito, naturais seriam os tipos de riscos cujas causas escapam
ODUJDPHQWH�DR�FRQWUROH�KXPDQR��1HVWD�OLQKD��VmR�TXDOL¿FDGRV�FRPR�VRFLDLV�RV�ULVFRV�
TXH�DQWHFLSDP�D�SUREDELOLGDGH�GH�XP�DFRQWHFLPHQWR�FDWDVWUy¿FR�SDUD�D�FROHWLYLGDGH�
humana, de consequências nefastas para a sociedade, em sua totalidade ou em parte.
Portanto, considera-se a sociedade aqui referida como um todo cujo fundamento é a
VROLGDULHGDGH��2V�ULVFRV�VRFLDLV��GHVWD�IRUPD��GLVWLQJXHP�VH�GRV�GHPDLV�QmR�SRU�VXDV�
causas sociais, mas pelas consequências sociais de ameaças de origens quaisquer.
Quando o viver em conjunto ou a coesão social são alvo, está-se tratando dos riscos
sociais.
� +LVWRULFDPHQWH�� HVWH� FDPSR� GH� HVWXGR� WHP�VH� YROWDGR� j� LQYHVWLJDomR� GDV�
percepções de insegurança e da violência, duas ameças de vulto em ambientes
XUEDQRV�� 7UDWD�VH�� SRUWDQWR�� GH� ULVFRV� GH� GHOLQTXrQFLD�� GH� FULPLQDOLGDGH�� ULVFRV�
DVVRFLDGRV� DR� XVR� GH� GURJDV� H� DR� QDUFRWUi¿FR�� OLJDGRV� D� LGHRORJLDV� WRWDOLWiULDV�� j�
JXHUUD�H�DR�WHUURULVPR��9,(,//$5'�%$521��������S�������
Posto assim, entende-se porque os estudiosos dos riscos sociais subdividem-
os em exógenos e endógenos. Uma vez que um risco social é reconhecido pelas
suas consequências, em uma visão sociocêntrica, percebe-se as causas naturais
GH�XP�SHULJR�FRPR�IDWRUHV�H[WHUQRV��ULVFRV�H[yJHQRV��H�FDXVDV�GH�SHULJRV�DIHLWDV�
ao funcionamento das próprias sociedades como fatores de risco internos (riscos
HQGyJHQRV��
� $�GLYHUVLGDGH�GH�DERUGDJHQV�HP�FODVVL¿FDomR�GH�ULVFRV�p�HQRUPH�H��HP�QRVVD�
26
tentativa de organização conceitual, situaremos horizontalmente as categorias de
interesse a esta narrativa, sem, no entanto, impedi-las de se comunicar. A interação
HQWUH�DV�FDWHJRULDV�GH�FODVVL¿FDomR�p�XP�SUHVVXSRVWR�SDUD�D�H[LVWrQFLD�GH�VLQHUJLD�
entre os riscos e este será nosso foco mais adiante.
Pinto ������� DSUHVHQWD� XP� WUDWDPHQWR� WD[RQ{PLFR� FXMDV� VXEFDWHJRULDV�
alocaremos sob o guarda-chuva dos riscos antropogênicos. Compõem este quadro
os riscos construídos, produtivos e culturais (o autor refere-se a riscos sociais,
PDV� IDUHPRV�XPD�DGDSWDomR�SDUD�HYLWDU� FRQÀLWR���'H� IRUPD�JHUDO�H��QDWXUDOPHQWH��
imprecisa, essa macroclasse de riscos contempla ameaças de causas essencialmente
DQWUySLFDV��WUDQVIRUPDo}HV�HFRQ{PLFDV�H�FXOWXUDLV�GD�SDLVDJHP�
A toda espécie de transformação e intervenção humana estruturante no espaço
QDWXUDO��HGL¿FDo}HV��FDQDOL]Do}HV�H�UHWL¿FDo}HV�GH�OHLWRV��SDYLPHQWDo}HV��H�LQVWDODo}HV�
de infraestrutura sanitária que ofereçam ameças aos habitantes por inadequações
ORFDFLRQDLV� H� WHFQROyJLFDV� HVWDUmR� DVVRFLDGRV� ULVFRV� FRQVWUXtGRV�� 7UDQVIRUPDo}HV�
provocadas por traços culturais que acarretem em perdas e danos às comunidades,
FRPR�SUiWLFDV�GH�TXHLPDGDV�H�VXSUHVVmR�GH�PDWDV�FLOLDUHV�SDUD�FXOWLYRV��FRQ¿JXUDP�
riscos culturais. Por último, serão concebidos como riscos produtivos aqueles
relativos a ameaças decorrentes de atividades industriais, situadas em quaisquer elos
da cadeia de produção.
� 2V� ULVFRV� SURGXWLYRV�� WDPEpP� FRQKHFLGRV� FRPR� LQGXVWULDLV� H� WHFQROyJLFRV��
HVWmR� OLJDGRV�D�HIHLWRV� LQGX]LGRV�SRU�HYHQWRV�GH�SROXLomR�FU{QLFD��OHQWD�H�GLIXVD��H�
acidental, a que estão sujeitas as atividades de produção, armazenagem e transporte
GH�PDWHULDLV�SHULJRVRV��9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������S������GLVWLQJXHP�
XP�JUXSR�HVSHFt¿FR�D�TXH�FKDPDP�GH�ULVFRV�LQGXVWULDLV�PDLRUHV��$V�DPHDoDV�IRQWHV�
desses riscos são: explosões, vazamentos de produtos tóxicos e incêndios. São riscos
GH�EDL[D�SUREDELOLGDGH�GH�RFRUUrQFLD��PDV�GH�HIHLWRV�JHUDOPHQWH�FDWDVWUy¿FRV��SRGHQGR�
UHSHUFXWLU� HP� DPHDoDV� j� FROHWLYLGDGH� �ULVFRV� VRFLDLV�� H� DRV� SRGHUHV� FRQVWLWXtGRV��
Apesar de merecerem uma atenção especial, os riscos nucleares constituem um
subtipo daquilo que nomearemos por risco produtivo maior.
Ao lado dos riscos antropogênicos, situaremos os riscos econômicos.
$�HVSHFL¿FLGDGH� GHVWH� JUXSR� UHVLGH� QD� SHUFHSomR� TXH� VH� WHP�GDV� FRQVHTXrQFLDV�
eventuais da gestão da escassez. As escolhas estratégicas de economias nacionais
H�GH�HPSUHVDV�H[SORUDGRUDV�GH�UHFXUVRV��UHQRYiYHLV�RX�QmR��VXMHLWDP�DV�SRSXODo}HV�
27
dependentes destes bens a inseguranças em termos de provimento de necessidades
e, quanto mais indispensáveis forem os recursos, mais facilmente estas inseguranças
WHQGHP� D� WUDGX]LU�VH� HP� FRQÀLWRV� ODWHQWHV� RX� DEHUWRV�� ÈJXD�� WHUUD� H� SHWUyOHR� VmR�
H[HPSORV�GH�UHFXUVRV�VREUH�RV�TXDLV�FRQÀLWRV�LQWUD�H�LQWHUQDFLRQDLV�WHP�KLVWRULFDPHQWH�
orbitado. Aqui também estão incluídos os riscos de mercado, associados a decisões
de investimento e corte normalmente motivados pela concorrência. As possibilidades
de ganhos e perdas envolvidas nessas decisões dependem de uma rede intrincada de
DJHQWHV�HFRQ{PLFRV�H�RVFLODo}HV�GH�SUHoRV�TXH�IUHTXHQWHPHQWH�IRJHP�DR�FRQWUROH�
GR� WRPDGRU�GH�GHFLVmR��1mR� UDUR�RV� ULVFRV�HFRQ{PLFRV�HQJHQGUDP� ULVFRV� VRFLDLV��
Em agricultura, más escolhas podem concretizar-se em situações de insegurança
DOLPHQWDU�H��GH�XP�PRGR�JHUDO�SDUD�WRGRV�RV�VHWRUHV��HP�LQVHJXUDQoDV�¿QDQFHLUDV�
que retraem crédito e consumo, geram desemprego e distúrbios sistêmicos.
� 3DUD� R� GHVIHFKR� GHVWD� HPSUHLWDGD� FODVVL¿FDWyULD�� UHVHUYDPRV� GXDV� PHWD�
categorias, que não podem ser tratadas no mesmo plano das demais: o grupo dos
riscos à saúde e o dos riscos ambientais. Boa parte dos riscos apresentados
trazem, em alguma medida, prejuízos à integridade de indivíduos e de grupos sociais.
Sejam perdas materiais, mortes, traumas físicos, danos psicológicos ou doenças, em
última instância, as injúrias podem ser traduzidas em termos de saúde. As poluições,
responsáveis pela percepção dos riscos produtivos, contaminações de mananciais
e de alimentos, insalubridades múltiplas suportadas em ambientes de trabalho;
incivilidades, guerras e violência urbana no âmbito dos riscos sociais; desabamento
de construções e desbarrancamentos de solo em áreas íngremes relativos a riscos
construídos; e toda a fragilidade humana posta em xeque ante às catástrofes
associadas aos riscos naturais e telúricos são exemplos.
� 2V� ULVFRV� j� VD~GH� VmR� IUXWR� GH� XPD� UHÀH[mR� VHFXQGiULD� j� FRPSUHVVmR� GR�
espectro de riscos apresentado de diferentes causas e consequências. Como cada
organismo responde de modo muito singular a cada provação, para cada situação
FDEHUi� D� SHUJXQWD�� TXH� ULVFRV� j� VD~GH� GHFRUUHP� GR� ULVFR� SULPiULR� FRQVLGHUDGR"�
Somente conduzindo as análises de risco a esta última etapa, poderemos tomar
decisões consequentes sobre os graus de aceitabilidade das incertezas produzidas a
que nos expomos.
� 'HVWD�FRQVLGHUDomR�VREUH�R�UH¿QDPHQWR�GDV�DQiOLVHV�SRVVtYHLV�HP�WHUPRV�GH�
riscos de impacto ao bem-estar e à qualidade de vida das populações lançamos mão
28
GR�FRQFHLWR�DEUDQJHQWH�GH�ULVFR�DPELHQWDO��3DUD�GH¿QLU�HVWD�FDWHJRULD��DSRLDPR�QRV�QR�
FRQFHLWR�GH�DPELHQWH�FRPR�FRQFHELGR�SRU�/HII���������SDUD�TXHP�HVWH�HQWH�VLJQL¿FD��
antes de tudo, o espaço de problematização das limitações das operações disjuntivas,
SURFHGLPHQWR�TXH�¿]HPRV�Ki�SRXFR�QR�HVIRUoR�GH�FRPSUHHQVmR�GLGiWLFD�GR�XQLYHUVR�
GH�FDWHJRULDV�GH�ULVFR��3DUD�9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������S������R�ULVFR�
ambiental é a percepção sobre ameças associadas entre riscos naturais e riscos
decorrentes de processos naturais agravados por ação humana e pela ocupação do
WHUULWyULR��1HVWH�WUDEDOKR��WRPDUHPRV�HVWD�GH¿QLomR�QXPD�SHUVSHFWLYD�PDLV�DPSOD��HP�
que o risco ambiental se fará presente sempre que se perceber padrões de interação
entre as categorias de risco primário apresentadas. A seguir esboçaremos algumas
destas possibilidades de interação.
4. Relações de risco
Uma subcategoria de riscos naturais não apresentada no panorama de
FODVVL¿FDomR� H[SRVWR� IRL�� QD� YHUGDGH�� UHVHUYDGD� SDUD� WUDWDPHQWR� j� SDUWH�� 6mR� RV�
chamados riscos naturais agravados ou provocados pelas atividades humanas.
9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������S������GH¿QHP�RV�FRPR�UHVXOWDQWHV�GH�iOHDV�
cujo impacto esperado torna-se mais dramático pelas formas praticadas de uso e
ocupação do território. Nesta classe, agrupam-se riscos associados: à suscetibilidade
D�HURV}HV��jV�GHVHUWL¿FDo}HV��jV�VHFDV��DRV�LQFrQGLRV�H�jV�SROXLo}HV�
� 2V� LQFrQGLRV� HP� iUHDV� YHUGHV� XUEDQDV�� ]RQDV� UXUDLV� H� ÀRUHVWDV� SURWHJLGDV�
UHVXOWDP�GD�IUHTXrQFLD�GH�DWLYLGDGHV�QDV�ÀRUHVWDV�H�HP�iUHDV�GR�HQWRUQR��$�LQVWDODomR�
de campings, casas de veraneio ou mesmo incursões esporádicas às matas, para
caça ou extração de recursos, por exemplo, constituem fatores de risco nessas áreas.
2V�ULVFRV�GH�LQFrQGLR�VmR�SRWHQFLDOL]DGRV�TXDQGR�HVWDV�LQFXUV}HV�VH�GmR�HP�SHUtRGRV�
de estiagem, a depender dos cuidados adotados pelos frequentadores e do respeito a
normas de segurança, além dos tipos e níveis de manejo dessas áreas.
De maneira similar, os riscos de poluição são aqui abordados sob o ponto de
vista dos agravos decorrentes de uso. Nesse caso, como resultado de variações
EUXVFDV�QR�QtYHO�GH�GHPDQGDV�LQÀLJLGDV�VREUH�GHWHUPLQDGD�LQIUDHVWUXWXUD�GH�VXSRUWH��
A inadequação de sistemas de abastecimento, transporte, esgotamento sanitário,
29
coleta, destinação e tratamento adequado de resíduos a altas demandas sazonais
OHYD�DR�FRODSVR�GHVVHV�VLVWHPDV�H�D�FRPSOLFDo}HV�GLYHUVDV��2�LQFUHPHQWR�GR�ÀX[R�
de visitas a sítios turísticos em períodos de alta estação ou em função de eventos
tradicionais de vulto, em geral, extrapola a capacidade de tratamento das águas
servidas. Este se torna, então, um quadro recorrente: com a vinda das chuvas, os
HÀXHQWHV�FRQGX]LGRV�HP�VLVWHPDV�GH�VHSDUDomR�LQFRPSOHWD�DOFDQoDP�FRP�IDFLOLGDGH�
RV� FXUVRV� G¶iJXD�� SROXLQGR�RV� �9(<5(7��0(6&+,1(7�'(�5,&+(021'�� ������ S��
����
� -i�D�DFHOHUDomR�GRV�SURFHVVRV�HURVLYRV��DV�VHFDV�H�DV�GHVHUWL¿FDo}HV�VmR�YLVWRV�
como processos de ocorrência natural em regiões áridas, semiáridas e subúmidas
secas, ainda que induzidos ou exacerbados pela ação humana. A importância da
SDUFHOD� GH� FRQWULEXLomR� DQWUySLFD� SDUD� HVWH� IHQ{PHQR� WHP� FUHVFLGR� PXLWR� FRP� R�
cenário de incertezas que anunciam as mudanças climáticas em curso:
Erros passados, políticas mal concebidas e práticas predatórias resultaram
em condições ambientais e sociais que não podem ser facilmente revertidas na
ausência de esforços de desenvolvimento substanciais e constantes e que requeiram
FUHVFHQWH�DSRLR�¿QDQFHLUR�QDFLRQDO�H�LQWHUQDFLRQDO��$�GHFUHVFHQWH�SURGXWLYLGDGH�GRV�
UHFXUVRV� QDWXUDLV� QDV�5HJL}HV�6HFDV�� D� SUHYDOrQFLD� GH� SREUH]D� H� DV� VLJQL¿FDQWHV�
desigualdades, bem como as fraquezas institucionais, devem piorar com o agravamento
GD�YDULDELOLGDGH�H�GD�PXGDQoD�GR�FOLPD���«��
Eventos climáticos extremos em diversas partes do mundo – recentes
enchentes no Paquistão, incêndios na Rússia e na Indonésia, tempestades de areia
QD�&KLQD��FRPSRUWDPHQWR�HUUiWLFR�GDV�PRQo}HV�QD�ËQGLD��VHFDV�H�Gp¿FLWV�DOLPHQWDUHV�
na África Sub-Sahariana, secas severas prolongadas e falta de água no norte do
México e nordeste do Brasil, entre outros eventos desastrosos em outros lugares –
enfatizam a urgência para que os governos se preparem para um clima incerto no
IXWXUR���'(&/$5$d2�'(�)257$/(=$�������
Períodos de seca, assim como expressões pontuais de processos erosivos
SURGX]HP� HIHLWRV� GH� GHVHUWL¿FDomR��PDV� R� IHQ{PHQR� HP� VL� p� LGHQWL¿FDGR� TXDQGR�
VH�YHUL¿FD�WUDoRV�GH�LUUHYHUVLELOLGDGH�D�FXUWR�H�PpGLR�SUD]R�QDV�PXGDQoDV�RFRUULGDV�
QD� SDLVDJHP��3RU� GHVHUWL¿FDomR�� SRUWDQWR�� HQWHQGH�VH� XP� TXDGUR� DSURIXQGDGR� GH�
30
degradação de solos e da cobertura vegetal com sensível comprometimento do
potencial biológico. As causas comuns são afeitas a má gestão dos recursos naturais
�XVR�H[FHVVLYR�GH�SDVWDJHQV��H[WUDomR�GH�PDGHLUD�H�RXWURV�UHFXUVRV�ÀRUHVWDLV�DOpP�
GR� ULWPR�GH� UHSRVLomR�H�PDQHMR� LQDGHTXDGR�GRV�VRORV���VLWXDomR�GH�GHVFRPSDVVR�
entre demanda e capacidade de provimento, a qual as secas prolongadas, muitas
vezes, prestam-se apenas a revelar.
Uma vez apresentados os riscos naturais agravados ou provocados por ação
humana, já podemos nos perguntar o que são relações de risco. Pois bem, a considerar
a natureza probabilística da noção de risco, investigações acerca de possíveis
LQWHUDo}HV�HQWUH�JUXSRV�EHP�GH¿QLGRV�GH�DPHDoDV�H�YXOQHUDELOLGDGHV�VLWXDGDV�HP�
categorias distintas daquelas propostas deverão voltar-se a um aprofundamento
sistêmico dos padrões de manifestação das crises.
A pergunta agora se apresenta de outra forma: em que medida uma classe de
riscos bem estabelecida tem suas formas de materialização em crise antecipadas,
DJUDYDGDV��DQXODGDV��DPRUWHFLGDV�RX�VXFHGLGDV��FRPR�LJQLomR�GH�GLVSDUR��SRU�RXWUD�
FODVVH�GH�ULVFR"
A medida que um padrão de ameças, efeitos, situações de exposição e
vulnerabilidades torna-se bem compreendido, naturalmente funda-se em torno desses
fatores uma nova classe de risco e, daí em diante, seus elementos de constituição
SDVVDP�D�VHU�SHUFHELGRV�VHJXQGR�D�HVWUXWXUD�GH�IXQFLRQDPHQWR�HVWXGDGD��9HUL¿TXHPRV�
como esse processo pode interferir na apreensão e na consideração consequente de
uma situação de risco mais próxima da realidade complexa.
� 1R�DQR�GH�������D�FLGDGH�WXUFD�GH�,]PLW��GLVWDQWH�����NP�GH�,VWDPEXO��SUHVHQFLRX�
XP�WHUUHPRWR�GH�PDJQLWXGH������2�DEDOR�VtVPLFR�SURYRFRX�HQWUH����H����PLO�PRUWHV��
GHPDQGRX�DMXGD�LQWHUQDFLRQDO�H�H[S{V�D�IUDJLOLGDGH�H�D�DXVrQFLD�GH�PHFDQLVPRV�GH�
SUHYHQomR�D�LPSDFWRV�GH�WUHPRUHV�QD�7XUTXLD��9,(,//$5'�%$521��������S�������
À sequência da catástrofe, mudanças foram anunciadas sob diversas frentes.
Notadamente, um discurso de combate aos efeitos sociais dos terremotos ganhou
destaque na mídia como forma de prevenção a riscos sociais e urbanos, pois o quadro
anterior de carências de prevenção abririam espaço para perda de representatividade
política com vistas a revoltas e a risco de intervenção autocrática.
Análises mais críticas das medidas adotadas no pós-crise revelaram o
SDUDGR[R� HQWUH� R� GLVFXUVR� KHJHP{QLFR� GH� UHHVWUXWXUDomR� SURIHULGR� H� R� QtYHO� GH�
31
comprometimento com o enfrentamento da natureza complexa dos riscos urbanos a
TXH�VH�GL]LD�FRPEDWHU��3e5286(���������
De modo geral, em Istambul, foram os bairros populares, cujas construções
LQIRUPDLV�HUJXHUDP�VH�DOKHLDV�jV�QRUPDV�GH�HGL¿FDomR�SDUDVVtVPLFD��RV�PDLV�DIHWDGRV��
Como de praxe, setores historicamente vulnerabilizados receberam as coronhadas
mais fortes da crise e são também aqueles que se veem mais desprovidos de meios
para se reerguer e ressarcir suas perdas. Foi assim, que inúmeras associações de
EDLUUR��GH�SURWHomR�FLYLO�H�GH�DPSDUR�D�YtWLPDV�VXUJLUDP�RX�VH�¿UPDUDP�QR�SyV�FULVH�
Parte dessas associações não se fundaram de modo espontâneo, foram,
na verdade, criadas pela prefeitura. Propagava-se, paralelamente, a ideia de que a
UHHVWUXWXUDomR� GH� XPD�7XUTXLD� DEDODGD� GDYD�VH� FRP� H¿FLrQFLD� GHYLGR� DR� HVIRUoR�
FRPXP�GD�VRFLHGDGH�H�HP�QRPH�GD�VROLGDULHGDGH�D�TXH�R�VLVPR�WHULD�SHUPLWLGR�DÀRUDU��
No mesmo ano, porém, o vetor de crescimento urbano de Istambul desviou-se para
as periferias mais seguras da cidade onde se formaram comunidades fechadas. Entre
os planos de governo, consta a construção de unidades-piloto de 25 mil habitantes
em setores distantes das zonas de risco, com subsídios para atrativos de indústrias e
VHUYLoRV��9,(,//$5'�%$521��������S�������
Lugares que antes eram considerados bons bairros caíram em descrédito por
virem-se açambarcados pelas raias delimitadoras de risco. Em 2002, existiam mais
de 220 comunidades fechadas em Istambul e o debate inicial sobre as formas de
viver em conjunto na cidade havia cedido espaço para o enfrentamento da violência
H�j�SURSDJDomR�GR�GLVFXUVR�GR�PHGR��2XWURV�EDLUURV�SHULIpULFRV�DSURIXQGDUDP�VHXV�
estigmas e seus moradores passaram a sofrer com a discriminação social e com a
GL¿FXOGDGH�GH�DUUDQMDU�WUDEDOKR��
Sob essa perspectiva, a manifestação do risco sísmico, a ocorrência do
terremoto e a consideração das chances de ocorrências futuras deram origem a um
furor de resposta à situação de desamparo geral, que, por seu turno, engendrou
especulações sobre riscos sociais e urbanos. A médio prazo, as ações respaldadas
por esse discurso de prevenção aprofundaram um quadro de fragmentação urbana e
divisão social já presente na Istambul de antes do terremoto, mas que de ali em diante
assumia os contornos e as proporções de um temerário estado de risco urbano maior.
Entendemos que esta ponderação sobre as relações de risco no caso de Istambul
só foi possível graças a um acompanhamento sistêmico e atento dos desdobramentos
32
históricos do caso. De outro modo, inadvertidamente, a mesma questão poderia
ser analisada do modo tradicional, em duas frentes paralelas e independentes de
estudo: uma sobre os riscos naturais e outra sobre os riscos sociais e urbanos, pois
FDGD�GLPHQVmR�SRVVXL�HOHPHQWRV�R�VX¿FLHQWH�D�FRQVLGHUDU�HP�VXD�HVWULWD�VHDUD��VHP�
que necessariamente assumam o problema como um mesmo problema de ordem
complexa e, portanto, digno de mútua ou múltipla consideração.
� 2�TXH�JRVWDUtDPRV�GH�UHVVDOWDU�QR�FDVR�GR�VLVPR�GH������GL]�UHVSHLWR�j�IRUPD�
como a segregação socioespacial se acirra e se coloca de fundo a medida que a
temática dos riscos naturais é apropriada como instrumento político de mediação dos
kQLPRV�H�GH�FRQWUROH�GH�tQGLFHV�GH�VDWLVIDomR�GR�HOHLWRUDGR��2�PHVPR��YDOH�SDUD�D�
rQIDVH�PLGLiWLFD�QD�YLROrQFLD�XUEDQD�FRPR�FDXVD�H�¿P�HP�VL��1HVVH�VHQWLGR��9LHLOODUG�
Baron pontua:
As origens das catástrofes - cujas causas e consequências convêm elucidar
para que melhor se conheçam os riscos incorridos pelo homem – são múltiplas e
frequentemente interdependentes. Uma primeira abordagem mostra que as cadeias
causais que as produzem se tornam mais complexas com o tempo e com o crescimento
HFRQ{PLFR��H�TXH�R�WHUULWyULR�p�GLUHWDPHQWH�DIHWDGR�FRPR�VXSRUWH�GRV�ULVFRV�H�OXJDU�
PDLRU�GH�LQWHUDo}HV���9,(,//$5'�%$521��������S������
Portanto, se admitimos a complexidade dessas questões, devemos também
rejeitar atalhos travestidos de soluções, que, quase sempre, aprofundam os
problemas a que se propõem resolver. A cidade, ou melhor, o ambiente urbano, é o
lugar de excelência das sobreposições e das interações de risco, porque concentra
uma ampla diversidade de feições paisagísticas, um variado leque de demandas de
uso do solo e de projetos de desenvolvimento em disputa, além dos inúmeros alvos
e vulnerabilidades distribuídos no espaço. É nessa linha que pretendemos avaliar
a profundidade das cadeias causais relativas aos riscos de inundações urbanas e
deslocar o lugar comum de tratamento corrente no âmbito dos riscos naturais.
33
���,QXQGDo}HV��HVWUXWXUDQWHV�FOLPiWLFRV��¿VLRJUi¿FRV�H�VRFLRHFRQ{PLFRV
Nesta seção, caracterizaremos as relações sistêmicas que permeiam a
problemática das inundações urbanas segundo o método de modelagem diagramática
SURSRVWR�SRU�%HUoRW��������S�������$�DXWRUD�UHVVDOWD�R�SRWHQFLDO�GDV�UHSUHVHQWDo}HV�
JUi¿FDV� QR� H[HUFtFLR� GH� HODERUDomR� H� UHHODERUDomR� GH� SUREOHPiWLFDV� GH� SHVTXLVD�
sobre sistemas socioambientais.
� 2V� PRGHORV� GH� UHSUHVHQWDomR� GLDJUDPiWLFD� QHVWD� SURSRVWD� GHYHP� VHU�
construídos com elementos que não se repetem no sistema, representados por
SDODYUDV�RX�H[SUHVV}HV�FXUWDV��VXEVWDQWLYRV��VHPSUH�TXH�SRVVtYHO��QmR�DGMHWLYDGRV���
2V� HOHPHQWRV� GHYHUmR� VHU� VXEGLYLGLGRV� HP� FDWHJRULDV� FRPXQV� DRV� GLDJUDPDV�
WUDEDOKDGRV�H�VXDV�UHODo}HV�UHSUHVHQWDGDV�SRU�VHWDV��7UDoRV�FRQWtQXRV�VLPEROL]DP�
UHODo}HV�GLUHWDV��SRVLWLYDV��H�SRQWLOKDGRV��DV�UHODo}HV�LQYHUVDV��QHJDWLYDV���3RU�¿P��
GDU�VH�i�GHVWDTXH�DRV�FLFORV�GH�UHWURDOLPHQWDomR�LGHQWL¿FDGRV��&LFORV�GH�DPSOL¿FDomR�
virão em azul e ciclos de estabilização em setas vermelhas. Esta última fase, porém,
não será aqui discutida por fugir ao escopo do artigo.
Como ponto de partida para a construção do diagrama, foram destacados
três processos centrais na produção do espaço urbano: a especulação imobiliária,
a exploração do trabalho e a espoliação urbana. Este último conceito foi cunhado
SRU�.RZDULFN��������H�WUDWD�VH�GH�XP�VRPDWyULR�GH�FRQGLo}HV�TXH�GL]HP�UHVSHLWR�j�
LQH[LVWrQFLD�RX�j�SUHFDULHGDGH�GH�VHUYLoRV�GH�FRQVXPR�FROHWLYR��VHUYLoRV�XUEDQRV��
que se mostram socialmente necessários à reprodução dos trabalhadores.
� 2� REMHWLYR� JHUDO� GRV� GLDJUDPDV� FRQVWUXtGRV� p� UHSUHVHQWDU� JHQHULFDPHQWH� R��
padrão de formação e expansão do sistema urbano brasileiro, de forma que se permita
relacionar o mosaico de diferentes usos e ocupações do solo à capacidade interna de
SURYLVmR�GH�VHUYLoRV�DPELHQWDLV��D�VDEHU�R�VHUYLoR�GH�GUHQDJHP�KtGULFD�VXSHU¿FLDO�
(regulação de inundações��QR�GLDJUDPD���(VWD�GLQkPLFD�p�SUREOHPDWL]DGD�FRP�EDVH�
na tendência de aumento crescente das porções de superfície impermeabilizada do
VROR� XUEDQR�� 4XDQWR� PDLV� DYDQoD� R� ELQ{PLR� HGL¿FDomR�SDYLPHQWDomR� VHJXQGR� R�
modelo clássico de urbanização higienista, ou seja, suprimindo a cobertura vegetal e
FRPSDFWDQGR�R�VROR��PHQRU�D�FDSDFLGDGH�GH�LQ¿OWUDomR�GDV�iJXDV�SOXYLDLV�H�PDLRU�H�
PDLV�UiSLGR�R�DF~PXOR�QRV�H[XOWyULRV��LQWHQVL¿FDQGR�DV�FKHLDV�H�IDYRUHFHQGR�HYHQWRV�
de enchentes e inundações nas cidades.
34
� $�LGHQWL¿FDomR�GH�iUHDV�GH�RFRUUrQFLD�GH�HQFKHQWHV�H�LQXQGDo}HV��WDLV�FRPR�
DV� ]RQDV� GH� ULVFR� VtVPLFR� HP� ,VWDPEXO�� WHP� VLJQL¿FDGR� GUDPiWLFR� HP� XP� HVSDoR�
XUEDQR�LQWHQVDPHQWH�GLVSXWDGR��2�FUHVFLPHQWR�GHVRUGHQDGR�GDV�FLGDGHV�DWUDYpV�GD�
ocupação de áreas problemáticas (encostas de morros e planícies de inundação às
PDUJHQV�GH�ULRV�H� ODJRDV��JHUD�YHUWLJLQRVD�GHJUDGDomR�GR�PHLR�DPELHQWH�H�H[S}H�
VHXV�PRUDGRUHV��HP�JHUDO��JUXSRV�GH�EDL[D� UHQGD��D�DPHDoDV�GLYHUVDV��2�FDUiWHU�
irregular dessas ocupações e a recorrente negligência por parte do poder público
com os grupos que as habitam imprimem com frequência padrões de assentamentos
insalubres, expondo esses grupos a sério risco ambiental.
Nos diagramas (Figuras 2, 3, 4 e 5���SURFXUDPRV�GHPRQVWUDU�D�GLQkPLFD�GH�
RFXSDomR�GRV�HVSDoRV�GH�H[FHomR�H�R�FDUiWHU�FUtWLFR�GRV�HOHPHQWRV�TXH�LQÀXHQFLDP�D�
FDSDFLGDGH�GH�¿[DomR�GRV�WUDEDOKDGRUHV�HP�VXDV�PRUDGLDV��2�FXVWR�GH�PDQXWHQomR�
de serviços urbanos por parte do poder público guarda relação profunda com o
controle que esse mesmo poder exerce sobre o mercado de trabalho (evitando a
GHSUHFLDomR�GRV�VDOiULRV��H�VREUH�R�PHUFDGR� LPRELOLiULR� �UHJXODQGR�D�HVSHFXODomR�
imobiliária e o Laissez faire que conduz ao caos urbano e ao comprometimento dos
VHUYLoRV�DPELHQWDLV�ORFDLV����
� 'HVVD� IRUPD�� ¿FDP� H[SRVWDV� DV� GLPHQV}HV� VRFLDO�� HFRQ{PLFD� H� DPELHQWDO�
GR�FRQÀLWR�VXEMDFHQWH�DR�SURFHVVR�GH�SURGXomR�GR�HVSDoR�LQWUDXUEDQR�H�R�DOHUWD�j�
tendência de especialização da metrópole como centros de consumo de recursos e
processos ecológicos dos ecossistemas extraurbanos. Uma vez comprometidos os
processos internos de sustentação à vida, quando não respeitados os limites e a
capacidade de suporte do sistema, tem início um efeito cascata de degradação da
TXDOLGDGH�GH�YLGD�XUEDQD�H�R�TXDGUR�GH�GHVLJXDOGDGH�VRFLRHFRQ{PLFD�ID]�FRP�TXH�
os prejuízos sejam sentidos também de forma desigual.
35
Figura 2. Elementos e variáveis envolvidas da produção social do risco de inundação em um sistema urbano brasileiro genérico.
Elaborado pelo autor.
36
Figura 3.�,QWHUUHODo}HV�GLUHWDV��FRQWtQXDV��H�LQYHUVDV��SRQWLOKDGDV��HQWUH�FRPSRQHQWHV�GH�XP�VLVWHPD�XUEDQR�EUDVLOHLUR�JHQpULFR�
Elaborado pelo autor
37
Figura 4. Áreas do conhecimento envolvidas da construção do risco de inundação urbana, indicadoras de complexidade.
Elaborado pelo autor.
38
Figura 5.�5HFRUWH��HP�D]XO��HYLGHQFLDQGR�R�HQTXDGUDPHQWR�WUDGLFLRQDO�GDV�LQXQGDo}HV�FRPR�ULVFRV�QDWXUDLV��(ODERUDGR�SHOR�DXWRU�
39
���&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV��(P�EXVFD�GD�UHVLOLrQFLD�GR�VLVWHPD�XUEDQR
Como haviamos postulado, riscos são construções sociais passíveis de
mediação em todos os níveis. Nesse sentido, o primeiro movimento de resposta a
TXDOTXHU�HYLGrQFLD�QRYD�GH�DPHDoD�SRGH�VHU�FRPSDUDGR�D�XP�DWR�UHÀH[R��D�UHMHLomR�
ou a negação. Isso ocorre por um motivo simples: a inexistência de um risco é
pressuposta até que se prove o contrário. Segue-se, neste caso, o princípio in dubio
pro progresso��TXH�VLJQL¿FD��QD�G~YLGD��GHL[D�HVWDU��%(&.��������S������
Situações de ameaça de forte dependência cognitiva, como as que temos nos
reportado, precisam romper com o senso comum de um estado de segurança e nascer
FLHQWL¿FDPHQWH��$PHDoDV�GLWDV�VLVWrPLFDV�JR]DP�DLQGD�GH�XP�FHQiULR�GH�SXOYHUL]DomR�
das responsabilidades devido à alta diferenciação da divisão do trabalho em meio a
uma multiplicidade de atores, lugares e condições. As causas e os culpados diluem-se
numa cumplicidade e numa irresponsabilidade geral, como se não houvesse escolha
a um curso de destino natural. Desse modo, sob o véu da complexidade sistêmica
e da moral corporativa, pode-se fazer algo danoso e continuar a fazê-lo sem que se
tenha de responder pessoalmente pelas consequências desses feitos.
� $LQGD�TXH�D�IRUPD�GH�DSUHHQVmR�VRFLDO�GH�XPD�FRQVWUXomR�FLHQWt¿FD�HVFDSH�
largamente à solidez metodológica dessa construção e funcione numa dinâmica
própria de divulgação e mediação junto à massa da opinião pública, assumimos a
UHOHYkQFLD�GR�SDSHO�FLHQWt¿FR�GH�DSURIXQGDU�VXSHU¿FLDOLGDGHV�H�DIDVWDU� WUDWDPHQWRV�
VLPSOL¿FDGRUHV�TXH�VRPEUHLDP�FDXVDOLGDGHV�FRPSOH[DV��$LQGD�TXH�QmR�KDMD�JDUDQWLD�
GD� SHUPHDELOLGDGH� H� GR� DFHLWH� GD� VRFLHGDGH� RX�PHVPR� GRV� SDUHV� FLHQWt¿FRV� GRV�
postulados sobre relações de risco de inundações urbanas, compreendemos que, sem
isso, as sociedades estão condenadas às vicissitudes cíclicas das soluções pontuais
TXH��SRU�YH]HV��DFLUUDP�SUREOHPDV��2X��QD�PHWiIRUD�GH�6HYFHQNR��FRQGHQDGDV�DR�
SDVVHLR�QD�HVSLUDO�VHP�¿P�
� $VVLP�� UHDOL]DPRV� RSHUDo}HV� GH� DMXVWH� H� UH¿QDPHQWR� GDV� FDXVDOLGDGHV� HP�
torno dos fatores que contribuem para a construção do quadro genérico de risco
GH� LQXQGDomR� QRV� VLVWHPDV� XUEDQRV� EUDVLOHLURV�� )L]HPRV� LVWR� D� ¿P� GH� YLDELOL]DU� D�
consideração efetiva das consequências de implementação do modelo tradicional de
uso e ocupação do solo urbano à vida e ao bem-estar da totalidade dos habitantes,
com destaque para os grupos historicamente vulnerabilizados.
