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  • CinC ia e Pbl iCo caminhos da divulgao cientfica no Brasil

  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Reitor Carlos Lessa

    Vice-Reitor Srgio Fracalanzza

    Coordenador do Forum de Cincia e Cultura Godofredo de Oliveira Neto

    Casa da Cincia Centro Cultural de Cincia e Tecnologia da UFRJ

    Conselho Gestor Carlos Fausto Ennio Candotti Fatima Brito Ildeu de Castro Moreira Pedro Persechini

  • OrganizadoresLuisa Massarani Ildeu de Castro Moreira Fatima Brito

    Autores

    Ennio CandottiHenrique Lins de BarrosIldeu de Castro MoreiraLuisa MassaraniMiguel Osrio de AlmeidaJos Reis (entrevista)Erika Franziska WerneckJos Renato MonteiroSergio BrandoDenise da Costa Oliveira SiqueiraUlisses CapozoliMnica TeixeiraAngelo Machado (entrevista)Gilson Antunes da SilvaMaurcio Cardoso AroucaVanessa Fernandes GuimaresEquipe da Casa da Cincia/UFRJ

    CasadaCincia/UFRJ2002

    CinC ia e Pbl iCo caminhos da divulgao cientfica no Brasil

    Alberto GasparMnica MacedoCarlos A. ArgelloCarlos FaustoClaudia JurbergEder Cassola MolinaCelso Dal R CarneiroFernando Flvio Marques de Almeida Eduardo de Campos ValadaresFabiane CavalcantiGraciela Arbilla de KlachquinJos Monserrat FilhoSergio AdeodatoTania C. de Arajo-JorgeWagner de Oliveira Wilson da Costa Bueno

  • Copyright by Casa da Cincia Centro Cultural de Cincia e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    ISBN 85-89229-01-7

    Coordenao Editorial

    Luisa Massarani

    Produo Editorial

    Fatima BritoSimone Martins

    Reviso

    Adriana VicenteSimone Martins

    Ilustrao da Capa

    Candido PortinariGrupo pintura a guache e grafite/papelo 23,5 x 39 cmColeo particular - Rio de Janeiro - RJOs direitos autorais da imagem e do cromo pertencem, respectivamente, a Joo Candido Portinari e ao Projeto Portinari.

    Agradecimentos

    Mauricio Cardoso AroucaRegina Ferraz

    Casa da CinciaCentro Cultural de Cincia e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de JaneiroRua Lauro Mller, 3, Botafogo - Rio de Janeiro - CEP: 22290.160Tel./Fax: (21) 2542-7494 e-mail: [email protected]://www.casadaciencia.ufrj.br

    Pedidos para Editora UFRJ

    Tel.: 2295-1595 Ramal: 111 e 124http://www.editora.ufrj.br

    Fundao UniversitriaJos Bonifcio

    Apoio

    U58 Cincia e pblico: caminhos da divulgao cientfica no Brasil. Organizao e apresentao de Luisa Massarani, Ildeu de Castro Moreira e Fatima Brito. Rio de Janeiro: Casa da Cincia Centro Cultural de Cincia e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Forum de Cincia e Cultura, 2002.

    232 p. ; 15 x 23 cm (Srie Terra Incgnita, v. 1)

    1. Divulgao cientfica. 2. Cincia e pblico. I. Massarani, Luisa (Org.). II. Moreira, Ildeu de Castro (Org.). III. Brito, Fatima (Org.).

    CDD: 070.0015

    Ficha Catalogrfica elaborada pela Diviso de Processamento Tcnico - SIBI/UFRJ

    Projeto Grfico

    Edson CarvalhoUlisses Schnaider

    Capa

    Edson Carvalho

    Selo da Srie

    Marlos Vaz

    Editorao Eletrnica

    Ulisses Schnaider

  • Sumrio

    Apresentao 09 Luisa Massarani Ildeu de Castro Moreira Fatima Brito

    Artigos e Entrevistas

    Cincia na educao popular 15 Ennio Candotti

    A cidade e a cincia 25 Henrique Lins de Barros

    Aspectos histricos da divulgao cientfica no Brasil 43 Ildeu de Castro Moreira Luisa Massarani

    A vulgarizao do saber 65 Miguel Osrio de Almeida

    Ponto de vista: Jos Reis 73 Entrevista

    E por falar em cincia... no rdio! 79 Erika Franziska Werneck

    Cincia e TV: um encontro esperado 89 Jos Renato Monteiro Sergio Brando

    Cincia e poder no universo simblico do desenho animado 107 Denise da Costa Oliveira Siqueira

    A divulgao e o pulo do gato 121 Ulisses Capozoli

  • Pressupostos do jornalismo de cincia no Brasil 133 Mnica Teixeira

    Os dois lados de Angelo Machado 143 Entrevista

    As exposies de divulgao da cincia 155 Gilson Antunes da Silva Mauricio Cardoso Arouca Vanessa Fernandes Guimares

    Cincia e cultura emboladas? 165 Equipe da Casa da Cincia/UFRJ

    A educao formal e a educao informal em cincias 171 Alberto Gaspar

    Revistas de divulgao cientfica: do texto ao hipertexto 185 Mnica Macedo

    Depoimentos

    A cincia popular 205 Carlos A. Argello

    Entre cincia e educao 207 Carlos Fausto

    Do nada ao concreto 209 Claudia Jurberg

    A divulgao cientfica na rea de geofsica 211 Eder Cassola Molina

    Acima ou abaixo do cho em que pisamos 213 Celso Dal R Carneiro Fernando Flvio Marques de Almeida

  • Experimentao com materiais simples 215 Eduardo de Campos Valadares

    Contra a corrente 217 Fabiane Cavalcanti

    O nosso dia-a-dia e a qumica 219 Graciela Arbilla de Klachquin

    O vertical e o horizontal na cincia do Brasil 221 Jos Monserrat Filho

    Jornalismo cientfico e as fantasias futursticas 223 Sergio Adeodato

    O papel vocacional da divulgao cientfica 225 Tania C. de Arajo-Jorge

    Luzes sobre a cincia nacional 227 Wagner de Oliveira

    Jornalismo cientfico como resgate da cidadania 229 Wilson da Costa Bueno

  • APRESENTAO

    Caminhos e veredas da divulgao cientfica no Brasil

    Muitas iniciativas ligadas divulgao da cincia tm

    despontado no Brasil nas ltimas duas dcadas. Novos centros e

    museus de cincia foram criados, livros e revistas foram

    publicados em nmero crescente, conferncias pblicas e eventos

    divulgativos se espalharam pelas principais cidades do pas, temas

    da biotecnologia moderna galvanizaram interesse em jornais e

    na TV.

    Apesar desse esforo, estamos ainda longe de uma

    divulgao cientfica de qualidade e que atinja amplos setores

    da populao brasileira; um caminho longo e tortuoso ainda

    est por ser percorrido. Do ponto de vista da formao de

    profissionais na rea de comunicao em cincia, as iniciativas

    so incipientes e o quadro se mostra ainda bastante frgil do

    lado das anlises e reflexes tericas sobre as atividades de

    divulgao. Freqentemente, a divulgao cientfica vista e

    praticada ou como uma atividade voltada sobretudo para o

    marketing cientfico de instituies, grupos e indivduos ou como

    uma empreitada missionria de alfabetizao de um pblico

    encarado como um receptculo desprovido de contedo. Entre

    os desafios permanentes, esto a anlise do papel, dos rumos,

    das estratgias e das prticas da divulgao cientfica e o

    entendimento das relaes entre cincia e pblico e da insero

    cultural da cincia.

    Enveredar-se por esses caminhos, avaliar o significado

    atual da divulgao cientfica, discutir seus pressupostos e suas

    prticas, empenhar-se em torn-la mais eficaz e integrada nossa

    realidade social, explorar novos meios, temas e enfoques so

  • CINCIA E PBLICO10 .

    algumas das metas para as quais a srie Terra Incgnita pretende

    contribuir. Criada pela Casa da Cincia Centro Cultural de

    Cincia e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    uma de suas tarefas ser disponibilizar textos que permitam

    anlises mais aprofundadas das atividades divulgativas e fornecer

    um embasamento terico qualificado que facilite a abertura de

    novos caminhos e veredas.

    Os dois primeiros livros da srie consistem de coletneas

    de artigos que abordam aspectos gerais, e sob ticas diversas,

    da divulgao da cincia. Neste primeiro volume, reunimos

    contribuies que traduzem experincias concretas, e as reflexes

    delas decorrentes, de vrios atores dessa rea no Brasil. No

    segundo livro, que j est a caminho, estaro reunidos artigos

    de autores de vrios pases, todos com trabalhos significativos,

    centrados especialmente na interface entre cincia e pblico.

    Constam do presente volume textos que analisam o

    contexto mais geral da educao cientfica e da democratizao

    do conhecimento e dos usos da cincia. Aborda-se tambm a

    relao entre o ensino formal e o informal e, pela sua importn-

    cia, d-se destaque particular literatura infantil ligada cincia.

    No sentido de perceber melhor a divulgao como um processo

    historicamente condicionado e de recuperar experincias e

    eventos passados, o livro traz um apanhado da histria da

    divulgao cientfica no Brasil, um artigo pioneiro publicado

    pelo fisiologista Miguel Osrio de Almeida, nos anos 30 do

    sculo passado, e uma entrevista com o decano do jornalismo

    cientfico no Brasil, Jos Reis, recentemente falecido.

    Em seguida, apresentada uma seqncia de textos que

    discutem diferentes meios e instrumentos utilizados na divul-

    gao, entre eles os jornais dirios, o audiovisual, o rdio, o

    teatro, os desenhos animados e as exposies. Finalizando o

    volume, so includos depoimentos de diversos profissionais que

    trabalham na rea, refletindo uma experincia rica e diversificada

    proveniente da ao de jornalistas e cientistas.

  • APRESENTAO 11.

    A divulgao cientfica uma atividade em permanente

    (re)construo, em particular no Brasil. Consolid-la, melhorar

    sua qualidade e ampli-la para incorporar grandes parcelas

    marginalizadas de nossa populao uma tarefa imensa, que

    s poder ser tecida se contar com direcionamentos gerais

    consistentes. E, principalmente, se for transformada em um

    processo coletivo suficientemente amplo, que envolva

    instituies de pesquisa, universidades, comunicadores,

    cientistas, educadores, estudantes e o pblico em geral. Nesse

    sentido, e com essa esperana, nada melhor do que recordar o

    processo de gerao do novo que emerge do canto coletivo de

    Joo Cabral de Melo Neto:

    Um galo sozinho no tece uma manh:ele precisar sempre de outros galos.De um que apanhe esse grito que elee o lance a outro; de um outro galoque apanhe o grito de um galo antese o lance a outro; e de outros galosque com muitos outros galos se cruzemos fios de sol de seus gritos de galo,para que a manh, desde uma teia tnue,se v tecendo, entre todos os galos. (...)

    Os organizadores

  • Art igos e entrevistAs

  • * Professor do Departamento de Fsica da Universidade Federal do Esprito Santo.1 Este texto est baseado em conferncia realizada em Nova Delhi, em abril de 1999, por ocasio dorecebimento do prmio Kalinga de divulgao cientfica de 1998, que foi compartilhado com a sra.Regina Paz Lopes, das Filipinas.2 Declarao sobre a cincia e o uso do conhecimento (verso preliminar), Unesco Conselho daUnio Internacional das Sociedades Cientficas. Jornal da Cincia, Rio de Janeiro, n. 407, mar. 1999.

