Ciências & Cognição. Ano 4, Vol.12, Dezembro 2007. · Revista Eletrônica de Divulgação...

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Ciências & Cognição. Ano 4, Vol.12, Dezembro 2007. ISSN 1806-5821. Revista Eletrônica de Divulgação Científica. © ICC - Instituto de Ciências Cognitivas. Ciências & Cognição é uma publicação apoiada pelo Instituto de Ciências Cognitivas (ICC). Revista Ciências & Cognição:

A/C Prof. Dr. Alfred Sholl-Franco. Universidade Federal do Rio de Janeiro - Av. Carlos Chagas Filho, S/N, Centro de Ciências da Saúde, Instituto de Biofísica Car-los Chagas Filho, Bloco G, sala G2-032/019, Cidade Universitária, Ilha do Fundão – Rio de Janeiro – RJ 21.941-902.

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Brito (UNICAMP, Campinas, SP), Marcos Emanoel Pereira (UFBA, Salvador, BA), Paula Ventura (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Paulo Gomes Lima (FAECH, Hortolândia, SP), Renata Ferrarez Fernandes Lopes (UFU, Uberlândia, MG), Ricardo Wainer (UNISINOS e PUC-RS, Porto Alegre, RS), Simone da Silva Machado (UNISC, Santa Cruz do Sul, RS), Suzete Venturelli (UnB, Brasília, DF), Tattiana Gonçalves Teixei-ra (UFSC, Florianópolis, SC), Thomaz Decio Abdalla Siqueira (UFAM, Manaus, AM), Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Wilson Mendonça (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ). Revisor ad hoc Internacional Jorge de Almeida Gonçalves (PhD). Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH). Lisboa, PT. Site: http://www.cienciasecognicao.org.

Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & CogniçãoISSN 1806-5821 - Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

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Editor: Nome: Prof. Dr. Alfred Sholl-Franco Endereço: Sala G2-032/019, Bloco G – Centro de Ciências da Saúde

Programa de Neurobiologia - Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro, Av. Carlos Chagas Filho, S/N Cidade Universitária, Ilha do Fundão – CEP 21.941-902 - Rio de Janeiro/RJ

E-mail: [email protected]. Website: http://www.cienciasecognica.org. Conteúdo Ciên. & Cogn. 12, 2007. Índice PáginaEditorial. Editores.

01

Efeito stroop e rastreamento ocularno processamento de palavras. Stroop effect and eye-tracking in word processing. Marcus Maia, Miriam Lemle e Aniela Improta França.

02

Do herói ficcional ao herói político. Of the imaginary hero to the political hero. Hilda Gomes Dutra Magalhães, Luíza Helena Oliveira da Silva e Dimas José Batista.

18

Infância, cinema e leitura: um tripé viável. Childhood, cinema and reading: a possible tripod. Lovani Volmer e Flávia Brocchetto Ramos.

31

Lineamientos para la configuración de un programa de intervención en orientación. Limits for the configuration of a interferation ptogram in orientation. Denyz Luz Molina Contreras.

40

Leitura de estudo: estratégias reconhecidas como utilizadas por alunos universitários. Study reading: strategies recognized as the most used by university students. Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin.

51

Criatividade na rede: a potencialização de idéias criativas em ambientes hipertextuais de aprendiza-gem. Creativity in the network: the potentiality of creative ideas in hypertext learning environments. Ângela Álvares Correia Dias e Karina da Silva Moura.

62

Construindo mapas conceituais. Constructing concept maps. Romero Tavares.

72

Mapas conceituais: estratégia pedagógica para construção de conceitos na disciplina química orgânica.Conceptual maps: pedagogical strategy for construction of concepts in disciplines organic chemistry. João Rufino de Freitas Filho.

86

Obstáculos epistemológicos no ensino de ciências: um estudo sobre suas influências nas concepções de 96

Ciências & Cognição ISSN 1806-5821

Vol. 12, Ano 4 Dezembro 2007

Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição

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átomo. Epistemological obstacles in science teaching: a study about their influences on the atom conceptions. Henrique José Polato Gomes e Odisséa Boaventura de Oliveira. Integrando o Ensino da Patologia às Novas Competências Educacionais. Integrating the learn of Pathology to new education competences. Mário R. de Melo-Júnior, Jorge Luiz S. Araújo-Filho, Vasco José R. M. Patu, Marcos Cezar F. de Paula Machado, Nicodemos T. de Pontes-Filho.

110

Psicopedagogia: limites e possibilidades a partir de relatos de profissionais. Psychopedagogy: limits and possibilities according from the professionals experiences. Maria Regina Peres e Maria Helena Mourão Alves Oliveira.

115

Pensamento, crenças e complexidade humana. Thinking, beliefs and human complexity. Cristina Satiê de Oliveira Pátaro.

134

Ciência da Computação e Ciência Cognitiva: um paralelo de semelhanças. The computer science and the cognitive science: a similarity parallel. Caroline Andréia Eifler Saraiva e Irani I. de Lima Argimon.

150

Estilo de vida como indicador de saúde na velhice. Life style as health indicator on ageing. Vera Lygia Menezes Figueiredo.

156

Interação e Construção: o Sujeito e o Conhecimento no Construtivismo de Piaget. Interaction and Construction: the Subject and the Knowledge in the Constructivism of Piaget. Isabelle de Paiva Sanchis e Miguel Mahfoud.

165

O que é ser humano? What is to be a human being? Luiz Antonio Botelho Andrade, Edson Pereira da Silva e Eduardo Passos.

178

A teoria da representação cognitiva de Hobbes. Hobbes´s theory of cognitive representation. Cláudio R. C. Leivas.

192

Robôs como artefatos. Robots as artifacts. Dulce Maria Halfpap, Gilberto Corrêa de Souza, João Bosco da Mota Alves.

203

Cognição e texto: a coesão e a coerência textuais. Cognition and text: the literal cohesion and coherence. Carmen Elena das Chagas.

214

O uso de narrativas autobiográficas no desenvolvimento profissional de professores. The use of autobiographical narratives in the professional development of teachers. Denise de Freitas e Cecília Galvão.

219

Membro-fantasma: o que os olhos não vêem, o cérebro sente. Phantom-limb: what the eyes don’t see, the brain feels. Alessandra de Oliveira Demidoff, Fernanda Gallindo Pacheco e Alfred Sholl-Franco.

234

Repensando a função do manicômio na sociedade. Reflexions about the role of lunatic asylum in the society. Maurício Aranha.

240

Normas para publicação. 242

Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição

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Falar na falta de fomento para a pesquisa em nosso país e sua divulgação é inevitavelmente cair na redundância. Tratar de questões como a distribuição do pouco valor a esta destinado nem se fala. O Brasil que tinha, ainda, uma certa tradição de investimento em pesquisa básica vê esta ser gradativamente abandonada em prol de projetos incautos, nitidamente dissonantes às necessidades das instituições já existentes e pouco ou nada lembradas. A solução certamente não caminha pelo dito “despir um santo para vestir outro”. A gênese de novos grupos de pesquisa não deve ter como premissa o estrangulamento de outros já estabelecidos, pelo contrário, deve-se estimular o fortale-cimento daqueles estabelecidos, assim como a colaboração e o apoio entre os já existentes e os em desenvolvimento, principalmento no que se refere ao Ensino e a Educação, áreas essências para o desenvolvimento do nosso País.

É com um suspiro de teimoso empenho que ações como a publicação de Ciências & Cogni-ção deixa em todos os envolvidos a grata sensação de la resistance acadêmica. Grande é o bem-estar de se ver envolvido neste projeto e observar, ao fim deste quarto ano de publicação constante e ininterrupta, o reconhecimento por uma larga comunidade de leitores e colaboradores (consultores ad hoc, pareceristas e autores), contando até o lançamento deste último volume (12, dez./2007) com o total de 664.049 visitas. Nestes quatro anos, foram publicados 158 trabalhos acadêmicos (86 arti-gos científicos, 32 revisões, 15 ensaios, 1 análise de caso clínico, 15 artigo de divulgação científica e 9 resenhas). Tais resultados reforçam a sensação de que estamos trilhando o caminho certo. Ainda mais tendo conhecimento de que se trata de uma iniciativa sem fins lucrativos e sem apoio financei-ro de qualquer nível governamental. Iniciativa suportada apenas pelo apoio do Instituto de Ciências Cognitivas (ICC), a firmeza de vontade e pelo propósito de oferecer um canal que trate os pesquisa-dores e leitores brasileiros com a seriedade, dignidade e respeito que entendemos indispensável. Grata é a verificação de que tal iniciativa atravessou fronteiras, vindo contar com colaborações constantes ao longo deste ano de pesquisadores ligados a instituições estrangeiras (Espanha, Portu-gal, Alemanha, Venezuela, México), representando, hoje, 12% dos artigos publicados.

Fiéis à concepção de que o ambiente virtual seria o melhor meio para a visibilidade da pro-dução acadêmica nacional, estimulando a integração de pólos fora dos eixos do sudeste, percebe-mos, ao longo destes quatro anos, a constante e valiosa presença de representantes de todas as regi-ões brasileiras (60% sudeste, 16% sul, 12% nordeste, 10% centro-oeste, 2% norte) e de diversi-ficadas instituições.

Encerrar 2007 vendo frutos saudáveis sendo colhidos é ter certeza de que aquele teimoso empenho está nos conduzindo ao propósito de uma missão que não pretende se dar por cumprida.

Boa leitura!

Editores.

Editorial

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 01 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & CogniçãoISSN 1806-5821 - Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

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Efeito stroop e rastreamento ocular no processamento de palavras1

Stroop effect and eye-tracking in word processing

Marcus Maia , Miriam Lemle e Aniela Improta França

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo Como é a organização cerebral do léxico? As palavras são guardadas por inteiro ou existe derivação que forma uma estrutura interna a elas? Usando dois paradigmas experimentais, investigamos se a de-composição morfológica é uma propriedade fundamental do processamento lexical na leitura de pala-vras isoladas no português do Brasil. O primeiro experimento propõe uma tarefa baseada no chamado Efeito Stroop, no qual processos atencionais concorrentes demonstram a natureza automática das fases iniciais do processamento da leitura. O segundo experimento, usando protocolo de rastreamento ocu-lar durante a leitura, investiga as mesmas palavras, pretendendo identificar, preliminarmente, os pon-tos de fixação e sacadas na primeira passagem do olhar, bem como nos movimentos regressivos. Os resultados obtidos nos dois experimentos permitem reunir evidências de que, no processo de leitura, as palavras são derivadas morfema a morfema, embora haja também heurísticas globais da visão que atuam simultaneamente no processamento da leitura. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 02-17. Palavras-chave: rastreamento ocular; morfologia interna à palavra; efeito stroop. Abstract How is the lexicon organized in the brain? Are words stored as units or is there a derivational proc-ess dynamically combining its pieces at each use? The present study, composed by two experimental paradigms, investigates if morphological decomposition is a property inherent to the lexical process-ing during a reading task in Brazilian Portuguese. The first experiment deals with Stroop Effect, in which attentional processes demonstrate e the automatic nature of the initial phases of processing during reading. Using an eye-tracking protocol, the second experiment investigates the process of reading the same words, aiming at identifying, preliminarily, the fixation points and the saccades during first eye scan, as well as the regressive movements. The results obtained in the two experi-ments gather evidences that, during reading, words are delivered morpheme by morpheme, despite the fact that there are concurrent global heuristics that act simultaneously in reading. © Ciências &

– M. Maia é Doutor em Lingüística (University of Southern California – USC), com Estágio de Pós-doutorado (City University of New York – CUNY). Atualmente é Professor de Lingüística, Departamento de Lingüística (UFRJ), sendo o atual Coordenador do Grupo de Trabalho de Psicolingüística da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL). Endereço para correspondência: Rua Evaldo Gonçalves, 151, Itaipu, Niterói, RJ 24355-060. Telefone: (21) 2609-2919. E-mail para correspondência: [email protected]. M. Lemle possui Graduação em Letras (UFRJ), Mestrado em Lingüística (University of Pennsylvania), Doutorado em Lingüísti-ca (UFRJ e Estágio de Pós-Doutorado (MIT). Atualmente é Professora Titular (UFRJ) e Coordenadora do Laboratório Computações Lingüísticas: Psicolingüística e Neurofisiologia (CLIPSEN; http://www.letras.ufrj.br/ clipsen). A.I. França é Doutora em Lingüística (UFRJ), com Estágios no Cognitive Neuroscience of Language Lab (University of Maryland) no Instituto de Neurologia (UFRJ) e no Ambulatório de AVC (Universidade Federal Fluminense). Atual-mente é Professora (Departamento de Lingüística, UFRJ) e Membro Efetivo do Programa Avançado de Neurociência (PAN; UFRJ).

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 13/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

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Cognição 2007; Vol. 12: 02-17.

Key Words: eye-tracking; morphology internal to words; stroop effect. 1. Introdução

Um tema de pesquisa muito produtivo

em psicolingüística nas últimas três décadas é a investigação do papel do processamento morfológico2 no reconhecimento de palavras e na organização do léxico na mente dos fa-lantes. Uma questão importante do proces-samento lexical consiste em saber como as palavras complexas são armazenadas e aces-sadas: há decomposição morfológica prévia ao acesso lexical? Desde os estudos seminais de Taft e Forster (1975;1976), que investiga-ram experimentalmente a armazena-gem e a recuperação de palavras polimorfê-micas na memória lexical, conduzindo ao modelo BOSS, baseado em fatores ortográficos e morfológicos (Taft, 1979), os estudos sobre o parsing perceptual de palavras oferecem evi-dências contraditórias: de um lado, traba-lhos de orientação co-nexionista, como Sei-denberg e McClelland (1989) argumentam que os efeitos encontrados em estruturas sub-lexicais sejam apenas epifenômenos da re-dundância ortográfica; de outro lado, estudos como Marslen-Wilson et alii (1994) apresen-tam resultados de experimentos de priming evidenciando que as palavras são, de fato, representadas morfemi-camente ao nível da entrada lexical. Além de sua caracterização conflitante em psicolin-güística, a proposição de segmentos sub-lexicais é controversa tam-bém no âmbito da teoria gramatical. Os Mo-delos Lexicalistas (e.g. Chomsky, 1995), embora admitindo unidades menores do que a palavra, consi-deram a palavra pronta como sendo a unidade que dá entrada na derivação sintática, ao passo que modelos não lexica-listas, como a Morfologia Distribuída (cf. Halle e Marantz, 1993), assumem uma com-putação sintática operando por fases com uni-dades desprovidas de som. Ao final de cada fase acontece a competição, seleção e inser-ção de peças de vocabulário nos nós terminais da sintaxe. Estas peças passam então por ope-rações pós-inserção que dão a forma morfo-fonológica final à derivação

O presente estudo investiga, prelimi-narmente, se a decomposição morfológica é uma propriedade fundamental do proces-sa-mento lexical na leitura de palavras isoladas em português, usando dois paradigmas expe-rimentais. O primeiro experimento propõe uma tarefa baseada no chamado efeito Stroop, no qual processos atencionais concorrentes demonstram a natureza automática das fases iniciais do proces-samento da leitura. Nessa tarefa, adaptada do estudo de Prinzmetal e colaboradores (1986), solicita-se a identifica-ção da cor de uma letra componente de um morfema em condição na qual há corte mor-fêmico, comparativamente à condição em que o corte é não morfêmico, incluindo, ain-da, como controle, condição de pseudo mor-femas ou seja, palavras em que há apenas co-incidência fonológica com a forma do mor-fema (e.g. jornalista x entrevista). O obje-tivo do experimento é verificar em que me-dida no processo da leitura a identificação implícita do morfema no interior da palavra fonológica exercerá efeito de facilitação na realização da tarefa de identificação cromática (por exemplo, a cor da letra i da forma ista). Este efeito será medido através de duas variá-veis dependentes: o índice de acertos e os tempos de decisão, computados em milésimos de segundos, utilizando-se a plataforma expe-rimental Psyscope em computador Apple Ma-cintosh.

Um fator adicional também incluído no design desse experimento é a verificação de eventuais diferenças de desempenho resul-tantes da renegociação de significado acarre-tada pela adição do sufixo à raiz, contras-tando-se formas como, por exemplo, jorna-lista com formas como frentista. Note-se que, no primeiro exemplo, o sufixo -ista tem sua computação feita tomando por base aquela da palavra jornal, enquanto que em frentista o significado da palavra frente não é o ponto de partida da computação semântica causada pe-la introdução do sufixo -ista, embora as duas palavras compartilhem a raiz frent-.

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Utilizando o equipamento Head-fixed Viewpoint Eye-tracker (CLIPSEN/CNPq), o segundo experimento investiga o rastrea-mento ocular das mesmas palavras, preten-dendo identificar, preliminarmente, os pontos de fixação e sacadas na primeira passagem do olhar, bem como nos movimentos regres-sivos. Os resultados obtidos nos dois experi-mentos permitem reunir evidências para ava-liar se, no processo de leitura, palavras com-plexas são parseadas morfologicamente, con-catenando-se raízes a afixos, em contraste com os modelos que postulam a ativação lexi-cal indiferenciada de vocábulos plenos.

O artigo é organizado da seguinte forma. Na seção 2, faz-se uma breve revisão da literatura sobre o processamento da morfo-logia em palavras isoladas, com especial aten-ção para a caracterização dos modelos de re-conhecimento de palavras escritas, procu-rando estabelecer o quadro teórico relevante para a discussão dos experimentos. A seção 3 reporta o experimento de decisão cromática e a seção 4, o experimento de rastreamento ocu-lar. A seção 5 apresenta as conclusões do arti-go. 2. Modelos de processamento morfológico

Ao ler uma palavra, acessamos o seu significado na íntegra, diretamente no léxico mental, ou precisamos, preliminarmente, rea-lizar operações de decomposição morfo-ló-gica, concatenação e interpretação composi-cional? O acesso lexical direto é uma heurís-tica do tipo top-down3, em que se procede di-retamente do input sensorial para um nível de representação “mais alto”do item lexical, ou seja, a palavra inteira, tomada como um lis-tema (cf. Di Sciullo e Williams, 1987), sem precisar recorrer à análise de possíveis sub-componentes do item. A decomposição mor-fológica, por outro lado, é um algoritmo bot-tom-up em que o acesso lexical é o produto final de operações “menores” de segmentação de morfemas, identificando-se subunidades lexicais que são, então, montadas em todos maiores, os itens lexicais. Os modelos de a-cesso lexical direto, também denominados de modelos de listagem plena, economizam em

recursos computacio-nais, mas precisam con-tar com alta capacidade de armazenagem mnemônica. Os modelos composicionais ou de parsing pleno, por outro lado, demandam maior custo computacional, mas economizam na armaze-nagem mnemônica. Uma terceira alternativa admite a possibilidade de que os dois tipos de processos –heurísticas top down e algoritmos bottom-up – possam coexistir no proces-samento lexical. São os modelos mis-tos ou duais, que lançam mão dos dois tipos de recursos, prevendo uma espécie de compe-tição entre eles.

O modelo de Affix-Stripping de Taft e Foster (1975) é o precursor dos modelos es-truturais. Utilizando uma tarefa de decisão lexical, Taft e Foster demonstraram que pala-vras com raízes reais precedidas por prefixos (e.g. re+cursion) são mais difíceis de rejeitar do que palavras com pseudo-raízes (re+pertoire). Uma vez que as raízes reais se-riam armazenadas separadamente dos afixos, sua rejeição é mais lenta, pois após a operação de isolamento do afixo estas raízes que po-dem, de fato, ser localizadas no léxico, reque-rem consideração extra na tarefa de decisão lexical. Por outro lado, as palavras com pseu-do-raízes apresentaram tempos de rejeição menores justamente por não poderem ser lo-calizadas no conjunto de raízes possíveis no léxico. Posteriormente, Taft (1979) demonstra que o efeito de decomposição morfológica do modelo Affix-Stripping também pode ser ob-tido em palavras com sufixos. Taft (1994) faz ajustes no modelo prevendo que a decompo-sicionalidade morfo-lógica seja a rota default, mas que o fator freqüência possa também e-xercer um efeito que resulta em pouca ativa-ção dos morfemas nas palavras mais fre-qüentes, aproximando, na prática, seu modelo dos modelos duais.

No extremo oposto, a hipótese Full Listing de Butterworth (1983) propõe que as palavras estejam disponíveis para reconhe-cimento no léxico já com sua morfologia, sendo acessadas apenas em sua forma plena, sem qualquer operação decomposicional. Também os modelos conexionistas como, por exemplo, o desenvolvido por Seidenberg e McClelland (1989), propõem uma arquitetura

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paralela e distribuída de reconhecimento vi-sual de palavras em que se pretende que ajus-tes nos pesos das conexões entre unidades or-tográficas e fonológicas sejam propagados através de algoritmo de aprendizagem, sendo capazes de simular o reconhecimento de pala-vras de forma associativa e rápida, sem utili-zar a informação morfológica.

No caminho do meio, estão os mode-los mistos ou duais, que combinam aspectos dos dois modelos anteriores. O modelo de Augmented Addressed Morphology - AAM de Caramazza e colaboradores (1988) propõe que as palavras familiares sejam acessadas de forma plena, enquanto que as palavras desco-nhecidas sejam alvo de processos decomposi-cionais. O modelo de dupla rota paralela de Schreuder e Baayen (1995) propõe que tanto uma rota de parsing morfológico quanto uma rota direta sejam acionadas, em paralelo, des-de o início do processo de reconhecimento lexical. O modelo de Marslen-Wilson e cola-boradores (1994), estabelecido com base em experimentos de priming, propõe que a de-composição morfo-lógica seja mais provável quando a relação entre a palavra composta com afixos e a sua raiz é transparente. Outro modelo, o de Pinker (1991) prevê que as for-mas regulares, como, por exemplo, os passa-dos simples formados em –ed, em inglês, se-jam acessados via concatenação morfológica, enquanto que os passados irregulares, como

taught, por exem-plo, sejam armazenados plenamente no léxico. Stockall e Marantz (2006), por outro lado, apresentam evidências de experimentos utilizando a técnica de Mag-neto-encefalo-grafia, de que um único meca-nismo de conca-tenação morfológica dá conta tanto dos pas-sados regulares quanto dos irre-gulares em inglês.

Como se vê, a literatura apresenta grande divergência de posições teóricas e mé-todos. Os experimentos reportados nas seções a seguir têm o intuito de investigar prelimi-narmente a questão a partir do exame de da-dos do português, procurando avaliar de for-ma ampla os três tipos de modelos de pro-cessamento lexical resenhados acima a partir de dados recolhidos da atividade de leitura. 3. Experimento 1 – Decisão cromática no processamento de palavras isoladas

Este estudo baseia-se no chamado “e-feito stroop”, estabelecido através de uma sé-rie de experimentos clássicos em que se testou a nomeação cromática em palavras para co-res escritas com letras em cores que podiam concordar ou não com a denotação das pala-vras (cf. Stroop, 1935). Conforme ilustrado na Figura 1, abaixo, as respostas eram mais rá-pidas quando havia conver-gência do que quando havia divergência.

Figura 1 - Efeito stroop.

A interpretação destes resultados ge-ralmente sugere que a dificuldade em no-mear palavras com discordância entre a nomeação

cromática e a cor das letras se deve a compe-tição, neste caso, entre significado literal e outro metafórico

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No presente experimento, estabeleceu-se uma outra sorte de discordância cognitiva: morfológica e visual. A hipótese aqui é a de que uma letra poderia ter sua cor identificada mais acertada e rapidamente quando fizesse parte de um morfema em que todas as letras tivessem a mesma cor. A variável indepen-dente “recorte cromático” indica, portanto, que a manipulação de cores poderia singu-larizar o morfema com todas as letras na mesma cor (corte morfêmico) ou não (corte não morfêmico). Outra variável independente do experimento foi chamada de tipo de mor-fema, incluindo três níveis, a saber, mor-fema concatenado a palavras (MP), pseudo-morfema (PM) e morfema concatenado a raí-zes (MR).

As variáveis dependentes do experi-mento foram os índices de acerto cromático e os tempos de decisão. A variável indepen-dente “tipo de morfema” permitiu que se e-xaminasse o papel de três fatores no proces-samento de palavras em português: 1) Morfemas concatenados a palavras (MP):

palavras formadas por concatenação de um morfema a uma palavra, havendo transparência semântica entre a palavra complexa e a base da qual ela é derivada;

2) Pseudo-morfemas (PM): controles orto-gráficos em que há apenas uma coinci-dência ortográfica com a forma dos mor-femas.

3) Morfemas concatenados a raízes (MR): palavras formadas por concatenação de um morfema a uma raiz, situação em que o significado da palavra é arbitrário e a leitura é dada na enciclopédia.

3.1. Materiais e métodos Participantes

Participaram do experimento, como voluntários, 20 alunos do terceiro período de graduação em Letras da UFRJ, todos com vi-são normal ou corrigida. Materiais

Os materiais experimentais foram três listas de 14 palavras cada, tendo-se procurado controlar o tamanho e a freqüência de ocor-rência médios das palavras cada lista. Os ta-manhos foram equalizados, tendo cada lista, em média, 45 sílabas e 104 letras. As fre-qüências tiveram como índice para o seu esta-belecimento o número de ocorrências no sis-tema de buscas Google, à época em que o ex-

perimento foi realizado. As diferenças médias entre os índices de ocorrência dos itens das três listas não foram significa-tivamente dife-rentes. A Figura 2 exemplifica as três listas: Figura 2 - Exemplos dos materiais experi-mentais

O design em quadrado latino permitiu que todos os sujeitos fossem expostos a todas as condições, mas não aos mesmos itens em todas as condições, havendo, portanto, dis-tribuição do tipo de corte between subjects em dois grupos. A Figura 3 ilustra as seis condi-ções experimentais em que se controlou tam-bém, sistematicamente, o contraste de cores verde e vermelho.

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Figura 3 - Condições experimentais.

Além dos 42 itens experimentais, in-cluiram-se no teste oitenta itens distrativos em que letras no início e no fim das palavras e-ram destacadas cromaticamente. Procedimentos

Os participantes foram testados indivi-

dualmente em sala isolada, em que se encon-trava o computador Macintosh I-Mac de 360MHz e uma caixa de botões. Ao pressio-nar a tecla amarela na caixa de botões ao lado do computador, uma palavra era chamada à tela por 4 segundos, sendo, após esse lapso, automaticamente substituída por tela em que uma mesma letra aparecia em verde e em vermelho seguida de ponto de interrogação. Nos itens experimentais, esta letra era sempre a primeira letra do sufixo ou do pseudo-morfema. Nos distratores, esta letra estava em outras posições, no início ou no fim da pala-vra. Os participantes deveriam, então, esco-lher a cor da letra, apertando a tecla verde ou a tecla vermelha na caixa de botões. O pro-grama Psyscope registrava, então, a decisão do sujeito, bem como os seus tempos de rea-ção. Após sua decisão, os participantes deve-riam apertar a tecla amarela para que outra palavra fosse chamada à tela, prosseguindo conforme descrito anterior-mente até que to-das as palavras tivessem sido apresentadas, o que era assinalado por uma última tela com a palavra FIM. As Figuras 4, 5 e 6, ilustram respectivamente a caixa de botões, a primeira

tela em que uma palavra era apresentada e a segunda tela em que a cor de uma letra era perguntada.

Figura 4 - Caixa de botões.

Figura 5 - Exemplo de tela em que o estímulo era apresentado por 4 segundos.

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Figura 6 - Exemplo de tela com pergunta sobre a cor de letra . 3.2. Resultados

Os resultados estão apresentados na Tabela 1 e nos Gráficos 1 e 2 abaixo. Obser-ve-se que o índice de acertos na condição MPC é significativamente maior do que na condição MPN (X2=12,85; p = 0,0003) e que os tempos de decisão de acerto de MPC são

significativamente mais rápidos do que os de MPN (t = 3,797; p = 0,0002), confirmando que há um efeito de recorte cromático atuante nas condições com morfemas. O recorte cro-mático dos morfemas foi, de fato, um fator facilitador nas decisões, fazendo aumentar o índice de acertos e diminuindo o tempo médio de decisão. Observe-se, em seguida, que o mesmo não se instancia na comparação PMC x PMN que apresentam índices de acerto (X2= 0,2800; p = 0,5967) e de tempos de de-cisão de acerto (t = 1,120; p = 0,264) indife-renciados. Finalmente, a comparação das úl-timas duas colunas entre si indica que o efeito do recorte cromático também se instancia sig-nificativamente ao se comparar MRC com MRN. O índice de acertos na condição MRC é significativamente maior do que na condi-ção MRN (X2=14,74; p = 0,0001) e os tempos de decisão de acerto de MRC são significati-vamente mais rápidos do que os de RN (t = 4,645; p = 0,0001).

Tabela 1 – Índices de acerto e tempos de decisão por condição.

Grafíco 1 – Índices de acertos.

MCP MPN PMC PMN MRC MRN Acertos 114 87 98 102 110 60 RT 1334 1722 1537 1737 1319 1807

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Gráfico 2 – Tempos de decisão. 3.3. Discussão

Os resultados obtidos indicam que os sujeitos reconhecem mais acertada e rapida-mente a cor da letra alvo nas condições com recorte morfêmico, esteja o morfema em con-catenação com uma palavra(MP) ou com uma raiz (MR). Por outro lado, não se observou efeito de recorte cromático significativo, quer nos índices, quer nos tempos de decisão acer-tada, nas condições com pseudo-morfema (PM).

Esses resultados sugerem que os leito-res utilizariam um procedimento de parsing morfológico pleno, isolando os morfemas que compõem uma palavra, quer esses morfemas estejam em relação de transparência, quer es-tejam em relação de opacidade com a base. Nas condições com morfemas concatenados a palavras (MP), os leitores identificariam a pa-lavra e o sufixo. Por exemplo, ao ler a palavra malinha, fariam a segmentação mala+inha para chegar ao significado “mala pequena”. Também nas condições com morfemas conca-tenados diretamente à raiz (MR), esta seg-mentação se instanciaria. O que os resultados parecem estar indicando é que existe uma operação crucial de concatenação de morfema com raiz que ocasiona uma negociação de significado, a qual pode ser acrescida de mais uma concatenação, cujo aporte semântico re-gular é processado em tempo mínimo.

Crucialmente, no entanto, as condi-ções com pseudo-morfemas em que não se observam efeitos significativos de recorte cromático, parecem sugerir que os leitores têm conhecimento intuitivo da morfologia, não segmentando morfemas quando há apenas material ortográfico não segmentável, como é o caso das palavras da lista PM. Por exemplo, ao ler a palavra espinha, derivada do latim spina, ae, o processador morfológico não se-ria ativadopara segmentar, reconhecer e for-necer a interpretação ilegítima “espi peque-no”, uma vez que, nesse caso, não há morfe-ma diminutivo a ser segmentado e processa-do, apenas material ortográfico semelhante que a competência lingüística do falante sabe-ria diferenciar de um morfema verdadeiro. 4. Experimento 2 – rastreamento ocular

Este experimento rastreou os movi-mentos oculares na leitura do mesmo conjun-to de palavras do experimento anterior, sem, no entanto, incluir a manipulação cromática. A hipótese era a de que as palavras com mor-femas, sejam as transparentes, sejam as opa-cas, apresentariam maiores tempos médios de fixação e maiores índices de movimentos sa-cádicos progressivos ou regressivos do que as palavras com pseudo-morfemas. Esses índices mais elevados de fixação e movimentação ocular nas condições com morfema refletiri-am a atividade de concatenação morfêmica

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levada a efeito no processamento visual des-sas palavras, em oposição ao acesso mais di-reto, a ser observado nas condições com pseudo-morfemas, em que não se esperariam níveis significativos de computação interna .à palavra. A literatura sobre rastreamento ocu-lar da leitura reconhece não só que medidas de movimento ocular possam ser usadas para inferir processos cognitivos que variam de momento a momento na leitura, mas também que a variabilidade das medidas refletem o processamento on-line (cf. Rayner, 1983). Mais especificamente, Kuperman e colabora-dores (2006) demonstraram que a complexi-dade morfológica na leitura de palavras isola-das em holandês implica maiores tempos de fixação.

Os três fatores da variável inde-pendente tipo de morfema (MP, PM e MR) são examinados no presente estudo, que tem como variáveis dependentes os tempos de fi-xação e os índices de movimentos sacádicos na leitura das palavras. 4.1. Materiais e métodos Participantes

Participaram do experimento 16 alu-nos de graduação do curso de Fono-audiologia da UFRJ, com visão normal, sem necessidade de uso de óculos ou lentes de contacto. Materiais

Os materiais experimentais usados no estudo foram os mesmos usados no experi-mento 1, sem manipulação cromática: três listas de 14 palavras cada, controladas quanto à freqüência e tamanho, a saber, palavras com morfemas, pseudo-morfemas e morfemas re-negociados. Procedimentos

Os participantes foram testados indi-vidualmente em sala isolada, em que se en-contravam o equipamento de rastreamento ocular Arrington View Point Quick Clamp Eye-tracker (CLIPSEN-CNPq), com reso-lução temporal de 30Hz (640x 480), ilustrado na Figura 7:

Figura 7 – Equipamento de rastreamento ocular.

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Os participantes foram instalados no equipamento a distância de cerca de 50 cms do monitor e instruídos a fazer leitura silen-ciosa auto-monitorada das palavras que íam chamando à tela através do pressiona-mento da tecla F-12 no teclado do compu-tador Pen-tium IV 2,6GHz a que o rastreador ocular está conectado. As palavras grafadas em fonte ti-mes new roman 36 apareciam no centro da

tela, ali permanecendo até que o sujeito aper-tasse a tecla F-12 novamente. Entre uma pa-lavra e outra aparecia uma tela cinza vazia. A tarefa pedida aos sujeitos era a de que lessem as palavras para compreensão, sendo que ao final seriam testados quanto ao seu significa-do. A Figura 8 ilustra participante durante a realização do teste.

Figura 8 – Participante do experimento de rastreamento ocular. 4.2. Resultados

Os resultados estão apresentados na Tabela 2 e nos Gráficos 3 e 4 a seguir. Note-se que os tempos médios de fixação diferem significativamente entre morfemas concate-nados diretamente a palavras (MP) e pseudo-morfemas (PM) na direção esperada (583 ms x 512ms), embora a diferença entre os índices de movimentos sacádicos, ainda que na dire-ção esperada, seja apenas visual, não signifi-

cativa estatisticamente (X2= 1,838; p = 0,1752). De qualquer forma, as palavras na condição MP, em que morfemas estão conca-tenados a palavras, requerem mais tempo de fixação (t = 2,936; p = 0,0034), atestando a maior atividade requerida pela decomposicão morfológica na leitura do primeiro grupo. En-tretanto, diferentemente do obtido no Experi-mento 1, também se atesta-ram diferenças significativas dos tempos de fixação (t = 3.078; p = 0,0021) com a mesma magnitude e

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direção entre as palavras com morfemas con-catenados a palavras (transparentes) e as pa-lavras com morfemas concatenados a raízes (opacos), cujo

significado é arbitrário. Já entre o gru-po de palavras com pseudo-morfemas (PM) e o grupo de palavras com primeira concatena-ção na raiz (MR) não há diferenças significa-

tivas nos tempos de fixação (t = 0,1215; p = 0,9033).