40
Referências
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H�(VWXGRV�GD�3DLVDJHP��Y�����Q�����������
'(&/$5$d2�'(�)257$/(=$��5HJL}HV�VHFDV��XP�FKDPDGR�SDUD�DomR��'LVSRQtYHO�HP���KWWS���ZZZ�
LFLG���RUJ�"ORFDOH SWP FRQWHXGRD GHFODUDWLRQBIRUWDOH]D!��$FHVVR�HP�����VHW��������
.2:$5,&.��/��(VFULWRV�XUEDQRV�����HG��6mR�3DXOR��(G������������
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0$5$1'2/$�-5���(���+2*$1��'��-��9XOQHUDELOLGDGHV�H�ULVFRV��HQWUH�JHRJUD¿D�H�GHPRJUD¿D��5HYLVWD�
%UDVLOHLUD�GH�(VWXGRV�3RSXODFLRQDLV��Y������Q�����S����±����������
0($'2:6��'��+��HW�DO��/LPLWHV�GR�FUHVFLPHQWR��XP�UHODWyULR�SDUD�R�SURMHWR�GR�&OXEH�GH�5RPD�VREUH�R�
GLOHPD�GD�KXPDQLGDGH��6mR�3DXOR��3HUVSHFWLYD��������
3,172��$��/��5LVFRV�QDWXUDLV�H�FDUWD�GH� ULVFRV�DPELHQWDLV��XV�HVWXGR�GH�FDVR�GD�EDFLD�GR�FyUUHJR�
)XQGR��$TXLGDXDQD�06��&OLPDWRORJLD�H�(VWXGRV�GD�3DLVDJHP��Y�����Q�����������
35,0$&.��5��%���52'5,*8(6��(��%LRORJLD�GD�FRQVHUYDomR��/RQGULQD��(GLWRUD�3ODQWD��������
5(%(/2��)��5LVFRV�QDWXUDLV�H�DFomR�DQWUySLFD��HVWXGRV�H�UHÀH[}HV��&RLPEUD��,PSUHQVD�GD�8QLYHUVLGDGH�
GH�&RLPEUD��������
52&.675g0��-��HW�DO��3ODQHWDU\�ERXQGDULHV��H[SORULQJ�WKH�VDIH�RSHUDWLQJ�VSDFH�IRU�KXPDQLW\��(FRORJ\�
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6(9�),/+2��$��2��1R�OLPLWH�GRV�ULVFRV�H�GD�GRPLQDomR��D�SROLWL]DomR�GRV�LQYHVWLPHQWRV�LQGXVWULDLV�GH�
JUDQGH�SRUWH��������&DPSLQDV��63��8QLYHUVLGDGH�(VWDGXDO�GH�&DPSLQDV�
6(9&(1.2��1��$�FRUULGD�SDUD�R�VpFXOR�;;,��QR�ORRS�GD�PRQWDQKD�UXVVD���a. ed. São Paulo: Companhia
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41
9$6&21&(//26��0��-��(��'(��3HQVDPHQWR�VLVWrPLFR��2�QRYR�SDUDGLJPD�GD�FLrQFLD��&DPSLQDV��63��
Papirus, 2002.
9(<5(7��<��2V�ULVFRV��R�KRPHP�FRPR�DJUHVVRU�H�YtWLPD�GR�PHLR�DPELHQWH�����HG��6mR�3DXOR��&RQWH[WR��
������
9(<5(7��<���0(6&+,1(7�'(�5,&+(021'��1��2V� WLSRV�GH� ULVFR�� ,Q��2V� ULVFRV�����HG��6mR�3DXOR��
&RQWH[WR��������
9,(,//$5'�%$521��+��2V�ULVFRV�VRFLDLV��,Q��2V�ULVFRV�����HG��6mR�3DXOR��&RQWH[WR��������
CAPÍTULO 2 Cidades sustentáveis
E as Fronteiras
Do Respeito
43
Capítulo 2. Cidades sustentáveis e as fronteiras do respeito
Pablo Pimentel Pessoa
5(6802
As principais abordagens de desenvolvimento urbano sustentável (cidades corrigidas,
redesenhadas e autônomas) foram discutidas em cotejamento à diversidade de
discursos e embates situados ao campo amplo da sustentabilidade. Um breve panorama
GD�HPHUJrQFLD�GR�IHQ{PHQR�XUEDQR�HP�PHLR�j�KLVWyULD�GDV�FLGDGHV�p�DSUHVHQWDGR�
como subsídio à defesa da retomada de funções negligenciadas pela consagração da
racionalidade instrumental propagandeada pelo urbanismo progressista do século 20.
As possibilidades de superação dos gargalos que atravancam a transição da sociedade
XUEDQD�D�XPD�UHODomR�VLVWrPLFD�GH�EDVH�VXVWHQWiYHO�VmR�LGHQWL¿FDGDV�H�DSRQWDGDV��
com ênfase a um necessário respeito às preexistências, à universalização do direito à
cidade e às capacidades de suporte dos sistemas socioambientais intraurbanos.
1. Introdução: Dos maus negócios
“Encostei-me a ti, sabendo que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino, frágil,
Fiquei sem poder chorar quando caí.”
Epigrama No8, Cecília Meireles
� 2� TXH� SRGHULD� GHVHMDU� XPD� QDomR� VXEGHVHQYROYLGD� �HVWH� WRGR� FRQWLQJHQWH��
GH�DSDUHQWH�SROLIRQLD��GHVSURYLGD�GH�DFRUGR�H�GH�FRPXP�YRQWDGH��FRP�PDLV� IRUoD�
e fervor que alcançar, o quanto antes, o momento reticentemente reservado a um
WHPSR�IXWXUR�GD�FRQTXLVWD�GR�WtWXOR�GH�SDtV�H�SRYR�GHVHQYROYLGR"�(VWD�SDUHFH�D�PDUFD�
persistente da insatisfação que impregna a história das sociedades sul-americanas.
Porque “tem sempre alguém vendendo o mesmo peixe, dizendo que é fresco”* e nós
seguimos, geração a geração, trocando irmãos por espelhos, mães por pensões e
nutrindo-nos de frágeis, cada vez mais absurdamente frágeis, promessas de alforria
44
GH¿QLWLYD�H�SD]�
Não sem resistência, os movimentos de luta às formas sistêmicas de dominação
do homem sobre o homem tem percebido, nos três últimos decênios, que esta
exploração sem trégua se dá de forma muito semelhante sobre a natureza e, mais que
isso, o quanto o comprometimento de funções naturalmente desempenhadas pelos
sistemas vivos revelam a face mais dramática da desigualdade na distribuição das
condições de vida. Isto porque restringem, inclusive, a sobrevivência à margem das
HFRQRPLDV�IRUPDLV��2�PHVPR�SRGHULD�VHU�GLWR�GRV�PRYLPHQWRV�DPELHQWDLV�H�GH�VHX�
despertar às causas sociais em caminho inverso.
� )HOL]PHQWH��RV�GLVFXUVRV�FUtWLFRV�WHP�FDPLQKDGR�QXP�VHQWLGR�GH�FRQÀXrQFLD�
e mútuo reconhecimento enquanto questões socioambientais, de forma tal que
as novas apropriações de discurso e meandros retóricos por parte daqueles que
os enfrentam nos embates diários haverão de lidar com um nível mais elevado de
GL¿FXOGDGH�j�WDUHID�GH�OXGtEULR��D�FRQYHUVD�GH�SHVFDGRU��(P�WRGR�FDVR��D�HPHUJrQFLD�
moderna de uma questão ambiental global, a popularização de uma percepção acerca
de possíveis limites à alteração das paisagens e dos ecossistemas em função, é claro,
GDV�SULPHLUDV�YHUL¿FDo}HV�GRV�HORV�FDXVDLV�HQWUH�DV�DWLYLGDGHV�KXPDQDV�H�RV�HIHLWRV�
deletérios dessas ações, apontam cada vez mais para uma visão crítica do progresso.
� $¿QDO�� UHFRQKHFHPRV� LVWR�� GHVHQYROYLPHQWR� FDUHFH�GH�DGMHWLYDomR� �6$&+6��
�������6H�PHVPR�DVVLP��HVWH�WHUPR�QmR�VH�PRVWUDU�FDSD]�GH�UHIHULU�VH�j�YLGD�KXPDQD�
FRPR� ¿P�� HQWmR� QmR� VHUYLUi� VHTXHU� GH� UpJXD� j� HFRQRPHWULD�� SRUTXH� WDPSRXFR� D�
VHDUD�GLVFLSOLQDU�HFRQ{PLFD�WHP�FRQVHJXLGR�HPLWLU�SURQXQFLDPHQWRV�GH�F~SXOD�OLYUHV�
de constrangimentos. Ainda que tenhamos aprendido historicamente a conviver com
a desigualdade entre países, regiões, estados, cidades, bairros e pessoas, com a
consagração de privilégios em detrimento da universalização de direitos, que tenhamos
feito concessões além das elásticas linhas da dignidade, reconhecido e admitido a
existência de cidadãos de segunda categoria por todos os segmentos, omitindo a face
GH�VXMHLWRV�UHVSRQViYHLV�VRE�D�¿JXUD�GH�SHVVRDV�MXUtGLFDV�HVTXL]RIUrQLFDV�GH�DWLWXGH�
corporativa, que personagem poderia neste cenário engessado turvar e romper com a
SDUDOLVLD�GD�LQMXVWLoD�JHQHUDOL]DGD"
Assim como o limite da civilização é a barbárie, o abuso dos sistemas vivos
resulta em crise estrutural. Quando se rompem o elos fundamentais que sustentam um
sistema complexo, dá-se a quebra da resiliência. A ruptura de um estado de equilíbrio
45
GH�ÀX[RV�H�HVWRTXHV�YLD�GH�UHJUD�FRQGX]�D�XP�QRYR�DUUDQMR�GH�FRPSRQHQWHV��FXMD�
WUDQVLomR��DWp�RQGH�VH�VDEH��WHQGH�j�PXGDQoD�FDWDVWUy¿FD��6&+())(5��:$/.(5.��
������
� 2� FHQiULR� GH� LQFHUWH]DV� DQXQFLDGR�� HP� HVFDOD� JOREDO�� SHODV� PXGDQoDV�
climáticas e, a nível regional e local, pelo esgotamento de recursos e agravamento
de dependências territoriais por solapamento de serviços mínimos de suporte à vida
nos parece agregar a dose de constrangimento necessário aos espaços públicos,
políticos e acadêmicos à reabertura da discussão sobre as formas atuais de se ocupar,
transformar e distribuir o espaço em que se vive. Se o espaço em que se vive já é
majoritariamente e segue, cada vez mais, urbano; se existe uma centralidade capaz
GH�DJORPHUDU�RV�DWRUHV�H�RV�FRQÀLWRV�FKDYH�GDV�UHIHULGDV�TXHVW}HV�VRFLRDPELHQWDLV��
ainda que sejam apenas emissários de demandas que se processam em espaços
longínquos e envolvam outros atores, esses motivos confeririam às cidades e,
sobretudo, às metrópoles o status de arena privilegiada para ocorrência dos embates
acerca do futuro da humanidade. A nossa proposição aqui é de que, para as condições
históricas atuais, a sustentabilidade intraurbana precede e deve ser prioridade às
demais políticas de gestação de um mundo justo, democrático e sustentável.
2. Sustentabilidade: Um campo cambiante
“3RUTXH�HVWD�YLGD�p�VHPSUH�XP�GHV¿ODU�VDIDGR�GH�LGHLDV´
Ideias, Ednardo *
Antes de ingressarmos no debate dos temas urbanos e de como poderia vir
a ser concebido este modelo de cidade sustentável em respeito às fronteiras de
dignidade, reconhecemos a precedência de estabelecermos em nossas suposições
a sustentabilidade não como uma noção acabada ou em vias de amadurecimento
rumo à consolidação, mas como um terreno indissolúvel de tensões e de disputa. A
apresentação do panorama de posicionamentos e atores situados em torno desse
tema, – primeiramente referido como ecodesenvolvimento; clivado, em seguida, ao
ELQ{PLR�desenvolvimento sustentável; e, mais recentemente, tornado novamente
um termo uno – será nosso ponto de partida para situarmos as diferentes abordagens
46
de desenvolvimento urbano: as intervenções planejadas e as formas espontâneas de
uso e ocupação do solo urbano, cuja proximidade ou distância poderia ser tomada
GDTXLOR�TXH�GH¿QLUHPRV�FRPR�XPD�PRUIRGLQkPLFD�VXVWHQWiYHO�GD�SURGXomR�VRFLDO�GR�
espaço urbano.
� 6mR�GLYHUVRV�WDPEpP�RV�HVIRUoRV�GH�WLSL¿FDomR�H�UHFRQKHFLPHQWR�GRV�WUDoRV�
TXH�FDUDFWHUL]DP�D�LGHQWLGDGH�GDV�P~OWLSODV�OHLWXUDV�VREUH�VXVWHQWDELOLGDGH��+RSZRRG�
H�FRODERUDGRUHV��������PDSHDUDP�WHQGrQFLDV�VHJXQGR�XP�HVSHFWUR�GH�FRPELQDo}HV�
SRVVtYHLV� HQWUH� JUDXV� GH� VHQVLELOLGDGH� D� WHPDV� VRFLRHFRQ{PLFR�GLVWULEXWLYRV� H�
graus de percepções sobre questões ambientais. Desse trabalho de distinção, eles
LGHQWL¿FDP�WUrV�JUDQGHV�JUXSRV��RV�PDQWHQHGRUHV�GR�status quo, os reformistas e os
transformadores (Figura 1���
Figura 1. Panorama do campo da sustentabilidade e subcampos.
$GDSWDGR�GH�+RSZRRG���������(ODERUDGR�SHOR�DXWRU�
47
� 2� PRGHOR� SURSRVWR� SRU� +RSZRRG� H� FRODERUDGRUHV� ������� DSRLD�VH� QR�
JUDGLHQWH�GH�YLV}HV�DPELHQWDLV�GH�2¶5LRUGDQ� �������HQWUH�RV�H[WUHPRV�GR� WHFQR�H�
GR�HFRFHQWULVPR��$QWHFLSDPRV�TXH�WRGR�HVIRUoR�GH�FODVVL¿FDomR��VHMD�SRU�GH¿QLomR�
a priori de conceitos ou por estratégias de análises discursivas acerca dos usos
FRUUHQWHV�GRV� WHUPRV�QD� YLGD�SROtWLFD�� UHVXOWDUmR�HP�VLPSOL¿FDomR�GR�GHEDWH��(VWH�
parece, no entanto, um movimento inicial necessário, se estamos nos propondo a
acessar as insustentabilidades que permeiam as formas urbanas contemporâneas,
ainda que saibamos e não nos descuidemos da herança infernal atribuída ao
³SHFDGR�RULJLQDO´�GR�PpWRGR�GH�'HVFDUWHV��2V�DXWRUHV�GHVWH�PRGHOR��SRUpP��FRPR�
SUHWHQGHPRV� WDPEpP� ID]r�OR�� FRPSOH[L¿FDP� DTXHOH� JUDGLHQWH�� DFUHVFHQWDQGR� XP�
HL[R�QRYR�j�SDUWH��UHIHUHQWH�j�YDULiYHO�GDV�YLV}HV�VRFLRHFRQ{PLFDV��)D]HP�LVVR�SRU�
entenderem que sustentabilidade e justiça social não necessariamente convergem ou
se aglutinam entre posturas majoritariamente progressistas e conservadoras. Dessa
forma, posicionam-se, ao longo do espectro, as diferentes interpretações e posturas
diante do campo da sustentabilidade (Figura 2���9DOH�GHVWDFDU�D�SUHVHQoD�GH�DWRUHV�
e discursos situados à margem do campo delimitado pela área colorida (fronteiras
GR� FDPSR� GH� GHEDWH��� SRU� QmR� FRQWHPSODUHP� VDWLVIDWRULDPHQWH� DOJXP� GRV� HL[RV�
fundamentais considerados.
48
Figura 2. Posicionamento de agentes e discursos no campo.
�$GDSWDGR�GH�+RSZRRG���������(ODERUDGR�SHOR�DXWRU�
1DVFLPHQWR��������ID]�XVR�GH�RXWUD�HVWUDWpJLD�WDPEpP�VLPSOL¿FDGRUD�H�UHFRUUH�
jV�GLIHUHQoDV�QD�SHUFHSomR�FRPXP�GH�XPD�DPHDoD�j�KXPDQLGDGH��2�DXWRU�SDUWH�
HP�GHIHVD�GD�KLSyWHVH�GH�HVWUXWXUDomR�GH�XP�QRYR�FDPSR�VRFLDO��FRPR�GH¿QLGR�SRU�
Bourdieu, articulado em torno da sustentabilidade, para o qual caberiam, portanto,
regras próprias de ingresso, regularidades próprias ao jogo, agentes reconhecíveis,
FDSLWDLV�HVSHFt¿FRV�H�IRUPDV�GH�GHVHPSHQKR�QR�XVR�GHVVHV�FDSLWDLV���$V�YDQWDJHQV�
deste tratamento e, portanto, do abandono do uso de sustentabilidade como conceito
ou valor, residiriam na explicitação das lógicas dos debates em torno do futuro da
KXPDQLGDGH��GD�LGHQWL¿FDomR�GH�VHXV�DJHQWHV��UHFXUVRV�H�GDV�UD]}HV�GRV�HPEDWHV��1R�
plano político, isto abriria margem para análises mais objetivas e francas discussões
de divergências entre os participantes do campo.
� ¬� GLYLVmR� GH� VXEFDPSRV� SURSRVWD� SRU�1DVFLPHQWR� �������� Ki� XPD� SULPHLUD�
corrente a perceber este futuro ameaçado como uma ameça à Terra, em decorrência
49
das mudanças climáticas em curso. Um segundo grupo estaria preocupado com a
ameaça à vida na Terra em função do aquecimento global, mas também por conta
da degradação crescente da biodiversidade global, dos solos e dos recursos hídricos.
2� DXWRU� FRQVLGHUD� HVVHV� GRLV� SULPHLURV� VXEFDPSRV� FRPR� VLWXDGRV� DR� SODQR� GR�
imaginário dadas as suas frágeis fundamentações lógicas alheias à história geológica
H�DRV�FRQKHFLGRV�PHDQGURV�HYROXWLYRV�GHVGH�R�VXUJLPHQWR�GD�YLGD�QD�7HUUD�
� 1R�SODQR�GDV�SRVVLELOLGDGHV��1DVFLPHQWR��������LGHQWL¿FD�XP�WHUFHLUR�JUXSR���
este preocupado com a ameaça à vida humana na Terra. Aqui também os principais
DOHUWDV� WHP� RULJHP� QDV�PXGDQoDV� FOLPiWLFDV� H� QD� VXSRVLomR� GH� FRQ¿JXUDomR� GRV�
FHQiULRV�DQXQFLDGRV�SHOR�3DLQHO�,QWHUQDFLRQDO�VREUH�0XGDQoDV�&OLPiWLFDV��,3&&���¬�
última corrente tratada pelo autor restaria a percepção de uma ameça às condições
de vida humana na Terra. Do terceiro subcampo para este último, rompe-se o plano
das ocorrências possíveis rumo ao espaço das ocorrências prováveis. Nesse caso,
SDVVDP�D�VHU�FRQVLGHUDGDV�DV�YDULiYHLV�VRFLDLV�H�HFRQ{PLFDV��$LQGD�TXH�R�DTXHFLPHQWR�
global possa vir a ocupar lugar central, em geral, ocorre um deslocamento desse
tema para viabilizar a contemplação de um quadro mais amplo das disfuncionalidades
VRFLDLV��HFRVVLVWrPLFDV�H�GDV�FULVHV�HFRQ{PLFDV��e�VRPHQWH�QHVWH�TXDUWR�VXEFDPSR�
que a sustentabilidade urbana é capaz de encontrar relevância e o espaço necessário
para o amadurecimento do debate.
� 8PD� WHUFHLUD� FDWHJRUL]DomR�� TXH� GHYHUi� VH�PRVWUDU� ~WLO� DRV� QRVVRV� ¿QV� GH�
DQiOLVH��HQFRQWUD�VH�QRV�WUDEDOKRV�GH�'REVRQ���������2�DXWRU�UHVXPH�D�GLYHUVLGDGH�
encontrada na literatura sobre sustentabilidade a três concepções básicas, cujo
SULQFtSLR�RUJDQL]DGRU�SURYpP�GDV�UHVSRVWDV�SRVVtYHLV�j�SHUJXQWD�VREUH�R�TXH��D¿QDO��
KDYHULD� GH� VHU� VXVWHQWDGR��3DUD�'REVRQ� �������� Ki� WUrV� UHVSRVWDV� UD]RiYHLV�� D�� R�
capital natural crítico�� FDSLWDO� FRPR�GH¿QLGR�SRU�0DU[�� SRUpP��GH� FDUiWHU� QDWXUDO��
QHFHVViULR�j�SURGXomR�H�UHSURGXomR�GD�YLGD�KXPDQD��E��D�natureza irreversível, não
necessariamente vital à sobrevivência e ao bem-estar humanos, a qual tomaremos por
diversidade biogeofísica��H��SRU�¿P��F��R�valor natural, que advém do reconhecimento
da historicidade presente na relação dos humanos com o meio ambiente ao longo do
WHPSR��/(1=,��������S������
� 'DV�FODVVL¿FDo}HV�DSUHVHQWDGDV��WRPDUHPRV�SRU�EDVH�D�SULPHLUD�H�DSOLFDUHPRV�
DV�GHPDLV��TXDQGR�QHFHVViULR��VHPSUH�HP�VREUHSRVLomR�DR�HVSHFWUR�GH�+RSZRRG�H�
FRODERUDGRUHV���������9DOH��SRU�¿P��OHPEUDU�TXH�R�JUDGLHQWH�GH�VXEFDPSRV�status quo/
50
reforma/transformação apresentado no diagrama não raro é reduzido a um embate
HFRQ{PLFR�GH�H[WUHPRV�HQWUH�GXDV�FRUUHQWHV�PDMRULWiULDV��D�sustentabilidade fraca e
a sustentabilidade forte��2�QtYHO�JURVVHLUR�GH�SHUFHSomR�GDV�GLIHUHQoDV�QHVVD�HVFDOD�
GH�YLV}HV�GL¿FXOWD�R�UHFRQKHFLPHQWR�GD�LGHQWLGDGH�GRV�DJHQWHV�H�GH�VHX�SRVLFLRQDPHQWR�
em relação aos demais participantes, principalmente, àqueles que se situariam mais ao
referido extremo fraco da sustentabilidade. Esta referência de força ou compromisso
no tratamento de certos problemas fundamentais que marcam os discursos sobre
sustentabilidade, apesar das limitações, há de contribuir para uma análise crítica
dos modelos de desenvolvimento urbano que se propõem sustentáveis e se lançam
em disputa por hegemonia. Isso porque um dos pressupostos que consideramos
indispensáveis à compreensão dos processos urbanos é o reconhecimento da
estruturação dos elementos do espaço urbano enquanto componentes de um sistema
complexo; é o entendimento, portanto, de que intervenções em dadas porções do
sistema tem efeitos sobre os demais compartimentos e níveis e de que as soluções
propostas terão mais ou menos consistência com um sentido de sustentabilidade
conforme o nível de consideração sobre as consequências do encadeamento de
mudanças na totalidade do espaço urbano.
3. Abordagens de desenvolvimento urbano sustentável
“Se oriente, rapaz, pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente, rapaz, pela constatação de que a aranha
9LYH�GR�TXH�WHFH��9r�VH�QmR�VH�HVTXHFH
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração”
Oriente, Gilberto Gil
� 'H�DQWHPmR��UHFRQKHFHPRV�TXH�XPD�SDUWH�VLJQL¿FDWLYD�GRV�GLVFXUVRV�SURIHULGRV�
em referência à ideia da construção de cidades e metrópoles mais sustentáveis faça
uso corrente de adjetivações esvaziadas de sentido; ou, quando muito, travistam-se
GH� WRQDOLGDGHV� YHUGHV� FRP� YLVWDV� j�PDQXWHQomR� ¿VLROyJLFD� GDV� DQWLJDV� HVWUXWXUDV�
sociais, culturais e políticas, situando-se ou fora do campo da sustentabilidade ou nas
imediações do espaço onde se acomodam os mantenedores do status quo.
51
Consideraremos aqui apenas três principais correntes, reconhecidas por
+DXJKWRQ���������H��VHJXQGR�HOH��PDLV�UDGLFDLV��+i��ORJLFDPHQWH��RXWUDV�W{QLFDV�PHQRV�
pretensiosas e temas de forte apelo como o da mobilidade urbana, que se sobrepõem
a este debate, complementam-o e fazem referência direta sobre um repensar urbano
em moldes sustentáveis. Estas visões que apresentamos a seguir estariam, portanto,
integralmente inseridas no âmbito geral do debate sobre sustentabilidade e, para ser
mais preciso, aos arredores dos subcampos de reforma e transformação.
Cidades corrigidas
A abordagem corretiva se baseia no diagnóstico de que as cidades atuais
são, em geral, permeadas por disfuncionalidades urbanas: falhas de mercado e
VXEVtGLRV� LQDGHTXDGRV��2� FDPLQKR� SDUD� D� FLGDGH� VXVWHQWiYHO� VHULD�� D� SDUWLU� GHVWD�
leitura, construído mediante uma ampla reforma nos mecanismos de funcionamento
do mercado.
� 7UDWD�VH� GH� XPD� DERUGDJHP� HVVHQFLDOPHQWH� HFRQ{PLFD�� +DXJKWRQ� �������
menciona como referência, ao tratar deste tipo de pensamento, o documento “Urban
Policy and Economic Development: an agenda for the 1990s”. Esta publicação do
%DQFR� 0XQGLDO� ������� WUD]� XP� DSDQKDGR� GRV� SUREOHPDV� XUEDQRV� YLVWRV� FRPR�
LQH¿FLrQFLDV�GH�PHUFDGR��H[WHUQDOLGDGHV���$�LQWHUQDOL]DomR�GRV�FXVWRV�DPELHQWDLV�GH�
produção, com larga aplicação do Princípio do poluidor-pagador e a readequação de
preços sobre recursos exauríveis, conduziria a um quadro ótimo de gestão dos bens
de uso comum.
Ainda que haja neste documento considerações de cunho distributivo, é
patente a ênfase dada sobre os ajustes de mercado como solução central. A primazia
GR�FULWpULR�GH�H¿FLrQFLD�FRPR�RULHQWDGRU�GDV�PXGDQoDV�QHFHVViULDV�FRQIHUH�D�HVWD�
DERUGDJHP�SRXFD�VHQVLELOLGDGH�jV�GLVSDULGDGHV�JHRJUi¿FDV�H�VRFLDLV��DOpP�GH�XPD�
RSRUWXQD�QHJOLJrQFLD�DR�SUREOHPD�GR�FUHVFLPHQWR�HFRQ{PLFR�JOREDO�
� 2FRUUH�TXH�R�FXLGDGR�FRP�D�VD~GH�GRV�PHUFDGRV�p��TXDVH�VHPSUH��XP�GHVFXLGR�
FRP�DV�SHVVRDV��$�FLGDGH�FRUULJLGD��HP�QRVVD�OHLWXUD��FRQÀLWXD�FRP�D�cidade para
pessoas – uma perspectiva de urbanismo que problematiza a primazia do planejamento
de tráfego em voga nos últimos 50 anos e superpõe as necessidades humanas, em
52
referência a pedestres e ciclistas, como foco das ações de planejamento urbano. Em
YHUGDGH�� TXDOTXHU� HVIRUoR� GH� UHRULHQWDomR� GRV� FRPSRUWDPHQWRV� VRFLRHFRQ{PLFRV�
à sustentabilidade passará por necessárias reformas a nível dos mercados: nos
sistemas de preços, nos marcos regulatórios, nas cobranças por ocasionais danos
e injustiças socioambientais. Esta constatação, no entanto, não pode ser satisfatória
VH� FRPSDUWLOKDPRV� GDV� SUHRFXSDo}HV� XUEDQDV� FRPR� GH¿QLGDV� QR� TXDUWR� JUXSR�
GHVFULWR� SRU� 1DVFLPHQWR� �������� GDV� ameaças às condições de vida humana na
Terra��$�DERUGDJHP�FRUUHWLYD��VH�EHP�FRQGX]LGD��JDUDQWLUi�WmR�VRPHQWH�H¿FLrQFLD�QRV�
processos urbanos. Assim, faremos mais e melhor com menores quantidades, em
menos tempo e, numa visão otimista, com menos prejuízos aos envolvidos direta e
indiretamente nos processos.
� 2�TXH�GHYH�VHU�SURWHJLGR�QXPD�FLGDGH�FRUULJLGD"�9HMDPRV�TXH�QHQKXPD�GDV�
UD]RiYHLV�UHVSRVWDV�GH�'REVRQ��������VH�DGHTXDP�DR�TXH�SURS}H�HVWH�PRGHOR�GH�
cidade. Mesmo que a tradição e a história ambiental da humanidade passe a ser
valorada ou que funções paisagísticas de compartimentos biogeofísicos relevantes
intra e extra-urbanos sejam apreendidas e integradas a cadeias produtivas, teimará
em pesar sobre a natureza a avaliação, vista como legítima, sobre o custo de
oportunidades embutido na decisão de supressão ou não desses valores para outros
usos mais rentáveis.
� 2�UHSHQVDU�XUEDQR�WDQJHQFLD��GHVWH�SRQWR�GH�YLVWD��D�HVVrQFLD�GR�GHEDWH�HQWUH�
sustentabilidade forte e fraca. A crença na substitutibilidade virtual de recursos
naturais por tecnologia e recursos humanos representa um divisor de águas onde
TXHU�TXH�VH� LQWHUSRQKDP�LPEUyJOLRV�DPELHQWDLV��2�PDLV�UHFHQWH�UHODWyULR�GR�Painel
Internacional para Manejo de Recursos Sustentáveis� �81(3�� ������� RX�Painel de
Recursos, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente��3180$��DWHVWD�
HVWH�RWLPLVPR�WHFQROyJLFR�DR�GLVFXWLU�DV�SRVVLELOLGDGHV�GD�GHFRODJHP�HFRQ{PLFD�D�
QtYHO�GH�FLGDGH��2�FRQFHLWR�GH�GHFRODJHP��TXH�GHX�D�W{QLFD�QRV�GHEDWHV�H�DFRUGRV�
¿UPDGRV�QD�Rio +20, soa como a última cartada das correntes cornucopianas de fé
QR�FUHVFLPHQWR�HFRQ{PLFR�RX�QD�FKDPDGD�economia verde��2�WHUPR�ID]�UHIHUrQFLD�
à desmaterialização da economia, uma tendência à redução da dependência relativa
GRV�SURFHVVRV�HFRQ{PLFRV�GH�VHXV�IDWRUHV�GH�SURGXomR�GH�EDVH�PDWHULDO�PHGLDQWH�
JDQKRV�HP�H¿FLrQFLD�H�QRYDV�WHFQRORJLDV�GLWDV�HFRORJLFDPHQWH�FRUUHWDV��GDt�D�LGHLD�
de um descolamento ou decolagem (decoupling���
53
� $� VXSHU¿FLDOLGDGH� GDV� PHWDV� FRUUHWLYDV� UHVLGH�� HP� SULPHLUR� OXJDU�� QD� IUDFD�
FRQVLGHUDomR� GD� H[LVWrQFLD� GH� OLPLWHV� DEVROXWRV� j� H[SDQVmR� HFRQ{PLFD�� 5HVLGH�
também na desconsideração do efeito rebote, evidenciado pelo Paradoxo de Jevon
�0$<80,��*,$03,(752��*2:'<���������GH�TXH�R�DOFDQFH�GD�H¿FLrQFLD�SHUVHJXLGD�
só reduz a demanda sobre os fatores de produção em termos relativos e não em
DEVROXWR�� 6REUH� HVVH� DVSHFWR�� 9HLJD� ������� S�� ����� H[SOLFD� TXH� R� LPSDVVH� HQWUH�
economistas ecológicos e convencionais se dá pela suposição dos recursos naturais
e capitais como bens complementares por uns e substitutos por outros. Stiglitz, um
dos defensores da substitutibilidade contextualiza o debate e, nisso, alivia o peso de
seus argumentos ao dizer que os modelos analíticos da economia convencional são
úteis a questões de médio prazo, algo entre 50 e 60 anos. De fato, se considerarmos
o pensamento de Georgescu-Roegen – de quem partiu a crítica mais contundente
à esquizofrenia do crescimento ilimitado –, a ameaça do esgotamento dos meios
PDWHULDLV�SDUD�D�UHDOL]DomR�GDV�DWLYLGDGHV�HFRQ{PLFDV�IXQGDPHQWDLV�j�PDQXWHQomR�
da vida social lançam-se a um horizonte temporal para além do longo prazo.
Fizemos questão de ressaltar a relevância do debate sobre a substitutibilidade
dos recursos naturais na tentativa de endereçarmos corretamente a problematização
aos modelos de cidade corrigida. A centralidade e a auto-referência histórica do
IHQ{PHQR�XUEDQR�JOREDOL]DGR�GHVFRQKHFH�IURQWHLUDV�j�H[SDQVmR�GH�VXDV�GHPDQGDV�
PHWDEyOLFDV��FRWLGLDQDV��VD]RQDLV�H�HVSRUiGLFDV���7DPSRXFR�VHQWH�FRQVFLHQWHPHQWH�
VHXV�HIHLWRV�GHOHWpULRV��9DOHPR�QRV�GDV�PHGLo}HV�GH�SHJDGD�HFROyJLFD (nacionais,
UHJLRQDLV� H� PXQLFLSDLV�� FRPR� FRQVWDWDo}HV� GH� TXH� DV� DJORPHUDo}HV� KXPDQDV�
frequentemente requisitam áreas em energia e recursos maiores que os seus próprios
limites, a saber os primeiros estudos sobre as pegadas de países desenvolvidos.
2� HVSUDLDPHQWR�� D� FRQXUEDomR� H� D� H[SDQVmR� XUEDQD� VmR� WHQGrQFLDV� ODUJDPHQWH�
YHUL¿FDGDV�HP�FLGDGHV�SRU�WRGR�R�JORER�H�D�RFXSDomR�LUUHVWULWD�GH�iUHDV�UHVLGXDLV�GD�
malha urbana – porque inadequadas à moradia e ao trânsito – revelam a face triste da
urbanização latino-americana e dos países subdesenvolvidos do Sul: urbanizar é via
de regra negar a paisagem natural.
Enquanto o crescimento constar entre os elementos a serem sustentados
na lista de pré-condições à sustentabilidade da cidade corrigida este modelo se
aproximará do extremo dito fraco e demandará fartas porções dos ecossistemas do
entorno, promovendo a externalização dos seus custos ambientais de reprodução. As
54
soluções de mercado usualmente propostas envolvem acordos de compra e venda de
capacidades de carga adicionais, para o caso de cidades que já tenham de lidar com
limitações internas e àquelas que ainda encontrem o que expandir. A esta estruturação
GRV�ÀX[RV�H�HVWRTXHV��PDWHULDLV�H�HQHUJpWLFRV��ODUJDPHQWH�GHSHQGHQWHV�GH�VHUYLoRV�
e recursos extra-urbanos intitulamos metabolismo linear. A cidade corrigida não
se orienta, portanto, a resolver internamente seus problemas de abastecimento,
UHJXODomR�H�PDQXWHQo}HV�QHFHVViULDV��(OD�p��QHVVH�VHQWLGR��FRPR�DSRQWD�+DXJKWRQ�
��������H[WHQVDPHQWH�H[WHUQR�GHSHQGHQWH�
Cidades redesenhadas
Assim como os economistas, em geral, reconhecem-se na cidade corrigida ou,
no mínimo, sentem-se naturalmente instrumentalizados para discuti-la, os arquitetos-
urbanistas e planejadores urbanos costumam dar vazão aos seus anseios por mudança
no campo da sustentabilidade a partir das propostas de redesenho urbano.
Aqui a aposta se faz na forma urbana compacta como estratégia para
UHGXomR�VLJQL¿FDWLYD�GR�FRQVXPR�HQHUJpWLFR�H�GD�JHUDomR�GH�UHVtGXRV��$�EDVH�GHVWH�
pensamento decorre da crítica aos modelos de funcionamento, gestão e crescimento
praticados pelas cidades do século 20; ao funcionalismo da arquitetura modernista,
de atribuições únicas a cada espaço e amplamente apoiado no modelo de circulação
URGRYLiULR��/(,7(��$:$'��������S��������$V�GLWDV�IRUPDV�FRQYHQFLRQDLV�GH�SODQHMDU�
o uso do espaço seriam fontes de expensas materiais e energéticas desnecessárias.
Assim, voltar sobre si a cidade que se espraia, sobrepor funções e reduzir distâncias,
elevando as densidades centrais e valorizando o espaço público, seriam meios de
HYLWDU�TXH�D�FLGDGH�VH�D¿UPH�FRPR�IDUGR�FDGD�YH]�PDLRU�DRV�HFRVVLVWHPDV�H[WHUQRV�
que lhe dão suporte.
� $�EXVFD�SRU�H¿FLrQFLD�WDPEpP�WHP�VXD�PDUFD�QD�FLGDGH�UHGHVHQKDGD��8PD�
PDUFD�LGHQWLWiULD��QD�YHUGDGH��2�UHGHVHQKR�p�WLGR�DTXL�FRPR�VROXomR�SULPRUGLDO�SDUD�
redução das entradas (inputs� e saídas (outputs��GR�VLVWHPD��$WUHODGR�j�DQiOLVH�GH�
que as cidades tradicionais seriam esbanjadoras de recursos, porque moldadas sob a
crença na abundância (de água, terra, energia e áreas para disposição e absorção do
OL[R���HVWD�UHHVFULWD�GR�PRGR�GH�YLYHU�XUEDQR�DSRLD�VH�HP�JUDQGH�SDUWH�QD�LQFRUSRUDomR�
55
de novas tecnologias poupadoras, que abrangem desde o ambiente domiciliar
(banheiros secos ou inteligentes, com sistemas hidráulicos desenhados para o reúso,
fornos solares, composteiras e hortas caseiras, placas fotovoltaicas, alternativas para
DTXHFHGRUHV�H�UHIULJHUDGRUHV�GH�DU��HWF���jV�ERDV�SUiWLFDV�GH�FRQVWUXo}HV�GH�HGLItFLRV�
e obras de infraestrutura urbana.
� +DXJKWRQ��������FKDPD�D�DWHQomR�SDUD�XP�GHWDOKH� LQWHUHVVDQWH�JHUDOPHQWH�
associado a esta visão: sem de pronto romper com o antropocentrismo, o apelo
dos discursos em defesa da cidade corrigida orienta-se por um respeito maior aos
processos naturais. As soluções e propostas de design difundidas nesta corrente seriam
inteligentes, portanto, quando capazes de realizar um acoplamento bem-sucedido
HQWUH�RV�DVVHQWDPHQWRV�KXPDQRV�H�DV�GLQkPLFDV�GD�QDWXUH]D�FLUFXQGDQWH��+i��GHVVD�
IRUPD�� XP� ORXYRU� DR� IHQ{PHQR� XUEDQR� TXH� QmR� FRQWUDVWD� FRP� R� UHFRQKHFLPHQWR�
da existência de uma natureza urbana, mesmo que residual. Admitir que sob ou
sobre o ambiente construído persistem paisagens e processos naturais que as
animam independente do nível de alteração empreendido no espaço traz importantes
consequências às proposições inspiradas por essa linha de pensamento.
Diz-se que a manifestação dessa sensibilidade, historicamente marginal aos
empreendimentos urbanos de outrora, não chega a romper com um antropocentrismo
SRVVLYHOPHQWH�SHUQLFLRVR��QR�TXH�WDQJH�j�SURGXomR�GH�ULVFRV�DPELHQWDLV�LQWUDXUEDQRV��
SHOD�SRVWXUD�GH�PHGLDomR��UHYHODGRUD�GH�SHVRV�H�YDORUDo}HV��TXDQGR�GR�DÀRUDPHQWR�
GH�FRQÀLWRV�GH�GHVWLQDo}HV�GH�XVR�GRV�HVSDoRV��$R�VH�WUD]HU�j�WRQD�D�PXOWLSOLFLGDGH�
de funções, a elevação virtual das taxas de adensamento e das conectividades,
como máximas à garantia da manutenção da vitalidade, eventuais constatações de
fragilidade ambiental indicadoras de preservação restritiva (e.g. dunas, nascentes,
PDWDV� ULSiULDV�� PDQJXH]DLV�� FRUUHGRUHV� H� IUDJPHQWRV� GH� JUDQGH� YDORU� HFROyJLFR��
tendem a ocupar um lugar de segundo plano no ranking das prioridades.