    CINCIA NA EDUCAO POPULAREnnio Candotti*

    O papel do cientista na divulgao cientfica1

    Escrever para todos, quando estudamos a natureza, os sereshumanos ou a sociedade, exige vontade de representar o que imagi-namos, entendemos ou acreditamos entender, com palavras e desenhos.Acostumados a escrever para o leitor especializado, no o fazemos coma mesma naturalidade para o pblico comum, leigo. esse fato dacultura cientfica de nosso tempo que a fundao indiana Kalinga,com seu incentivo popularizao da cincia, a Unesco e importantessetores da comunidade cientfica tentam mudar.

    O desafio no simples; em cinqenta anos avanamos pouco.Talvez mais do que nos anos 50, saibamos hoje, com maior clareza,qual a importncia de contar a todos o que fazemos e pensamos, para ademocracia e para o prprio reconhecimento social do valor da pesquisacientfica. Nas sociedades democrticas, educar e prestar contas doque se estuda e investiga constituem imperativo categrico fundamental.

    A livre circulao das idias e resultados de pesquisas fundamental para o prprio avano da cincia, o exame de suasimplicaes ticas e o enriquecimento da educao.2 Esses so motesdo documento que a Unesco preparou para a conferncia mundialsobre a cincia, realizada em Budapeste, em junho de 1999. Mascomo promover a circulao veloz dos conhecimentos, se os prpriospesquisadores resistem em escrever, s vezes por temer a imprecisode suas imagens e a rapidez com que elas possam se difundir. Talvezseja oportuno entender melhor o valor da divulgao das idias parao grande pblico, feita pelo prprio cientista, e a importncia decontar o percurso realizado e as imagens que o orientaram nacaminhada. o que tentarei fazer.

  • CINCIA E PBLICO16 .

    H uma observao de J. Willard Gibbs, de 1881, que, deincio, vale a pena lembrar: Um dos principais objetivos da pesquisaterica em qualquer rea do conhecimento achar o ponto de vista apartir do qual o assunto se apresenta em sua maior simplicidade.3

    Acredito que ningum melhor que o autor de um estudo podercontar onde fica esse observatrio privilegiado e, principalmente,como ele o encontrou. A soluo dada ao problema que ele estuda,em geral, independer da particular escolha do ponto de vista, masas imagens que a ela associamos guardam com fora a marca dossucessivos passos que o autor percorreu.

    Por outro lado, o valor, muitas vezes enfatizado na divulgaocientfica, das intuies e insights deveria ser moderado pelarecomendao de G. Polya: Freqentemente importa pouco o queimaginamos, mas sempre importa como testamos nossa suposio.4

    E novamente ningum melhor do que o prprio cientista, autor doartigo que divulga sua pesquisa, para contar como test-la. Ao ser oprimeiro divulgador, expe suas idias e o modo como elas setransformaram em resultados e novas percepes do mundo. Abre-se, assim, uma discusso, e torna possvel que jornalistas cientficos eautores de textos didticos ampliem, informados, a sua difuso.

    A divulgao das pesquisas cientficas para o pblico, quandopossvel, deveria ser vista como parte das responsabilidades dopesquisador, de modo semelhante publicao de suas pesquisas emrevistas especializadas. Os caminhos da divulgao tm hoje outrosrumos. Passam pelos estreitos vales traados pelos meios decomunicao globais e seus mercadores. Os imperativos ticos (se osh) desse mercado raramente coincidem com os da educao e dacincia. Acredito mesmo que, nesse conflito, possamos encontraralgumas das razes que limitam uma maior circulao das idias edas informaes cientficas para o grande pblico. Um obstculo quea Unesco e cientistas comprometidos com a popularizao da cinciadevero superar, para promover os princpios da Carta de Budapeste.No estamos sozinhos nesse conflito com os valores do mercado daeconomia; no ser difcil encontrar importantes aliados, se osprocurarmos e com eles desejarmos caminhar.

    3 GIBBS, J. W. apud WINFREE, A. T. The geometry of biological time. Berlim: Springer-Verlag, 1990.4 POLYA, G. A arte de resolver problemas. Rio de Janeiro: Editora Intercincia, 1978.

  • CINCIA NA EDUCAO POPULAR 17.

    A responsabilidade social do cientista

    H uma dimenso tica da divulgao cientfica na qual eugostaria de me deter: a circulao das idias e dos resultados depesquisas fundamental para avaliar o seu impacto social e cultural,como tambm para recuperar, por meio do livre debate e confrontode idias, os vnculos e valores culturais que a descoberta do novo,muitas vezes, rompe ou fere. Nesse sentido, a divulgao no apenaspgina de literatura, na qual as imagens encontram as palavras (quandoas encontram), mas exerccio de reflexo sobre os impactos sociais eculturais de nossas descobertas.

    O transplante de um rgo de um ser humano para outro um fato de cincia mdica que revoluciona costumes e valoresmilenares.5 A discusso que acompanha os transplantes de rgos sem dvida to importante para os seres humanos das mais diversasculturas quanto a pesquisa cientfica que possibilitou o prpriotransplante. Os limites das manipulaes com seres humanos tmdimenses tcnicas e ticas que transcendem os estreitos corredoresdos hospitais, dos institutos de pesquisa ou at mesmo dos respeitveisconselhos de biotica. Informar essa discusso, de modo que os valoresnovos possam ser pensados e os antigos respeitados arte complexade mltiplas dimenses humanas, cientficas e culturais.

    Acredito que esse aspecto da divulgao da cincia, uma vezque o pblico leigo insisto tambm deve ser alcanado, responsabilidade do cientista e, a meu ver, deveria ser item dofinanciamento pblico da prpria pesquisa. Dificilmente podemosimaginar que fundos privados, provenientes de empresas interessadasna comercializao dos produtos das pesquisas, investiriam recursospara promover a livre discusso sobre as repercusses ticas dasinovaes ou descobertas por eles financiadas.

    desafio dos nossos tempos preservar a capacidade definanciamento pblico para esse exame crtico e para garantir aexistncia de foros permanentes, habilitados a orientar e balizar oscaminhos das pesquisas e seus usos. A questo da clonagem de seresvivos e do patenteamento do seqenciamento gentico so casosexemplares ainda no resolvidos.

    5 Corpo humano: mercadoria ou valor. Cincia Hoje/SBPC, Rio de Janeiro, n. 105, nov. 1994.

  • CINCIA E PBLICO18 .

    Por outro lado, na complexa relao entre o cientista e a sociedade,deveramos incluir o papel das instituies cientficas, a quem, a meuver, cabe mais do que ao cientista a responsabilidade poltica do bomou mau uso dos avanos e descobertas cientficas. So as instituies osresponsveis ltimos pelo uso ponderado dos recursos e pelas avaliaesdos resultados e seu significado. a elas que os governos e a sociedadeatribuem a responsabilidade pelo impacto de tudo aquilo que ocorrenos laboratrios que levam seu nome. So as instituies pblicas universidades, institutos etc. as nicas que tm a possibilidade deresistir s presses dos interesses econmicos ou corporativos. Deixaressa responsabilidade aos indivduos, mesmo que cientistas respeitveis,seria abandonar a possibilidade de preservar, entre nossos ideais, o deconstruir um mundo mais justo e igualitrio. Por mais que as presseshoje sejam contrrias, o papel do Estado e seus institutos na definio,no controle e na execuo da poltica da cincia fundamental. Cabera ns, cientistas e cidados, zelar pelo funcionamento democrtico dessesinstitutos, bem como informar e promover a discusso dessas polticascom dados e reflexes que o bom senso recomendar.

    A enquete de Ciencia Hoy

    Em outubro de 1998, por ocasio da comemorao dos dez anosde sua fundao, a revista de divulgao cientfica argentina CienciaHoy, publicou uma pesquisa de opinio que trouxe informaesinteressantes sobre o papel da cincia na sociedade e o modo como asociedade v a cincia e os cientistas naquele pas.6

    Transcrevo algumas perguntas e os nmeros, em porcentagens,das respostas:

    1. Qual o papel da cincia no desenvolvimento dos argentinos?R: Pouco importante: 65%; nada importante: 13%; muito

    importante: 24%.2. Quem se beneficiar dos avanos da cincia no futuro?R: A cincia tender a ser mais exclusiva: 48%; estar

    disposio de um maior nmero de pessoas: 41%; norespondeu ou no sabe: 11%.

    3. A cincia traz benefcios ou prejuzos para a sociedade?

    6 Que piensam los argentinos de la ciencia? Ciencia Hoy, Buenos Aires, n. 48, p. 54, set./out. 1998.

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    R: Ajuda a melhorar a qualidade de vida para a populao: 55%;pode causar efeitos positivos ou negativos, dependendo dascircunstncias: 23%; aumenta as desigualdades porque seusprodutos so mal distribudos: 22%.

    Surpreende aqui que, nas faixas etrias de 18 a 20 anos, as dvidassejam menores; os jovens so decididamente mais cticos: 74% cremque a cincia levar desumanizao, por causa da sua dependncia datecnologia; 67% temem que a cincia possa produzir descobertasnocivas humanidade; 64% crem que ela tornar obsoletas ashabilidades humanas; 55% acreditam que a atividade de pesquisa atendea interesses particulares antes que ao bem comum.

    4. mais contundente, no entanto, a resposta pergunta: Aque motivaes respondem os pesquisadores na Argentina?

    R: Aos interesses econmicos de quem financia as pesquisas:36%; aos seus prprios objetivos profissionais: 33%; aprojetos nacionais de C&T: 10%. Vale a pena observar queestas ltimas respostas so de toda a amostra, e no apenasdos jovens.

    5. Finalmente, as respostas pergunta O que mais importantepara o desenvolvimento de uma sociedade?

    R: educao: 71%; justia: 33%; sade: 28%; economia: 27%;cultura: 11%; tica: 9%; segurana: 7%; cincia: 5%.

    O quadro revela alguns aspectos do porqu a sociedade no secomove frente aos reclamos por mais recursos para C&T (naquele pas,no Brasil e, acredito, em outros tambm). Ela quer saber mais o qu sefaz em cincia e para qu feito. Quer ter alguma garantia de que osrecursos e as prioridades para a cincia enriqueam a educao e evitema excluso da maioria da populao dos benefcios dos avanos cientficos.Somente assim, pelas indicaes da pesquisa, contando para todos oque fazemos, se os convencermos, poderemos um dia ocupar posiomelhor nas prioridades da sociedade.

    A carta de Budapeste

    As comisses da Unesco e da International Concil for Science(ICSU) que prepararam a primeira verso da carta de Budapeste tinhamclareza sobre como o pblico entende a cincia. Os resultados dapesquisa de Buenos Aires, provavelmente, com pequenas alteraes,seriam colhidos tambm no Rio de Janeiro, em Londres ou Delhi.

  • CINCIA E PBLICO20 .

    E a carta vai mais longe: sua principal preocupao garantir a livrecirculao das idias e informaes cientficas, que hoje cerceada porinteresses particulares e corporativos que respondem aos valores dasrendas da economia, diferentes dos que movem ou gostaramos quemovessem os laboratrios onde se produzem conhecimentos.

    A carta registra com justia que

    O conhecimento possibilitou aplicaes que tm sido de grandebenefcio para a humanidade: a expectativa de vida cresceu, a cura dedoenas se tornou possvel, a produo agrcola aumentou. As novastcnicas de comunicao e informao abriram oportunidades semprecedentes para interao entre povos e indivduos.