Tabela 2 – Fixações e movimentos sacádicos.

Gráfico 3 – Tempos médios de fixação.

Gráfico 4 – Índices médios de movimentos sacádicos.

MP PM MR Fixações 583 512 509 Sacadas 609 576 575

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4.3. Discussão

Os resultados do experimento de ras-treamento ocular sugerem uma correlação en-tre a computação morfológica no interior da palavra e os tempos de fixação médios – pa-lavras com sufixos concatenados a palavras apresentam tempos de fixação médios mais elevados do que palavras com pseudo-mor-femas, confirmando parcialmente a hipótese de que a concatenação morfêmica requer maiores latências, já que os índices de movi-mentação sacádica, embora apresentando mé-dias na direção esperada, diferiram de forma estatisticamente não significativa. Observe-se que a diferença nos cruzamentos entre a con-dição com morfemas concatenados a palavras (MP) e a condição com pseudo-morfemas (PM) é simétrica às que foram obtidas no ex-perimento 1, onde também se observaram di-ferenças significativas entre essas duas condi-ções. A falta de simetria entre os dois experi-mentos, entretanto, se instancia ao se compa-rarem as condições de palavras com morfe-mas concatenados a palavras (MP) com as condições de palavras com morfemas conca-tenados diretamente a raízes (MR), no teste de rastreamento ocular. Enquanto que neste último teste, há diferenças significativas nos tempos de fixação entre as duas condi-ções, sugerindo que os dois grupos de palavras são processados diferentemente, no experimento 1, não se obtiveram diferenças significativas entre esses dois grupos, inferin-do-se, ali, que a computação morfológica ocorria de modo idêntico, fossem os morfe-mas concatenados a palavras, fossem eles concatenados a raízes.

Uma forma de tentar explicar esta con-tradição entre os dois experimentos seria atri-buir à natureza das tarefas a diferença encon-trada entre os dois experimentos no que se refere ao grupo de palavras com conca-tenação de morfemas a raízes (MR) que, no primeiro experimento, se posicionaram ao lado do grupo de palavras com morfemas concatenados a palavras (MP) e, no segundo experimento, se alinharam melhor com o gru-po de palavras com pseudo-morfemas. A tare-fa de identificação cromática requeria que se

destacassem com a mesma cor os morfemas, tanto no grupo onde havia composição se-mântica regular (MP), quanto no grupo em que havia leitura semântica arbi-trária (MR). Esse destaque do morfema pode ter funciona-do como um artefato que ativou o procedi-mento computacional de concatenação mor-fológica em ambos os grupos, independente-mente do significado ter sido fixado por com-putação composicional ou por fixação mne-mônica semanticamente arbi-trária. No grupo de pseudo-morfemas, embora as formas orto-graficamente semelhantes a morfemas tenham também sido destacadas, os falantes não as teriam percebido como verdadeiros morfe-mas, não optando, por isso, pelo procedimen-to computacional e sim pelo acesso pleno (lis-tema). Já no experimento de rastreamento ocular, em que não se deu destaque nem aos morfemas concatenados a palavras (MP), nem aos concatenados a raízes (MR) e nem aos pseudo-morfemas (PM), pôde-se capturar o acesso com base na computação morfológica apenas no grupo de palavras com morfemas concatenados a palavras, de leitura composi-cional (MP). Nos dois outros grupos, os leito-res teriam optado pelo procedimento de lista-gem plena, menos custoso em termos de tem-pos de fixação. No grupo de pseudo-morfemas, o procedimento de acesso direto seria o único possível, uma vez que a compu-tação levaria a resultado enganoso.

No grupo de morfemas concatenados a raízes (MR), embora o procedimento compu-tacional fosse possível, não foi o preferido, provavelmente também por considerações de natureza econômica já que o acesso top-down é menos custoso computacionalmente e, por isso, menos demorado em termos de tempos de fixação. De qualquer modo, os experi-mentos parecem haver indicado a disponibili-dade dos dois tipos de procedimentos de aces-so lexical no processamento de palavras iso-ladas em português, o acesso direto e o medi-ado pela computação morfológica, aduzindo evidências em favor dos modelos duais ou de dupla rota. Constatam-se, então, dois proce-dimentos de acesso - o procedimento mnemô-nico e o computacional, o primeiro concer-

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nente à ativação da convenção arbitrária, que acontece na primeira concatenação de morfe-ma categorizador a uma raiz acategorial e o segundo concernente ao cálculo da composi-ção semântica, um cálculo que vai sendo efe-tuado logo após a primeira concatenação de afixo a raiz.

Note-se, finalmente, que após a rea-lização do experimento de rastreamento ocu-lar realizaram-se entrevistas com os partici-pantes, indagando-se sobre a ocorrência e os significados de algumas palavras experi-mentais apresentadas no teste. Registre-se que ao menos uma das palavras experimentais do grupo dos morfemas opacos, a palavra moci-nho, apresentou interpretações variáveis entre o sentido computado morfologicamente (mo-ço+inho) e o sentido determinado medi-ante negociação semântica da estrutura Raiz+x

(moc+inho). A maior parte dos sujeitos forne-ceu como primeira interpretação o sentido negociado, a saber, o de herói, oposto a ban-dido. Esta interpretação é consistente com o padrão de leitura do tipo top-down com me-nores índices de fixação e de movimentos sa-cádicos, ilustrado na Figura 9. Entretanto vá-rios participantes também apresentaram como primeira interpretação o significado de moço jovem que teria resultado do procedimento bottom-up de concatenação da raiz com o sufixo diminutivo, o que poderia ter como correlato padrões de leitura com mais ativida-de ocular, como o ilustrado na Figura 10. A existência de tais variações sugerem que o controle mais preciso dessas acepções pode ser crucial para se estabelecer com maior pre-cisão os processos de acesso lexical levados a efeito na leitura de palavras isoladas.

Figura 9 – Padrão de leitura top-down.

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Figura 10 – Padrão de leitura bottom-up. 5. Conclusões

Resumem-se abaixo as principais con-clusões a que se chegou neste artigo: • A tarefa Stroop indicou que os leitores

têm conhecimento intuitivo de morfemas computados composicionalmente e morfe-mas responsáveis por leituras arbitrárias, que atuam como facilitadores dos índices de acerto e dos tempos de resposta, em contraste com as condições com palavras contendo apenas material ortografi-camente semelhante a morfemas.

• Há processamento morfológico no interior da palavra, conforme predito pelas teorias de parsing pleno.

• O rastreamento da leitura das mesmas pa-lavras indicou maior atividade ocular (fi-xações) na condição com morfemas com leitura composicional do que nas condi-

ções com pseudo-morfemas e com mor-femas que determinam leitura arbitrária.

• Houve também ocorrência de padrões oculares indicativos de acesso lexical dire-to, aduzindo evidências em favor de mo-delos de dupla rota que prevêem tanto a computação quanto o acesso direto.

• A contradição entre os resultados obtidos nos dois experimentos poderia ser expli-cada em termos da natureza diferenciada das tarefas. Enquanto que na tarefa basea-da no efeito Stroop os morfemas eram destacados, a tarefa de rastreamento ocu-lar não incluiu esta explicitação dos mor-femas. No grupo de palavras com morfe-mas opacos, que pode admitir duas inter-pretações, a explicitação dos mor-femas introduz um artefato que favore-ceria o processamento bottom-up, enquan-to a sua não explicitação favoreceria o processa-mento top-down.

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• Finalmente, tomados em conjunto, os a-chados dos dois experimentos sugerem que o acesso lexical é um processo extre-mamente complexo, justificando que se realizem outras pesquisas, controlando-se com maior precisão fatores tais como o ponto de concatenação dos sufixos, as fre-qüências de ocorrência dos itens lexicais, o grau de familiaridade que dife-rentes grupos de sujeitos podem ter com as pala-vras, bem como suas polissemias.

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Notas (1) Este trabalho foi apresentado originalmente na mesa redonda “Restaurar dá restaurante? Analisando a persistência da morfologia no acesso lexical”, coordenada por Miriam Lemle (Clipsen/UFRJ), durante o V Congresso Internacional da Associação Brasileira de Lingüística – ABRALIN, realizado na UFMG, em Belo Horizonte, entre os dias 28 de fevereiro e 3 de março de 2007. (2) O processamento morfológico é um processo sublexical que equivale à concatenação sucessiva de raiz e morfemas categorizadores em prol da formação de uma palavra. Por exemplo, a palavra rastreamento é morfologicamente complexa. É formada a partir da raiz RASTR que se combina com o morfema nominalizador Ø (sem forma fonológica) e se torna o nome rastro. Depois, rastro se concatena com o morfema verbalizador e forma rastrear. Por fim, o verbo rastrear se concatena a um morfema nominalizador com forma fonológica mento em prol da palavra [[[rastr]nea]vmento]n.

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(3) Heurísticas top down no acesso lexical parecem sempre poder ocorrer, sendo, até certo ponto, imprevisíveis, pois variam em função de fatores tão diversos quanto a freqüência, a familiaridade, a similaridade semântica, prosódica, fonética, ortográfica, etc. Por exemplo, recentemente, pudemos observar alguém recuperar o nome de um grupo de mímicos denominado Mummenshantz, como Haagendaz. Pode-se especular que o acesso se deveu a fatores tão diversos quanto o número de sílabas, a pauta acentual, bem como, talvez, à percepção de que se tratava de termo em língua estrangeira.

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Do herói ficcional ao herói político

From the imaginary hero to the political hero

Hilda Gomes Dutra Magalhães , Luíza Helena Oliveira da Silva e Dimas José Batista

Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas, Tocantins, Brasil

Resumo Partindo do pressuposto de que a literatura materializa os valores ideológicos de um determinado gru-po, pretendemos neste artigo refletir sobre as relações existentes entre o perfil dos personagens das narrativas de massa consumidas pelos eleitores e a imagem de político vendida/administrada pela mí-dia em campanhas eleitorais. Utilizando como suporte teórico a Análise do Discurso, pudemos obser-var que tanto nas sociedades capitalistas quanto nas não capitalistas, temos uma mídia que constrói, fabrica e inventa heróis políticos. A mitificação da dimensão política corresponde simetricamente aos desejos e anseios de proteção, amparo e conforto dos eleitores, perdidos num mundo com valores es-senciais fragmentados. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 18-30. Palavras-chave: herói; mitificação política; análise do discurso. Abstract Having as principle that the literary art represents the ideological values of one determined group, we want in this article to reflect about the relations between the mass narratives personages profile consumed by the voters and the profile of the political sold / managed by the media during politics campaigns. We observed, using the Discourse Analysis theory, as much in the capitalists societies how much not capitalists, the existence of a media that constructs political heroes. This mystification of the political dimension corresponds symmetrically to the desires and to the protection necessities of voters, lost in a world deprived of basic values. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 18-30.

Key Words: hero; politic mitification; discourse analysis.

Introdução

Discutir a construção ideológica, sim-

bólica e discursiva da figura do “herói” no campo das ciências humanas e sociais remete a uma intrincada teia de reflexões sobre a so-

ciedade presente e passada, especialmente quando lidamos com construções/fabricações/ invenções produzidas no universo literário e político. Nesta reflexão, alguns dados poderi-am ser considerados para precisar melhor a função social do herói e da heroificação

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 16/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- H.G.D. Magalhães é Doutora em Teoria da Literatura (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com Pós-doutorado (Universidade de Paris III e na École des Hautes Études en Sciences Sociale). Atualmente atua como Pro-fessora do Curso de Letras e do Mestrado Iterdisciplinar em Ciências do Ambiente (UFT). Endereço para correspon-dência: Campus de Araguaína - Unidade São João (UFT). Rua 1º de Janeiro, S/N, São João, TO 77.080-000. Telefone: 14 (63) 21122219. E-mail para correspondência: [email protected]. L.H.O. da Silva é Doutora em Estudos da Linguagem (Universidade Federal Fluminense). Atua como Professora do Curso de Letras (UFT/Araguaína-TO). D.J. Batista é Doutor em História (Universidade de São Paulo). Atua como Professor do Curso de História (UFT/Araguaína-TO).

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(compreendido como processo de produção discursiva da figuratividade heróica).

As qualidades do herói, suas caracte-rísticas no imaginário coletivo e a natureza ideológica atreladas a sua figurativização con-tribuem, certamente, para a compreensão do problema da consciência. A consciência, nes-se caso, vai ser concebida na perspectiva dia-lógica de Bakhtin como uma produção histó-rica, opondo-se, portanto, à possibilidade de uma subjetividade absoluta capaz de separar-se do mundo para melhor desvendá-lo, como prevista numa abordagem idealista. Para Ba-khtin, a consciência não vai ser buscada no interior do sujeito, mas na relação entre os sujeitos constituídos historicamente, confor-me analisa em Marxismo e filosofia da lin-guagem:

Se tomarmos a enunciação no estágio inicial de seu desenvolvimento, na “alma”, não se mudará a essência das coisas, já que a estrutura da atividade mental é tão social co-mo da sua objetivação exterior. O grau de consciência. De clareza, de acabamento for-mal da atividade mental é diretamente pro-porcional ao seu grau de orientação social. Quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será o seu mundo exterior (Bakhtin, 1995: 114-115).

A produção literária, particularmente, a ocidental sobre a figura do herói realmente assenta-se no maniqueísmo, na unilateralidade e no sucesso do herói. Estes elementos são centrais para compreensão da criação discur-siva do herói pela reiteração de determinados traços semânticos como a imortalidade, a in-vencibilidade, a superação do conflito moral e ético, incidindo sobre a ativação de um senti-mento de identidade coletiva: o herói fala aos anseios de uma maioria, dá contornos precisos ao que num dado momento representa os seus anseios e angústias.

Tais elementos ônticos não vinculam automaticamente a figura do herói a um grupo social específico, embora os processos de he-roificação, ao atualizá-los, resignifiquem-nos. Assim, as figuras heróicas das tragédias, epo-péias e fábulas greco-romanas porventura

guardariam os mesmos traços dos heróis con-temporâneos? Certamente que não, mas uma abstração parece resistir, capaz de subsumir a diversidade de representações e esquemas cul-turais que definem as especificidades das fi-guras que as sociedades elegem como herói-cas.

Neste trabalho, partimos do pressupos-to de que a arte literária, mais do que um sim-ples documento estético de um povo, materia-liza os valores ideológicos que sustentam a cultura de um determinado grupo. Acreditan-do nisto, podemos entender a produção literá-ria como um termômetro para se compreender a consciência política de um grupo social, o que pode ser observado não apenas no tipo de literatura que essa sociedade produz, mas principalmente na natureza dos textos que ela consome. Isso posto, interessa-nos neste arti-go refletir sobre as relações existentes entre o perfil dos personagens das narrativas de mas-sa consumida pelos eleitores e a imagem de político que é vendida/administrada pela mí-dia em época de campanha eleitoral, na medi-da em que muitas vezes o representante a ser eleito deve corresponder a uma espécie de herói, capaz de abraçar os interesses de uma maioria, exacerbando-se seus poderes como ator na transformação social e econômica. Mais especificamente, lançamos nosso olhar para alguns recursos mobilizados durante campanha para a eleição do governador do estado do Tocantins, em 2006.

Como suporte teórico utilizaremos a Análise do Discurso (AD), que concebe a a-propriação do discurso como um processo essencialmente coletivo, social e histórico. Para os representantes dessa corrente, a teoria do discurso deve explicar não apenas a reali-dade lingüística do texto, visto como algo em si, mas sua relação com a ideologia e, desse modo, ao Poder.

As determinações do discurso

Althusser (1984), um dos teóricos cu-

jas formulações corroboram para a constitui-ção da Análise do Discurso, nos explica que a classe dominante consegue perpetuar sua he-gemonia graças a dois aparelhos fundamen-

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tais: o repressor, representado pela política, pela Administração, pelo Governo, pela Justi-ça, etc., e o ideológico, constituído pela famí-lia, pela escola, pela religião, etc. O primeiro tem como fundamento a repressão, enquanto que o segundo é caracterizado pela dissemi-nação ideológica que perpetua o Poder. Al-thusser afirma que a ideologia se materializa na maneira como se organizam os aparelhos repressivos e ideológicos, compreendendo por ideologia a forma imaginária como os homens vivem sua relação com as condições reais de existência, caracterizada como mitificação.

Neste sentido, a ideologia apresenta uma existência material e tem como finalida-de a manutenção do Poder, o que só é possí-vel através da perpetuação da ideologia que o sustenta. Essa perpetuação é garantida, por sua vez, por um contínuo processo de trans-formação de indivíduos em sujeitos ideológi-cos, quando estes são assimilados pelo siste-ma, passando a disseminar a ideologia domi-nante.

Foucault (1999), ao instituir os fun-damentos da teoria do discurso, concebe o discurso como um conjunto de enunciados ligados por uma mesma formação discursiva. Para ele, o enunciado se caracteriza pela sua relação com o referencial, compreendido co-mo o que enuncia o enunciado e pela relação do enunciado com o sujeito, considerando que é o sujeito que anima, através de sua forma de ver o mundo, as formas vazias da língua, dis-pondo para isso de signos, marcas, traços, le-tras, etc. Outra característica do discurso está na existência de um domínio próprio, ou seja, de um espaço, responsável por integrar o e-nunciado num conjunto de enunciados, consi-derando que os enunciados existem sempre em conjunto e nunca isoladamente. Ou seja, não se pode falar em enunciado livre, neutro ou independente, mas sempre em um enunci-ado contextualizado, fazendo parte de um jo-go enunciativo, pois, para Foucault (1999: 9), a linguagem é exatamente isso: jogo, defesa, arma, etc.

Finalmente, outra característica do discurso é a sua condição material, que afirma o enunciado enquanto objeto. Assim, a repeti-ção de um enunciado depende de sua materia-

lidade, isto é, depende de seu espaço institu-cional, e por isso uma mesma palavra ou frase terá significados diferentes conforme a for-mação discursiva na qual se insere.

O conceito de formação discursiva é bastante complexo e polêmico. Utilizamos inicialmente a definição de Orlandi, segundo a qual uma formação discursiva deve ser compreendida como a atualização no discurso das formações ideológicas: “A formação dis-cursiva se define como aquilo que numa for-mação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (Orlandi, 1999: 43). Para Mussalim, os limites de uma formação discursiva (FD) são instáveis, uma vez que esta se inscreve num espaço de embate ideológico: “uma FD se inscreve entre diversas formações discursi-vas, e a fronteira entre elas se desloca em fun-ção dos embates da luta ideológica, sendo es-tes embates recuperáveis no interior mesmo de cada uma das FDs em relação” (Mussalim, 2001: 125). O conceito de formação discursi-va remete, pois, à incompletude como condi-ção da linguagem, uma vez que os sentidos não estão constituídos definitivamente: “Constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da falta, do movimen-to”, nos “limites moventes e tensos entre a paráfrase e a polissemia” (Orlandi, 1999: 52), repetindo ou rompendo com os sentidos de uma dada formação discursiva.

O conceito de formação discursiva, compreendida como atualização de uma for-mação ideológica, é fundamental para a Aná-lise do Discurso, do mesmo modo que os conceitos de enunciado e enunciação. O e-nunciado é compreendido como a unidade lingüística básica, em substituição a sentença, forma, frase. A enunciação, por sua vez, é a singularização do discurso, aqui compre-endido como jogo estratégico e polêmico, a-ção e reação, pergunta e resposta, dominação e esquiva. Em outras palavras, o discurso, para Foucault, é o espaço em que saber e po-der se articulam e é justamente por isso que ele precisa ser controlado, selecionado, orga-nizado e redistribuído (Foucault, 1999: 9).

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A contribuição de Foucault é impor-tante porque liga definitivamente língua e rea-lidade sócio-histórica. A partir dele e de Al-thusser, Pêcheux desenvolve a Análise do Discurso, englobando o materialismo históri-co, a lingüística e a teoria do discurso. Para ele, cada indivíduo recebe uma formação dis-cursiva, que define o que pode ou não dizer o sujeito. Nestes termos, quando alguém se ma-nifesta, diz não exatamente o que quer, mas o que pode e deve dizer, pois, assim como uma formação ideológica determina o que o indi-víduo pensa, uma formação discursiva deter-mina o que esse indivíduo pode e deve falar. Citando Eni Orlandi (2001:164), “não há sen-tidos em si”. Do mesmo modo, “os sentidos não dependem de nossas intenções, mas de possibilidades e necessidades reais concretas com seus efeitos simbólicos”. Em outras pa-lavras, existe uma formação discursiva que predetermina o discurso de cada um de nós a partir de um espaço determinado histórico e socialmente.

Analisando o discurso literário, Helia-ne de Castro (1983:17) afirma que o processo de criação da arte escrita acha-se ligado a um assunto, isto é, a uma "idéia ou conjunto de idéias" que dizem respeito aos valores ideoló-gicos. Registra ainda que, nesse sentido, a i-deologia "é o fundamento da criação literária, pois a partir dela passam a existir os dados constituintes da obra" (Castro, 1983: 17). Uma das características básicas da obra literá-ria é ser, portanto, ideológica, isto é, a obra se constitui num meio de propagação de idéias, o que a torna um instrumento de repetição dos valores dominantes ou da instauração da pos-sibilidade de ruptura, do novo, de uma outra ordem de coisas e sentidos.

Essa ideologia pode estar impregnada nos vários níveis discursivos, dentro da obra literária. Devido à proposta de nosso estudo, deter-nos-emos na análise do personagem, mais especificamente, na figura do herói.

O berço do herói

Antes de analisarmos os heróis como

produtos culturais de massa, é necessário lembrar que o herói está presente no imaginá-

rio desde os primórdios da história humana, quando, numa condição precária em que a própria existência se revestia em mistérios, os primeiros homens procuraram explicar o mundo a partir das divindades. Neste intuito, criaram a figura dos deuses, uma mistura do bem e do mal, aliada aos super-poderes e à imortalidade. Habitando o Monte Olimpo e se alimentando de néctar e de ambrosia, estes deuses detinham o controle sobre o fogo, a terra, o ar e tudo o que neles habita. Suas fa-çanhas, tidas como verdadeiras, eram passa-das com idolatria e respeito de boca a boca, indiferentemente de sexo e idade. Na mitolo-gia cristã, esses deuses foram sintetizados em dois pólos: na divina trindade e na imagem de Lúcifer, atualização de Hades, da divindade greco-romana.

Ao lado da mitologia cristã floresceu, na Idade Média, uma mitologia laica, absolu-tizando o Bem e o Mal. Esta se encontra re-presentada principalmente através do contos de fadas, nas figuras da fada madrinha (Bem) e da bruxa (o Mal), ressignificados pelos efei-tos especiais das produções cinematográficas de nossos dias e pelos livros ficcionais de na-tureza mística, como os de Paulo Coelho. O que se percebe é que a busca da verdade sobre o homem e o mundo continua e com isso, a varinha mágica, resquício dos poderes dos deuses gregos, passando também por uma e-volução, transmudou-se para continuar a re-produzir, com mais eficácia, a eterna luta en-tre o bem e o mal, o sim e o não, a vida e a morte.

A partir de meados do Século XX, surgem novos produtos culturais que perpetu-am a relação Bem/Mal, a partir do manique-ísmo dos símbolos bruxa/fada da Idade Mé-dia: é a cultura massificada colocada à dispo-sição nas bancas de jornais, na televisão e na internet, na forma de gibis, jogos infantis, filmes, etc.

Iniciado geralmente na infância, o consumo desses produtos não se restringe à faixa etária infanto-juvenil, estendendo-se a uma grande parcela de adultos, tornando-se verdadeiros campeões de venda em distintos países. Entretanto, seja pela estrutura automa-tizada das histórias, seja pelos referenciais

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que representam os personagens, esses produ-tos mostram um lado mórbido, posto que são potentes instrumentos de manipulação ideoló-gica, servindo, de diversas formas, à manu-tenção dos interesses dos sistemas políticos e econômicos.

A estória do Tio Patinhas, por exem-plo, é uma típica propaganda capitalista. O milionário, além de representar o empresário, ou seja, o dono do capital, é a própria alegoria do capital em si. Sua empresa visa apenas a mais-valia e todos os valores morais desapa-recem, sendo substituídos pela perspectiva de lucro. As pessoas, para o Tio Patinhas (inclu-indo ele próprio) deixam de ter qualquer im-portância nas estórias. Exemplo disso é a forma como trata o sobrinho Donald, repre-sentante da classe proletária, despudorada-mente explorado pelo tio. Em nenhum mo-mento existe o questionamento da problemá-tica e a tendência é, pelo automatismo, manter a relação dominante/dominado, que torna o tio a cada dia mais rico e o sobrinho cada vez mais pobre.

Os filmes de aventura, além de extre-mamente violentos, tentam, através dos ícones que compõem o personagem principal, vender a imagem do poder hegemônico dos Estados Unidos tanto para os próprios americanos quanto (e principalmente) para os países e-mergentes.

O leitor passa, desde a mais tenra in-fância, por um lento e progressivo processo doutrinário, durante o qual introjeta valores que não são necessariamente os de sua cultu-ra, considerando-os, mais do que normais, desejáveis. Gradativamente, o leitor começa a valorizar mais o "ter" em detrimento do "ser", e, ato contínuo, a converter-se em coisa, con-vertendo-se por seu "livre arbítrio" em força de trabalho explorada pelo sistema. Como so-nho de consumo, começa a almejar a posição privilegiada de Patinhas, a força do herói de seu filme preferido e, quando tem a oportuni-dade de conquistar posições sociais privilegi-adas, muitas vezes o faz sem respeitar os inte-resses de sua classe social.

Temos assim a perpetuação de uma ordem econômica (infra-estrutura) por via da ideologia que se manifesta na linguagem, no

simbólico, nos processos de representação por via do aparato das instituições (superestru-tura), conforme preconiza a perspectiva al-thusseriana:

A ideologia – parte da superestrutura do edifício – , portanto, só pode ser concebida como um modo de reprodução, uma vez que é por ele determinada. Ao mesmo tempo, por uma “ação de retorno” da superestrutura sobre a infra-estruturam a ideologia acaba por per-petuar a base econômica que a sustenta (Mus-salim, 2001: 104).

Eu tenho a força

Independente da linguagem de que se

utilizam, esses produtos de massa apresentam uma estrutura rígida e pobre, fazendo parte do que Flávio René Köthe (1986: 35) chama de narrativa trivial, caracterizada basicamente "pelo automatismo, pela repetição e pelos cli-chês, em nível de enredo, personagens, temá-rio, valores e final”, aspectos que tornam a leitura de tais textos acessível a qualquer tipo de leitor.

Dentre as peculiaridades do gênero, entre as que mais chamam a atenção estão, sem dúvidas, a imortalidade e a invencibilida-de do herói, configurando uma figura demiúr-gica, cujos poderes se comparam à força da magia. Nesse caso, vamos observar como fato sintomático uma incrível coincidência de i-dentidade entre o herói imaginário e o herói das urnas, o que indica a existência de um de-terminado condicionamento entre o real e o fictício, entre leitura e leitor. Como exemplos de heróis imaginários, podemos citar uma in-finidade de personagens que variam da fada à Cinderela, dos cowboys americanos ao deteti-ve policial do seriado de TV, todos detentores de uma força/saber que lhes possibilita reali-zar feitos irrealizáveis pelo homem comum, sintetizando, portanto, o mito do super-homem e exercendo sobre o público leitor, mais do que o fascínio, as condições para sua submissão ideológica.

Aparentemente, na ficção, o herói é um homem comum, comprometido com os dogmas do bem e da moral convencionados pela sociedade. O super-herói da literatura de

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massa não precisa de palanques para provar que é superior e que é capaz de solucionar os problemas dos mortais, mesmo porque é úni-co, não possui concorrentes e, caso apareçam alguns, são sempre caracterizados como ame-aças ao bem-estar da população e por isso de-vem ser derrotados, exterminados.

Outro aspecto a se observar é que, em geral, o super-herói não age em grupo, pois ele representa o poder absoluto e por isso se torna detentor de todas as forças do bem, con-siderado como tal as diretrizes do poder (ele estará sempre agindo em nome do Estado, da Igreja, do Poder dominante). Assim é que o cidadão Clark Kent pode, num piscar de o-lhos, transformar-se no imortal super-homem, banir sozinho todos os bandidos que ameaçam a tranqüilidade dos cidadãos e voltar ileso à sua condição de pacato jornalista. Lembremos ainda esse respeito os heróis encarnados por Stalone, Schwarznegger e similares. Ultima-mente, temos assistido nas histórias em qua-drinhos e nos desenhos animados a uma ten-dência dos heróis em trabalhar em grupos, porém, nos filmes produzidos por Hollywood ainda predomina a onipotência individual, elemento caro para a ótica neoliberal: é possí-vel vencer a tudo e a todos solitariamente, a despeito das forças contrárias. Por analogia, é também possível o sucesso econômico, desde que haja determinação, força de vontade, de-terminação, ousadia, qualidades indispensá-veis aos homens que “vencem” no mundo dos negócios, derrotando os concorrentes, angari-ando a simpatia do mercado.

Os candidatos de palanque, cujo dis-curso é anti-analítico por natureza, refletem uma circunstância semelhante à apresentada pelo herói ficcional. Para o candidato da tri-buna, a oposição é sempre a ameaça à popula-ção e, portanto, o bandido deve ser, à maneira do criminoso da narrativa trivial, derrotado. Assim como o herói da ficção, ao político, na narrativa da política nacional, interessa pro-mover-se como figura individual, utilizando a legenda na medida em que serve a sua auto-projeção, uma vez que, nesse quadro, a ideo-logia nem sempre está vinculada ao partido, sendo este reivindicado apenas quando há ga-nhos individuais para o candidato. De fato, ao

candidato interessa, o quanto for possível, vender uma imagem individual e quanto mais biônica ela parecer ao público maiores são suas chances de vitória: tratar-se-ia de um su-jeito acima das ideologias, acima dos parti-dos, para a garantia do interesse de todos.

Sabendo disso, cada político, à sua maneira, tenta, através de indexadores, reves-tir-se de alguma das faculdades extraordiná-rias do super-herói. De fato, se analisarmos a natureza do discurso do herói ficcional e do "herói" político, veremos que tanto um quanto o outro refletem uma ideologia supra-real. Antes de pretender ser analítico, o discurso de ambos é eloqüente. Na figura do herói fictí-cio, tal eloqüência é mostrada pelo ato efeti-vado, reiterando, portanto, o seu discurso e a sua condição de super. Para o herói de palan-que, a eloqüência é obtida através de associa-ções que o aproximam da figura de Deus ou de determinados políticos ou personagens ti-dos pela comunidade como mártires ou heróis da pátria.

Analisando o personagem He-Man, veremos que, ao empunhar a espada mágica, torna-se o detentor de uma força inigualável e, observemos, o seu discurso é breve, resu-mindo-se à frase "Eu tenho a força", o que já é a garantia da solução de todos os problemas dos mortais. O mesmo discurso é por várias vezes repetido pelo candidato em campanha. Quando afirma que precisa do voto do eleitor para resolver os problemas do povo, reclama para si a força e a espada mágica de He-Man: eu tenho a força da representatividade, sou, portanto, detentor da legitimidade e das con-dições para pode fazer.

Neste sentido, tanto a espada para He-Man quanto os votos para o político se consti-tuem numa espécie de varinha mágica que os dota de superpoderes. Observemos, todavia, a contragosto, que o discurso do herói imaginá-rio não sofre reversão, isto é, o super, de fato, efetiva o predisposto e seu poder é utilizado em favor do bem-estar da coletividade.

Diferentemente, no caso do discurso político, vemos tantas vezes uma espécie de deterioração da manutenção no compromisso assumido, o que com maior ou menor rapidez, confere desgaste a sua credibilidade junto ao

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eleitorado. Assim, os discursos de campanha se perdem ao longo do processo, modifican-do-se, tornando-se diferentes das falas subse-qüentes: o que se declara na condição de can-didato não mais se assemelha ao que se diz quando empossado. Enquanto He-Man utiliza a sua força em prol do povo, o político decaí-do a utiliza em benefício próprio, e por isso mesmo contra a coisa pública. Enquanto, no campo simbólico, temos a confirmação da necessidade dos super-heróis, na vida das re-lações de poder o heróico não parece alcançar as condições para seu progresso. Assim, mui-tas vezes assistimos a uma progressiva deteri-oração da imagem do pretenso herói nas ur-nas, rumo à decadência de sua figura e desen-canto do eleitor com o processo.

Daí para a crucificação há uma peque-na distância: é quando surgem as imagens dos judas queimados nos Sábados de Aleluia ou os enterros simbólicos, marcando a falência do modelo que havia possibilitado a eleição do político.

Já citamos em oportunidade anterior que o herói ficcional, geralmente antes do de-senlace da narrativa, sofre uma recaída em que é fartamente enganado e nocauteado, po-rém, ao final, a estória mostra ao leitor que fatalmente o herói vence, mesmo porque ele é absolutamente invencível.

Ora, na história política também isso ocorre: assim que um determinado discurso entra em declínio, os representantes do Poder começam a renegar a própria legenda e a se engajarem em outras facções sob a desculpa de que o partido desviou-se das suas metas iniciais, de que a equipe não está afinada com o Governo, dentre outras. Enfim, prepara-se para abandonar o navio naufragado e, obser-vamos, é quando o seu discurso torna-se mais individualista do que nunca: o suposto herói tenta, ao apontar bodes expiatórios, reverter a situação, reforçando um discurso extrema-mente individualista.

É novamente a imagem do super-herói que entra em cena diante do eleitor, um herói que sobrevive para além dos interesses do grupo e é detentor de um poder inextinguível. Não são raros os casos de anti-heróis que re-cuperam a imagem diante do público pela

simples troca de bandeira. A inexistência de uma memória histórica tem sido apontada por muitos como sendo o principal motivador deste fenômeno. Nesse caso, seria importante considerar os mecanismos que constroem essa memória social e histórica, silenciando e apa-gando fatos e processos. Se toda relação do sujeito com o mundo é mediada pela lingua-gem, constituída pelo discurso, que mecanis-mos discursivos fazem significar a realidade tendo em vista essas narrativas sociais?

O discurso do anti-herói

“A esperança é um urubu pintado de verde.”

(Mário Quintana) Não existem heróis sem fãs. Não exis-

tem textos sem leitores. Não existem, no to-cante aos heróis produzidos pelos discursos, heroificação sem leitores que consumam essas figurações heróicas. No entanto, temos que considerar que os fãs/leitores consomem estes produtos culturais que levam a denominação de heróis, às vezes, de modo muito crítico quando satirizam ou simplesmente ridiculari-zam esses heróis e, assim, a recepção dos lei-tores/fãs nem sempre são as melhores possí-veis.