Em termos de planejamento, frequentemente recorre-se a parâmetros locais
GH�PRQLWRUDPHQWR�GRV�QtYHLV�GH�FRQVXPR��GD�RWLPL]DomR�GH�SURFHVVRV� LQH¿FLHQWHV�
H�GD�HFRQRPLD�DOFDQoDGD�FRP�R�UHDSURYHLWDPHQWR�H�R�UH~VR�GH�UHFXUVRV��2�PRGHOR�
GH� FLGDGH� UHGHVHQKDGD�� QR�PRPHQWR� HP�TXH�S}H�rQIDVH�j� EXVFD�SHOD� H¿FLrQFLD��
naturalmente incorre nos mesmos pontos passíveis de crítica das soluções
mercadológicas da cidade corrigida. Nesse quesito, podemos dizer que aqui também
QmR�VH�S}H�HP�[HTXH�R�GHVHQYROYLPHQWR�DODYDQFDGR�SHOR�FUHVFLPHQWR�HFRQ{PLFR��
56
2V�SUREOHPDV�DVVRFLDGRV�j�HVSDFLDOL]DomR�GR�FUHVFLPHQWR��WUDGX]LGD�HP�H[SDQVmR�
urbana horizontal, são administrados como se a abundância dos espaços centrais mal
utilizados não apresentasse também um horizonte de saturação de aproveitamento
�%5(+(1<���������$GHPDLV�� LQGLFDGRUHV� ORFDLV�QmR� LQFRUSRUDP� LQVXVWHQWDELOLGDGHV�
GH�FXQKR�GLVWULEXWLYR��VRFLDO�H�HVSDFLDO��DR�TXH�VH�VXFHGH�DOpP�GRV�OLPLWHV�GR�VLVWHPD�
considerado. Ainda que os processos internamente se deem a condições aceitáveis
e que venham a reduzir, de modo geral, impactos externos, as relações com distritos
próximos ou zonas de aporte longínquas podem vir a promover seletivamente a ruína
de ecossistemas provedores e de economias estruturadas sob forte dependência da
FLGDGH�UHGHVHQKDGD��7DO�VLWXDomR�KLSRWpWLFD�VHULD�LQGLFDWLYD�GH�IUDJLOLGDGH�QDV�UHODo}HV�
intersistêmicas, o que enfraqueceria a sustentabilidade do modelo.
� 3RU�¿P��VLWXDUHPRV�RV�GHIHQVRUHV�GD�FLGDGH�UHGHVHQKDGD�FRPR�LGHQWL¿FDGRV�
DR� VXEFDPSR� GD� UHIRUPD� GH� +RSZRRG� H� FRODERUDGRUHV� �������� SRUTXH� DVVLPLODP�
em seus discursos o imperativo das mudanças de postura rumo à sustentabilidade,
DGPLWLQGR�TXH�VRE�DV�HVWUXWXUDV�VRFLDLV�H�SROtWLFDV�FRUUHQWHV�LVWR�GL¿FLOPHQWH�RFRUUHUi��
As proposições práticas, nesse sentido, avaliamos, recuam mais que avançam, uma
YH]�TXH�RUELWDP�HP� WRUQR�GH�PDUFRV� UHJXODWyULRV�H� LQFHQWLYRV�¿QDQFHLURV�YROWDGRV�
basicamente à reorientação de mercados e dos comportamentos individuais, sem
referências objetivas à reformulação de comitês, conselhos e demais instâncias
de decisão participativa no que concerne aos rumos do desenvolvimento urbano;
DRV� GHVD¿RV� GH� JRYHUQDQoD� H� HQWUDYHV� FXOWXUDLV� SHUVLVWHQWHV�� RX� D� REVWiFXORV�
intransponíveis senão por vias de reforma política.
Algo neste modelo, no entanto, o distancia imensamente do ideário da cidade
FRUULJLGD�� (P� QRVVD� DYDOLDomR�� D� FLGDGH� UHGHVHQKDGD� DEUH� XP� ÀDQFR� KLVWyULFR�
SDUD�XP�PRPHQWR�GH�D¿UPDomR�KHJHP{QLFD�GD� LGHRORJLD�GD�FLGDGH�SDUD�SHVVRDV��
(PERUD�R�DSHOR�j�FRPSDFLGDGH�H�DRV�JDQKRV�HP�H¿FLrQFLD�DVVRFLDGRV�jV�HVWUDWpJLDV�
poupadoras não caminhem necessariamente de mãos dadas com a defesa dos
SULQFtSLRV�JHUDGRUHV�H�PDQWHQHGRUHV�GD�YLWDOLGDGH�QR�HVSDoR�XUEDQR��-$&2%6���������
há certamente muitos pontos de convergência. As críticas aos modelos convencionais
de cidade são essencialmente as mesmas nas duas linhas de abordagem, de forma
TXH� R� DOFDQFH� GD� FRQVLGHUDomR� GD� GLPHQVmR� KXPDQD� FRPR� DOWHUQDWLYD� H� ¿P� GDV�
políticas e propostas de intervenção indicariam uma percepção mais acabada e
robusta do quadro amplo de problemas com que estão lidando as cidades modernas,
57
um algo a mais.
Qual a importância, então, de um modelo de cidade redesenhada voltado para as
SHVVRDV"�3RODQ\L��������S������H[SOLFD�TXH��GHVGH�R�VpFXOR�����FRP�R�HVWDEHOHFLPHQWR�
dos sistemas mercantis, os mercados expandiram em número e em importância,
tornando-se, pela primeira vez, a principal preocupação dos governos, ainda que
IRUWHPHQWH�UHJXODGRV��$�SDUWLU�GR�VpFXOR����p�TXH�VH�DSUHVHQWD�D�LGHLD�GH�XP�PHUFDGR�
autorregulável, que, segundo Polanyi, passaria a controlar a sociedade e a orientar
os seus propósitos de desenvolvimento. Sociedades e mercados autorregulados são
vistos aqui como lutadores, a quem o cinturão da vitória legitimaria uma relação de
subordinação. Desse modo, os estudos de antropologia social revolvidos pelo autor
VHULDP�D�EDVH�GR�DUJXPHQWR�GH�TXH�RV�VLVWHPDV�HFRQ{PLFRV�GR�SDVVDGR�WHULDP��YLD�
GH� UHJUD�� IHLWR�XVR�PHUDPHQWH�DFHVVyULR�GH�PHUFDGRV�DWp�R� ¿QDO� GD� ,GDGH�0pGLD��
quando uma nova economia, voltada para mercados, iniciaria seu movimento de
VXEPLVVmR�GDV�VRFLHGDGHV�D�¿QV�HVVHQFLDOPHQWH�HFRQ{PLFRV�
Não é nossa intenção dirimir as sombras e dúvidas que pairam sobre os
desdobramentos possíveis da propagação de novos caracteres culturais e seus
potenciais de transformação quando imersos em um dado modelo de desenvolvimento
urbano sustentável. Apenas nos propomos a distinguir elementos cuja apropriação
SRGHULD�VLJQL¿FDU�XPD�UXSWXUD�HP�UHODomR�DRV�JDUJDORV�DSRQWDGRV�HP�FDGD�PRGHOR��
'LWR�LVVR��RV�OLYURV�GH�*HKO��������³Cidades para pessoas´�H�GH�6HQ�H�.OLNVEHUJ��������
“As pessoas em primeiro lugar” são dois bons parâmetros para tomarmos a dimensão
GR�TXDQWR�QRVVRV�PRGHORV�GH�GHVHQYROYLPHQWR�HFRQ{PLFR�H�XUEDQR�VH�GLVWDQFLDUDP�H�
relegaram a segundo plano a perseguição primordial de objetivos sociais e humanos.
58
Quadro 1.�(FRQRPLD�FRPR�VXEVLVWHPD�GH�XP�VLVWHPD�7HUUD�IHFKDGR
2UJDQL]DGR�SHOR�DXWRU�
59
Cidades autônomas
� 2�WHUFHLUR�H�~OWLPR�PRGHOR�WUD]�FRPR�SHGUD�GH�WRTXH�j�UHYHODomR�GH�VXD�LGHQWLGDGH�
a compreensão central de que o curso de modernização das cidades, de modo geral
e por todo o globo, conduziu-as ao desempenho da postura padrão de ¿OKDV�SUyGLJDV,
que, imbuídas ao desbrave das fronteiras que as comprimiam (regionais, nacionais e
FRQWLQHQWDLV���WRUQDP�j�FDVD��QXP�VHJXQGR�PRPHQWR��DSyV�VRIUHUHP�RX�DQWHYHUHP�
o tombo de sua própria imprudência. Autonomia, nesse sentido, é nada além de um
contraponto histórico ao desfecho do episódio anterior desta saga, quando, apoiadas
nos mercados autorregulados, as cidades projetaram-se à conquista da heteronomia
�FRQGLomR�GH�VXMHLomR�D�XPD�YRQWDGH�H[WHUQD��H��DVVLP��FRQKHFHUDP�FHUWR�IUDFDVVR��
É importante que não se apreenda por autonomia um sentido de independência
impassível, a historicidade contida nas proposições deste modelo apontam para a
EXVFD�GH�DXWRVVX¿FLrQFLD�H�DXWRGHWHUPLQDomR�FRPR�VHQVR�GH�PDWXULGDGH�DGTXLULGR�
HP�IXQomR�GRV�IDUGRV�H�{QXV�LQMXVWDPHQWH�UHOHJDGRV�jV�YL]LQKDQoDV�
� $� HVWUDWpJLD� GH� VXVWHQWDELOLGDGH� GR� PRGHOR� GH� FLGDGH� DXW{QRPD� HVWi�
fortemente amparada na administração espacial – regional e, sempre que possível,
LQWHUQD� ±� GH� VHXV� SUREOHPDV�� 7UDWD�VH� GH� JHULU� ORFDO� H� UHJLRQDOPHQWH� TXHVW}HV�
FRPR�SURYLVmR�GH�iJXD��HQHUJLD�H�DOLPHQWRV�H�iUHDV�SDUD�GLVSRVLomR�GH�HÀXHQWHV�
e resíduos, convertendo o metabolismo urbano, via absorção produtiva das saídas
(outputs���D�XP�IRUPDWR�circular. Esta corrente conquista mais adeptos entre militantes
DPELHQWDOLVWDV�� JHyJUDIRV�� ELyORJRV�� HFyORJRV�� HQJHQKHLURV� ÀRUHVWDLV� H� DPELHQWDLV�
e demais planejadores ambientais e regionais, porque, dentre os demais modelos
apresentados, é esta a vertente que alcança um distanciamento mais bem-sucedido
GD�PRUDO�DQWURSRFrQWULFD��+i��GHVVD�IRUPD��XPD�rQIDVH�QR�SODQHMDPHQWR�ELRUUHJLRQDO�
FRPR�SLODU�PHWRGROyJLFR�H�FRQFHLWXDO�GRV�HVIRUoRV�GH�SODQL¿FDomR�GR�XVR�GH�UHFXUVRV�
e serviços-chave. A saber, as biorregiões são unidades convenientes de planejamento
GHOLPLWDGDV�SRU�IURQWHLUDV�QDWXUDLV��WRSRJUD¿D��YHJHWDomR�RX�WLSR�GH�VROR��H�J��EDFLDV�
KLGURJUi¿FDV��YDOHV��HFRVVLVWHPDV��GRWDGDV�GH�UHODWLYD�VX¿FLrQFLD�TXDQWR�j�JDUDQWLD�
de funções ambientais mínimas à manutenção da vida.
Por trás do apelo à regionalização e à relocalização das atividades humanas,
há uma forte crítica ao modus operandi das economias globalizadas, à íntima
GHSHQGrQFLD�SRU�SDUWH�GDV�JUDQGHV�H�PHJDFLGDGHV�GRV�ÀX[RV�FRQWLQJHQWHV�GH�FDSLWDLV�
60
¿QDQFHLURV�H�UHFXUVRV�PDWHULDLV�GH�]RQDV�SURYHGRUDV�ORQJtQTXDV��HVSHFLDOL]DGDV�HP�
SURYLPHQWR�H��SRU� LVVR�� LJXDOPHQWH�GHSHQGHQWHV���1R�DWXDO�HVWiJLR�GH�XUEDQL]DomR�
JOREDO��D�PDLRULD�GDV�FLGDGHV�PpGLDV�H�JUDQGHV�Mi�FRPSURPHWHUDP�SDUWH�VLJQL¿FDWLYD�
de suas capacidades naturais internas de regeneração, absorção e provimento de
elementos básicos como água, cobertura vegetal, solos férteis e áreas e corpos
G¶iJXD�SDUD�GHVWLQDomR�¿QDO�GH�UHVtGXRV��(P�XP�SULPHLUR�PRPHQWR��SRUWDQWR��HVWD�
reorientação poderia vir a ser traduzida em um fardo insuportável aos compartimentos
biogeofísicos urbanos já debilitados. De um ponto de vista intra-urbano, tais propostas
LQWHQVL¿FDULDP�R�XVR�GH�UHFXUVRV�H�VHUYLoRV�ORFDLV��WRUQDQGR�PDLV�GUDPiWLFR�R�ULVFR�GH�
exaustão e colapso dos frágeis ecossistemas urbanos.
Do raciocínio anterior decorre a pergunta: até que ponto os centros urbanos
VHULDP�FDSD]HV�GH�VXVWHQWDU�DXWRVVX¿FLrQFLD"�(VVH�QRV�SDUHFH�XP�SRQWR�GH�GHEDWH�
inequivocamente permeado por elementos éticos, porque, apesar do incansável
inventário de danos e projeções em escala global reunidos desde o primeiro relatório
SDUD�R�&OXEH�GH�5RPD��QmR�SDUHFH�KDYHU�IRUoD�RX�VLWXDomR�FRQVWUDQJHGRUD�R�VX¿FLHQWH�
no cenário internacional capaz de descarrilhar os vagões do business as usual
�0($'2:6�HW�DO���������52&.675g0�HW�DO����������e�IRUoRVR�TXH�D�DXWRQRPLD�DTXL�
perseguida parta, antes de tudo, de um reconhecimento dos efeitos deletérios de uma
HVWUXWXUDomR� KHWHURQ{PLFD� GH� RUGHP� FRPSHWLWLYD��&DGD� FLGDGH� DXW{QRPD�p�� GHVWH�
modo, chamada à responsabilidade. Assim como, paralelamente, seu corpo cidadão
tem sido persuadido a uma prática cotidiana de consumo e descarte conscientes, as
cidades haveriam de incluir substancialmente preocupações com o que acontece em
suas regiões metropolitanas, franjas urbanas, pontos de conurbação e áreas agrícolas
e protegidas contidas na mesma biorregião de referência. Preocupações de ordem
global também haveriam de ser contempladas, uma vez que os problemas nesse
nível não necessariamente são açambarcados pelas estratégias de regionalização e
relocalização das atividades.
� 3RU�YLDV�VHFXQGiULDV�jV�SROtWLFDV�YROWDGDV�SDUD�SHVVRDV��DV�FLGDGHV�DXW{QRPDV�
aproximar-se-iam das possibilidades de ruptura com a subordinação das sociedades
aos mercados autorregulados, porque ao se apostar nas capacidades dos mercados
FRRSHUDWLYRV�ORFDLV��FRP�D�LQWHUQDOL]DomR�GD�DWLYLGDGH�HFRQ{PLFD�H�XVR�GH�UHFXUVRV�
locais para satisfação das necessidades, advoga-se um redimensionamento do
HVSHFWUR� GH� DomR� GRV� VLVWHPDV� HFRQ{PLFRV� DRV� OLPLWHV� GH� VXDV� EDVHV� PDWHULDLV�
61
regionais (Quadro 1��� 2� TXH� QmR� UHSUHVHQWD� QHFHVVDULDPHQWH� XP� FHUFHDPHQWR�
JHQHUDOL]DGR� GDV� WURFDV� WUDQVIURQWHLULoDV� LQWHUUHJLRQDLV�� VLJQL¿FD� DSHQDV� WRUQi�ODV�
FRPSOHPHQWDUHV�RX�DFHVVyULDV��8PD�FLGDGH�DXW{QRPD�GHYH�VHU�FDSD]�GH�QmR�LPSRU�
o peso de sua existência a outra.
� 0DLV�XPD�YH]��VREUH�YDULiYHLV�LQGHSHQGHQWHV�QRV�GLVFXUVRV��+DXJKWRQ��������
QRV�DOHUWD�SDUD�R� IDWR�GH�TXH�R�PRYLPHQWR�GH�UHGXomR�GH�HVFDOD�HFRQ{PLFD�D�¿P�
de geri-la regional e localmente traz consigo o risco de retenção deste tópico a um
aspecto meramente quantitativo. Acontece que, via de regra, governos são reativos
e letárgicos. Uma remodelação dos padrões de relacionamento com a vizinhança e
apropriação externa de recursos e serviços, incluindo o monitoramento co-responsável
das taxas de reposição e regeneração demandaria uma mudança drástica de postura
dos poderes executivos para que o duplo e ousado movimento de retorno à casa e
recuperação das funções de autonomia das biorregiões não dê margem a precipitadas
inferências sobre o fracasso do modelo.
� 2� TXH� HVWDPRV� WHQWDQGR� GL]HU� p� TXH�� SRVVLYHOPHQWH�� H[LVWLUi�� SDUD� FDGD�
biorregião e sua rede de aglomerados urbanos, uma relação fundamental de capital
natural crítico��'2%621��������SHUPLVVtYHO�j�UHSURGXomR�GHVVDV�FRPXQLGDGHV��PDV�
que, certamente, não será pautada pela atual estrutura de aquisição de estoques e
FRUUHQWHV�GH�ÀX[RV��GHPDQGDGRV��7DPSRXFR�VHUmR�DV�DWXDLV�IRUPDV�GH�VRFLDELOLGDGH�
capazes de demandar qualitativamente este outro padrão de consumo e produção da
natureza necessária.
62
Quadro 2. Caracteres identitários dos principais modelos de desenvolvimento urbano sustentável e
posicionamentos sobre o campo da sustentabilidade. Elaborado pelo autor.
63
4. Cidades e paisagens: ruptura e reconciliação
“E os projetos todos tolos combinados
Perecerão nas margens da manhã
Uma tontura solta na cabeça
Um olho em deus e outro com satã
E quando o sol raiar desentendido
Eu vou ferir a vista no amanhã
E olharei para quem vai pro trabalho
Com os olhos, feito os olhos de uma rã”
6HQWLPHQWDO�HX�¿FR��5HQDWR�7HL[HLUD
� 2V� PRGHORV� GH� GHVHQYROYLPHQWR� XUEDQR� VXVWHQWiYHO� DSUHVHQWDGRV� QmR�
devem ser tomados como percursos autoexcludentes. Suas inconsistências foram
apresentadas com vistas ao estabelecimento de critérios que norteiem práticas
futuras de produção do espaço urbano e permitam aos cidadãos e aos tomadores de
decisão um subsídio crítico ao estabelecimento de prioridades em meio a tamanha
complexidade.
A partir de agora trabalharemos um dos aspectos que consideramos mais
QHJOLJHQFLDGRV� ±� SRUTXH� WDPEpP� SRXFR� LQYHVWLJDGRV� GR� SRQWR� GH� YLVWD� FLHQWt¿FR�
– no que concerne ao debate sobre cidades sustentáveis: as funções naturais do
VROR� XUEDQR�� 7HPRV� DWp� DTXL� QRV� DSRLDGR� H[WHQVDPHQWH� QD� DQiOLVH� GR� SUREOHPD�
urbano enquanto ausência profunda de respeito ou consideração, em primeiro lugar,
à pessoa (ao humano, retalhado em categorias hierárquicas e classes, que sub ou
VXSHUS}H�VH�j�¿JXUD�GR�WUDEDOKDGRU��GD�PHUD�PmR�GH�REUD�RX��PDLV�UHFHQWHPHQWH��GR�
FLGDGmR�FRQVXPLGRU��H��WDPEpP�HP�SULPHLUR�OXJDU��GLYLGLQGR�DV�DWHQo}HV��j�QDWXUH]D��
Cabe, nesse momento e a partir de tudo o que foi colocado até então, explicitarmos o
entendimento de que sustentável, para nós, trata-se da qualidade daquilo que respeita
e põe em primeiro lugar as pessoas e os processos naturais que sustentam a vida
humana e as demais formas de vida.
Antes, contudo, de ingressarmos nas possibilidades que se apresentam à
orientação do futuro das cidades a uma postura consequente e de respeito, devemos
compreender de que forma a história dos aglomerados humanos elegeu funções
essenciais em detrimento de outras.
64
Quem ordena a vida nos aglomerados?
A cidade é uma criação histórica. Entende-se por isto que ela não esteve sempre
presente, seja como objeto concreto, ideia ou conceito. Entendemos também que a
cidade pode, inclusive, vir a não mais existir ou – o que parece agora mais provável
– poderá transformar-se dramaticamente em relação às formas até então conhecidas
�%(1e92/2��������S������6H�SRU�FLGDGH�UHIHULPR�QRV�D�GLIHUHQWHV�PDQLIHVWDo}HV�QR�
tempo e no espaço de aglomerações humanas sedentárias, de modo geral permissivas
D� WURFDV� �PHUFDGR��H� IUHTXHQWHPHQWH�DVVRFLDGDV�D�XPD�DGPLQLVWUDomR�S~EOLFD�� GH�
pronto, sentimos a necessidade de operarmos uma subjetivação extra ou alguma
DGMHWLYDomR�GHVWH�WHUPR�D�¿P�GH�ID]HU�MXV�jV�VXDV�QXDQFHV��e�OtFLWR��SRUWDQWR��HYRFDU�
a cidade-Estado, a cidade-jardim, a cidade medieval, a cidade turística, a cidade
dormitório, a cidade interiorana, a cidade portuária, a cidade satélite ou, como temos
LQVLVWLGR�DTXL��D�FLGDGH�VXVWHQWiYHO��/(1&,21(��������
� 2�XUEDQR��DLQGD�TXH� WHQKD�VH�HVWDEHOHFLGR�FRUUHQWHPHQWH� FRPR�DTXLOR�TXH�
concerne à cidade, é um termo que surge a posteriori à ideia de cidade. Em língua
portuguesa, por exemplo, os registros etimológicos apontam para o surgimento do
vocábulo “urbe´�GDWDGR�DR�VpFXOR�����HQTXDQWR�³FLGDGH´�VHULD�GDWDGR�GR�VpFXOR�����
/HQFLRQH��������H[SOLFD�TXH�WDQWR�R�FRQFHLWR�GH�FLGDGH�TXDQWR�R�GH�XUEDQR�VH�DOWHUDP�
HP�VLJQL¿FDGR�VHJXQGR�DV�UHIHUrQFLDV�WHyULFDV�TXH�VXVWHQWDP�H�GmR�VHQWLGR�D�HVVHV�
termos. Se a explicitação dos pressupostos conceituais se faz necessária como
exercício de minimização dos ruídos comunicativos, nos apoiaremos nas distinções
WHyULFDV�GH�/HIHEYUH��������SDUD�SUHFLVDU�R�TXH�HQWHQGHPRV�SRU�IHQ{PHQR�XUEDQR�
(P� ������ /HIHEYUH� ODQoRX� D� KLSyWHVH� GH� XP� REMHWR� SRVVtYHO�� HP� YLDV� GH�
FRQIRUPDomR��D�VRFLHGDGH�XUEDQD�SOHQD��+i�PDLV�GH����DQRV��HVWH�DXWRU�DQXQFLDYD�
D�LUUXSomR�GR�IHQ{PHQR�XUEDQR��TXH�QDVFH�GD�LQGXVWULDOL]DomR�H�D�VXFHGH��1DTXHOH�
momento, dizia Lefebvre, a sociedade industrial estava a meio caminho de se tornar
uma sociedade urbana, que não é mera decorrência da cidade industrial, mas um
conjunto de novas relações sociais precipitadas por um movimento de implosão-
explosão das formas socioespaciais anteriores. Para ele, haveria um vetor gradativo de
transformação, que partiria da completa ausência de urbanização, a cidade entregue
aos objetos e processos naturais, ao outro extremo, da realização do urbano, em que
se consolida a realidade urbana. Sobre este eixo arbitrário (Figura 3���RUGHQDU�VH�LD��
65
em primeiro lugar, os grupos humanos coletores, pescadores, caçadores e pastores,
a quem caberia o reconhecimento prévio do espaço que viria – para os casos em
que esta transformação se deu – a ser ocupado por camponeses sedentários. Com
prudência ante a carga de ideologia presente nas asserções sobre o surgimento das
cidades na Europa após a desestruturação do Império Romano, Lefebvre limita-se a
dizer que, daquilo que se tem registro, a cidade, em todos os casos acompanhou a
DOGHLD��/()(%95(��������S������
Por conta da cautela com que trata este assunto, Lefebvre inicia seu esquema
explicativo da emergência do urbano a partir da cidade política, situada mais à ponta
GD� DXVrQFLD� GH� XUEDQL]DomR� �HVTXHUGD��� (P� UHVXPR�� R� JUDQGH� HL[R� GH� UHIHUrQFLD�
representa o curso de mudanças nas relações socioespaciais constituídas, que
dominam e absorvem a produção agrícola. As narrativas elaboradas por Lefebvre
para sustentar as sucessões de tipos de cidades coincidem com as transformações
VRFLDLV� UHIHULGDV�SRU�3RODQ\L� ��������PHQFLRQDGDV�TXDQGR� WUDWDPRV�GRV�SRWHQFLDLV�
de transformação contidos no discurso de cidades para pessoas. Estas transições
revelam rupturas nas formas de organização da sociedade, dos modos de produção
de bens e ocupação do espaço e via de regra são marcadas por forte resistência aos
GHVORFDPHQWRV�H�UHVVLJQL¿FDo}HV�
Figura 3.�(L[R�GH�LUUXSomR�GR�XUEDQR��$GDSWDGR�GH�/HIHEYUH�������� Elaborado pelo autor.
66
A cidade política resistiu durante séculos à penetração da mercadoria e
procurou manter a sua estrutura hermética às formas móveis de propriedade que
os comerciantes e os mercados anunciavam. Sua relação com o campo (o monarca
detinha a propriedade, mas a posse efetiva do solo era dada aos camponeses
PHGLDQWH�WULEXWDomR��H�FRP�DV�DOGHLDV�VXERUGLQDGDV��DPSDUDGD�SHOR�GHVHQYROYLPHQWR�
da escrita, era de administração e direção dos trabalhos agrícolas e artesanais.
Nesse sentido, as trocas eram mínimas, suplementares e limitadas à manutenção das
instituições de poder. Em um dado momento, no entanto, – ao ocaso da Idade Média
QR�2FLGHQWH�HXURSHX�±�DV�WHQWDWLYDV�GH�FRQTXLVWD�H�FRORQL]DomR�GR�HVSDoR�XUEDQR�
por parte dos mercados logram sucesso. Este é o momento em que Polanyi (2012,
S������UHFRQKHFH�H�GHPDUFD�R� LQtFLR�GR�JDQKR�GH� LPSRUWkQFLD�GRV�PHUFDGRV�VREUH�
a sociedade, é quando surge, sobre os escombros das antigas cidades políticas, a
cidade comercial.
1R� FXUVR� GHVVD� OXWD� �GH� FODVVHV�� FRQWUD� RV� VHQKRUHV�� SRVVXLGRUHV� H�
GRPLQDGRUHV�GR�WHUULWyULR��OXWD�SURGLJLRVDPHQWH�IHFXQGD�QR�2FLGHQWH��FULDGRUD�GH�XPD�
história e mesmo de uma história tout court, a praça do mercado torna-se central.
(OD�VXFHGH��VXSODQWD��D�SUDoD�GD�UHXQLmR��D�iJRUD��R�IyUXP���(P�WRUQR�GR�PHUFDGR��
tornado essencial, agrupam-se a igreja e a prefeitura (ocupada por uma oligarquia de
PHUFDGRUHV���FRP�VXD�WRUUH�H�VHX�FDPSDQiULR��VtPEROR�GH�OLEHUGDGH��'HYH�VH�QRWDU�
TXH�D�DUTXLWHWXUD�VHJXH�H�WUDGX]�D�QRYD�FRQFHSomR�GD�FLGDGH��2�HVSDoR�XUEDQR�WRUQD�
se o lugar do encontro das coisas e das pessoas, da troca. Ele se ornamenta dos
VLJQRV�GHVVD� OLEHUGDGH�FRQTXLVWDGD�TXH�SDUHFH�D�/LEHUGDGH���/()(%95(��������S��
���
Uma vez estabelecida a troca comercial como função urbana, daí emergem
novas formas e estruturas urbanas. A centralidade da praça do mercado, mencionada
QD�FLWDomR�GH�/HIHEYUH�p�VLQWRPiWLFD�j�GLVSXWD�GDV�HQWLGDGHV�FRPHUFLDLV�SRU�LQÀXrQFLD�
e prestígio sobre os poderes políticos. As tensões entre cidade e campo até então
praticamente não existiam, porque a cidade política e os primórdios das cidades
mercantis se confundiam com o próprio campo. Porém, os ganhos de importância
dos mercados não cessam de crescer e as transformações das relações e do espaço
�SUROLIHUDomR�GH� ORMDV�H�JDOHULDV��VHJXHP�VHX�FXUVR�DVFHQGHQWH�� WDQWR�TXH��HP�XP�
67
dado momento, o status de heterotopia, – de estranhamento geral sobre os símbolos
da cidade – se inverte e o campo passa de centralidade à vizinhança. A consolidação
GDV�FLGDGHV�PHUFDQWLV�FXOPLQD�FRP�D�HVWUXWXUDomR�GRV�PHUFDGRV�LQWHUQRV��QDFLRQDLV���
que surgem como resposta à necessidade de regulação das trocas externas e passam
D�LQÀXLU�GLUHWDPHQWH�VREUH�D�GLQkPLFD�HFRQ{PLFD�GR�FDPSR�H�GDV�FLGDGHV��32/$1<,��
������S������
� 3RU�¿P��R�PRYLPHQWR�GH� implosão-explosão a que Lefebvre se refere é uma
tentativa de contornar as limitações das descrições sabidamente fragmentadas e
LQVX¿FLHQWHV�� TXDVH� VHPSUH� LQFDSD]HV� GH� UHXQLU� VDWLVIDWRULDPHQWH� DV� FRHUrQFLDV�
H� DV� FRQWUDGLo}HV� HPEXWLGDV� QD� FRPSOH[LGDGH� GR� SURFHVVR� KLVWyULFR�� 7UDWD�VH� GH�
um termo emprestado da física nuclear em alusão às transformações provocadas
pela incrustação da indústria na cidade comercial. Para o autor, a indústria rompe
com a realidade urbana, projetando a não-cidade. Sua insinuação à cidade se dá
não em função de matérias-primas e fontes de energia, mas sim em busca de uma
proximidade oportuna em relação a capitais e reservas de mão-de-obra barata.
De forma semelhante à penetração dos mercados na cidade política, as cidades
mercantis e políticas resistiram à colonização das indústrias por meio de posturas
corporativistas e engessamento das relações, atitudes perniciosas ao grau elevado
de mobilidade demandado pelo capital industrial. Uma hora, no entanto, a produção
industrial suplanta o acúmulo mercantil e reorganiza as trocas comerciais a seu favor,
multiplicando-as. A cidade industrial implode porque concentra todos os capitais
�PDWHULDO�� ¿QDQFHLUR�� KXPDQR�� FXOWXUDO�� FLHQWt¿FR�� H� DWLYLGDGHV�� SODVPDQGR�RV� QD�
realidade urbana. E explode porque cria projeções dessa realidade onde quer que
UHODo}HV�FRP�D�FLGDGH�VH�HVWDEHOHoDP��/()(%95(��������S������
A zona crítica que se situa no esquema (Figura 3�� HP� VXFHVVmR� j� FLGDGH�
LQGXVWULDO� UHSUHVHQWDYD� HP� ������ SDUD� /HIHEYUH�� XPD� VXSRVLomR� WHyULFD� GH� TXH� D�
realidade urbana pulverizada e generalizada pela formidável expansão da cidade
industrial haveria de converter-se em força produtiva capaz de promover uma nova
LQYHUVmR� GH� FHQiULR�� WUDQVIRUPDQGR� DV� UHODo}HV� GH� SURGXomR��2� XUEDQR�� QR� FXUVR�
de uma crise profunda, apropriar-se-ia da industrialização enquanto força dominante
e passaria a reger os rumos da cidade a partir da legitimação de uma problemática
tipicamente urbana, concluindo o ciclo de subordinação do agrário ao urbano iniciado
com a emergência das cidades comerciais. Quarenta anos depois, podemos dizer que
68
este pensador foi feliz em suas predições, pois, ainda que a urbanização completa
não esteja em absoluto efetivada, o mundo urbano e a realidade urbana atualmente
exibem inequívocas provas de seu estabelecimento histórico como centralidade
ordenadora. Isso não quer dizer que a indústria e o agrário tenha tido seus problemas
integralmente absorvidos pelo urbano, apenas que a eles tem sido paulatinamente
negado os holofotes ao primeiro plano.
O pensar e o repensar urbanístico
� 2� XUEDQLVPR�� UHÀH[mR� H� SUiWLFD� GH� RUGHQDPHQWR� H� RUJDQL]DomR� GR� HVSDoR�
urbano, que surge como resposta às transformações socioespaciais desencadeadas
SHOD�GLVVHPLQDomR�GD�¿JXUD�GD�PiTXLQD�QD�VRFLHGDGH�LQGXVWULDO��SRGH�VHU�DSUHHQGLGR�
GH� GXDV� IRUPDV� EiVLFDV�� XPD� GH� FDUiWHU� FLHQWt¿FR�WpFQLFR� H� RXWUD� GH� DVSHFWR�
LQVWLWXFLRQDO�LGHROyJLFR�� �2�VpFXOR����FRQKHFHX�XPD�VDIUD�QRWiYHO�GH�SHQVDGRUHV�H�
idealizadores de soluções urbanas para a aparente desordem crescente que a expansão
do capital industrial promoveu nas cidades. De todo modo, é apenas no século 20,
que o urbanismo desponta como terreno de ingerência reservada a especialistas, os
arquitetos. É quando também o corpo de formulações teóricas encontra receptividade
H�FRQGLo}HV�VLJQL¿FDWLYDPHQWH�PDLRUHV�GH�UHDOL]DomR�SUiWLFD��&+2$<��������S������
� 6H� SRXFRV� SHQVDGRUHV� GR� SHUtRGR� SUp�XUEDQLVWD� HXURSHX� GR� VpFXOR� ���
associavam conscientemente a desordem observada no espaço ao estabelecimento
GH�XPD�QRYD�RUGHP�VRFLRHFRQ{PLFD��GH�UDFLRQDOLGDGH�H�OyJLFD�SUySULDV��D�SHUFHSomR�
histórico-contextual praticamente some do pensamento urbanístico do século 20, que
VH�SUHWHQGH�FLHQWt¿FR�H��SRUWDQWR��QmR�SRQGHUD�VREUH�D�QHFHVVLGDGH�GDV�VROXo}HV�H�
verdades que apresenta como resultados de suas pesquisas e medições.
� $LQGD�TXH�&KRD\��������GHVWDTXH��GHVGH�RV�SULPyUGLRV�GR�SHQVDU�XUEDQtVWLFR��
D�H[LVWrQFLD�H�D�SHUVLVWrQFLD�GH�WUrV�FRUUHQWHV�EiVLFDV�H�DQWDJ{QLFDV��SURJUHVVLVWD��
FXOWXUDOLVWD�H�DQWLXUEDQD�QDWXUDOLVWD���GDUHPRV�rQIDVH�DTXL�jTXHOD�TXH�PDLV�LQÀXHQFLRX�
H�FRQTXLVWRX�VWDWXV�QRUPDWLYR�DRV�PDLV�GLYHUVRV�UHJLPHV�HFRQ{PLFRV�H�SROtWLFRV��R�
modelo modernista progressista. Esta corrente, tida como funcionalista, dissemina-se
SRU�RFDVLmR�GRV�&�,�$�0�� �FRQJUHVVRV� LQWHUQDFLRQDLV�GH�DUTXLWHWXUD�PRGHUQD���TXH��
de início, detinham-se à apreciação dos problemas relativos à habitação, mas que, a
69
SDUWLU�GH�������GHGLFDP�VH�DR�XUEDQLVPR�GH�IRUPD�DEUDQJHQWH��(P�������RV�DUTXLWHWRV�
participantes do 4° congresso embarcaram em um cruzeiro pelo Mediterrâneo rumo
à Grécia e daí elaboraram a Carta de Atenas��TXH�VH�¿UPRX�FRPR�FDUWLOKD�GRXWULQiULD�
do urbanismo progressista. Sua formulação básica apoia-se na ideia de modernidade
– novidade anunciada pela indústria e pela arte de vanguarda da época – e que, por
não se adequar ao automóvel ou à estética cubista, a grande cidade do século 20 se
fazia démodé.
� 2V�DUTXLWHWRV�PRGHUQLVWDV��LQHEULDGRV�SHOD�SURPHVVD�GH�H¿FiFLD�GRV�PpWRGRV�
industriais de mecanização e padronização de procedimentos, internalizaram a
racionalidade instrumental e a conduziram às últimas consequências no campo
especializado de atuação a que lhes foi reservado. Nesse afã, conceberam como
princípio orientador de seus modelos o homem-tipo e a ele estabeleceram necessidades
humanas universais: habitar, trabalhar, locomover-se e cultivar o corpo e o espírito.
Assim, grosso modo, zonearam o espaço urbano, isolando espacialmente o loco de
cada uma dessas funções, tal e qual distribui-se as tarefas e reparte-se o trabalho
em uma fábrica. Por mais absurda e epistemologicamente pobre que atualmente
soe este empreendimento de redução e atomização do ser humano, os urbanistas
SURJUHVVLVWDV�QmR�¿]HUDP�PDLV��QRV�SDUHFH��TXH�GDU�FDER�HP�VXD�VHDUD�D�XPD�IRUPD�
de pensar que permeou e impregnou de um antropocentrismo arrogante as inúmeras
UHDOL]Do}HV�WpFQLFR�FLHQWt¿FDV�GR�VpFXOR����
É bem verdade que, a cada intervenção e às mãos de cada planejador e
executor, os princípios aí expostos conseguiram ser implementados de forma ora
PDLV�� RUD� PHQRV� ¿HO� DRV� SUHFHLWRV� RULJLQDLV�� 2� TXH� TXHUHPRV� GHPDUFDU� DTXL� p�
que, com a Carta de Atenas, abre-se o precedente para a intervenção a-histórica
no espaço urbano. A utopia modernista, ao desenhar-se livremente no imaginário,
sem constrangimentos, lida facil e frequentemente com o arbitrário e, dos modelos
de intervenção arbitrários se pode dizer: não podem se concretizar em respeito a
preexistências culturais e WRSRJUi¿FDV. Postulamos, portanto, que são os princípios
de ordenamento urbano cunhados pelos urbanistas progressistas que lançaram as
origens das práticas racionalmente promotoras de risco nos sistemas socioambientais
intraurbanos.