    Afirma, tambm, que todos esses benefcios, no entanto, estodistribudos de forma desigual, o que ampliou o desnvel entre pasesdesenvolvidos e em desenvolvimento e a aplicao dos avanostecnolgicos tem sido fonte de desequilbrio e excluso social. Emseguida, o documento de Budapeste se compromete com um desafiode elevado porte: ser preciso tambm fortalecer a confiana e o apoio cincia por meio de um novo contrato social. E acrescenta: O usodo conhecimento cientfico deve respeitar a biodiversidade e os sistemasde apoio vida em nosso planeta.

    A proposta de um novo contrato social ou talvez melhorcontratos, uma vez que as sociedades que convivem na Terra sodiferentes e tm histrias diferentes revela a disposio de negociare eventualmente rever e atualizar, premissas que orientaram o fazercientfico nesses ltimos cinqenta anos. Possivelmente, imaginoeu, caminhando em direo a uma maior participao dasinstituies cientficas na melhor compreenso e soluo dos gravesdesequilbrios do desenvolvimento e no empenho em reduzir asdiferenas e injustias sociais.

    Preocupa-me, nesse aspecto, a ausncia, em tal pargrafo dodocumento, de uma meno, ao lado do respeito biodiversidade eos sistemas de apoio vida, idia de que o uso do conhecimentocientfico deve respeitar tambm a diversidade social e cultural queencontramos em nosso planeta. Caso contrrio estou convencido ,os nossos esforos para dar solues aos desafios do desenvolvimentoestaro destinados, novamente, ao fracasso.

    Cinqenta anos de lutas pela institucionalizao da cincia epelo seu bom uso deveriam nos ter ensinado que no podemos oferecer

  • CINCIA NA EDUCAO POPULAR 21.

    apenas uma nica soluo aos complexos problemas do desenvolvimentoe da justia social. Sabemos que estas dependem do ponto de vista deonde so observados e, sobretudo, de como so implementadas outestadas as solues. Os parmetros de cultura e histria de cadasociedade devem ser considerados com sabedoria, quando procuramossolues de cincia para atingir o desenvolvimento e o progresso local.

    Em outro ponto, o documento enfatiza corretamente queo setor pblico deve financiar a pesquisa cientfica principalmentecom objetivos de longo prazo e gerar aplicaes de relevncia social.Mais adiante, toca em uma questo de enorme importncia, para aqual deveremos nos preparar com extremo cuidado, se desejarmosque as recomendaes sejam observadas, pois questo explosiva:Os direitos de propriedade intelectual precisam ser devidamenteprotegidos, mas o acesso s informaes e dados condio essencialpara o trabalho cientfico. E ainda: Deve-se elaborar um marcojurdico universalmente aceito que leve em conta as necessidadesdos pases em desenvolvimento em relao ao acesso informao eaos dados cientficos.

    Assistimos, nos ltimos anos, a uma ao conjunta dos pasesdesenvolvidos, realizada com inusitada presso, em favor da implantaode um sistema internacional de proteo propriedade intelectual, aomesmo tempo em que os mesmos pases sustentavam o livre acesso aosbancos genticos das regies tropicais midas, de intensa biodiversidade.Poucos pases em desenvolvimento resistiram presso, mas no sederam por vencidos.

    O novo pacto acima mencionado dever buscar, nos valores dacincia e de sua histria, na cooperao solidria entre os povos e nadignidade humana, princpios que deveremos contrapor s estreitasfronteiras que os interesses econmicos, hoje predominantes, tentamimpor livre circulao do conhecimento.7

    Cincia e educao popular

    Devo, por fim, dedicar as ltimas palavras educao popular e contribuio que os conhecimentos cientficos podem lhe oferecer. Aresponsabilidade maior que temos, acadmicos e cientistas, a de educar.

    7 CANDOTTI, E. Depoimento na Cmara dos Deputados do Congresso Nacional. Jornal da CinciaHoje/SBPC, Rio de Janeiro, n. 271, mar. 1993.

  • CINCIA E PBLICO22 .

    Para entender e transformar o mundo. Para torn-lo mais justo eigualitrio. Se procuramos o novo, para cont-lo aos nossos alunos,prximos ou distantes, e ensinar aos jovens como conservar viva a chamada curiosidade. Construir com eles imagens do que nunca antes setinha visto ou pensado. Limitarei meus comentrios a trs questesque, a meu ver, deveriam merecer maior ateno nas discusses dopapel da divulgao cientfica na educao de todos.

    A primeira diz respeito necessidade de atualizar os contedosdos textos de ensino e contribuio que os cientistas podem dar nessesentido. A segunda expressa uma preocupao: os computadores entramnas escolas antes que a elas tenham chegado os microscpios. A terceira,finalmente, se refere perseverante ausncia do referencial local e culturalno ensino das cincias.

    No primeiro caso, acredito seja tempo de promover, com aUnesco e sociedades cientficas, uma campanha de persuaso e incentivopara que mais cientistas escrevam para crianas, para os alunos dasescolas, de modo a enriquecer o universo de informaes, experinciase observaes com que eles so educados. Algo semelhante ao quefazemos, no Brasil, em Cincia Hoje das Crianas.8 Hoje, os textos, emsua maioria, so pobres, desatualizados e repetem, h dcadas,informaes muitas vezes equivocadas. Parece mesmo que faltam aosautores de livros didticos referncias qualificadas em que se inspirar eonde buscar informao em seu trabalho editorial. Textos escritos porpesquisadores ativos na produo de novos conhecimentos poderiamcontribuir de modo decisivo para a atualizao permanente dosprofessores e dos textos didticos. No Brasil, recentemente, o Ministrioda Educao promoveu uma avaliao dos livros didticos que revelouerros graves em textos que eram distribudos para milhes de crianas.

    O segundo ponto relativo a microscpios e computadores.Observo, com certa apreenso, que muitas escolas nas quais os alunosnunca examinaram uma clula no microscpio ou uma formiga comuma lupa, ou mesmo utilizaram um termmetro, recebem hojecomputadores. Acredito ser importante que recebam computadores,ferramentas poderosas que muito podem auxiliar para compreender omundo, comunicar a outros o que sabemos, buscar informaespreciosas. Mas no creio que possam substituir o papel da experincia,

    8 Cincia Hoje das Crianas/SBPC, Rio de Janeiro, criada em 1986.

  • CINCIA NA EDUCAO POPULAR 23.

    do teste e da interpretao dos resultados, dos modelos e das idias,como tambm do exame dos objetos e documentos, quando se querentender a natureza ou a sociedade em que vivemos. Temo que, nasescolas, o virtual venha a substituir o real. O risco existe. Sem socar aparede no se entende o significado da ao e da reao na fsica.

    Novamente, se h caminhos cruzados nos bosques da educao,os cientistas devem o quanto antes participar desse debate. umaresponsabilidade que lhes ser cobrada pelos jovens, quando tarde descobrirem o equvoco. Aqui tambm cabe lembrar um movimentoque cresce, mas com velocidade insuficiente para cumprir seuspropsitos, o da criao em muitos e muitos locais, pequenas e grandescomunidades, de centros de cincia onde reunir experincias, objetos,vdeos e computadores, laboratrios interativos em que os jovenspossam testar idias e modelos. Centros de cincias humanas e naturaisque, eu defendo, devem ser abertos s artes plsticas, ao teatro, dana e msica. Acredito que somente assim a educao em cinciasencontrar ambiente propcio para florescer.

    O ltimo ponto me muito caro, e nele me repito. Creio quedevemos dar maior ateno cultura, s condies, aos hbitos, aosjogos, s histrias e s tradies locais quando ensinamos as cincias.Cabe a ns, educadores, e no aos alunos, a responsabilidade e otrabalho de adaptar o que queremos ensinar s condies locais emque vivem e se movem os nossos alunos. Adequ-lo ao seu modo deimaginar e representar e tambm aos exemplos e histrias queencontramos no cotidiano do lugar onde vivemos. E isso, mesmonaqueles casos em que nossa inteno propiciar a mudana dessasformas de representao e explicao.

    Lembrem-se da observao de Gibbs que citei no incio destetexto: Um dos principais objetivos da pesquisa terica em qualquerrea do conhecimento achar o ponto de vista a partir do qual oassunto se apresenta em sua maior simplicidade. Isso significatambm que, se desejarmos conhecer os nossos alunos, tambmdevemos procurar um ponto de vista particular. Se queremos educarum olhar, preciso descobrir o que ele est vendo. Saberemos, assim,que h muitos pontos de vista em que os objetos aparecem comgrande simplicidade, embora nem todos contribuam para a pesquisaterica de Gibbs; apenas alguns. Distinguir esses pontos de vista eencontrar seu significado moral requer um pouco de sabedoria que,ela tambm, deve ser educada.

  • A CIDADE E A CINCIA Henrique Lins de Barros*

    No vasto arsenal de criao do homem, a mais impressionante,seja pela extenso, seja pelo tempo de existncia ou mesmo pelasimplicaes que produzem na vida dos indivduos, a cidade.Poderamos pens-la simplesmente como um aglomerado de edificaesindividuais essas sim olhadas como criaes de artesos, engenheirosou arquitetos , mas, de fato, a cidade algo mais complexo, queexige, de forma programada ou no, a inter-relao de espaos, sistemasde distribuio de gua e de alimentos, troca de informao,procedimentos de segurana, mecanismos de salvamento e derecuperao, meios de manuteno e redes de saneamento. Ao olharmosa histria das cidades, vamos encontrar um ponto importante e comum:o crescimento populacional est ligado aos conhecimentos tcnicosdisponveis.

    Os exemplos so muitos de cidades que, aps atingirem umacerta rea e uma certa populao, entraram em processo de degradao,vindo a desaparecer. Ur III um desses exemplos: surgiu lentamente, apartir de pequenos assentamentos, e cresceu at por volta de 2400 a.C.,at atingir uma populao estimada de 30.000 habitantes. Ur IIIconseguiu maximizar a produo de alimentos pela especializao dosprodutos e, por causa do excedente da produo agrcola, iniciou-se adiviso do trabalho e o desenvolvimento da vida espiritual, de outrashabilidades e de novas tcnicas: inventou-se a escrita, o arado,desenvolveu-se um elaborado cdigo de leis e, muito provavelmente, ouso da roda como meio de locomoo foi feito pela primeira vez. Para ocontrole do plantio e de seus ciclos, foram desenvolvidas a matemtica ea astronomia.

    Para aumentar a produo de alimentos, foi necessrio aumentaro sistema de irrigao das plancies, aproveitando as guas das encostas.Segundo a teoria atual, essa foi a causa do desaparecimento da cidade. Airrigao excessiva fez elevar o nvel do lenol dgua, que passou de cercade dois metros de profundidade para algo em torno de 50 centmetros,

    * Fsico e pesquisador do Museu de Astronomia e Cincias Afins/CNPq.

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    acarretando a salinizao do terreno e levando desertificao daregio. De fato, diferentes cereais foram cultivados em pocasdiversas, sempre apontando para a introduo de cereais maisresistentes ao solo salinizado. O caso de Ur III tambm instrutivo,quando olhamos o tempo que ela viveu a sua dissoluo. Estima-seque os primeiros sinais comearam a ocorrer por volta de 2400 a.C.,durando at 1700 a.C.: um processo lento, em que cada gerao,provavelmente, no teria sentido fortemente os impactos da salinizaodo terreno.