O herói, na tradição greco-romana – matriz das concepções ocidentais das figura-ções heróicas – é exemplar, modelar, um pa-radigma. Assim, quando nos deparamos com as construções/fabricações/invenções con-temporâneas, pensamos que, nem seria ade-quado denominá-las de figurações heróicas. As angústias do “homem” – que homem? – contemporâneo fazem com muitas vezes ele busque escapar ao massacrante e insuportável contingente e rotineiro da vida. Seria melhor recolocarmos as figurações heróicas contem-porâneas a partir deste sintoma. Ainda mais quando pensamos nos diversos níveis de compreensão possíveis para as figurações he-róicas. Isto é, quando pensamos que classes e grupos sociais se apropriam e resignifiam es-sas figurações.

Vejam a enorme teia de aranhas: he-róis, discursos sobre heróis, recepção do pú-blico das figurações heróicas. Ou seja, uma

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teia de discursos em que o “herói” se torna difuso. Sem ao menos dizermos uma linha inteira sobre: “os heróis anônimos”, os heróis da véspera, os de circunstância e aqueles que se tornam heróis da circunstância, ou seja, os heróis que os mídia constroem. A heroifica-ção, então, seria aquele processo complexo e difuso pelo qual o herói pode ser todos e nin-guém.

Certamente, quando o processo de he-roificação ocorre, envolve uma relação de Domínio e Poder, ou seja, quando um grupo, classe ou nível institucional se apropria e re-significa uma figuração heróica, esta passa a adquirir novos conteúdos, às vezes, diame-tralmente opostos dos originários. Quando um intelectual faz uso metafórico, metalingüístico ou parafrasal de uma figura heróica, ele o faz com uma intencionalidade política, econômi-ca ou social, a depender do leitor a quem se destina tal discurso. Desta forma, o falante e o lugar do falante determinam o conteúdo das figurações heróicas. Por outro lado, o receptor destas construções/fabricações/invenções das figurações heróicas não poder ser concebido como um mero receptáculo. Existe um espaço de interferência do interlocutor. Há que se considerar ainda que não há um sujeito cons-ciente de um lado, capaz de manipular um sujeito inconsciente e alienado na outra ex-tremidade. A ideologia atravessa os sujeitos (de ambos os lados) que não detêm de contro-le consciente sobre o que se enuncia, sobre as implicações ideológicas do que seu dizer pro-põe. Retomando Bakhtin (1995), temos que a interação é a realidade fundamental da lin-guagem: as trocas interlocutivas constroem-se mediante a negociação de valores, de senti-dos, na remissão a outros dizeres, na atualiza-ção de um imaginário historicamente compar-tilhado.

Na perspectiva retórica, estamos dian-te de um sujeito que manipula conscientemen-te recursos tendo em vista a adesão do inter-locutor. Na perspectiva da AD, não há essa autonomia na construção da persuasão. A efi-cácia depende, pois, da inscrição do dizer numa dada formação discursiva, que prescre-ve o que pode ou não ser dito, bem como o modo como as palavras aí significam. Persua-

dir depende, assim, da adesão a certos discur-sos, que materializam determinados valores ideológicos. Desse modo, não há um sujeito onipotente, que regula o que quer dizer, mas um sujeito histórico, interpelado pelo incons-ciente e pela ideologia, que diz o que é possí-vel. A construção de uma figura heróica, por-tanto, não prevê um sujeito que manipula oni-potente a massa de cidadãos indefesos, mas negociação, como porta voz do que naquele momento se edifica para estes como poder e esperança. Assim, ao pretender manipular o outro, o sujeito é também por este manipula-do, a ele também se submete.

Dando continuidade a esse raciocínio, propomos a seguir a análise de um jingle de campanha política em 2006 (anexo) para o governo de estado. Nesse ano, os brasileiros elegeram por voto direto deputados estaduais e federais, governadores e Presidente da Re-pública, o que implicou a mobilização de di-versas estratégias de marketing, que parecem ser cada vez mais indispensáveis para a garan-tia da vitória de um candidato. O jingle, repe-tido à exaustão em barulhentos carros de som pelas ruas das cidades tocantinenses, acaba por ser memorizado, para o que contribui ain-da a própria simpatia pelo ritmo musical. Como predomina no gosto popular da região o forró, os candidatos souberam disso tomar partido, apresentando em suas campanhas a-nimadas composições. Cruzando inúmeras vezes as mesmas ruas, os carros instauravam uma espécie de debate em campo aberto, quando, como ocorre com os repentes nordes-tinos, uma composição dialogava, respondia, provocava a outra. Caberia, pois, ao eleitor, verificar a consistência das idéias expostas, a melhor argumentação, a resposta mais con-vincente, atribuir estatuto de credibilidade a esta ou àquela fala, analisando a “verdade” dos versos.

Para nossas reflexões, escolhemos um dos jingles do candidato Siqueira Campos. Na história do Estado do Tocantins, Siqueira é um dos personagens que recebe maior desta-que. Muitos a ele atribuem a própria respon-sabilidade pela “criação” do Estado, em 1988, tendo em vista sua atuação como senador e, posteriormente, como governador. Nesse pe-

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ríodo, envia cartilhas às escolas, nas quais se narra a luta pela emancipação do Estado. No texto da cartilha e nas imagens que a ilustram, Siqueira surge como uma espécie de herói que representa os interesses do povo esquecido pelo poder público no então norte de Goiás.

O jingle escolhido é constituído por três estrofes e um refrão que inicia a compo-sição: “Mamãe, eu já vou mamãe, eu vou já vou votar 45 pro Siqueira retornar.”

Temos aqui um enunciador projetado no texto em 1ª. pessoa (eu), que, como eleitor, comunica sua decisão de votar em Siqueira. Ao longo do texto, esse enunciador deixa cla-ra a existência de uma disputa entre dois can-didatos, o que apóia em seu dizer, Siqueira, e o seu opositor, Marcelo Miranda1, a ser des-qualificado para o cargo. Caberia, assim, aos demais eleitores, a identificação com os dis-cursos que esse “eu” passa em seguida a arro-lar, aoncorando sua decisão. Não há, pois, projetada de forma direta uma enunciação as-sumida pelo ator candidato, que se encontra aqui na posição de não-pessoa, assunto de que se fala, ausente da cena enunciativa. Ainda projetado no texto está o “tu”, com quem o locutor-enunciador dialoga: Preste atenção, amigo compositor. Este locutor representaria, assim, o eleitorado de Siqueira, falando em nome desses eleitores e, do mesmo modo, por extensão, em nome do próprio candidato.

Na segunda estrofe do refrão, surgem dois novos versos: “Dar lapada no bezerro que ele pára de mamar.”

No diálogo entre as composições, os nomes dos candidatos com maior número de votos são substituídos pelas metáforas bezer-ro (correspondendo ao oponente, Marcelo Mi-randa) e boi velho (Siqueira Campos). No ce-nário econômico, em que a produção pecuária responde como fundamental fonte de renda para o Estado, o emprego de expressões como essas configura adesão a elementos presentes

no imaginário social. Na composição, a opo-sição bezerro versus boi velho alude à relação juventude/inexperiência versus velhi-ce/experiência. Assim, o boi velho teria me-lhores condições de governar o Tocantins porque sabe como fazê-lo, tem grande lastro político, enquanto o opositor é bezerro, ani-mal ainda novo, que ainda mama, submisso e dependente.

Ainda considerando a cena nessa nar-rativa política, a composição atualiza novos sentidos para o verbo mamar. É comum a ex-pressão “mamar nas tetas do Estado”, isto é, apropriar-se indevidamente dos recursos pú-blicos para benefício próprio. Ao bezerro se associa agora a imagem de corrupção, o que é reiterado em outros momentos do jingle: “Não voto em marajá (...) Dar lapada no bezerro que ganha 28 mil (...) Eles têm medo da espora e do chicote que o Siqueira está guardando pra bater em marajá.”

Aqui surge outra expressão que alude à corrupção, a do marajá. Na política brasilei-ra, a figura do marajá surge nos anos 80 como adjetivação para os políticos que recebem al-tos salários, beneficiando-se do poder para garantirem por força do aparato legal salários não condizentes com o exercício do cargo. Em 1989, Fernando Collor elege-se presiden-te como “caçador de marajás”, preconizando para si o papel de moralizador da política na-cional. Na fala do enunciador projetado no jingle, Siqueira vai bater em marajá, fazendo uso de espora e chicote. Trata-se, pois, de um sujeito que pretende moralizar a política pelo emprego da força, enunciando, pois, por um processo polifônico (Bakhtin), o modo como se dá a gestão pública no país e o rigor com que deve ser combatida a corrupção: bater, lapada, espora, chicote, metáforas que mais uma vez remetem ao universo da pecuária, base econômica do estado, e ao caráter das relações de poder e força aí legitimadas.

Há, porém, aqui, uma coincidência que aproxima os opositores. Nos versos Pois quem mama é bezerro / Que foi boi velho

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quem criou, identificamos a existência de um contrato inicial entre os dois personagens po-líticos. O bezerro seria uma “criação” de Si-queira Campos, uma vez que este o teria in-troduzido na política como uma espécie de continuador de suas propostas, aliado político. A partir desses elementos, podemos constatar que a dissidência não se dá necessariamente no plano das concepções políticas e ideológi-cas, pelo menos num plano inicial. Se o inte-resse do enunciador locutor é a de denegrir o opositor, Marcelo Miranda, valorizando as-pectos positivos de Campos, aqui vemos que a estratégia argumentativa compromete o se-gundo. Siqueira é quem “cria” Miranda e o que podemos ler na narrativa é a ocorrência um momento de ruptura entre os dois. A idéia de continuidade e similitude é ainda reforçada pelas próprias metáforas. O bezerro de hoje é o boi de amanhã, ambos compactuam de uma mesma essência, distanciando-se apenas pelo aspecto temporal. O verso, portanto, em vez de servir para reiterar a diferença dos oposito-res, serve para aproximá-los, confundi-los, mostrando que não falam e legislam de dife-rentes lugares.

Na segunda estrofe, ressalta-se o cará-ter empreendedor de Siqueira: “Ai, que saudade que eu tenho das grandes obras o que fez de nosso Estado o mais lindo do Brasil”

Deixando subentendido que, no go-verno de Miranda, nesse momento buscando o segundo mandato consecutivo, as grandes obras estariam ausentes. Seria Miranda o ma-rajá, uma vez que seu salário seria de 28 mil, devendo, pois, ser rejeitado pelos eleitores.

Na última estrofe, a oposição ao ad-versário se intensifica, incluindo agora um outro sujeito, “eles”: Eles têm medo da espora e do chicote. Certamente a expressão “eles” corresponde aos aliados de Miranda, derrota-dos nas urnas: Fique tranqüilo que a lapada é do voto. Nesse momento, por efeito polifôni-co, evidencia-se a intranqüilidade que poderia ser produzida no interlocutor. O enunciador orienta, assim, para a tranqüilidade, explican-

do o raciocínio: a lapada é do voto. Mais uma vez, a argumentação deixa espaço para dúvi-das em relação ao comportamento de Siqueira no poder, no uso que fará da espora e do chi-cote, que funcionam aqui como uma mostra de poder e intimidação. Pelas histórias que se associam ao comportamento intransigente e intempestivo de Siqueira, a argumentação pe-ca por mais uma vez lembrar que existem mo-tivos para intranqüilidade, justificando o pe-dido do locutor: Fique tranqüilo.

Como se verifica, a persuasão preten-dida pelo enunciador esbarra em algumas contradições, que vêm à tona em sua fala. Pretendendo elevar Siqueira e denegrir o opo-sitor, o enunciador acaba trazendo à luz ele-mentos polêmicos, que poderiam compro-meter o próprio Siqueira. Retomando Orlandi (1999), lembremos que são as formações dis-cursivas que prescrevem o que pode ou não ser dito. Atualizando discursos que alcança-ram legitimidade, o que pode ser polêmico e contraditório deixa de sê-lo na medida em que se verifica a filiação a um dado discurso do qual retira sua lógica. Desse modo, o que o enunciador atualiza na figura de Siqueira é a do político empreendedor, mas de mão forte, com o qual parcela da população se identifica. O caráter autoritário não assusta e, de algum modo, é determinante para o culto a sua figu-ra. Num país em que a democracia ainda en-gatinha, a concentração de poder ainda é vista como aceitável e natural, legitimada pelo dis-curso dominante. Siqueira representa a ala pecuarista do Estado, os empresários do agro negócio. Votar nele é, assim, dar continuidade a um projeto econômico, que faz o Estado a-pontar no cenário nacional como região pro-missora, atraindo levas de migrantes que po-dem ou não ler nas entrelinhas dos discursos a assimetria das relações de poder aí estabeleci-das, o que por esses discursos é silenciado.

O herói político surge, pois, como uma figura um tanto decaída, mas que se sobressai como o que tem condições de fazer o que de-ve ser feito: gerar empregos, combater a cor-rupção, fazer obras. Seus pecados são enun-ciados, ecoando em altíssimo e bom som pe-las ruas do país, embora nem tudo possa ser lido ou percebido como pecado.

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Considerações finais

A vida cotidiana é permanentemente

reinventada desde os mais remotos tempos. No mundo contemporâneo isso se tornou um axioma e um anátema. Os meios de comuni-cação de massa, os mass mídia reelaboram os conceitos e noções que o homem tem de si e dos “outros”. Estas percepções que são cons-truídas diariamente conduzem a reelaboração do próprio homem. As “sociedades anôni-mas”, as sociedades plurais, pulverizadas e fluidas do mundo contemporâneo abriram um enorme espaço para essa reelaboração do ho-mem. Nesse espaço aberto agem sem freios os meios de comunicação de massa provocando a sensação de participar e de intervir ilimita-das. Esta digressão tem o propósito de colocar em questão o seguinte: tanto em sociedades orientadas pelo capital como em sociedades não explicitamente orientadas por ele temos uma mídia que constrói, fabrica e inventa he-rói políticos. Os sistemas sociais em que o eleitor vive é apenas um elemento a mais para compreendermos o processo de mitificação da dimensão política. Os sistemas sociais são elementos nada desprezíveis para essa com-preensão. Mas pensamos que a mitificação da dimensão política corresponde simetricamente aos desejos e anseios de proteção, amparo e conforto dos próprios eleitores. Isto é, diante de um mundo com valores essenciais frag-mentados as pessoas buscam segurança, pro-teção, amparo. Nos discursos políticos, essa tônica está presente.

Os discursos políticos mobilizam ain-da outros valores e princípios que os tornam creditáveis ou pelo menos passíveis de crédi-to. Um exemplo, dentre tantos, o apelo a Deus, ou mais amplamente, aos sentimentos religiosos e espirituais dos eleitores, como vimos se acionados por Bush como justifica-tiva para a invasão do Iraque. Novamente, estamos diante de uma teia de discursos me-diados e matizados pelos meios de comunica-ção. O discurso político passa a ser mais um produto do mercado de idéias. É vendido, do-ado, emprestado, permutado em função das

contingências e de circunstâncias que o eleitor não está interessado diretamente em analisar.

A vida cotidiana assim mediada, mati-zada e mitificada pelos meios de comunicação envolve o eleitor com uma fina camada ilusó-ria, superficial e frágil segurança social, que para ele nem sempre é suficiente. Neste qua-dro, o herói ficcional e o pseudo-herói políti-co se fundam e fundem. Aparecem como os salvadores e protetores de eleitor consciente de sua condição sensivelmente insegura. Isso não significa dizer que o eleitor seja uma ma-rionete ou fantoche nas mãos da mídia, do governo, dos sistemas sociais e muito menos dos políticos. O eleitor sabe quem é quem na dinâmica social. Apenas joga o jogo. Constrói um conjunto de princípios e valores que com-põem uma cidadania, no caso brasileiro, uma cidadania fragmentada e parcial, pois a mitifi-cação da dimensão política não é total.

A célebre frase dá o tom: “a César o que é de César, a Deus o que é Deus” ainda com o intuito de polemizar e problematizar a figura do herói propomos aqui um reflexão final com base nas reflexões de Michel Maf-fesoli, com seu Elogio da razão sensível (1998). Este autor afirma que é preciso retor-nar à vida cotidiana do homem comum e ao seu senso comum de realidade. É preciso ob-servar e compreender como o senso comum constrói a sua compreensão do mundo sensí-vel, i.e., da realidade, propondo uma fenome-nologia da vida cotidiana.

O século que se inicia exige essa fe-nomenologia da cotidianidade para entender-mos as figurações heróicas e seu estrondoso sucesso e popularidade. Podemos dizer que as figurações heróicas são mistificadoras, reifi-cadoras e alienantes, no entanto, elas perma-necem e se multiplicam vigorosamente. À guisa de conclusão e ao mesmo tempo nada concluindo, cabe perguntar: elas não são o alimento de que precisamos para suportar o banal, o ritual rotineiro e a insignificância de nossas vidas intimas e privadas? Poderíamos viver sem as figurações heróicas? Por que as figurativizações heróicas ainda fazem sentido na vida do homem contemporâneo?

Referências bibliográficas

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Notas (1) É importante lembrar que para o cargo de governador concorriam outros candidatos, aos quais ao jingle não faz menção. Esse apagamento dos demais concorrentes também é significativo para compreender as relações de poder no Estado. Anexo

Jingle de campanha eleitoral no Tocantins, eleições 2006

Refrão

Mamãe, eu já vou Mamãe, eu vou já Vou votar 45 Pro Siqueira retornar. Mamãe, eu já vou Mamãe, eu vou já Dar lapada no bezerro Que ele pára de mamar.

1

Eu sou capaz. Eu não quero confusão, Não voto em marajá Nem pra ganhar um milhão. Preste atenção, amigo compositor, Pois quem mama é bezerro Que foi boi velho quem criou.

2

Ai, que saudade, Que eu tenho das grandes obras O que fez do nosso Estado o mais lindo do Brasil. Chama Siqueira pra botar as coisas em ordem Dar lapada no bezerro Que ganha 28 mil.

Eles têm medo da espora e do chicote Que o Siqueira ta guardando

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Pra bater em marajá. Fique tranqüilo que a lapada é do voto Nas costas desse bezerro Que vai parar de mamar.

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Infância, cinema e leitura: um tripé viável

Childhood, cinema and reading: a possible tripod

Lovani Volmer , a, b e Flávia Brocchetto Ramos , a, c

aUniversidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil; bCentro Universitário Feevale, Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, Brasil; cUniversidade de

Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo A indústria cultural assimilou o público infantil, de modo que, na atualidade, há, cada vez mais, oferta de produtos culturais voltados para a infância e, por conseguinte, uma preocupação em torno desses produtos. O presente artigo, nesse sentido, objetiva analisar, a partir de pesquisa realizada com 4 cri-anças, procedimentos empregados durante sessão de filme infantil – Shrek 1. Buscou-se refletir sobre os sentidos produzidos a partir do seu enredo e como percebem a desestereotipização de conceitos preestabelecidos pela sociedade vigente. Para tal, apresenta-se um breve estudo acerca da produção cultural infantil, a contextualização do filme, as observações e comentários das crianças, acompanha-dos da análise propriamente dita. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 31-39. Palavras-chave: infância; produção cultural; produção de sentidos. Abstract The cultural industry got the children in a way that, nowadays, it is growing the offering of cultural goods to that public and the worries about these products, as well. This article aims to analyze, from a research dare with 4 children´s, the processes that happened during a children´s film session – Shrek 1. We wanted to think about the senses produced from the plot, and also how the children perceive the undo of stereotyped concepts in the society today. Thus, we present a brief study about children´s cul-tural productions, the film contextualization, the comments and observations from the kids, followed by analyzes. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 31-39. Key Words: childhood; cultural production; construction of meaning.

1. Introdução A comunicação humana, ao longo da

história, passou por muitos processos. Inici-almente, os homens comunicavam-se entre si apenas oralmente, depois veio a escrita, a cul-

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 13/10/2007 | Revisado em 29/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- L. Volmer é Mestranda em Letras (UNISC), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Especialista em Informática na Educação. Atua como Professora (Escola de Educação Básica Fee-vale – Escola de Aplicação do Centro Universitário Feevale), onde também atua como Professora no Curso de Letras e no Centro de Idiomas. Endereço para correspondência: Rua Gessé Ávila de Souza, 490, Bairro Independênia, São Leopoldo, RS 93020-290. Telefone: 0XX(51) 3588-7352. E-mail para correspondência: [email protected]. F.B.Ramos é Doutora em Teoria da Literatura (PUC-RS). Atua como Professora do Departamento de Letras (UNISC) e na UCS. Atua ainda como Professora na Pós-graduação (Mestrado em Letras – UNISC). E-mail para correspondência: [email protected].

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tura impressa e hoje estamos em plena cultura eletrônica. O tratamento dispensado às crian-ças, igualmente, passou por muitos processos e hoje, cada vez mais, há uma preocupação em torno de produtos culturais voltados para a infância.

Nesse ínterim, o presente estudo pre-tende analisar, a partir de observação realiza-da com 4 crianças, a leitura que fazem de um filme a elas dirigido – nesse caso, Shrek 1, que sentidos produzem a partir do seu enredo e como percebem a desestereotipização de conceitos preestabelecidos pela sociedade vi-gente. Com o intuito de elucidar tais questões, apresentar-se-á um breve estudo acerca da formação cultural da criança, a contextualiza-ção do filme, as observações e comentários das crianças, acompanhados da análise pro-priamente dita. Os dados discutidos no artigo nascem da análise de uma situação familiar em que 4 crianças e um familiar assistiram a um filme e, para fins de análise, seguem prin-cípios do estudo de caso, uma modalidade de pesquisa qualitativa que vem ganhando cres-cente aceitação na área da educação.

2. A formação cultural da criança

A concepção de infância, tal como a

conhecemos, data do final do século XVII, no início da formação da burguesia, e caracteriza a criança, em diferentes contextos históricos, como um vir-a-ser (Ketzer, 2003), ou seja, o mundo do adulto se diferencia significativa-mente do mundo da criança. Essa realidade, porém, nem sempre foi assim; até a Idade Média não havia nem mesmo um vocábulo específico para designá-la, era vista como um adulto menor e o esforço social consistia em integrá-la o mais rápido possível na vida adul-ta (Merten, 2003). A esse respeito, podemos, ainda, destacar Zilberman:

“Antes da constituição deste modelo familiar burguês, inexistia uma conside-ração especial para com a infância. Esta faixa etária não era percebida como um tempo diferente, nem o mundo da crian-ça como um espaço separado. Pequenos e grandes compartilhavam dos mesmos

eventos, porém, nenhum laço amoroso os aproximava. A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente os meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e a manipulação de suas emoções.” (Zilberman, 1998:15)

Como podemos ver, essa nova con-

cepção de infância não considera mais a cri-ança como um adulto em miniatura, quando o que era útil para um adulto também o seria para a criança. A realidade do infante é dife-rente da do adulto, “assim como a sua mente não é a mente de um adulto em escala menor” (Vigotski, 2003: 12); é todo um processo, um modo de vida que leva a criança a passar gra-dativamente de uma posição subjetiva e ego-cêntrica para outra, mais objetiva e científica. Esse processo é definido por Piaget (1980), como períodos de desenvolvimento, que, na sua concepção, seriam quatro: período sensó-rio-motor (0-2 anos), período pré-operacional (2-7 anos), período operacional-concreto (7-11 anos) e período de operações formais (11-15 anos).

Na atual sociedade capitalista em que vivemos, não é equivocado afirmar que a concepção de infância está diretamente rela-cionada à classe social a que a criança perten-ce e, nesse sentido, a sua formação cultural depende também desse fator. Assim, poderí-amos dizer que as crianças burguesas são ins-trumentalizadas para dirigir a sociedade e as crianças da classe trabalhadora formadas para o trabalho; a cultura é coisificada, tornando-se produto que serve tanto para a distinção de classes, como para a alienação e dominação das maiorias. A cultura aparece como sendo simplesmente o resultado de um processo, a herança social, o dado acabado, o objeto está-tico. Os produtos culturais seriam a expressão de um modo de vida determinado que, en-quanto tal, se explicam e se justificam. Redu-zido a produto das relações sociais, não se incluiriam no conceito de cultura nem as pró-prias relações sociais nem os seus determi-nantes (Perroti, 1990). A coisificação da cul-tura determina a inserção desta no mundo da produção capitalista, na qual se quantificam,

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secularizam, normatizam e mercantilizam os bens produzidos nas relações de trabalho hu-manamente significativas. Desse modo, a cul-tura exerce uma função domesticadora e re-pressiva nas sociedades divididas em classes, exercendo o papel de veiculação dos conteú-dos ideológicos das classes dominantes para todas as classes sociais.

Nesse contexto, a criança assume o papel de consumidora de bens culturais im-postos socialmente, pois somente assim pode-rá tornar-se um “ser humano evoluído”, adap-tado às regras da sociedade e capaz de assu-mir suas funções sociais. Conforme Umberto Eco (1976), criam-se “estruturas de consola-ção”; oferece-se à criança a possibilidade de ela viver através de produtos culturais aquilo que a expansão capitalista lhe nega no real: o roubo do espaço e o bloqueio do lúdico – ten-ta-se compensar o real com o simbólico. Em outras palavras, a indústria cultural, que ajuda a construir significados simbólicos, encontra-se intimamente vincu-lada aos ditames impos-tos pelas leis de mercado.

Com o advento do neoliberalismo e da globalização do capital, o mercado passou a incorporar todos os segmentos da sociedade sob a lógica do consumo, desde recém-nascidos até idosos, independente de etnia, raça, credo, classe ou gênero. O mercado ob-serva no público infantil um consumidor po-tencial de mercadorias culturais e não cultu-rais, criando, dessa forma, condições para se consolidar uma rede de comércio que atenda a demanda de consumo desse novo público. Es-se mercado infantil constitui-se desde produ-tos tradicionais (brinquedos, livros) até a a-daptação de produtos adultos e de consumo familiar. A indústria cultural assimilou o mer-cado infantil, que tem se expandido desde a década de 1980, para a comercialização de bens simbólicos através da segmentação dos meios de comunicação, por exemplo. Nesse sentido, os produtos culturais comercializados para este público formam uma cadeia inesgo-tável de produção e massificação de mercado-rias. Exemplo disso são os desenhos anima-dos explorados pela mídia, produzidos a partir de agenciamento de empresas que irão elabo-rar, produzir e comercializar uma infinidade

de produtos timbrados com o nome dos mais novos ídolos infantis da moda. Um exemplo dessa produção cultural para crianças é o fil-me Shrek, com o qual a DreamWorks firma-se como produtora de filmes infantis da melhor qualidade e cujo diferencial está no uso de recursos de computação que torna os perso-nagens, visualmente, quase reais. Eles têm movimentos e recriações de músculos, pele, ossos e cabelos. 3. O filme Shrek 3.1. O enredo

Em Shrek 1, é contada a história de

um ogro solitário, Shrek, que vive em um pântano distante e vê, sem mais nem menos, sua vida ser invadida por uma série de perso-nagens de contos de fada, como três ratos ce-gos, o lobo de Chapeuzinho Vermelho disfar-çado de vovó, três porquinhos, Pinóquio, sete anões e a Branca de Neve, fadas... Todos fo-ram expulsos de seus lares pelo maligno Lor-de Farquaad. Determinado a recuperar a tran-qüilidade de antes, Shrek resolve encontrar Farquaad e com ele faz um acordo: todos os personagens poderiam retornar aos seus lares se ele e seu amigo Burro resgatassem uma bela princesa, prisioneira de um dragão, com quem Lorde pretendia se casar. O filme em questão foge, em alguns pontos, de estereóti-pos da sociedade; conceitos, comportamentos já estabelecidos socialmente são aqui contra-postos. Sob esse aspecto, poderíamos até con-siderar Shrek como um conto de fadas moder-no; oferece ao espectador a possibilidade de rever conceitos. A princesa Fiona esperava que o príncipe que a encontrasse lhe recitasse um poema épico, mas Shrek apenas a põe embaixo do braço e sai correndo para fugir do dragão, sem romantismo. A Princesa Fiona, por sua vez, apesar de ainda ter certa fantasia em relação ao cavaleiro que a salvaria, tam-bém é uma mulher decidida, dá golpes para fugir dos inimigos, salta e até arrota, diferen-temente das princesas apresentadas nos contos de fadas, que eram totalmente frágeis e ro-mânticas. O final, como os clássicos contos de fadas, é feliz e alerta que as diferenças entre

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as pessoas devem ser respeitadas: Shrek e Fi-ona, após passarem por muitos desafios, fi-cam juntos, como ogros, e são felizes para sempre. Casam-se numa bela cerimônia com a presença animada das personagens de contos de fadas que haviam invadido o pântano e, a seguir, em uma carruagem, vão para a lua-de-mel.

O esquema tradicional do conto mara-vilhoso, proposto por Propp (1984), em que há herói, auxiliar, antagonista e princesa, é subvertido aqui. O príncipe, nessa história, assume o papel de antagonista. O ogro Shrek, que seria o antagonista é o herói da narrativa. A princesa Fiona não segue o padrão de prin-cesa que temos no nosso imaginário – é gor-da, morena, baixa, cabelos curtos – e trans-forma-se em ogra. O burro, animal carac-terizado pela falta de iniciativa, é o auxiliar do herói Shrek. Há uma subversão da estrutura clássica dos contos de magia apontada por Propp, já os personagens dessa narrativa mo-derna correspondem a outra esfera de ação.

3.2. Shrek 1 sob a ótica da criança

Como as crianças lêem o filme? Que senti-dos produzem a partir do enredo? Como per-cebem a desestereotipização de conceitos pre-estabelecidos pela sociedade vigente? Com o intuito de elucidar tais questões, 4 crianças - aqui identificadas por letras do alfabeto: A (3 anos), B (5 anos), C (6 anos) e D (9 anos) - assistiram ao filme. Durante a sessão houve interlocução como os sujeitos, a partir de um roteiro previamente estabelecido, focando os itens supracitados, mas com flexibilidade para valer-se das contribuições espontâneas das crianças. Cabe destacar que a pesquisadora possui grau de parentesco com as crianças, de forma que o filme foi assistido num ambiente totalmente descontraído e os sujeitos tiveram total liberdade para se manifestar. Toda a ses-são foi gravada em audiotape e, posteriormen-te, transcrita. Destaca-se que A e C não fre-qüentam a escola, B está na escola desde os 4 anos e D passou para a 4ª série. O filme foi escolhido por ser considerado emancipatório e por responder as questões propostas pelo es-tudo.

Shrek é um exemplo de tecnologia de ponta, mas nem por isso um velho conhecido, o livro, introdutor da produção cultural para a criança e uma das primeiras manifestações baratas e acessíveis de entretenimento (Lajolo e Zilberman, 1996), foi esquecido. Em Shrek 1, já nas cenas iniciais, na imaterialidade da tela, surge o livro, de capa dura e vermelha, cujas páginas escritas e ilustradas abrem-se e vão sendo viradas, acompanhadas de uma voz que diz:

“Era uma vez uma linda princesa, mas havia um terrível feitiço sobre ela, que só poderia ser quebrado pelo primeiro beijo do amor. Ela foi trancafiada num castelo, guardada por um terrível dragão que cuspia fogo. Muitos bravos cavalei-ros tentaram libertá-la dessa horrível prisão, mas ninguém conseguiu. Ela es-perou, sob a guarda do dragão, no quar-to mais alto da torre mais alta o seu verdadeiro amor e pelo primeiro beijo de seu verdadeiro amor.”

Neste momento, uma enorme mão (de

Shrek) arranca a última página narrada e faz o seguinte comentário: “Como se isso fosse a-contecer”. Quando as crianças foram indaga-das a respeito de isso ser possível de aconte-cer ou não, D disse que não poderia ser real, pois “ogros não existem”, mas B contrapôs, ponderando: “Ah, mas naquela época podia existir, na época que existia Dinossauro”. A ressalta que existe, pois estava na TV; C disse que não sabia. Quanto à pergunta de onde mais poderia vir a história, a princípio, se ca-laram, então foram indagadas se essa história poderia sair de um jornal, por exemplo. Ime-diatamente D disse que não; “jornal tem notí-cia de verdade, livro tem história”. B concor-dou e acrescentou: “livro conta história real e não, porque tem coisa que existe e que não existe, como ogro, sereia, isso é tudo lenda”. Então, a pesquisadora perguntou o que era lenda. D disse que é o que não existe e que nunca vai existir. B, que havia estudado a res-peito desse assunto na Educação Infantil, e-xemplificou: “É tipo a sereia, ela cantava e levava os homens para o fundo do mar e de-

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vorava eles e daí cantava de novo, e o curupi-ra e...”. D concordou com o exemplo. A ar-gumentou que poderia sair do computador e, ao ser interrogada acerca do porquê, apenas respondeu: “porque sim, como o livro do Po-oh” (vale explicar que A brinca no computa-dor com livros digitais, entre eles o do Pooh). C, mais uma vez, ficou calada. Aqui, pode-mos perceber a noção que essas crianças já têm acerca dos gêneros textuais, que, para Marcuschi (2003), são propiciados pelas no-vas tecnologias, o seu uso e suas inferências nas atividades comunicativas diárias, especi-almente nas ligadas à comunicação.

À medida que o filme ia se passando, os comentários das crianças eram espontâneos e muito apegados a detalhes, tais como:

B: Oh, ele escova os dentes e a pasta de dente dele é veneno de bicho. A: Eca, a pasta de dente não é de morango.

Cabe destacar que a criança atribui

sentido às coisas a partir das suas vivências, ou seja, o sentido nasce a partir do lugar do leitor, sendo que o que é diferente do seu mundo conhecido não é bom; o conceito do que é certo ou errado, do que pode ou não tem como pressuposto o mundo vivido.

No momento em que as personagens de contos de fada invadem o pântano de S-hrek, as crianças foram indagadas acerca de serem conhecidas ou não. D disse que já lera um livro do Pinóquio e outro da Branca de Neve. B foi além em sua resposta: “Ah, todos são coisas, coisas, ah, assim, de contos de fadas; a Branca de Neve, os três Ratinhos, ah, de livros. Ah, e eu acho que o Shrek já leu todas essas histórias, por isso que ele sabe quem são, ou a mãe dele, a profe contou”. Indagados se ogro ia à escola, B prontamente disse que sim, pois ele sabia ler. Aí podemos perceber claramente a função social da escola na concepção dessa criança, ou seja, ensinar a ler. Além disso, cabe destacar nesse comentá-rio, mais uma vez, a vivência da criança, que atribui a contação de histórias à mãe ou à “profe”, tal qual acontece em seu cotidiano. Quando apareceu a Branca de Neve, B e D dialogaram a respeito:

D: Oh, o espelho mágico da Branca de Neve. B: É, tem uma rainha má que pergunta: “es-pelho, espelho meu, existe alguém mais linda do que eu?” (ao mesmo tempo em que falava, interpretava e era imitada por A).

