CIÊNCIA E RELIGIÃO NOS ESCRITOS EDUCATIVOS DE JOHN LOCKE
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CIÊNCIA E RELIGIÃO NOS ESCRITOS EDUCATIVOS DE JOHN LOCKE
Christian Lindberg L. do NascimentoUNICAMP/FAPESP
Email: [email protected]: Profa. Dra. Lidia Maria Rodrigo
Resumo:O presente texto tem como objetivo central discorrer sobre o pensamento educativo de John Locke. Embora haja argumentações relevantes e pertinentes, a abordagem que este trabalho desenvolve é centrada, única e exclusivamente, no aspecto moral. Para tanto, parte-se de um problema identificado no conjunto da obra de Locke. Fala-se da aparente controvérsia entre a ciência e a religião e o papel que cada uma exerce na formação moral da criança. É com base nesse recorte que a presente análise é feita. Para a construção argumentativa, utilizou-se como fonte primária: Do estudo (1677), Apontamentos de uma carta de Locke para a Condessa de Peterborough (1697), Ensaio sobre a lei assistencial (1697) e Algumas ideias acerca da leitura e do estudo para um cavalheiro (1703). De forma secundária, foi adotada obras de comentadores relevantes. Por ser um estudo estritamente qualitativo, o procedimento metodológico usado foi a análise de conteúdo, sendo a leitura, o fichamento e a interpretação dos dados obtidos a técnica de pesquisa empregada.Palavras-chave: Ciência, educação, Locke, moral, religião.
XIX Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTEDe 07 a 10 de outubro de 2014 – UNIOESTE Campus de Toledo
http://www.unioeste.br/filosofia/
John Locke é daqueles autores que não desenvolveu uma reflexão sistemática a
respeito da educação. Sendo assim, qual o motivo de ele ter sido inserido como um
expoente para a Filosofia da educação? Para responder a este questionamento, a presente
argumentação virá expor a concepção educativa do filósofo inglês, tendo como ponto de
partida o papel que os conteúdos educativos têm. Esta abordagem será alicerçada em
quatro obras educacionais dele.
Escrito durante o exílio na França, Do estudo aparece como a primeira publicação
educativa de Locke. Baillon (2005, p. 20) observa que este manuscrito foi redigido com o
intuito de estabelecer um método de trabalho direcionado a um adulto que se dedica aos
estudos, tendo como foco elevar a própria autonomia e complementar a formação
intelectual. Por outro lado, diz o comentador, Do estudo apresenta um esboço do que será o
STCE.
O que Locke expõe nesta obra são caminhos e métodos para o aperfeiçoamento das
experiências da própria pessoa, requisito necessário para o governo de si. Assim, o objetivo
da educação é estabelecer uma filosofia moral, a ponto de o governo de si ser a premissa
fundamental para a constituição de uma sociedade. Esta filosofia moral compreende a
religião e as obrigações que a moral religiosa impõe para a vida de cada um.
Locke parte da análise da educação vigente, centrada nas disputas – disputation - e
na memorização dos conteúdos educativos. A refutação manifesta-se quando o filósofo
afirma que o labirinto de palavras e frases é inventado somente para instruir e entreter as
pessoas na arte da disputation (LOCKE, 1986b, p. 354). Assim, o que há é o
desenvolvimento de palavras, frases e argumentos sem o progresso do conhecimento. Na
crítica à educação vigente, o filósofo demonstra certa preocupação com o uso inapropriado
do tempo para o estudo. Como exemplo, cita o caso do ensino de idiomas. Para ele, perde-
se muito tempo lecionando idiomas inúteis para a vida do infante. Como contraponto,
defende que é mais importante aprender o vernáculo do que outro idioma, salvo aqueles
que põem o indivíduo em contato direto com o texto original das Sagradas Escrituras, já
que esta obra traz consigo o fundamento eterno da verdade.
Por outro lado, Do estudo implica três direções para cada indivíduo: 1) O
conhecimento do caminho que o conduz para os assuntos celestiais; 2) A percepção de que
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a felicidade em outro mundo requer uma conduta discreta e o autocontrole, ou seja, que o
indivíduo seja prudente; 3) O ensino de uma profissão, já que o trabalho é uma norma
estabelecida por Deus, obrigando cada um a trabalhar para garantir a própria subsistência.