    Esse exemplo elucidativo para o que queremos abordar: a faltade um conhecimento mais apurado das tcnicas escolhidas em dadomomento pode levar a uma opo inadequada. Ou, em outras palavras,o conhecimento cientfico de uma poca no suficiente para garantirque as solues adotadas no venham a introduzir novos problemas. Oque temos nossa frente o tempo de resposta do meio com respeitoa uma dada interveno. Esse tempo, se curto quando comparado como tempo de uma gerao, pode mostrar quo inadequada foi uma dadainterveno. Mas, quando esse tempo muito grande, comparado como tempo de vrias geraes, torna-se difcil fazer qualquer previso.Boas solues no plano do indivduo podem levar a pssimas soluesno plano de sociedades ou a situaes mais graves, em que a prpriaespcie humana pode estar sendo colocada em perigo.1

    Exemplos recentes, todos decorrncias dos impressionantesavanos tcnicos e cientficos ocorridos desde o surgimento da cinciamoderna, podem ser encontrados com freqncia: o aumento do buracona camada de oznio, que pode levar a um risco de radiao fatal paraa vida do homem na Terra; o rpido decrscimo das reservas de guapotvel, podendo gerar uma crise sem precedentes na histria dahumanidade; os perigos de resduos radioativos, subprodutos datecnologia nuclear e que possuem um processo de decaimento que nopode ser acelerado; a to falada extino das espcies, com a inevitvelperda de um material gentico desconhecido.

    As solues, quando propostas, apresentam-se como possveisconjecturas: a reduo de gases que contribuem para o aumento doburaco de oznio s ir mostrar resultado daqui a mais de trinta anos;

    1 REDMAN, Charles L. Early mesopotamian cities and the environment. In: BURENHULT, Gran(editor geral). Old world civilizations: the rise of cities and states. San Francisco: American Museumof Natural History, Harper, 1994. p. 21.

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    a utilizao das grandes reservas de gua potvel, encontradas nas calotaspolares, esperando-se que surja um processo eficiente e capaz de realizaro transporte da gua para as regies povoadas; o desenvolvimento dealguma tecnologia nova que possa dar conta do resduo radioativo ouque venha a substituir a tecnologia que utiliza material radioativoque deixa resduo; o milagroso Projeto Genoma, que promete, emcurto espao de tempo, poder decodificar toda a cadeia gentica e vira produzir um banco de dados capaz de, no futuro, poder gerarqualquer espcie a partir de seu cdigo. Nenhuma dessas possibilidadesencontra bases slidas: trata-se de verdadeiras crenas que opesquisador mantm em sua prtica e que permitem obter recursospara continuar seu trabalho. Nenhuma dessas propostas responde atempos muito longos, pois, mesmo que bem-sucedidas, simplesmenteadiam o problema por algumas geraes. O conhecimento cientficode uma poca no suficiente para garantir uma soluo de longoprazo, como ocorreu em Ur III.

    Tal situao to clara, que alguns responsveis pelos grandesprogramas espaciais internacionais j discutem a necessidade de estudaro que est sendo chamado de terraformao de algum planeta ou luado sistema solar. A idia parte da premissa de que a Terra estcaminhando a passos largos para a falncia de suas fontes de produode alimentos e aumentando as fontes poluidoras. Buscando umaanalogia com a Europa do sculo XVI, que sentiu uma profundatransformao com os territrios conquistados pelos grandesnavegadores, alguns pesquisadores de hoje constatam que no existemais lugar no nosso planeta para ser descoberto e, assim, sobra apossibilidade de se encontrar algum lugar no espao. Como todos osestudos tm mostrado, nenhum dos corpos celestes prximos Terrapossui condies para a vida como ns a conhecemos na Terra. Assim,a idia se forma: o homem poderia recriar o processo de surgimentodas condies apropriadas para a sua adaptao em um novo mundonum futuro distante.

    As transformaes do sistema de irrigao do solo que levaramUr III ao declnio foram de propores infinitamente inferiores quelasproduzidas desde meados do sculo passado. De fato, em pouco maisde 150 anos, a populao da Terra cresceu cerca de sete vezes, a vidamdia nas sociedades tecnolgicas quase duplicou, a produo dealimentos aumentou por causa das novas tcnicas da agricultura

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    e criao, e a demanda de energia cresceu a ponto de no se ter umtermo razovel de comparao. bom lembrar que a maior parte dosartefatos tecnolgicos que estamos acostumados foi criada nesse perodode pouco mais de um sculo: o automvel, o avio, o navio a vapor, ostrens, o telefone, a luz eltrica, motores mais eficientes, a utilizao daenergia nuclear, os computadores etc. A cincia, com a sua associaocom a tcnica, produziu algo novo no cenrio mundial: a tecnologia.Esta capaz de obter sucesso com muito mais rapidez, de produzirinovaes que, h bem pouco tempo, eram consideradas sonhos delunticos e de trabalhar com os critrios da racionalidade sem precisarpreocupar-se com a tica ou com as tradies.

    Est, dessa forma, cada vez mais clara a necessidade de se possuirum nvel mnimo de conhecimento cientfico para poder integrar-sena vida social dos centros urbanos dos pases tecnologicamentedesenvolvidos. Essa constatao, fundamentada em inmeros trabalhosde avaliao e de acompanhamento de programas de divulgao, refletequestes j de muito levantadas e que mostraram que, com o adventoda chamada cincia moderna, em meados do sculo XVII, a relao dohomem com o mundo natural comeou a passar por uma transformaode distanciamento crescente. Mais recentemente, com a popularizaodos prprios meios de comunicao, tem surgido com fora a idia dedifuso do conhecimento; uma difuso sem barreiras ou critrios que,pelo menos na sua inteno, no seria segregadora, mas que, em suaprtica, mantm os limites de sua eficincia a camadas sociais maisbem preparadas e de maior poder aquisitivo. No campo da socializaodo conhecimento, a necessidade de se expandirem os horizontes dascamadas cultas da sociedade levou ao surgimento de novos meios dedifuso do conhecimento, de maior alcance e mais amplo acesso porparte da sociedade. Como Canguilhem frisa: Na Antigidade at aIdade Mdia, divulga-se; nos sculos XVII e XVIII, propaga-se; nosculo XIX, vulgariza-se.2 Poderamos dizer que o sculo XX, nessamesma linha de raciocnio, ir substituir a idia de vulgarizao dosaber, idia essa to cheia de atributos negativos, pela de difuso doconhecimento. De fato, a vulgarizao verificada no sculo passadofoi praticamente monopolizada pelos escritores e jornalistas e pelosdiferentes peridicos que tiveram uma grande aceitao e iniciavam

    2 apud BGUET, Bruno. La vulgarisation scientifique en France de 1850 a 1914: contexte, conceptionset procds. In: La science pour tous. Ed. B. Bguet. Bibliothque du CNAM, 1990. p. 6.

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    a utilizao de imagens (desenhos, litografias, xilogravuras erotogravuras, no incio, e fotografias, mais recentemente). Alm disso,essa vulgarizao estava limitada a uma estreita camada da sociedadealfabetizada, com posses e tempo para investir no crescimento de seupatrimnio cultural. Em contraposio, a forte corrente de difuso dacincia que surgiu a partir, talvez, dos anos 20 de nosso sculo, temcomo objetivo atingir no s um pblico alfabetizado ou j detentorde algum conhecimento prvio, mas tambm a todos, sem distinode gnero, idade ou poder aquisitivo.

    Nesse cenrio, os programas de difuso cientfica parecemassumir um novo papel social. Se antes eram atividades que permitiamdar conhecimento para um grupo dominante para saciar suascuriosidades, hoje os programas de difuso surgem como importantesalternativas para cobrir a defasagem entre o saber escolar e o produzidonos laboratrios e centros de pesquisa e que as escolas no podem darconta. De fato, os programas formais de educao, no s cientfica,mas em geral, esto, todos eles, por herana e por razes histricas,fundamentados em uma grade curricular, em textos publicados e nafigura do professor. Nenhum deles parece ter-se adaptado s novastecnologias (como vdeos, softwares etc.); e a recproca tambmverdadeira: embora promissoras, essas novas tecnologias no parecemter alcanado uma linguagem apropriada para o ensino, pois existe,inclusive, uma crescente dvida em torno da real eficcia no campo doensino de contedos especficos. A escola, por depender da presenado professor como mediador do processo de informao e ter nele oseu principal ator, no tem condies de atualizar-se na taxa que omundo cientfico anuncia. Para agravar a situao, o ensino formal nod conta da permanente atualizao que se faz necessria para que umprofissional j formado e exercendo as suas funes na sociedade possamanter-se inserido no processo de transformao social.

    Por outro lado, com a institucionalizao da cincia, em fins dosanos 40 do sculo passado, as formas gerenciais de avaliao dedesempenho levaram, hoje, a uma verdadeira transformao do conceitode contribuio cientfica: utiliza-se como parmetro o nmero detrabalhos ou o impacto das revistas especializadas, o que induz umanova estratgia da divulgao dos resultados por parte dos grupos depesquisa. Cada vez mais pesquisadores esto preocupados em criarum marketing em torno de seus trabalhos, pois, com a presena deseus nomes na mdia, acredita-se, em princpio ou mesmo em crena,

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    na garantia de obteno de recursos que, vez por outra, se confundemcom benefcios pessoais. Os grupos de avaliao por pares tambmesto vivendo o mesmo processo de analfabetizao cientfica associado especializao excessiva dos trabalhos, impedindo qualquerpossibilidade de um julgamento de teor.

    Um aspecto da divulgao da cincia realizada em espaosno-formais pode ser exemplificado pelo ensino da msica. Antes,porm, interessante sublinhar que exibies, exposies ou programasdesenvolvidos por centros, museus de cincia ou grupos tm procuradoadotar linguagem de fcil compreenso para atingir um maior nmerode pblico. nesse momento, ou seja, quando se inverte o vetor e seprioriza a maior abrangncia de um determinado programa emdetrimento do contedo, que se pode esbarrar num dos pontos cadavez mais comuns na divulgao da cincia: a sua vulgarizao no sentidopejorativo, ou seja, a apresentao da cincia, ou de alguns aspectosque a cincia trabalha, de forma reduzida e banalizada. Nessa direo,diversos exemplos poderiam ser enunciados, mas, em vez disso, sermelhor desviar o olhar e analisar como um estudante de msica apresentado a uma grande obra. Um exemplo particularmenteelucidativo pode ser encontrado na obra de Beethoven.

    Em 1801, Beethoven estava tentando buscar novos caminhospara a forma musical. Buscava inovar sob o ponto de vista estilsticoe comps algumas sonatas para piano. A mais conhecida delas a den. 14 (Opus 27, n. 2). Nessa, como nas outras sonatas do mesmoperodo, Beethoven expandiu a forma de sonata clssica, buscando obteruma unidade de toda a obra e deixando quase como inacabado cadaum dos movimentos. Para o ouvinte, a obra cresce e transforma-se,atingindo o seu ponto mais alto somente nos ltimos compassos. NaSonata Opus 27, n. 2, essa dinmica evidente: o primeiro movimento,marcado como Adgio Sostenuto, desenvolve-se como um preldioarpejado com uma simples melodia que canta no registro alto. A moesquerda tem uma escrita fcil, com acordes em oitava marcando otempo forte. O trabalho recai sobre a mo direita: o pianista tem queexecutar os arpejos em quilteras, ou seja, dividindo o tempo em trs,enquanto a melodia surge, executada pelo dedo mnimo nas divisesdo compasso. Assim, a mo direita tem que dividir o tempo em trs,para o acompanhamento, e em quatro, para a execuo da melodia. Atonalidade ingrata para um estudante de piano: d sustenido menor(Figura 1). As mos devem passear sobre as notas pretas, com o cuidado

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    de os dedos atingirem as brancas sem esbarrar nas outras. O ritmolento dos acordes arpejados, o equilbrio e a acentuao doacompanhamento, o baixo grave, que no deve se sobrepor ao resto damsica, do um balano que, aliado melodia executada no registromais alto, levou o crtico de msica e romancista contemporneo de

    Figura 1 - Primeira pgina da Sonata Opus 27, n. 2, em d # menor (Sonata aoluar), de Ludwig van Beethoven, dedicada condessa Guilietta Guicciardi ecomposta em 1801.