A disseminação do urbanismo modernista engendrou um espectro amplo de
críticas e resistências teóricas e práticas. Sem nos aprofundarmos no universo de
70
contribuições que daí surgem, focaremos em um aspecto principal, destacado por
&KRD\� ������� S�� ����� D� UHIXWDomR� GR� GRPtQLR� GD� DUELWUDULHGDGH� H� GR� LPDJLQiULR� QR�
fundamento do planejamento urbano, substitui-o por uma busca de informações sobre
a realidade e subordina-o a um esforço de investigação prévia.
Dito isto, podemos nos perguntar, retomando o ponto com que inciamos o
tópico: a obrigatoriedade de realização de estudos sobre as áreas de intervenção,
por ocasião da regulamentação do processo de planejamento que decorre dessa fase
FUtWLFD��FRQIHUH�DR�XUEDQLVPR�XP�FDUiWHU�PHQRV�LGHROyJLFR"
� 6HJXQGR�/HIHEYUH��������S�������D�ÀDJUDQWH�DXVrQFLD�GH�XPD�HSLVWHPRORJLD�
urbanística constitui um traço indicativo de que esta lacuna talvez nunca seja
preenchida, ou melhor, de que possivelmente associado à natureza da ciência e da
teoria da localização humana haja um indissolúvel aspecto político (institucional-
LGHROyJLFR���&KRD\� �������S������S}H�HVWD�TXHVWmR�GH� IRUPD�FDWHJyULFD�DR�FRQFOXLU�
TXH�R�SODQHMDPHQWR�XUEDQR�FLHQWt¿FR�p�XP�GRV�PLWRV�GD�VRFLHGDGH�LQGXVWULDO�H�TXH�
HVWH�ODERU�QmR�WHP�FRPR�VH�FRQVROLGDU�FRPR�REMHWR�GH�ULJRU�FLHQWt¿FR��$LQGD�TXH�R�
constrangimento imposto pela realização obrigatória de estudos prévios e coletas de
LQIRUPDo}HV�FRQ¿UDP�PDLRU�FRQVLVWrQFLD�jV�SURSRVWDV�H�DOJXPD�SURWHomR�FRQWUD�R�
imaginário, argumenta, sempre restará um resíduo de arbitrariedade de escolha ao
SODQHMDGRU�H�DR�WRPDGRU�GH�GHFLVmR��FXMDV�SURSRVWDV�H�MXVWL¿FDWLYDV�QmR�HVWmR�LPXQHV�
a tendências e a sistemas de valores.
Percebe-se uma postura de desacordo entre esses dois autores no que diz
UHVSHLWR� DR� YDORU� H� DR� VLJQL¿FDGR� GD� XWRSLD� QR� SHQVDPHQWR� XUEDQtVWLFR�� &KRD\�
demonstra uma preocupação com as SUiWLFDV� GR� XUEDQLVPR� GH� ¿FomR� FLHQWt¿FD,
de ponta de faca (hábil em dilacerar e demover estruturas e tramas de relações
VRFLRHVSDFLDLV�� RX� GD� arquitetura da escavadeira (alheia ao valor de existência
GH� PRQWDQKDV� H� GH� SHUVLVWrQFLD� GH� YDOHV��� 5HVSDOGDGD� SHOD� FDUWD� EUDQFD� GH� XP�
aparato tecnológico surpreendentemente capaz de dar vazão aos devaneios dignos
de romances futuristas, a utopia, vista por este prisma, representaria um risco sem
precedentes ao habitante do espaço urbano que se vê à mercê do planejador e dos
recorrentes rituais de sacrifício praticados por tecnólatras devotos – adoradores da
inovação tecnológica.
Lefebvre parece compreender o risco a que Choay se reporta, mas ao apontar
a dimensão política incutida na prática de planejamento urbano, percebe que esta se
71
abre a duas críticas, uma de esquerda e uma de direita. A crítica de direita, segundo ele,
FRQWpP�H�MXVWL¿FD�XPD�LGHRORJLD�QHROLEHUDO�GH�LQWHUYHQomR�QR�HVSDoR��LGHQWL¿FDGD�FRP�
as iniciativas privadas e com a adequação da cidade à livre circulação dos capitais. À de
esquerda, explica, não estaria necessariamente associada uma ideologia esquerdista,
PDV�SRU�HOD�PDQWpP�VH�DEHUWD�D�YLD�GR�SRVVtYHO��D�¿P�GH�TXH�VH�SRVVD�H[SORUDU�DOJR�
além do que se apresenta como real e frequentemente engessado por contingências
HFRQ{PLFDV��SROtWLFDV�H�VRFLDLV� �/()(%95(��������S�������/HIHEYUH�QmR�SRGH�DEULU�
mão da crítica utópica, porque enxerga nela as possibilidades de superação do status
quo. A tecnotopia, o lugar da técnica, em oposição à WHFQySROLV, cidade da técnica,
LGHQWL¿FD�XPD�GDV�FRUUHQWHV�FUtWLFDV�jV�UHDOL]Do}HV�PRGHUQLVWDV�DSRQWDGDV�SRU�&KRD\�
e, no entanto, situa-se à vertente esquerda da leitura de Lefebvre. Esta corrente chama
a atenção para a possibilidade de aniquilamento, contida no imaginário, da relação
HQWUH�R�VXMHLWR�H�VXD�PRUDGD��+DELWDU��SRU�PDLV�TXH�WHQKD�WLGR�D�VRUWH�GH�VXELU�DR�SyGLR�
das funções-chave eleitas à representação do homem-tipo modernista, não cumpre
PHUD�UHODomR�GH�XWLOLGDGH��³2�KDELWDU�p�D�RFXSDomR�SHOD�TXDO�R�KRPHP�WHP�DFHVVR�DR�
VHU��GHL[DQGR�VXUJLU�DV�FRLVDV�HP�WRUQR�GH�VL��HQUDL]DQGR�VH´��&+2$<��������S�������
Daí a necessidade de defesa e alerta acerca do pensamento urbanista utópico.
As fronteiras do respeito
� $�LQÀXrQFLD�GR�XUEDQLVPR�SURJUHVVLVWD�H�R�³SURJUHVVR´�SURSULDPHQWH�HQJHQGUDGR�
D�UHERTXH�GD�UHYROXomR�FLHQWt¿FR�WHFQROyJLFD�GR�VpFXOR�����HQWUH�RXWURV�IDWRUHV��SHOD�
necessidade posta de reconstrução de tecidos urbanos destruídos nos pós-guerras,
resultaram em dramáticas alterações das paisagens urbanas, de escala e qualidade
GL¿FLOPHQWH�DQWHV�YLVWDV�RX�GRFXPHQWDGDV��$�VHJXQGD�PHWDGH�GR�VpFXOR�p�PDUFDGD�
por um duplo movimento: de expansão do capital de forma globalizada – apropriação
de novas fronteiras interioranas de provimento energético, material, hídrico e agrícola;
e de urbanização de paisagens até então ignoradas, porque problemáticas à ocupação
±�H�GH� WRPDGD�GH�FRQVFLrQFLD�GRV�VLJQL¿FDGRV�� OLPLWHV�H� ULVFRV�DVVRFLDGRV�D�HVVH�
movimento.
No ambiente urbano, a face débil da deformação a que a racionalidade
instrumental submeteu as condições de existência e de uso e ocupação do espaço
72
revela-se de modo exemplar com a falência dos modelos higienistas de intervenção
e promoção da modernidade. As soluções pensadas segundo o paradigma técnico-
FLHQWt¿FR� UHLQDQWH� j� pSRFD�� VXVWHQWDGR� QD� VLPSOLFLGDGH�� QD� HVWDELOLGDGH� H� QD�
REMHWLYLGDGH�GR�XQLYHUVR��9$6&21&(//26��������S�������� WHUPLQDUDP�SRU�HVIDWLDU�
o relevo intra e periurbano; subjugaram as funções geomorfológicas dos vales e
topos de morros, as funções ecológicas dos manguezais, das dunas, faixas de
praia, lagos, lagoas, rios e coberturas vegetais; deslocaram por completo regimes de
manifestação das dinâmicas climáticas e hidrológicas, segundo ações indiscriminadas
GH�GHVPDWDPHQWR��DWHUUDPHQWR�H�WHUUDSODQDJHP��UHWL¿FDomR�H�FDQDOL]DomR�GH�FXUVRV��
HGL¿FDomR�H�LPSHUPHDELOL]DomR�GR�VROR��*256.,��������S�������(VWD�GHVFDUDFWHUL]DomR�
intensa do meio ambiente urbano ou mesmo a sua negação (existe mesmo uma
QDWXUH]D�XUEDQD"���SDWURFLQDGD�SHODV�SRVVLELOLGDGHV�WpFQLFDV�JHVWDGDV�QR�kPELWR�GD�
engenharia, demarca um período que se estende até o presente, de ruptura virtual
com o elo de dependência material da cidade e de seus habitantes em relação aos
sistemas vivos de suporte interno.
Em consideração a fronteiras imaginárias e concretas da dignidade humana e
de resiliência dos sistemas vivos, que, por todo o mundo, mas em especial nos países
subdesenvolvidos do Sul, foram e seguem sendo paulatinamente ultrapassadas,
WHPRV�QRV�UHIHULGR�D�WDO�PRYLPHQWR�FRPR�XP�JHVWR�GH�GHVUHVSHLWR��2�TXH��HP�WHUPRV�
globais, durante algum tempo na literatura sobre desenvolvimento sustentável, se
WUDWRX� SRU� OLPLWHV�� XPD� YH]� WUDQVSRVWRV�� WRUQDUDP�VH� IURQWHLUDV� �0($'2:6� HW� DO���
������52&.675g0�HW�DO����������$VVLP��FRQFHEHPRV�SDUD�RV�QtYHLV�ORFDO�H�UHJLRQDO�
o conceito de fronteiras do respeito. A perspectiva de análise sobre a qual nos
apoiamos até aqui nos permite agora associar à ideologia modernista o mérito de
consagração no cenário urbano de uma racionalidade essencialmente disjuntiva,
originária do Renascimento europeu e que, mais tarde, consentiu à humanidade a
ilusão do desacoplamento estrutural com o meio natural, ilusão de domínio e submissão
da natureza e de suas forças à sua vontade, ainda que por um curto lapso no tempo.
� $� SDUWLU� GD� GpFDGD� GH� ������ SXOXODP� FUtWLFDV� DR� PRGHOR� GH� SODQHMDPHQWR�
progressista no que tange à negligência de outros elementos essenciais à vida urbana
e põe-se em xeque a consequente pobreza resultante dos ambientes construídos
à luz dessa concepção. Este momento coincide com a emergência das questões
DPELHQWDLV�QR�FHQiULR�JOREDO�H�D� UHYDORUL]DomR�GDV�FLrQFLDV�VRFLDLV� �.$1$6+,52��
73
������
� $�XUEDQL]DomR�FDyWLFD�YLYHQFLDGD�QRV�DQRV������H������SHORV�SDtVHV�ODWLQR�
americanos desenharam os contornos de uma crise urbana sem precedentes,
PDUFDGD� SRU� DOWDV� WD[DV� GH� GHVHPSUHJR� H� VXEHPSUHJR�� Gp¿FLWV� KDELWDFLRQDLV� H�
alimentares, endividamento, marginalidade e favelização, falência e abandono de
IXQo}HV�GR�(VWDGR�QD�JDUDQWLD�GH�VHUYLoRV�EiVLFRV��6$1726��������S��������1R�%UDVLO��
as constrições e o mal-estar desse período deram origem ao Movimento Nacional de
5HIRUPD�8UEDQD��0158���TXH�ODQoRX�DV�EDVHV�GH�XP�planejamento urbano alternativo
DRV�SUHFHLWRV�PRGHUQLVWDV�HXURFrQWULFRV��LQÀXHQFLDQGR�D�FRQVWLWXLQWH�H�D�SROtWLFD�GH�
GHVHQYROYLPHQWR�XUEDQR�FRQVDJUDGD�QR�WH[WR�GR�(VWDWXWR�GDV�&LGDGHV��0$7,(//2��
�������1R�SODQR�HXURSHX��PXLWR�VH�GLVFXWLX�H�SUREOHPDWL]RX�D�SUiWLFD�XUEDQtVWLFD�H�R�
SDSHO�GR�SODQHMDPHQWR�XUEDQR�DR�ORQJR�GD�GpFDGD�GH�������3DUWH�GHVVDV�GLVFXVV}HV��
JDQKDUDP�FRUSR�FRP�D�HODERUDomR�GD�1RYD�&DUWD�GH�$WHQDV��(&37���������(P�WHUPRV�
gerais, o texto aglutina e sistematiza o pensamento europeu fundamentado por eventos
e documentos emblemáticos construídos ao curso deste decênio. A importância desta
nova carta refere-se, sobretudo, à legitimação de um novo discurso sobre a cidade,
TXH�KDYLD�HPHUJLGR�GH�PDQHLUD�PDUJLQDO�QRV�DQRV�������0$5&21'(6��������
Entre outras contribuições, o grupo de arquitetos e planejadores envolvidos
na redação do documento quis dar ênfase ao papel do cidadão como formulador
ativo das políticas e planos de desenvolvimento urbano, delegando ao planejador
urbano não mais que o papel de orquestrador dos anseios externados. Com ela, o
WHPD�GD�VXVWHQWDELOLGDGH�DPELHQWDO�WDPEpP�SDVVD�D�FRPSRU�D�DJHQGD�KHJHP{QLFD�
GD� SROtWLFD� XUEDQD�� $� FLGDGH� FRPSDFWD� H� HFRH¿FLHQWH� p� SURSRVWD� FRPR� PRGHOR�
(cidade redesenhada��HP�QRVVD�FODVVL¿FDomR���3DUD�0DUFRQGHV���������QR�HQWDQWR��
a carta insere-se em uma visão de ambientalismo moderado, porque não traz um
questionamento a fundo do tipo de desenvolvimento hegemonicamente propagado.
(VWD�~OWLPD�FRORFDomR�MXVWL¿FD�D�DWHQomR�TXH�GHGLFDUHPRV�DR�FDStWXOR�VHJXLQWH�
���&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV
“O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe”
Rep, Gilberto Gil
74
As energias reunidas na cunhagem deste trabalho terão logrado êxito se
fornecerem um terreno mais sólido que àquele com que nos deparamos quando nos
inserimos no debate disto que se anuncia e se pretende como sustentabilidade urbana.
Apesar de termos nos referido a modelos de cidades sustentáveis, terminamos por
situar a limitação de qualquer pretensão de nível local a um devir sustentável. As
narrativas históricas que trouxemos à mesa demonstram: as fronteiras de suporte
dos sistemas socioambientais, os limites da racionalidade instrumental e os riscos
engendrados na produção do bem-estar são os frutos podres de um percurso virtuoso
de ascensão civilizatória, algo com que não se esperava lidar. Por esse motivo é que
insistimos no tratamento ético do assunto, pois entendemos que a fragilidade dos
discursos proferidos em âmbito internacional em defesa de sociedades mais justas e
equânimes poderia e pode ser assumida para políticas ambientais globais, que lidem
FRP�D�DPHDoD�GH�UXSWXUD�FDWDVWUy¿FD�GH�VLVWHPDV�GH�VXSRUWH�j�YLGD�FRP�D�PHVPD�
letargia com que tem sido tocadas as políticas sociais.
� 7HUHPRV� WLGR� r[LWR� VH� FRQVHJXLPRV� DTXL� GHPRVWUDU� TXH� VXVWHQWDELOLGDGH��
independente da abordagem, é sempre referência a uma fronteira planetária (o
SODQHWD�p�R�OLPLWH�~OWLPR��DWp�HQWmR��FRQVHQVXDO��H�TXH��SRUWDQWR��PDQHMRV�H�DFRUGRV�
interregionais são possíveis nos equacionamentos que se faça, mas que, sobre todo
arranjo possível, paira uma sombra de incerteza. Da incerteza decorre a postura
preventiva e é justamente nesse ponto que, após criticarmos as limitações da ação
local e regional, retornamos a ela. As fronteiras planetárias traduzem-se, nesses
níveis, em respeito aos serviços ambientais de suporte à vida. Ainda que as trocas
HFRQ{PLFDV� H� DV� VXSHUVDWXUDo}HV� WHFQROyJLFDV� �HVWDGR� LQVSLUDGR� SHOD� TXtPLFD� GH�
soluções, de sobreaproveitamento de um sistema vivo de suporte anteriormente à
UXSWXUD��SHUPLWDP�R�JR]R�GR�GHVDFRSODPHQWR�GDV�VRFLHGDGHV�GH�VXDV�EDVHV�PDWHULDLV��
QmR�SDUHFH�VHJXUR�QHP�jV�HFRQRPLDV�QHP�jV�FRPXQLGDGHV�GHSHQGHUHP�H�FRQ¿DUHP�
VHXV�IXWXURV�QHVWD�GLVSRVLomR�FRQWLQJHQWH�GH�DÀX[RV�TXH�OKHV�VmR�HVVHQFLDLV�
� 3RU�¿P��WHUHPRV�FXPSULGR�PDLV�TXH�R�SODQHMDGR�VH�D�DEHUWXUD�GD�SHUVSHFWLYD�
histórica empreendida puder provocar a reação do leitor quanto a esta derradeira
sugestão: os mercadores fundaram a cidade mercantil ao situarem a centralidade das
funções de mercado; os capitalistas sobrepujaram os mercados e o agrário seduzindo-
os às determinações das funções de produção; que cenário de forças, quais sujeitos
e que novas funções se anunciam no horizonte do século 21 para além da massa de
FRQVXPLGRUHV�H�GH�VHXV�HVWDGRV�GH�VDWLVIDomR�H�LQVDWLVIDomR"�
75
Referências
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'LVSRQtYHO�HP���KWWS���ZZZ�PHQGHOH\�FRP�UHVHDUFK�QR�WLWOH�DYDLO�?QKWWS���VFKRODU�JRRJOH�FRP�
VFKRODU"KO HQEWQ* 6HDUFKT LQWLWOH�-XVWLFH�DQG�WKH�(QYLURQPHQW��!
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KLVWyULD��$QDLV���&DPSLQDV��$138+�63�81,&$03�������
76
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QR�%UDVLO��,PSXOVR��Y������Q������S����±����������
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R�GLOHPD�GD�KXPDQLGDGH��6mR�3DXOR��3HUVSHFWLYD��������
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(FRORJ\�DQG�6RFLHW\��Y������Q�����������
6$&+6��,��'HVHQYROYLPHQWR�VXVWHQWiYHO��GHVD¿R�GR�VpFXOR�;;,��$PELHQWH��6RFLHGDGH��Y�����S�����±
216, 2004.
6$1726��0��(QVDLRV�VREUH�D�8UEDQL]DomR�/DWLQR�DPHULFDQD�����HG��6mR�3DXOR��(GLWRUD�GD�
Universidade de São Paulo, 2010.
6&+())(5��0���:$/.(5.��%��&DWDVWURSKLF�VKLIWV�LQ�HFRV\VWHPV��Y�������Q��2FWREHU��������
SEN, A.; KLIKSBERG, B. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas
do mundo globalizado. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
81(3��&LW\�/HYHO�'HFRXSOLQJ��8UEDQ�UHVRXUFH�ÀRZV�DQG�WKH�JRYHUQDQFH�RI�LQIUDVWUXFWXUH�WUDQVLWLRQV��
>V�O��V�Q�@��
8UEDQ�SROLF\�DQG�HFRQRPLF�GHYHORSPHQW��DQ�DJHQGD�IRU�WKH�����V��>V�O�@�7KH�:RUOG�%DQN��������S����
9$6&21&(//26��0��-��(��'(��3HQVDPHQWR�VLVWrPLFR��2�QRYR�SDUDGLJPD�GD�FLrQFLD��&DPSLQDV��63��
Papirus, 2002.
9(,*$��-��(��'$��'HVHQYROYLPHQWR�VXVWHQWiYHO��R�GHVD¿R�GR�VpFXOR�;;,��5LR�GH�-DQHLUR��*DUDPRQG��
2010.
CAPÍTULO 3
Cidade de Fortaleza:
insinuações de Risco
e Respeito
78
Capítulo 3. Cidade de Fortaleza: insinuações de risco e respeito
Pablo Pimentel Pessoa
5(6802
(VWH� DUWLJR� EXVFD� QD� KLVWyULD� GD� IXQGDomR� H� H[SDQVmR� GD� FLGDGH� GH� )RUWDOH]D� D�
compreensão dos processos conformadores do atual cenário de distribuição espacial
dos riscos socioambientais urbanos. Através da investigação da sucessão de esforços
de planejamento urbano, ensaia-se a interpretação de causas para a proliferação
ÀDJUDQWH�GH�SUiWLFDV� LQVXVWHQWiYHLV��$V� IRUPDV�GH�VRFLDELOLGDGH�XUEDQDV�PDUFDGDV�
por tipologias sobrepostas de segregação socioespacial e pela manutenção frágil
e constantemente ameaçada da funcionalidade dos compartimentos ambientais
sugerem a proximidade de um estado limite ou de uma fronteira à resiliência do
sistema socioambiental urbano. Nesse sentido, a construção do plano diretor de 2009
acena para uma mudança paradigmática orientada ao respeito às fronteiras sistêmicas
locais, mas, como indicam as experiências de implementação de planos passados,
isto deverá se dar em franca disputa entre sociedade interessada e governos afeitos
a privilégios e inobservâncias legais.
1. Introdução: Não é possível tentar o pneumotórax?
“Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire.
��2�VHQKRU�WHP�XPD�HVFDYDomR�QR�SXOPmR�HVTXHUGR�H�R�SXOPmR�GLUHLWR�LQ¿OWUDGR��
��(QWmR��GRXWRU��QmR�p�SRVVtYHO�WHQWDU�R�SQHXPRWyUD["� - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”
Pneumotórax, Manuel Bandeira
� $R�FXUVR�GR�DQR�SDVVDGR��������YLHUDP�D�WRQD�QD�LQWHUQHW�H�QDV�UHGHV�VRFLDLV�
GRLV� YtGHRV� GH� FDUiWHU� PXLWR� VHPHOKDQWH�� 2� SULPHLUR�� XPD� SURGXomR� EUDVLOHLUD�
independente intitulada “Ainda dá tempo”, lançava a seguinte pergunta a um grupo
79
de pais: “como você imagina o futuro do mundo?”. As respostas dos entrevistados
anunciavam uma visão essencialmente pessimista de futuro e uma inclinação à
decadência das instituições postas, entre outros motivos, porque não se enxergava
um amadurecimento político quanto à escolha de representantes; porque o horizonte
SUy[LPR�DQXQFLDYD�R�DFLUUDPHQWR�GH�PDLV�FRQÀLWRV�H�JXHUUDV��RX�SRUTXH�VH�SHUFHELD�
uma deterioração das condições de vida num nível de dano impingido ao planeta que
se interpretava como irreversível. Em seguida, os entrevistados são convidados a
RXYLU�RV�UHODWRV�GH�VHXV�¿OKRV�VREUH�HVVH�PHVPR�IXWXUR�H�FRPRYHP�VH�DR�VREUHSRU�
as projeções das crianças (pretensos ginasta, artista, estilista, professora, skatista,
YHWHULQiULD�H�PpGLFD��DR�FHQiULR�TXH�KDYLDP�GHVHQKDGR�QR�PRPHQWR�DQWHULRU��2�¿OPH�
arremata, pondo-nos em xeque sobre como se daria a realização daqueles sonhos
se não houvesse quem se dispusesse a acreditar e apostar na possibilidade de um
mundo melhor.
� 2�VHJXQGR�YtGHR�WUDWD�VH�GH�XPD�SURGXomR�EDQFDGD�SHOR�JUXSR�DQJOR�KRODQGrV�
Unilever, uma corporação internacional instalada no Brasil há mais de 80 anos,
fabricante de produtos de higiene pessoal e limpeza, alimentos e sorvetes. Em “Por
que trazer uma criança a este mundo?” casais em período pré-natal, tomados pelas
DQJ~VWLDV�H�G~YLGDV�DVVRFLDGDV�j�UHVSRQVDELOLGDGH�GH�VH�WHU�XP�¿OKR��VmR�FRQYLGDGRV�
D�DVVLVWLU�XPD�VHTXrQFLD�GH�LPDJHQV�GH�FRQÀLWRV�DUPDGRV��WUDEDOKR�HVFUDYR��FHQiULRV�
GH�SROXLomR�H�GHVDVWUHV�QDWXUDLV��(P�VHJXLGD��D�SHUJXQWD�TXH�Gi�QRPH�DR�¿OPH�p�
lançada e surge um narrador que diz trazer algo de que aqueles pais precisavam saber.
Na fala aveludada do narrador, uma mensagem de acalanto: soluções para parte
desses problemas já são palpáveis e reais. Diz que tecnologias revolucionárias já são
capazes de produzir alimento e água potável para centenas de milhões de pessoas –
enquanto ri-se da chamada Guerra da Água – e que doenças que hoje afetam milhões
GH�FULDQoDV�ORJR�VHUmR�SUHYHQLGDV�FRP�VLPSOHV�SURGXWRV�GR�GLD�D�GLD��2�QDUUDGRU�QRV�
tranquiliza e também aos pais de que essas crianças terão corações mais saudáveis e
que provavelmente gozarão de maior longevidade, mas que, seguramente, quando a
vida lhes trouxer um dessabor de desamor – o que, garante, há de acontecer – para
eles também há de haver o colo frondoso de uma árvore onde possam prantear seus
pensamentos.
É curioso como o vídeo da Unilever quase soa como uma campanha para o
LQFUHPHQWR�GDV�WD[DV�GH�QDWDOLGDGH��PDV��HYLWDQGR�LQJUHVVDU�QD�SROrPLFD�GHPRJUi¿FD��
80
o que de fundamental nas duas peças audiovisuais me parece sobressair é o esforço
para se desfazer o desencantamento do mundo. Parece difícil acreditar que o
século 20 tenha passado, para quem o tenha bem vivido e para alguém que agora o
FRQWHPSOH��FRP�XP�VHQWLGR�PHQRV�TXH��GLJDPRV��WUDXPiWLFR��2�FRPSRVLWRU�DUJHQWLQR�
Enrique Discépolo não teve os nervos de pagar pra ver o desenrolar da trama e,
em meio à chamada Década Infame, num país sedado pela corrupção generalizada,
HP������� FRQGHQRX� VHP�Gy� VXDV�GpFDGDV� VHJXLQWHV�� ³Siglo veinte, cambalache, /
Problematico y febril / El que no llora, no mama, / Y el que no afana es un gil. / Dale
nomás, dale que vá, / Que allá en el horno nos vamo a encontrar”. Como o autor do
tango, pergunto-me, cético, se a história não se presta a reservar a cada nova geração
um bom punhado de fatos e fardos que os formalmente apresente à desesperança.
Em todo caso, o debute do século 21, agrilhoado por problemas não
equacionados no século anterior dá sentido ao apelo e à sensibilização ensaiados
nos dois vídeos. Esse estado de desencantamento do mundo diz respeito, não
diretamente a uma decepção da humanidade para com os percursos civilizatórios, mas
a um processo de secularização da racionalidade por que passa o sujeito moderno ao
ORQJR�GR�VpFXOR����H�SULQFtSLR�GR�����DLQGD�TXH�R�GHVYHQFLOKDU�GRV�PLWRV�WUDGLFLRQDLV�
R�WHQKD�SRVWR�D�PHUFr�GH�QRYRV�PLWRV��%(1(9,'(6��������S��������(QWUH�RV�QRYRV�
PLWRV��HVWi�D�FUHQoD�QD�VDOYDomR�SHOR�SURJUHVVR�FLHQWt¿FR�WHFQROyJLFR�H�p�LQWHUHVVDQWH�
FRQIURQWDU�DV�QDUUDWLYDV�GRV�YtGHRV�H�YHU�TXH�R�TXH�¿FD�HP�DEHUWR�SDUD�UHÀH[mR�QD�
produção independente, faz-se questão de amarrar na produção corporativa (vale
dizer, associada a um projeto de responsabilidade socioambiental do grupo, o Project
Sunlight���VH�Ki�UHVSRVWD��HVWi�QD�WHFQRORJLD�
Neste artigo, faremos um esforço de localização de uma parcela estratégica
desses problemas no cenário urbano brasileiro ao caracterizarmos o estado da arte
GR�PXQLFtSLR� GH�)RUWDOH]D� �&(��%UDVLO��� FRP� IRFR� VREUH� RV� GHVUHVSHLWRV� ÀDJUDQWHV�
às vocações ambientais do sítio urbano e a direitos historicamente negados a uma
massa de cidadãos invisibilizados. A compreensão dos processos formadores de uma
estrutura urbana marcada por fortes traços acirradores de vulnerabilidades sociais e
de fragilidades ambientais deverão revelar elos fundamentais de difícil percepção que
frequentemente minam as opções de desenvolvimento para as cidades, posicionando-
as dicotomicamente ora como uma questão de urgência em minimização de riscos
�DJHQGD� QHJDWLYD�� RUD� FRPR� XP� GHEDWH� VHOHWLYR� VREUH� TXDOLGDGH� GH� YLGD�� YLVDQGR�
81
XP� OHTXH� GH� IXWXURV� VHJXURV� H� GHVHMiYHLV� SRVVtYHLV� �DJHQGD� SRVLWLYD��� PDV� QmR�
necessariamente justos. Com isso, acreditamos que seremos capazes de dirimir,
com uma postura consequente, esta frágil polarização entre otimistas e pessimistas,
SHVVRDV�GH�Ip�H�FDWDVWUR¿VWDV��$¿QDO��GHQWUH�RXWURV�OHJDGRV��R�VpFXOR����WRUQRX�RX��
SHOR�PHQRV��IRUQHFHX�HOHPHQWRV�PDLV�TXH�VX¿FLHQWHV�SDUD�WRUQDU�HP�PXLWRV�VHQWLGRV�
constrangedor o posicionamento público de caráter maniqueísta, mutilador do
pensamento complexo.
2. Considerações metodológicas e predisposições subjetivas
Apoiados em uma perspectiva dita novo-paradigmática, de abandono dos
SUHVVXSRVWRV� FLHQWt¿FRV� WUDGLFLRQDLV�� UHFRQVWUXLUHPRV� DVSHFWRV� GH� IRUPDomR�
histórica da realidade fortalezense cujas escolhas e percursos de desenvolvimento
WRPDGRV� UHVXOWDP� QD� FRQ¿JXUDomR� GH� XP� TXDGUR� PDUFDGR� SRU� SURIXQGD� VLWXDomR�
de vulnerabilidade socioambiental, o que, consequentemente, torna questionável a
TXDOLGDGH�GD�WHVVLWXUD�HFRQ{PLFD�VREUH�D�TXDO�VH�DVVHQWD�H�VH�SUHWHQGH�VXVWHQWiYHO�
tal estrutura urbana. Com a rejeição da crença na existência de uma realidade objetiva,
DOKHLD�D�VXMHLWRV�REVHUYDGRUHV��D�QRomR�GH�YHUGDGH�QRYR�SDUDGLJPiWLFD�D¿UPD�VH�QR�
HVSDoR�LQWHUVXEMHWLYR��QR�HQFRQWUR�GH�GLVWLQWDV�VXEMHWLYLGDGHV��'HVVH�PRGR��MXVWL¿FDPRV�
a referência a manchetes de jornal, como elementos potencialmente captadores de
composições narrativas convergentes e divergentes, descritores de um determinado
tema em recorte afeito às determinações e oscilações das condições de vida urbana
às quais se pretende investigar. Às provocações das manchetes buscaremos conectar
H[SOLFDo}HV�KLVWyULFR�SURFHVVXDLV�HP�HVWXGRV�H�UHODWRV�GH�PDLRU�I{OHJR�
Cabe antecipar ao leitor a informação de que esta se trata de uma análise sob
a perspectiva de alguém que é natural da cidade objeto de estudo e que reside e
acompanha as transformações deste espaço há pelo menos duas décadas. Isto deverá
minimizar o espanto quanto a evidências discursivas, às quais optei por não me privar,
sobre a localização e o vínculo espacial da voz que vos fala. Esta advertência de forma
alguma livra o autor do exercício necessário de distanciamento dos fatos. Apenas
reconhece que uma análise multi-temporal e escalar, pretensamente complexa, entre
outras dimensões pode e deve se dar em cotejamento às predisposições subjetivas
do pesquisador. Ademais, sustento esta pequena ousadia no declame parnasiano de
82
)OiYLR�9LOODoD��������j�FLGDGH�GR�5LR�GH�-DQHLUR��³As cidades são como as estrelas; é
preciso amá-las para entendê-las.”
3. Sala de honrarias e a ponta amolada do iceberg
“melhor é o Poder devolver presse povo a alegria
senão todo mundo vai sambar no dia
em que o morro descer e não for carnaval“
O dia em que o morro descer e não for carnaval,
Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
Aqui iniciamos nossa busca por insustentabilidades no espaço urbano de
Fortaleza. Uma notícia recente (Figura 1a�� VREUH� R� FRQWUROH� GH� WHUULWyULRV� GHVWD�
FLGDGH� WURSLFDO�SRU�JDQJXHV� OHPEURX�PH�R�UHODWR�GH�-DFREV��������S������TXDQWR�D�
XP�SURFHVVR�VHPHOKDQWH�SRU�TXDO�1RYD�<RUN�SDVVDYD�QRV� LGRV�������(P�������R�
&RQVHOKR� -XYHQLO� GD�&LGDGH� EXVFDYD� ¿UPDU� SDFWRV� HQWUH� JDQJXHV� ULYDLV�� TXH�� SRU�
meio do reconhecimento do domínio desses grupos, propunham acordos de trégua.
2�FRPLVViULR�GH�SROtFLD�j�pSRFD�HQTXDGURX�D�WHQWDWLYD�GH�HQIUHQWDPHQWR�GR�SUREOHPD�
como uma opção inaceitável pela negação dos direitos do cidadão e à segurança
pública. Jacobs cita esse exemplo como uma das três formas possíveis de se conviver
com a insegurança.
A segunda maneira seria permitir a autotutela dos indivíduos, cujo produto
resulta numa cidade fortemente marcada por lugares onde o perigo impera e onde o
dar-se de cara com a ameaça é tido como uma triste casualidade. Já a terceira saída
caracterizada por Jacobs resume-se a uma estratégia de refúgio veicular, em que
os chassis e as blindagens servem de redoma neutralizadora de perigos, tal como
turistas expostos aos perigos de um safari e orientados a nunca abandonarem o
transporte. Nesse sentido, aproximam-se muito os depoimentos ilustrativos trazidos
nos dois textos:
As pessoas que se encontram em locais perigosos de outras cidades também
costumam utilizar automóveis como proteção, é claro, ou pelo menos tentam. Uma
83
FDUWD�HQGHUHoDGD�DR�HGLWRU�GR�1HZ�<RUN�3RVW�GL]��³0RUR�QXPD�UXD�HVFXUD��WUDYHVVD�GD�
Avenida Utica, no Broklyn, e por isso decidi tomar um táxi para chegar à minha casa,
HPERUD�QmR� IRVVH� WDUGH��2�PRWRULVWD�SHGLX�TXH�HX�GHVFHVVH�QD�HVTXLQD�GD�8WLFD��
dizendo que não queria entrar na rua escura. E eu precisaria dele se quisesse andar
SRU�XPD�UXD�HVFXUD"´��-$&2%6��������S�����;
A pé, o supermercado dista dez minutos de casa. Mas a senhora faz o trajeto
GH�{QLEXV��(QIUHQWD�ORWDomR�H�WUkQVLWR��3DVVD����PLQXWRV�QXP�FROHWLYR��'i�XPD�YROWD�
enorme até chegar ao local das compras. Repete o estorvo na volta, cheia de sacolas.
([DXVWD��7XGR�SDUD�QmR�DWUDYHVVDU�D� UXD�TXH�GLYLGH�R�EDLUUR��0RUUHULD�VH�FUX]DVVH�
“o lado de lá”. Não é envolvida com droga. Nem com nada criminoso. Findaria pelo
simples fato de viver no território onde um grupo disputa com outro o domínio da
6DSLUDQJD��&$6752��������
Parece que, em certa medida, devemos concordar com o comissário nova-
iorquino: estas ações não se prestam a um enfrentamento, mas a uma convivência com
a violência ou a uma busca por sobrevivência apesar da insegurança. Não é intenção
aqui imergirmos em conjecturas sobre o caráter intrínseco ou não da violência ao
funcionamento das grandes cidades. Queremos tão somente esboçar uma tendência
a um agravamento de situações de vulnerabilidade que gradualmente transformam
R�YLYHU�H�R�FRQYLYHU�QDV�FLGDGHV�EUDVLOHLUDV�XP�ÀDJUDQWH�HVIRUoR�GH�VREUHYLYrQFLD��
com particularidades críticas para determinados grupos marginalizados. E se há
causas estruturais mantenedoras e multiplicadoras dessas situações, sua explicitação
GHYHUi� GHVORFDU� H� GDU� QRYR� VLJQL¿FDGR� WDQWR� jV� SROtWLFDV� GH� FRQYLYrQFLD� FRP� D�
LQVHJXUDQoD�TXDQWR�jV�GH�HQIUHQWDPHQWR��$¿QDO��TXDLV�VmR�RV�QtYHLV�GH�LQGLFDGRUHV�GH�
YLROrQFLD�DFHLWiYHLV"�4XH�HVWUDWpJLDV�GLWDV�GH�HQIUHQWDPHQWR�DSURIXQGDP�RV�SRQWRV�
IXQGDPHQWDLV�RULJLQiULRV�GHVVDV�WHQV}HV"
� 4XDQWR�DRV�FRQÀLWRV�GH� WHUULWRULDOLGDGH��D�SUySULD� UHSRUWDJHP�PHQFLRQDGD� Mi�
DSRQWD�XP�FHQiULR�GH�DJUDYDPHQWR� �&$6752���������8PD�GLQkPLFD�GH� ULYDOLGDGH�
TXH� VH� GLVWULEXtD�� HP� ������ HP� WRUQR� GH� �� EDLUURV�� HP� ������ HQJORED� DJRUD� ���
GLVWLQWDV�iUHDV�GD�FLGDGH��VHQGR����FRQVLGHUDGDV�SDOFR�GH�WHQV}HV�FUtWLFDV�H����GH�
PHQRU�SURSRUomR��7DPEpP�GHVGH�������XPD�21*�PH[LFDQD�DFRPSDQKD�D�VLWXDomR�
da violência urbana em Fortaleza, publicando anualmente um ranking das cidades
mais violentas do mundo (Figura 1b���(P������DSUHVHQWDPRV�XPD� WD[D�DQXDO� GH�
84
homicídios dolosos por 100 mil habitantes de 42,90��������KRPLFtGLRV�UHJLVWUDGRV���QR�
ano seguinte, a taxa foi de 66,39��������KRPLFtGLRV���H��HP�������WLYHPRV�XPD�WD[D�
de 72,81��FRP�������KRPLFtGLRV��$�FLGDGH�DSUHVHQWRX�XP�GHVHPSHQKR�DVFHQGHQWH��
VDOWDQGR�GD�SRVLomR�����SDUD�D���a�H��HP�VHJXLGD���a no último ranking publicado.