Alguns estudos apresentados por Ca-

parelli (1990), acerca da fantasia e da realida-de no contexto infantil, mostram que com a idade de 3 anos inicia-se o fascínio pelo mo-vimento e as crianças já podem seguir um en-redo simples, começam a distinguir as ações do seu mundo cotidiano para lentamente inte-grá-los no mundo imaginário. Nessa idade, a criança seleciona aquilo que quer ver e tem forte tendência a imitar aquilo que lhe desper-ta a atenção, o que prossegue até os 4, 5 anos, quando a criança está afirmando seu próprio eu. Em um processo de evolução contínuo, a criança percebe, aos poucos, que os filmes que vê pertencem apenas ao domínio da fan-tasia. Essa tarefa, no entanto, não é fácil, se levarmos em consideração que muitos adultos enfrentam dificuldades em separar a realidade da ficção quando, por exemplo, assistem a alguma novela. Constatamos que B, com 5 anos, está na fase de transição, pois ora con-segue perceber que é “apenas um filme”, ora diz que algo não é possível “porque não exis-te”.

Continuando a conversa sobre a Bran-ca de Neve...

D: A rainha era má porque queria matar a Branca de Neve. B: É, ela quer ser a mais bela de todas e quer que todos se apaixonem por ela.

Aqui, a presença das personagens de

contos de fadas só foi percebida pelas crian-ças, porque a leitura desses contos fora feita e/ou contada/ouvida anteriormente ao filme, caso contrário não se perceberiam essa inter-textualidade. Assim, a leitura, de uma ou ou-tra forma, faz parte do mundo dessas crianças. Destaca-se que C convive num ambiente to-talmente adverso; não recebe estímulos acerca de leituras ou um acompanhamento mais dire-to no que diz respeito à sua educação; seus

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conhecimentos advêm da famosa babá eletrô-nica, ou seja, ela apenas recebe, de forma pas-siva, aquilo que a TV veicula, o que reflete nas suas contribuições, que são poucas. Ape-sar de ser mais velha que B, cognitivamente, está aquém. Aí, podemos perceber o quanto o desenvolvimento humano dá-se de fora para dentro; a aprendizagem promove o desenvol-vimento, somos o resultado da interação com o meio (Vigotski, 2003). Em outro texto, esse mesmo estudioso afirma que “a atividade cri-adora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experi-ência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com o qual constrói seus edifícios de fantasia” (Vigotski, 1996:17).

Quando indagadas sobre quem é do mal no filme, responderam: D: O dragão, os guardas e o Lorde Farquaad são do mal. B: É sim, eles querem matar o ogro, o Lorde quer casar com a princesa. D: Eu torço pro Shrek, porque ele é do bem. B: É sim “D”, ele é do bem porque briga com os do mal e quem é do mal é amigo dos do mal, então ele é do bem.

A e C não se pronunciaram. Cabe des-

tacar que A falou pouco durante a exibição de todo o filme; passou a maior parte do tempo dançando, conforme a trilha sonora.

Interrogadas a respeito da beleza de Shrek e Fiona, B e D consideraram o ogro bo-nito por ser do bem; A disse que era feio, por-que não usava roupa direito e “andá pelado é feio”; já C disse que ele era feio, porque era ogro e ogro é feio. Nesse comentário da cri-ança, podemos perceber certo determinismo, ou seja, as coisas já são preestabelecidas; o estereótipo do que é certo e errado, do que é feio e bonito, conforme os padrões impostos pela sociedade. Quanto à Fiona, B disse que, como “ogra”, ela era mais bonita, porque daí ela não era tão magrinha, “muito magrinha é feio, daí tem aquela doença (referiu-se à ano-rexia e bulimia), muito gorda também, como eu, aí tá bom”. As outras três apenas concor-daram. Aqui podemos perceber a leitura de

mundo feita por essas crianças, além do quan-to assuntos tratados pela mídia fazem parte do seu cotidiano, especialmente tomando como referência o comentário de B, que também mostra certo egocentrismo, ou seja, “eu” sou padrão, “se for como eu está bom”.

Assistindo às façanhas de Shrek e Fio-na, quando estes estavam dirigindo-se ao cas-telo de Lorde Farquaad, as crianças acompa-nhavam entusiasmadas a melodia da trilha sonora e perguntavam-se, por vezes, como tal coisa era possível. B, inclusive, disse que pe-diria para seu pai fazer um churrasco de ratos, pois parecia gostoso.

Quando aparece o castelo de Lorde Farquaad, D imediatamente disse: “Parece grande, mas não é, porque o Lorde é anão, mas é príncipe”. Indagada se anão não pode-ria ser príncipe, B disse: “Se a princesa for (anã), claro que sim, senão não pode; não combina”. Esse comentário demonstra o quanto uma criança de 5 anos já tem alguns preconceitos vigentes na sociedade bem ex-plícitos. Possivelmente, o motivo de comentar que “não combina” deve-se ao fato de, no ge-ral, casais serem formados por homem e mu-lher, de estatura mais os menos similar. Os outros sujeitos não responderam o questiona-mento, mas concordaram (C e D) com a res-posta de B. A divertia-se, imitando algumas falas e rindo.

É interessante, também, destacar a percepção das crianças sobre aquilo que não foi dito, como dados provenientes do cenário, que o olhar permite compreender. Aqui cabe salientar a importância da visualidade; não é preciso falar, basta mostrar; a imagem tem significados próprios, independente do texto que ela acompanha (Camargo, 2003). O autor faz referência à imagem num livro, mas cabe-ria muito bem também para a imagem no fil-me:

B: O Shrek olha assim, porque ele tá apaixo-nado. D: É sim, ele faz essa cara porque gosta da princesa. Ele acha que não pode casar com ela porque ele é ogro, mas pode sim. Porque não importa, se é branco ou preto, pode ficar junto, também se é separado; ela ama ele.

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Cabe salientar que os pais dessa crian-

ça são separados, o que, mais uma vez, permi-te-nos perceber que a leitura é feita a partir dos elementos do contexto do sujeito. B: Ela pode, mas eu nunca li uma história que uma princesa casou com um lenhador, um trabalhador, um ogro. Se ela virar ogra, ela pode.

Nesse comentário, fica claro, mais uma vez, que ela percebeu a subversão, mas como não é algo com que se depare todos os dias, vê com estranhamento. Vale chamar a atenção, ainda, para o seu conceito de leitura, ou seja, ler vai além das palavras; as imagens também são lidas. D: Ah, mas o que adianta se casar com uma pessoa bonita, se ela vai trair. B: É, mas é outra espécie: ogro com ogro, gente com gente. Pato também não casa com peixe só porque nada. Ah, e o Lorde é mais ou menos bonito. Bonito porque é príncipe; feio porque é do mal.

Aí, deparamo-nos com certo determi-nismo, ou seja, as pessoas, por exemplo, são feias ou bonitas de acordo com a sua função social e o comportamento que têm na socie-dade, mas, por outro lado, a beleza não é vista como algo fútil, uma vez que a pessoa tam-bém é valorizada pela sua subjetividade.

As crianças percebem não apenas o que é dito, mas o que é mostrado visualmente no filme, de modo que o estado emocional das personagens é foco de observação e de co-mentário:

A: Olha, a Fiona tá triste. D: É, é porque ela ama o Shrek. B: Ela não pode casar com o Lorde, ela não gosta dele. Meu pai casou com a minha mãe porque gosta dela. C: Olha, o dragão não tá brabo porque é o amor do burro. B: Ah, mas não pode, é outra espécie. Ah, mas é só um filme, né?!? D: É, daí pode.

Essa constatação de B faz lembrar Iser

(1996), para quem o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da realidade, que, através da seleção, são retirados tanto do contexto sociocultural quanto da literatura prévia ao texto. Assim, retorna ao texto fic-cional uma realidade de todo reconhecível, posta, entretanto, sob o signo do fingimento. Com isso, se revela uma conseqüência impor-tante do desnudamento da ficção; pelo reco-nhecimento do fingir, todo o mundo organi-zado no texto literário transforma-se em um como se. O como se significa que o mundo representado não é propriamente mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, deve ser representado como se fosse. Nesse senti-do, como se pode ser denominado de imaginá-rio porque os atos de fingir se relacionam com o imaginário. O mundo relacionado no texto não se refere a si mesmo e, por seu caráter remissivo, representa algo diverso de si pró-prio; o mundo concebido é apenas um mundo possível, de um lado se diferenciando daque-les mundos de cujo material foi feito e, de ou-tro, oferece uma marcação para uma realidade a ser imaginada. Lembrando Lajolo e Zilber-man (1996), que fazem referência aos tipos de leitor, podemos perceber aí um espectador capaz de estabelecer a necessária distância entre o visto e o vivido.

Ao final do filme, o livro aberto no i-nício fecha-se e o narrador conclui: “E vive-ram felizes para sempre”, retomando o final dos contos de fadas. Nesse momento, D co-menta: “A história começa e termina com o livro. O livro se fechou, porque no início a-briu. Ao invés de ler, a gente viu o filme”.

Então, foi perguntado às crianças se haviam gostado desse final e, pelas respostas, é possível perceber que B e D conseguiram estabelecer relação entre o desfecho do filme e o seu enredo, essas crianças inseriram o tex-to na moldura do livro; enquanto A e C ape-garam-se apenas às cenas finais, desconecta-das da abertura e do fechamento do filme; ati-veram-se apenas à história contada, não per-cebendo o modo como se dá a conhecer. D: Sim, porque o bem venceu o mal.

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B: É, o mal tem que perder, e o Shrek amava a Fiona e a Fiona amava o Shrek, então ela não podia casar com outro só porque era rei. A: Ah, eu gostei porque o burro fala, é legal. C: Eu gostei, porque a música é legal.

O julgamento que possibilita o gostar

ou não de um objeto artístico nessa etapa da vida ainda está ligado a aspectos isolados co-mo um detalhe, a atuação de um personagem, a um fragmento da ação.

4. Tecendo algumas considerações

Shrek coloca os heróis numa posição

de autonomia em relação a uma instância su-perior e dominadora, por isso, poderíamos considerá-lo como um exemplo de filme e-mancipatório. Além disso, subverte padrões de integração social tradicionalmente consa-gra-dos, uma vez que não é preciso, por e-xemplo, ser belo para ser rei ou rainha ou ser feliz; Fiona ama Shrek como ele realmente é e vice-versa. É importante destacar que essa desesteriotipização, como averiguado nos comentários dos sujeitos dessa pesquisa, é perceptível pelas crianças, o que lhes permite tomar contato com padrões diferentes daque-les que a sociedade lhes impõe a cada dia, es-pecialmente por intermédio da mídia, e ques-tioná-los, não simplesmente e passivamente aceitá-los.

O filme permite discutir os valores emergentes na sociedade, principalmente no que diz respeito às relações de dependência e sujeição que se estabelecem entre os indiví-duos, bem como do quanto somos “produto” do meio em que estamos inseridos. Nesse sen-tido, podemos ler a sociedade e os seus valo-res sendo questionados; o rei, por exemplo, não era aclamado pelo povo, mas as placas indicavam a reação que as pessoas deveriam ter diante do que estava sendo dito ou aconte-cendo, deixando a falsa impressão de o pode-roso estar agradando. A própria reação de Fi-ona ao ser resgatada - esperava um compor-tamento-padrão, digno de um rei - também remete-nos à sociedade burguesa e seus valo-res, cabendo aos cidadãos, burgueses ou não, terem esse determinado comportamento como

pré-requisito para serem aceitos ou não nessa sociedade. A própria instituição casamento nessa classe social é questionada, quando o burro diz que “casamento de gente famosa não dura” – o casamento de Fiona, a princípio era arranjado com o Lorde Farquaad. Todos esses elementos possibilitam à criança um olhar peculiar acerca dos valores da sociedade na qual estão inseridas.

Cabe destacar, ainda, que a questão central que move esse estudo é como a crian-ça lê o filme. A partir desse foco, expôs-se um grupo de 4 sujeitos ao filme Shrek e, frente à situação, podemos afirmar que: o fato de o pesquisador conhecer as crianças gerou um clima de descontração, permitindo aos expec-tadores falar sobre o visto e o vivido; parte dos sujeitos reconhece a presença do livro na abertura e fechamento do filme, associando-o ao ato de ouvir histórias; a significação do texto dá-se a partir das vivências dos infantes, já revelando posturas preconceituosas; e, por último, na discussão do visto, as posições de cada sujeito vão sendo negociadas.

Na atualidade, é possível depararmo-nos com uma oferta cada vez maior de produ-ção cultural direcionada ao público infantil, acompanhada, cada vez mais, de inovações tecnológicas. Os filmes, nesse sentido, podem ser uma ferramenta útil para o (auto) conhe-cimento das crianças e sua inserção no mun-do. É importante, porém, cada vez mais, ori-entar as crianças para ver filmes que ampliem esse olhar, esse conhecer. Para ler, seja o li-vro, seja o filme – ambos objetos artísticos - o interlocutor deveria pôr em ação seu imaginá-rio, participando na figuração do universo proposto como um co-autor, identificando-se com os seres fictícios.

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Lineamientos para la configuración de un programa de intervención en orientación educativa

Limits for the configuration of a interferation ptogram in orientation

Denyz Luz Molina Contreras

Universidad Nacional Experimental de los Llanos Occidentales Ezequiel Zamora, Caracas, Vene-

zuela Resumo Nesta investigação reposicionamos linhas de intervenções a respeito dos presupostos teóricos, meto-dológicos e práticos usados para a configuração de um programa de intervenção educacional nos cen-tros escolares, salas de aula e comunidade. Da mesma forma, são definidas as linhas teóricas que ori-entam a intervenção através de uma determinada perspectiva do conhecimento, onde demonstramos que existe uma teoria totalmente desenvolvida, baseada em uma ampla gama de evidências empíricas e que é factível de ser aplicada a um programa de intervenção orientado. Assim, tomamos como base construções que direcionam as caracteristicas do o que, o por que e o como da orientação no momen-to que a eleva à prática, através de programas dirigidos aos centros escolares e a sala de aula que te-nham a intenção de prevenir, desenvolver, intervir e ajudar a diversidade a partir da relevância social. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 40-50. Palavras-chaves: limites; intervenção programa; orientação; atenção para a diversi-dade. Resumen En la investigación nos hemos reposicionado líneas de intervención entorno a los presupuestos teóri-cos, metodológicos y prácticos para la configuración de un programa de intervención educativa a nivel de los centros escolares, aula y contexto comunitario. Así mismo se definen las líneas teóricas que orientan la intervención hacía una determinada perspectiva del conocimiento, donde demostra-mos que existe una teoría completamente desarrollada, con abundante evidencia empírica y factible de ser aplicada a un programa de intervención en orientación. En consecuencia nos apropiamos de constructos que direccionen el qué, él por qué y el cómo de la orientación al momento de elevarla a la praxis mediante programas dirigidos a los centros escolares y al aula que tengan la intención de prevenir, desarrollar, intervenir y atender la diversidad desde la pertinencia social. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 40-50. Palabras claves: lineamientos; intervención programa; orientación; atención a la diversidad.

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 15/04/2007 | Revisado em 07/08/2007 | Aceito em 18/08/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- D.L.M. Contreras es Doctora en Diseño Curricular (Universidad de Valladolid). Actúa como Profesora Asocia-do de la Universidad Nacional Experimental de los Llanos Occidentales Ezequiel Zamora, con estudios en Diseño Curricular, especialista en Orientación Educativa y con Postgrado en Orientación y Docencia Universitaria. Barinas-Venezuela, Profesora Investigadora Nivel I PPI, Ministerio de Ciencia y Tecnología. Caracas Venezuela. E-mails para correspondência: [email protected], [email protected] y [email protected].

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Abstract In this investigation we repositionate intervention ways about theoretical, methodological and practi-cal assumptions used for the configuration of an educational intervention program at the school cen-ters, classroom and community. Similarly, the theoretical pathways are defined that guide interven-tion through one perspective of knowledge, which demonstrated that there is a fully developed theory, based on a broad range of empirical evidence and that it is feasible to be applied to a program of ori-ented intervention. Thus, we take as basic constructions that directed the characteristics of what, why and how of guidance at the time that the amounts to the practice, through programs directed to schools and the classroom that they intend to prevent, develop, operate the diversity and help from the social relevance. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 40-50. Key Words: limits; intervention programs; orientation; attention to the diversity.

1. Líneas teóricas que orientan la investi-gación 1.1. Conceptualización de programa y de orientación educativa

La configuración de un programa de orientación educativa dirigido a los alumnos, agentes educativos y comunidad en general, nos lleva a manejar una diversidad de defini-ciones sobre programas de orientación, que se han construido a lo largo de las últimas déca-das, y van desde concebirlos como instru-mentos para la asistencia de la persona, hasta, asumirlos como medios que recogen el con-cepto de prevención, desarrollo, atención a la diversidad e intervención social.

En efecto la investigación que abor-damos exige reposicionarse de conceptos y teorías que definen la orientación educativa, programa de intervención, y eleventos que constituyen el hilo conductor del estudio para la configuración de lineamientos finales como principal aporte de la investigación.

El concepto de programa que mane-jamos parte de la orientación como proceso en donde la escuela, familia y sociedad, han de asumir un papel activo, en la definición del conjunto de actividades integradas en los ejes de: enseñar a pensar, enseñar a ser persona, enseñar a convivir, enseñar a comportarse y enseñar a decidirse, facilitan el proceso de intervención en orientación.

Si consideramos a la orientación para la prevención, desarrollo y atención a la di-versidad, que implica planificación y sistema-tización de acciones para la toma de decisio-

nes e impulsa el desarrollo de habilidades per-sonales y sociales, necesariamente nos incli-namos por un modelo de intervención grupal por programas como la forma más pertinente de ofrecer una orientación ecológica en los centros escolares. En un acercamiento al concepto de pro-grama, encontramos que no existe una defini-ción única, al contrario, contamos con una pluralidad de conceptos con elementos comu-nes.

En sentido general, un programa es un plan o sistema bajo el cual una acción está dirigida hacia la consecución de una meta (Aubrey, 1982: 53).

Desde un enfoque similar, Riart (1996: 50), entiende que programa “es una planifi-cación y ejecución en determinados períodos de unos contenidos, encaminados a lograr unos objetivos establecidos a partir de las ne-cesidades de las personas, grupos o institu-ciones inmersas en un contexto espacio-temporal determinado”.

En el ámbito de la enseñanza, Morrill (1990), expresa que el programa “es una ex-periencia de aprendizaje planificada, estructu-rada, y diseñada para satisfacer las necesida-des de los estudiantes”.

Con una visión sistémica, Repetto, et al.(1994), entienden por programa el diseño teóricamente fundamentado que pretende lo-grar unos determinados objetivos dentro del contexto de una institución educativa.

Desde un enfoque más centrado en la orientación, para Rodríguez y colaboradores (1999):

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“Un programa es un instrumento rector de principios que contiene en su estruc-tura elementos significativos que orien-tan la concepción del hombre que que-remos formar. Desde el punto de vista de la orientación, los programas son ac-ciones sistemáticas, cuidadosamente planificadas orientadas a unas metas, como respuesta a las necesidades educa-tivas de los alumnos padres y /o repre-sentantes, docentes, insertos en la reali-dad de un centro.”

En esta misma línea, para Bisquerra

(1998), un programa es una acción colectiva de un equipo orientador para el diseño teóri-camente fundamentado, aplicación y eva-luación de un proyecto, que pretende lograr unos determinados objetivos dentro del con-texto de una institución educativa, de la fami-lia o de la comunidad, donde previamente se han identificado y priorizado las necesidades de intervención.

Siguiendo un enfoque integral, Velaz de Medrano (1998: 256) ha tratado de integrar en una definición los elementos comunes que caracterizan los programas de orientación educativa, considerando que un programa de orientación es un sistema que fundamenta, sis-tematiza y ordena la intervención psicope-dagógica comprensiva orientada a priorizar y satisfacer las necesidades de desarrollo o de asesoramiento detectadas en los distintos des-tinatarios de dicha intervención.

Las definiciones anteriores suminis-tran elementos significativos a partir de los cuales nos hemos reposicionado para cons-truir una definición de programa dirigido a la prevención, desarrollo y asistencia del alumno en edad escolar. Desde esta perspectiva, el programa se concibe como un instrumento teórico-operativo que orienta, guía y contex-tualiza el acto de orientar, en función de la concepción del hombre que queremos formar, de orientación, de enseñanza y el concepto de currículo, además de las necesidades de los sujetos a quienes va dirigido el programa y los recursos factibles para su operacionaliza-ción.

Desde la perspectiva de la integralidad la orientación educativa en la escuela básica se considera un proceso continuo que co-mienza en el nivel inicial y se ofrece durante toda la vida. Se concibe como parte integrante del proceso educativo y por tanto es respon-sabilidad de todos los agentes educativos; pa-dres, docentes, directores, comunidad y los propios alumnos.

De allí, que en la investigación asu-mimos, la orientación educativa como un pro-ceso que implica promover la integración, so-cialización y adaptación del alumno, así como ayudarlo y guiarlo hacia el conocimiento de sí mismo. La actuación orientadora en centros escolares no puede concentrarse al margen de la actividad educativa ordinaria. Al contrario, ha de incorporarse a ella, atendiendo el carác-ter personalizado de la educación y caracteri-zándose por ser global, integral y realista en función de las necesidades de sus destinata-rios.

1.2. Elementos orientadores para la confi-guración de una programa de orientación

Las líneas teóricas que se manejan en

el apartado anterior nos llevo a la realización de las siguientes precisiones con respecto a los elementos orientadores y guías para efec-tos de construcción de un programa de orien-tación:

A quién va dirigido el programa? es fundamental precisar quienes son los benefi-ciarios del programa, ya que todos los alum-nos tienen derecho a la orientación. Si se trata de un programa de prevención primaria es conveniente integrar el mayor número de alumnos. También, debemos tener presente a los profesores y agentes educativos, como su-jetos claves del proceso orientador.

¿Él para qué? es otro de los elemen-tos del programa que implica delimitar los objetivos: estos nos avanzan lo que se preten-de conseguir en un ámbito determinado, que puede responder a una o varias áreas del desa-rrollo: personal-social, escolar o vocacional. Los objetivos generales de carácter más am-plio, se pueden pormenorizar a nivel de obje-tivos específicos.

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¿El qué? representa los contenidos, que constituyen los núcleos temáticos del programa vinculados a cada objetivo específi-co. Si lo que planteamos en los objetivos es la formación hábitos de trabajo cooperativo, la autoestima, la promoción del aprendizaje sig-nificativo, los contenidos deben representar estos tópicos, los cuales aportan un conjunto de elementos que facilitan el logro de los ob-jetivos que se persiguen.

¿El cómo? determina las estrategias a utilizar para el logro de los objetivos. Para la selección de las actividades debemos tener en cuenta los beneficiarios, los objetivos y con-tenidos. Las estrategias deben ser flexibles, dinámicas y responder a las necesidades, ex-pectativas e intereses de quienes intervienen en el programa.

¿El con qué? tiene que ver con los re-cursos humanos, institucionales y financieros que se disponen para la implementación del programa. Este elemento hace posible su eje-cución y determina el grado de compromiso de los agentes educativos.

¿El cuándo?, obliga necesariamente al establecimiento de la secuencia de ejecución del programa e incluye su temporalización ó cronograma.

Y finalmente ¿El dónde?, invita nece-sariamente a delimitar geográficamente y es-pacialmente el ámbito donde se llevará a cabo la intervención, ya sea el centro escolar, la etapa educativa, el grado o los grados o la sección.

2. Objetivos de la investigación • Analizar lineamientos a considerar para

formular un programa de intervención • Determinar el concepto de orientación

educativa que manejan los alumnos y agentes educativos

• Definir lineamientos para la configura-ción de un programa de intervención en orientación educativa

3. Metodología

La metodología que se ha empleado

en esta investigación se ubica según los obje-

tivos en el paradigma cualitativo, el cual otorga significado a la valoración de los com-portamientos, experiencias y saberes de los actores que intervienen en la investigación. La investigación cualitativa según, Denzin y colaboradores (1994), es “un proce-so que integra actividades genéricas, interco-nectadas entre sí, que toman diferentes nom-bres incluyendo teorías, métodos, análisis, ontología, epistemología y metodología”. Se destaca desde la perspectiva cualitativa la primacía de que su interés radica en la des-cripción de los hechos observados para inter-pretarlos y comprenderlos en el contexto glo-bal en el que se producen con el fin de expli-car los fenómenos.

Dado su carácter de flexibilidad y creatividad, establecimos una relación dialó-gica con los alumnos, docentes y agentes edu-cativos captando el aspecto axiológico, los valores, que inciden en la investigación y forman parte de la realidad, así como del con-texto social y cultural. En consecuencia me-diante la investigación cualitativa, no busca-mos la generalización sino, la caracterización a profundidad de la realidad de la orientación en los centros escolares y en las aulas, así como, buscamos la comprensión de los casos. Dentro de este marco realizamos una descripción detallada de las observaciones mediante el registro cuidadoso de los casos constituidos en investigación, subrayando la importancia de la categorización que nos permitió ir colocando la realidad en esas cate-gorías, con el fin de conseguir una coherencia lógica en el suceder de los hechos o de los comportamientos que están necesariamente contextualizados y adquieren su pleno signifi-cado. En consecuencia, para nuestro estudio lo importante radica en captar y registrar las experiencias, vivencias, actitudes, práctica y significado que le atribuye el docente, los alumnos y padres a los programas de orienta-ción en la Escuela Básica.

Retomando los planteamientos que sustentan la investigación que abordamos, consideramos en primer lugar la etapa pre-paratoria: esta constituye el inicio de la in-vestigación, la cual implica reflexión teórico-

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práctica estando presente la formación del investigador, sus conocimientos, experiencias, vivencias sobre los fenómenos educativos, específicamente sobre los lineamientos para configurar un programa de intervención en orientación educativa.

Una segunda etapa que corresponde a la fase reflexiva: la misma implica que el investigador partiendo del marco referencial de valores, conocimientos, actitudes, expe-riencias y formación cultural, intenta clarifi-car y determinar el tópico de interés y descri-bir las razones por las cuales elegimos el tema de indagación. Una vez que identificamos el tópico de interés, buscamos toda la informa-ción posible sobre el mismo, estableciendo el estado de la cuestión desde una perspectiva amplia, sin llegar a detalles extremos dentro de este orden de ideas la investigación se apoya en la metodología cualitativa amplia-mente discutida con apoyo de herramientas que brinda la investigación cuantitativa para fundamentar la caracterización de la orienta-ción en los centros escolares y el aula. Y son objetos y sujetos de orientación.

3.2. Sujetos significativos Utilizando el criterio de selección in-tencional, la muestra estuvo integrada por veinte docentes (20) docentes, veinte (20) padres y/o representantes, cuarenta (40) alumnos de las Escuela Básicas. Para la selección de la muestra en las investigaciones cualitativas se sugiere según Pérez (1990), utilizar una muestra intencional de acuerdo a unos determinados criterios. No se busca en esta investigación la generaliza-ción de los resultados sino más bien lograr un mayor conocimiento del grupo concreto en el que tenemos que llevar acabo una actividad determinada. En este caso conviene describir con claridad las características de la muestra con la que vamos a trabajar.

3.3. Técnicas: observación y entrevista

La observación la realizamos en tres

escenarios básicos: la escuela, el aula de cla-se, y la comunidad. Es importante destacar

que cuando empezamos a realizar las obser-vaciones sistemáticas contaba con experiencia previa producto de doce años como docente de educación inicial y básica, y quince años habitando en el municipio Barinas, y tres años asistiendo a las escuelas como profesora del curso “Orientación Educativa”. Este cons-tituye un factor fundamental para la com-prensión y análisis de los significados y con-ceptos que manejan los sujetos de estudio en relación con la orientación educativa.

Como principal técnica de recolección de información se utilizó la observación participativa: La cual permitió a los docen-tes, alumnos y agentes educativos, involucrar-se en su construcción y a su vez facilitó la co-construcción a partir de los encuentros en el contexto por medio de la reflexión de las rela-ciones que se presentan entre la práctica pe-dagógica y la elaboración de significados de la orientación educativa, participando del pro-ceso de construcción descubriendo el sentido, la dinámica y los procesos de los aconteci-mientos que viven los protagonistas en el me-dio en que se desarrolla la orientación en los centros escolares y el aula.

Desde esta perspectiva, aprendimos aspectos de la cultura, las relaciones sociales, la dinámica educativa, el quehacer en el aula, las relaciones entre los centros escolares y la comunidad. Para describir la situación anali-zada se dedica a descubrir el sentido, la diná-mica de los procesos, de los actos, de los acontecimientos y de las afirmaciones textua-les de los protagonistas, estas relaciones des-criptivas aportaron información sobre las si-tuaciones en que se mueven y las percepcio-nes que tienen los protagonistas sobre la si-tuación en que viven, también tiene en cuenta las expectativas, experiencias, ideas, emocio-nes y sentimientos.

Para la recolección de la información se ha empleado con acentuado énfasis la ob-servación la cual constituyó un método dirigi-do a obtener datos pertinentes y significativos sobre el sentido de la orientación educativa en los centros escolares y el aula. La observación a juicio de Méndez (1988), permite que el in-vestigador tenga en cuenta las experiencias previas, juicios, percepciones y las condicio-

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nes sociales, culturales, educativas y econó-micas en que se desenvuelve el objeto de ob-servación.

a) Para llevar acabo el proceso de observa-

ción en nuestra investigación considera-mos los siguientes criterios sugeridos por Rodríguez et al -ubicación del contexto de observación en un ambiente natural, social, histórico y/o cultural en las que se sitúa el proceso de observación, precisión del qué y el cuándo de la misma.

b) De igual manera establecimos las catego-rías de análisis definidas como sistemas cerrados en las que la observación se rea-liza desde categorías (término que agrupa a una clase de fenómenos según una regla de correspondencia única), prefijadas por el observador. La identificación del pro-blema se hace desde una teoría o modelo explicativo del fenómeno, actividad o conducta que va a ser observado.

c) Las categorías deben ser homogéneas. En la categorización se considera la lista de control como una variante del sistema de signos, que nos permite determinar si cier-tas características están presentes o no en un sujeto, situación, fenómeno o material. La lis-ta de control responde a un modelo teórico en la que los objetivos del estudio son la guía y orientación de lo que vamos a observar.

La observación participante me permi-tió estar en contacto, vivenciar y participar directamente en el aula de clase e interactuar con los niños y docentes. En este escenario fuimos tomando notas, llevando registros tan-to de la interacción docente-alumno, como de la metodología de la enseñanza y actividades de rutina. Estos apuntes los revisamos perió-dicamente para integrarlos a otras observacio-nes y reorientar la investigación.

En síntesis es importante destacar que las experiencias más valiosas y típicas fueron recogidas literalmente, para citarlas después entre comillas como testimonio de las reali-dades observadas. La utilizamos en el estudio como una técnica que nos facilito el conoci-miento de la práctica de la orientación, las necesidades del docente, como de los alumnos

y agentes educativos, en un contexto sociocul-tural real y natural. 3.4. Instrumentos para la relación de la in-formación El cuestionario: su sentido en la investiga-ción De acuerdo con Kerlinger (1987), el cuestionario es la técnica de investigación más utilizada con la finalidad de obtener, de manera sistemática y ordenada, información sobre las variables que intervienen en el estu-dio. Para efectos del diseño del cuestionario aplicado consideramos los siguientes aspectos formales: a) Se ubica el título en forma abreviada al

tema sobre el que se busca información; b) Se sitúa el cuestionario dentro del contex-

to institucional; c) Se aclara el marco general del estudio que

se aborda; d) Se exponen los motivos por los que se so-

licita información, se presentan las ins-trucciones para responder y se agradece la receptividad y el apoyo al responder el cuestionario.

Informes, documentos y producciones

Otras fuentes de información valiosas

la constituyeron los informes y papeles de trabajo elaborados por los estudiantes de las prácticas pedagógicas III y IV Rol de Orien-tador Educativo como las producciones gene-radas de las discusiones en el aula, mesas de trabajo, representaciones, informes y repre-sentaciones de la realidad sobre la problemá-tica de la orientación educativa en las escuelas básicas. También contamos con algunas pro-ducciones significativas aportadas por profe-sores de la universidad como resultado de la aplicación del programa de orientación pro-puesto que ha sido utilizado como guía para la operacionalización de los contenidos del sub-proyecto orientación educativa.

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Diario de campo Se refiere a todas las informaciones, datos, referencias, expresiones, opiniones, hechos, croquis, de interés, tanto para la fase de dia-gnóstico como para la experimentación y eva-luación del programa de orientación educati-va. El diario lo utilizamos como un instru-mento reflexivo de análisis. Aquí plasmamos no sólo lo que recordamos casi siempre apo-yado por las notas de campo, sino sobre todas las reflexiones que se han visto y oído. El diario de campo es un instrumento diri-gido a recopilar datos sobre las observaciones realizadas en el aula durante la práctica peda-gógica y la orientación educativa, a fin de re-flexionar acerca de la dinámica y de los con-ceptos y acciones de orientación que prevale-cen dentro y fuera del aula. Este instrumento además facilitó el registro de experiencias sis-tematizando, la fecha, hora, lugar, recursos, actividades, objetivos, protagonistas, acuer-dos, descripción, interpretación y observación participante. El mismo, recoge un conjunto de aspectos significativos para el análisis y re-flexión del sentido y concepto que se le atri-buye a la orientación en los centros escolares y el aula, donde intervienen activamente los agentes educativos.

Relatos de vida: es el relato de la expe-riencia vital de los protagonistas, o documen-to autobiográfico suscitado por un investiga-dor que apela a los recuerdos del protagonista siendo en el ámbito global y no analítico en un intento de hacer una lectura de la sociedad. Permite conocer y comprender los significa-dos que han construido cada protagonista co-mo parte de un proceso social y protagonista de la investigación, recoge información sobre la vivencia social y las prácticas en la memo-ria colectiva de la cotidianidad, con el fin de extraer de ellas una significación. 3.5. Recursos utilizados: cuadernos, graba-dora, lápices Participaron activamente en el proceso investigativo los docentes, alumnos, padres y/o representantes así como el personal direc-tivo de los centros educativos, igualmente uti-

lizamos registros, formatos de observación, fotografías, material instruccional, aulas, ins-talaciones de los centros educativos, comuni-dad y contexto comunal. En efecto, que el registro de comporta-mientos y conductas como actitudes, signifi-cado, expresiones, sentimientos y prácticas corresponden a actividades ordinarias y co-munes de la dinámica humana. Esta riqueza y diversidad de observaciones tomadas de la variedad de registros que utilizamos, nos permitió realizar un proceso de triangulación de los datos e informaciones, pues no pode-mos dejar pasar por alto que la técnica de la triangulación implica reunir una variedad de datos y métodos inherentes al problema u ob-jeto de estudio. La aplicación de la estrategia de trian-gulación permite la depuración de la informa-ción obtenida a través de los instrumentos y técnicas aplicadas las cuales han sido compa-radas a fin de descubrir los puntos de conver-gencia en relación con las hipótesis y objeti-vos planteados. Para la clasificación de los datos, hemos utilizado el sistema de categorización como estrategia de reducción de la información. Los temas cuyos elementos de significado son comunes, han sido agrupados en unidades. Los conceptos manejados surgieron durante el curso de la investigación, tomando en consi-deración los datos empíricos que facilitaron la generación de las categorías de análisis que las integramos a la base teórica metodológica que desarrollamos con mayor abstracción y generalización en el problema planteado. En el estudio, se hace uso de la estrate-gia de “triangulación de fuentes de datos”, que en opinión de Denzin y colaboradores (1994), se trata, más bien, sea cual sea la téc-nica utilizada, de ampliar el tipo de datos de que dispongamos para así fundamentar más adecuadamente nuestras teorías. En este sen-tido, la triangulación se define como un plan de acción que puede llevar al investigador más allá de los sesgos personales. Para apoyar las entrevistas y cuestiona-rios aplicados se utilizaron los registros bási-cos como conjunto de notas y transcripciones que constituyen el registro de referencia para

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mantener la originalidad y veracidad de la in-formación apoyado en registros temáticos que corresponde a los apuntes, descripciones, re-flexiones y ensayos que como investigadora fui llevando durante el transcurso de la inves-tigación. De igual manera, utilizamos los re-gistros logísticos que tienen que ver con el empleo de cuadernos o diarios de campo, donde recolectamos notas, sobre dificultades encontradas, necesidades de los alumnos, hechos, interpretaciones y reflexiones perso-nales de carácter general del investigador, así como fue necesario en este proceso de trian-

gulación los registros complementarios que incluyen consultas técnicas especialistas, citas y referencias bibliográficas. 3.6. Correlación entre objetivos, preguntas de indagación y resultados Seguidamente se presenta en el Cuadro 1, la relación entre objetivos, preguntas de indagación y los resultados como elementos implícativos del estudio que nos ha llevado a configurar las conclusiones y recomendacio-nes.