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    Beethoven, Ludwig Rellstab, a pensar no reflexo do luar nas guas dolago Lucerne; somente uma imagem para descrever o primeiromovimento da obra, mas uma imagem to forte, que acaboutransformando-se no nome da composio: Sonata ao luar. Essadesignao, entretanto, no agradava Beethoven, que entendia que asua sonata no poderia ser reduzida a um nico movimento. De fato,o primeiro movimento acaba com a indicao attaca sbito il seguente,mostrando claramente a inteno do compositor: uma seo em arpejocomo um preldio introdutrio leva a um segundo movimento,Allegretto, que, por sua vez, acaba com a indicao attaca subito il presto.S a, ou seja, somente ao atingir o terceiro movimento, que a obraencontrar sua soluo estilstica.

    Para o estudante que se inicia no piano, o primeiro movimentoda Sonata ao luar oferece dificuldades intransponveis. A ingratatonalidade, o difcil trabalho da mo direita, a imperiosa necessidadede se equilibrar a sonoridade das notas so obstculos impossveis deserem ultrapassados. A popularidade desse movimento, entretanto,desperta no iniciante um desejo enorme. Vrias verses simplificadasforam feitas com o intuito de permitir que o jovem pretendente apianista venha a executar o primeiro movimento. Todas possuem asmesmas caractersticas: eliminar os baixos e transpor os arpejos para amo esquerda e alterar a tonalidade. Uma dessas verses foi feita peloprofessor Mrio Mascarenhas (Figura 2)3. A primeira alterao visvel na armadura de clave. Na obra original, deparamo-nos com quatrosustenidos (d#, r#, f# e sol#). Na verso simplificada, nenhumacidente, pois a obra est transcrita para a tonalidade de l menor.Assim, a execuo quase prescinde das notas pretas: a mo desce e seposiciona sobre o teclado branco do piano. Em seguida, notamos quea mo esquerda passa a desenvolver todo o acompanhamento, excetoos baixos, deixando para a mo direita somente a melodia. Com isso,perdem-se os baixos e as dissonncias. Com a separao das mos, osarpejos se afastam da melodia e, para compensar essas alteraes, acelera-se o andamento. As sees de desenvolvimento em arpejo que aparecemna verso original so sumariamente eliminadas. Os dois movimentosseguintes so suprimidos, e a Sonata Opus 27, n. 2 fica reduzida a umamelodia singela e simples.

    3 MASCARENHAS, Mrio. 120 msicas favoritas para piano. 12. ed. So Paulo: Irmos Vitale, 1979. v. 1.

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    O ouvinte, sem dvida, reconhece a melodia. Entretanto oesprito original e revolucionrio da obra est irremediavelmenteperdido. A composio de Beethoven populariza-se, pois passa a serexecutada por um estudante no segundo ano de piano; mas a propostae a grandeza da composio se perdem por completo.

    Figura 2 - Verso simplificada, feita por Mrio Mascarenhas, da Sonata ao luar, deBeethoven. Note a nova tonalidade (l menor), a supresso dos baixos da moesquerda, o trabalho da mo direita a partir do quinto compasso.

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    O leigo apresentado verso simplificada do primeiro movimentoda Sonata ao luar pode pensar que a conhece. Ter a imagem de umaobra simples, que se desenvolve naturalmente, e perder a idia de queela o incio de um engenhoso trabalho que propunha alterar umaforma estabelecida na msica europia do sculo XVIII. O mesmoocorre com o pblico cientificamente leigo, quando apresentado a certostemas cientficos. Poder ficar impressionado com a complexidade, semque seja capaz de entender o assunto dentro de um quadro orgnico. Acincia aparece, para ele, pulverizada em certos tpicos isolados e queso mais apropriados para a divulgao. Certos conceitos mais elaboradosou so deixados de lado, pois exigiriam um conhecimento maisprofundo e mais abstrato, ou so tratados a partir de uma linguagemcheia de termos imprecisos procurando-se fazer falsas analogias comidias do senso comum.4

    Na divulgao da cincia, comum encontrarmos o mesmoprocedimento de simplificar para permitir a compreenso por partede maior nmero de pessoas. Mas, como na msica, a simplificaopara tornar acessvel mata a proposta, e a cincia que apresentadano tem mais a grandeza nem a profundidade da proposta original.Esse aspecto muitas vezes encontrado nas chamadas exposiesinterativas que se vem diante da incapacidade de transformar umconceito elaborado em um aparato atraente e divertido. Alguns autorestm buscado formas mais abrangentes para se conseguir atingir oenvolvimento do visitante, criando uma interao no plano mais amplodas emoes e da razo.5

    No entanto, a necessidade de se divulgar conceitos cientficospara um pblico mais amplo cada vez mais imperiosa, pois a cinciaaparece como um dos mais importantes aspectos da sociedade moderna.Diz Granger:

    Podemos certamente qualificar esta segunda metade do sculo XXcomo a Idade da Cincia. Isto, por certo, no significa menosprezar opapel e importncia do conhecimento cientfico no sculo XIX, queassistiu ao nascimento, entre outros, da termodinmica e da teoria

    4 LINS DE BARROS, Henrique. Quatro cantos de origem. Perspicillum, v. 6, n. 1, pp. 57-74, 1992.5 idem. The role of Science Museums in the technological age. Museology, v. 1, pp. 67-84, 2001;WAGENSBERG, Jorge. In favour of scientific knowledge. In: FERREIRA, M. A. A.; RODRIGUES, J. F.(coords.). Museums of science and technology. Lisboa: Fundao Oriente. Museu de Cincia deLisboa, 1998. pp. 83-97; BRAGANA GIL, Fernando. Museums or science centers. In: FERREIRA, M.A. A.; Rodrigues J. F. (coords.). op. cit. pp. 21-39.

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    dos fenmenos eltricos, com suas promessas de conseqnciasextraordinrias para a explicao dos fenmenos da natureza e suasprimeiras aplicaes industriais. Mas o perodo em que vivemos nos o herdeiro dessas conquistas fundamentais, mas tambm ofereceo espetculo de renovaes e de desenvolvimentos sem precedentesna histria da cincia, pelo nmero e pela diversidade. Alm disso,acontece que um to prodigioso desabrochar de novos saberes temrepercusses nunca antes atestadas na vida individual e social doshomens (...). Independente da penetrao annima da cincia emnossa vida cotidiana, nossa poca se caracteriza tambm pela presenaquase universal, mas difusa, de representaes do pensamentocientfico. Essas idias que uma grande parte de nossos contemporneostm da cincia provm de fontes de vulgarizao ou, se preferir, dedivulgao, de nveis muito diferentes.6

    A explicao que a cincia oferece tem duas caractersticasfundamentais: por um lado, mantm um corpo coerente deconhecimento, de tal forma que a lgica e a razo esto sempre atuandoe norteando o ato produtivo, embora nem sempre se manifeste nocriativo. Por outro lado, ela oferece um quadro de explicaes possveisde um mundo natural que se mostra, cada dia com mais vigor,extremamente complexo. A cincia, entretanto, para evoluir, no podese congelar, e as observaes de novos fenmenos ou a explicao defatos j conhecidos levam, necessariamente, a um carter mutvel: acincia no pode manter uma unidade temporal.7 Esse aspecto, por sis, no pode garantir um sucesso da explicao cientfica, e a necessidadede se encontrar respostas faz com que qualquer proposta explicativapossa ganhar o seu terreno:

    Mitos e cincias exercem, em certa medida, a mesma funo. Uns eoutros fornecem ao esprito humano uma certa representao domundo e das foras que o animam. Ambos delimitam o campo dopossvel (...). provavelmente uma exigncia do esprito humano teruma representao do mundo que seja unificada e coerente. Na suafalta aparecem a ansiedade e a esquizofrenia. E preciso reconhecerque, em matria de unidade e de coerncia, a explicao mtica muito superior cientfica.8

    6 GRANGER, Giles-Gaston. A cincia e as cincias. So Paulo: Unesp, 1994. p. 11.7 Os exemplos so muitos: a teoria newtoniana cede lugar a uma teoria relativstica; o conceito dedeterminismo se altera com a mecnica quntica; a teoria da evoluo de Darwin passa portransformaes agudas.8 JACOB, Franois. O jogo dos possveis. Lisboa: Gradiva, 1985. p. 23.

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    Para o leigo, o aspecto inacabado e parcial da cincia passa aolargo, pois ele no capaz, por sua formao ou por seus interesses evocaes, de perceber que ela trabalha somente com os fenmenos queconsegue circunscrever e definir. A cincia , dessa forma, parcial eprovisria. Assim, uma vez que a resposta a questionamentosfundamentais da natureza uma exigncia da mente humana, a cinciaou o mito oferecem uma soluo satisfatria.

    Lvi-Strauss aponta para o importante papel dos mitos nassociedades tecnologicamente avanadas, nas quais, por suascaractersticas essenciais, poderiam parecer mais imersas nas explicaesque a cincia fornece.9 Ocorre, entretanto, que o discurso cientfico hermtico para o no-especialista, e, nesse sentido, o pesquisador ativo,trabalhando em rea correlata sua, pode estar suficientemente distantee incapaz de seguir certos avanos. Alm disso, e dando a costuranecessria, o alto grau de especializao que a profisso exige faz comque elementos absolutamente bsicos do conhecimento cientfico sejamdesconhecidos de profissionais ativos.

    Em resumo, se, por um lado, o indivduo leigo necessita deinformao cientfica para ser inserido na categoria de cidado de umasociedade, por outro lado, o pesquisador est cada vez mais interessadoem especializar-se e ele prprio se sente leigo em reas afins. Oafastamento entre o conhecimento produzido nos laboratrios e o docidado cresce, e a escola nada pode fazer, pois trabalha em outravelocidade. Mas quem decide na sociedade atual? De acordo com Serres:

    Cientistas, administradores, jornalistas (...) Tudo acontece como se ostrs poderes contemporneos, entendendo por poderes as instnciasque em parte alguma encontram contrapoderes, houvessemerradicado a memria de longo prazo, tradies milenares, experinciasacumuladas pelas culturas que acabam de morrer ou que estaspotncias matam (...) Estamos diante de um problema causado poruma civilizao que j est a h mais de um sculo, gerada pelaslongas culturas que a precederam, infligindo danos a um sistemafsico com a idade de milhes de anos (...) Mas ns propomos apenasrespostas e solues de prazo curto, porque vivemos em prazosimediatos, dos quais tiramos o essencial do nosso poder. Osadministradores mantm a continuidade. A mdia, a cotidianidade.A cincia o nico projeto de futuro que nos resta.10

    9 LVI-STRAUSS, Claude. Histria de lince. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.10 SERRES, Michel. O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. pp. 40-42.