Para Locke, o livro é o recurso didático mais apropriado para ensinar. A leitura e a
meditação sobre os conteúdos trazidos por ele tornam-se a ponta de lança para a ação, o
que requer a seleção das melhores obras e autores. Esta preocupação de Locke tem um
motivo. O que o filósofo pretende é tornar possível à mente humana aprender os
conhecimentos úteis para a ação, respeitando os princípios da moralidade.
Mas o que mais chama a atenção nesta obra é a relação entre a vida mundana e a
extramundana, relação esta que perpassa implicitamente o Do estudo. Escrita na década de
1670, a obra repercute o alinhamento existente entre a lei de natureza e a lei civil. Como a
moral é o tema central dos escritos lockeanos, parece que os preceitos educativos contidos
em Do estudo demonstram afinidade com a teoria política defendida pelo filósofo. Mais do
que isso, o que Locke pretende é, através da educação, estabelecer as condições necessárias
para que a criança aprenda a verdade e a pratique em sociedade, até porque esta é um dever
que os seres humanos têm para com Deus, fonte e autor de toda a verdade.
Já Apontamentos de uma carta de Locke para a Condessa de Peterborough (ALCP)
é uma carta endereçada à citada condessa, que tinha pleiteado orientações para educar o
próprio filho. Para Baillon (2005, p. 21), este pequeno texto não tem a pretensão de ser um
minucioso tratado educativo. O que Locke fez foi indicar à condessa ensinamentos úteis
para a educação da criança. Nesta obra, o filósofo inglês afirma que a educação é o fator
determinante para o futuro da criança, portanto os pais devem se preocupar bastante com
ela. Essa observação é pertinente porque Locke expõe uma breve rejeição à educação então
vigente.
Locke estabelece que o objetivo central da educação é a formação moral da criança.
Para tanto, defende a importância de o infante conhecer a História: “A história é
considerada como um dos estudos mais necessários para um cavalheiro e um dos mais
divertidos e fáceis de ser aprendido.” (LOCKE, 1986a, p. 352, tradução minha). O fato de
ele citar Tito Lívio caracteriza a preocupação com a formação do futuro governante. O
ensino de conteúdos relacionados à Geografia, à Cartografia, à Cronologia e à Leitura só
tem utilidade se colaborar para a melhor compreensão da História.
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Deve-se ensinar à criança outros conteúdos educacionais, como a filosofia natural,
a química, a anatomia. Seguindo os passos metodológicos da Ciência moderna, Locke
recomenda que sejam ensinadas primeiramente as coisas mais fáceis e perceptíveis aos
sentidos da criança para, só em seguida, se proceder de forma gradual até as questões mais
abstratas.
Todavia, se os conteúdos científicos colaboram para a educação da criança, Locke
atribui ao Novo Testamento o poder de ser o principal guia moral para o infante. Jesus
Cristo é o exemplo de homem a ser constituído e seguido. É com base nessa preocupação
que Locke vincula educação e política, a ponto de dizer que a verdadeira política é uma
parte da Filosofia moral. Assim, a educação deve ser capaz de formar as crianças para que
elas vivam em comunidade, mesmo sendo ela recheada de vícios.
Alguns pensamentos a respeito de leitura e estudo para um cavalheiro foi redigido
com o propósito de produzir um programa de leitura destinado aos indivíduos. Baillon
(2005, p. 21) chama atenção para o fato de que com esta obra Locke demonstra adaptar
seus conselhos e métodos educativos para as situações concretas mais diversas. As
recomendações feitas por ele têm como preocupação central aperfeiçoar o entendimento
humano: “A leitura existe para aperfeiçoar o entendimento. O aperfeiçoamento do
entendimento tem duas finalidades: primeiro, visa a nosso próprio aumento do
conhecimento; segundo, visa a nos permitir transmitir e mostrar esse conhecimento para os
outros.” (LOCKE, 2007a, p. 435). Ora, sendo a atribuição central da leitura o
aperfeiçoamento do vocabulário e o enriquecimento dele para que cada indivíduo possa
melhor expor as próprias ideias, pode-se apontar que a leitura colabora para o
desenvolvimento do entendimento. De igual modo, da mesma forma que Locke defende
que os conteúdos educativos tenham uma utilidade prática para a vida das pessoas, com a
leitura não poderia ser diferente. Contudo, ele atenta ao fato de que as leituras não podem
conduzir à erudição, pelo contrário, as leituras devem possibilitar o raciocínio correto.