Objetivos de la investigación

Preguntas de in-dagación

Sujetos Resultados derivados de la apli-cación de técnicas e instrumentos

de recolección de información Analizar los linea-mientos a conside-rar para formular un programa de inter-vención

¿Qué elementos a considerar para di-señar un programa de orientación

Directores Docentes OrientadoresPsicólogos

Estudios de necesidades de los alumnos(intereses, motivaciones, ne-cesidades, habilidades, com-petencias)

Necesidades de la familia Necesidades de la comunidad Necesidades de la escuela

Determinar el con-cepto de orientación educativa que ma-nejan los alumnos y agentes educativos

Qué concepto de orientación mane-jan los alumnos y agentes educativos

Alumnos Padres Docentes

La orientación como proceso asistencial

La orientación como proceso re-medial

La orientación como proceso de ayuda

La orientación como proceso in-te-grado al acto de enseñar ya prender

Analizar el concep-to de pro-grama que manejan los alum-nos y agentes edu-cativos

Qué concepto de pro-grama manejan los alumnos y agen-tes educativos

Alumnos Padres Docentes

Instrumento de enseñanza Medio de formación Instrumento de asistencia Conjunto de actividades

Definir lineamien-tos para el diseño de un programa de in-tervención en orien-tación

Qué lineamientos pueden ser conside-rados para el diseño de un programa de intervención en orientación educa-tiva

Alumnos Padres Docentes

Necesidades individuales Necesidades de familiares Necesidades del contexto Jerarquización de las necesidades Fundamentación de las necesi-dades

Formulación de un plan de ac-ción

Intervención Evaluación Retroalimentación

Cuadro 1 - Correlación entre objetivos, preguntas de indagación y resultados (2007).

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4. Discusión de los resultados

De los instrumentos aplicados a los

docentes se generaron los siguientes resulta-dos (Cuadro 2):

Categorías Frecuencia Porcentaje Necesidades de alumnos y agentes educativos 5 25 Necesidades de la comunidad y de la familia 5 25 Expectativas y motivaciones de los alumnos 10 50 Total 20 docentes 100

Cuadro 2 – Resultados obtenidos de las técnicas e instrumentos aplicados a los docentes. El 25% de los docentes expresan en

sus opiniones y discursos, recogidos mediante registros permanentes que un programa de intervención ha de responder fundamental-mente a las necesidades de los alumnos y de los agentes educativos, un 25% considera que a las necesidades de la comunidad y familia y un 50 % expresa que el programa debe tener como principal sustentación las expectativas y motivaciones de los alumnos. Realizando una contrastación entre lo referido por los docen-

tes en cuanto a elementos para configurar un programa de intervención en orientación, con lo planteado en la discusión teórica por auto-res tales como Bisquerra (2002), y más re-cientemente por Boronat (2007) quién expre-sa: un programa debe derivarse del estudio de necesidades de los beneficiarios y de una fun-damentación de las acciones de intervención. De los alumnos hemos obtenido los siguientes datos significativos (Cuadro 3):

Categorías Frecuencia Porcentaje Explorar las necesidades personales, sociales, escolares y vocacio-nales

20 50

Considerar nuestras diferencias individuales 10 25 Expectativas y motivaciones de los alumnos 10 25 Total 40 alumnos 100 Cuadro 3 – Resultados obtenidos de los instrumentos aplicados a los alumnos Un 50% de los alumnos consideran que se deben explorar las necesidades personales, sociales, escolares y vocacionales, un 25 % asumir las diferencias individuales y un 25% las expectativas y motivaciones de los alum-nos. 5. Conclusión

Producto del análisis de los resultados con respecto a cada uno de los objetivos se configuraron los siguientes resultados: En cuanto al objetivo 1, dirigido a de-terminar el concepto de orientación educativa que manejan los alumnos y agentes educati-vos, se precisa que existen tendencias antagó-nicas entre los que manejan la orientación

como proceso dirigido a la resolución y aten-ción a la persona con problemas y los que consideran la orientación como un proceso integrado al acto de enseñar y aprender. Ten-dencias que se ven ilustradas en los siguientes discursos tanto de padres como de alumnos y docentes: “ la maestra de mi hijo, me expresa que el niño tiene bajo rendimiento en mate-mática, por lo que me sugiere un especialista en psicopedagogía o un orientador para que lo ayude en su problema?” de allí se deriva que el problema del niño debe ser tratado fue-ra del aula o en condiciones especiales, deno-tando un enfoque centrado en el problema, más no en la prevención y el desarrollo duran-te el acto formativo.

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Con respecto al objetivo 2: Referido al concepto de programa que manejan los alum-nos y agentes educativos, se determinó que no existe un concepto claro de programa a nivel de padres y alumnos y en cuanto a los do-centes su visión esta más dirigida considerar un programa como medio de enseñanza, más no, como medio para promover experiencias de intervención en orientación educativa en los centros escolares y el aula. Finalmente en el objetivo 3 se consideran una serie de elementos que a juicio de docen-tes, alumnos y agentes educativos deben ser considerados para el diseño de un programa de orientación: necesidades individuales, ne-cesidades familiares, necesidades del contex-to, jerarquización de las necesidades, funda-mentación teórica de las necesidades, formu-lación de un plan de intervención, evalua-ción, retroalimentación permanente. 6. Recomendaciones De las conclusiones señaladas anterior-mente y del fundamento epistemológico en que se sustenta la investigación se derivan las siguientes recomendaciones:

Definir un concepto de orientación que responda a los principios de prevención, desarrollo, atención a la diversidad e inter-vención social. Conceptualizar en el marco de la definición de orientación educativa el programa como instrumento para el desarrollo de estrategias de prevención, desarrollo, atención a la diver-sidad e intervención social.

Establecer a quien va dirigido el pro-grama(los beneficiarios, necesidades de los beneficiarios, características demográficas, sociales, escolares, personales), así como,¿Él para qué? implica delimitar los objetivos, ¿El qué? representa los contenidos, ¿El cómo? determina las estrategias a utilizar para el lo-gro de los objetivos. ¿El con qué? tiene que ver con los recursos humanos, institucionales y financieros que se disponen para la imple-mentación del programa. Este elemento hace posible su ejecución y determina el grado de compromiso de los agentes educativos. ¿El cuándo?, obliga necesariamente al estableci-

miento de la secuencia de ejecución del pro-grama e incluye su temporalización ó crono-grama, ¿el dónde?, invita necesariamente a delimitar geográficamente y espacialmente el ámbito donde se llevará a cabo la interven-ción, qué impacto tiene la intervención en los beneficiarios nos llevaría a establecer criterios de valoración y retroalimen-tación permanen-te de las acciones del programa, y finalmente alcanzar un proceso de reajuste permanente de acciones y estrategias que nos garantizaría la pertinencia social de la intervención. 7. Referencias bibliográficas Aubrey, R. (1982). A Hause divided: Guid-ance and Counseling. En Vélaz de Medrano C. (1998). Orientación e Intervención Psico-pedagógica. Conceptos, Modelos, programas y Evaluación. Málaga: Aljibe. pp.128. Bisquerra, R. (1998). Modelos de Orienta-ción e Intervención Psicopedagógica. Barce-lona: Praxis. Bisquerra, R. (2002). Modelos de Orienta-ción e Intervención Psicopedagógica. Barce-lona: Praxis. Boronat, J. (2007). Programas de orientación educativa. UNED. España Denzin, N. y Lincoln, Y.S. (1994). Hand-book of Qualitative Research. Cuba: G. Kerlinger, F. (1987). Enfoque Conceptual de la Investigación del Comportamiento. Méxi-co: Nueva Interamericana. Martínez, A. (1996). El Estudio de Casos pa-ra Profesionales de la Acción Social. Madrid: Mareco. Méndez, C. (1998). Metodología. Guía para Elaborar Diseños de Investigación. Editorial México: Mc Graw Hill. Morrill, H. (1990). “Program Development”. En: Vélaz de Medrano (1998). Orientación e Intervención Psicopedagógica. Conceptos, Modelos, Programas y Evaluación. Málaga: Aljibe. Pérez, S. (1994). Investigación Cualitativa. Retos e Interrogantes II. Técnicas y Análisis de Datos. Madrid: Muralla. Repetto, E. (1994). Orientación Educativa e Intervención Psicopedagógica. Madrid: UNED.

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Leitura de estudo: estratégias reconhecidas como utilizadas por alunos universitários

Study reading: strategies recognized as the most used by university students

Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin

Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil

Resumo O presente trabalho insere-se no campo das práticas de leitura de estudantes universitários e visou i-dentificar as estratégias mais freqüentes de leitura de textos de estudo entre alunos, futuros professo-res. Compuseram a amostra alunos de graduação de duas licenciaturas e de um mestrado em educa-ção. A Escala de Estratégias de Leitura, traduzida e adaptada por Kopke Filho foi o instrumento utili-zado para a coleta de informações. De modo geral, os resultados apontam para o uso de estratégias similares entre os participantes. A importância não só das informações acerca dos modos de ler textos de estudo, especialmente para professores quando prescrevem leituras é discutida, como também a re-lativa a metacognição sobre essas práticas para os leitores. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 51-61. Palavras-Chave: práticas de leitura; ensino superior; formação de professores. Abstract The objective of this study was investigating the reading strategies for study texts most frequently used among future teachers: two licentiates’ undergraduates and one graduate taking a master degree in education. The Reading Strategies Scale, adapted by Kopke Filho (2001), was the instrument used. Results indicate the use of similar strategies among participants. The importance of knowing the pos-sible ways of reading study texts, especially for teachers when prescribing readings is discussed, in-cluding the one relative to metacognition about those practices for the readers. © Ciências & Cog-nição 2007; Vol. 12: 51-61. Key Words: reading practices; higher education; teacher’s qualification.

1. Introdução

“Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu.”

Paulo Freire

Paulo Freire (1982) destaca, em seu

texto Considerações em torno do ato de estu-dar, escrito em 1968, que quem estuda deve se sentir desafiado pelo texto em sua totalida-

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 29/10/2007 | Revisado em 01/12/2007 | Aceito em 02/12/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- E.M.M.P. Pullin é Graduada em Pedagogia (Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e Letras de Londrina), Mestre e Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Universidade de São Paulo). Atualmente é Professora Associada (UEL) e consultora da Fundação de Ciência e Tecnologia do estado de Santa Catarina e da Fun-dação Araucária do estado do Paraná. E-mail para correspondência: [email protected].

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de e se apropriar de sua significação. Uma posição crítica, porque fundamental e indis-pensável ao ato de estudar requer, segundo este educador, que o indivíduo assuma cinco posturas essenciais: a) exercer seu papel de sujeito; b) ter uma postura curiosa, em face do mun-

do, dos textos e das relações que mantém com os outros, isto é, o estudante não de-ve perder nenhuma oportunidade e fonte para indagar e buscar;

c) sentir a necessidade de que o estudo de um tema específico exige que se coloque a par da bibliografia relativa ao objeto de sua inquietude;

d) dialogar com o autor do texto, levando em conta o condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, que nem sempre é o seu, de leitor;

e) assumir a humildade necessária daqueles que de fato estudam.

O processo de construção de senti-

do(s) de um determinado texto depende, entre outros fatores, do leitor, especificamente das condições de diálogo que ele possa vir a esta-belecer com o texto, determinadas estas, em parte por sua experiência, pelo conhecimento prévio do mundo e por sua competência lin-güística (Eco, 1985). Tais condições é que permitem ao leitor retirar “o texto da clandes-tinidade” (Cordeiro, 2004: 97), uma vez que o texto só se vivifica por uma postura dialógica de um leitor em relação ao mesmo.

Nos inserimos entre aqueles que ex-plicam a constituição de quaisquer processos psicológicos como provenientes do tipo de interações mediadas/propiciadas por outrem (Vygotsky, 1997), e entendemos, por conse-guinte, que as condições individuais para a produção e monitorização do próprio processo de leitura são tecidas pelos efeitos de tais inte-rações. Em suma, compreendemos a leitura como um processo que compartilha com os demais processos capazes de viabilizar para o indivíduo a ocorrência de comportamentos complexos ou não, isto é, compreendê-la co-mo construída socialmente, porque contin-genciada pelas condições e modalidades de

sua ocorrência e pelas práticas sociais legiti-madas em um dado momento histórico por uma cultura, e definida por tais práticas que legitimam e geram as condições e modalida-des de sua ocorrência em uma dada situação.

Por compreendermos que ler é um verbo transitivo, consideramos que o grau de responsividade do leitor diante de um texto seja estruturado por sua história de leitor e pelo próprio texto, visto serem os modos e possibilidades de relação do sujeito com qualquer artefato cultural provenientes das práticas culturais formais e informais e serem constituídos pelos efeitos diretos e indiretos das relações propiciadas por outrem com os bens culturais de seu tempo/espaço. Por serem as condições de apreensão de mundo, isto é, a responsividade do sujeito aos eventos e pro-dutos culturais, sua posição, funções dele es-peradas e cobradas socialmente, além de es-truturadas, estruturantes para cada nova expe-riência, podemos considerar a leitura como uma prática cultural indissociável das demais práticas sociais (Chartier, 1996, 2000; Cavallo e Chartier, 1998).

Em face das metodologias educacio-nais mais utilizadas no Ensino Superior, a lei-tura é um dos elementos essenciais para o e-xercício do ofício desse aluno (Perrenoud, 1995; Teixeira, 2000), pelo fato de exigirem que o aluno tenha uma metodologia individu-al e eficiente de leitura de estudo. Do aluno se espera que assuma a posição de co-autor na construção dos conhecimentos legitimados nessas instituições, como leitores-acadêmicos (Dauster, 2003). Por conseguinte, não gera estranheza, em face dos déficits continuamen-te demonstrados pelos resultados de exames nacionais, como os de ENEM e das queixas freqüentes dos professores das instituições de ensino superior (Barzotto, 2005), o fato de que as relações entre leitura, compreensão e metacognição em universitários venham des-pertando o interesse de diversos pesquisado-res brasileiros (Kopke Filho 2001, 2002; Ro-manowski e Rosenau, 2006), bem como o fato de que um maior número de produções em programas de pós-graduação stricto sensu (Letras/Lingüística; Psicologia; Educação; Biblioteconomia; História; Artes; Comunica-

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ções) tenha investigado a temática de “como se lê" (Ferreira, 2004: 16).

Ao nos debruçarmos sobre a literatura acerca das práticas de leitura em instituições de Ensino Superior (IES) registramos a pre-sença de uma relativa subvalorização e subu-tilização da leitura, por parte dos estudantes-leitores universitários (Fraisse, 1993; Witter e Vicentelli, 2001; Carlino, 2002; McNamara e Harbersd, 2006; Pullin, 2007; Pullin e Pullin, 2005). As evidências em nível nacional, mesmo entre estes estudantes, apontam para déficits e dificuldades desses alunos em a-prender tendo como fonte textos escritos (Bo-ruchovitch et al., 2005).

Apesar de alguns, como Duarte (2003), colocarem em questão os princípios e as conseqüências geradas pelas pedagogias do ‘aprender a aprender’, muitas vezes defen-didas pelo aceite não crítico do que vem sen-do denominado por sociedade do conheci-mento, como uma das razões que justificam tais pedagogias, o fato é que os estudantes não devem contentar-se apenas com os textos o-rais do professor em sala de aula, mas buscar outras fontes para construir seus saberes, por exemplo, em textos escritos. Para que isso aconteça, é preciso que os alunos sintam a necessidade de que o estudo de um tema es-pecífico exige que se coloquem a par da bi-bliografia relativa ao objeto de sua inquietude, como assinalado por Freire (1982). Em outras palavras, se sintam motivados e, além disso, capazes de ler e conhecer como lêem, isto é, disponham da metacognição acerca das estra-tégias que utilizam enquanto lêem (Kuiper, 2002; Zimmerman, 2002; Cukras, 2006).

Em uma perspectiva ontológica que concebe o homem como ser inacabado (Frei-re, 2005) e como aquele que constitui seus saberes e suas práticas no e pelo convívio com outros (Vygotsky, 1997; Galantino, 2003; Dijk, 2006), a visão teórica que assu-mimos sustenta-se na adesão à perspectiva de que o processo de aquisição do conhecimento tem sua feitura gerada em produções configu-radas subjetivamente pelos tipos de relação que cada um estabelece a partir de outrem e com os bens culturais. Para que este processo ocorra faz-se necessária a mediação de outros,

visto ser nos espaços das relações intersubje-tivas que se estabelecem as condições estrutu-rantes para quaisquer aprendizagens, seja de novos repertórios seja para as mudanças dos já adquiridos. Por conseguinte, concordamos com Vygotsky (1997) quanto a que a educa-ção, de um ponto de vista psicológico, é, de fato, uma re-educação, visto intervir e influ-enciar o desenvolvimento dos indivíduos, de forma sistemática e objetivar intencionalmen-te, por um esforço consciente, a apropriação dos modos de ser e dos bens culturais. Neste sentido, eventos de educação contribuem para o processo da seleção social dos aspectos e dimensões da personalidade dos indivíduos, em uma dada sociedade.

A metacognição relativa às estratégias e processos envolvidos na leitura de textos acadêmicos vem sendo apontada como rele-vante e diferenciadora para a constituição de saberes, por parte de seus leitores. Trabalhos como os de Spooren e colaboradores (1998), Cotttrell e McNamara (2002), O’Reilly e McNamara (2002), Graesser e colaboradores (2003), McNamara (2004a, 2004b), assim como os de McNamara e Harbersd (2006) e Romanowski e Rosenau (2006) assinalam para os efeitos positivos da consciência e con-trole tanto dos processos, quanto das estraté-gias de leitura e de aprendizagem. De modo geral, a produção em programas de Mestrado e Doutorado, na área de Educação e de Psico-logia, a documentada nos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), bem como os da várias edições dos encontros da Associ-ação Brasileira de Leitura (COLE) e do En-contro Nacional de Didática e Prática de En-sino (ENDIPE) referem a importância e a ur-gência de conhecimentos que propiciem a formação de leitores autônomos, capazes de lidar de modo crítico com situações do cotidi-ano, familiares ou não. E porque concorda-mos com Freire (2005: 30) quanto a que “[...] ler é procurar, buscar, criar a compreensão do lido”, bem como quanto à importância de que “quando o homem compreende sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções”, podendo, as-sim, “transformá-la e com seu trabalho pode

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criar um mundo próprio: seu eu e suas cir-cunstâncias”, e porque uma posição crítica, fundamental e indispensável ao ato de estu-dar, requer de quem estuda que assuma postu-ras como as assinaladas por esse educador, é que vimos buscando trabalhar com leitura junto a alunos do Ensino Superior, nomeada-mente com futuros professores.

Apesar do papel mediador do profes-sor ser fundamental para novas aprendiza-gens, sua função deve ser preferencialmente a de “transferir progressivamente para os alunos o controle de sua aprendizagem, sabendo que o objetivo último de todo mestre é se tornar desnecessário” (Pozo, 2002: 273). Por conse-guinte, suas ações devem/deveriam ter como meta a promoção da autonomia e da co-responsabilidade dos alunos para que ocorram não só aprendizagens de conteúdos específi-cos, mas também das demais relacionadas ao desenvolvimento pessoal e à capacitação pro-fissional dos mesmos. Para tanto, a mediação do professor além de precisar ser planejada e por ele monitorizada, precisa gerar condições propícias que fomentem a metacognição de seus alunos acerca dos próprios estilos de a-prendizagem pessoal, por exemplo, como os possibilitados em situação de leitura de estu-do.

A perspectiva que defendemos impli-ca, em suma, em percebermos a constituição sócio-histórica dos indivíduos, a qual leva não apenas a considerar a posição social objetiva deles, no caso professores e alunos, mas tam-bém, e especialmente a de que estes assumem uma posição social subjetiva por considerar-mos que a sociedade é “o lugar de produção de sentido, e não se pode compreender essa produção de sentido a não ser em referência a um sujeito” (Charlot, 2003: 25), quanto a que as ações do sujeito com a sua sociedade são mutuamente dependentes. Baseamo-nos nessa perspectiva para configurar a dinâmica intera-tiva que acontece em qualquer sala de aula. E fazemo-lo, por compreender que tais relações são co-responsáveis para a constituição da subjetividade dos atores envolvidos nesse es-paço, e, especialmente, porque o professor em face da autoridade que lhe é conferida social-mente, para suas práticas e prescrições, por

exemplo, de leitura, confere sentido aos con-teúdos e aos procedimentos, uma vez que seu comportamento afeta de algum modo, ou me-lhor dito, (con)forma as condições do saber e do conhecimento de seus alunos.

Acerca da produção de sentidos, espe-cificamente daquela gerada a partir dos mo-dos da proposição de textos escritos, isto é, decorrente das condições postas simultanea-mente pela conjunção da proposição, propri-amente dita, do texto com os modos de ler do sujeito-leitor, fundamentamo-nos em Orlandi (2001: 11) quando esta diz que a interação do sujeito-leitor com o texto ”representa a conju-gação de duas historicidades: a história de su-as leituras e a história de leituras do texto”.

Em cursos regulares, ofertados em IES, nas modalidades de cursos de graduação e de pós-graduação, não há como o professor ignorar e deixar de ser instigado pela necessi-dade de (re)ensinar seus alunos a ler e de tra-balhar o efeito-leitor com os alunos, em face seja da multiplicidade e diversidade discipli-nar dos textos exigidos (Carlino, 2002; Mos-tafa, 2004; Pullin, 2007), seja dos modos de leitura e de sentidos, quer legitimados, quer dos atribuídos pelos alunos ao lerem qualquer texto.

No encontro dos alunos com um texto prescrito pelo professor em sua disciplina, diferentes são os sujeitos-leitores, por suas histórias de vida e de leitura distintas, em fa-ce, entre outros, dos efeitos das práticas ante-riores de proposição e dos graus de responsi-vidade exigidos após a leitura, em suma, dos modos constituídos e legitimados para a inte-ração dos alunos com textos (Almeida, 2006: 3). Desse modo, podemos entender os efeitos sobre a história do leitor produzidos pelas prá-ticas, sejam dos modos de proposição de lei-turas, do tipo de trabalho produzido por ele junto ao texto, ou ainda dos modos como se-jam utilizadas as informações em sala de aula, por exemplo. As práticas anteriores de propo-sição e dos graus de responsividade exigidos após a leitura, em suma, dos modos constituí-dos e legitimados para a interação dos alunos com textos. Entretanto, os diálogos possíveis com e a partir de textos não só remetem a es-sas histórias, como podem provocar rupturas

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e/ou conferir novas nuances a elas. Sob este enfoque, a constituição da identidade de lei-tor, especialmente a prescrita e legitimada pa-ra alunos de cursos de Ensino Superior, é con-figurada como a de um leitor autônomo e crí-tico, a qual permeia os efeitos da conjunção daquelas historicidades singulares pela fre-qüente e necessária ruptura com os padrões do saber-ler, quer do mundo cultural no qual ele foi recebido, quer dos exigidos em níveis de escolarização anteriores.

Os níveis de leitura possíveis de um texto, conforme Orlandi (2001), são o do en-tendimento, o da interpretação e o da compre-ensão, sendo que apenas neste último nível de leitura é gerada a condição de produção de uma leitura reflexiva e crítica. Concordamos com a autora quanto a que compreender um texto implica em (des)construí-lo, isto é, em identificar seus significados e a desvelar os mecanismos utilizados pelo autor para produ-zi-lo. O leitor, quando assim problematiza para si o texto, assume o papel de co-autor, por ultrapassar o nível de simples identifica-dor de informações, de garimpeiro, e tal pos-tura ativa habilita-o a construir seu conheci-mento a partir de textos (Charlot, 2003).

As diferenças entre leitores se devem, portanto, aos papéis que cada um assume ou, melhor dizendo, que cada um foi levado a as-sumir, enquanto lê. Enquanto intérprete, “a-penas reproduz o que já está produzido. De certa forma podemos dizer que não lê, é lido, uma vez que, apenas reflete sua posição de leitor na leitura que produz (Orlandi, 2001: 116), em outras palavras, o que produz leitura a partir exclusivamente de sua posição só in-terpreta. À medida que o leitor se preocupa em identificar e avaliar para si o fato precisar de ler um texto, o contexto da situação, ime-diato e histórico, e, em vista disso, o relaciona “criticamente com sua posição, que a proble-matiza, explicitando as condições de produ-ção de sua leitura, compreende” (Orlandi, 2001: 116), é que se pode afirmar que ele co-nhece e pode controlar suas ações frente ao texto.

Portanto, os que apenas interpretam, de fato não lêem, por não participarem cons-cientemente do processo de constituição de

sentidos, antes submetem-se ao poder do texto e de seu autor. Isso comumente ocorre, ainda, em eventos escolares, mesmo em IESs, com muitos alunos, quando se limitam ao que lhes foi passado oralmente pelos professores, em sala de aula (Kons, 2006), porém este não é o escopo de nossa preocupação com o presente relato.

Preocupa-nos, sim, o assinalado por Anne-Marie Chartier (1999) quanto à neces-sidade de estarmos atentos às “formas pelas quais a leitura (o que é lido e as maneiras de ler) se integra na preparação da profissão de professores”, visto que por elas “transmite-se de forma concreta uma relação com o escrito como ferramenta de trabalho profissional, como espaço de cultura pessoal, como refe-rente compartilhado.” (Chartier, 1999: 96).

Em face do corpo teórico e das preo-cupações que nos inquietam como docente do Ensino Superior, o presente trabalho busca averiguar quais estratégias futuros professo-res, alunos de graduação e de pós-graduação, (re)conhecem utilizar quando estudam a partir de textos. 2. Método

A constituição da amostra dos partici-pantes ocorreu por conveniência, junto aos cursos que tivemos acesso. A participação foi voluntária, após esclarecimentos e assinatura do Termo de Consentimento Esclarecido. O grupo de participantes, alunos de graduação freqüentava dois cursos de licenciatura de á-reas distintas (Humanas e Exatas), em uma IES particular. Destes foram selecionados a-lunos da série inicial e final dos cursos de Le-tras e de Ciências, doravante designados por GL1 (n=23); GC1 (n=19); GL2(n=27); CC2 (n= 19). Os participantes da pós-graduação realizavam, quando da coleta, sua formação de pós-graduação em um Mestrado de Educa-ção e são identificados para o presente relato como GM (n=16).

Para o levantamento das informações foi utilizada uma escala referente à freqüência de reconhecimento quanto ao uso de estraté-gias no processo/produção de leitura, a qual foi traduzida, adaptada e utilizada por Kopke

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Filho (2001), a partir dos resultados de um estudo exploratório junto a universitários, rea-lizado por Goetz e Palmer, em 1991. Esta es-cala compõe-se de 20 itens, distribuídos por três fases do processo/produção da leitura: a) de previsão, isto é, antes de iniciada a leitu-ra, composta por quatro itens; b) de acompanhamento, ao longo da leitura, isto é, durante a produção de leitura do texto propriamente dito, com dez itens; c) após a leitura, de avaliação do próprio pro-cesso de leitura realizada, com seis itens.

Cada item possibilita a escolha de uma de três alternativas (freqüentemente; às vezes; raramente), relativas à freqüência com que cada estratégia é reconhecida como utilizada pelo respondente quando lê textos de estudo.

A aplicação desse instrumento com os alunos de graduação foi coletiva e realizada por uma docente da IES, após uma explicação oral e o recebimento por escrito do termo de aceite. Para os participantes da pós-graduação, após o aceite, o instrumento foi remetido por e-mail. Para ambos os grupos de participantes foi solicitado que ao responde-rem tivessem como foco a leitura de textos acadêmicos.

3. Resultados e algumas considerações

A maioria dos participantes informou à pesquisadora que nunca havia posto para si como objeto de análise as estratégias que uti-liza enquanto lê, tendo sido instigados para tal ao responder ao instrumento. Este resultado, por ter sido espontaneamente apresentado e, por conseguinte sem razões para um informe controlado, seja pela pesquisadora seja pela forma como o instrumento foi aplicado, em si e em parte desvela como foi a constituição desses alunos como leitores. Isto, porque é de se esperar que quaisquer desses participantes independente do grupo a que pertença (N=104), pela obrigatoriedade da escolariza-ção anterior leram/deveriam ter lido inúmeros e distintos textos. Mas, como diz Eni Orlan-di, leram ou foram lidos? Fizeram tais leituras como experiência pessoal significativa ou só

para responder a tarefas propostas por ou-trem? Como ler é um processo que se anteci-pa e ultrapassa a escolarização, sobretudo quando relativo aos suportes e gêneros textu-ais, que condições de (contra)controle não foram ensinadas e aprendidas para que cada um deixasse de conhecer como opera em face de textos, no caso de estudo e para que ao ler se assumisse como sujeito no desenrolar des-sas experiências?

Considerando que a compreensão da leitura exige a participação ativa dos leitores em relação ao texto podemos afirmar que este processo se inicia por um contato implicado do leitor com o posto/dado a ler, especialmen-te no caso de textos de estudo, situação esta indicada aos participantes para terem em foco quando das respostas ao instrumento usado. Entre as quatro estratégias arroladas no ins-trumento usado, para a situação do encontro do leitor com o texto para estudo, isto é, antes de iniciada a leitura propriamente do mesmo, encontra-se uma que possibilita identificar a freqüência com que os respondentes pensam a respeito da finalidade ou necessidade de pro-duzir uma determinada leitura. De modo ge-ral, os participantes indicaram que o fazem freqüentemente (75% do GM; 73,9% do GL1; 63,1% do GC2; 48,1% do GL2), apenas 15% dos participantes do GC1 assim responderam. Entretanto, não ocorre com a mesma freqüên-cia a ação de levantamento de hipóteses acer-ca do material a ser lido após um exame ini-cial e geral do texto. Porém é freqüente para 51,8% do GL2, 50% do GM, 42,1% do GC2, 31,6% do GL1 e 21,7% do GL1.

Ao longo da leitura boa parte dos par-ticipantes freqüentemente relaciona as infor-mações do texto com suas crenças ou seus conhecimentos do assunto (75% do GM; 66,7% do GL2; 30,4% do GL1; 47,4% do GC2; 63,1% do GC1), e pensa acerca das im-plicações dessas informações (62,5% do GM; 74% do GL2; 56,5% do GL1; 63,1% do GC2; 47,5% do GC1). A preocupação em acompa-nhar e avaliar o quanto estão compreendendo acerca do texto é comum entre: 87,5% do GM; 92,5 do GL2; 78,3% do GL1; 63,1% do GC2; 84,2% do GC1.

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De modo geral, poucos alunos dos cursos de graduação tomam notas, enquanto lêem, isto é, reescrevem para si, copiando ou não informações do texto, (5,3% do GC2; 10,5% do GC1; 25,9% do GL2), resultado este que os diferencia dos alunos do Mestra-do. O recurso de sublinhar idéias ou palavras

é mais usado pelos participantes do GM (93,7%), porém, no caso dos demais partici-pantes quando esse recurso é comparado ao de gerar imagens acerca dos conceitos ou dos fatos descritos no texto ocorre com menos freqüência, como pode ser verificado na figu-ra 1.

Figura 1 - Indice percentual por grupo quanto ao uso das estratégias de suporte à leitura.

Quando não compreendem, uma pala-vra, frase ou parágrafo, os recursos mais fre-qüentes são os de: reler o mesmo trecho (100% do GM; 92,6% do GL2; 95,6% do GL1); voltar a ler as partes que o precedem (87,5% do GM; 85,2% do GL2); continuar a ler na busca de mais esclarecimentos (68,7% do GM; 34,1% do GL1); consultar uma fonte externa (outro livro, ou alguém), é o que fa-zem freqüentemente 62,5% do GM e 42,1% do GC1. Vale lembrar que a leitura como um processo de produção de sentidos “apenas se revela no movimento de idas e vindas entre texto e leitor” (Cordeiro, 2004, p. 97), as es-tratégias de parar, refletir, reler o que não se compreendeu são estratégias empregadas fre-qüentemente por todos os participantes, inde-

pendente do nível de escolarização (gradua-ção/pós).

Entretanto, esse processo de produção de sentidos pode ser identificado, também, após a leitura. Nesse caso, de modo geral, os movimentos de leitura das participantes já se distinguem quanto à freqüência de utilização das estratégias propostas.

Registra-se que mais participantes do mestrado do que os da graduação relêem os pontos mais importantes (81,2% do GM; 59,3% do GL2; 43,4% do GL1; 26,3% do GC2; 31,6% do GC1). Entretanto, em pouco se diferenciam quanto ao refazerem a leitura de todo o texto (37,5% do GM; 33,3% do GL2; 26% do GL1; 21% do GC2; 10,5% do GC1), possivelmente por se preocuparem a-

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penas em recordar os pontos mais relevantes do texto (50% do GM; 37% do GL2; 31,6% do GC2; 36,8% do GC1).

Menos, ainda, são os que escrevem um texto, mesmo que seja uma paráfrase ou resumo do material lido (25% do GM; 11,1% do GL2; 13% do GL1; 10,5% do GC2; 21% do GC1). Interessante foi o resultado registra-do relativo à preocupação em verificar quais das hipóteses acerca do conteúdo do texto que haviam levantado antes de iniciada a leitura, se confirmam ou não (56,2% do GM; 33,3% do GL2; 13% do GL1; 15,8% do GC2; 10,5% do GC1).

O quadro dos resultados apresentados converge com os verificados em outras pes-quisas (Pullin e Tanuri, 2007), quer quanto aos recursos e modos de ler utilizados por es-tudantes do Ensino Superior quando estudam, quer quanto às preocupações que os afligem quando estudam a partir da leitura de textos.