Apesar de admitirem trabalhar em alguns casos com projeções estatísticas e
VHUHP�FULWLFDGRV�SRU�UHFRUUHUHP�D�IRQWHV�QmR�R¿FLDLV��MRUQDLV��TXDQGR�RV�GDGRV�QmR�
se encontram disponíveis, os rankeamentos do Conselho Cidadão pela Seguridade
Social Pública e Justiça Penal parecem, pelo menos para Fortaleza, acompanhar
D� WHQGrQFLD�HYROXWLYD�GRV� UHJLVWURV�GH������D������GD�6HFUHWDULD�GH�9LJLOkQFLD�HP�
6D~GH��696��GR�0LQLVWpULR�GD�6D~GH��Figura 2���(VVHV�GDGRV�UHYHODP�XP�FUHVFLPHQWR�
vertiginoso da taxa de homicídios, de 16,7�HP�������24,1 em 2001; e 49,4 em 2011.
,VWR�UHSUHVHQWD�XP�VDOWR�GH������QRV�YDORUHV�HQWUH������D������
� (P�HQWUHYLVWD�DR�SRUWDO�82/�1RWtFLDV�HP�������-XOLR�-��:DLVHO¿V]�RUJDQL]DGRU�
da série Mapas da Violência no Brasil, declarou como insuportável a situação da
YLROrQFLD� HP�$ODJRDV� �0$'(,52�� ������� ¬� pSRFD� D� UHJLmR� DWLQJLD� D� WD[D� UHFRUGH�
entre os estados brasileiros de 71,3, igualando-se à marca de El Salvador, país tido
às pesquisas como mais violento. Nos rankings da instituição mexicana mencionada
0DFHLy�RVFLOD�GD��a, para a 6a e 5a posições, mantendo-se sempre acima de Fortaleza.
6H�EHP�UHSDUDUPRV��QR�HQWDQWR��D�PDUFD�GD�FDSLWDO�FHDUHQVH�HP�������72,8��XOWUDSDVVD�
D�UHIHUrQFLD�GR�LQVXSRUWiYHO�GH�:DLVHO¿V]�
� $�2UJDQL]DomR�0XQGLDO�GD�6D~GH��206��HVWDEHOHFH�R� OLPLWH�GR�WROHUiYHO�HP�
���KRPLFtGLRV�SRU�����PLO�KDELWDQWHV�SRU�DQR��1(9���������$FLPD�GD�PDUFD�GH�10,0, a
taxa passa a ser considerada epidêmica, indicadora de um processo de disseminação
GD� YLROrQFLD� VRE� R� TXDO� QmR� VH� WHP� R� FRQWUROH�� 3DUD� TXDOL¿FDUPRV� D� GLVFUHSkQFLD�
entre o insuportável, o tolerável e o desejável, tomamos por base a meta lançada
pelo Programa Cidades Sustentáveis, uma parceira entre a Rede Nossa São Paulo, o
Instituto Ethos e a Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis inspirada
QRV�FRPSURPLVVRV�GH�$DOERUJ�¿UPDGRV�QD�'LQDPDUFD�HQWUH�FHUFD�GH�����PXQLFtSLRV�
HXURSHXV��)$5,1+$��32(,5$��������
A chamada Plataforma Cidades Sustentáveis é uma ferramenta política
proposta pelo programa para garantir a orientação dos governos a um sentido de
desenvolvimento sustentável pautado em indicadores e metas objetivos. No capítulo
“Equidade, Justiça Social e Cultura de Paz” o documento de referência da plataforma
85
¿[D�D�PHWD�³]HUDU�DV�PRUWHV�SRU�KRPLFtGLRV´��$�EDVH�GH�FiOFXOR�GR�LQGLFDGRU��GLIHUHQWH�
GD� 7D[D� GH� 0RUWDOLGDGH� (VSHFt¿FD� �70(��� GH� XVR� PDLV� FRPXP�� GLYLGH� R� Q~PHUR�
de mortes no ano pelo total da população e a multiplica por 10 mil habitantes. As
referências da meta são as taxas de homicídios registrados no Mapa da Violência
de 2011�SDUD�D�,VOkQGLD���������R�5HLQR�8QLGR��������H�R�-DSmR���������3RUWDQWR��VH�
¿]HUPRV�D�WUDQVSRVLomR�GHVVHV�YDORUHV�SDUD�D�SURSRUomR�GH�����PLO�KDELWDQWHV�D�¿P�
GH�FRPSDUDUPRV�FRP�DV�GHPDLV�WD[DV�DSUHVHQWDGDV��R�VLJQL¿FDGR�GH�]HUDU�DV�PRUWHV�
se mantém, pois as taxas desses países passam a 0,3, 0,4 e 0,4��5('(�1266$�62�
3$8/2��������:$,6(/),6=��������9DOH�GL]HU�TXH�R�DWXDO�SUHIHLWR�GH�)RUWDOH]D��5REHUWR�
&OiXGLR�5RGULJXHV�%H]HUUD��������������IRL�XP�GRV�FDQGLGDWRV�VLJQDWiULRV�GD�FDUWD�
de adesão à plataforma ao curso das eleições municipais de 2012, comprometendo-
se a gerar e divulgar os dados necessários ao acompanhamento dos indicadores.
Feita esta consideração, seria razoável e justo que nos aprofundássemos
em outras conjecturas acerca do quadro da violência no Brasil e na América Latina,
porque este certamente não é um problema restrito à cidade de Fortaleza nem todos
os fortalezenses estão expostos às suas consequências da mesma forma. No entanto,
como foi dito de início, termos nos debruçado sobre as estatísticas de homicídios trata-
se apenas de uma das muitas possibilidades de ingresso no debate complexo sobre
as marcas de sustentabilidade urbana expressas ou ausentes em um dado espaço.
� $�YLROrQFLD�XUEDQD�p�XP�IHQ{PHQR�FRPSOH[R�H�GH�FDXVDV�P~OWLSODV��PDV�TXH�
tem sido associado, em última instância, à reprodução de formas de sociabilidade
PDUFDGDV�SRU�DFHQWXDGRV�QtYHLV�GH�GHVLJXDOGDGH�H�LQMXVWLoD��0$&('2�HW�DO����������
A violência letal a qual temos nos referido diz respeito à violência em grau extremo,
R�TXH�:HLVHO¿V]��������FKDPDULD�GH�³SRQWD�YLVtYHO�GR�LFHEHUJ´�GDV�FRQGLo}HV�GH�YLGD�
H�GDV�UHODo}HV�GLWDGDV�SHOD�PRGHUQLGDGH��&RORFDGR�GHVVD�IRUPD��R�ÀDJUDQWH�TXDGUR�
de extermínio das classes marginalizadas brasileiras – notadamente, jovens, negros
H�SREUHV�±��TXH�VH�YHUL¿FDULD�FRQIRUPH�HVSDFLDOL]DomR�H�GHVDJUHJDomR�GRV�GDGRV�
apresentados, são a expressão empírica de processos persistentes de desigualdades
urbanas. Esses processos estruturaram as aglomerações urbanas brasileiras desde
as primeiras vilas e, portanto, constituem o fundamento dos maiores gargalos à
UHFRQ¿JXUDomR�GDV�VRFLHGDGHV�DTXL�HVWDEHOHFLGDV�D�XPD�UHODomR�GH�UHVSHLWR�HQWUH�VL�
H�FRP�R�PHLR�TXH�RFXSDP��9HMDPRV�FRPR�LVWR�VH�GHX�HP�)RUWDOH]D�
86
Figura 1. Quadro de honrarias, mural de notícias.
)RQWHV���D��&DVWUR����������E���'LiULR�GR�1RUGHVWH����������F��/DXULDQR�����������G��0DLD��������
87
Figura 2.�7D[D�GH�KRPLFtGLRV�HP�)RUWDOH]D������������
)RQWH��0LQLVWpULR�GD�6D~GH�696�±�6LVWHPD�GH�,QIRUPDo}HV�VREUH�0RUWDOLGDGH��6,0�
���(VWDGR�GD�DUWH�DWXDO��¿FKD�WpFQLFD�GR�PXQLFtSLR
� $� FRQ¿JXUDomR� WHUULWRULDO� GR� HVWDGR� GR� &HDUi� GHX�VH� SRU� XP� SURFHVVR� GH�
desenvolvimento desigual e concentrado às imediações da cidade de Fortaleza,
que, aos poucos, vai se constituindo como uma metrópole dinâmica cujas forças
atrativas reverberam na produção de um quadro regional de acentuada macrocefalia
�3(48(12���������$IRUD�D�FDSLWDO��GRV�����PXQLFtSLRV��DSHQDV�VHWH�RXWUDV�FLGDGHV�
apresentam mais de 100 mil habitantes (Figura 5���)RUWDOH]D�KRMH��GH¿QLGRV�RV�VHXV�
OLPLWHV�HP�����EDLUURV��Figura 4���FDUDFWHUL]D�VH�FRPR�XPD�FLGDGH�OLWRUkQHD�DR�QRUWH�
GR�(VWDGR��RFXSDQGR�����NP2 (Figura 3���1R�&HQVR�GH�������D�SRSXODomR�HUD�GH�
����������KDELWDQWHV��HVWLPDGD�SDUD������HP�����������KDELWDQWHV��D�TXLQWD�FLGDGH�
PDLV�SRSXORVD��7UDWD�VH�WDPEpP�GD�PDLRU�GHQVLGDGH�GHPRJUi¿FD�GR�3DtV�����������
hab/km2��$�*UDQGH�)RUWDOH]D��UHJLmR�PHWURSROLWDQD�LQVWLWXtGD�HP������KRMH�DEUDQJH��
com a capital, mais 14 municípios.
88
Figura 3. Dados gerais do município de Fortaleza
)RQWHV��,%*(���������/HLWH�H�9LDQD���������2OtPSLR�H�=DQHOOD�������
89
Figura 4. Divisão administrativa atual por bairros e secretarias executivas
Fontes: Prefeitura de Fortaleza; Elaboração: IPECE.
90
Figura 5. Municípios cearenses com mais de 100 mil habitantes
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais
� 2�VtWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D�p�UHODWLYDPHQWH�SODQR��FRP�SHTXHQDV�GHFOLYLGDGHV�H�
formado majoritariamente por substrato geológico da Formação Barreiras (coberturas
VHGLPHQWDUHV� &HQR]yLFDV��� VREUH� R� TXDO� VH� GHVHQYROYHUDP� RV� 7DEXOHLURV� 3Up�
litorâneos, considerados compartimentos geoambientais de boa estabilidade natural,
SURStFLDV��SRUWDQWR��j�RFXSDomR��+i�WDPEpP�RFRUUrQFLD�GH�URFKDV�GR�(PEDVDPHQWR�
&ULVWDOLQR�H�HVWUXWXUDV�GHULYDGDV�GR�YXOFDQLVPR�7HUFLiULR��6$1726��������S�������
A cidade encerra em seus limites áreas de contribuição de quatro bacias
KLGURJUi¿FDV��D�GR�ULR�&RFy��D�GR�VLVWHPD�0DUDQJXDSLQKR�&HDUi��D�GR�ULR�3DFRWL��H�D�
EDFLD�9HUWHQWH�0DUtWLPD��Figura 6���$�EDFLD�GR�ULR�&RFy��FRP�VHX�SULQFLSDO�WULEXWiULR��R�
ULR�&RDoX��SHUID]HP�D�PDLRU�iUHD�GH�GUHQDJHP��RFXSDQGR�FHUFD�GH�����GR�PXQLFtSLR�
�6$1726��������S��������$�SUHGRPLQkQFLD�GH�VXSHUItFLHV�SODQDV�H�GH�LQFOLQDomR�VXDYH�
em direção ao litoral, com declividades pouco pronunciadas resultam em amplitude
altimétrica não superior a 15 m entre os fundos dos vales e os topos dos tabuleiros,
que, aliados às condições de solos, favorecem o acúmulo de reservatórios de águas
paradas em detrimento da dissecação por ação pluvial (Figura 8���$LQGD�TXH�PXLWDV�
tenham sido aterradas para produção de solo urbano, são incontáveis as lagoas neste
91
VtWLR��&ODXGLQR�6DOHV������D��H[SOLFD�TXH�HVWH�p�XP�IDWR�FRPXP�DR�GRPtQLR�FRVWHLUR�
nordestino, mas a grande ocorrência desses corpos em Fortaleza deve-se à presença
GR�0DFLoR�GH�%DWXULWp�� TXH�DWXD�FRPR�EDUUHLUD�RURJUi¿FD�j�XPLGDGH� WUD]LGD�SHORV�
ventos de NE.
Em Fortaleza, como em boa parte do Nordeste setentrional, as chuvas
FRQFHQWUDP�VH�QR�SULPHLUR�VHPHVWUH�GR�DQR��FHUFD�GH�����GR�YROXPH�DQXDO���FRP�
picos de concentração em março e abril, que são também os meses de menores
LQVRODomR� ������� H� ������ KRUDV�PrV�� H� HYDSRUDomR� �PpGLD� GH� ������ PP�DQR���
Apesar da irregularidade patente, tanto ao longo do ano quanto no decorrer dos
anos, distanciando-se da média, os índices pluviométricos da capital são, em geral,
VXSHULRUHV� D� ������PP�DQR�� FRQ¿JXUDQGR� ERD� GLVSRQLELOLGDGH� KtGULFD� VXSHU¿FLDO� H�
subterrânea em relação às regiões semiáridas interioranas. As temperaturas, por sua
YH]��RUELWDP�HP�WRUQR�GD�PpGLD�GH�����o�&� �&/$8',12�6$/(6������D��6$1726��
������S�������
Figura 6.�%DFLDV�H�VXE�EDFLDV�KLGURJUi¿FDV�GH�)RUWDOH]D
)RQWH���$GDSWDGR�GH�$OGLJXHUL��������S�����
92
Quanto à compartimentação do relevo (Figura 7��� HVWH sítio urbano possui,
VHJXQGR�=DQHOOD�H�2OtPSLR���������RQ]H�VLVWHPDV�DPELHQWDLV������WHUUDoRV�PDULQKRV��
����GXQDV�PyYHLV������GXQDV�¿[DV������SODQtFLHV�ÀXYLDLV������SODQtFLHV�ÀXYLRPDULQKDV������
SODQtFLH�SUDLDO������SODQtFLHV�ODFXVWUHV������iUHDV�GH�LQXQGDomR�VD]RQDO������WDEXOHLURV�
SUp�OLWRUkQHRV�� ����� WUDQVLomR� WDEXOHLUR� SUp�OLWRUkQHR� H� GHSUHVVmR� VHUWDQHMD� H� �����
PRUURV�UHVLGXDLV��-i�&ODXGLQR�6DOHV������E��UHVXPH�D�FDUDFWHUL]DomR�JHRDPELHQWDO�
D�TXDWUR�WLSRV�GH�HVSDoRV�QDWXUDLV���D��SODQtFLH�OLWRUkQHD���E��WDEXOHLURV�FRVWHLURV���F��
SHGLPHQWR�FULVWDOLQR��H��G��SODQtFLHV�ÀXYLDLV��
� 2SWDUHPRV��QR�HQWDQWR��SHOD�RUJDQL]DomR�WD[RQ{PLFD�GH�6DQWRV��������S��������
que distingue doze padrões de formas de relevo� ��o� Wi[RQ��� �L�� IDL[D�GH�SUDLD�� �LL��
WHUUDoRV�PDULQKRV���LLL��GXQDV�¿[DV���LY��GXQDV�PyYHLV���Y��SDOHRGXQDV���YL��SODQtFLHV�
ÀXYLRPDULQKDV�� �YLL�� EHDFK� URFNV�� �YLLL�� SODQtFLHV� ÀXYLDLV�� �L[�� SODQtFLHV� ODFXVWUHV� H�
ÀXYLRODFXVWUHV�� �[�� WHUUDoRV�ÀXYLDLV�� �[L�� WDEXOHLURV�SUp�OLWRUkQHRV��H� �[LL��SHGLPHQWRV�
GD� GHSUHVVmR� VHUWDQHMD� VXE~PLGD�� 2V� SDGU}HV� GH� IRUPDV� DVVRFLDP�VH� D� FLQFR�
morfoesculturas (2o�Wi[RQ���SODQtFLH�OLWRUkQHD��L�YLL���YDOHV�H�SODQtFLHV�GH�DFXPXODomR�
ÀXYLDO��YLLL�[���JOiFLV�GH�GHSRVLomR�SUp�OLWRUkQHRV��[L���UHOHYRV�YXOFkQLFRV��DVVRFLDGRV�
apenas a formas de relevo mais detalhadas, pertencentes ao 4o táxon – Morro Caruru e
6HUURWH�$QFXUL���H�GHSUHVVmR�VHUWDQHMD�VXE~PLGD��[LL���3RU�¿P��HVWH�DXWRU�UHODFLRQD�jV�
FDWHJRULDV�GH��o e 4o táxons processos derivados de atividades socioeconômicas
(6o�Wi[RQ���PROKHV�HVSLJ}HV��L���FLFDWUL]HV�GH�PLQHUDomR��LLL�Y��[L��[LL�H�0RUUR�&DUXUX���H�
DWHUURV�VDQLWiULRV��YLLL�H�[L��
Como a nós interessa a consideração dos compartimentos geoambientais
em função das suas condições de suporte a usos e ocupações tipicamente urbanos,
recorreremos à análise de fragilidade do ambiente (Figura 9���SUp�UHTXLVLWR�à aferição
dos riscos socioambientais urbanos. A abordagem trabalhada por Santos (2011,
S������EDVHLD�VH�QR�DSULPRUDPHQWR� UHDOL]DGR�SRU�5RVV� �������VREUH�R�FRQFHLWR�GH�
XQLGDGHV�HFRGLQkPLFDV� GH�7ULFDUW� ��������3RU� HFRGLQkPLFD�HQWHQGH�VH�XP�GLiORJR�
HQWUH�D�(FRORJLD�H�D�*HRJUD¿D�)ísica em abordagem sistêmica, IRFDGD�QRV�ÀX[RV�GH�
matéria e energia, para determinação dos níveis de estabilidade dos ambientes. A
qualidade do sistema é tradicionalmente determinada por um balanço entre processos
morfogenéticos e pedogenéticos. Quando a deposição supera a erosão, tem-se
um ambiente estável. Quando ocorre o contrário e os processos morfogenéticos
predominam, tem-se instabilidade no sistema.
93
� $� FRQWULEXLomR� GH� 5RVV� DR� PpWRGR� GH� 7ULFDUW� Gi�VH� SHOD� FRQVLGHUDomR� GD�
ênfase aos elementos externos em detrimento dos processos endógenos como
LQDGHTXDGD�DRV�¿QV�GR�SODQHMDPHQWR�DPELHQWDO�XUEDQR��DPELHQWH�RQGH�R�FRPSRQHQWH�
antropogênico se faz notável. Dessa forma, as unidades ecodinâmicas e suas faixas de
transição foram convertidas em unidades de instabilidade emergente e potencial, cada
uma com cinco níveis qualitativos, variando de muito baixa a muito forte. A primeira
unidade corresponde a ambientes em equilíbrio dinâmico, considerados estáveis, mas
cuja fragilidade potencial poderá vir à tona mediante intervenção antrópica. A segunda
categoria refere-se tanto a ambientes naturalmente frágeis como a sistemas fortemente
LQVWiYHLV�GHÀDJUDGRV�SRU�DomR�KXPDQD��DVVRFLDGRV�PXLWDV�YH]HV�D�GHVPDWDPHQWRV�
�6$1726��������S������
Figura 7. Compartimentação geomorfológica do sítio urbano de Fortaleza
Fonte: Adaptado de Santos ������
Uma vez feito o retrato da Fortaleza atual, recorreremos às causas históricas
e processos de formação que marcaram a eclosão desta realidade urbana. Para que
94
não incorramos na armadilha de recontar a história da cidade, lançaremos a seguinte
pergunta suleadora: que sorte de acontecimentos em cerca de 160 anos (desde a
D¿UPDomR�FRPR�FDSLWDO��VXFHGHUDP�DR�VtWLR�H�j�VRFLHGDGH�IRUWDOH]HQVH��GH�WDO� IHLWD�
TXH�GHOHV�VH�WHQKD�VHFUHWDGR�FDUiWHU�WmR�LQyVSLWR�VREUH�SDLVDJHQV�RUD�WmR�DPHQDV"�
2V�SURFHVVRV� LQWHQVRV�GH�XUEDQL]DomR�HP� WRGR�R�SDtV�SURGX]LUDP�GHIRUPDo}HV�H�
GHVXPDQLGDGHV� VHPHOKDQWHV�� $TXL�� SRUWDQWR�� QRV� GHWHUHPRV� D� LGHQWL¿FDU� RV� HORV�
críticos dessas relações particulares ao cenário desta capital, porque é a partir deles
que enxergaremos pontos de ruptura com a inércia dessas tais insustentabilidades. De
DQWHPmR��¿[HPRV�D�KLSyWHVH�GH�TXH�D�VDWXUDomR�GR�VtWLR�XUEDQR��FRP�R�SUHHQFKLPHQWR�
virtual das áreas ambientalmente favoráveis à ocupação, aliado às tendências regionais
GH�PDFURFHIDOLD�PHWURSROLWDQD�VHMDP�RV�YHWRUHV�PDLV�VLJQL¿FDWLYRV�GH�SURPRomR�GDV�
vulnerabilidades sociais e acirramento das fragilidades ambientais.
95
Figura 8. 6tWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D���D��0DSD�KLSVRPpWULFR���E��0DSD�GH�GHFOLYLGDGHV
)RQWH��6DQWRV�������
96
Figura 9.�6tWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D���D��6LVWHPDV�$PELHQWDLV���E��9XOQHUDELOLGDGH�1DWXUDO Fonte: 2OtPSLR�H�=DQHOOD�������
97
5. A bola de neve do semiárido
“Não haverá mais um dia, não deixemos pra depois
Corta um segundo em minha vida e eu canto uma canção logo em seguida
Enquanto nossa rua, nossos corpos, nossa terra, nossa vida
Não é um alvo da vida dos senhores”
Não haverá mais um dia, Pachely Jamacarú
Para orientar nosso recorte narrativo apoiemo-nos na proposta de periodização
GH�&XVWyGLR��������S�������SDUD�TXHP�D�DQiOLVH�KLVWyULFR�SURFHVVXDO�VH�PRVWURX�FDUD�j�
interpretação dos problemas ambientais de escassez de água e inundações na grande
6mR�3DXOR��(VWD�DXWRUD�LGHQWL¿FD�FLQFR�PRPHQWRV�H�GLVWLQJXH�RV�GD�VHJXLQWH�IRUPD��
(1) 1532-1808:�GD�IXQGDomR�GD�FLGDGH�SULPHLUD�FLGDGH��6mR�9LFHQWH��j�FKHJDGD�GD�
família real portuguesa ao Brasil; (2) 1808-1930: do estabelecimento da família real
DR�LQtFLR�GR�SULPHLUR�JRYHUQR�*HW~OLR�9DUJDV��(3) 1930-1964: da posse de Getúlio ao
período militar; (4) 1964-1988: da ditadura à promulgação da constituição cidadã; e
(5)�GH������DWp�R�PRPHQWR�DWXDO�
3UyORJR��VROLFLWD�VH�R�DYDO�GR�H[LVWLU
� 2�SULPHLUR�SHUtRGR�p�PDUFDGR�SHOR�GRPtQLR�GH�XPD�RUGHP�H[WHUQD��GLVWDQWH���
determinante inequívoca dos processos iniciais de ocupação do território brasileiro.
2V�REMHWLYRV�GH�FULDomR�GDV�FLGDGHV�HUDP��YLD�GH�UHJUD��YROWDGRV�j�GHIHVD�GR�WHUULWyULR��
à drenagem e ao escoamento da produção canavieira e de gêneros secundários
DR� PHUFDGR� LQWHUQDFLRQDO� �&867Ï',2�� ������ S�� ����� $V� RULJHQV� SDUWLFXODUHV� GH�
Fortaleza e da capitania do Ceará estão associadas às funções administrativa e de
defesa do território, como as demais, mas suas condições ambientais não permitiram
a exploração comercial de nenhum produto do repertório cultural europeu digno de
exportação. Assim, a penetração do continente se deu amparada na criação de gado
para provimento da região Nordeste e aglomerações próximas.
Chega a ser desconcertante a leitura dos relatos de formação desta cidade
dada a ênfase no desinteresse por parte dos colonizadores e na precariedade das
condições de vida social urbana, que, cambaleante, vai se estruturando em torno do
98
IRUWH�TXH�YLULD�D�GDU�QRPH�j�FDSLWDO�FHDUHQVH��2V�SURFHVVRV�GH�RFXSDomR�GR�&HDUi�QR�
período colonial diferenciam-se das demais regiões do nordeste, porque não havendo
FRQGLo}HV� GH� FXOWLYR� GD� FDQD�GH�Do~FDU� �DWLYLGDGH� SULQFLSDO��� D� SHFXiULD�� DWLYLGDGH�
DFHVVyULD� j� FXOWXUD� FDQDYLHLUD�� UHJLRQDOPHQWH� D¿UPD�VH� FRPR� DWLYLGDGH� SULQFLSDO��
Nesse sentido, ainda que nada comparável ao dinamismo alcançado em Pernambuco
e na Bahia, a criação de gado orienta a penetração continental e, inclusive, subordina
a atividade portuária litorânea aos seus interesses de expansão. Nesse momento,
Aracati e Icó ganham destaque como centros de drenagem e escoamento da produção
GH�FKDUTXH��HQTXDQWR�)RUWDOH]D�UHSRXVD�HP�UHWLFHQWH�HVWDJQDomR��6$1726��������S��
�����
Até a última década do século 18, os povoados, vilas e atividades que, bem
RX� PDO�� GHVHQYROYLDP�VH� QR� DWXDO� HVWDGR� GR� &HDUi� �FDSLWDQLD� VXEDOWHUQD�� HUDP�
YLQFXODGRV� j� FDSLWDQLD� GH� 3HUQDPEXFR�� &DVWUR� ������� FRQWD� TXH� D� FRORQL]DomR�
brasileira reproduziu a prática herdada do sistema administrativo português de criação
de unidades territoriais por divisão consentida pelo poder real, uma forma de manter
D�LQWHJULGDGH�GR�WHUULWyULR�HP�FRQVROLGDomR�DSyV�D�UHFRQTXLVWD�GR�UHLQDGR�FULVWmR��2�
exercício desse poder consentido dava aos municípios, menores unidades do sistema
administrativo, prerrogativas de comando dos territórios com sede nas vilas ou
cidades, permitindo aos membros das câmaras o acúmulo de atividades legislativas,
executivas e judiciais. Daí a solicitação à coroa por parte dos moradores do Forte e
por intermédio dos ouvidores – sobrecarregados de atividades e, por isso, favoráveis
– à criação de uma vila na região.
� (P�������IRL�H[SHGLGD�SRU�'��3HGUR�,,�D�FDUWD�UpJLD�TXH�HQFDUUHJDYD�R�RXYLGRU�
da Paraíba da criação de uma vila no Ceará. Inicialmente instalada na Barra do
Ceará, depois nas proximidades do Forte da Assunção; em seguida, no Iguape (praia
SHUWHQFHQWH�KRMH�DR�PXQLFtSLR�GH�$TXLUD]���SRU�DSDUHQWH�FDSULFKR�GR�RXYLGRU�H��SRU�
¿P��PDV�QmR�VHP�XPD�OXWD�GH�GR]H�DQRV��D�FRQFHSomR�GD�YLOD�UHWRUQD�DR�Sp�GR�)RUWH��
'HVWDUWH��R�LPEUyJOLR�VH�UHVROYH�SRU�H[SHGLomR�GH�QRYD�FDUWD�UpJLD��HP����GH�DEULO�GH�
�����p�VROHQHPHQWH�FULDGD�D�Vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção da
Capitania do Ceará Grande��'LSORPDWLFDPHQWH��'��-RmR�PDQWHYH�D�9LOD�GR�$TXLUiV�
LQVWLWXtGD�SHOR�RXYLGRU��&$6752���������
� $�FULDomR�GD�9LOD�GD�)RUWDOH]D��QR�HQWDQWR��QmR�WHULD�WLGR�PXLWR�VLJQL¿FDGR�VH�
HP������QmR� WLYHVVH� VLGR� FRQFHGLGD�D�DXWRQRPLD�GD�&DSLWDQLD�GR�&HDUi��2�QRYR�
99
HVWDWXWR� DGPLQLVWUDWLYR� R¿FLDOL]RX� D� FRQGLomR� GHVWD� YLOD� FRPR� FDSLWDO� GD� &DSLWDQLD�
DXW{QRPD�H�SHUPLWLX�R�FRPpUFLR�GLUHWR�GRV�EHQV�DTXL�SURGX]LGRV�FRP�3RUWXJDO�H�VXDV�
FRO{QLDV��VHP�R�LQWHUPpGLR�GH�3HUQDPEXFR��2�VLJQL¿FDGR�ORFDO�GHVWD�PHGLGD�WUDGX]�
se na capitalização dos lucros das transações em Fortaleza. Com a vinda da família
real portuguesa e a abertura dos portos, em 1808, este direito se estendeu às trocas
com a Inglaterra.
� 9DOH�PHQFLRQDU�TXH�D�FULDomR�GH�JDGR�QR�&HDUi�DOFDQoRX�R�DSRJHX�HP�PHDGRV�
do século 18, entrando em declínio logo em seguida por ocorrência de uma sucessão
GH�VHFDV�±������������������H�������1HVVH�PRPHQWR��D�SURGXomR�DOJRGRHLUD�JDQKD�
HVSDoR�H�p�HVWH�VHWRU�TXH�PDLV�VH�EHQH¿FLDUi�GD�DEHUWXUD�GRV�SRUWRV�� IRUQHFHQGR�
matéria-prima para as necessidades de consumo alavancadas pela guerra civil norte-
DPHULFDQD��35$'2�-Ò1,25��������S������6$1726��������S�������
Com este breve relato, quisemos dizer que Fortaleza praticamente não se
projeta no período colonial e, quando o faz, trata logo de enaltecer suas vocações
administrativas centralizadas desde a fundação dos primeiros fortes, voltados
essencialmente à defesa e à manutenção do território como ponto de apoio entre
Pernambuco e Maranhão. A todos os aspectos que depõem contra a consolidação
de Fortaleza como capital, devemos opor a centralidade marítima desse sítio em
relação aos vales do Acaraú e do Jaguaribe (e dos povoados e atividades que aí se
HVWDEHOHFHUDP��H�D�UHODWLYD�VHJXUDQoD�RIHUHFLGD�SHOR�)RUWH�GD�$VVXQomR��Figura 10��
ante as reações dos índios habitantes destas paisagens. Secundariamente, a vila que
YLULD�D�VHU�HOHYDGD�DR�WtWXOR�GH�FLGDGH�HP�������QR�SHUtRGR�VHJXLQWH��SURFXUD�D�WRGR�
FXVWR�H[SORUDU�DV�RSRUWXQLGDGHV�TXH�D�HOD�VH�DEUHP�FRP�DV�UHFRQ¿JXUDo}HV�KLVWyULFDV�
H�¿[DU�VH�FRPR�Q~FOHR�GH�HVFRDPHQWR�FRPHUFLDO�GR�DOJRGmR��
Ainda que tenhamos, o povoado do Forte, lutado contra as dissidências do
,JXDSH�SDUD�QRV�D¿UPDUPRV�HQTXDQWR�YLOD�DVSLUDQWH�j�FRQGLomR�GH�FDSLWDO��R�SURFHVVR�
de consolidação dos aglomerados coloniais brasileiros, por mais espontâneo, contrasta
IRUWHPHQWH�FRP�D�H[SOLFDomR�GH�/HIHEYUH��������S������VREUH�D�VXFHVVmR�GH�IXQo}HV�
KHJHP{QLFDV�GHWHUPLQDQWHV�GD�HVWUXWXUD�H�GD�IRUPD�XUEDQDV�HXURSpLDV��1mR�SDUHFH�
sensato, portanto, referirmo-nos a uma cidade política colonial que aos poucos vai
sendo suplantada e de onde irromperia a cidade comercial. Sabe-se que os “homens
bons” – assim reconhecidos porque bem pagavam seus impostos e em quantidade
considerável – faziam da boa conduta um pleito às franquias municipais, de modo que
100
SXGHVVHP�LQJUHVVDU�jV�FkPDUDV�H�JR]DU�GDTXHODV�SUHUURJDWLYDV��,VWR�FRQ¿JXUD�XPD�
DSUR[LPDomR�JUDGXDO�GRV�SRGHUHV�HFRQ{PLFRV�FRPHUFLDLV�MXQWR�DRV�SRGHUHV�SROtWLFRV��
PDV�QmR�FKHJD�D�GHÀDJUDU�XP�FRQÀLWR�SRU�D¿UPDomR�GH�KHJHPRQLDV�
� (�FRPR�GLVVHPRV�QRXWUR�PRPHQWR��R�HVWDEHOHFLPHQWR�GH�IXQo}HV�KHJHP{QLFDV�
é fator determinante quanto às manifestações e formas de uso e ocupação do solo
XUEDQR�� GDQGR� D� W{QLFD� GD� HVWUXWXUD� XUEDQD�� 2� TXH� SDUHFH� QD� YHUGDGH� VXFHGHU��
SDUWLFXODUPHQWH��j�&DSLWDQLD�$XW{QRPD�GR�&HDUi�p�TXH�DV� IXQo}HV�FRPHUFLDLV�QmR�
entram a princípio em disputa direta com os poderes constituídos porque já se sabem a
razão de ser da cidade colonial, mesmo que se trate de uma atividade acessória. Esta
SDUHFH�D�UHJUD��2�TXH�WDOYH]�SXGHVVH�GHVORFDU�WDO�FHUWH]D��H�TXH�DTXL�QRV�LQWHUHVVDULD��
VHULD�R�DÀRUDPHQWR�GH�XPD�RUGHP�LQWHUQD��SUy[LPD��FDSD]�GH�LQÀXHQFLDU�RV�UXPRV�GR�
desenvolvimento metropolitano incorporando interesses algo além das demandas do
comércio. É o que tem início com o período imperial e a esses processos voltaremos
nossa atenção.
Cidade imantada
� 2�GHFOtQLR�GR�FLFOR�HFRQ{PLFR�GD�SHFXiULD�QR�1RUGHVWH��R�DGYHQWR�GD�FXOWXUD�
algodoeira e as oportunidades que se abriram para Fortaleza a partir do rompimento
com Pernambuco e da abertura dos portos deram a largada em um processo de
D¿UPDomR�GD�FDSLWDO�GLDQWH�GH�UHJL}HV�DWp�HQWmR�PDLV�GHVHQYROYLGDV�H�FRPHUFLDOPHQWH�
HVWUXWXUDGDV��'R�SULQFtSLR�GR�VpFXOR����DWp�R�SULQFtSLR�GR�VpFXOR�VHJXLQWH��D�FLGDGH�
terá que preencher de sentido a importância e a centralidade que lhe foi formalmente
atribuída. Dessa maneira, ingressamos na segunda etapa da periodização de Custódio
�������
� 1HVVH�SURFHVVR��&RVWD��������S�������H[SOLFD�TXH�DV�GHPDQGDV�ODQoDGDV�SHOD�
Revolução Industrial na Europa e pela Guerra de Secessão americana terminaram por
transformar o Ceará em um imenso algodoal. Fortaleza contava com a proximidade
de um importante núcleo produtor desse gênero, a Serra de Uruburetama, mas foram
os investimentos em infraestrutura de portos e malha ferroviária que a favoreceram
em detrimento das cidades de Icó, Aracati e Sobral.