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    Sendo assim, um dos pontos importantes que uma sociedadetecnologicamente avanada encara com maior veemncia nos ltimosanos est ligado integrao do cidado na proposta de uma espiral deprogresso.11 Para isso, alguns aspectos so essenciais: a chamadaalfabetizao cientfica, que cada vez est mais claro tratar-se da prpriaalfabetizao de um indivduo inserido socialmente, assim como ano-discriminao de nenhum dos indivduos socialmente ativostornam-se essenciais para a proposta de uma sociedade democrticacom a participao de todos os cidados no processo de construosocial. Nesse processo, importante inserir todos no quadro deconhecimento considerado mnimo para a sua incluso nodesenvolvimento social. igualmente importante se ter em mente queno se pode esperar uma plena informao dos avanos cientficos emtodos os nveis, pois o caminho seguido exige especializao cada vezmaior e, conseqentemente, menor abrangncia. A viso humanistado Renascimento, ou o universalismo romntico, simplesmente notem espao na cultura atual. A vida nos centros urbanos, associada utilizao cada vez maior de bases virtuais, faz com que o homem urbanotenha cada vez menos contato com o mundo natural e possa, semconscincia das implicaes existentes, pensar que poder ter domnioda natureza. Essa corrente de pensamento, que tem sua origem quandoda primeira utilizao de um instrumento cientfico para observar ocu12, no leva em considerao os diferentes tempos de respostaenvolvidos13: a iluso do progresso trabalha com tempos curtos, quandocomparados com o tempo de resposta da natureza.

    A difuso da cincia, por ocorrer em espaos no-formais deensino, deve sempre estar preocupada com a abrangncia de sualinguagem, uma vez que ela est dirigida a um pblico geral. Nosmuseus, centros, exposies ou programas de televiso e rdio ou, ainda,nas pginas eletrnicas, usual que haja visitas de grupos. Essa prticaintroduz a necessidade de uma nova abordagem para se evitar umdos graves problemas em que os programas muitas vezes esbarram: onvel da informao deve satisfazer a todos, sem, contudo, criarconstrangimentos. Esse aspecto parece ser um dos pontos de dificuldade

    11 CAZELLI, Sibele. Alfabetizao cientfica e processos educativos. Perspicillum, v. 6, n. 1,pp. 75-104, 1992.12 ARENDT, Hannah. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense. 1993.13 SERRES, Michel. op. cit.

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    que as novas tecnologias de informao introduzem: comum aproduo elaborada de programas (seja vdeos ou softwares) voltadospara o ensino e que colocam o professor ou os pais em situaoincmoda, pois eles no so capazes de traduzir a informao.

    Uma vez que os pesquisadores esto sendo avaliados por suaproduo em revistas especializadas, a produo de material em nvelelevado e especfico a nica circunstncia que atrai a sua ateno. Ouseja, cada vez existe um maior nmero de produtos que, por sua vez,pressupe um conhecimento prvio que no est sendo sanado pelasescolas ou por qualquer outro programa de formao profissionalizante.Um dos problemas que se detecta hoje, no mbito da integrao deum indivduo em seu grupo social, est relacionado com o grau deconhecimento de questes cientficas que ele possui. Pode parecer umaafirmao forte, pois se pode sempre argumentar que o conhecimentode noes cientficas de nada serve para a vida cotidiana. Ocorre,entretanto, que cada vez mais as noes geradas no seio da cinciaextravasam e ganham outros espaos, tornando-se elementos essenciaispara a compreenso do mundo exterior. Alguns exemplos poderiamser lembrados. As idias de ordem e caos, que surgiram a partir doestudo de sistemas dinmicos, logo foram apropriadas por outras reas.A termodinmica forneceu a noo de entropia. Da biologia, poderamoslembrar o conceito de competio, com sua tortuosa histria, partindode idias sociais, ganhando extenso nos estudos de uma teoria evolutivae retornando ao plano social de forma vulgarizada. Aparentemente nose pode compreender nada sem se recorrer ao conceito de competio,ignorando-se, de forma sistemtica, outras noes que a biologiaintroduz e que so extremamente teis nas estratgias de indivduosou de espcies, como so os casos de cooperao, simbiose ou adaptao.As idias de meio ambiente e biodiversidade so outros dois exemplosque emergem da biologia, estruturam-se nos estudos multidisciplinaresda ecologia e popularizam-se.

    A cincia, por estar cada vez mais distanciada de um conhecimentodo senso comum, de difcil compreenso. A tecnologia, ou melhor, oproduto da tecnologia, por sua vez, tenta ser o mais amigvel para ousurio, de forma a no ser aparentemente necessrio conhecer osprincpios fundamentais que possibilitam o funcionamento do artefatotecnolgico para saber utiliz-lo. A tendncia que se pode observar hoje a de uma valorizao da tcnica e da tecnologia em detrimento dacincia, embora todo o discurso tenha na cincia a sua base.

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    Assim devemos ter a coragem de fazer a pergunta: que cinciapretende-se divulgar? Aquela que tem como compromisso a funoutilitria, ou aquela que busca uma reflexo do mundo natural e temcomo compromisso encontrar uma das inmeras leituras da natureza?Voltando analogia musical, perguntaramos: o que se pretende? Ensinaruma verso simplificada, facilitada, de uma pea, ou levar um pblicoleigo em msica a apreciar uma obra slida e grandiosa que, entretanto,s pode ser executada por um virtuoso pianista?

    A primeira opo leva-nos prtica utilitria e ao acanhamentode qualquer reflexo mais profunda sobre o mundo natural. A segunda,por sua vez, ressuscita a necessidade de se pensar o mundo, de se buscarpensar o que a realidade e de como, em cada momento, temos queconstruir, com base no conhecimento presente, uma viso do mundo.A primeira escolha, aquela em que o que importa executar, mesmoque simploriamente, uma pequena pea de piano, abre espao para sepensar que a realidade pode ser simulada; transformada com as nossasmos e de acordo com o nosso pensamento momentneo, a ponto dese poder falar numa realidade virtual. Uma posio que nos convida esquizofrenia e paralisao, pois parece prescindir do mundo real. levar s ltimas conseqncias o distanciamento do homem comrespeito natureza; aceitar que a tecnologia pode ser auto-suficiente.

    A segunda escolha, por sua vez, lembra-nos que a realidade,embora inatingvel, oferece um sem nmero de leituras e que a aventurado saber jamais se esgotar. Como frisa Karl Jasper, quando trata aquesto do conhecimento da vida:

    No obstante, so muitos os que no deixam de acreditar que surgiro dia em que ser possvel criar a substncia viva, criar a vida mesma,a partir da matria. Isso, porm, impossvel. A vida no apenassubstncia altamente complexa, mas tambm corpo vivo. Tem esteuma estrutura morfolgica suscetvel de anlise ao infinito; no mquina fsico-qumica que, se possvel de ser construda, serianecessariamente finita. E a vida no apenas corpo vivo, masexistncia, que implica uma intimidade (o ser considerado) e umaexterioridade (o meio, o mundo) e existncia sobre a qual a vida age.Os aparelhos orgnicos, seu quimismo finalista, os rgos dos sentidosso produzidos pela vida, mas ainda no so a vida mesma. Oscientistas descobriro e produziro formas biolgicas no sonhadas,porm sero sempre incapazes de criar vida.14

    14 JASPER, Karl. Introduo ao pensamento filosfico. So Paulo: Cultrix, 1988. p. 19.

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    Trata-se, portanto, de saber a razo de tanto interesse em tornoda divulgao da cincia. Ou se pretende criar um novo mito tecnolgicoque desvia a ateno da reflexo sobre o mundo para se focalizar oestreito campo da operacionalidade e do utilitarismo, ou se busca dara uma parcela significativa da populao os elementos necessrios paraconstruir o nosso mundo. Conforme Sepkoski, Cada gerao devereescrever o livro da histria da vida, porque ela percebe o desenrolarde forma diferente. No possvel uma verso definitiva, mas somenteo prazer de descobrir novas perspectivas reveladas pelos ltimosconhecimentos.15 Essa a escolha que aquele que se dedica divulgaode cincia dever fazer. Uma vez feita, suas aes estaro irremediavel-mente comprometidas com ela, e o divulgador, seja ele um pesquisadorou um educador, seja ele um jornalista ou um comunicador, ter queassumi-la. E o compromisso srio, pois ser na nova cincia que surgiroos elementos para se abordar os desafios assustadores que se anunciam.16

    Neste final de perodo, com o anncio de um novo milnio, asprevises futuristas atingem tal sofisticao cientificista, que tudo podeparecer possvel, dependendo to-somente dos recursos disponveis eque se encontram cada vez mais concentrados nos poucos pasesdetentores dos principais avanos cientficos e tecnolgicos. De acordocom Arendt:

    Os tcnicos, que hoje abrangem a avassaladora maioria de todos ospesquisadores, trouxeram terra os resultados dos cientistas. E,mesmo que o cientista ainda seja assaltado por paradoxos e pelasperplexidades mais aturdidoras, o prprio fato de toda uma tecnologiater podido desenvolver-se com seus resultados demonstra a boaqualidade de suas hipteses e teorias mais convincentemente do quepuderam faz-lo at ento quaisquer observaes ou experinciasmeramente cientficas.17

    A cincia agora to atrelada tecnologia, que se torna quaseimpossvel encontrar uma fronteira no tem limites para as suasespeculaes que, por sua vez, apresentam-se de forma extremamenteingnua. Mas a cincia que, em nossa sociedade, est falando do

    15 SEPKOSKI, J. John. Les foundations: la vie dans les oceans. In: GOULD, S. J. (dir.). Le libre de lavie. Paris: ditions du Seuil, 1993. p. 37.16 SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o sculo XXI: no loop da montanha-russa. So Paulo:Companhia das Letras, 2001.17 ARENDT, Hannah. A conquista do espao e a estatura humana. In: Entre o passado e o futuro.So Paulo: Perspectiva, 1979. p. 336.

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    futuro e buscando solues para a crise existencial do homem imersonum mundo que ele prprio fabricou. Um exemplo desse quadro podeser visto nos artigos escritos por importantes pesquisadores de diversasreas e que tratam do que, no futuro, ns, humanos, poderemos fazer18:viveremos em Marte? (J. Kluger); descobriremos outros universos? (M.D. Lemonick); controlaremos o clima? (J. Madeleine Nash); viajaremospara o passado? (J. Richard Gott III); ser possvel clonar umdinossauro? (M. Ridley); continuaremos evoluindo? (I. Tattersall); ateoria do tudo reinar? (S. Weinberg); desvendaremos como a vidacomeou? (S. Jay Goud); como o universo acabar? (T. Ferrys);viajaremos para as estrelas? (F. Dyson). Idias que refletem as dvidasde uma cultura que no consegue ver, nos limites impostos por nossacondio de habitantes de um planeta especial e singular, perspectivasde um futuro sem a idia de progresso e de domnio da natureza.