De certo modo, os resultados obtidos no presente trabalho vão na direção dos per-cebidos e por Vicentelli (2004), referentes à sua investigação acerca do desempenho leitor de estudantes de Ensino Superior na Venezue-la. Referida análise indica que uma porcenta-gem significativa de estudantes subutiliza a leitura. O fato de apenas alguns dos partici-pantes pensarem acerca das implicações das informações contidas no texto é preocupante, especialmente em se tratando do nível de formação acadêmica em que se encontram. Chartier (1999) adverte, ainda, para o fato de que muitos alunos, futuros professores, “têm a sensação de que o proveito que tiram de suas leituras é pequeno, incerto, aleatório” (Charti-er, 1999: 89). Seria, então, essa a razão por que tal comportamento ocorre com menos freqüência entre os participantes?

Além disso, os resultados obtidos ins-tigam a que concordemos com Carlino (2002) quanto a que é necessário ensinar a ler no En-sino Superior, seja pela natureza dos artefatos culturais comumente recomendados para lei-tura (Mostafa, 2004; Witter, 1992; Pullin, 2007), seja pelas competências exigidas para o ofício desse aluno, as quais em níveis de escolarização anterior não foram ensinadas.

Pontuam, ainda, na direção da rele-vância da metacognição dos processos de a-prender a partir de textos, a qual viabiliza a autonomia e a inserção profissional e cidadã dos alunos, independente do nível de sua es-colarização.

4. Observações finais

Apesar da “dimensão capital da for-

mação inicial” (Chartier, 1999: 93), atribuída pelos formadores de futuros professores, pou-co se tem investido nesta etapa e mesmo em anteriores, para a formação de leitores compe-tentes.

Um dos papéis a ser desempenhado por qualquer um que se nomine/seja nomina-do de professor é, em nossa opinião, o de “a-tor social de autonomia” (Giesta, 2001: 38-40). Este papel gestor, por natureza, não só é imprescindível como implica em compromis-sos a serem assumidos por esse profissional, no fato de ser ele um dos principais mediado-res sociais para que as novas gerações possam se apropriar dos distintos saberes, declarati-vos, processuais e outros, legitimados social-mente como essenciais. Tais compromissos constituem-se em condições necessárias, tanto para sua competência pessoal como profissio-nal. Entre essas, destacam-se seus saberes re-lacionados à leitura e à metacognição, visto que:

“O professor pode fazer a diferença na formação de leitores, especialmente despindo-se de seu poderio professoral e vestindo-se de uma nova autoridade – a que sabe mediar a construção de co-nhecimentos pelos aprendizes.” (Kons, 2006: 7)

Incluindo-se nestes os relacionados ao

conhecimento e controle metacognitivo, como defendido por Couceiro-Figueira (2004).

Concluímos, lembrando Vygotsky (1997) que define a educação, de um ponto de vista psicológico, como uma re-educação, em razão de ela intervir e influenciar o desenvol-vimento dos indivíduos, de forma sistemática e objetivar intencionalmente, por um esforço

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consciente, a apropriação dos modos de ser e dos bens culturais. É, nessa perspectiva que os eventos de educação contribuem para o pro-cesso da seleção social dos aspectos e dimen-sões da personalidade dos indivíduos, em uma dada sociedade. Além do mais, em face da responsabilidade assumida por professores, desde a Educação Infantil até à ofertada por IESs, consideramos que a decisão deste pro-fissional continuar a ser professor relaciona-se à das condições que dispõe para a sua forma-ção continuada as quais, por sua vez, produ-zem reflexos na sua identidade (Giesta, 2001). Tais condições e as habilidades necessárias para que esse profissional possa “aprender a aprender” e a refletir sobre seus saberes não se restringem aos espaços de formação esco-lar acadêmica. Por isso, algumas dessas com-petências devem ser ensinadas especificamen-te nesses espaços, de modo que as condições e as competências para a autonomia pessoal e profissional possam ser desenvolvidas e im-plantadas, para serem utilizadas ao longo da vida.

Instrumentos como o ora utilizado na presente pesquisa podem auxiliar os professo-res a conhecer as estratégias de leitura que seus alunos utilizam para estudar a partir de textos. Ao conhecê-las, os professores podem auxiliar e, se necessário, propor novas formas e modos dos alunos se relacionarem com es-ses textos.

Larrosa (2002) firma uma posição de escuta para os que lêem. Desse autor empres-tamos sua proposição como imprescindível, tanto por parte dos professores quanto dos alunos, isto é, para aqueles que aprendem e, porque aprendem podem ensinar e gerar no-vos conhecimentos, não só para si, como em favor daqueles junto aos que atuam ou ve-nham a atuar.

Em nossa opinião, há que se (re)estabelecer a dimensão formadora do es-paço universitário para a construção de habi-tus e práticas eficientes de leitura e escrita. Para tanto, as atividades de ensino, pesquisa e extensão nas quais os alunos participam, de-vem induzi-los a que sintam necessidade de produzir leituras autônomas, e a modificar os valores que freqüentemente atribuem à leitu-

ra, conforme defendido por Pullin e Pullin (2005). Ora, tais condições são passíveis de serem efetivadas em ambientes em que as prá-ticas do fazer educativo pressuponham leitura efetiva, tanto por parte dos que ensinam, quanto dos que aprendem. Tais leituras não são, necessariamente, realizadas por prazer ou paixão, mas, com certeza, movidas para atin-gir metas de realização pessoal, circunscritas ou não a aprendizagens de conteúdos especí-ficos. Referimo-nos, aqui, de modo especial às diversas estratégias e práticas de leitura que possibilitam, pelos modos de sua produção e pelos diversos suportes utilizados, o aprofun-damento dos saberes, especialmente dos rela-tivos à formação profissional, sejam estes dis-ciplinares, curriculares ou experienciais (Tar-dif, 2002). 5. Referências bibliográficas Barzotto, V.H. (2005). Leitura e produção de textos para alunos ingressantes no terceiro grau. Em: Regina Célia de Carvalho Paschoal Lima. (Org.). Leitura - múltiplos olhares. 1 ed. (pp. 97-101). Campinas: Mercado de Le-tras. Boruchovitch, E.; Costa, E.R. e Neves. E.R.C. (2005). Estratégias de aprendizagem: contri-buições para a formação de professores nos cursos superiores. Em: Joly, M.C.R.A.; San-tos, A.A.A.; Sisto, F.F. (Orgs.). Questões do cotidiano universitário. (pp. 239-61). São Paulo: Casa do Psicólogo. Carlino, P. (2002, outubro). Alfabetización académica: un cambio necesario, algunas alternativas posibles. Trabalho apresentado no Tercer encuentro la universidad como ob-jeto de investigación. Buenos Aires. Argenti-na. Cavallo, G. e Chartier, R. (1998). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática. Charlot, B. (2003). O sujeito e a relação com o saber. Em: Barbosa, R. L. L. (Orga.) For-mação de educadores: desafios e perspecti-vas. (pp. 23-33). São Paulo: UNESP. Chartier, A.M. (1999). Os futuros professores e a leitura. Em: Batista, A.A.G.; Galvão, A.M.O. (Orgs.). Leitura: práticas, impressos,

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Criatividade na rede: a potencialização de idéias criativas em ambien-tes hipertextuais de aprendizagem

Creativity in the network: the potentiality of creative ideas in hypertext learning environments

Ângela Álvares Correia Dias e Karina da Silva Moura

Faculdade de Educação, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, Distrito Federal, Brasil

Resumo Este artigo tem como objetivo apresentar e problematizar possibilidades do hipertexto como estratégia para a promoção de ambientes educativos propícios ao desenvolvimento da criatividade. Todos nós possuímos um potencial criativo, importante para a solução de problemas cotidianos, e esse potencial se desenvolve em resposta aos novos desafios e situações que a sociedade vivencia. Assim, a educa-ção na contemporaneidade tem sido instada a cumprir o papel de oportunizadora e propiciadora do de-senvolvimento e formação de cidadãos criativos, preparados para a atuação numa sociedade marcada pelo dinamismo. Nessa perspectiva, adotamos o hipertexto como um ambiente potencializador do diá-logo e do compartilhamento de experiências, que subsidiem a introdução/ adaptação e a criação de mudanças significativas para o desenvolvimento de processos de aprendizagem sistemicamente mais criativos. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 62-71. Palavras-chave: criatividade; hipertexto; educação. Abstract This article has as objective presents and to problematize possibilities of the hypertext as strategy for the promotion of favorable educational environment to the development of the creativity. All of us possessed a creative potential, important for the solution of daily problems, and that potential grows in response to the new challenges and situations that the society lives. Like this, the education in the contemporary society has been urged to accomplish the role of promoting the development and crea-tive citizens' formation, prepared for the performance in a society marked by the dynamism. In that perspective, we adopted the hypertext as an potential environment of the dialogue and of the sharing of experiences, that subsidize the introduction/adaptation and the creation of significant changes for the development of processes of learning more creative. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 62-71. Key Words: creativity; hipertext; education.

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 16/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- Â.Á.C. Dias é Mestre (Universidade de Nova York), Doutora (Universidade de Londres) e Líder do Grupo de Pesquisa Lattes (CNPq) “Educação Hipertextual”. Atua como Professora Adjunta (Faculdade de Educação, UnB). Endereço para correspondência: HCGN 709, Bloco I, Apto. 202, Asa Norte, Brasília, DF 70.750-709. Telefone: (61) 3275-1029. E-mail para correspondência: [email protected]. K.S. Moura é Graduada em Pedagogia (Faculda-de de Educação, UnB), Mestranda em Educação (UnB), na área de Comunicação e Educação e Integrante do Grupo de Pesquisa Lattes (CNPq) “Educação Hipertextual”. Endereço para contato: QN 12B, Conjunto 07, Casa 05, Riacho Fundo II, Brasília, DF 71.881-620. Telefone: (61) 3333-0634 ou (61) 8118-6827. E-mail para correspondência: [email protected].

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1. Introdução

“Criatividade consiste em ver o que todo mundo vê e perceber o que ninguém perce-

beu” Maury Fernandes (1998: 164)

A criatividade tem sido objeto de di-

versos estudos acadêmicos e publicações va-riadas. Essa multiplicidade de discursos a res-peito da criatividade se justifica pelo caráter complexo desse constructo que se expressa em diferentes contextos e implica, para sua definição, uma percepção subjetiva que lhe confere certo grau de relatividade.

A criatividade se expressa em diferen-tes áreas da atuação humana – trabalho, edu-cação, relações pessoais, organização empre-sarial, produção comercial, ciência e tecnolo-gia, esportes, artes, artesanato e outras. Este trabalho, contudo, tem sua fundamentação e subsídios provocadores advindos de estudos a respeito da criatividade em um contexto hi-pertextual de aprendizagem.

“Quando nos referimos à criatividade dos alunos, estamos nos referindo a sua criatividade numa área específica: sua criatividade no processo de aprendiza-gem.” (Mitjáns Martínez, 2002: 192)

As ponderações aqui relatadas funda-mentam-se nos estudos relacionados à prepa-ração e desenvolvimento do minicurso “Edu-cação e hipertexto – criatividade na rede”, apresentado na VI Semana de Extensão da UnB – Criatividade e Produção do Conheci-mento, no período de 19 a 20/10/2006, consti-tuindo-se em um desdobramento dessa ativi-dade. Neste artigo, – assim como foi realizado no minicurso – são apresentadas reflexões acerca das mudanças nas formas de experien-ciar o mundo, as outras pessoas e a si mesmo, que são potencializadas pelas vivências em ambientes hipertextuais. Nesse sentido, são apresentadas e problematizadas possibilidades do hipertexto como estratégia para a promo-ção de ambientes educativos propícios ao de-senvolvimento da criatividade.

2. Tecendo os fios da criatividade O potencial criativo do ser humano se

desenvolve em resposta aos novos desafios e situações que a sociedade vivencia. O pensa-mento criativo é essencial para o desenvolvi-mento de uma compreensão ampla e ativa nas interações com múltiplos problemas e situa-ções presentes num mundo cada vez mais complexo.

Criatividade é um conceito muito am-plo e envolve um misto de situações, devido à complexidade desse conceito inúmeras defi-nições são possíveis, sejam elas relativas ao processo criativo, à pessoa criativa, ao produ-to, ao ambiente, à expressão. Neste trabalho, consideramos criatividade como:

“o processo que resulta na emergência de um novo produto (bem ou serviço), aceito como útil, satisfatório e/ou de va-lor por um número significativo de pes-soas em algum ponto no tempo.” (Alen-car, 1998: 15)

A exigência para que se tenha uma i-

déia criativa é que esta origine um produto novo, pelo menos para o sujeito que o gerou. No entanto, uma idéia criativa nem sempre é reconhecida de imediato, às vezes são neces-sário anos até que um produto seja reconheci-do e declarado de valor pela sociedade. O re-conhecimento desse produto depende de uma das últimas fases do processo criativo, a co-municação.

“Durante o processo criativo a pessoa tira algo de si e comunica esse algo ao outro. Comunicar é o melhor momento do processo criativo.” (Sátiro, 2002: 229)

Criatividade, apesar de sua amplitude

conceitual, não descreve uma pessoa, descre-ve idéias, produtos que são novos, o que des-creve uma pessoa são os seus comportamen-tos criativos, como motivação, abertura à ex-periência, independência, flexibilidade, auto-confiança, dentre outros.

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Outro conceito muito próximo ao con-ceito de criatividade é o do termo inovação. Muitas vezes, por falta de clareza, esses dois conceitos são utilizados como sinônimos. A-pesar de esses dois conceitos estarem intima-mente interligados, a inovação pressupõe que algo criativo já tenha sido gerado.

Inovar significa introduzir novidade, adotar e implementar uma nova idéia (proces-so, bem ou serviço) em uma dada situação como resposta a um problema percebido, transformando a nova idéia em algo concreto (Alencar, 1998). Assim, inovar depende que idéias criativas tenham sido elaboradas a pri-ori, de modo que estas idéias são reelaboradas e adaptadas a um novo contexto. Esse proces-so intencional é realizado sempre visando um benefício, transferindo-se uma idéia proveito-sa que foi implementada em determinado am-biente para outro contexto que necessita dos mesmos melhoramentos.

Nesse sentido, criar exige muito mais do sujeito que o ato de inovar, criatividade é um processo que resulta de um comportamen-to produtivo, construtivo, contribuição para; atitude que demanda conhecimento, imagina-ção e avaliação; implica desafiar, ver novas maneiras, arriscar-se, sendo necessário, dessa forma, condições de inventividade que abram espaços para apreensões, dúvidas e perguntas; não é um atributo de indivíduos, mas dos sis-temas sociais que fazem julgamento sobre os indivíduos (aquele que imprime em seu con-texto suas variações individuais).

3. No labirinto da concepção hipertextual

O conhecimento é tecido por fios ad-

vindos de inúmeros lugares, de diferentes campos do saber e de diversas naturezas, que se entrelaçam em um constante movimento, tecendo-se e destecendo-se, de modo a formar uma rede hipertextual. O hipertexto1 é uma construção aberta, propícia às relações dialó-gicas2 entre os caminhantes da rede, e forma-da por diversos gêneros discursivos – sejam jornais, filmes, poesias, músicas, literatura, pinturas, livros, mídias, esculturas, propagan-das, dentre vários outros – que trazem inúme-

ras vozes3 que dialogam de modo a construir os mais diversos conhecimentos.

O hipertexto flexibiliza as barreiras entre os diferentes campos do conhecimento, possibilitando infinitas conexões entre as in-formações de modo reticular. Assim, o hiper-texto se configura como um mundo de signi-ficação a ser explorado, de maneira que o hi-pertexto:

“é talvez uma metáfora válida para to-das as esferas da realidade em que sig-nificações estejam em jogo.” (Lévy, 1997: 25)

A rede é uma forma de organização

democrática, constituída por elementos autô-nomos, mas que cooperam entre si e se inter-ligam de modo a complementar-se e enrique-cer-se. São as articulações que fortalecem e expandem a rede de conhecimentos, demons-trando que uma das principais características das redes é a sua capacidade de existir sem hierarquia. Da mesma forma, a rede não pos-sui um centro único, mas todas as suas cone-xões se constituem em pontos da rede, locais onde ocorrem as inter-relações entre os diver-sos elementos da rede, o que constitui a mul-tiplicidade do conhecimento.

A rede hipertextual favorece um pen-samento não-linear, onde o leitor-caminhante é um sujeito ativo, que está a todo o momento estabelecendo relações próprias entre diversos caminhos4. Nessa perspectiva, é preciso preo-cupar-se com o percurso, nas múltiplas e inin-terruptas conexões e articulações nas quais o sujeito vai descobrindo, revelando, recriando significados. As possibilidades de trajeto que os sujeitos podem estabelecer nas redes de conhecimentos se dão de forma não-linear, em um processo de construção de sentido por meio da conexão de diversos e diferentes tex-tos5 verbais e não-verbais, que possibilitam a articulação de vários conteúdos e a negocia-ção/interpretação dos sentidos6.

Assim, o hipertexto é uma rede comu-nicacional/social alimentada por informações que possibilita aos seus exploradores constru-írem diferentes compreensões, devido à sua natureza rizomática e estrutura labiríntica.

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Como um labirinto7 a ser explorado, a rede hipertextual promete aos seus exploradores surpresas e percursos desconhecidos.

O labirinto rizomático é um labirinto aberto a todos os pontos de vistas e sentidos e totalmente conectável, em todas as direções, possui um “caráter de revelação. Interagir (no amplo sentido [...]) com a obra faz com que a pessoa obtenha uma outra percepção do mun-do” (Leão, 2002: 161). Esse tipo de labirinto, porém, exige uma participação especial dos seus exploradores, uma participação mais co-laborativa, pois o sujeito:

“tem de necessariamente querer pene-trar no labirinto. No caso de um labirin-to textual, isso significaria o esforço in-telectual que é exigido para a compre-ensão.” (Leão, 2002: 160)

Aprender é construir um labirinto, in-ventar percursos, procurar situações desafian-tes, decifrar enigmas. É construir um labirinto com movimentos (uma dança), num ritmo de movimentos alternantes, onde os labirintos se desdobram em infinitos labirintos durante o percurso. As estruturas se reconstroem, des-dobram-se e se proliferam à medida que no-vos caminhos são desbravados, de modo que este é um espaço que se cria mediante o ato de caminhar.

“Podemos conceber a complexidade la-biríntica também como um território re-pleto de encruzilhadas no qual os cami-nhos bifurcam-se o tempo todo.” (Leão, 2002: 32)

Assim, o hipertexto se constitui em um labirinto multicursal, onde cada caminho, cada ponto da rede de conhecimento se des-dobra em diversos outros caminhos, abrindo inúmeras possibilidades de trajeto. Esses de-safios que surgem ao longo da jornada que impulsionam a constante busca por orienta-ção.

São as constantes bifurcações que pos-sibilitam diferentes escolhas aos sujei-tos/leitores que se aventuram em caminhos desconhecidos, rompendo com a linearidade e

propondo descobertas/leituras mais inusita-das.

“Um olhar investigativo das redes reve-la-nos que existe, por trás do aparente caos, uma ordem complexa. Assim, o labirinto fala-nos desse caos ordenado, de uma estrutura complexa que requer um tremendo esforço para ser decifra-da.” (Leão, 2002: 36)

Os labirintos exigem simultaneamente

criatividade para percorrê-lo, no sentido de quem realiza uma obra, revelando o percurso doloroso da criação, com suas idas e vindas e com seus múltiplos erros e acertos, e um alto grau da ação reflexiva, para penetrá-los e compreendê-los, de modo a “extrair um todo coerente de seus meandros” (Leão, 2002: 22).

Os labirintos são construções comple-xas que evocam inúmeras inter-relações entre referências que seriam contraditórias de acor-do com uma visão linear. Nesses ambientes se entrelaçam inúmeros sentidos e significados, em uma constante polissemia. São essas idéi-as contraditórias que estão nas bases das bi-furcações, são pares opostos, mas comple-mentares entre si, que incorporam antinomias como “ordem & caos, prisão & liberdade, li-nearidade & circularidade, clareza & comple-xidade, instabilidade & estabilidade” (Leão, 2002: 20).

Nessa perspectiva, estabelece-se uma nova forma de julgar os antigos dualismos, propiciando um novo olhar sobre suas com-plexas relações. Podemos observar que os caminhos se bifurcam, mas um não nega a existência do outro. Ao contrário, para existi-rem caminhos opostos, pelo menos duas al-ternativas de percurso devem coexistir, esco-lhas que não compõem somente numa bifur-cação entre certo e errado, mas constroem um “fascinante labirinto de idéias que se entrela-çam e se conjugam” (Leão, 2002: 42).

4. As barreiras e os descaminhos do pro-cesso criativo

A criatividade é o “recurso mais pre-cioso de que o ser humano dispõe para lidar com os problemas e desafios” (Virgolim,

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1998: 07). Entretanto, esse dom natural do ser humano, muitas vezes é reprimido desde a infância, como por exemplo, pelo modelo e-ducativo que possuímos atualmente. Esse modelo não estimula o pensamento criativo, levantando barreiras para deixar de fora das aulas a imaginação e a fantasia, privilegiando a reprodução e a memorização como formas de ensino.

O processo criativo envolve indepen dência e curiosidade. Aprender sempre mais de forma diferente e flexível. O atual sistema de ensino, ao não valorizar o desenvolvimento da criatividade, tem “subestimado o potencial criativo de seus alunos. Uma possibilidade de explorarmos nosso potencial criativo reside na perspectiva de aprendermos a brincar com nossos pensamentos e idéias. A criatividade apresenta-se como elemento indispensável na prática educacional e na vida diária” (Virgo-lim, 1998: 28).

A educação tem o papel de oportuni-zadora e propiciadora do desenvolvimento e formação de cidadãos criativos, preparados para a atuação numa sociedade marcada pelo dinamismo. Entretanto, como afirma Alencar (1986), a escola, com freqüência, tem fracas-sado nessa tarefa de favorecer a criatividade, pois:

“dá ênfase exagerada ao conformismo, à passividade e à estereotipia, em detri-mento de certas condições que favore-cem a manifestação da criatividade, como a intuição, a abertura aos senti-mentos e emoções, interesses estéticos e curiosidade.” (Alencar, 1986: 33)

E não só a escola, mas a sociedade

como um todo, cultivou ao longo do tempo vários pressupostos que impedem que o po-tencial criativo presente em todos os sujei-tos/educandos se desenvolva, pressupostos rígidos segundo os quais:

“tudo tem que ter utilidade, tudo tem que dar certo, tudo tem que ser perfeito, não se pode divergir das normas im-postas pela cultura etc.” (Alencar e Mit-jáns Martínez, 1998: 25)

Uma das formas de se anular total-

mente o desenvolvimento de idéias criativas é privilegiando o produto final, trazido pelos educandos, que seu processo de criação. Esse produto final, muitas vezes, ainda é avaliado, comparado de forma taxativa e, se não estiver adequado aos moldes estabelecidos pelo pro-cesso de avaliação, são desprezados todos os esforços criativos dos seus criadores.

Esse é resultado de um processo edu-cativo autoritário onde a prioridade é a trans-missão do conhecimento, ao invés de sua construção. Onde a aprendizagem é vista co-mo um processo individual, na qual é prio-rizado o produto final e não o processo pelo qual esta acontece, possuindo um fim em si mesma, onde o educando não atua, sendo considerado como um simples objeto do pro-cesso educativo.

A escola se constitui em um agente responsável pela formação integral do edu-cando, para que no futuro este possa fazer parte da sociedade ao se engajar em uma pro-fissão. Contudo, o aluno não é preparado para o mundo, mas para passar na avaliação, a es-cola apenas repassa os aportes necessários para que os sujeitos obtenham o sucesso, de forma que esse depende exclusivamente do esforço individual, recaindo sobre os sujeitos toda a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso. O educando é excluído do processo de construção do conhecimento, seu papel se restringe apenas à memorização de conceitos abstratos que lhe foram ensinados, de modo que todas as diferenças individuais e o con-texto ao qual os educandos pertencem são ig-norados.

A partir de todas essas barreiras que se impõem ao processo criativo, muitas questões nos são levantadas, tais como: Muitos profes-sores não valorizam a criatividade no con-texto escolar, será que esses professores não percebem a importância da criatividade na vida das pessoas? Ou será que acreditam que basta transmitir as informações que receberam no passado? Ou será que repetem as mesmas coisas ano após ano por comodismo? Já sa-bemos qual é o objetivo da criatividade na educação, agora, qual o objetivo da educação

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em uma sociedade que se apresenta cada vez mais criativa? O envolvimento pessoal dos estudantes em seu processo de aprendizagem é essencial, caso o estudante não apresente esse caráter ativo, como é desenvolvido o po-tencial criativo desse estudante durante o pro-cesso ensino-aprendizagem?

Como pudemos perceber, inúmeras são as barreiras impostas ao desenvolvimento da criatividade, desde barreiras sociais, que “se identificam com aqueles elementos cultu-rais, institucionais, grupais, ideológicos etc., que, estando presentes no contexto onde o indivíduo atua, limitam sua expressão cria-tiva” (Alencar e Mitjáns Martínez, 1998: 26), até barreiras do próprio sujeito, as barreiras pessoais, “aqueles elementos que freiam o indivíduo internamente, ou seja, aquelas ca-racterísticas do próprio sujeito que limitam a sua criatividade.” (idem) Desse modo, as bar-reiras à criatividade são relativas, dependem tanto dos sujeitos como das situações.

Cultivar o pensamento criativo, de-senvolvendo com os educandos as habilidades de perceberem lacunas, definirem problemas, coletarem e combinarem informações, elabo-rarem critérios para julgar soluções, testar so-luções e elaborarem planos para imple-mentação das soluções escolhidas, é indispen-sável no processo educativo. A criatividade é um dos valores mais importantes nessa época em que vivemos porque o que mais se aprecia neste momento são idéias. E as idéias surgem, em geral, no desenvolvimento de um processo educativo prazeroso que fertilize novas idéias e novas visões para nossas vidas.

5. Na teia da criatividade

Durante muito tempo, a criatividade

foi objeto de estudo apenas do campo da Psi-cologia. Estudava-se a criatividade como algo inato aos sujeitos, uma característica indivi-dual e que, assim, o diferenciava dos demais. Mas com o passar do tempo, verificou-se que a criatividade também era condicionada pelo contexto onde os sujeitos participavam, con-cluindo-se que não era possível investigar o processo criativo estudando apenas a pessoa e

esquecendo de todas as suas vivências. As-sim:

“A criatividade depende também em larga escala das características do ambi-ente interno, como práticas interpesso-ais, sistemas de normas e valores, pre-sença de incentivos e desafios, que po-dem estimular ou obstruir a criativi-dade.” (Alencar, 1998: 14)

Por meio da existência de um sujeito

único evidencia-se não apenas um modo de ser individual, mas a possibilidade de um mundo transformado segundo os seus ideais. Uma das características de uma pessoa cria-tiva é a sua complexidade, uma pessoa cria-tiva não é facilmente compreendida de um ponto de vista linear, pois se manifesta de di-ferentes maneiras, em função de contextos distintos. Cada sujeito é diferente, o que gera significações diferentes, diversidade de su-jeito, que ao se inserir numa concepção de educação mais dialógica abre possibilidades para um processo criativo de produção de sig-nificados. E para que isso seja possível, a E-ducação Hipertextual contribui para a cons-tituição de uma atitude dialógica, oferecendo um ambiente de aprendizagem social e indi-vidual no sentido mais profundo da experiên-cia de aprender.

Ao se realizar uma Educação Hiper-textual objetiva-se formar um sujeito capaz de “ler” seu ambiente e interpretar as relações, os conflitos e os problemas que surgem. Esta leitura é realizada pelo sujeito, segundo suas condições históricas e culturais, quando este se inter-relaciona com um mundo de signifi-cados e, através de um processo de descober-ta, encontra soluções criativas para seu dia-a-dia.

Para que essa aprendizagem ocorra, o ato de educar deve tornar-se uma aventura pela qual o sujeito e os sentidos do mundo vivido se construam mutuamente na dialética da compreensão/interpretação. Nesse sentido, o sujeito-intérprete estaria diante de um mun-do-texto, mergulhado na polissemia e na a-ventura de produzir sentidos, construindo sua

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compreensão através da fusão de seus univer-sos compreensivos que se encontram.

Esse tipo de educação para a criativi-dade suscita diferentes estilos de pensar e a-prender dos educandos, o que exige a utili-zação de estratégias variadas de ensino-aprendizagem. Não basta uma educação cal-cada em uma única forma de ensinar e de a-prender, é necessária a constituição de um espaço pluralizado, com variação de textos, gêneros, percursos, bifurcações e encruzilha-das, que possibilitem ao educando a experiên-cia do caminhar e a constituição de um co-nhecimento múltiplo durante os trajetos da própria viagem.

Os percursos percorridos durante o processo criativo são os percursos de um labi-rinto, pois “atos criativos são atos de cora-gem. Primeiro, porque o criador de uma ino-vação técnica ou social está entrando em á-guas desconhecidas” (Frost apud Alencar, 1998: 16). Segundo, porque o explorador, como leitor/produtor, encontra em sua aven-tura no labirinto elementos indispensáveis pa-ra o desenvolvimento do processo criativo – como motivação, abertura à experiência, in-dependência, flexibilidade, autoconfiança, multiplicidade, além de vários outros citados ao longo do texto.

A multiplicidade da rede de conheci-mentos8 favorece uma dinâmica de organiza-ção que desencadeia processos imprevisíveis de criação. Assim, um ambiente propício ao desenvolvimento da criatividade deve possuir “disponibilidade de meios culturais, abertura a estímulos ambientais, livre acesso aos meios culturais por todos os cidadãos sem discrimi-nação, exposição a estímulos culturais dife-rentes e mesmo antagônicos” (Alencar e Mit-jáns Martínez, 1998: 24). Em outras palavras, uma educação atualizada, que utilize aportes teóricos do dia-a-dia dos educandos de forma a preparar cidadãos críticos para os desafios do mundo contemporâneo.

A escola pode estimular o pensamento criativo desenvolvendo e utilizando os talen-tos e habilidades dos alunos, incentivando-os a soltar a imaginação, explorando suas idéias e soluções criativas para diferentes situações e problemas.

“Os exercícios de criatividade propi-ciam uma abertura da sala de aula para a expressão do pensamento divergente, influindo no aumento da auto-estima dos alunos e na satisfação do aluno com o sistema escolar.” (Virgolim, 1998: 10)

É essencial que as escolas possibilitem

aos alunos distintas alternativas para a expres-são e o desenvolvimento do potencial criador, pois criar é algo inerente ao ser humano, es-tamos criando e inventando todo o tempo. Todos nós possuímos um potencial criativo e habilidades e talentos para inovar e inventar, sendo que as emoções, sensações e os senti-mentos muitas vezes constituem-se em mola propulsora para o ato criativo.

A escola, frente suas dificuldades, de-ve procurar uma forma criativa para solu-cionar seus problemas e suprir suas necessi-dades, além disso, abrir possibilidade para que seus educandos desenvolvam seu poten-cial criativo, assim, estes “aprendem a sensi-bilizar-se com seus próprios problemas e a defini-los para solucioná-los criativamente” (Mitjáns Martínez, 2003: 147). A escola deve apresentar um contexto de apoio, ideal para trabalhar as expressões de mundo interna dos seus educandos.

Um contexto escolar baseado no com-promisso de criar interações dinâmicas com a organização do trabalho pode motivar as pes-soas a apresentarem soluções criativas para seus problemas, de modo a não deixar que os trabalhos oferecidos pela escola sejam inter-rompidos. Assim, as pessoas presentes no contexto escolar, a cada dia que passa, au-mentam seu potencial criativo ao se envolver com a escola e ao traçar metas para alcançar seus objetivos.

“Os objetivos não têm de ser exata-mente os mesmos para todos os estu-dantes. Os alunos são antes de tudo pes-soas diferentes, com níveis diversifica-dos de desenvolvimento motivacional e intelectual e diferentes áreas de interes-ses específicos. Dentro do possível, pre-cisamos trabalhar com estas diferenças,

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contribuindo para que cada um se de-senvolva o máximo.” (Mitjáns Martí-nez, 2003: 166)

Dessa forma, é importante trabalhar com as diferenças como forma de surgimento de diferentes atos criativos, cada um, em sua especificidade, desenvolve suas habilidades criativas e contribui para a escola de maneiras diferentes. E para que esse contexto favorável ao desenvolvimento da criatividade ocorra, é necessário estar sempre:

“Incentivando a curiosidade, propondo desafios inovadores e interessantes, re-forçando uma auto-estima positiva, permitindo o erro, promovendo um am-biente de conforto emocional e de tole-rância para com o fracasso e as frustra-ções.” (Virgolim, 1998: 24)

Nessa perspectiva, uma instituição e-

ducacional que valoriza cada pessoa envol-vida em seu contexto tem possibilidades de oferecer uma educação de qualidade e incen-tivar a criatividade, o que irá proporcionar a formação de cidadãos conscientes de sua res-ponsabilidade social. Assim, a escola pode direcionar “seu olhar para o futuro, exerci-tando a imaginação e a fantasia de seus alunos na tentativa de solucionar problemas e/ou si-tuações que novos tempos sempre trazem” (Virgolim, 1998: 25).

Contudo, devemos considerar também que o “desenvolvimento da criatividade na educação passa necessariamente pelo nível da criatividade dos profissionais que nele se en-contram.” (Alencar e Mitjáns Martínez, 1998: 31) Contribuir para o desenvolvimento da cri-atividade dos educandos supõe atitudes dos educadores que implicam certo grau de criati-vidade, no entanto, muitos educadores “não se sentem preparados para lidar com o desenvol-vimento da Criatividade em sala de aula; têm dificuldades em diagnosticar atitudes criati-vas, em avaliá-las e em promovê-las” (Giglio, 1992: 94).

Por outro lado, também ouvimos mui-to que o “bom educador” é aquele que usa a criatividade, o carisma e ministra uma aula

show, conseguindo conquistar todos os seus educandos. Se valorizarmos apenas a criativi-dade “inata” desse educador, acreditamos que uma docência de qualidade se baseia em ta-lentos capazes de seduzir os educandos, signi-fica desprezarmos o valor de uma formação profissional e de recursos voltados para o a-primoramento da prática pedagógica, des-valorizamos, assim, uma educação pautada na formação crítica, na construção do conheci-mento, no estabelecimento de relações dialó-gicas e nos diversos recursos onde estão pre-sentes os diferentes olhares, os diferentes dis-cursos.

O que caracteriza um professor com-prometido com o desenvolvimento da criati-vidade dos educandos não é o seu conheci-mento dos métodos, mas a crença que sus-tenta sobre os estudantes e sobre si mesmo, pois:

“O professor criativo é capaz de trans-mitir e extrair de seus estudantes vivên-cias emocionais positivas em relação à sua matéria, ao processo de aprendiza-gem e às realizações produtivas.” (Mit-jáns Martínez, 2003: 185)

Quando o professor desenvolve sua

prática pedagógica de forma lúdica que esti-mule o processo criativo, o ensino-aprendiza-gem se torna mais fácil, privilegiando a cons-trução de conhecimentos.