Sob um dado ponto de vista, a consolidação da capital cearense ao longo do
VpFXOR�����j�PHGLGD�TXH�FRQTXLVWD�HVSDoR��SDVVD�D�HQYROYHU�H�VXERUGLQDU�FHQWURV�
101
SURGXWRUHV� GR� LQWHULRU� D� VHXV� LQWHUHVVHV��(P������� SDVVD�D� WHU� HIHLWR� XPD� OHL� TXH�
reduz à metade as tarifas alfandegárias cobradas no porto de Fortaleza. Esta medida
H[SDQGH�R�UDLR�GH�LQÀXrQFLD�H�D�DWUDWLYLGDGH�GH�)RUWDOH]D��FRRSWDQGR�D�SURGXomR�GH�
algodão do entorno de Sobral que escoava para os portos de Camocim e Acaraú. A
FRQVWUXomR�H�H[SDQVmR�GR�6LVWHPD�GH�9LD�)pUUHD��HQWUH������H�������YHP�D�FRQVROLGDU�
HVVD� LQÀXrQFLD�� WRUQDQGR� REVROHWD� D lógica de comunicação apoiada nas vias de
SHQHWUDomR�QDWXUDO��ULRV�H�HVWUDGDV�DQWLJDV��2XWUR�IDWRU�UHOHYDQWH�VHULD�D�FULDomR�GH�
uma linha de navios a vapor, que tornavam mais rápidas as trocas entre o Poço da
Draga e RV�SRUWRV�HXURSHXV��&267$��������S�������&81+$��3('5(,5$��������S�����
Não é difícil perceber que as forças atrativas da capital em consolidação, nesse
momento, captam e drenam não só a produção interiorana, mas também o fazem sob
XP�FRQWLQJHQWH�GHPRJUi¿FR�GH�YXOWR��)RUWDOH]D�SDVVDULD�GH�3 mil habitantes em 1800
para 16 mil�HP������H�21.372�HP�������(QWUH�RV�QRYRV�UHVLGHQWHV��SURSULHWiULRV�UXUDLV�
e suas famílias, representantes de classes aquinhoadas e que viriam a impulsionar
a estruturação de um considerável mercado consumidor urbano, a expansão do
SHTXHQR�FRPpUFLR�H�GH�VHUYLoRV�S~EOLFRV��&81+$��3('5(,5$��������S�����
Do princípio deste período datam os esforços iniciais de planejamento urbano
HP�)RUWDOH]D��1D�JHVWmR�GR�JRYHUQDGRU�,QiFLR�GH�6DPSDLR��������������R�HQJHQKHLUR�
português Silva Paulet ensaiou a primeira tentativa de disciplinamento do centro por
PHLR�GH�XP�SODQR�XUEDQtVWLFR��&DVWUR��������S������FRQWD�TXH�D�RSomR�SRU�GLUHWUL]HV�
de formas regulares do plano em xadrez (Figura 11a�� DTXL� SURSRVWR� H� DWp� KRMH�
persistentes recorria ao padrão de traçado das vilas novas portuguesas, formações
XUEDQDV�GH�RULJHP�PHGLHYDO�UHD¿UPDGDV�FRP�D�UHFRQVWUXomR�GD�FDSLWDO�OXVLWDQD�DSyV�
R�WHUUHPRWR�GH������
� 7DPEpP� GH� LQHJiYHO� LPSRUWkQFLD� SDUD� RV� UXPRV� GH� GHVHQYROYLPHQWR� GD�
PHWUySROH� DOHQFDULQD� VHULD� D� DWXDomR�GR� HQJHQKHLUR�$GROIR�+HUEVWHU��3RXFR�DQWHV�
GHOH��FDEH�UHJLVWUDU�D�HODERUDomR�GDV�SODQWDV�GHVFULWLYDV�GH�$QW{QLR�6LP}HV�)HUUHLUD�
7RPiV��GH������H�GR�3DGUH�0DQXHO�GH�5HJR�0HGHLURV��GH�������Figura 13a���+HUEVWHU�
era integrante da diretoria de obras em Pernambuco e, em 1855, é cedido ao Governo
3URYLQFLDO� GR�&HDUi��4XDWUR� DQRV�PDLV� WDUGH��+HUEVWHU� FRQFOXLULD� D� HODERUDomR� GH��
sua primeira Planta Exacta da Capital do Ceará (Figura 14a���2�UiSLGR� LQFUHPHQWR�
populacional tanto desencadeou um processo de transformação da paisagem urbana
pelas exigências dos novos citadinos – como a construção de um novo cemitério,
102
a transição da iluminação pública para o padrão a gás e a criação da Academia
Francesa –, como deu às contrações os limites municipais com perceptivas demandas
GH�H[SDQVmR��0$726��������
� $VVLP��0DWRV��������H�0DWRV�H�3HUGLJmR��������FRQWDP�TXH��GHVGH�D�SODQWD�GH�
7RPiV��Mi�VH�SHUFHELD�XPD�H[SHFWDWLYD�GH�SURJUHVVR��H[SUHVVR�SRU�WUDoRV�SRQWLOKDGRV��
indicativos de arruamentos a leste da cidade. Da planta de Silva Paulet (Figura 12��
datada do começo do século até pelo menos 1850, Fortaleza manteve-se restrita à
ocupação da margem esquerda do riacho Pajeú. Ainda que Paulet tenha projetado
um trajeto de cruzamento do curso d’água pela rua do Norte (atual rua Governador
6DPSDLR���SDUWLQGR�GD� UXD�GD�3RQWH� �DWXDO�DY��$OEHUWR�1HSRPXFHQR��H�XQLQGR�VH�à
Picada do Mocuripe, esta barreira natural só viria a ser efetivamente transposta
na segunda metade do século. A ocupação incipiente à direita do riacho pode ser
REVHUYDGD�FRP�D�HYROXomR�GDV�SODQWDV�GH�+HUEVWHU�GH�������������Figura 13b��H�
1888 (Figura 14b���
103
Figura 10.�3ULPHLUD�SODQWD�GD�9LOOD�1RYD�GD�)RUWDOH]D�GH�1RVVD�6HQKRUD�GD�$VVXPSVVmR�GD�&DSLWDQLD�GR�6LDUi�*UDQGH��DWULEXtGD�DR�FDSLWmR�PRU�0DQXHO�)UDQFrV��������D���H�SDUWH�GR�OLWRUDO�FHDUHQVH�QR�3HTXHQR�$WODV�GR�0DUDQKmR�H�*UmR�3DUi��GH�-RmR�7HL[HLUD�$OEHUQD]�,��
������E���)RQWHV��&DVWUR���������$UTXLYR�GLJLWDO�GD�%LEOLRWHFD�1DFLRQDO
104
Figura 11.�3ODQWD�GR�3RUWR�H�9LOOD�GD�)RUWDOH]D��GH�6LOYD�3DXOHW��������D���H3HUVSHFWR�GD�9LOOD�GD�)RUWDOH]D�GH�1RVVD�6HQKRUD�GD�$VVXPSVVmR�RX�3RUWR�GR�6LDUi��
DWULEXtGR�D�)UDQFLVFR�$QW{QLR�0DUTXHV�*LUDOGHV��������E���)RQWH��&DVWUR�������
105
Figura 12.�3ODQWD�GR�3RUWR�H�GD�9LOOD�GH�)RUWDOH]D��GH�6LOYD�3DXOHW���������E��H��D��GHVHQKR�VLPSOL¿FDGR��FRP�LQGLFDo}HV�GH�HVWUDGDV��ULDFKRV�H�HGL¿FDo}HV��)RQWH��&DVWUR�������
106
Figura 13.�3ODQWD�GD�&LGDGH�GH�)RUWDOH]D��GR�3DGUH�0DQRHO�GR�5rJR�GH�0HGHLURV��������D���H�3ODQWD�GD�&LGDGH�GH�)RUWDOH]D�H�6XE~UELRV��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������E���
)RQWH��&DVWUR�������
107
Figura 14.�3ODQWD�([DFWD�GD�&DSLWDO�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������D���H�3ODQWD�GD�&LGDGH�GD�)RUWDOH]D��FDSLWDO�GD�SURYtQFLD�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������E���
)RQWHV��&DVWUR���������$UTXLYR�'LJLWDO�GD�%LEOLRWHFD�1DFLRQDO
108
6REUH� D� FRQIRUPDomR� GD� FLGDGH� DRV� ¿QV� GR� VpFXOR� ���� GHVWDTXHPRV� GRLV�
HOHPHQWRV�UHWUDWDGRV�QD�WHUFHLUD�SODQWD�OHYDQWDGD�SRU�+HUEVWHU��GH�������2�SULPHLUR��
Mi� LQWURGX]LGR��UHPHWH�DR�VLJQL¿FDGR�VLPEyOLFR�GD�VXSHUDomR�GRV�OLPLWHV�DPELHQWDLV�
pela iminente expansão da cidade a leste, representado pela continuidade do traçado
xadrez sobre os meandros do riacho Pajeú e além. Inspirado no desenho parisiense
GR�%DUmR�GH�+DXVPDQQ��+HUEVWHU�SURMHWRX�VHo}HV�GH�YLDV�XUEDQDV�H� WUrV�JUDQGHV�
cintas de avenidas que haveriam de demarcar até os dias atuais os limites do centro
GH�)RUWDOH]D��6mR�RV�ERXOHYDUGV�GR� ,PSHUDGRU� �D�RHVWH���'XTXH�GH�&D[LDV� �D�VXO��
H� GD� &RQFHLomR� �D� OHVWH��� 'HVVD� IRUPD��0DWRV� ������� UHODWD� D� RSomR� GH� +HUEVWHU�
pelo direcionamento da expansão a leste via prolongamento da Duque de Caxias,
contornando o riacho e desprezando o arruamento proposto por Simões de Farias
em 1850. Entre outros motivos, este autor ressalta como causa o desinteresse das
camadas de alta renda sobre a zona costeira.
� +DYLD� XPD� FRQFHQWUDomR� GH� VHUYLoRV� LQVDOXEUHV� QD� IDL[D� GH� SUDLD� QHVVH�
SHUtRGR��(VWDYDP�GLVSRVWRV�j�FRVWD�R�3DLRO�GD�3yOYRUD��R�*DV{PHWUR��D�6DQWD�&DVD�GH�
Misericórdia, o depósito de lixo da cidade e a penitenciária. Entre o mar e a Estação da
(VWUDGD�GH�)HUUR��LGHQWL¿FD�VH�D�SUHVHQoD�GR�VHJXQGR�HOHPHQWR�GH�GHVWDTXH��R�$UUDLDO�
Moura Brasil (Figura 15b��� SRQWR� GH� DVVHQWDPHQWR� LQIRUPDO� GRV� SRYRV� VHUWDQHMRV�
foragidos da seca. Ao setor leste, cabe também mencionar a presença do Asilo de
Mendicidade (Figura 15a���HTXLSDPHQWR�HGL¿FDGR�GXUDQWH�D�VHFD�GH���������D�¿P�
GH�DEULJDU�DV�OHYDV�GH�ÀDJHODGRV��&267$��������S������0$726���������$�)RUWDOH]D�
GH� ����� Mi� VHFUHWDYD� RV� LQJUHGLHQWHV� FDUDFWHUtVWLFRV� GR� TXDGUR� XUEDQR� FRQÀLWXRVR�
atual. Fato é, desses dois destaques aparentemente sem conexão, que tanto o riacho
Pajeú quanto o Arraial viriam a se constituir como peças descartáveis na composição
da paisagem radiosa da Fortaleza do século 20, autointitulada cidade-sede da alegria
às vitrines da Copa do Mundo de 2014 e, no chavão do marketing turístico, capital da
Terra da Luz – alcunha dada à cidade por conta do seu pioneiro ímpeto abolicionista.
109
Figura 15. Detalhes da Planta da Cidade da Fortaleza, capital da província do Ceará, de
$GROIR�+HUEVWHU��������D��$VLOR�GD�0HQGLFLGDGH�H�5LDFKR�3DMH~���E��$UUDLDO�0RXUD�%UDVLO�H�Riacho Pajeú.
Fonte: Arquivo Digital da Biblioteca Nacional
110
Expansão, convivência e repulsão
� 'HQWUH�DV�REUDV�TXH�5LVpULR��������S�������UH~QH�SDUD�FRQGX]LU�QRV�HP�VXD�
interpretação da Cidade no Brasil, valhamo-nos dos aportes e construções teóricas
GH�7HUHVD�&DOGHLUD�HP�³Cidades de Muros”. Para ela, em São Paulo e, para Risério,
em boa parte das cidades brasileiras, as regras que organizam o espaço urbano
constituem padrões de distinção social e separação que atravessam o século 20 em
SHOR�PHQRV�WUrV�H[SUHVV}HV�PDLV�DFDEDGDV��'R�¿QDO�GR�VpFXOR����DWp�RV�DQRV�������
sobressaía um padrão de segregação por tipos de moradia, em que camadas sociais
VH�FRPSULPLDP�H�VH�FRQFHQWUDYDP�HP�XPD�SHTXHQD�iUHD�XUEDQD��'RV�DQRV������DRV�
������SUHYDOHFHX�XP�PRGHOR�FHQWUR�SHULIHULD��GH�segregação por grandes distâncias.
Nesse segundo padrão, as classes médias e altas ocupam áreas centrais, de boa
infraestrutura, enquanto às classes pobres sobra o desbravamento de longínquas e
SUHFiULDV�SHULIHULDV��3RU�¿P��GRV�DQRV������HP�GLDQWH��jV�WUDQVIRUPDo}HV�UHFHQWHV�
do espaço urbano percebe-se, em sobreposição ao modelo centro-periferia, uma
segregação por muros e tecnologias de segurança��2V�JUXSRV�VRFLDLV�FRH[LVWHP�
e circulam em proximidade, mas, separados, tendem a não interagir em áreas
comuns. Surge daí a experiência capsular dos espaços privatizados e monitorados de
UHVLGrQFLD��FRQVXPR��OD]HU�H�WUDEDOKR��6RE�D�MXVWL¿FDWLYD�GR�WHPRU�DR�FULPH�YLROHQWR��
ocorre um esvaziamento das ruas e dos espaços públicos tradicionais por parte das
classes médias e altas, relegando-os às camadas pobres, aos grupos marginalizados
e sem-teto.
À luz desta ponderação e ainda orientados pela periodização de Custódio
�������� YHMDPRV� R� TXH� VH� GHX� FRP� D� FLGDGH� GH� )RUWDOH]D� DR� FXUVR� GR� VpFXOR� ���
para que viesse hoje a merecer as tais insígnias e honrarias (Tópico 2���9LPRV�TXH��
GD�VHJXQGD�PHWDGH�GR�VpFXOR����DR� LQtFLR�GR����� LQLFLD�VH�QD�FDSLWDO�FHDUHQVH�XP�
SURFHVVR�PDLV�ÀXtGR�GH�PDQLIHVWDomR�GH�VHQWLGR�H�RUGHP�XUEDQDV��TXH�VH�UHYHODP��
HP�~OWLPD� LQVWkQFLD��SHOR�QRWiYHO�SRGHU� UHJLRQDO�GH�DWUDomR�H�¿[DomR�GH�FDSLWDLV�H�
pessoas nesse espaço e que se traduzem em ciclos de implantação de infraestruturas,
QRYDV�GHPDQGDV�SRU�VHUYLoRV�H�UHIRUPDV�WLSLFDPHQWH�XUEDQDV��+i��QR�LQtFLR�GR�VpFXOR�
���� XPD� VRFLHGDGH� XUEDQD� IRUWDOH]HQVH� VX¿FLHQWHPHQWH� PXQLFLDGD� GH� HOHPHQWRV�
identitários e, em muitos sentidos, distante da imagem daquela vila que pouco e mal
VHUYLDP�D�XPD�RUGHP�HFRQ{PLFD�H[WHUQD�RX�D�PHUD�PDQXWHQomR�WHUULWRULDO��&DEH�D�
111
nós investigar como a emergência de uma ordem próxima e de um sentido de lugar e
de pertença assumem às determinações e escolhas de desenvolvimento, sobretudo
local, um caráter perverso de uma perspectiva socioambiental.
� 2V�DQRV�������HQYROWRV�HP�XP�FHQiULR�GH�FULVH�HFRQ{PLFD�PXQGLDO��DQXQFLDP�
no Brasil uma fase monopolista de Estado, imbuída dos objetivos de modernização do
país. Este período coincide com a alcance do urbanismo moderno e com a difusão das
lógicas funcionalista e higienista entre os planos e propostas de intervenção urbanas
HP�)RUWDOH]D��9DOH�UHJLVWUDU�D�FKHJDGD�GR�SULPHLUR�DXWRPyYHO�QD�FDSLWDO�HP������H�
a substituição do sistema de transporte coletivo de bonde a tração animal (iniciado
HP�������SRU�ERQGHV�HOpWULFRV�HP������H��PDLV�DGLDQWH��HP�������SHOR�VLVWHPD�GH�
{QLEXV��$RV�SRXFRV��R�GHVHQYROYLPHQWR�GRV�WUDQVSRUWHV�YDL�OLEHUDQGR�R�Q~FOHR�FHQWUDO�
e balizando a expansão urbana à medida que permite a ocupação residencial de áreas
PDLV�DIDVWDGDV��PDQWHQGR�DV�FRQGLo}HV�GH�FLUFXODomR�H�DFHVVR�DR�FHQWUR��(P�������R�
LQWHQGHQWH�PXQLFLSDO�,GHOIRQVR�$OEDQR�FRQGX]LX�D�UHWL¿FDomR�GR�DOLQKDPHQWR�GH�FDVDV�
D�¿P�GH�DFRPRGDU�R�WUDQVSRUWH�LQGLYLGXDO�DXWRPRWRU��SURPRYHQGR�R�DODUJDPHQWR�H�D�
SDYLPHQWDomR�GH�QRYDV�UXDV��$Wp�D�GpFDGD�GH������DV�SUHIHLWXUDV�TXH�VXFHGHUDP�RV�
HVIRUoRV�GH�SODQL¿FDomR�GH�+HUEVWHU��*XLOKHUPH�5RFKD��,GHOIRQVR�$OEDQR��*RGRIUHGR�
0DFLHO� H� ÈOYDUR�:H\QH�� HPSUHHQGHUDP� REUDV� H� DMDUGLQDUDP� SUDoDV� VHP� QHQKXP�
SURMHWR�VLVWHPDWL]DGR�GH�LQWHUYHQomR��$SHQDV�QD�DGPLQLVWUDomR�GH�7LE~UFLR�&DYDOFDQWL�
���������� p�TXH� VmR�SURPRYLGRV�DUUXDPHQWRV� VHJXQGR�DV�SURMHo}HV�GH�H[SDQVmR�
GH������H������H� UHWRPD�VH�R�GHEDWH�VREUH�D�QHFHVVLGDGH�GH�XP�QRYR�SODQR�GH�
XUEDQL]DomR�SDUD�D�FLGDGH��&267$��������S������������S�������
� )DULDV�)LOKR��������WHQWD�XPD�DQiOLVH�VHQVtYHO�j�SHUFHSomR�GH�SURMHWRV�VRFLDLV�
HP�WUrV�SURSRVWDV�GH�UHPRGHODomR�SDUD�)RUWDOH]D�HQWUH�RV�DQRV������H�������$R�ORQJR�
desse período, a cidade começa a sentir os dessabores de um crescimento rápido e
FDyWLFR��GHVD¿R�SDUD�R�TXDO�VmR�FRQYRFDGRV�D�GDU�UHVSRVWD�WUrV�XUEDQLVWDV�UDGLFDGRV�
QR�5LR�GH�-DQHLUR��1HVWRU�GH�)LJXHLUHGR��HP�������6DER\D�5LEHLUR��HP������H�+pOLR�
0RGHVWR�� HP�������2�DXWRU� HVIRUoD�VH� SRU� SHUFHEHU� QD� DomR� GHVVHV� SUR¿VVLRQDLV�
algo além de um tratamento impreciso e abstrato do espaço, que seria natural esperar
GD�IRUPDomR�GRV�XUEDQLVWDV�VDELGDPHQWH�VRE�LQÀXrQFLD�H�LQVSLUDo}HV�GRV�SUHFHLWRV�
modernistas. Ainda que tenham sido convidados a considerar questões puramente
funcionais e quantitativas, afeitas principalmente aos gargalos de circulação da
cidade em franca expansão, suas propostas parecem conter aspectos sociais um
112
nível acima do laissez-faire.
� 2� Plano de Remodelação e Extensão de Fortaleza, de Nestor Egídio de
Figueiredo trata-se mais de um esboço, de um desenho preliminar cuja continuidade
emperrou entre as prioridades da prefeitura de Raimundo Girão e do Conselho Municipal
à época. A proposta de Figueiredo presta-se à reestruturação do traçado em xadrez
de Silva Paulet com a implantação de um sistema radioconcêntrico. Assim, pretendia-
VH�FRQWRUQDU�DV�GL¿FXOGDGHV�GH�FLUFXODomR�HQWUH�RV�EDLUURV�H�RV�FRQJHVWLRQDPHQWRV�GH�
WUiIHJR��FRQIHULQGR�H¿FLrQFLD�j�IRUPD�XUEDQD�FRP�D�FULDomR�GH�QRYDV�FHQWUDOLGDGHV��
3DUD�)DULDV�)LOKR���������R�SURMHWR�VRFLDO�VXEMDFHQWH�FRQWHPSOD�DTXL�RV�DQVHLRV�GD�
burguesia comercial em ascensão. Embebidos em valores estéticos de distinção
espacial, as propostas de remodelação carregam um sentido de embelezamento da
paisagem, além de um rigoroso zoneamento funcional.
Dentre as críticas ao plano, lê-se às entrelinhas dos pareceres do prefeito e
de seus conselheiros a presença forte de uma espécie de bairrismo rude e arisco,
o que não deixa de ser uma manifestação do sentido de pertença e zelo do lugar.
No rechaço do conselheiro Júlio Rodrigues à proposta, ele dispensa a contribuição
de técnicos alheios à realidade local e diz não haver sentido em se destinar uma
IDWLD�FRQVLGHUiYHO�GR�PRGHVWR�HUiULR�PXQLFLSDO�����GDV�UHQGDV�DQXDLV��j�VHSDUDomR�
das atividades em uma cidade consolidada e de crescimento espontâneo. Com este
discurso, evita-se a LQWHUIHUrQFLD�DUWL¿FLDO do poder público sobre a vocação natural
para crescer de Fortaleza e recomenda-se o reinvestimento dos gastos com o plano
QD�FRQVWUXomR�GR�,QVWLWXWR�GH�0HQRUHV�'HOLQTXHQWHV�H�$EDQGRQDGRV��)$5,$6�),/+2��
������
Ainda que a resistência ao plano de Nestor de Figueiredo tenham protegido
Fortaleza da aplicação de um zoneamento funcionalista grosseiro, de uma ideologia
moderna – hoje podemos dizer – inconsequente e imatura, a polêmica em torno
GHVWH�tPSHWR�GH�LPSRVLomR�GH�RUGHP�DR�IHQ{PHQR�XUEDQR�UHVXOWRX�HP�LQWHUYDOR�ODUJR�
de paralisia em termos de instrumentalização à prática do planejamento. Não por
DFDVR��D�SDUWLU�GRV�DQRV�������Gi�VH�XP�FUHVFLPHQWR�FRQWtQXR�GH�DEULJRV�SUHFiULRV�
construídos espontaneamente em terrenos vazios e áreas desvalorizadas (ao
longo dos trilhos da Rede Ferroviária, em terrenos de marinha, da União, terrenos
GD�SUHIHLWXUD��GH�SDUWLFXODUHV��EDOGLRV�H�HP�OHLWRV�GH�UXDV���$Wp�R�SULQFtSLR�GRV�DQRV�
������DQWHV��SRUWDQWR��GR�TXH�YLULD�D�VH�FRQ¿JXUDU�FRPR�XP�VXUWR�GHPRJUi¿FR�XUEDQR��
113
UHJLVWUD�VH�R�VXUJLPHQWR�GDV�IDYHODV�GR�3LUDPEX���������GR�0XFXULSH���������&HUFDGR�
GH�=p�3DGUH���������GD�9DUMRWD���������GR�/DJDPDU���������0RUUR�GR�2XUR���������
3DSRTXLQKR���������GR�0HLUHOHV��������H�(VWUDGD�GH�)HUUR���������2�1RUGHVWH�KDYLD�
sido sorteado no plano de integração nacional para manter-se à margem do processo
de industrialização, encarregado por seu turno, da exportação do gênero mão-de-obra
para a região Sudeste. A expansão das atividades industriais em Fortaleza datam das
SROtWLFDV�GH�DSRLR�WDUGLR�GD�68'(1(�QDV�GpFDGDV�GH������H������H��GHVVD�IRUPD��
QmR�H[SOLFDP�D�IRUPDomR�GD�PDLRU�SDUWH�GDV�IDYHODV�QHVVHV�WUySLFRV��628=$��������
S������
Ainda assim, neste cenário de tímida projeção do setor secundário, é curioso
observar que o bairro nobre da Jacarecanga, fruto da expansão a oeste do centro
FRPHoD� D� FDLU� HP� GHVFUpGLWR� FRP�D� LQVWDODomR�� HP� ������ GD� R¿FLQD�PHFkQLFD� GD�
5HGH� 9LDomR� &HDUHQVH� �2¿FLQD� GR� 8UXEX��� TXH� DWUDLX� DV� SULPHLUDV� LQG~VWULDV� DR�
FXUVR�GD�DYHQLGD�)UDQFLVFR�6i�DWp�D�%DUUD�GR�&HDUi�H�DR�ORQJR�GDV�YLDV�IpUUHDV��2�
assentamento da mão-de-obra empregada nesses estabelecimentos e a população
indigente e migrante que vai erguendo barracos às margens dessas vias aos poucos
trata de “afugentar” as camadas de alta renda, que encontram nos bairros a leste, além
da linha do Pajeú, seu principal refúgio: a Aldeota, mas também a Praia de Iracema
e o Meireles; e a sul, o Bairro de Fátima. Esse movimento de expansão, repulsão
e homogeneização por bairros estabelece os contornos iniciais da segregação por
JUDQGHV�GLVWkQFLDV�H�GD�FRQ¿JXUDomR�FHQWUR�SHULIHULD�HP�)RUWDOH]D��&267$��������S��
����628=$��������
� 1D�DGPLQLVWUDomR�GR�SUHIHLWR�&OyYLV�0DWRV������������R�HQJHQKHLUR�XUEDQLVWD�
Saboya Ribeiro propõe um traçado do tipo radial-perimetral, com a introdução de
YLDV� UDGLDLV� �HP� WRGRV� RV� VHQWLGRV��� DYHQLGDV� VXE�UDGLDLV� �YLDV� ORQJDV�� OLJDQGR� RV�
EDLUURV�VHP�FUX]DU�R�FHQWUR��H�VLVWHPDV�GH�DQpLV��IRUPDQGR�FLUFXLWRV�DMXVWDGRV�j�UHGH�
ortogonal em toda a cidade e nomeados segundo o raio de abrangência (comercial,
GH� LUUDGLDomR�� LQWHUPHGLiULR�� H[WHULRU� H� UXUDO��� 5LEHLUR� WUDEDOKD� HP� VXD� SURSRVWD� D�
remodelação da área central, reforçando a necessidade de manutenção do seu valor
simbólico e do seu papel como lugar de acomodação dos poderes decisórios e projeta
o disciplinamento das demais áreas segundo uma lógica de organização por bairros.
1HVVH�VHQWLGR��6DOHV��������H[SOLFD�TXH�HVWH�Plano de Remodelação e Extensão para
Fortaleza é marcado pela ambiguidade conceitual típica da arquitetura moderna em
114
sua primeira fase. As proposições de Ribeiro para os bairros, portanto, aproximam-se
dos modelos de polinucleação sem, no entanto, projetar uma autonomia às unidades
FDSD]�GH�URPSHU�FRP�D�GHSHQGrQFLD�TXDQWR�DR�Q~FOHR�FHQWUDO��)$5,$6�),/+2��������
� 7DPEpP�FRQWUDWDGR�SDUD� GDU� VROXomR�DRV�SUREOHPDV�GH� FLUFXODomR��6DER\D�
Ribeiro, transcende em muito a dimensão da expectativa de suas sugestões,
deixando transparecer não só um projeto social no seu traçado, mas também um
projeto ambiental. Sua proposta de zoneamento combina disciplinamentos de uso
�FRPHUFLDO��FHQWUDO��XUEDQD��VXEXUEDQD��VHGH�GH�GLVWULWRV��UXUDO�DJUtFROD��H�OLPLWHV�GH�
verticalização, destinando a zona central como espaço privilegiado de verticalização
�FRWD�GH���P�H�JDEDULWR�Pi[LPR�GH����SDYLPHQWRV�FRQWUD���SDYLPHQWRV�H�D�OLPLWDomR�
GH�DOWXUD�HP�GXDV�YH]HV�D�ODUJXUD�GR�ORJUDGRXUR�SDUD�DV�GHPDLV�iUHDV���2�PHPRULDO�
descritivo do plano dedica uma seção ao que Ribeiro chama de organização social
da cidade, um apanhado de mecanismos e recomendações voltados a um sentido de
democratização do acesso à propriedade urbana. Aí se sugere a escolha de setores
da cidade ainda não valorizados, próximos a zonas de trabalho, para a construção de
KDELWDo}HV�H�FULDomR�GH�EDLUURV�SRSXODUHV��(VWD�LQLFLDWLYD�¿FDULD�D�FDUJR�GH�LQVWLWXLo}HV�
EHQH¿FHQWHV��¿ODQWUySLFDV�H�GH�DVVLVWrQFLD�VRFLDO��TXH�FRQWDULDP�FRP�D�LVHQomR�GH�
impostos e taxas nas operações imobiliárias. Nesse esforço, o urbanista incluiu um
SURMHWR�SDUD�R�EDLUUR�SRSXODU�0RXUD�%UDVLO��$UUDLDO�0RXUD�%UDVLO���FRP�LQGLFDo}HV�GH�
UXDV�H�TXDGUDV�GHVWLQDGDV�D�KDELWDomR�HP�VpULH��6$/(6��������
Quanto ao projeto ambiental subjacente ao plano de Saboya Ribeiro, a concepção
sanitarista associada a preocupações com a estética urbana resultou em proposições
SRQGHUDGDV�VREUH�D�SUHVHUYDomR�GR�VLVWHPD�KtGULFR�H�GD�SDLVDJHP�QDWXUDO��2�XUEDQLVWD�
HVWLSXORX�D�PDQXWHQomR�GH�XP�PtQLPR�GH�����GH�HVSDoRV�YHUGHV�VREUH�D�iUHD�WRWDO�
GRV�EDLUURV��SURS{V�FRPR�PHGLGD�GH�EDODQoR�j�H[FHVVLYD�RUWRJRQDOLGDGH�GR�WUDoDGR�
em xadrez a construção de avenidas-canal marginais aos cursos d’água; e projetou a
avenida Radial Beira-mar, propondo com ela a preservação de toda a faixa litorânea,
com exceção dos pontos de inserção do Poço da Draga e do Porto do Mucuripe (em
FRQVWUXomR�GHVGH������H�¿QDOL]DGR�HP��������3ODQRV�IXWXURV�DSURSULDUDP�VH�GHVWDV�
propostas sem atribuírem-lhe o mérito, entre elas, a urbanização de parte do riacho
3DMH~�H�D�FRQVWUXomR�GD�DYHQLGD�FDQDO�$JXDQDPEL��)$5,$6�),/+2��������6$/(6��
������
� (P�������D�&kPDUD�0XQLFLSDO�DSURYD�R�3ODQR�6DER\D�5LEHLUR�H�R�&yGLJR�GH�2EUDV�
115
SURSRVWR��PDV�QR� WH[WR�¿QDO�QmR�FRQVWDP�GHWDOKDPHQWRV�TXDQWR�j�UHJXODPHQWDomR�
dos indicativos de renovação da área central e de reorganização dos bairros. Coube a
uma comissão de avaliação presidida pelo prefeito e por representantes de entidades
públicas e privadas a tarefa de implementação daquelas diretrizes. Como na iniciativa
GH� GLVFLSOLQDPHQWR� DQWHULRU�� GHX�VH� St¿D� D� RSHUDFLRQDOL]DomR� GHVWH� SODQR� VRE� D�
mesma alegação de precariedade de recursos do município. Em verdade, fazia-se
IRUWH� D� LQÀXrQFLD� GR� VHWRU� SULYDGR� QHVVD� FRPLVVmR� H� QHP� VHTXHU� DV� DOWHUDo}HV� H�
recuos previstos para o sistema viário pareciam convergir com os interesses desses
SURSULHWiULRV��)$5,$6�),/+2��������6$1726��������S�������
Neve no sertão?
Na segunda metade do século 20, a cidade de Fortaleza experimenta um
crescimento populacional e uma expansão das fronteiras de ocupação do solo urbano
sem precedentes, tanto de caráter formal como informal (loteamentos clandestinos,
IDYHODV� H� Q~FOHRV� HUJXLGRV� SRU� DXWRFRQVWUXomR��� 2V� LQFUHPHQWRV� SRSXODFLRQDLV�
LQWHUFHQVLWiULRV� GHPRQVWUDP� D� DEHUWXUD� H� D� RFOXVmR� GHVVD� MDQHOD� GHPRJUi¿FD�� GH�
49,9%�HQWUH����������GH�90,5%�HQWUH����������GH�66,6%�HQWUH���������H�52,5% entre
���������(QWUH������H�������Ki�R�LQFUHPHQWR�PDLV�H[SUHVVLYR��HP�TXH�D�SRSXODomR�
UHVLGHQWH�QD�FDSLWDO�VDOWD�GH���������SDUD���������KDELWDQWHV��$�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�
������ SHUFHEH�VH� XP� DUUHIHFLPHQWR� QR� GHVHPSHQKR� GHVVHV� UHVXOWDGRV�� GH�35,2%
HQWUH� �������� H� GH� 21,0%� HQWUH� ����������� R� TXH� QmR� VLJQL¿FD� QHFHVVDULDPHQWH�
uma interrupção do crescimento, mas um deslocamento na escala de ocorrência
GR� IHQ{PHQR� SDUD� RV� OLPLWHV� PHWURSROLWDQRV�� FRPR� LQGLFD� D� WD[D� GH� FUHVFLPHQWR�
SRSXODFLRQDO�UHJLVWUDGD�SDUD�D�5HJLmR�0HWURSROLWDQD�GH�)RUWDOH]D��50)��HQWUH������
H���������������D�PDLRU�HQWUH�DV�UHJL}HV�PHWURSROLWDQDV�PRQLWRUDGDV��,3($��������
628=$��������
� � 4XDQWR� DR� FDUiWHU� GHVVH� FRQWLQJHQWH� DGLFLRQDO�� 6RX]D� ������� H[SOLFD� TXH��
DSHVDU�GD�YHUL¿FDomR�GH�WD[DV�HOHYDGDV�GH�FUHVFLPHQWR�YHJHWDWLYR�QHVVH�SHUtRGR��RV�
saltos populacionais em Fortaleza devem-se, em maior parte, às migrações internas.
Entre outros motivos, a pesquisadora atribui como causa dos movimentos migratórios
o processo de deterioração da economia rural tradicional, com a incidência das secas,
as questões fundiárias, a crise das culturas vulneráveis às irregularidades climáticas
116
e a ausência ou a inadequação de políticas públicas voltadas a um desenvolvimento
regional equilibrado.
� 8P�HVWXGR�GR�,QVWLWXWR�-RDTXLP�1DEXFR�GH�3HVTXLVDV�6RFLDLV��,-136��GH������
revelava que a composição dos moradores de favelas à época estava representada por
DSHQDV�������GH�LQGLYtGXRV�QDWXUDLV�GD�FDSLWDO��$V�FRQGLo}HV�SUHFiULDV�GH�LQVWUXomR�
H�TXDOL¿FDomR�GHVVD�SDUFHOD�PLJUDQWH�GL¿FXOWDYDP�D�VXD�LQWHJUDomR�j�HFRQRPLD�H�j�
YLGD�XUEDQDV��2FXSDYDP�VH�HP�JUDQGH�SDUWH�GH�DWLYLGDGHV�DUWHVDQDLV��GD�DWLYLGDGH�
pesqueira e de funções de doméstica, servente e pedreiro, além do pequeno comércio
de vendas e botequins, mas no todo urbano constituíam essencialmente uma massa
GH� VXEHPSUHJDGRV� H� GHVHPSUHJDGRV�� FRP� UHQGD� tQ¿PD� RX� DXVHQWH�� (P� ������
UHJLVWUDYD�VH� D� H[LVWrQFLD� GH� ��� YLODV� PDUJLQDLV�� FRP� XPD� SRSXODomR� GH� ���� PLO�
SHVVRDV�DVVHQWDGDV�HP��������GRPLFtOLRV��628=$��������S�������
As práticas de planejamento urbano em sentido amplo, mais próximas de
FRPR�KRMH� DV� FRQKHFHPRV�� DIHLWDV� D� GHWHUPLQDo}HV� GH� FDUiWHU� VRFLDO�� HFRQ{PLFR��
administrativo, ambiental, histórico-cultural e físico-espacial iniciam-se em Fortaleza
também nesta segunda metade de século. Com o Plano Diretor de Fortaleza, elaborado
SHOR� DUTXLWHWR�+pOLR�0RGHVWR�� D� FRQYLWH� GH�5DLPXQGR�*LUmR�� HQFDUUHJDGR�j� pSRFD�
GD�VHFUHWDULD�PXQLFLSDO�GH�XUEDQLVPR�GD�JHVWmR�&RUGHLUR�1HWR������������DOJXPDV�
das dimensões precocemente levantadas por Saboya Ribeiro ganham estatuto de
WUDWDPHQWR� REULJDWyULR� HQWUH� HVIRUoRV� GH� SODQL¿FDomR� SURGX]LGRV� QR� %UDVLO� QHVVH�
período.
� 6HJXQGR�)DULDV�)LOKR���������R�SODQR�GH�+pOLR�0RGHVWR��SHQVDGR�QR�FRQWH[WR�
da chamada fase heróica da arquitetura brasileira, com a construção de Brasília e,
em meio a um cenário local de profundas transformações, marcado sobretudo por
uma conformação espacial descontrolada, sintetiza uma crítica contundente a uma
elite urbana. Segundo ele, estes segmentos trabalharam sobre todas as frentes para
GL¿FXOWDU�RX�MDPDLV�FRQVHQWLU�R�GHVHQYROYLPHQWR�GHPRFUiWLFR�H�HVSDFLDOPHQWH�MXVWR�QD�
cidade de Fortaleza.
Este urbanista propunha um rearranjo de forças segundo a morfologia do
traçado. Modesto retoma a ideia de sobreposição de um sistema radioconcêntrico
à malha ortogonal proposta por Saboya Ribeiro e Nestor de Figueiredo, ampliando
a taxonomia viária numa proclamação da vitalidade e da complexidade da estrutura
urbana. Sua proposta adequa-se ao modelo de cidade polinucleada. Para tanto, ele
117
sugere a estruturação de um centro cívico e dos centros de bairros. Diferente da
centralidade administrativa de seu antecessor, o centro cívico é o lugar por excelência
do encontro entre sociedade e espaço, dedicado à produção da alteridade ameaçada
pelo movimento de segregação social acarretado pela expansão e transbordo do
centro.
Aqui se ensaia uma mistura de funções para a área central, congregando
equipamentos administrativos, culturais e religiosos. Infelizmente, como muitas das
SURSRVWDV� LQÀXHQFLDGDV�SHORV�SUHFHLWRV�GR�XUEDQLVPR�PRGHUQR�GD�SULPHLUD�PHWDGH�
GR�VpFXOR��0RGHVWR�QmR�HVERoD�JUDQGH�VHQVLELOLGDGH�TXDQWR�R�YDORU�GR�SDWULP{QLR�
histórico e defende a renovação urbana�GR�FHQWUR�YLD�OLEHUDomR�GH�HGL¿FDo}HV�DQWLJDV��
consideradas por ele como de uso precário. Assim, sua proposta sugere a remoção de
prédios históricos como a Santa Casa de Misericórdia, o Cemitério, a Penitenciária, a
Estação Ferroviária, o Parque Ferroviário, o Quartel-General, os armazéns do porto
DQWLJR��R�*DV{PHWUR�H�R�0HUFDGR�&HQWUDO��)$5,$6�),/+2��������6$/(6��������
� 2V�FHQWURV�GH�EDLUURV�VHULDP�PDLV�TXH�PHUD�HVWUDWpJLD�GH�GHVFHQWUDOL]DomR�
funcional, mas, principalmente, um meio de enfrentamento da desigualdade espacial
alavancada pela segregação urbana. Modesto e sua equipe levantaram dados
VRFLRHFRQ{PLFRV�� WUDWDQGR�GDV� FDUrQFLDV� GH�HTXLSDPHQWRV� GH�HQVLQR�H� FRQGLo}HV�
GH� TXDOL¿FDomR� SUR¿VVLRQDO� GRV� GLYHUVRV� VHWRUHV� GD� FLGDGH�� 3URS{V� VREUH� D� EDVH�
DHURIRWRJUDPpWULFD� GH� ����� XP� ]RQHDPHQWR� IXQFLRQDO� QXPD� DERUGDJHP� LQWHJUDGD�
VHJXQGR�D�HVWUXWXUD�VRFLRHFRQ{PLFD�GRV�EDLUURV�� LGHQWL¿FDQGR�IRUPDV�H�WHQGrQFLDV�
GH�XVR�H�RFXSDomR�GR�VROR��$LQGD�TXH�RV�HVIRUoRV�GR�3ODQR�'LUHWRU�GH������SDUD�
disciplinar o adensamento carreguem um sentido de democratização do espaço
XUEDQR��6DOHV� �������D¿UPD�TXH��DR�GLVFULPLQDU�RV�HTXLSDPHQWRV�XUEDQRV�EiVLFRV�
nos bairros de alto e baixo padrão, facilitou-se a manutenção das desigualdades
pré-existentes entre os bairros, por conta da valorização a priori estabelecida pela
especulação em função da disponibilidade infraestrutural e de equipamentos urbanos,
direcionando, por seu turno, os investimentos privados de ali em diante.