Sendo assim, o que ler então? Os livros devem ser selecionados de acordo com a
moralidade a que se pretende conduzir o leitor. Embora reconheça a existência de vários
livros que podem cumprir esse papel, o Evangelho é o que há de melhor quando o assunto
é a formação moral. Para Locke, só o Novo testamento é capaz de ensinar a verdadeira
moralidade. Livros de política também fazem parte das sugestões dele. A leitura de textos
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políticos precisa relatar a origem das sociedades e a história da própria nação. Ele
menciona outros tipos de leitura. Devem ser lidos livros de Cronologia e Geografia para
darem suporte aos de História, além de ser recomendada a leitura de livros que auxiliem no
conhecimento da natureza do próprio homem.
Estas três primeiras obras – Do estudo, Apontamentos de uma carta de Locke para
a Condessa de Peterborough e Alguns pensamentos a respeito de leitura e estudo para um
cavalheiro - são direcionadas para alguns casais que integram o círculo de amizade de
Locke, o que pode conduzir a leituras apressadas, simplistas e que apontam o filósofo
inglês como precursor da educação burguesa.1 No entanto, há outro texto produzido por ele
que é direcionado para as camadas pobres da sociedade, onde aborda o tema da educação
para os pobres.
Escrito com o objetivo de dar uma contribuição à lei assistencial proclamada por
Elizabeth, no ano de 1601, o Ensaio sobre a lei assistencial é uma obra que registra
sugestões para a primeira política de assistência social2 de que se tem relato. Locke (2007b,
p. 226) argumenta em torno da necessidade de que cada paróquia deve ser obrigada a
fornecer emprego para os homens pobres e fisicamente capazes, de modo a garantir meios
de subsistência para eles e permitir a arrecadação de um imposto para sustentá-los.
Locke argumenta que não há falta de empregos para os pobres, e atribui a Deus a
fartura de alimentos, a pujança no comércio e a paz. Contudo, para o filósofo inglês a
origem da pobreza é o vício e ocorre por causa do relaxamento da disciplina e do aumento
do ócio. Ele alega que a pobreza é uma vergonha para a cristandade. Locke chega a ser
rígido quanto às punições, propondo que todos aqueles que possuam um corpo e uma
mente sã, tenham mais de 14 anos e estejam mendigando sejam presos ou enviados para
1 Karl Marx e Friedrich Engels apontam, no Manifesto comunista, o papel histórico da burguesia e os feitos realizados por ela. Afirmam que a burguesia ao chegar ao poder desempenhou um papel revolucionário e decisivo na história da humanidade, derrubando todas as relações feudais e monárquicas existentes, além de desvelar a brutalidade da Idade Média. Este relato é oportuno porque Locke colaborou com o protagonismo político da burguesia inglesa do século XVII, a mesma que realizou a primeira grande revolução burguesa na Europa. Desconsiderar este fator contextual seria um erro grotesco que poderia conduzir os intérpretes ao anacronismo.2 No final do século XVI e início do XVII, a Inglaterra passou por um grande êxodo rural. Pessoas dos mais diversos cantos do país migraram para as cidades em busca de trabalho. Preocupada com a explosão social, a rainha Elizabeth, com a chancela do parlamento, aprovou a denominada Lei dos Pobres, que tinha como atributo central garantir assistência social para os pobres que residiam nos centros urbanos. A ideia funda-se no preceito de que o Estado repassasse recursos para a Igreja e que esta instituição realizasse atividades assistenciais como, por exemplo, alimentar os pobres, capacitá-los profissionalmente, cuidar da saúde deles e preocupar-se com a sua formação moral.
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realizar trabalho forçado nos portos ingleses. Já para as crianças com menos de 14 anos, o
castigo é o encaminhamento para as escolas, locais onde são açoitadas e obrigadas a
trabalhar até o anoitecer.