6. Considerações finais

No contexto contemporâneo em que a

sociedade se caracteriza pela globalidade e pela complexidade das dinâmicas relacionais, se faz necessário que a escola possa desen-volver o potencial criativo dos educandos. Propiciar ambientes de diálogo entre educado-res de diferentes instituições, maximizando possibilidades de compartilhamento de suas experiências, configura-se numa ferramenta para o desenvolvimento do pensamento cria-tivo.

Assim, propõe-se que a escola es-force-se para cumprir seu papel de “fornecer experiências novas, instigantes, que desper-

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tem a curiosidade” dos educandos, e também dos professores para que estes, em conjunto, possam buscar “soluções originais para os problemas que estão emergindo em decorrên-cia das exigências da modernização dos tem-pos” (Matos, 2005: 03).

O hipertexto, com sua lógica labirín-tica, é uma alternativa às práticas educativas autoritárias, oferece oportunidades de desen-volvimento de atividades criativas a serem trabalhadas nas salas de aula dos mais dife-rentes lugares, transformando-as em ambien-tes potencializadores do diálogo e do com-partilhamento de experiências, que subsidiem a criação de mudanças significativas para o desenvolvimento de processos de aprendiza-gem sistemicamente mais criativos.

“A solução inovadora de problemas, a capacidade de problematizar a informa-ção recebida, as perguntas interessantes, a elaboração própria do conhecimento, a curiosidade, o estabelecimento de re-lações, às vezes remotas mas pertinen-tes, são formas de expressão da criativi-dade no processo de apropriação de co-nhecimentos que devem e podem ser es-timulados no contexto escolar. As atitu-des e as ações criativas no processo de produção de conhecimento constituem a base para a capacidade de aprender a aprender, tão valorizada hoje como competência profissional e con-sequentemente como um objetivo edu-cativo importante.” (Mitjáns Martínez, 2002: 192)

Criar é estabelecer novas coerências,

suscitar novos significados, fazer novos rela-cionamentos, compreender em termos novos, é uma aventura em busca de saídas originais, desbravar novos caminhos, assim, o ato cria-tivo esta diretamente ligado à capacidade de compreensão dos sujeitos, à capacidade de relacionar, de configurar, de significar. O e-ducador, para mobilizar seus educandos a se tornarem pessoas mais criativas, pode utilizar uma metodologia mais aberta, flexível, con-textualizada, desafiadora, heterogênea, poli-

fônica, de modo a favorecer o processo cria-tivo e a geração de produtos criativos.

“A ação criativa do professor em sala de aula demanda não só sua capacidade de elaborar atividades inovadoras que permitam a atingir os objetivos educati-vos de forma mais eficiente, mas tam-bém demanda habilidades comunicati-vas que lhe permitam criar um espaço comunicativo que se constitua no es-paço onde as atividades podem fazer sentido para o desenvolvimento da cria-tividade.” (Mitjáns Martínez, 2002: 189)

7. Referências bibliográficas

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Notas (1) Nesse estudo, o hipertexto é adotado como sendo uma estratégia de construção do conhecimento, uma vez que, “a hipertextualidade materializa um novo modo de produção intelectual humana, evocando as características multidimen-sionais presentes nas estruturas de dinâmica em rede” (Chaves Filho, 2003: 40). (2) “O dialogismo é, para Bakhtin, um termo usado para designar a negociação de significados socialmente construídos pela interação de vozes múltiplas, caracteriza-se pelo agrupamento de pessoas, permeados por experiências comparti-lhadas ou interesses, onde a construção de significados de dá por um processo contínuo de comunicação, interpretação e negociação.” (Chaves Filho, 2003: 44) (3) Bakhtin (1981: 32) caracteriza como polifonia a “multiplicidade de vozes e consciências independentes e distintas que representam pontos de vista sobre o mundo”. (4) A multilinearidade possibilita a criação de um espaço para o exercício da autonomia do leitor, que realiza seu traba-lho de significação a partir das escolhas que faz nesse ambiente, intervindo, não apenas na seleção de caminhos, mas, também, ou, principalmente, na construção de sentido. (5) “A intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo.” (Barros, 1994: 30) (6) A comunicação entre os sujeitos que caminham pela rede é fator estruturante. (7) Na metáfora do labirinto como conhecimento, assim como na rede hipertextual, tudo é considerado texto, é uma rede na qual há a conexão dos diferentes saberes. (8) Essa multiplicidade é uma conseqüência da heterogeneidade das redes, possibilidade de interação com diferentes linguagens e múltiplas vozes, é a própria essência do dialogismo. A heterogeneidade é expressa pela inclusão de ele-mentos diferenciados, por vezes conflitantes, num mesmo espaço, exigindo do leitor um desenvolvimento apurado do olhar, de modo a considerar as diferenças, e não as igualdades.

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Construindo mapas conceituais

Constructing concept maps

Romero Tavares

Departamento de Física, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil

Resumo O mapa conceitual é uma estrutura esquemática para representar um conjunto de conceitos imersos numa rede de proposições. Ele é considerado como um estruturador do conhecimento, na medida em que permite mostrar como o conhecimento sobre determinado assunto está organizado na estrutura cognitiva de seu autor, que assim pode visualizar e analisar a sua profundidade e a extensão. Ele pode ser entendido como uma representação visual utilizada para partilhar significados, pois explicita como o autor entende as relações entre os conceitos enunciados. O mapa conceitual se apóia fortemente na teoria da aprendizagem significativa de David Ausubel, que menciona que o ser humano organiza o seu conhecimento através de uma hierarquização dos conceitos. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 72-85. Palavras-chave: aprendizagem significativa; construção de significados; estrutura cognitiva; hierarquia de conceitos. Abstract A concept map is a schematic framework that represents a group of concepts immersed in a web of propositions. It is considered as a structure maker of knowledge, as it permits to show how knowledge about a topic is organized in the cognitive structure of his author, that can visualize and analyze its deep and extension. It can be seen as a visual representation used to share meanings, because it makes evident how the author understands the relations among the mentioned concepts. The concept map is strongly supported theoretically by the meaningful theory of David Ausubel that says the hu-man being organize their knowledge in a hierarchical way. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 72-85. Key Words: meaningful learning; construction of meanings; cognitive structure; hi-erarchy of concepts.

1. Introdução

O construtivismo tem diversas verten-

tes, mas todas concordam em considerar a

aprendizagem como um processo no qual o aprendiz relaciona a informação que lhe é a-presentada com seu conhecimento prévio so-bre esse tema. A história da construção do

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 13/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- R. Tavares é Bacharel em Física (UFPE), Mestre em Astronomia (Universidade de São Paulo, USP) e Doutor em Física (USP). Atualmente é Professor Associado I do Departamento de Física (UFPB) e atua na Área de Educação no PPGE/CE/UFPB, com projetos sobre “Aprendizagem significativa e o ensino de Ciências”; “Codificação dual, esforço cognitivo e aprendizagem multimídia”; “Mapa conceitual como estruturador do conhecimento”. Página pessoal: http://www.fisica.ufpb.br/~romero/.

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conhecimento pessoal é a história da vida de cada um de nós, pois construímos esse conhe-cimento de uma maneira específica e indivi-dual. A construção do conceito sobre um ob-jeto de uso corriqueiro, como cadeira, tem características comuns a todos nós, tais como a sua forma e funcionalidade. Mas existe algo de específico na maneira que cada um de nós vê uma cadeira, que reflete a forma idiossin-crática que construímos esse conceito. Cada um de nós foi apresentado a uma cadeira e foi construindo esse conceito de maneira absolu-tamente pessoal. Essa forma idiossincrática foi sendo definida com as condições que en-contramos ao nascer e viver as primeiras ex-periências, o estilo de vida e as oportunidades de vivências que nos foram oferecidos.

Numa frase que ficou famosa, Ausub-el mencionou que se tivesse que reduzir toda a Psicologia Educacional a um único princí-pio, diria isto:

“O fator isolado mais importante que influencia a aprendizagem é aquilo que o aprendiz já conhece. Descubra o que ele sabe e baseie nisso os seus ensina-mentos.” (Ausubel et al., 1980)

Segundo David Ausubel o ser humano

constrói significados de maneira mais eficien-te quando considera inicialmente a aprendiza-gem das questões mais gerais e inclusivas de um tema, ao invés de trabalhar inicialmente com as questões mais específicas desse assun-to:

“Quando se programa a matéria a ser lecionada de acordo com o princípio de diferenciação progressiva, apresentam-se, em primeiro lugar, as idéias mais ge-rais e inclusivas da disciplina e, depois, estas são progressivamente diferencia-das em termos de pormenor e de especi-ficidade. Esta ordem de apresentação corresponde, presumivelmente, à se-qüência natural de aquisição de consci-ência cognitiva e de sofisticação, quan-do os seres humanos estão expostos, de forma espontânea, quer a uma área de conhecimentos completamente desco-

nhecida, quer a um ramo desconhecido de um conjunto de conhecimentos fami-liar. Também corresponde à forma pos-tulada, através da qual se representam, organizam e armazenam estes conheci-mentos nas estruturas cognitivas huma-nas.

Por outras palavras, elaboram-se aqui dois pressupostos:

(1) é menos difícil para os seres huma-nos apreenderem os aspectos diferenci-ados de um todo, anteriormente apreen-dido e mais inclusivo, do que formular o todo inclusivo a partir das partes dife-renciadas anteriormente aprendidas; (2) a organização que o indivíduo faz do conteúdo de uma determinada disciplina no próprio intelecto consiste numa es-trutura hierárquica, onde as idéias mais inclusivas ocupam uma posição no vér-tice da estrutura e subsumem, progres-sivamente, as proposições, conceitos e dados factuais menos inclusivos e mais diferenciados.” (Ausubel, 2003: 166)

A construção de mapas conceituais na

maneira proposta por Novak e Gowin (Novak, 1998; Novak e Gowin, 1999) considera uma estruturação hierárquica dos conceitos que serão apresentados tanto através de uma dife-renciação progressiva quanto de uma reconci-liação integrativa. A figura 1 mostra um mapa conceitual que apresenta tanto a diferenciação progressiva quanto a reconciliação integrati-va. Esses mapas hierárquicos se estruturam de acordo com a Teoria da Aprendizagem Signi-ficativa de David Ausubel, e desse modo con-tribuem, de maneira mais eficiente, para a construção do conhecimento do aprendiz.

Na diferenciação progressiva um de-terminado conceito é desdobrado em outros conceitos que estão contidos (em parte ou in-tegralmente) em si. Por exemplo, na figura1, o conceito Processos engloba os conceitos Avaliação da aprendizagem e Construção do conhecimento, e essa espécie de bifurca-ção configura uma diferenciação progressiva; estaremos indo de conceitos mais globais para conceitos menos inclusivos.

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Figura 1 – Mapa conceitual sobre uma disciplina de Física. Na reconciliação integrativa um de-

terminado conceito é relacionado a outro apa-rentemente díspar. Um mapa conceitual hie-rárquico se ramifica em diversos ramos de uma raiz central. Na reconciliação integrativa um conceito de um ramo da raiz é relacionado a um outro conceito de outro ramo da raiz, propiciando uma reconciliação, uma conexão entre conceitos que não era claramente per-ceptível. No mapa conceitual da figura 1 estão apresentadas duas situações com reconcilia-ção integrativa, e as conexões estão apresen-tadas num tracejado em negrito. Essas liga-ções cruzadas podem indicar capacidade cria-tiva (Novak e Gowin, 1999: 52) na percepção de um elo conceitual entre dois segmentos de um mapa.

O mapa conceitual hierárquico se co-loca como um instrumento adequado para es-truturar o conhecimento que está sendo cons-truído pelo aprendiz, assim como uma forma de explicitar o conhecimento de um especia-lista. Ele é adequado como instrumento facili-tador da meta-aprendizagem, possibilitando uma oportunidade do estudante aprender a aprender, mas também é conveniente para um

especialista tornar mais clara as conexões que ele percebe entre os conceitos sobre determi-nado tema.

Quando um aprendiz utiliza o mapa durante o seu processo de aprendizagem de determinado tema, vai ficando claro para si as suas dificuldades de entendimento desse te-ma. Um aprendiz não tem muita clareza sobre quais são os conceitos relevantes de determi-nado tema, e ainda mais, quais as relações sobre esses conceitos. Ao perceber com clare-za e especificidade essas lacunas, ele poderá voltar a procurar subsídios (livro ou outro ma-terial instrucional) sobre suas dúvidas, e daí voltar para a construção de seu mapa. Esse ir e vir entre a construção do mapa e a procura de respostas para suas dúvidas irá facilitar a construção de significados sobre conteúdo que está sendo estudado. O aluno que desen-volver essa habilidade de construir seu mapa conceitual enquanto estuda determinado as-sunto, está se tornando capaz de encontrar autonomamente o seu caminho no processo de aprendizagem. Caso ele não consiga en-contrar as respostas nas consultas ao material instrucional, ele ainda assim terá conseguido

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ter clareza sobre as suas perguntas, e desse modo já terá encaminhado a sua aprendiza-gem de maneira conveniente e segura. Pois quando se tem clareza das perguntas, ou das dúvidas, é mais fácil procurar ajuda de pesso-as mais experientes.

Normalmente, a aprendizagem por re-cepção significativa ocorre à medida que o material de instrução potencialmente signifi-cativo entra no campo cognitivo do aprendiz, interage com o mesmo e é ancorado, de forma adequada, a um sistema conceitual relevante e mais inclusivo. (Ausubel, 2003: 60). Esse ir e vir entre o material instrucional e a construção do mapa conceitual, colocado anteriormente, possibilita uma elaboração eficaz dos signifi-cados sobre um tema. Caso não existam con-ceitos âncora adequados na estrutura cogniti-va, esse ir e vir será uma oportunidade da consecução dessa tarefa, na medida em que são elucidadas as lacunas conceituais sobre o assunto.

Embora os mapas conceituais possam transmitir informações factuais tão bem quan-to os textos, esses organizadores gráficos são mais efetivos que os textos para ajudar os lei-tores a construir inferências complexas e inte-grar as informações que eles fornecem (Veki-ri, 2002: 287). Eles também têm o potencial de melhorar a acessibilidade e usabilidade materiais durante uma pesquisa na medida que apresentam marcas visuais-espaciais que podem guiar uma seleção ou categorização. Existe a comprovação empírica sobre a efici-ência de buscas, onde se comprova a que os interessados localizam mais informações quando elas são apresentadas em formas de mapas ao invés de textos (O´Donnel, 1993: 222).

2. Alguns tipos de mapas

Existe uma grande variedade de tipos

mapas disponíveis, que foram imaginados e construídos pelas mais diversas razões. Al-guns são preferidos pela facilidade de elabo-ração (tipo aranha), pela clareza que explicita processos (tipo fluxograma), pela ênfase no produto que descreve, ou pela hierarquia con-ceitual que apresenta.

Quando se deseja otimizar um deter-minado processo, a utilização do mapa tipo fluxograma é a representação mais adequada. Esse tipo de mapa deixa claro quais são as confluências e as possíveis opções a serem escolhidas. Ele ainda é extremamente utiliza-do na elaboração de programas de computa-dor, quando se deseja construir um algoritmo eficiente para determinada função.

No entanto, o único tipo de mapa que explicitamente utiliza uma teoria cognitiva em sua elaboração é o mapa hierárquico do tipo proposto por Novak e Gowin (1999).

2.1. Mapa conceitual do tipo teia de aranha (figura 2)

Ele é organizado colocando-se o con-ceito central (ou gerador) no meio do mapa. Os demais conceitos vão se irradiando na me-dida que nos afastamos do centro. Vantagens: Fácil de estruturar, pois todas as informações estão unificadas em torno de um ou vários temas centrais. O foco principal é a irradiação das relações conceituais, sem preo-cupação com as relações hierárquicas, ou transversais.

Desvantagens: Dificuldade em mostrar as relações entre os conceitos, e desse modo permitir a percepção de uma integração entre as informações. Não fica clara a opinião do autor sobre a importância relativa entre os vá-rios conceitos e o conceito central.

2.2. Mapa conceitual tipo fluxograma (fi-gura 3)

Ele organiza a informação de uma maneira linear. Ele é utilizado para mostrar passo a passo determinado procedimento, e normalmente inclui um ponto inicial e outro ponto final. Um fluxograma é normalmente usado para melhorar a performance de um procedimento. Vantagens: Fácil de ler; as informações estão organizadas de uma maneira lógica e seqüen-cial.

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Desvantagens: Ausência de pensamento crí-tico, normalmente é incompleto na exposição do tema. Ele é construído para explicitar um

processo, sem a preocupação de explicar de-terminado tema; na sua gênese não pretende facilitar a compreensão do processo, mas oti-mizar a sua execução.

Figura 2 – Mapa conceitual do tipo TEIA de ARANHA.

2.3. Mapa conceitual tipo sistema: entrada e saída (figura 4)

Organiza a informação num formato que é semelhante ao fluxograma, mas com o acréscimo da imposição das possibilidades “entrada” e “saída”.

Vantagens: Mostra várias relações entre os conceitos.

Desvantagens: Alguma vezes é difícil de se ler devido ao grande número de relações entre os conceitos. Na sua gênese pretende explicar a transformação de insumos em produto aca-bado. É adequado para explicar processos que impliquem em entrada e saída.

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Figura 4 – Mapa conceitual do tipo ENTRADA e SAÍDA (mapa acessado em 19/7/2007, no ende-reço eletrônico: http://classes.aces.uiuc.edu/ACES100/Mind/graphics/food-map.gif).

Figura 3 – Mapa conceitual do tipo FLUXOGRAMA.

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2.4. Mapa conceitual hierárquico (figura 5)

A informação é apresentada numa or-

dem descendente de importância. A informa-ção mais importante (inclusiva) é colocada na parte superior. Um mapa hierárquico é usado para nos dizer algo sobre um procedimento.

Vantagens: Os conceitos mais inclusivos es-tão explícitos; os conceitos auxiliares e menos inclusivos estão inter-relacionados. Estrutura o conhecimento de maneira mais adequada a compreensão humana, considerando em posi-ção de destaque os conceitos mais inclusivos.

Desvantagens: Mais difícil de externar e construir, visto que expõe a estrutura cogniti-va do autor sobre o assunto. A clareza do au-tor sobre o tema fica evidente quando da sua construção. A sua construção sempre repre-senta um desafio, visto que explicita (princi-palmente para si) a profundidade do conheci-mento do autor sobre o tema do mapa. 3. Construindo um mapa

Considerando mapas onde os concei-

tos estão de acordo com o que é aceito pela comunidade científica sobre determinado te-ma, não existe um mapa certo ou mapa erra-do. Existem mapas com uma demonstração de grande conhecimento sobre as possíveis rela-ções entre os conceitos mostrados. Dois gran-des especialistas sobre um assunto dificilmen-te construirão mapas iguais. Talvez eles con-cordem em linhas gerais sobre quais são os conceitos mais importantes, mas dificilmente eles escolherão as mesmas relações entre es-ses conceitos. Dois especialistas não contesta-rão os respectivos mapas, visto que esses tra-

balhos serão expressões pessoais que cada um tem sobre o tema.

Novak mostra o mapa conceitual feito por um aluno do ensino fundamental, conside-rando uma lista de conceitos que lhe foi apre-sentada (ver Figura 7). Esse aluno era o me-lhor leitor em voz alta da sua turma, mas mos-trou pouca compreensão a respeito do que lia. O seu mapa sugere uma abordagem de cor à leitura, que não conduziu à aquisição de signi-ficados (Novak e Gowin, 1999: 124). Nós consideramos esse mapa como um MAU ma-pa, e em contraposição, estamos apresentando um BOM mapa.

Um BOM (figura 6) mapa começa com uma boa seleção de conceitos relaciona-dos ao tema principal. Cada conceito pode estar relacionado a mais de um outro concei-to. A existência de grande número de cone-xões entre os conceitos revela a familiaridade do autor com o tema considerado. Mesmo que ele não tenha feito a escolha dos conceitos a serem mapeados, ele conseguirá perceber as relações entre eles se tiver algum domínio so-bre o tema.

Podemos exercitar as habilidades dos alunos na construção de mapas fornecendo seis ou oito conceitos chave que sejam fun-damentais para compreender um tema que se quer cobrir, e pedir aos estudantes que elabo-rem um mapa conceitual que relacione tais conceitos, e que acrescentem conceitos adi-cionais relevantes e os ligues de modo a for-marem proposições que tenha sentido (Novak e Gowin, 1999: 56).

Um MAU mapa (figura 7) conceitual faz uma conexão linear entre os conceitos. Ele evidencia que seu autor não visualiza outras conexões, outras possibilidades de entendi-mento da questão (Novak e Gowin, 1999: 124).

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Figura 6 – Um bom mapa conceitual.

Figura 5 – Mapa conceitual do tipo HIERÁRQUICO.

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Figura 7 – Um mau mapa conceitual. 4. Mapa como estruturador do conheci-mento

Existem diversas aplicações em Edu-

cação dos Mapas Conceituais (Novak e Go-win, 1999: 56), onde poderemos exemplificar algumas:

• Exploração do que os alunos já sabem – Na

figura 8, o então estudante de Mestrado, demonstra suas idéias sobre determinado tema.

• O traçado de um roteiro para a aprendiza-gem – Quando um professor fornece uma lista de conceitos sobre determinado tema, e sugere que seus alunos façam um mapa conceitual ele estará traçando um roteiro para a aprendizagem, estará indicando um caminho que funciona como um andaime cognitivo; facilita ao estudante chegar aon-de não conseguiria ir sozinho. Com a sua ajuda ou de materiais instrucionais, os alu-nos irão se debruçar sobre a tarefa, com a

percepção clara do estágio cognitivo em que se encontram. A possível dificuldade inicial em traçar um mapa com os conceitos fornecidos pelo mestre será um indício cla-ro do estágio de conhecimento em que eles se encontram. Ao se dirigirem para os ma-teriais instrucionais (ou ao mestre) eles po-derão ir construindo significados e desse modo enriquecer o mapa inicial. Se a opção da estratégia for construir um mapa colabo-rativo, os estudantes terão a oportunidade de entrar em contato com as semelhanças e diferenças entre seus valores (e conceitos) e aqueles de seus colegas; percebendo desse modo que o conhecimento é idiossincráti-co. Nesse ir e vir, construindo um mapa e buscando novos conhecimentos, o estudan-te está elaborando as suas habilidades em construir seu próprio conhecimento, está aumentando a sua destreza na meta-aprendizagem.

• Leitura de artigos em jornais e revistas, ou a extração de significados de livros de texto

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– Na figura 9, temos um mapa conceitual sobre um artigo científico sobre esforço cognitivo.

• Preparação de trabalhos escritos ou de ex-posições orais - Na Figura 5 nós temos um exemplo de mapa hierárquico conveniente para mostrar a estruturação conceitual de uma Dissertação de Mestrado, e que foi uti-lizado quando da apresentação dessa Dis-sertação. Esse tipo de estratégia facilita o acompanhamento do desenvolvimento das teorias, modelos, conceitos e idéias que fa-zem parte de determinado trabalho.

• Avaliação formativa – na medida em que ele explicita o estágio da aprendizagem em que se encontra um estudante, o mapa se apresenta como uma radiografia da estrutu-ra cognitiva do aprendiz. Desse modo pos-sibilita ao professor encaminhar o estudante para processos cognitivos adequados a sua situação.

Quando os alunos aprendem determi-

nado tema utilizando mapas conceituais, eles desenvolvem seu próprio entendimento atra-vés da internalização da informação. Por ou-tro lado, quando os estudantes constroem seu próprio mapa conceitual, eles necessitam de-senvolver inicialmente uma compreensão so-bre os conceitos que estão estudando, antes de poder representar seu conhecimento através de um mapa pessoal (Vekiri, 2002: 266). Uti-lizar um mapa construído por uma especialis-ta e construir seu próprio mapa são duas ver-tentes da utilidade dos mapas no processo en-sino/aprendizagem.

Eventualmente nos deparamos com a situação de construir um mapa sobre um tema amplo, e com a possibilidade de construir

uma rede de conceitos extremamente densa. Uma solução adotada é o desdobramento de um mapa mais inclusivo em diversos mapas mais específicos. Na figura 10 um mapa con-ceitual delineia as possibilidades de desenvol-vimento do ser humano ao longo de sua vida. Na figura 11, um mapa conceitual apresenta uma rede de conceitos Sobre o desenvolvi-mento cognitivo durante a infância, segundo duas correntes teóricas.

A função mais importante da escola é dotar o ser humano de uma capacidade de es-truturar internamente a informação e trans-formá-la em conhecimento. A escola deve propiciar o acesso à meta-aprendizagem, o saber aprender a aprender. Nesse sentido, o mapa conceitual é uma estratégia facilitadora da tarefa de aprender a aprender. A meta-aprendizagem torna possível ao estudante a compreensão da estrutura de determinado as-sunto. Aprender a estrutura de uma disciplina é compreendê-la de um modo que permita que muitas outras coisas com ela significativa-mente se relacionem. Por outras palavras, co-nhecer uma estrutura é saber como as coisas se ligam entre si. O ensino e a aprendizagem da estrutura, ao contrário do simples domínio dos fatos e técnicas, são o centro do clássico problema de transferência. O que importa não é a transferência de uma habilidade mas de uma noção, que pode ser usada como base para reconhecer problemas subseqüentes, co-mo casos especiais da idéia inicialmente do-minada. Esse tipo de transferência encontra-se no centro do processo educacional – o contí-nuo alargamento e aprofundamento do conhe-cimento, em termos de idéias básicas e gerais (Bruner, 1966).

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Figura 8 – Mapa conceitual de um aluno sobre modelos.

Figura 9 – Mapa conceitual sobre artigo científico.

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Figura 10 – Desdobramento de um mapa - Desenvolvimento do ser humano (mapa acessado em 19/7/2007, no endereço eletrônico: http://cmapspublic3.ihmc.us/servlet/SBRead Resour-ceServlet? rid=1040074302312 _73323607_11802&partName=htmltext).

Figura 11 – Desdobramento de um mapa – desenvolvimento cognitivo na infância (mapa acessado em 19/7/2007, no endereço eletrônico: http://cmapspublic3.ihmc.us/servlet/SBRead ResourceServlet ?rid=1040074302718_1361810910 11833&partName=htmltext).

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5. Mapa conceitual, codificação dual e a-prendizagem multimídia

Considera-se que uma representação

gráfica é mais efetiva que um texto para a comunicação de conteúdos complexos porque o processamento mental das imagens pode ser menos exigente cognitivamente que o proces-samento verbal de um texto (Vekiri, 2002: 262).

O mapa conceitual é uma estrutura es-quemática para representar um conjunto de conceitos imersos numa rede de proposições. Ele pode ser entendido como uma represen-tação visual utilizada para partilhar significa-dos.

A teoria da codificação dual de Allan Paivio (1991) indica que existem dois subsis-temas cognitivos; um especializado em obje-tos e/ou eventos não verbais (i.e. imagético), e o outro especializado em lidar com a lingua-gem (i.e. verbal). Imagens e palavras são có-digos diferentes, mas inter-relacionados. Eles podem ser ativados independentemente, mas quando interconectados, as informações são codificadas de modo dual. A informação quando é oferecida de maneira interconectada verbal e visualmente, facilita a construção de conexões, relações e entendimento na estrutu-ra cognitiva; e desse modo facilita o resgate desta informação que usa a codificação dual.

Uma apresentação multimídia consiste numa apresentação visual e verbal, e se fun-damenta inicialmente na codificação dual. Em contraste podemos comparar uma apresen-tação multimídia com aquela que consiste u-nicamente de uma mensagem verbal (Mayer, 2001: 187).

A informação visual tem a vantagem de ser organizada de uma maneira síncrona, que permite a muitas partes de uma imagem mental estar disponível para um processamen-to simultâneo. Quando informações visuais e verbais são apresentadas contiguamente no tempo e espaço, é possibilitado ao aprendiz formar associações entre esses materiais visu-ais e verbais durante a codificação mental. Essa potencialidade pode aumentar o número de caminhos que o aprendiz pode utilizar para resgatar essa informação, porque um estímulo

verbal (ou visual) pode ativar as representa-ções verbal e visual (Vekiri, 2002: 267).

O mapa conceitual apresenta a informação através de uma rede hierárquica, e desse mo-do oferece essa informação utilizando ima-gens, apreendidas pelo sistema visual. Por outro lado, cada conceito é definido através de palavras, e essa informação é apreendida usando o canal verbal. Desse modo, o mapa conceitual utiliza a um só tempo os dois sub-sistemas cognitivos. O caminho entre dois conceitos está claro e evidente visual e ver-balmente, deixando explícita e inequivo-camente a opinião do autor sobre essa cone-xão e sobre essa relação hierárquica. As pecu-liaridades de entendimento (dubiedade, exal-tação, etc.) são graficamente evidentes, facili-tando o debate, a compreensão clara das posi-ções pessoais, e a possibilidade de uma rees-truturação cooperativa do mapa conceitual. 6. Discussão

De maneira geral um mapa conceitual

torna mais fácil a percepção e compreensão de eventos por diversos motivos, por exem-plo, existe uma grande proximidade entre a memória visual e as imagens que são apresen-tadas, e devido as suas propriedades visuais-espaciais, seu processamento requer um nú-mero menos de transformações cognitivas que o processamento de um texto, e desse modo não excede as limitações da memória de curto prazo (Vekiri, 2002: 281). Em outro exemplo, um mapa geográfico (assim como outros tipos de mapas) apresenta uma seleção de facetas gráficas, enquanto uma fotografia aérea apre-senta todas as características visuais possíveis de serem captadas por uma câmera, e desse modo revela apenas algumas nuances da rea-lidade, e com essa diminuição do esforço cognitivo poder facilitar o entendimento des-sas especificidades. Em um mapa nós enfati-zamos as características relevantes aos nossos propósitos; por exemplo, num estudo hidroló-gico de determinado local pode ser conveni-ente apresentar apenas os rios dessa região. Noutro estudo mais detalhado pode ser con-veniente representar além dos rios, as caracte-rísticas topográficas e as matas.

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No processo de representar e organizar o conhecimento do autor sobre um tema, o mapa conceitual transforma em concreto o que antes era abstrato. A principal distinção entre itens abstratos e factuais é em termos de nível de particularidade ou de proximidade com experiências empíricas concretas. Ge-ralmente, também se caracteriza o material abstrato por uma maior conexão ou menor discrição do que o material factual. (Ausubel, 2003: 116). E assim, temas que antes estavam afastados da realidade do autor, ganham rela-ções com seus significados prévios.

Um mapa conceitual apresenta uma visão idiossincrática do autor sobre a realida-de a que se refere. Quando um especialista constrói um mapa ele expressa a sua visão madura e profunda sobre um tema. Por outro lado, quando um aprendiz constrói o seu ma-pa conceitual ele desenvolve e exercita a sua capacidade de perceber as generalidades e peculiaridades do tema escolhido. E nesse sentido pode construir uma hierarquia concei-tual, iniciando de características mais inclusi-vas para as mais específicas, tornando clara a diferenciação progressiva, um dos conceitos chaves da teoria de Ausubel. Ele também é instado a construir relações de significados entre conceitos aparentemente díspares, tor-nando clara a reconciliação progressiva, outro conceito chaves da teoria de Ausubel. Nesse sentido, o mapa conceitual se coloca como um facilitador da meta-aprendizagem, ao faci-litar que o aprendiz adquira a habilidade ne-cessária para construir seus próprios conhe-cimentos. 7. Referências bibliográficas Ausubel, D.P. (2003). Aquisição e Retenção de Conhecimentos: Uma Perspectiva Cogniti-va. Lisboa: Plátano Edições Técnicas.

Ausubel, D.P.; Novak, J.D. e Hanesian, H. (1980). Psicologia Educacional. Rio de Janei-ro: Editora Interamericana. Bruner, J. (1966). Toward a theory of instruc-tion. New York: W.W. Norton and Company. Krischner, P.A. (2002). Cognitive load theory. Learning and Instruction, 12, 1 . Mayer, R. (2001). Multimedia Learning. Cambridge: University Press. Novak, J.D. (1998). Conocimiento e Aprendi-zaje: Los mapas conceptuales como herra-mientas facilitadoras para escuelas y empre-sas. Madrid: Editorial Alianza. Novak, J.D. e Gowin, D. B. (1999) Aprender a aprender. Lisboa: Plátano Edições Técni-cas. Novak, J.D.; Mintzes, J.J. e Wandersee, J.H. (Ed.) (2000). Ensinando ciência para a com-preensão: Uma visão construtivista. Lisboa: Plátano Edições Técnicas. O´Donnel, A. (1993). Searching for informa-tion in knowledge maps and texts. Contempo-rary Ed. Psychol., 18, 222. Paivio, A. (1991). Dual coding theory: retro-spect and current status. Can. J. Psychol., 45, 255. Rodrigues, G.L. (2005). Animação interativa e construção dos conceitos da Física: tri-lhando novas veredas pedagógicas - Disserta-ção de Mestrado – PPGE/UFPB. Silva, J.T. (2006). A representação Social do Pombo no meio urbano - Dissertação de Mes-trado – PRODEMA - UFPB – João Pessoa. Tavares, R. (2007). Ambiente colaborativo on-line e a aprendizagem significativa de Fí-sica 13º CIED - Congresso Internacional ABED de Educação a Distância – Curitiba. Vekiri, I. (2002). What Is the Value of Graphical Displays in Learning? Ed. Psychol. Rev., 14, 261.

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Mapas conceituais: estratégia pedagógica para construção de concei-tos na disciplina química orgânica

Conceptual maps: pedagogical strategy for construction of concepts in disciplines organic chemis-

try

João Rufino de Freitas Filho

Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Garanhuns (UAG), Garanhuns, Pernambuco, Brasil

Resumo Mapas conceituais são propostos como uma estratégia potencialmente facilitadora de uma aprendiza-gem significativa. Este artigo retrata a pesquisa realizada em três turmas do Ensino Superior, na qual se verificou a interferência positiva do uso de mapas conceituais como estratégia motivadora no ensi-no de conceitos Química Orgânica. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 86-95. Palavras-chave: mapas conceituais; conceitos; aprendizagem significativa. Abstract Conceptual maps are proposed as a strategy potentially useful to facilitate meaningful learning. This paper reports a research carried through three groups of undergraduate students, in which could be observed a positive interference with the use of conceptual maps as a motivational strategy in the or-ganic chemical teaching. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 86-95. Key Words: concept maps; concept; meaningful learning.