� 7DQWR�HUD�UHDO�D�SUHRFXSDomR�GH�0RGHVWR�FRP�DV�GLVSRVLo}HV�VRFLDLV�GH�VXDV�
recomendações, que chega a propor a instituição de um Censo de Facilidade Sociais,
uma espécie de ouvidoria ou conselho composto por representantes da administração
municipal, da igreja, da universidade e das indústrias capaz de dar vazão a demandas
YLQGDV�GD�EDVH�GD�VRFLHGDGH��'HVVH�SODQR��DSURYDGR�SHOD�&kPDUD�GRV�9HUHDGRUHV�
118
QD�VHTXrQFLD�GD�DSURYDomR�GR�&yGLJR�8UEDQR�GH�������DOpP�GD� LPSODQWDomR�GRV�
Cadastros Imobiliários, foram adotadas basicamente propostas de estruturação viária,
parte delas já contidas no Plano Saboya Ribeiro: a construção da av. Beira Mar; da
av. Perimetral (anel de ligação entre os bairros periféricos, da Barra do Ceará ao
0XFXULSH���GD�DY��/XFLDQR�&DUQHLUR��PHOKRUDQGR�R�DFHVVR�DR�DHURSRUWR��$�FRQVWUXomR�
da Beira Mar, que se transformaria na principal zona de lazer na década seguinte,
desloca o antigo ponto de prostituição para o Farol do Mucuripe, no bairro do Serviluz,
e os pescadores, que ali mantinham a base de suas atividades, para a rua Manuel
-HVXtQR��QR�EDLUUR�GD�9DUMRWD��&267$��������S������
Depois do temporal, a varrição
� $�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�������LQLFLDP�VH�DV�SROtWLFDV�GH�GHVIDYHODPHQWR��IUXWR�GH�
uma reestruturação nacional da gestão urbana após a instalação do governo ditatorial
HP� ������ $V� PXQLFLSDOLGDGHV� SHUGHP� DXWRQRPLD� SDUD� DV� LQVWkQFLDV� HVWDGXDLV� H�
IHGHUDO��TXH�SDVVDP�D�FHQWUDOL]DU� UHFXUVRV�¿QDQFHLURV�H�D�H[HUFHU�FRQWUROH�SROtWLFR�
e administrativo sobre pastas e aparelhos locais. Coube aos estados o controle da
exploração dos serviços de água e esgoto, energia e telefonia, ao passo que as
SROtWLFDV�GH�KDELWDomR�H�GH�WUDQVSRUWHV�¿FDUDP�D�FDUJR�GR�SRGHU�IHGHUDO��(LV�XPD�IDVH�
de ações desencontradas. A construção de conjuntos habitacionais, a abertura de
vias e a implantação de serviços urbanos, porque tocadas alheias a um planejamento
LQWHJUDGR�� WUDGX]LUDP�VH� HP� IRQWH� GH� DÀRUDPHQWR� GH� VpULRV� FRQÀLWRV� H� SUREOHPDV�
XUEDQRV��&267$��������S������
A consideração tacanha dos aspectos gerais de planejamento da ocupação do
solo deixou a critério dos especuladores imobiliários a coordenação do processo de
incorporação de novas áreas à cidade, a produção de solo urbano. Dessa forma,
proprietários de terras garantiram a posse de terrenos nas periferias distantes e
lotearam sítios antes destinados ao uso rural (Sítios Cocó, Alagadiço, Cambeba e
(VWkQFLD���HQTXDQWR�JUDQGHV�iUHDV�YD]LDV�HQWUH�R�FHQWUR�H�HVVDV�IUHQWHV�GH�RFXSDomR��
EHQH¿FLDYDP�VH� DRV� SRXFRV� GDV� OLJDo}HV� LQIUDHVWUXWXUDLV� ¿QDQFLDGDV� SHOR� SRGHU�
público, aguardando ociosos um pico vantajoso de valorização.
� (QWUH������H�������GXUDQWH�D�JHVWmR�GR�SUHIHLWR�-RVp�:DOWHU�&DYDOFDQWH�������
�����IRL�HODERUDGR�R�Plano de Desenvolvimento Integrado para a Região de Fortaleza
119
�3/$1',5)���XP�SODQR�GH�DEUDQJrQFLD�PHWURSROLWDQD��FXMDV�SURSRVWDV�FRQWHPSODP�
GLPHQV}HV�ItVLFR�WHUULWRULDLV��VRFLRHFRQ{PLFDV��DGPLQLVWUDWLYDV�H�SROtWLFR�LQVWLWXFLRQDLV��
consolidando e aprofundando a prática de planejamento urbano e regional iniciada no
Plano Hélio Modesto. Pode-se dizer que as preocupações aqui contidas antecipam
D� LQVWLWXLomR� GD� 50)�� TXH� IRUPDOPHQWH� RFRUUHULD� HP� ������ MXQWR� D� RXWUDV� UHJL}HV�
metropolitanas brasileiras, legitimando a necessidade de se pensar o desenvolvimento
integrado das metrópoles e zonas urbanas contíguas. Por outro lado, nota-se também
a diminuição de importância do papel de planejadores e técnicos notáveis nesse
esforço de construção de uma visão multidimensional. Diante da complexidade das
TXHVW}HV�H�GRV�GHVD¿RV�TXH�VH�FRORFDP��SDUHFH�QmR�KDYHU�PDLV�VXMHLWR�RX�IRUPDomR�
GLVFLSOLQDU�TXH�VDWLVIDoD�WDO�HVSHFWUR�GH�FRQVLGHUDo}HV��&267$��������S������
Desta vez, algo além da seção destinada às proposições viárias teve
destaque em termos de implementação, mas, antes, consideremos esta seara. Na
DGPLQLVWUDomR�GR�SUHIHLWR�9LFHQWH�)LDOKR������������VRE�R�FRPDQGR�GD�&RRUGHQDGRULD�
GH� 'HVHQYROYLPHQWR� 8UEDQR� GH� )RUWDOH]D� �&2'()��� DSURYRX�VH� XP� QRYR� 3ODQR�
'LUHWRU�)tVLFR�GH�)RUWDOH]D�HP�������FRP�EDVH�QDV�GLUHWUL]HV�GR�3/$1',5)�H�QRV�
OHYDQWDPHQWRV�DHURIRWRJUDPpWULFRV�GH�������'HVVHV�GRLV�SODQRV��PDWHULDOL]DUDP�VH�
DV�DYHQLGDV�3UHVLGHQWH�&DVWHOOR�%UDQFR��/HVWH�2HVWH���HP�������%RUJHV�GH�0HOR�H�
$JXDQDPEL��DYHQLGD�FDQDO��HP�������=H]p�'LRJR��'LRJXLQKR��H�R�TXDUWR�DQHO�YLiULR�
�OLJDQGR�RV�EDLUURV�GD�3DUDQJDED��%RD�9LVWD��3DVVDUp��&DVWHOmR�H�&DMD]HLUDV���HP�
������ � IRUDP� SURORQJDGDV�� VHJXLQGR� R� VLVWHPD� UDGLRFRQFrQWULFR�� DV� DYHQLGDV� GRV�
([SHGLFLRQiULRV��&DUDSLQLPD� H�$QW{QLR�6DOHV��É a partir desse momento que uma
segunda barreira física à expansão é transposta: a linha férrea Mucuripe-Parangaba
e o rio Cocó. De maneira geral, o sítio urbano de Fortaleza não apresentava
impedimentos à ocupação, à exceção do riacho Pajeú na virada do século e do rio
Cocó nesse segundo ato. Com a construção de pontes e a abertura de vias, observa-
VH�D�RFXSDomR�JUDGXDO�GH�QRYDV�iUHDV�QR�VHWRU�OHVWH��&267$��������S������
� 1R�SODQR�GH������� SDUD� ¿QV�GH�DUUHFDGDomR�� SHOD�SULPHLUD� YH]� WRGD�D�iUHD�
municipal é considerada urbana. Isto parece coincidir com uma inversão da relação
HQWUH�SRSXODomR�XUEDQD�H�UXUDO�QR�HVWDGR��XPD�YH]�TXH�R�FHQVR�GH������DSRQWDYD�TXH�
53,15%�GRV�FHDUHQVHV�YLYLDP�HP�FLGDGHV��(P�������VHULDP�46,6% e em 2010, 75,0%
o contingente urbano. Internamente, as dinâmicas de produção e reprodução urbanas
parecem balizar um movimento de ordenação dos estratos sociais com direcionamento
120
dos grupos de alta renda a leste e de baixa renda a oeste, conformando uma cidade
partida à marca de irradiação do núcleo central. Ainda que esta tendência não se
comprove no detalhe, esforços no sentido de homogeneização da cidade em duas
manchas contrastadas não faltaram.
Dessa forma, pautada nas diretrizes do PLANDIRF e do Plano Diretor
)tVLFR� GH� ������ WRPD� FXUVR� D� LPSODQWDomR� DWLYD� GH� FRQMXQWRV� KDELWDFLRQDLV�� GH�
loteamentos periféricos e, indiretamente, de autoconstruções nas zonas oeste e sul.
Simultaneamente, ocorrem ações de remoção de favelas e núcleos favelados dispostos
em áreas circundadas por boa infraestrutura e, portanto, favoráveis à ocupação de
DOWR�SDGUmR��$�IDYHOD�GR�7ULOKR�,�p�D�SULPHLUD�D�VHU�UHPRYLGD�SDUD�GDU�OXJDU�j�(VWDomR�
Rodoviária e à avenida Borges de Melo. Em seguida, é a vez das favelas da avenida
Estados Unidos e Senador Machado, cujas famílias são transferidas para o Conjunto
$OYRUDGD� QR� EDLUUR� 6HLV� %RFDV�� $� FRQVWUXomR� GD� DYHQLGD� /HVWH�2HVWH� FREUDYD� D�
remoção para o Conjunto Marechal Rondon – erguido no distrito de Jurema, município
GH�&DXFDLD��D����NP�GR�FHQWUR�±�GH�WUHFKRV�GR�$UUDLDO�0RXUD�%UDVLO��XP�GRV�SULPHLURV�
DVVHQWDPHQWRV�SUHFiULRV��HVWDEHOHFLGR�GHVGH�RV�¿QV�GR�VpFXOR������GR�3LUDPEX�H�GD�
9LOD�6DQWR�$QW{QLR��&267$��������S������
� 6HJXQGR�6RX]D��������S�������RV�FRQÀLWRV�HP�)RUWDOH]D�HQWUH�R�(VWDGR�H�JUXSRV�
PDUJLQDOL]DGRV�SHOD�SRVVH�GH�WHUUD�H�WHWR�GDWDP�GH�������SHUtRGR�GH�FUHVFLPHQWR�GDV�
IDYHODV�GR�3LUDPEX��GR�/DJDPDU�H�9HUGHV�0DUHV��$V�WHQWDWLYDV�GH�H[SXOVmR�GHVVHV�
grupos resultaram no fortalecimento dos movimentos sociais urbanos junto à Igreja,
mobilizados para a resistência às desocupações, além da reivindicação de melhorias
e direitos. Nesse sentido, alguns grupos conseguem manter-se assentados. É o
FDVR�GDV�IDYHODV�GR�3LUDPEX��GH�6DQWD�&HFtOLD��GH�6DQWD�7HUH]LQKD�H�GR�/DJDPDU��
¬�PHGLGD�TXH�VXD�¿[DomR�VH�OHJLWLPD�IUHQWH�jV�Do}HV�GH�UHPRomR��YmR�DRV�SRXFRV�
conquistando o benefício de projetos de urbanização e abandonando parte do estigma
da favelização, constituindo-se como bairros populares.
No entanto, apesar dos casos mencionados, uma parte considerável da
população pauperizada é varrida com sucesso dos assentamentos indesejados,
passando a residir nos conjuntos habitacionais construídos em terrenos baratos e
GLVWDQWHV�SHOD�&RPSDQKLD�GH�+DELWDomR�GR�&HDUi� �&2+$%���VRE�¿QDQFLDPHQWR�GR�
%DQFR�1DFLRQDO�GH�+DELWDomR��%1+��FRP�UHFXUVRV�GR�)*76��2�SULPHLUR�IRL�R�FRQMXQWR�
-RVp� :DOWHU�� QR� EDLUUR� GR� 0RQGXELP� HQWUH� ����� H� ������ (P� VHJXLGD� YLHUDP� RV�
121
conjuntos Cidade 2000, Conjunto Ceará, Beira Rio, Nova Assunção e Santa Luzia
GR�&RFy��$�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�������RV�SURJUDPDV�GH�KDELWDomR�SRSXODU�DORFDP�RV�
novos projetos preferencialmente na região metropolitana, a princípio em Caucaia
(Nova Acrópole, Parque Guadalajara, Parque Potira, Nova Metrópole I, II e III, Conjunto
$UDWXUL�,��,,�H�,,,��H�0DUDFDQD~��&RQMXQWRV�-HUHLVVDWL�,��,,�H�,,,�H�7LPEy���628=$��������
S�������
As políticas de habitação do período ditatorial nem atendem quantitativamente
à demanda posta nem se prestam a uma resposta digna para o problema, uma vez que
esses conjuntos aumentavam as distâncias dos percursos casa-trabalho sem sequer
suprir as habitações da infraestrutura mínima e dos serviços e equipamento sociais
necessários. Com efeito, uma parte da população desassistida inicia uma prática de
RFXSDomR�GRV� YD]LRV�XUEDQRV�� R�0RYLPHQWR�GRV�7UDEDOKDGRUHV�6HP�7HWR� �0767���
que passa a reivindicar moradia através da ocupação de praças, terrenos e prédios
ociosos, públicos e privados. Essas lutas haveriam de desaguar no âmbito nacional
em pressões para a introdução dos artigos relativos à política urbana na Constituinte
GH�������$�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�������SRU�FRQVHTXrQFLD��RV�SURJUDPDV�KDELWDFLRQDLV�
procuram deslocar os grupos removidos para zonas não muito distantes das áreas de
remoção. Nessa linha, registra-se a construção dos conjuntos São Cristóvão e São
-RmR��SUy[LPRV�DR�&RQMXQWR�3DOPHLUDV��&267$��������S������628=$��������S�������
Direito à cidade do gringo e à cidade lacrada
� $�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�������JDQKD�IRUoD�HP�)RUWDOH]D�R�SDGUmR�GH�VHJUHJDomR�
SRU�HQFODYHV�IRUWL¿FDGRV��1mR�WHQGR�ORJUDGR�r[LWR�SOHQR�QD�UHSDUWLomR�GD�FLGDGH�HP�
dois estratos homogeneamente didáticos, as políticas e práticas de desenvolvimento
urbano pautadas na remoção e na alocação das camadas pauperizadas às periferias
distantes transformam-se com a retomada do Estado Democrático de Direito. Em
������p�LQDXJXUDGR�R�SULPHLUR�VKRSSLQJ�GD�FDSLWDO��R�&HQWHU�8P��HUJXLGR�QR�DY��6DQWRV�
Dumont, no seio do bairro Aldeota e, em torno do qual, desenvolve-se um comércio
GH�OX[R��1D�VHTXrQFLD��HP�������FRQVWUyL�VH�R�6KRSSLQJ�,JXDWHPL��FXMDV�IXQGDo}HV�
VH�LQVWDODP�VREUH�iUHD�GHJUDGDGD�GD�SODQtFLH�ÀXYLRPDULQKD�GR�ULR�&RFy��RQGH�DQWHV�
funcionavam as Salinas Diogo. Este empreendimento atrai outras atividades comerciais
que, somadas aos equipamentos já dispostos no bairro Água Fria (Universidade de
122
)RUWDOH]D��&HQWUR�GH�&RQYHQo}HV��&HQWUR�GH�7UHLQDPHQWR�GR�%DQFR�GR�(VWDGR�GR�
&HDUi�� ,PSUHQVD� 2¿FLDO� GR� &HDUi��$FDGHPLD� GH� 3ROtFLD�� DJUHJDP� XP� GLQDPLVPR�
PDLRU�j�iUHD��&267$��������S������
� 2�PRGHOR�GH�SROLQXFOHDomR�SURMHWDGR�SHORV�SULPHLURV�SODQHMDGRUHV�PRGHUQRV�
começa seletivamente a tomar forma com o esvaziamento funcional do centro, que
progressivamente assume um papel de centro da periferia a medida que ocorre a
descentralização administrativa, o esvaziamento simbólico do centro tradicional e o
abandono e desinteresse desse espaço pelas camadas altas e setores da classe
média. Nesse período, a sede do governo estadual transferiu-se para a Aldeota
�3DOiFLR�GD�$EROLomR��H�D�$VVHPEOpLD�/HJLVODWLYD�SDUD�R�EDLUUR�'LRQtVLR�7RUUHV��WDPEpP�
QD�]RQD�OHVWH��-i�QR�¿P�GRV�DQRV������HVVD�WHQGrQFLD�GH�GHVORFDPHQWR�VH�UHD¿UPD�
com a transferência de secretarias para o Centro Administrativo do Estado do Ceará,
no bairro Cambeba, a sudeste do núcleo central.
Pouco antes, a oeste, desenvolvia-se ao longo da avenida Gomes de Matos, no
bairro Montese, um pequeno comércio local voltado à população de baixa renda, onde
GHSRLV�VH�LQVWDODULDP�¿OLDLV�GH�ORMDV�GR�FHQWUR��VXSHUPHUFDGRV�H�DJrQFLDV�EDQFiULDV��
Movimento parecido sucede aos bairros da Parangaba, da Messejana, de Jacarecanga,
DR�%DLUUR�GH�)iWLPD�H�jV�LPHGLDo}HV�GD�]RQD�LQGXVWULDO�GD�DY��)UDQFLVFR�6i��+RXYH��
SRU�¿P��XPD�GHVFHQWUDOL]DomR�WDPEpP�GDV�RSo}HV�GH�OD]HU��FRP�D�FRQVWUXomR�GRV�
SRORV�GD�%DUUD�GR�&HDUi��GD�/DJRD�GR�2SDLD��GR�$ODJDGLoR�H�GD�3UDLD�GR�)XWXUR��FRP�
a urbanização da Beira Mar e a criação do Parque Adahil Barreto (seção do Parque
(FROyJLFR�GR�&RFy���GXUDQWH�D�JHVWmR�GR�SUHIHLWR�/~FLR�$OFkQWDUD������������D�TXHP�
IRL�DWULEXtGD�D�PDUFD�GLVWLQWLYD�GD�SURWHomR�DR�PHLR�DPELHQWH�XUEDQR��&267$��������
S������628=$��������S�������
A compreensão da formação urbana de Fortaleza não pode prescindir da
FRQVLGHUDomR�GDV�PLJUDo}HV�FDPSR�FLGDGH��1D�GpFDGD�GH�������HVVHV�PRYLPHQWRV�VH�
LQWHQVL¿FDP�H��VREUHSRVWRV�j�VLWXDomR�HFRQ{PLFD�GR�SDtV��j�EDL[D�RIHUWD�GH�HPSUHJRV�
H�DRV�HOHYDGRV�SUHoRV�GRV�LPyYHLV�H�GRV�DOXJXHLV��DJUDYD�VH�R�Gp¿FLW�KDELWDFLRQDO��
Segundo Souza, a baixa renda familiar tem sido um elemento persistente ao longo
GRV�DQRV��(P�������64,03% das famílias contavam com a renda mensal inferior a
dois salários mínimos e 82,92%��FRP�PHQRV�GH�FLQFR�VDOiULRV��HP������FHUFD�GH�70%
dos chefes de família recebiam até três salários mínimos e 35,33% recebiam menos
GH�XP��D� UHQGD�PpGLD�GRV� FKHIHV�GH� IDPtOLD� IRUWDOH]HQVHV�QHVVH�DQR�HUD�GH������
123
salários por mês. Nessas condições, simplesmente não se pode conceber a gestão
do solo urbano, a distribuição e o acúmulo de serviços e infraestrutura por simples
PHFDQLVPRV�GH�PHUFDGR��(P�������)RUWDOH]D�RFXSDYD�D�TXDUWD�SRVLomR�QR�UDQNLQJ�
QDFLRQDO�GH�Gp¿FLW�KDELWDFLRQDO�DEVROXWR�H� WHUFHLUR�QR� UHODWLYR�� FRP�D�PDUFD�GH�85
mil unidades��VHQGR���������R�WRWDO�SDUD�D�UHJLmR�PHWURSROLWDQD��3RU�VHX�WXUQR��XPD�
UHSRUWDJHP�GH������GR�'LiULR�GR�1RUGHVWH�UHJLVWUDYD�HP�PpGLD�D�FKHJDGD�GH�����
IDPtOLDV�PLJUDQWHV�SRU�GLD�j�FDSLWDO��$�HVVD�DOWXUD��R�Gp¿FLW�KDELWDFLRQDO�HUD�GH�150 mil
moradias��UHSUHVHQWDQGR�����GD�SRSXODomR�HP�VLWXDomR�SUHFiULD��&267$��������S��
����
� $V� FRQGLo}HV� SUHFiULDV�� LQVX¿FLHQWHV� H� LQVDWLVIDWyULDV� GDV� KDELWDo}HV�
subsidiadas pelo poder público tanto agravam o processo mencionado de ocupação
de vazios urbanos com alguma infraestrutura como desencadeiam a multiplicação dos
assentamentos informais em áreas de risco. A rigor, o padrão de ocupação histórico
das camadas desassistidas ao longo das vias férreas já constitui uma tipologia de
risco, assim como as moradias de palha de comunidades pesqueiras estabelecidas
QD� IDL[D� GH� SUDLD�� 2� TXH� WHP� LQtFLR� QHVVH�PRPHQWR� HP� )RUWDOH]D�� GL]� UHVSHLWR� j�
construção de um cenário de risco tipicamente moderno e essencialmente urbano.
As ocupações de encostas de morros, de campos de dunas, de várzeas e margens
GH� ULRV� H� ODJRDV� FRQ¿JXUDP� XPD� DPHDoD� GH� VHJXQGD� RUGHP�� SRUTXH� FRPELQDP�
FRQGLo}HV� VRFLRHFRQ{PLFDV� GH� YXOQHUDELOLGDGH�� SDGU}HV� GH� FRQVWUXomR� SUHFiULRV��
ausência e impossibilidade legal de atendimento infraestrutural e de serviços, além
GH�XPD�VREUHFDUJD�FXPXODWLYD�GH�LQWHUYHQo}HV�DPELHQWDLV��ItVLFDV�H�TXDOLWDWLYDV��QR�
entorno dessas áreas, que as fragilizam sobremaneira. Esse quadro denota uma fase
madura do processo de urbanização brasileiro marcado pela saturação virtual das
áreas de ocupação preferencial e pela rejeição por parte da classe trabalhadora e
HVSROLDGD�j�¿[DomR�HP�JUDQGHV�GLVWkQFLDV�
� 'D�PHWDGH�GD�GpFDGD�GH������HP�GLDQWH��D�VXFHVVmR�GH�JRYHUQRV�HVWDGXDLV�
D� SDUWLU� GD� SULPHLUD� JHVWmR� GH� 7DVVR� -HUHLVVDWL� ����������� LQLFLD� D� LPSOHPHQWDomR�
das políticas de desenvolvimento do turismo no Ceará. Esses governos mobilizam
grandes investimentos públicos e privados para o Estado, destinado-os à viabilização
de projetos turísticos e culturais. Em termos de infraestrutura, são responsáveis pela
execução de rodovias, melhorando o acesso da capital às praias; de novo anel viário;
GR�3RUWR�GR�3HFpP��GR�$HURSRUWR��GR�0HWURIRU��H�GR�SURMHWR�6$1($5��7UDWD�VH�GH�
124
uma sucessão política diretamente ligada a grupos de empresários do comércio e da
LQG~VWULD��3RU�PHLR�GH�LQFHQWLYRV�¿VFDLV��GHVHQYROYH�VH�D�LQG~VWULD�Wr[WLO�H�VmR�DWUDtGDV�
para a região indústrias de calçados e outros ramos. Após a fase de implementação
de melhorias, grupos nacionais e internacionais passam a investir no setor hoteleiro e
de lazer.
� 6RX]D� ������� S�� ����� D¿UPD� TXH� HVVDV� WUDQVIRUPDo}HV� IDYRUHFHP� D�
YHUWLFDOL]DomR�GR�VHWRU�OHVWH��7DVVR�JRYHUQRX�R�(VWDGR�GH������D�������LQWHUURPSLGR�
DSHQDV� SHOD� JHVWmR� GH� &LUR� *RPHV� ����������� 1mR� SRU� PHUR� DFDVR�� 7DVVR� p�
proprietário do Grupo Jereissati, responsável pela construção dos shoppings Center
Um, Iguatemi e de vários outros empreendimentos comerciais por todo o país. Sob
VXD�LQÀXrQFLD��D�FDSLWDO�PRGHUQL]D�VH�VHOHWLYDPHQWH��GDQGR�D�LPSUHVVmR�GH�SURJUHVVR�
ascendente à parte da sociedade. As elites e alguns setores da classe média lançam
mão da experiência capsular proporcionada pelos circuitos de lazer privado, entre os
equipamentos monitorados, como os shoppings, as moradias protegidas e o apelo à
circulação por carros.
É preciso poderarmos que, de um ponto de vista ambiental, o programa
6$1()25�6$1($5�� ¿QDQFLDGR� SHOR� %DQFR� 0XQGLDO� D� SDUWLU� GH� ����� PHOKRURX�
HP�PXLWR� DV� FRQGLo}HV� GH� VDOXEULGDGH� XUEDQDV�� (P� ������ �������GRV� GRPLFtOLRV�
UHFHELDP� iJXD� HQFDQDGD� H� DSHQDV� ������ HVWDYDP� OLJDGRV� j� UHGH� GH� FROHWD� GH�
esgoto. A construção do interceptor oceânico e emissário submarino e ampliação do
VLVWHPD�GH�DWHQGLPHQWR�GDWDP�GR�JRYHUQR�$GDXWR�%H]HUUD������������PDV�DWp�HQWmR�
grande parte da população valia-se de fossas sépticas e, nos bairros populares e
favelas, o esgoto corria a céu aberto, como ainda hoje é possível se ver, já que não
houve universalização desses serviços. De todo modo, a poluição do solo, dos corpos
d’água, incluindo as praias, e do lençol freático reduziu-se com a execução desses
SURMHWRV��'H������D�������R�DWHQGLPHQWR�GH�iJXD�SDVVRX�GH��������SDUD�����H��GH�
HVJRWDPHQWR�VDQLWiULR��GH�������SDUD������0DLV�UHFHQWHPHQWH�R�SURMHWR�6$1($5�
FRQTXLVWRX�D�PDUFD�GH�����GH� OLJDo}HV�j�UHGH�GH�HVJRWR��6mR��SRUWDQWR��EDVWDQWH�
comuns ainda as ligações clandestinas à rede de drenagem pluvial, acarretando
sérios transtornos quando as chuvas sobrecarregam a capacidade de escoamento
GRV�FDQDLV��0HVPR�TXH�DV�iUHDV�QREUHV�WHQKDP�VLGR�SUHIHUHQFLDOPHQWH�EHQH¿FLDGDV�
por essas reformas, destaca-se a inclusão do Lagamar, do Parque Genibaú e da Água
)ULD�HQWUH�RXWURV�EDLUURV�SRSXODUHV�EHQH¿FLDGRV�
125
� $�FRQTXLVWD�GD�XUEDQL]DomR�GH�IDYHODV�QHVVHV�~OWLPRV�DQRV��EHQH¿FLDGDV�SHOD�
implantação de calçamento e de equipamentos sociais, além de infraestrutura de água
e esgoto, sem que se alterem as condições de manutenção dos seus habitantes, tem
como resultado geral imediato a negociação e venda dos imóveis pelos moradores e
o abandono do bairro para residirem em áreas distantes. Dada a situação de renda
mínima ou de ausência de renda, os habitantes desses bairros reformados veem
na venda a possibilidade de capitalização para início de alguma atividade que lhes
SURSRUFLRQH�UHWRUQR��2XWUD�VLWXDomR�FRPXP�p�D�FRQVWUXomR�GH�XP�VHJXQGR�SDYLPHQWR�
ou de um “puxadinho” para aluguel e incremento do orçamento familiar. Uma crítica
UHFRUUHQWH�DRV�VLVWHPDV�GH�¿QDQFLDPHQWR�GH�PRUDGLDV�SRSXODUHV��TXH�DTXL�WDPEpP�
se aplica, diz respeito aos critérios de atendimento dos pré-requisitos, que muitas
vezes deixam de atender a grupos verdadeiramente pauperizados para contemplar
unicamente estratos da baixa classe média.
De uma forma ou de outra, o cenário que se desenha para a virada do século
é o de uma cidade em crescimento sob panos mornos e que responde aos problemas
urbanos da forma como pode. Acontece que uma hora as rotas de fuga privilegiadas
se esgotam ou saturam e a esteira do empobrecimento alcança mesmo aqueles que
haviam se cercado do receituário completo das garantias às incertezas da vida.
A partir dos anos 2000 e princípio dos anos 2010, Fortaleza teria de lidar com
o turvamento do caldo, retrato local da história do Brasil, de uma longa trajetória de
QHJDomR�GH�GLUHLWRV�H� LPSUHYLGrQFLDV�GH�JHVWmR��2�JRYHUQR�PXQLFLSDO��VRE�D�pJLGH�
GD�SUHIHLWD�/XL]LDQQH�/LQV� ������������H�GRV�SURJUDPDV�VRFLDLV�GH�GLVWULEXLomR�GH�
renda do governo federal, abre uma série de comportas, com a reestruturação de
secretarias, referentes ao tratamento de direitos e dimensões da vida social urbana
esquecidas. Nesse sentido, vale um destaque para as ações preventivas da Secretaria
de Defesa Civil, de limpeza de rios, canais e lagoas, contornando parte dos recorrentes
problemas associados a inundações em áreas de risco no período de chuvas.
De modo geral, ainda que o programa de habitações populares Minha Casa,
Minha Vida�SDUHoD�WHU� LQFRUULGR�QRV�PHVPRV�HUURV�GH�SURJUDPDV�GH�¿QDQFLDPHQWR�
anteriores, excluindo do processo os estratos mais vulneráveis e deixando a cargo
da iniciativa privada determinações estratégicas para a produção equilibrada das
transformações urbanas, os programas de renda básica de cidadania conduziram à
inclusão pelo consumo uma leva considerável de camadas marginalizadas. Qualquer
126
leitura dos efeitos dessas políticas parece ainda prematura, principalmente quando
confrontada com as consequências da estratégia brasileira de enfrentamento da crise
GR�PHUFDGR�¿QDQFHLUR�GH�������$�UHGXomR�GR�,PSRVWR�VREUH�3URGXWRV�,QGXVWULDOL]DGRV�
�,3,��VREUH�D�YHQGD�GH�FDUURV�SRSXODUHV��SHUPLWLX�R�DFHVVR�GH�XPD�SDUWH�VLJQL¿FDWLYD�
da sociedade brasileira a este bem de inegável valor simbólico e instrumento de
distinção social. As vias e malhas urbanas das principais capitais não pareciam estar
preparadas para suportar a circulação do volume gerado de carros e muitas dessas
FLGDGHV�WHP�VRIULGR�HVWUDQJXODPHQWR�GH�WUiIHJR��'H�XP�SRQWR�GH�YLVWD�HFRQ{PLFR��R�
aquecimento da cadeia produtiva de veículos automotores parece um efeito esperado
H�GHVHMiYHO��7DOYH]�QmR�VH�SRVVD�GL]HU�R�PHVPR�GDV�REUDV�GH�LQIUDHVWUXWXUD�SURSRVWDV�
para desafogar os engarrafamentos, que, em várias capitais, a exemplo de Fortaleza,
somam-se às demandas da FIFA de adequação das malhas urbanas às exigências de
realização da Copa de 2014, tendo transformado esta capital, nos últimos anos, em
um grande canteiro de obras.
Finalizamos a narrativa desta saga urbana à luz dos avanços galgados em
termos de política urbana a partir da promulgação do Estatuto das Cidades em 2001.
2�~OWLPR�SODQR�GLUHWRU�GH�)RUWDOH]D��FXMD�HODERUDomR�VH�GHX�HP�������FRRUGHQDGD�
pelo Instituto Pólis de São Paulo, representa um marco para o planejamento urbano
do município. Pela primeira vez, a dimensão socioambiental de um plano é colocada
como fundamento e sentido das políticas de desenvolvimento urbano. Para subsidiar
o Plano Diretor Participativo de Fortaleza��3'3)RU��IRL�HQFRPHQGDGR�R�'LDJQyVWLFR�
Geoambiental do Município de Fortaleza, segundo o que foram propostos o
macrozoneamento ambiental e urbano do plano, conforme os indicativos de fragilidade
e potencialidades dos compartimentos geossistêmicos. Merecem destaque, além
GDV�]RQDV�GH�SUHVHUYDomR��UHFXSHUDomR�H� LQWHUHVVH�DPELHQWDO� �=3$��=5$��=,$���RV�
HVIRUoRV�GH�GHOLPLWDomR�GH�]RQDV�HVSHFLDLV�GH�SUHVHUYDomR�GR�SDWULP{QLR�SDLVDJtVWLFR��
KLVWyULFR�H�FXOWXUDO��=(3+��GR�&HQWUR�H�GD�3DUDQJDED��DV�]RQDV�DPELHQWDLV��=($���H�
GH�LQWHUHVVH�VRFLDO��=(,6��
Ressaltamos também o tratamento da drenagem urbana na forma de manejo
de águas pluviais na seção dedicada à Política de Saneamento Ambiental (Art.
����� D� SURSRVLomR� GH� XP� VLVWHPD� GH� iUHDV� YHUGHV� �$UW�� ����� H� R� XVR� GH� WD[DV� GH�
permeabilidade do solo como parâmetro urbanístico regulador da ocupação (Arts.
���� H� ������ 7RGRV� HVVHV� GLVSRVLWLYRV� UHYHODP� XPD� PXGDQoD� SDUDGLJPiWLFD� GH�
127
postura diante da sociedade urbana historicamente vulnerabilizada por processos de
exclusão, exploração e espoliação e do meio ambiente urbano, contra o que o sentido
GH�XUEDQL]DomR�VH�D¿UPRX��FRQVROLGDQGR�VH��YLD�GH�UHJUD��SHOD�QHJDomR�H�RSRVLomR�
à complexidade dos sistemas vivos. Isto não garante que, diferente dos esforços
anteriores, as diretrizes do PDPFor sejam amplamente seguidas, mas certamente, a
exemplo de seus predecessores, suas proposições balizarão disputas entre futuros
possíveis para Fortaleza, dessa vez, algo mais dignos, justos e democráticos.
6. Avalanche: Sinais de ruptura
� (P�DUWLJR�LQWLWXODGR�³2�QRYR�PRGHOR�GH�JHVWmR�XUEDQD�HVWUDWpJLFD�HP�)RUWDOH]D��
DXPHQWR� GDV� GHVLJXDOGDGHV� VRFLRDPELHQWDLV´�� )UHLWDV� ������� WHQWD� GHVFRQVWUXLU�
aquilo que chama de mito da falta de planejamento em Fortaleza e estrutura uma
LQWHUSUHWDomR� GDV� SUiWLFDV� GH� SURGXomR� GR� HVSDoR� XUEDQR� D� SDUWLU� GRV� DQRV� �����
como um processo planejado para o benefício dos setores produtivos e das elites
urbanas. A autora explica que em substituição ao planejamento modernista tradicional,
R�PRGHOR� GH� JHVWmR� XUEDQD� HVWUDWpJLFD�� GH� IRUWH� LQÀXrQFLD� QHROLEHUDO�� UHSUHVHQWRX�
uma alternativa comum às mais diversas correntes políticas em um momento histórico
PDUFDGR� SHOD� FULVH� ¿VFDO�� FRP� FRUWH� GDV� WUDQVIHUrQFLDV� GH� UHFXUVRV� IHGHUDLV� DRV�
JRYHUQRV� PXQLFLSDLV�� ,VVR�� QR� HQWDQWR�� QmR� VLJQL¿FD� TXH� D� LQVHUomR� GDV� FLGDGHV�
brasileiras no contexto de competitividade global por investimentos e sua sujeição
às leis de mercado determinem as decisões dos atores locais no que se refere à
alocação espacial dos investimentos.
� )UHLWDV��������FKDPD�D�DWHQomR�SDUD�R�PHFDQLVPR�GH�IXQFLRQDPHQWR�GR�PRGHOR�
de gestão urbana estratégica. Aqui a maior preocupação reside na manutenção da
boa imagem externa da cidade e na busca de diferenciais que aumentem o nível de
FRPSHWLWLYLGDGH�XUEDQD�HP�UHODomR�D�RXWUDV�FLGDGHV�� $�¿P�GH�JDUDQWLU�D�DWUDWLYLGDGH�
de Fortaleza a turistas e a novas indústrias, confere-se um lugar de primazia aos
capitais produtivo e comercial diante dos demais pesos envolvidos no processo
decisório. Dessa forma, estabelece-se a precedência das condições de reprodução
desses capitais às condições de reprodução social, o que conduz a um processo de
desinvestimento nas necessidades dos moradores urbanos.