    18 Visions 21: science & space. Beyond 2000: Our Minds, our Universe. TIME, v. 155, n. 14,pp. 26-76, abr. 2000.

  • ASPECTOS HISTRICOSDA DIVULGAO CIENTFICA NO BRASIL

    Ildeu de Castro Moreira*Luisa Massarani

    Introduo

    A divulgao cientfica, ao longo dos sculos, respondeu amotivaes e interesses diversificados. O estudo de seus aspectoshistricos pode nos ajudar a elucidar como suas formas variaram notempo em funo dos pressupostos filosficos sobre a cincia, doscontedos cientficos envolvidos, da cultura subjacente, dos interessespolticos e econmicos e dos meios disponveis nos diversos lugares epocas. No caso do Brasil, muito pouco se conhece sobre a histria dasatividades de divulgao cientfica aqui realizadas. Chega-se mesmo aimaginar que elas no existiram ou que foram insignificantes durantequase todo o perodo histrico brasileiro e que s aps a dcada de 80se poderia falar em uma divulgao cientfica digna desse nome. Umdos objetivos deste trabalho mostrar que essa viso parcial e queest escorada em um desconhecimento da evoluo da cincia e de suadifuso no pas.

    A divulgao cientfica no Brasil, em que pese sua realfragilidade ao longo do tempo, tem pelo menos dois sculos dehistria.1 A exemplo do que ocorreu em outros pases, apresentoufases distintas, com finalidades e caractersticas peculiares querefletiam o contexto e os interesses da poca. Neste texto, discutire-mos, de incio, as primeiras iniciativas mais organizadas de difusoda chamada cincia moderna, que surgiram com a transferncia daCorte portuguesa para o Brasil, no incio do sculo XIX, e com asimportantes transformaes ento ocorridas na vida poltica, culturale econmica do pas. Em seguida, analisaremos como se deu aintensificao dessas atividades na segunda metade do sculo XIX.No item seguinte, consideraremos o seu desenvolvimento na primeirametade do sculo XX; elas foram coroadas, especialmente nos anos 20,

    * Professor do Instituto de Fsica e da rea Interdisciplinar de Histria das Cincias e Epistemologiada COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Jornalista especializada em cincias; doutora na rea de divulgao cientfica. Trabalha no Museu daVida, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, e na Casa da Cincia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.1 MASSARANI, Luisa. A divulgao cientfica no Rio de Janeiro: algumas reflexes sobre a dcada de 20.Dissertao de mestrado, IBICT-ECO/UFRJ, Rio de Janeiro. 1998.

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    com uma participao mais intensa da incipiente comunidadecientfica brasileira. Por fim, trataremos das principais atividadessurgidas nas ltimas dcadas do sculo XX.

    As primeiras iniciativas de divulgao cientfica no Brasil

    No Brasil dos sculos XVI, XVII e XVIII, uma colnia portuguesade explorao, atividades cientficas ou mesmo de difuso das idiasmodernas eram praticamente inexistentes. O pas tinha uma baixssimadensidade de populao letrada, era mantido sob rgido controle e oensino, quase unicamente elementar, esteve nas mos nicas dos jesutasat meados do sculo XVIII. Mesmo no sculo XVIII, com a inexistnciade imprensa, a proibio de publicao de livros na Colnia e o sistemade ensino deficiente, os poucos indivduos dos setores sociaisdominantes que tiveram acesso aos novos conhecimentos cientficos,que estavam sendo gestados na Europa, conseguiram isto geralmentepor meio de algum tipo de formao adquirida no exterior.

    As raras aes do governo portugus no Brasil, ligadas cincia,estavam quase sempre restritas a respostas s necessidades tcnicas oumilitares de interesse imediato: na astronomia, cartografia, geografia,minerao ou na identificao e uso de produtos naturais. Uma dasprimeiras tentativas de organizao de associaes com algumapreocupao com a difuso cientfica ocorreu com a criao da AcademiaCientfica do Rio de Janeiro pelo marqus do Lavradio, em 1772. Eraconstituda por nove membros e pretendia se dedicar fsica, qumica,histria natural, medicina, farmcia e agricultura. Em 1779, esvaziada,a academia fechou as portas. Seria recriada pouco depois, com o nomede Sociedade Literria do Rio de Janeiro, mas teria vida curta, tendosido fechada em 1794 por razes polticas e seus membros aprisionadossob a acusao de conspirao pr-independncia da Colnia. Ambastinham tambm como objetivo difundir aspectos determinados dacincia, entre os interessados da elite local.

    No final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, muitos dosbrasileiros que haviam ido para Portugal, Frana, Blgica e Escciafreqentar cursos superiores comearam a retornar ao pas econtriburam para uma difuso lenta das novas concepes cientficas.A primeira manifestao mais consistente de atividades divulgativasno Brasil viria a ocorrer no incio do sculo XIX. Ela surgiu derivadade uma razo poltica imperativa: com a chegada da Corte portuguesa

  • ASPECTOS HISTRICOS DA DIVULGAO CIENTFICA NO BRASIL 44.

    no pas, abriram-se os portos e a proibio de imprimir foi suspensa.Pouco depois, surgiram as primeiras instituies de ensino superior oucom algum interesse ligado cincia e s tcnicas como a AcademiaReal Militar (1810) e o Museu Nacional (1818).

    Com a criao da Imprensa Rgia, em 1810, textos e manuaisvoltados para a educao cientfica, embora em nmero reduzido,comearam a ser publicados ou, pelo menos, difundidos no pas. Vriosdeles eram manuais para o ensino das primeiras academias de engenhariae medicina, em geral traduzidos de autores franceses. Nesse perodo,os primeiros jornais como A Gazeta do Rio de Janeiro, O Patriota e oCorreio Braziliense (editado na Inglaterra) publicaram artigos e notciasrelacionados cincia. Em O Patriota, que duraria apenas dois anos,entre 1813 e 1814, vieram luz vrios artigos de cunho cientfico oudivulgativo, alguns dos quais remanescentes de textos apresentados antiga Sociedade Literria.2 Silva Alvarenga publicou nele vrios poemasnos quais abordava temas ligados cincia.

    J no perodo politicamente conturbado entre a Independnciae a consolidao do Segundo Imprio nota-se um decrscimo relativonas atividades de divulgao da cincia, com um menor envolvimentoda elite ilustrada. O nmero de peridicos gerais cresce lentamente,com alguns poucos, tais como Miscelanea scientifica (1835), Nictheroy(1836) e Minerva brasiliense (1843), publicando tambm artigosrelacionados cincia.

    A segunda metade do sculo XIX e a fora da cincia aplicada

    Na segunda metade do sculo XIX, as atividades de divulgaose intensificaram em todo o mundo, na seqncia da segunda revoluoindustrial na Europa. Uma onda de otimismo em relao aos benefciosdo progresso cientfico e tcnico expressa na realizao das grandesExposies Universais, iniciadas pela de Londres, em 1851, e nas quaiso Brasil teve participao a partir da exposio de 1862 percorreu omundo e atingiu, ainda que em escala menor, o Brasil. Naquelemomento, o que poderia ser chamado de pesquisa cientfica no pasera ainda restrito a pouqussimas pessoas, estrangeiros residentes ou depassagem pelo pas ou brasileiros que seguiram cursos em instituies

    2 OLIVEIRA, Jos Carlos de. Cultura cientfica no Pao de D. Joo o adorador do Deus das cincias(1808-1821). Tese de doutorado, USP, 1998.

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    estrangeiras. As atividades eram geralmente realizadas de formaindividual e em algumas poucas reas como astronomia, cinciasnaturais e doenas tropicais.3 O nmero de instituies de nvel superiorcontinuava muito baixo, e elas eram quase todas voltadas para a formaoprofissional de engenheiros ou mdicos. O quadro geral da instruopblica e da educao cientfica era extremamente restrito e limitado auma pequena elite; o analfabetismo atingia mais de 80% da populaoe o Brasil era um dos poucos pases em que ainda existia escravido.

    Nessa poca, surgiu entre o pblico ilustrado um interessegrande, embora difuso, por temas ligados s cincias. A divulgaocientfica que passou a ser realizada tinha como caracterstica marcantea idia de aplicao das cincias s artes industriais. O interesse doimperador d. Pedro II pela cincia tambm favoreceu algumas atividadesligadas difuso dos conhecimentos.

    Do ponto de vista da divulgao da cincia nos peridicos, aanlise do catlogo da Biblioteca Nacional mostra que, ao longo detodo o sculo, foram criados cerca de 7.000 peridicos no Brasil, dosquais aproximadamente 300 relacionados de alguma forma cincia.Com peridicos relacionados cincia queremos dizer aquelesproduzidos por instituies ou associaes cientficas ou ainda quetinham em seu ttulo a palavra cientfico ou cincia. Na realidade,boa parte deles, mesmo com o ttulo de cientficos, trazia muitopouco material com contedo de cincia, limitando-se a notcias curtasou curiosidades cientficas. Ainda assim significativo, e um reflexo docontexto cultural da poca, o fato de trazerem explicitamente em seusttulos a referncia componente cientfica (real ou no).

    Um dado interessante surge quando analisamos as datas decriao desses peridicos. Nota-se claramente o grande crescimento donmero de peridicos de carter geral no perodo de 1850 a 1880. Htambm um crescimento acentuado na criao de peridicosrelacionados cincia a partir de 1860, com pice em 1875, o queilustra o aumento relativo de interesse pelos temas de cincia.Evidentemente, dada a centralizao da estrutura poltica e educacional,parte significativa dos peridicos era do Rio de Janeiro.

    Em 1857, foi criada a Revista Brazileira Jornal de Sciencias,Letras e Artes, que inclua entre seus redatores vrios intelectuais.

    3 AZEVEDO, Fernando de (ed.). As cincias no Brasil. 2 v. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.

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    Essa publicao trimestral, dirigida pelo engenheiro e matemticoCndido Batista de Oliveira4, trouxe uma contribuio no desprezvelpara a divulgao cientfica no pas. Entre os mais ativos participantesda revista estavam Guilherme Schch de Capanema, Freire Alemo eEmmanuel Liais. A Revista Brazileira publicava tanto artigoselaborados pela prpria equipe como artigos extrados de publicaesnacionais ou estrangeiras.

    A partir de 1874, com a ligao telegrfica do Brasil com aEuropa, por meio do cabo submarino, os jornais comearam tambma divulgar notcias mais atualizadas sobre novas teorias ou descobertascientficas. interessante destacar que, nesse perodo, surgiu DoutorBenignus, escrito por Augusto Emlio Zaluar, em 1875, possivelmenteo primeiro livro brasileiro dedicado fico cientfica.5 Usando umestilo similar ao de Jlio Verne, Zaluar descreveu uma expediocientfica hipottica ao interior do Brasil.

    Em 1876, foi lanada a Revista do Rio de Janeiro. Segundo seuprimeiro editorial, um dos meios mais eficazes de favorecer a instruoe o progresso, e ao mesmo tempo prestar valioso servio ao pas, quetem tudo a ganhar com a difuso das luzes, vulgarizar as cincias,letras, artes, agricultura, comrcio e indstria.6 Levantamento realizadonos dois volumes publicados em seu primeiro ano de vida mostrouque, de seus 98 artigos, 21% eram de divulgao cientfica, 18%tcnicos e 4% referiam-se a notcias curtas cientficas. Entre os textosque podem ser considerados de divulgao cientfica, destacam-se ostemas: histria da Terra, sonambulismo, crebro, classificao zoolgica,hidrografia, respirao, pneumonia e febre amarela.