Mészáros, no livro Educação para além do capital, afirma que Locke pretendia
controlar as atividades dos pobres com uma disciplina perversa, mesmo sendo um homem
religioso. Segundo Mészáros, Locke promove a combinação entre “uma disciplina de
trabalho severa e a doutrinação religiosa”, e complementa: “As medidas tinham de ser
aplicadas aos ‘trabalhadores pobres’ e eram radicalmente diferentes daquelas que os
‘homens de razão’ consideravam adequadas para si próprios.” (MÉSZÁROS, 2005, p. 42).
Estabelece-se, assim, a divisão entre a educação para os ricos e para os pobres, separação
guiada pelo afloramento do capitalismo. O que o marxista húngaro esquece de mencionar é
que os únicos ambientes educativos para as crianças pobres eram as denominadas escolas
de caridade.3
O que se pode afirmar é que a formação moral guiou a reflexão educativa feita por
Locke. Inicialmente, ele defende que devem ser construídas escolas operárias4 para os
filhos dos pobres5 em cada paróquia, nas quais as crianças recebam alimentação, aprendam
um ofício e sejam obrigadas a frequentar a Igreja aos sábados. O filósofo inglês argumenta
que a instituição religiosa tem a tarefa de realizar a educação moral dos infantes,
corrigindo-as para o convívio social.
Por fim, o trajeto educativo exposto por Locke nas reflexões filosóficas contidas em
Do estudo, Apontamentos de uma carta de Locke para a Condessa de Peterborough e
Ensaio sobre a lei assistencial aponta para um mesmo caminho: a constituição de
indivíduos moralmente corretos. Para tanto, os conteúdos educativos tornam-se meios
fundamentais para que isso ocorra, a ponto de que cada conteúdo tenha validade na medida
3 A escola de caridade é uma consequência prática da moral calvinista. Para os reformadores educacionais, a caridade é um dever civil universal. O próprio Locke, no Dois tratados sobre o governo, expõe que: “Tal como a justiça confere a cada homem o direito ao produto de seu esforço honesto e as legítimas aquisições de seus ancestrais são transmitidas a ele, a caridade confere a cada homem o direito àquela porção da abundância de outrem que possa afastá-lo da extrema necessidade quando não dispõe de outros meios para subsistir.” (LOCKE, 2001, p. 244)4 Embora centre a sugestão para o meio urbano, Locke não descarta a educação agrícola como um dos tipos de escolas operárias.5 A faixa etária estipulada vai dos 3 até os 14 anos. A criação destas escolas permite às mães irem ao trabalho sem se preocuparem com a assistência para o filho, já que estes estão em um ambiente seguro. Inclusive, os pais podem receber uma pensão destinada a comprar os mantimentos necessários para a sobrevivência dos filhos, se os enviarem para as escolas paroquiais.
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em que seja útil para a vida futura da criança. Por outro lado, percebe-se que a moral cristã,
ensinada a partir das Sagradas escrituras, contém os ensinamentos necessários para o
estabelecimento desse indivíduo moral.
Referências Bibliográficas:
BAILLON, Jean François. Une philosophie de l’éducation: John Locke, Some thougths concerning education (1693). Domont-FRA: Dupli-Print, 2006.
EBY, Friedrich. História da educação moderna. Rio de Janeiro: Globo, 1978.
LOCKE, John. Alguns pensamentos a respeito de leitura e estudo para um cavalheiro. In.: Ensaios políticos. Organizado por Mark Goldie. Tradução Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2007a. p.434-442.
______. Borrador de una carta de Locke a la Condessa de Peterborough. Tradução Rafael Lasaleta. Madrid: AKAL, 1986a.
______. Del estudio. Tradução Rafael Lasaleta. Madrid: AKAL, 1986b.
______. Dois tratados sobre o governo. Tradução Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Clássicos).
______. Ensaio sobre a lei assistencial. In.: Ensaios políticos. Organizado por Mark Goldie. Tradução Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2007b. p.226-246.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre: DP&M, 2001.
MÉSZÁROS, István. Educação para além do capital. Rio de Janeiro: Boitempo, 2005.
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