De todo modo, a modelo de urbanismo neoliberal ensaiado em Fortaleza
128
destoa da experiência vivenciada por outras administrações municipais na América
Latina. Durante esse período o investimento em serviços urbanos não diminuíram e,
inclusive, tem caminhado para a universalização, em geral, sem grandes diferenças
entres bairros. São os casos do acesso à água encanada, da coleta de lixo e das
ligações à rede de energia elétrica (Figuras 16, 17 e 18���'RV�FLQFR�FRPSRQHQWHV�GR�
tQGLFH�VLQWpWLFR�GH�FRQGLo}HV�GRPLFLOLDUHV��,&'���DIHULGR�SHOR�,QVWLWXWR�GH�3HVTXLVD�H�
(VWUDWpJLD�(FRQ{PLFD�GR�&HDUi��,3(&(��FRP�EDVH�QRV�GDGRV�GR�&HQVR�GH������GR�
IBGE, apenas as condições de esgotamento sanitário dos domicílios apresentaram
VLJQL¿FDWLYD�GHVLJXDOGDGH�QD�RIHUWD�GR�VHUYLoR�HQWUH�RV�EDLUURV�GD�FDSLWDO��(QTXDQWR�
bairros como Cidade 2000, Conjunto Ceará I, Bom Futuro, Meireles e Parreão reúnem
DFLPD� GH� ����GH� OLJDo}HV� GRPLFLOLDUHV�� RXWURV� FRPR�3DUTXH�6DQWD�5RVD�� 3DUTXH�
0DQLEXUD�� &XULy�� 3DUTXH� 3UHVLGHQWH� 9DUJDV� H� 3HGUDV�� FRQWpP�PHQRV� GH� ��� GRV�
GRPLFtOLRV�OLJDGRV�j�UHGH�JHUDO�GH�HVJRWR��9DOH�GL]HU�TXH�RV�YDORUHV�SHUFHQWXDLV�QmR�
fazem distinção entre ligações em separado ao sistema de esgotamento e as ligações
à rede de drenagem pluvial.
Quando nos propomos a discutir evidências de respeito e desrespeito ao
cidadão impressas nas condições de vida ou de existência diária que lhe são impostas,
não podemos deixar de lembrar que água, esgoto, energia elétrica, coleta de lixo e
banheiros particulares são aspectos mínimos de habitabilidade urbana. Por mais que
as metas de evolução dos indicadores tenham sido alcançadas ao longo dos anos,
isso não quer dizer que sejam satisfatórias, ou melhor, dignas. Isso é base para tudo
R�PDLV�VREUH�GHVHQYROYLPHQWR�KXPDQR��3RUWDQWR��FRQVLGHUDPRV�DV�GL¿FXOGDGHV�GH�
XQLYHUVDOL]DomR�GR�VHUYLoR�GH�HVJRWDPHQWR�VDQLWiULR�FRPR�RV�¿QV�GH�XPD�HWDSD�D�
ser transposta tanto do ponto de vista do necessário acompanhamento subsequente
da qualidade de todos os demais serviços prestados (o que passa a gozar de mais
DWHQomR�DSyV�D�XQLYHUVDOL]DomR��TXDQWR�GRV�LPSDFWRV�DPELHQWDLV�TXH�DV�IRUPDV�GH�
implementação infraestrutural acarretam. A esta outra qualidade de urbanização nos
UHIHULPRV� FRPR�GH� VHJXQGD�RUGHP�RX� UHÀH[LYD��$�PXGDQoD�QHVVH�SDUDGLJPD� WHP�
HVSHFLDO�VLJQL¿FDGR�SDUD�LQGLYtGXRV�PRUDGRUHV�GH�iUHDV�GH�ULVFR�GH�LQXQGDomR�H�GH�
deslizamento.
Como apresentado no início deste artigo, o quadro preocupante da violência
urbana em Fortaleza parece neutralizar o debate amplo sobre a qualidade de vida
QHVWD�FDSLWDO��$VVLP��WHQWDPRV�HVSDFLDOL]DU�D�GLVWULEXLomR�GH�FRQÀLWRV�GH�WHUULWRULDOLGDGH�
129
�HP� ����� H� ������ H� DV� WD[DV� PDLV� H[SUHVVLYDV� GH� HYROXomR� GH� KRPLFtGLRV� �GH�
�����D�������QRWLFLDGRV�SHOR� MRUQDO�2�3RYR� �&$6752��������������FRP�EDVH�QRV�
UHJLVWURV�GD�6HFUHWDULD�(VWDGXDO�GD�6HJXUDQoD�3~EOLFD�H�'HIHVD�6RFLDO��663'6��H�
da Delegacia Geral de Polícia Civil (Figura 19���&RPR�RV�GDGRV�GLVSRQtYHLV�QmR�VH�
UHIHUHP�DRV�PHVPRV�DQRV�H�Ki�SRXFD�SHUPDQrQFLD�GH�FRQÀLWRV�QRV�PHVPRV�EDLUURV�
�3LUDPEX��%DUUD�GR�&HDUi���%RP�-DUGLP��$HUROkQGLD�H�0HVVHMDQD��RX�VREUHSRVLomR�
GRV�DWULEXWRV�FRQÀLWRV�KRPLFtGLRV��3UDLD�GH�,UDFHPD�H�0RQWH�&DVWHOR���SRGHPRV�VXSRU�
que a estratégia básica de enfrentamento ostensivo da criminalidade resulta em um
FRQVLGHUiYHO�GLQDPLVPR�QD�FRQ¿JXUDomR�DQR�D�DQR�GD�JHRJUD¿D�GHVVHV�HYHQWRV�
Ao analisar a disposição espacial dos dados sobre violência urbana, buscávamos
encontrar um padrão passível de associação com outros indicadores socioambientais.
Porém, dentre os dados que dispomos, o mapa da distribuição da condição de extrema
pobreza (Figura 20��±�FRP� OLQKD�GH�FRUWH�SDUD� UHQGD� IDPLOLDU�PHQVDO� LQIHULRU�D�5��
������SRU�SHVVRD�±�VXJHUH�XPD�FRUUHODomR�HVSDFLDO�PDLV�FRPSDWtYHO�FRP�R�PDSD�GRV�
FRQÀLWRV�H�KRPLFtGLRV�DSUHVHQWDGR��(VWH�SDGUmR�VH�FDUDFWHUL]D�SRU�XPD�GLVWULEXLomR�HP�
quatro eixos de dispersão a partir do centro e concentração aos limites do município.
$�RHVWH��QD�6(5�,��UHSUHVHQWDGR�SHORV�EDLUURV�3LUDPEX��%DUUD�GR�&HDUi�H�9LOD�9HOKD��
D�VXGRHVWH��QD�6(5�9��FRP�RV�EDLUURV�*HQLED~��*UDQMD�/LVERD��6LTXHLUD��%RP�-DUGLP��
&DQLQGH]LQKR� H� 3ODQDOWR�$\UWRQ� 6HQD�� D� VXGHVWH�� QD� 6(5� 9,�� FRP� PDQFKD� PDLV�
interiorana ou não concentrada aos limites municipais, representada pelos bairros
Barroso, Jangurussu e Conjunto Palmeiras; e ao extremo litoral leste, na SER II, com
RV�EDLUURV�3UDLD�GR�)XWXUR��9LFHQWH�3LQ]yQ�H�&DLV�GR�3RUWR�
Seria razoável que nos perguntássemos que imagem veríamos e o que ela
QRV�GLULD�VH�GLVSXVpVVHPRV�GH�WRGRV�RV�UHJLVWURV�GH�KRPLFtGLRV��FRQÀLWRV��URXERV�D�
SHVVRD�H�D�UHVLGrQFLDV�QRV�~OWLPRV����DQRV��'H�������TXDQGR�D�WD[D�GH�PRUWDOLGDGH�
HVSHFt¿FD�HP�)RUWDOH]D�HUD�GH�������DWp�������������KRXYH�XP�VDOWR�GH��������QR�
indicador. Se considerarmos os dados do Conselho Cidadão pela Seguridade Social
3~EOLFD� H� -XVWLoD� 3HQDO� R� VDOWR� VHULD� GH� ������� DWp� ����� ���������$� LPDJHP� TXH�
projeto apenas para as mortes violentas dá sentido ao adjetivo epidêmico, com o qual
se trata taxas acima de 10 homicídios por 100 mil habitantes. Será que faz algum
sentido tentarmos ensaiar uma compreensão da manifestação da criminalidade e da
YLROrQFLD�QRV�EDLUURV�D�HVVH�JUDX�GH�GLVWDQFLDPHQWR�GD�PDUJHP�GH�DOHUWD"
Quero dizer que Fortaleza, de certo, transformou-se em muitos aspectos ao
130
ORQJR� GDV� GXDV� ~OWLPDV� GpFDGDV�� H� WDPEpP� SRGH�VH� GL]HU� TXH� VH� FRPSOH[L¿FRX�
quanto aos tipos de ocupação e segregação socioespacial, mas o padrão de
distribuição espacial da renda pessoal segundo os dados do censo de 2010 (Figura
20��VXJHUH�D�SHUVLVWrQFLD�GH�XPD�UtJLGD�HVWUXWXUD�FHQWUR�SHULIHULD��FRP�XP�SHTXHQR�
H[WUDYDVDPHQWR�GD�FRQFHQWUDomR�HP�GLUHomR�DR�VXGHVWH��2�PHVPR�DUUDQMR�SRGH�VHU�
SHUFHELGR�QD�PHQVXUDomR�GR�tQGLFH�GH�GHVHQYROYLPHQWR�KXPDQR��,'+��QRV�EDLUURV�
(Figura 19���LQFOXLQGR��DOpP�GD�UHQGD��UHQGD�PpGLD�PHQVDO�GDV�SHVVRDV�GH����DQRV�RX�
PDLV���DV�GLPHQV}HV�GH�HGXFDomR��SRUFHQWDJHP�GD�SRSXODomR�FRP����DQRV�RX�PDLV�
DOIDEHWL]DGD��H�ORQJHYLGDGH��SRUFHQWDJHP�GD�SRSXODomR�PDLRU�GH����DQRV�UHVLGHQWH�
QR�EDLUUR��
A que tudo indica, o elevado índice de gini (0,51 segundo o IBGE e 0,65 em
������ VHJXQGR� R� UHODWyULR� GD� 218� (VWDGR� GDV� &LGDGHV� GR� 0XQGR��� LQGLFDGRU� GD�
desigualdade na distribuição de renda, mantém-se ainda como principal elemento
explicador das tensões socioambientais que tomam palco em Fortaleza, pelo menos
no nível dos bairros. Diante da complexidade dos sistemas ambientais urbanos, é
sempre muito difícil perceber a totalidade do quadro que se coloca e de suas nuances,
mas, se a abstração da quebra de resiliência puder ser aplicada a sistemas sociais,
diria que a capital cearense, tal como o próprio Estado, é já há algum tempo todo
estilhaços. Diria que as tensões que se manifestam hoje são na verdade choques
de estranhamento entre esses fragmentos que de longa data aguardam pela nova
conformação de alguma sociabilidade.
131
Figura 16. Abastecimento de água e esgotamento sanitário nos bairros de Fortaleza
)RQWH��,3(&(�������
132
Figura 17. Domicílios com banheiros e energia elétrica nos bairros de Fortaleza
)RQWH��,3(&(�������
133
Figura 18. Coleta de lixo e índice sintético de condições domiciliares nos bairros de
Fortaleza
)RQWH��,3(&(�������
134
Figura 19.�,'+��FRQÀLWRV�GH�WHUULWRULDOLGDGH�H�WD[DV�GH�KRPLFtGLR�PDLV�H[SUHVVLYDV�QRV�EDLUURV�GH�)RUWDOH]D��)RQWH��,3(&(���������&DVWUR�������������
135
Figura 20. Rendimento pessoal e pobreza extrema nos bairros de Fortaleza
)RQWH��,3(&(�������
136
���&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV
Quando me dispus a percorrer a história da cidade de Fortaleza, tinha ganas de
prospecção de um elemento explicativo bem peculiar. Algo capaz de dar substância
à intuição que me vinha sobre a proximidade à qual nos colocávamos de uma ruptura
com os elos sociais e ambientais que estão no substrato e no recheio dessa estrutura
XUEDQD��GHVVH�VLVWHPD�VRFLRDPELHQWDO�SDUWLFXODU��7DOYH]�SRU�LQWLPLGDomR�DQWH�DV�IHLo}HV�
caóticas da complexidade, é possível que tenha recorrido a um atalho: o fascínio da
violência como recurso apelativo. Esta não me é uma seara aprazível de debate, como
D�FRQVWDWDomR�GDV�PDUFDV�ÀDJUDQWHV�H�SHUVLVWHQWHV�GH�GHVXPDQLGDGHV�QD�FRQVWLWXLomR�
KLVWyULFD� GHVVH� WHFLGR� VRFLDO� WDPEpP� QmR� PH� IRUDP� GH� IiFLO� GLJHVWmR�� +DYLD�� QR�
entanto, uma cascata de perguntas órfã de respostas. Não faz muito, eu mesmo me
recordo, Fortaleza era acusada e dela se fazia pouco por esboçar ares provincianos.
$�SULPHLUD�GHVVD�¿OHLUD�GH�TXHVW}HV�TXH�VH�PH�DSUHVHQWDUDP�IRL��HQWmR��FRPR��HP�
tão curto intervalo, passamos de vila provinciana à capital recordista em pódios de
desigualdades, violências e desprezo a toda sorte de valores culturais, naturais e
SDLVDJtVWLFRV"�&RPR�GLULDP�-DQH�-DFREV�RX�+HQUL�$FVHOUDG�VREUH�ORQJHYLGDGH��PRUWH�
e vida de grandes cidades, tinha para mim que Fortaleza estava morrendo.
De fato, essas transformações se deram em muito curto período, mas não
porque seus processos causadores tenham se manifestado da noite pro dia e, sim,
porque aos possíveis indicadores de agravos futuros não foi dada a devida atenção
ou, se foi dada, não havia cultura administrativa ou sensibilidade social capaz de situá-
la com o caráter prioritário que demandavam. Assim, com inércia e naturalidade foi-
VH�WDQJHQGR�R�JDGR�KXPDQR�ÀDJHODGR�GR�FDPSR�GHVGH�RV�WHPSRV�GR�$UUDLDO�0RXUD�
Brasil e dos primeiros campos de concentração, chamados “currais do governo”, que
se prestavam j�SURWHomR�GD�VRFLHGDGH�XUEDQD�FRQWUD�SRVVtYHLV�FREUDQoDV��2�)RUWH��
em muitos sentidos, pela fragilidade que lhe revelamos congênita, fortaleceu-se e
se expandiu à negação e dreno das capacidades concorrentes dos aglomerados do
HQWRUQR��7DOYH]�QmR�VHMDP�DVVLP�WmR�GtVSDUHV�RV�WHPRUHV�GDTXHOHV�FDSLWmHV�PRUHV�
H� FRORQRV� UHIXJLDGRV� jV� SDUHGHV� IRUWL¿FDGDV� FRQWUD� DV� LQYHVWLGDV� GRV� tQGLRV� GRV�
medos modernos disseminados nas cabeças das crianças ambientadas aos circuitos
FDSVXODUHV�H�EOLQGDGRV�GRV�HQFODYHV�IRUWL¿FDGRV�DWXDLV�
Já não com a mesma inércia, mas certamente com muita naturalidade, a
137
produção e a reprodução das formas de uso e ocupação do solo urbano a partir do
WUDQVERUGR� GR� FHQWUR� DR� ¿QDO� GR� VpFXOR� ���� GHUDP�VH� SHOD� VLPSOHV� VXSUHVVmR� GD�
FREHUWXUD�YHJHWDO�GD�PDWD�GH�WDEXOHLURV�H�SHOD�HGL¿FDomR�H� LPSHUPHDELOL]DomR�GRV�
ORWHV�H�SDYLPHQWDomR�GDV� UXDV�� LPSRQGR�D�SULPD]LD�GD� IXQomR�HGL¿FDQWH� VREUH�DV�
funções ambientais do solo. Destacamos dois importantes episódios para a história
ambiental urbana de Fortaleza, que retratam as tensões entre limitações impostas
SHOR� VtWLR� �UHODWLYDPHQWH� SRXTXtVVLPDV�� GHYHPRV� SRQWXDU�� H� DV� QHFHVVLGDGHV� GH�
H[SDQVmR�H�SURGXomR�GH�VROR�XUEDQR��2�SULPHLUR�HSLVyGLR�HQYROYH�D�EDUUHLUD� ItVLFD�
ao crescimento inicial a leste da cidade, representada pelo traçado meandrico do
riacho Pajeú e o segundo episódio refere-se à transposição da linha férrea Mucuripe-
Parangaba, mais a leste e do rio Cocó, a sudeste do centro.
� 1RV� ~OWLPRV� DQRV�� LGHQWL¿FD�VH� D� FRQIRUPDomR� GH� XP� WHUFHLUR� HSLVyGLR�� (P�
������LQLFLD�VH�D�FRQVWUXomR�GH�XPD�SRQWH�VREUH�D�IR]�GR�ULR�&RFy��TXH�OLJDULD�D�3UDLD�
do Futuro à Sabiaguaba, facilitando o acesso ao litoral leste do Estado e a valorização,
multiplicação e expansão de loteamentos e infraestrutura urbana sobre a foz do sistema
ÀXYLRPDULQKR�H�VREUH�R�PDQJXH]DO�FLUFXQGDQWH��2�ULDFKR�3DMH~��DLQGD�TXH�EHQH¿FLDGR�
por um projeto de urbanização, tendo um trecho de seu curso convertido em parque
HP������� QmR� SDVVD� KRMH� GH� XP� WtPLGR� YDOH� HQJHVVDGR�� UHWL¿FDGR� H� HQFDL[RWDGR��
VXEPHUVR�jV�YLDV�H�j� VRPEUD�GRV�HGLItFLRV��0HVPR�¿P� WLYHUDP�XPD� LQ¿QLGDGH�GH�
lagoas intermitentes aterradas e trechos de canais suprimidos ou simplesmente
aniquilados em suas funções ambientais em decorrência da implementação dos
preceitos sanitaristas de captação e condução imediata dos volumes precipitados
jV�YHUWHQWHV�H�FDQDLV�GH�GUHQDJHP�DUWL¿FLDO��6H�ERD�SDUWH�GHVVHV�FRPSDUWLPHQWRV�
vivos sofreram impactos com as frentes de ocupações espontâneas nas periferias, os
golpes mais fortes à funcionalidade sistêmica certamente são aqueles desferidos pela
implementação e consolidação da infraestrutura higienista.
� (VWH�� FRP� HIHLWR�� p� XP� SRQWR� D� VH� LQYHVWLJDU� H� DPDGXUHFHU�� 2� TXDQWR� D�
infraestrutura tradicional amplamente difundida nas chamadas áreas de ocupação
consolidada, aliada ao padrão de paisagismo estéril contribuem para a construção
dos dramas e da magnitude das ameaças vivenciadas em áreas de risco. A cidade de
Fortaleza não é só desequilibrada em termos de renda e oportunidades, é sobretudo
desigual em distribuição espacial de infraestruturas, que como estamos dizendo,
não soam mais adequadas a um paradigma de sustentabilidade ambiental. Não
138
quero com isso reforçar um estímulo à modernização ambiental de infraestruturas,
que resultariam em mais acúmulo às áreas bem servidas. Quero apenas dizer que
o sistema urbano responde como um todo às diversas intervenções mutiladoras.
Que a ausência de pisos e pavimentos permeáveis, arborização adequada pública
e privada, manchas verdes e matas ciliares às margens de corpos e cursos d’água
representam problemas para todos os bairros da cidade. E que uma transição como a
ensaiada pela visão expressa no PDPFor se faz necessária também para os códigos
reguladores das formas de intervenção e obras de toda espécie.
Nessa linha, retomemos uma questão, para nós, fundamental. Por que então
discutir sociedade e meio ambiente urbanos numa perspectiva, por vezes, tão árida
GH�FRQÀXrQFLDV�H�LQWURMHo}HV��GH�FRVWXUD�WmR�FXVWRVD"�$�KLVWyULD�GD�IRUPDomR�XUEDQD�
de Fortaleza é um retrato duro, mas revelador de como é perfeitamente possível que
um pequeno segmento da sociedade aproprie-se e concentre quase que a totalidade
GDV� LQYHUV}HV� SURSLFLDGDV� SHORV� FLFORV� GH� FUHVFLPHQWR� HFRQ{PLFR�� 1mR� VHUtDPRV�
GH�WRGR�MXVWRV�VH�ODQoiVVHPRV�HVWD�FUtWLFD�DRV�WRPDGRUHV�GH�GHFLV}HV�H�jV�¿JXUDV�
LQÀXHQWHV�GH�DWp�D�SULPHLUD�PHWDGH�GR�VpFXOR�����DLQGD�TXH�FHUWDV�SUiWLFDV�VRFLDLV�
nos caiam hoje aos olhos e subjetividades como cruéis e inadmissíveis. Parece até
que a pobreza mantém um certo padrão persistente ao longo da história e que as
WUDQVIRUPDo}HV�PDLV� UDGLFDLV�HPHUJHP�GRV�ÀX[RV�GH� ULTXH]D�H�GRV�FRQVHTXHQWHV�
FRQWUDVWHV��2�HVJDUoDPHQWR�GR�WHFLGR�VRFLDO�GDULD�VH�SHOR�ODGR�GD�SDUFHOD�PRGHUQL]DQWH�
da trama, que paulatinamente se ornamenta de camadas de raros retalhos e notáveis
costuras. A segunda metade do século 20 traz a crítica contundente de Celso
)XUWDGR�DR�PLWR�PRGHUQR�GR�GHVHQYROYLPHQWR�HFRQ{PLFR��GR�EROR�D�VHU�UHSDUWLGR�H��
sobreposta às antevistas fronteiras ambientais do crescimento, esta crítica se estende
à sustentabilidade do modelo de desenvolvimento local intraurbano.
� 3DUWH� GRV� HVWXGRV� D� TXH� UHFRUUHPRV� D� ¿P� GH� DIHULU� R� HVWDGR� GD� DUWH� DWXDO�
GD� FLGDGH� HP� WHUPRV� GH� ULVFRV� VRFLRDPELHQWDLV�� FRPR� D� WHVH� GH�6DQWRV� ������� H�
R� WUDEDOKR� GH� =DQHOOD� H� FRODERUDGRUHV� �������� OHYDP� HP� FRQWD� D� YXOQHUDELOLGDGH�
ambiental como medida da ausência de infraestrutura, como ligações às redes de
água e esgoto, drenagem e carência de serviços, como coleta de lixo. A presença de
infraestrutura mínima tradicional, portanto, de base higienista garante a salubridade
do ambiente humano, a�QmR�SROXLomR�RX�D�UHGXomR�VLJQL¿FDWLYD�GH�SROXHQWHV�QR�VROR�
H�QRV�FRUSRV�KtGULFRV��VXSHU¿FLDLV�H�VXEWHUUkQHRV��1R�HQWDQWR��WHPRV�WUDEDOKDGR�DTXL�
139
com um conceito de estrutura urbana viva, de um respeito, se não às qualidades
naturais dos sistemas pré-urbanização, pelo menos às funcionalidades mantenedoras
da vitalidade do sistema.
Nesse sentido, a transição paradigmática no campo das engenharias se faz
imprescindível, porque, de certa forma, todo o sítio urbano agoniza oprimido pelo
PRGHOR�URGRYLiULR�H�HGL¿FDQWH�GH�LPSHUPHDELOL]DomR�H�HVFRDPHQWR�LPHGLDWR�GDV�iJXDV�
das chuvas. A sustentabilidade urbana desejável aqui defendida tenta ser sensível
aos processos sociais e culturais de conformação da paisagem. Mas é justamente por
compreender esses processos, como os vazios de espraiamento deliberadamente
reservados à valorização entre o centro e as periferias em Fortaleza que julgamos
não se poder abrir mão das vocações do sítio, suas potencialidades e limitações, tais
FRPR�LGHQWL¿FDGDV�QR�GLDJQyVWLFR�JHRDPELHQWDO��628=$�HW�DO���������
Se os percursos tortuosos de dinamização da economia municipal e estadual
QmR�VH�PRVWUDP�KLVWRULFDPHQWH�FRQ¿iYHLV��VREUHWXGR�SDUD�XP�HVWDGR�HVVHQFLDOPHQWH�
semiárido, pouco industrializado, possivelmente exposto a cenários futuros de
mudanças climáticas e contingências de crises próprias da inserção à economia
globalizada, uma postura de desenvolvimento consequente deveria buscar apoiar-
se preventivamente sobre bases mais sólidas. A busca pela manutenção das
funcionalidades geossistêmicas e das dinâmicas dos compartimentos vivos, podem
QmR�JDUDQWLU�IRQWHV�GH�DÀRUDPHQWR�GH�FDSLWDLV��PDV�DVVHJXUDP�HOHPHQWRV�VDOXWDUHV�j�
qualidade de vida urbana coletiva que não podem ser satisfatoriamente compensados
por estratégias individuais ou nucleares de reposição tecnológica.
A renovação da qualidade do ar, das águas, a regulação climática e a recuperação
da fertilidade dos solos, hoje largamente requisitados pelas frentes de agricultura
XUEDQD��VmR�VHUYLoRV�DPELHQWDLV�TXDOL¿FDGRUHV�GH�XP�VLVWHPD�VRFLRDPELHQWDO�XUEDQR�
saudável e seguro. Sociedades urbanas capazes de assegurar essas funções ao
ambiente intraurbano fazem-se menos dependentes e menos vulneráveis às incertezas
do futuro. Dito isso, parece até preciosismo ressaltar a relevância desses elementos
para a garantia da dignidade de camadas urbanas pauperizadas hoje, sustentadas
acima da linha da miséria unicamente pelos programas de garantia de renda mínima.
Na Fortaleza do século 21 não é incomum encontrarmos pescadores no açude Santo
$PDUR��QR�FDPSXV�GR�3LFL���QD�$Y��*HQHUDO�0XULOR�%RUJHV�RX�QD�UXD�6HEDVWLmR�GH�$EUHX��
que cortam em trechos distintos o curso do rio Cocó, assim como nas muitas lagoas,
140
todos quase sempre cobertos de aguapés, indicadores sintomáticos de séria poluição
DPELHQWDO��2�VRQKR�GD�FLGDGH�YLWRULRVD�VREUH�D�QDWXUH]D�H�HVWD�FRQVWUXomR�FRQÀLWXRVD�
em si me parecem conformar um dos maiores delírios coletivos já vivenciados pela
humanidade.
Quanto às insinuações de risco e respeito, tentamos interpretar as sucessões de
HYHQWRV�j�OX]�GH�IXQo}HV�KHJHP{QLFDV�RULHQWDGRUDV�GRV�SURFHVVRV�XUEDQRV�WDLV�FRPR�
HQVDLDGRV� SRU� /HIHEYUH� ��������$V� GLVSXWDV� SRU� HVWDEHOHFLPHQWR� HQWUH� DV� FLGDGHV�
política, comercial, industrial e algo que poderíamos chamar de cidade para pessoas
parecem não fazer tanto sentido para as cidades coloniais do novo mundo como o
fazem para as cidades européias. Ainda assim, é possível defendermos a tese sobre o
quanto a emergência de um sentido de lugar, de um enraizamento e de uma produção
de identidade contra a prevalência de uma ordem externa sugerem o balizamento de
ações de maior respeito tanto aos indivíduos quanto ao ambiente urbano, mesmo que
SRU�YH]HV�HVWH�UHVSHLWR�DÀRUH�GH�PDQHLUD�VHOHWLYD��1HVVD�SHUVSHFWLYD�VH�DVVHQWDP�DV�
SRVWXUDV�GH�HPEHOH]DPHQWR�SDLVDJtVWLFR�GRV�DGPLQLVWUDGRUHV�GR�VpFXOR�����PDV�TXH�
tem a dizer tal postulação sobre os desdobramentos relativos à implementação dos
SODQRV�PRGHUQRV�GH�1HVWRU�GH�)LJXHLUHGR��GH�6DER\D�5LEHLUR�H�GH�+pOLR�0RGHVWR"�
As administrações municipais entre divergências e consensos optaram quase que
pura e simplesmente pela adoção dos planos viários, quando muito. Mesmo que entre
os relatos surjam, sem rodeios, comentários de rechaço à contratação de urbanistas
cariocas, como argumento de rejeição aos planos, seríamos mais cautelosos se
elencássemos como causa maior o receio quanto à desestruturação de um modelo
GH� UHSURGXomR� HFRQ{PLFD� H� VRFLDO� TXH� YLQKD� GDQGR� FHUWR� SDUD� DTXHOHV� VHWRUHV�
apoderados.
De todo modo, esta construção teórica se mostra mais útil à segunda metade
do século 20, quando vem à tona o projeto simultâneo de cidade para o turista e
para as elites enclausuradas. Mostra-se útil porque, da saturação desse modelo de
cidade privada, modelada para carros e do abandono dos espaços públicos, começa
a ganhar força o discurso do direito à cidade e a defesa de uma cidade para pessoas,
sustentável, justa e democrática. Esse modelo alternativo contrapõe-se à cidade
vitrine, trabalhada para o consumo, da sociedade do consumo, porque dele emerge o
valor de uso dos espaços compartilhados, um sentido de qualidade de vida coletiva,
que é propriedade percebida pelo indivíduo, mas quando imerso em uma sociedade
141
VDXGiYHO��HTXLOEUDGD��2�GLUHLWR�j�FLGDGH��QR�HQWDQWR��QmR�VH�WUDWD�GH�XP�GHVGREUDPHQWR�
histórico necessário, algo que cedo ou tarde acontecerá, muito menos quando falamos
de Brasil.
Enquanto concluo a redação deste texto, experimento na pele o que Mike
'DYLV� ������� FKDPD� GH� WUDLomR� GR�(VWDGR��$� VRFLHGDGH� IRUWDOH]HQVH� DQR� SDVVDGR�
HOHJHX�5REHUWR�&OiXGLR�����������SDUD�SUHIHLWR��FDQGLGDWR�DSRLDGR�SHOR�JRYHUQDGRU�
HP�H[HUFtFLR�&LG�*RPHV������������6XD�FDQGLGDWXUD�IRL�DPSODPHQWH�¿QDQFLDGD�SRU�
HPSUHLWHLUDV��',1,=���������TXH�ORJR�WUDWDULDP�GH�SUHVVLRQi�OR�SDUD�TXH�VH�LQVWDODVVH�
HP�)RUWDOH]D�R�PRGHOR�GH�FLGDGH�FDQWHLUR��2�JUXSR�GH�&LG�*RPHV�GHVSHQGHX�WRGD�
a energia política de que dispunha para garantir que esta capital compusesse o hall
das cidades sedes da Copa do Mundo de 2014. Dessa forma, desde 2010, quando o
FRPSURPLVVR�FRP�D�),)$�IRL�¿UPDGR��JDQKRX�FRUSR�XPD�VpULH�GH�FRQÀLWRV�UHODFLRQDGRV�
a remoções de moradias para conformar o traçado urbano às demandas do pacote de
PRELOLGDGH�SDUD�D�&RSD��(QWUH�HODV��D�PDLV�QRWiYHO��D�LPSODQWDomR�GR�9HtFXOR�/HYH�
VREUH�7ULOKRV��9/7���TXH��VHJXQGR�UHSRUWDJHP�SXEOLFDGD�GR�3RUWDO�*���$/9(6���������
seria responsável por 2.185 desapropriações, envolvendo cerca de 5 mil famílias. Já
HP�������D�FDUJR�GD�SUHIHLWXUD�VmR�OHYDQWDGRV�RV�FDQWHLURV�GH�REUDV�UHIHUHQWHV�jV�
vias de conexão da zona hoteleira ao estádio Castelão. Contando com a reforma do
SUySULR�HVWiGLR��GH�SRUWRV�H�GR�DHURSRUWR��HVVDV�LQWHUYHQo}HV�UHSUHVHQWDP�XP�¿OmR�GH�
5�������ELOKmR�GH�LQYHVWLPHQWR�QR�&HDUi�SDUD�VHU�DERFDQKDGR�SHOD�FRQVWUXomR�FLYLO�
Não satisfeitos, em julho desse mesmo ano, logo após a jornada de manifestações
de junho, que tiveram como gatilho o aumento do valor da passagem do transporte
público em São Paulo e a realização dos jogos da Copa das Confederações, o prefeito
de Fortaleza anuncia a construção de dois viadutos no cruzamento das avenidas Eng.
6DQWDQD�-~QLRU�H�$QW{QLR�6DOHV��VHQGR�TXH�XPD�GDV�DOoDV�DFDUUHWDULD�D�UHWLUDGD�GH�
PDLV� GH� ���� iUYRUHV� SHUWHQFHQWHV� DR� 3DUTXH� (FROyJLFR� GR�&RFy��2� GHVSURSyVLWR�
desta obra e o hermetismo impositivo de modelo de gestão top-down antiparticipativo,
associado a estratégias de ludíbrio e convencimento público – registre-se aqui a
organização por militância tangida da, possivelmente, primeira manifestação pró-
YLDGXWRV�GD�+LVWyULD�±�GHVHQFDGHDUDP�j�SRUWD�GD�PLQKD�FDVD�R�TXH�VHULD�SDUD�SDUWH�
de nós fortalezenses o equivalente ao levante popular do parque Gezi e da praça
7DNVLP�HP�,VWDPEXO��R�DFDPSDPHQWR�2FXSH�&RFy��TXH�ORJURX�SHUPDQHFHU�SRU�WUrV�
meses, entre despejos e liminares judiciais, sobre a área do parque onde inicialmente
142
IRUDP�GHUUXEDGDV����iUYRUHV�
Com a desfecho do imbróglio na Justiça, dando ganho de causa à prefeitura
e liberando a continuidade das obras dos viadutos, o pareamento político entre
JRYHUQRV� HVWDGXDO� H� PXQLFLSDO� WRPD� I{OHJR� H� LQLFLD� XPD� DJHQGD� GH� RIHQVLYD�
empreitera. Mencionamos a iniciativa por parte do Governo do Estado de construção
GR�$&48È5,2��XP�FRPSOH[R�WXUtVWLFR�D�VHU�HUJXLGR�VREUH�R�DQWLJR�SUpGLR�GR�'12&6��
ao lado do antigo porto, o que conduziria, conforme projeto de revitalização da área à
UHPRomR�GD�FRPXQLGDGH�GR�3RoR�GD�'UDJD��¿[DGD�DOL�Ki�PDLV�GH����DQRV��+i�SRXFR�
menos de um mês a prefeitura convocou o, cada vez mais experiente, batalhão de
choque da guarda municipal para protagonizar o despejo da comunidade do Alto da
3D]�QR�EDLUUR�9LFHQWH�3LQ]yQ��DOHJDQGR�D�QHFHVVLGDGH�GH�FRQVWUXomR�GH�XP�FRQMXQWR�
habitacional na área. Já esta semana, foi anunciada a execução do primeiro projeto
do Plano de Ações Imediatas em Transporte e Trânsito de Fortaleza� �3$,77��� TXH�
prevê a inversão de sentido de vias na Aldeota, a remoção de cerca de 200 árvores
H�R�FRUWH�GD�3UDoD�3RUWXJDO��D�¿P�GH�PHOKRUDU�R�ÀX[R�GR�WUiIHJR�QR�EDLUUR��$�SUDoD�
FLUFXODU�IRL�FRQVWUXtGD�HP������H�DJRUD�p�DFXVDGD�GH�QXQFD�WHU�VLGR�XPD�SUDoD��PDV��
sim, uma rotatória.
� 'DYLV��������S������UHIHULD�VH�j�WUDLomR�GR�(VWDGR�HP�PHQomR�jV�SURPHVVDV�
de garantias de direitos aos pobres nunca cumpridos e aos seus sonhos esfacelados.
Para representar a transição entre o lento e o rápido processo de urbanização
GHVHQFDGHDGR�HQWUH������H������QRV�SDtVHV�GR�7HUFHLUR�0XQGR��FRP�D�LQYDVmR�GDV�
cidades por migrantes rurais, ele recorre à imagem de um dilúvio. Aqui, buscando
qualquer ranhura de resiliência entres os elos que sustentam a tecitura da sociedade
XUEDQD�IRUWDOH]HQVH��WRPHL�D�LPDJHP�GH�:DLVHO¿V]���������GH�TXH�D�YLROrQFLD�XUEDQD�
não passava da ponta evidente do iceberg, e sugeri a minha própria visão perturbadora
GH�QHYH�H� FRUSRV�JpOLGRV�QHVVHV� WUySLFRV�iULGRV�� SUHVWHV�D� ¿JXUDU�XPD�DYDODQFKH�
destruidora. Para mim, o hiato profundo entre uma existência humana vulnerável, de
exposição diária a riscos e um tratamento de respeito, do abandono dos privilégios
DR�UHFRQKHFLPHQWR�GD�XQLYHUVDOLGDGH�GH�GLUHLWRV�FRQ¿JXUDP�GXDV�DJHQGDV�FRWLGLDQDV�
muito distintas aos governos. Se este ponto tiver sido aqui, não resolvido, mas, pelo
contrário, bem espanado, espalhado e revolvido, hei de sentir-me contemplado.
143
Referências
ALDIGUERI, C. R. Rios e ocupação urbana: o Rio Cocó em Fortaleza. 2010. UFRJ/FAU, Rio de
Janeiro, 2010.
$/9(6��*DEULHOD��)DPtOLDV�j�EHLUD�GH�WULOKRV�UHVLVWHP�j�REUD�GR�9/7�SDUD�&RSD�HP�)RUWDOH]D��*��&(��
)RUWDOH]D�����GH]��������'LVSRQtYHO�HP���KWWS���J��JORER�FRP�FHDUD�QRWLFLD���������IDPLOLDV�EHLUD�GH�
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2011
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v. 64, n. 1, 2012.
146
�XiXdpXa�¹_X^a
Considero este trabalho um testemunho em favor da complexidade do conviver
XUEDQR�HP�VHQWLGR�JHUDO�H�SDUWLFXODU��7RGD�FRQVWUXomR�DTXL�HPSUHHQGLGD�UHVXOWD�GH�XP�esforço para que melhor possamos situar a cidade no contexto dos acúmulos histó-
ricos de debates em torno do desenvolvimento sustentável. Penso ter sido capaz de
apresentar pontos de escape para o ciclo vicioso das medidas emergenciais e urgên-
cias consumidoras das agendas municipais, porque enxergo no regime de urgência o
primo pobre da democracia. Na composição desta peça, propositadamente poupei-me
da tarefa de argumentar o porque da necessidade de buscarmos os caminhos para o
DOFDQFH�GH�VRFLHGDGHV�PDLV�MXVWDV��GHPRFUiWLFDV�H�VXVWHQWiYHLV��7HQWHL�IRUFDU�PH�QD�VLJQL¿FDomR�GHVVHV�WHUPRV�H�HP�VXD�GH¿QLomR�VRE�DOJXPDV�SRXFDV�SHUVSHFWLYDV�TXH�suponho estratégicas para o momento atual. De toda a literatura técnica com que me
entranhei e, como forma de responder a alguma expectativa de proposições objetivas
nesse sentido, retrucaria que estes não me parecem tempos de professianismo tec-
nocrático. As fertilizações de especialistas sobre o que fazer com as cidades são, de
certo, imprescindíveis para o enriquecimento do debate, mas, antes disso, há diante
de nós um descolamento abismal entre poderes e base popular e cuja necessidade de
aproximação e reatamento tornam tudo o mais secundário. Feitas estas colocações,
encerro este discurso e agradeço a atenção até aqui dispensada.
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DQGD�(GGLH��GLVFR�&DUQDYDO�QR�,QIHUQR��������
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