    Outra revista, criada em 1881, foi Cincia para o Povo, umapublicao semanal com a maioria dos artigos sobre cincia, emparticular sade e comportamento. Assuntos controversos para a poca,tais como divrcio, frigidez feminina, impotncia masculina eesterilidade, foram ali publicados. Uma revista humorstica desseperodo, a Revista Ilustrada, publicada por Angelo Agostini, ficou famosapelas belas ilustraes e pela ironia com que tratava os problemaspolticos. Do ponto de vista da cincia, Agostini produziu tambm

    4 MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa. Cndido Batista de Oliveira e a implantao do sistemamtrico decimal no Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Histria da Cincia, 18, pp. 3-16, 1997.5 A Editora da UFRJ publicou, em 1994, uma nova edio desse livro.6 Revista do Rio de Janeiro, n. 1, 1876.

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    ilustraes que ironizavam o interesse do imperador pela astronomia,em particular sobre as expedies astronmicas financiadas pelo governo.

    Nos anos 1886-1891, circulou a Revista do Observatrio. Editadamensalmente pelo Imperial Observatrio do Rio de Janeiro, tinha emsua comisso de redao cientistas conhecidos como Lus Cruls eHenrique Morize. Alm de publicar observaes e trabalhos executadosno Observatrio, a revista relatava as descobertas e os progressos maisimportantes em astronomia, meteorologia e fsica do globo. Os assuntoseram limitados a temas cientficos, ao contrrio das revistasanteriormente mencionadas, que uniam cincias, letras e artes na mesmapublicao. Apesar dessa preocupao de divulgao, os textos da Revistado Observatrio eram difceis para o pblico no-especializado. A revistatrazia, no entanto, ilustraes e uma disposio dos textos maismoderna, distribuda em colunas, ao contrrio da Revista do Rio deJaneiro e da Revista Brazileira, que tinham a aparncia de livro.

    Consideremos, agora, a questo das conferncias pblicas sobrecincia realizadas no perodo. Em sua expedio ao Brasil, a chamadaExpedio Thayer (1865/66), Louis Agassiz, naturalista americano deorigem suia, realizou algumas das primeiras conferncias cientficasdestinadas a um pblico ilustrado, tendo contado, inclusive, com aparticipao pioneira de mulheres. J em sua primeira estada no Rio,em junho de 1865, a convite do imperador, Agassiz fez vrias palestrasabertas ao pblico.7 Em seu retorno ao Rio, cerca de um ano depois,Agassiz fez novamente seis conferncias sobre a Amaznia, com oobjetivo explcito de divulgar a (suposta) confirmao de suas idiassobre a existncia de um perodo glacial naquela regio e para apresentarseus argumentos crticos contra o transformismo e a teoria da seleonatural de Darwin-Wallace. Significativamente, a primeira apresentaopblica no Brasil das idias da seleo natural parece ter sido feita,portanto, por um de seus principais oponentes.

    Elizabeth Agassiz fez comentrios saborosos sobre essas palestrasem que analisava tambm o comportamento da platia:

    Agassiz concluiu esta semana outra srie de conferncias no ColgioD. Pedro II sobre a Formao do Vale do Amazonas e seus produtos.A presena de senhoras nesses saraus cientficos no provoca maiscomentrios; houve um nmero muito maior delas no auditrio que

    7 AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865/1866. So Paulo: EditoraItatiaia/EDUSP, 1975.

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    nas primeiras conferncias, nas quais sua presena era novidade. Nada to simptico como um auditrio brasileiro; nisso o pblico destepas se assemelha mais ao da Europa que o nosso, sempre frio eimpassvel. H um leve movimento, uma espcie de comunicaoentre o orador e os que o escutam, quando alguma coisa agrada aosouvintes, muitas vezes mesmo uma palavra de elogio ou de crtica.8

    Quanto s Exposies Nacionais, elas se iniciaram no Brasil, em1861, dentro da perspectiva de serem preparatrias da participao dopas nas Exposies Universais, o que ocorreu em 1862, 1867, 1873,1876 e 1889. Elas constituram-se, apesar de vrias deficincias elimitaes que refletiam tambm o estado da arte nacional,importantes elementos de difuso da cincia em seus aspectos aplicados.Seu objetivo maior era serem vitrines da produo industrial e agrcolanacionais. Na primeira Exposio Nacional, houve uma mdia de 1.127visitantes por dia, durou 42 dias e ocorreu na Escola Central (Largo deSo Francisco, Rio de Janeiro).9 Na segunda, em 1866, que antecedeu Exposio Universal de 1867, em Paris (que teve cerca de 11 milhesde visitantes), o nmero total de visitantes foi 52.824.10 Foi realizadano edifcio da Casa da Moeda, no Campo de Santana.

    Em 1873, iniciou-se uma das atividades de divulgao cientficamais significativas da histria brasileira e que duraria quase 20 anos:as Conferncias Populares da Glria11, que, ao que parece, tiveramimpacto significativo na elite intelectual do Rio de Janeiro. Osassuntos tratados eram os mais diversos: glaciao, clima, origem daTerra, responsabilidade mdica, doenas, bebidas alcolicas, ginstica,o papel da mulher na sociedade, educao etc. As confernciastransformaram-se, muitas vezes, em palco para discusses polmicas,como liberdade de ensino, a criao de universidades e o significadodas diversas doutrinas cientficas. Miranda Azevedo12, por exemplo,defendeu publicamente a teoria da seleo natural de Darwin-Wallace,que despertava muita controvrsia na poca. Importantes jornais, comoo Jornal do Commercio, a Gazeta de Notcias e o Dirio do Rio de Janeiro,

    8 AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elizabeth Cary. op. cit. p. 280.9 Relatrio Geral da Primeira Exposio Nacional 1861. Rio de Janeiro: Typographia do Dirio do Riode Janeiro.10 Relatrio da Segunda Exposio Nacional de 1866. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1869.11 FONSECA, Maria Raquel Fres. As Conferncias Populares da Glria: a divulgao do sabercientfico. Histria, Cincia, Sade Manguinhos, II/3, pp. 135-166, 1996.12 COLLICHIO, Terezinha Alves Ferreira. Miranda Azevedo e o darwinismo no Brasil. Belo Horizonte/So Paulo: Editora Itatiaia/Editora da USP, 1988.

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    anunciavam as conferncias, sendo que, em alguns casos, publicavamo resumo da palestra ou mesmo sua ntegra. Em 1876, diversasdessas conferncias foram publicadas na coletnea ConfernciasPopulares.13

    Merece ser mencionada ainda a atuao dos museus de histrianatural.14 Fundado com o objetivo de propagar os conhecimentos eos estudos das cincias naturais, o Museu Nacional desenvolveu vriasatividades de divulgao nessa rea. Os cursos populares estavam,naquele momento, entre as atividades prioritrias do diretor doMuseu, Ladislau Netto. Para ele o Museu tinha duas finalidadesessenciais: colecionar as riquezas do Brasil e instruir o povo,inoculando nos jovens o gosto pelas pesquisas cientficas. Em 1876,iniciaram-se os Cursos Pblicos do Museu, que se estenderam por cercade dez anos.15 Eram constitudos de palestras e cursos ministradospor pesquisadores das diferentes sees dos Museus, em especialidadescomo botnica, agricultura, zoologia, mineralogia, geologia eantropologia. Em 10 de maro de 1876, o Jornal do Commerciopublicava: Estes cursos, que j houve um ensaio ano passado, sodestinados instruo das classes estranhas ao estudo da histrianatural, das senhoras, dos homens de letras, dos empregados pblicos,do povo, enfim, que poder utilizar deste modo uma hora desocupadada noite em proveito de sua instruo. Os cursos, que tinham seusresumos publicados no mesmo jornal, contavam muitas vezes comdemonstraes prticas. Apesar da boa receptividade exibida pelopblico e pela imprensa, os palestrantes foram gradualmente deixandode priorizar a atividade, voltando suas atenes para as suas obrigaesusuais no Museu.

    Outro cientista de destaque nesse perodo e que percebeu aimportncia da vulgarizao cientfica, termo utilizado na poca, foiEmlio Goeldi, diretor do Museu Paraense. O novo regulamento dessemuseu, aprovado em 1894, reorganizou a instituio e definiu que omuseu se propunha ao estudo, ao desenvolvimento e vulgarizao

    13 CORREIA, Conselheiro Manoel Francisco. Conferncias Populares (coletnea das confernciasrealizadas na Glria em 1876). Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & C., 1876.14 LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa cientfica. Os museus e as cincias naturaisno sculo XIX. So Paulo: Hucitec, 1995.15 S, Magali Romero; DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. O Museu Nacional e o ensino decincias naturais no Brasil no sculo XIX. Revista da Sociedade Brasileira de Histria da Cincia,n. 15, pp. 79-87, 1996.

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    da Histria Natural e etnologia do estado do Par e da Amaznia emparticular, e do Brasil, da Amrica do Sul e do continente americanoem geral.16 Para organizar conferncias pblicas, foi criada, em 1896,a Sociedade Zeladora do Museu Paraense. Foram feitas palestras sobretemas da Amaznia que superaram a expectativa de pblico e quecontaram com a presena de governadores do estado. Essas confernciasso um exemplo do surto de atividades de divulgao cientfica que seespraiaram pelo pas, mesmo que com algum atraso, fato comprovadotambm pelo surgimento de peridicos cientficos em vrios estados.

    Documento importante para a compreenso do quadro dadivulgao cientfica da poca foi redigido pelo bilogo francs LouisCouty, que trabalhava no Rio de Janeiro. Preocupado com odesenvolvimento da cincia brasileira e muito ativo nesse particular,Couty escreveu o primeiro artigo de uma coluna dedicada novapropaganda cientfica na Revista Brazileira, em 1875.17 Nele, Coutydefendia ardorosamente o desenvolvimento das cincias experimentaisno Brasil e dava nfase especial vulgarizao cientfica. Quando tratouda divulgao cientfica, mencionou seu grande desenvolvimento naEuropa naquele momento e analisou possveis maneiras para seestimular o pblico no-especializado em direo cincia. Coutydiscutiu a situao brasileira e props que segussemos os mesmoscaminhos trilhados na Europa, reconhecendo j a existncia deatividades significativas de divulgao no Brasil, mas ainda poucovoltadas para questes prprias da cincia brasileira.

    Alm dos estrangeiros que passaram pelo Brasil (como KarlPhilipp Von Martius e Johan Spix, Georg von Langsdorff, Augustede Saint-Hilaire, Alfred Wallace, Henry Bates e Charles Darwin),outros (como Peter Lund e Fritz Mller) passaram a residir no pas.Com a estada temporria ou provisria desses cientistas, possvelque tenha havido algum tipo de difuso de idias cientficas, aindaque indireta, na medida em que viajavam por lugares remotos dopas e tinham interaes com uma parcela da populao local. Essaespeculao est escorada em alguns comentrios que podem serencontrados em seus livros de viagem. Registre-se tambm a existnciaevidente de processos de transmisso de conhecimentos no sentido

    16 Regimento do Museu Paraense (1894). p. 22.17 COUTY, Louis. Os estudos experimentais no Brasil. Revista Brazileira, II, pp. 215-239, 1879.

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    inverso, isto , os naturalistas adquirindo informaes e conhecimentosvariados, embora no contidos no quadro demarcatrio da cincia,das populaes nativas.18

    Duas caractersticas gerais emanam das observaes feitas sobrea divulgao da cincia nesse perodo. Em primeiro lugar, os principaisdivulgadores so homens ligados cincia por sua prtica profissionalcomo professores, engenheiros ou mdicos ou por suas atividadescientficas, como naturalistas, por exemplo. No parece ter sido relevantea atuao de jornalistas ou escritores interessados em cincia. O segundoa