1. Introdução

Todo embasamento teórico relaciona-do ao uso de mapas conceituais está baseada na Teoria de Aprendizagem ou Teoria de As-similação, de David Ausubel (1968). A teoria explica como o conhecimento é adquirido e em que forma este fica armazenado na estru-tura cognitiva do estudante. Segundo Ausubel (1982), o indivíduo constrói significado a par-tir de um acerto conceitual entre o conceito

apresentado e o conhecimento prévio além é claro, de sua predisposição para realizar essa construção. Sua teoria da aprendizagem signi-ficativa tem como base o princípio de que o armazenamento de informações ocorre a par-tir da organização dos conceitos e suas rela-ções, hierarquicamente dos mais gerais para os mais específicos. Baseado nessa teoria, Novak (2002) desenvolveu a metodologia de Mapas Conceituais, procurando representar como o conhecimento é armazenado na estru-

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 03/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- J.R. Freitas Filho é Químico, Graduado em Licenciatura em Química, Mestre em Química Orgânica (UFPE), Doutor em Química Orgânica (UFPE), Pós-doutor em Química (Université Claude Bernard). Atua como Professor (UFRPE, UAG). Endereço para correspondência: Rua Lions Club, 199, Aluísio Pinto, Garanhuns, PE 50292-060. Te-lefones: (87) 3762-0438 ou (87) 9999-5855. E-mail para correspondência: [email protected].

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tura cognitiva de um estudante. A estrutura cognitiva pode ser descrita como um conjunto de conceitos, organizados de forma hierárqui-ca, que representam o conhecimento e as ex-periências adquiridas por um estudante. Con-ceito é um termo que representa uma série de objetos, eventos ou situações que possuem atributos comuns. Com o uso de mapas con-ceituais, o conhecimento pode ser exterioriza-do através da utilização de conceitos e pala-vras de ligação, formando proposições que mostram as relações existentes entre conceitos percebidos por um indivíduo (Araújo et al., 2002; Cañas et al., 2000), e representadas pe-lo tripé conceito – relação – conceito. Os mapas conceituais vêm sendo utilizados nas mais distintas áreas do conhecimento, tendo diferentes finalidades, como na aprendiza-gem, na avaliação, na organização e na repre-sentação de conhecimento. Para promover a aprendizagem significativa (Novak, 1997; Moreira, 1999) recomendam ao professor, como recurso didático, o uso de mapas con-ceituais com a finalidade de identificar signi-ficados (subsunçores) pré-existentes na estru-tura cognitiva do estudante que são necessá-rios à aprendizagem.

Muitas são as definições de mapa con-ceitual apresentadas, principalmente se anali-sarmos os trabalhos de autores como Ontoria e colaboradores (2004).

A utilização dos mapas conceituais, tem se apresentado como uma ferramenta de ação pedagógica bastante útil para o ensino de diversos temas, possibilitando que um conjun-to de conceitos seja apresentado aos alunos, a partir do estabelecimento de relações entre ele.

Em sua forma gráfica, os mapas con-ceituais podem ser construídos nos formatos unidimensional, bidimensional e tridimensio-nal. Os mapas unidimensionais são apenas alguns conceitos dispostos de forma vertical; os bidimensionais, além de apresentarem a disposição vertical, apresentam disposição horizontal, como na figura 1. Já os mapas tri-dimensionais apresentam os conceitos e suas relações em três dimensões. Por serem mais completos que os mapas unidimensionais e mais simples de serem interpretados que os

mapas tridimensionais, os mapas bidimensio-nais são os mais utilizados (Moreira e Buch-weitz, 1987).

Na prática, porém, por serem mais e-laborados que os unidimensionais e mais sim-ples que os tridimensionais, os mapas bidi-mensionais são os mais usados.

Neste trabalho, procurou-se incorporar os mapas conceituais como estratégia de ação pedagógica para abordagem do tema gerador: Alimentos nosso combustível e a partir deste os estudantes construírem os conceitos da química dos carboidratos, lipídios, aminoáci-dos e proteínas. Dessa forma, o mapa concei-tual se apresentou como uma possibilidade para a verificação e o acompanhamento da aprendizagem do aluno. 2. Metodologia

A metodologia deste trabalho consiste em avaliar a aprendizagem de conceitos traba-lhados nas aulas, com base nos elementos que definem a aprendizagem como significativa. O trabalho foi realizado com três turmas de graduação dos cursos de Agronomia, Medici-na Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Aca-dêmica de Garanhuns (PE), no período de março de 2005 a junho de 2007. Para realiza-ção do trabalho foram observadas várias eta-pas de execução.

A primeira etapa consistiu no plane-jamento das atividades que assim podem ser distribuídas:

a) Escolha do tema gerador a ser discutida na disciplina; b) Plano de atividades; c) Seleção dos materiais a serem utilizados.

A segunda etapa consistiu no desen-volvimento da atividade em sala de aula. Esta etapa foi dividida em vários momentos, a sa-ber: a) Levantamento das concepções prévias dos estudantes sobre a temática; b) Listagem de várias palavras soltas para os alunos construírem um mapa;

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c) Leitura do texto: Alimentos nossos com-bustível e construção de um novo mapa.

O primeiro momento despertou o inte-resse dos alunos em relação aos conhecimen-tos básicos da Química. Algumas atividades experimentais foram realizadas no laboratório da Universidade. Portanto, foi possível supe-rar o modelo de ensino transmissivo, onde só cabe ao aluno ouvir o discurso abstrato do professor e resolver uma série infindável de problemas padronizados que nada dizem so-bre as situações da vida cotidiana. Segundo Carvalho (1995):

“A didática habitual de resolução de problema costuma impulsionar a um operativismo abstrato, carente de signi-ficação, que pouco contribui para uma aprendizagem significativa.”

Em seguida foram explorados aspectos

da temática a partir de aulas expositivas com atividades experimentais demonstrativas, se-guidas de atividades experimentais realizadas por pequenos grupos de alunos no laboratório.

Após a construção dos mapas de con-ceitos realizada pelos alunos, foram formula-dos questões e problemas de forma não con-vencional – para evitar a reprodução mecani-cista dos conceitos - que exijam dos alunos a externalização, por meio de entrevistas nas próprias aulas, dos conceitos empregados nos mapas, e das relações entre os mesmos. 3. Resultados e discussão

Iniciou-se o trabalho fazendo um le-vantamento das concepções prévias dos estu-dantes, nesta etapa foram distribuídas pala-vras (alimentos, nutrientes, carboidratos, pro-teínas, lipídios, monossacarídeos, glicose, sa-carose, dissacarídeos, ácidos graxos, hidroli-se, amido, aminoácidos, ligação dentre outras) para os estudantes e solicitado que os mesmos elaborassem mapas conceituais. Os mapas conceituais da figura 1 e 2 foram construídos por estudantes dos cursos de Medicina Vete-rinária e Zootecnia.

O que chama a atenção nos mapas da figura 1 e 2 é o fato de substâncias está na parte inferior do mapa e não ter nenhuma re-lação com carboidratos (figura 1) e a amilo-pectina não ser considerado um carboidrato (figura 2). Também percebe alguns erros con-ceituais, por exemplo lactose ser classificado como um monossacarídeos.

O mapa de conceitos apresentado pe-los estudantes do curso de Agronomias no levantamento das concepções prévias foi me-nos elaborado, ou seja, partiu do mesmo con-ceito geral. Inclui menos conceitos, associan-do-os por vezes – alimentos/digestão /nutrientes, amido e oligossacarídeos – e não utilizando setas. Os mapas de conceitos apre-sentados pelos estudantes do curso de Veteri-nária e Zootecnia foi melhor elaborado, ape-sar de partir do mesmo conceito geral. Inclui menos conceitos, associando-os por vezes – alimentos/digestão/nutrientes, monossacarí-deo e lactose – e utiliza setas.

Em seguida foi distribuído texto sobre à temática alimentos nosso combustível e solicitado após leitura que os estudantes e-laborassem novos mapas conceituais.

Com relação a mapa conceitual da fi-gura 3, note que algumas noções foram dei-xadas de fora e nem todas as possíveis liga-ções foram feitas, a fim de não complicar o diagrama. Ao analisar o mapa representado na figura 4, abaixo, identificamos que o aluno em questão conhece termos utilizados na área de estudos – carboidratos, porém tem dificul-dades quanto à identificação do significado dos conceitos e das relações que existem entre eles.

Após a comparação dos mapas, os es-

tudantes realizaram outros mapas. Manteve alimentos como o conceito mais geral. Classi-ficou corretamente alguns termos como con-ceitos. Estabeleceu hierarquias válidas. Re-correram a setas, criou ligações transversais. Empregou como palavras de ligação, frases e definições. Pode-se perceber, em todos os mapas, que há uma similaridade na hierarqui-zação conceitual. Inicialmente os estudantes relutam ao exercício, pois não têm o costume de fazer uso de técnicas. Entretanto

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respondem muito bem à proposta, surpreendendo-se com a prática que passam a adotar em outras disciplinas tanto para estudo

em outras disciplinas tanto para estudo quanto para apresentação de suas produções.

Figura 1 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária.

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Figura 2 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia.

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Figura 3 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária.

Os mapas mostrados nas figuras 5 e 6

foram confeccionados após aulas expositivas e experimental dos conteúdos referentes a te-mática. Os conceitos foram abordados pelo professor no decorrer do curso. A ordem em que os conceitos aparecem não reflete, propo-sitadamente, a de apresentação. No mapa conceitual o estudante procurou explicitar al-gumas relações entre conceitos através de pa-lavras-chave exemplificando com fórmulas

químicas, congregando um conjunto de con-ceitos tais como monossacarídeo, oligossaca-rídeos e polissacarídeos. Neste mapa os con-ceitos estão ordenados logicamente, come-çando pelo alimento, no "topo", e em seguida nutriente, polímero biológico, carboidratos, transformação e hidrólise como casos mais particulares daquele. No entanto, os conceitos de monossacarídeos e dissacarídeos são colo-cados como os menos abrangentes.

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Figura 4 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia.

Já o segundo mapa da figura 6 nos

mostra um agrupamento mais ou menos se-melhante ao anterior, porém com estruturas integradas. Nele, carboidrato é considerado o conceito mais importante, enquanto dissacarí-deos é o de menor importância. Neste, as con-cepções de oligossacarídeo e polissacarídeos são consideradas mais abrangentes que o con-ceito de dissacarídeos.

Em resumo mapas conceituais não são auto-suficientes; é sempre necessário que se-jam explicados por quem os faz, seja o pro-fessor ou o estudante. Uma maneira de dimi-nuir um pouco a necessidade de explicações é escrever sobre as linhas que unem os concei-tos uma ou duas palavras chave que explici-tem a relação simbolizada por elas.

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Figura 5 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária. 4. Conclusões

Com a temática, alimentos nosso combustível, pretendeu-se mostrar o forte po-tencial dos mapas conceituais, como uma fer-ramenta pedagógica capaz de evidenciar a-prendizagem significativa; apontando para o fato de que os diversos conceitos não são al-vos estáticos na aprendizagem, mas um con-junto, uma teia que se une através de relações entre conceitos que evoluem na estrutura cog-nitiva do estudante, apoiados em conceitos já existentes e que, tratados de forma articulada nos seus níveis de abstração, formatam o con-creto de nosso cotidiano. Os mapas conceitu-

ais foram construídos e exemplificados como estratégia pedagógica que podem ser usados tanto na análise e organização do conteúdo, como no ensino e na avaliação da aprendiza-gem dos estudantes dos cursos de Agronomia, Medicina Veterinária e Zootecnia. Foi uma estratégia pedagógica construídas após aulas em sala de aula e em laboratório cuja maior vantagem estar relacionada com o fato de en-fatizar o ensino e a aprendizagem de concei-tos da química dos carboidratos, lipídios e proteínas. Pela sua versatilidade utilizou-se o mapa conceitual como um dos recursos de avaliação em sala de aula.

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Figura 6 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia.

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5. Referências bibliográficas Araújo, A.; Menezes, C. e Cury, D. (2002). Um Ambiente Integrado para Apoiar a Avali-ação da Aprendizagem Baseado em Mapas Conceituais, Anais do XII Simpósio Brasileiro de Informática na Educação, p. 49-58. Ausubel, D.P. (1968). Educational Psychol-ogy, A Cognitive View. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc. Ausubel, D.P. (1982) A aprendizagem signifi-cativa: a teoria de David Ausubel. São Paulo: Moraes. Cañas, A.; Ford, K. e Coffey, J. (2000). Herramientas para Construir y Compartir Modelos de Conocimiento Basados en Mapas Conceptuales. Informática Educativa, 13 (2), 145-158. Carvalho, A.M.P. e Perez, D.G. (1995). For-mação de Professores de Ciências. 2a edição. Moreira, M.A. (1999). Investigación en en-senãnza: aspectos metodológicos. Programa

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Obstáculos epistemológicos no ensino de ciências: um estudo sobre su-as influências nas concepções de átomo

Epistemological obstacles in science teaching: a study about their influences on the atom concep-

tions

Henrique José Polato Gomes , a e Odisséa Boaventura De Oliveira , b

aCurso de Graduação em Ciências Biológicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná, Brasil; bDepartamento de Teoria e Prática de Ensino, Setor de Educação, UFPR, Curitiba,

Paraná, Brasil

Resumo

Muitas estratégias usadas por docentes para tornar o ensino mais atrativo, ou com intenção de facilitá-lo, na realidade podem se tornar sérios entraves na aprendizagem do ensino científico. Com a equivo-cada convicção que explicam, metáforas e analogias utilizadas, podem não suscitar interesse pela compreensão do fenômeno. Bachelard chamou esses subterfúgios de obstáculos epistemológicos e o objetivo deste trabalho foi identificá-los em alunos de oitava série do ensino fundamental e de primei-ro ano do ensino médio, referentes ao ensino de atomística, procurando compará-los, visto que apren-deram este conteúdo com diferentes materiais didáticos. Para tanto, foram aplicados 291 questioná-rios nos quais foram analisados respostas e desenhos, que evidenciam tais obstáculos. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 96-109. Palavras-chave: atomística; obstáculos epistemológicos; Bachelard; aprendizagem; Abstract

Some strategies used by teachers to make a subject more attractive or easier, actually can be a seri-ous impediment to the learning of the scientific concepts. Metaphors and analogies used in the expla-nation can result in a satisfactory explanation, and consequently, in a lack of interest for the phe-nomenon. Bachelard called those subterfuges epistemological obstacles, and the objective of this pa-per were identify them in students at the last level of elementary school and at the first level of high school, in atomistic teaching, and compare them, considering they learned that through different ma-terials. Thus, 291 questionnaires asking about atom conceptions and a drawing of it were applied and they show an evident existence of those obstacles. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 96-109. Key Words: atomistic; epistemological obstacles; Bachelard; learning;

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 16/10/2007 | Revisado em 28/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- O.B de Oliveira é Graduada em Ciências Biológicas Modalidade Médica, Licenciatura (Organização Educacio-nal Barão de Mauá) e Pedagogia (PUC-Católica), Mestre em Educação (Universidade Estadual de Campinas) e Dou-tora em Educação (Universidade de São Paulo). Atualmente é Professora (UFPR). E-mail para correspondência: [email protected]. H.J.P. Gomes é Graduando do Curso de Ciências Biológicas, Modalidade Licenciatura (UFPR). E-mail para correspondência: [email protected].

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1. Introdução “Quando se acompanham os esforços do pensamento

contemporâneo para compreender o átomo, é se quase levado a pensar que o papel fundamental

do átomo é o de obrigar os homens a estudar matemática.” Gaston Bachelard

É comum o uso, em sala de aula, de

diversas estratégias com o intuito de facilitar a aprendizagem. Muitas delas, como analogias, metáforas, imagens, modelos entre outras pré-sentes nos materiais didáticos e amplamente utilizadas por docentes, deveriam ser fonte de reflexão sobre suas implicações. Ainda que empregadas com a intenção de facilitar a compreensão de um determinado assunto, na realidade não auxiliam verdadeiramente, sal-vo em casos específicos muito bem traba-lhados. Ao contrário, esses subterfúgios peda-gógicos fazem com que sejam substi-tuídas linhas de raciocínio por resultados e esque-mas, o que se por um lado suscita atrativos e interesse, por outro se cristaliza intuições. As-sim, práticas como essas podem ser pernicio-sas à aprendizagem. A assimi-lação de noções inadequadas, sejam elas advindas dos conhe-cimentos empíricos que o educando vivencia em seu cotidiano ou adquiridas na escola, po-derá resultar na constituição de obstáculos epistemológicos (Bachelard, 1996).

Os obstáculos epistemológicos são i-nerentes ao processo de conhecimento, cons-tituem-se em acomodações ao que já se co-nhece, podendo ser entendidos como anti-rupturas. O conhecimento comum seria um obstáculo ao conhecimento científico, pois este é um pensamento abstrato. Na visão de Lecourt (1980: 26) os obstáculos “preenchem a ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento científico e restabelece a conti-nuidade ameaçada pelo progresso do conhe-cimento científico”, podem aparecer na forma de um contra-pensamento ou como paragem do pensamento. São encarados como resistên-cias do pensamento ao pensamento.

Segundo Bachelard (1996: 17) não se tratam de “obstáculos externos, como a com-plexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no âmago do próprio ato

de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e confli-tos”.

Muito dessa problemática, deve-se ao fato dos docentes não levarem em conta o co-nhecimento que os educandos já possuem e por conceberem a aquisição do novo conhe-cimento como uma adição, que pode ser atin-gida através de meras repetições. Além disso, normalmente esses conhecimentos não cientí-ficos oferecem uma satisfação imediata à cu-riosidade, o que indiferente de seu caráter, não se constitui em benefícios, ao contrário passa-se a admirar as imagens e a contentar-se simplesmente com resultados.

Na visão de Bachelard (1996), a preo-cupação dos educadores deveria ser alt-erar essa cultura cotidiana prévia, pois não é pos-sível incorporar novos conhecimentos às con-cepções primordiais já enraizadas. Para que a aprendizagem ocorra de maneira efetiva, é preciso mostrar ao aluno razões para evoluir. O que significa estabelecer uma dialética en-tre variáveis experimentais e substituir sabe-res ditos estáticos e fechados, por conheci-mentos abertos e dinâmicos.

Contra a formação do espírito cientí-fico, um exemplo de obstáculo episte-mológico é o que Bachelard (1996) denomina de experiência primeira, a qual gera apego à beleza do experimento e não à explicação ci-entífica. É possível minimizar e até mesmo retificar essa experiência primeira por meio de uma ação que o autor chamou de “trazer a bancada do laboratório para o quadro-negro”, ou seja, procurar impedir que aconteçam ape-nas satisfações e admirações por imagens, preocupando-se com os fundamentos explica-tivos dos fenômenos presentes nas atividades experimentais. Segundo Bachelard, uma ciên-cia que aceita imagens é vítima de metáforas e experiências repletas delas são, na realidade, sem grande valor se não for extraído o abstra-

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to do concreto, isto é, o experimento deve ser utilizado como uma ferramenta auxiliar ilus-trativa e não se resumir a uma sucessão de resultados visual-mente interessantes (Bache-lar, 1996).

Assim, essa ausência da busca pela explicação do fenômeno faz com que se esta-beleça a dita doutrina do geral. A genera-lização é colocada por Bachelard como outro obstáculo epistemológico e sua utiliza-ção em sala de aula também pode ser igualmente im-peditiva da formação do espírito científico, pois generalizações tornam uma lei tão clara, completa e fechada, que dificilmente levanta-se o interesse por questionar suas premissas. A generalização facilita momentaneamente uma compreensão, mas esse entendimento pode bloquear o interesse pelo estudo mais aprofundado. A lei geral é suficientemente satisfatória para que se perca o interesse por estudá-la. Parte dos obstáculos propostos é, de alguma forma, conseqüência de generaliza-ções inapropriadas, de modo que o conhe-cimento geral acaba sendo um conhecimento vago (Costa, 1998).

O mesmo acontece quando, nas aulas de ciências, fenômenos são explicados por meio de expressões, imagens, metáforas ou analogias, denominadas por Bachelard de obstáculo verbal, isto é, uma tendência a as-sociar uma palavra concreta a uma palavra abstrata. Essa situação ocorre quando uma palavra é tão suficientemente explicativa, que funciona como uma imagem e pode vir a substituir a explicação (Andrade et al, 2002). Bachelard observou, em sua obra A formação do espírito científico (1996), que o uso abusi-vo da palavra esponja, por exemplo, desenca-deou uma imagem que manteve o pensamento preso a ela enquanto objeto, não avançando para o nível da idéia.

Ainda assim, alguns autores defendem o uso de analogias como estratégia pedagógi-ca válida para melhor compreensão e integra-ção na estrutura cognitiva (Adrover e Duarte, 1995); também existem trabalhos que apre-sentam propostas de metodologias de ensino com analogias (Nagem et al., 2001) e há até mesmo os que julgam o raciocínio metafórico e analógico como inerente ao ser humano

(Andrade et al., 2002). E, de fato, há que se considerar que, quando apropria-damente u-sadas, metáforas e analogias podem ser boas ferramentas para ilustrar uma explicação; mas essas devem ser transitórias, devem ser usa-dos como andaimes (scaffolding), conforme terminologia de Jerome Bruner, isto é, apenas como um suporte para o alcance do conheci-mento científico.

Talvez pareça incoerente fazer essa analogia ao andaime, explicando como fazer uma analogia por meio de outra, mas a idéia do uso de um andaime deve ser entendida como um auxílio, como algo temporariamente utilizado para atingir um determinado fim; não como algo inicial ou a primeira coisa que deve ser feita para que se aproxime do conhe-cimento. Bachelard não é perempto-riamente contra o uso de metáforas, contanto que elas venham após a teoria, como um auxílio no esclarecimento.

O problema ocorre quando há o uso anterior à explicação da hipótese ou teoria, pois pode ocorrer uma tendência à estagnação do pensamento, o aluno se apega e aceita essa aproximação como um estratagema conclu-sivo, não havendo necessidades de maiores elucidações o que impossibilita a abstração necessária ao conhecimento.

Outro obstáculo proposto por Bache-lard (1996) é o substancialista, que pode ser em parte oriundo do materialismo promovido pelo uso de imagens ou da atribuição de qua-lidades aos fenômenos. Ele cita como exem-plo, a teoria de Boyle que atribuía qualidades de viscoso, untuoso e tenaz ao fluído elétrico, é como se a eletricidade fosse uma cola, como se tivesse um espírito material.

Também denominou de obstáculo e-pistemológico animista ao fato de que atribuir vida daria relevância a um determinado fe-nômeno. Para Bachelard (1996: 191), “vida é uma palavra mágica”, ela marca um valor às substâncias, assim ele relata que no século XVIII a ferrugem era vista como uma doença que acometia o ferro, ou que se comparava a fecundidade dos minerais à das plantas.

Para Bachelard (1996: 21). “a noção de obstáculo epistemológico pode ser estuda-da no desenvolvimento histórico do pensa-

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mento científico e na prática da educação”. Dessa maneira, existem inúmeras formas de obstáculos epistemológicos que, independente de sua natureza, necessitam ser identificados e retificados. Contudo, os obs-táculos e entra-ves não devem ser compre-endidos apenas como algo falho ou como aspectos pontuais de alunos com dificuldades; eles são impor-tantes à aprendizagem e para que esta ocorra satisfatoriamente é necessário que haja, além de questionamentos e críticas, ruptura entre conhecimento comum e científico, construin-do este e desconstruindo aquele (Lopes, 1993).

A preocupação com a aprendizagem de determinados conceitos advém de nossa experiência como professor assistente em uma escola da rede particular de ensino, na qual observamos dificuldades nos alunos em mani-festarem idéias abstratas, por exemplo, em relação ao modelo atômico e suas estruturas, bem como de suas interações moleculares. A leitura de Bachelard nos instigou a buscar respostas para tais dificuldades, uma vez que observamos grande uso de analogias por parte dos professores regentes em sala de aula, co-mo por exemplo, a distribuição eletrônica em camadas sendo explicada através de uma as-sociação com gavetas que se enchem progres-sivamente, de maneira que, à medida que uma delas fica cheia de elétrons, essa se fecha e abre-se a próxima gaveta; ou de forma seme-lhante, a analogia da mesma distribuição com os assentos de um ônibus que vão sendo pre-enchidos gradativamente pelos passagei-ros. O funcionamento da eletrosfera como um tri-lho de trem por onde percorreria o elétron e a comparação de ligações covalentes com “sal-sichões” estabelecidos como conexão com-partilhada entre átomos são alguns dos exem-plos por nós presenciados.

O objetivo desse trabalho é, portanto, identificar alguns destes obstáculos propostos por Bachelard, relacionados ao ensino de química no conteúdo de atomística e analisar o porque dessas manifestações nas respostas de estudantes da 8ª série do ensino Funda-mental e 1ª série do Ensino Médio a perguntas correlatas. Assim como comparar os materiais didáticos utilizados em cada situação de a-

prendizagem, pois os alunos que atualmente encontram-se na 1ª série, aprenderam esse conteúdo na oitava série, com o uso de aposti-la produzida por uma organização educacio-nal da cidade. Esse material didático possui divisão entre matérias, possuindo uma parte específica de química, a qual começa com o estudo do átomo e enfoca principalmente a evolução dos modelos atômicos. Já os alunos que estão atualmente na oitava série estão a-prendendo esse conteúdo com auxílio de um livro didático de outra rede educacional, o qual não possui divisão entre física e química e tem o conteúdo de atomística como primeiro assunto de química propriamente dita, enfati-zando mais caráter elétrico do que a estrutura dos materiais. Sendo assim, também é objeti-vo do trabalho verificar se há diferença signi-ficativa nos conceitos apresentados pelos alu-nos que possa ser atribuída a influência do material didático.

Para isso, nossas questões de estudo nesta pesquisa são: quais concepções os alu-nos possuem sobre estrutura e finalidade da eletrosfera? Quais modelos atômicos são re-presentados por eles? O que tem influen-ciado a constituição dessas concepções? 2. Métodos

No que tange ao delineamento meto-dológico, esta pesquisa é de natureza qualita-tiva, dada a tentativa de compreender aspectos singulares e não meramente a sua caracteriza-ção, de levar em consideração o contexto em que foi feita a análise e de procurar explica-ções para os resultados em variáveis, como os materiais didáticos. Também faz uso de dados quantificáveis na análise das respostas.

A presente investigação foi realizada em uma escola da rede particular de educação do município de Curitiba (PR), que atende alunos do Ensino Fundamental, Médio e Edu-cação de Jovens e Adultos. Fizemos um le-vantamento no mês de abril de 2007, através de questionários aplicados durante algumas aulas cedidas por diferentes professores Esse tipo de instrumento foi utilizado por possibili-tar atingir um grande número de pessoas, oti-

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mizar o tempo e garantir o ano-nimato das respostas.

O questionário consistiu em 3 pergun-tas, sendo a primeira objetiva e as outras duas abertas. Na primeira questão, havia 8 alterna-tivas a respeito da estrutura e finalidade da eletrosfera, buscando identificar as concep-ções que os alunos possuíam dela. Nessa questão, não havia apenas uma alternativa que melhor representasse um ponto de vista; havi-a, na realidade, três alternativas relativamente complementares que poderiam ser considera-das corretas. As demais questões eram abertas e visa-vam pesquisar qual modelo de átomo o res-pondente aceitava como correto, ou que mais se aproximasse da sua compreensão. Para is-so, foi pedido que os alunos desenhassem como estariam “visualizando” o átomo caso esse fosse visto através de um microscópio com lentes de aumento muito poderosas e como eles poderiam separá-lo se pudessem manipulá-lo com pinças igualmente sensíveis e poderosas. Optamos por fazer essa relação entre o aluno imaginar como é a constituição de um átomo se fosse possível “vê-lo por den-tro” com a elaboração de um modelo, já que concebemos modelo como:

“uma imagem que construímos da reali-dade e que nos ajuda a entendê-la. Nes-se sentido, deve haver aspectos em co-mum entre a realidade e o modelo; uma transformação que ocorre na realidade pode ser representada através do mode-lo. Isso não significa que o modelo te-nha que ser uma cópia exata da realida-de e sim que deve representá-la.” (Mor-timer, 2000: 189)

Por fim a terceira questão, também aberta, perguntava qual a explicação que o aluno da-va para a aceitação da teoria atomística, tendo em vista que o átomo nunca foi visualizado. A resposta esperada seria algo relacionado a al-guma evidência da existência atômica, como por exemplo, a existência de carga elétrica, campo magnético, emissão de fótons ou a mistura de dois elementos químicos. O ques-

tionário continha apenas três perguntas para que o maior número possível voltasse respon-dido, ou seja, que não ficasse cansativo para os alunos. 3. Resultados e discussão

Obtivemos um total de 291 questioná-rios, desses 156 eram de alunos do primeiro ano e 135 da oitava série. Mesmo os questio-nários que não estavam completa-mente res-pondidos foram analisados. Como era de se esperar, as perguntas abertas tiveram um nú-mero menor de respostas, acreditamos que por exigir maior esforço. Todos os alunos de ambas as séries res-ponderam a questão 1, primeiro porque ela era uma questão fechada e de grau de dificul-dade baixo. A tabela 1 mostra os percentuais obtidos em cada uma das afirmativas propos-tas na questão 1.

Para esta questão, as porcentagens de acerto em relação à alternativa A em ambas as séries mostra que a grande maioria dos alunos tem noção da existência e localização dos elé-trons. A resposta esperada para o aluno que tivesse compreendido corretamente os concei-tos relacionados à estrutura e finalidade da eletrosfera, era conjuntamente as alternativas A, E, e G. Na 1ª série do Ensino Médio a as-sociação dessas respostas foi obtida em ape-nas 5 questionários, totalizando 3 % de acerto e na 8ª série essa associação não foi encon-trada nenhuma vez.

Isso demonstra que embora haja a no-ção de eletrosfera, o pesquisado não tem clara a dinâmica de movimento de elétrons, o que pode ser verificado pela marcação das afirma-tivas F e H. Uma associação incoerente en-contrada foi a das afirmativas E e F, pois, elas são frontalmente contraditórias. No primeiro ano essa associação aparece em três respostas (2 %), e na oitava série apenas uma vez (a-proximadamente 1 %). Além disso, a alterna-tiva E, que era uma das afirmativas corretas, obteve o menor percentual de aparecimento em ambas as séries.

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Ta-

bela 1 - Comparação do percentual de respostas à questão 1. Outros obstáculos que podem ser i-

dentificados foram os representados pela a-firmativa C, em que a camada da eletrosfera

funciona como uma gaveta, com altos índices de marcação em ambas as séries; e a resposta B, segundo a qual a camada da eletrosfera su-porta uma quantidade máxima de elétrons, mas nunca pode ficar vazia. Esses dois obstá-culos, a nosso ver, são de mesma natureza, uma vez que dão a idéia que o preenchimento

eletrônico ocorre linearmente com a condição da camada anterior já estar preenchida, o que é comumente visto em sala de aula sob as

analogias de gavetas ou bancos de ônibus, que são preenchidos gradativamente e da frente para trás.

A comparação da porcentagem de res-postas simples e combinadas pode ser vista no gráfico 1.

Gráfico 1 - Comparação dos percentuais de resposta da questão 1.

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A questão 2 era dividida em dois itens, no primeiro era requisitado o desenho do á-tomo sob a possibilidade hipotética de que o estariam vendo através de equipamento pró-prio; o segundo item perguntava em que par-tes poderiam separá-lo caso existissem pinças muito sensíveis que possibilitassem essa ma-nipulação. A análise dos desenhos obtidos foi feita enquadrando-os através de semelhanças com os modelos pré-estabelecidos na literatu-ra. No total cinco modelos foram identifica-dos: ANIMISTA (Galiazzi et al, 1997), que coloca características das células dos seres vivos à matéria; MODELO DE DALTON, referente ao átomo como “bola de bilhar”, que seria a menor parte da matéria, sendo portan-to, indivisível e indestrutível; MODELO DE THOMSON, que seria o modelo “pudim de passas” e o MODELO DE RUTHERFORD ,

com a divisão em um núcleo com prótons e nêutrons e uma eletrosfera com elétrons. O modelo de átomo de Rutherford-Böhr, que mostraria os níveis de energia das camadas, e o modelo atômico de Sommerfeld, no qual a eletrosfera seria composta de órbitas elípticas, com um aspecto de tridimensionalidade, fo-ram contabilizados juntamente com o modelo de Rutherford. Alguns modelos, por não po-derem ser classificados como nenhum dos expostos acima, foram classificados como OUTROS; isso se deu pelo fato de se apresen-tarem em um estado “intermediário”, isto é, com características de mais de um modelo, o que dificulta o seu enquadramento.

A comparação entre as respostas pode ser vista no gráfico 2.

Gráfico 2 - Comparação entre as respostas à pergunta 2, na parte referente aos modelos atômicos.

Conforme pode ser visto no gráfico, o modelo animista foi encontrado na resposta de 9 alunos de primeiro ano. Vale dizer que destes, apenas quatro alunos estavam, dois a dois, na mesma sala, o que elimina a possibi-

lidade de cópia ou de alguma forma de influ-ência nessas respostas. Dessa maneira, como pode ser visto na figura 1, é muito evidente a confusão com a idéia de célula, o que prova-velmente se deve à aprendizagem recente des-

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se conceito como menor parte do organismo vivo e ao fato de ambos, célula e átomo, pos-suírem um núcleo. Além disso, na segunda parte da questão que perguntava sobre as pos-síveis separações, 1 dos alunos escreveu que separaria o núcleo da membrana, o que expli-cita bem esse equívoco.

Figura 1 - Modelo Animista, que apareceu apenas nas respostas de alunos do 1º ano.

No que tange ao conceito atômico de

Dalton, isto é, de átomo como a menor partí-cula da matéria, formada de uma estrutura

compacta, maciça e sólida, sendo assim indi-visível e indestrutível, foi encontrado que, no primeiro ano, 8 alunos (5 %) permanecem presos a esse conceito, enquanto que na oitava série esse número cai para 2 pessoas (1,5 %). Isso pode estar relacionado de alguma forma ao material didático, pois os alunos de primei-ro ano aprenderam esse conteúdo na oitava série, com uma apostila que possuía um tópi-co sobre Dalton e seu modelo “bola de bi-lhar”; os alunos atualmente na oitava série estão fazendo uso de um livro didático cujo enfoque sobre esse conteúdo paira predomi-nantemente na natureza elétrica dos materiais, passando diretamente das primeiras noções de átomo de Demócrito a Rutherford, não citan-do Dalton. Obviamente que, pelo aparecimen-to desse modelo, a professora deve tê-lo ex-plicado em sala de aula, mas o fato de não ser encontrado no livro didático pode ser um fator que explica a disparidade de resultados. E-xemplos de modelos encontrados podem ser observados se na tabela 2:

Tabela 2 - Comparação dos Modelos de Dalton obtidos.

Entretanto, esse resultado não se repe-te no que diz respeito ao modelo atômico de Thomson, pois da mesma forma, a apostila traz um tópico explicando seu modelo “pudim de passas”, no qual o átomo seria uma esfera de carga positiva, onde estariam imersas as partícula negativas (elétrons), enquanto que o livro atualmente utilizado também não cita Thomson. Sendo assim, era esperado um re-sultado semelhante ao modelo Daltoniano,

considerando novamente que esse modelo, pelo seu aparecimento, também foi explicado em sala. Contudo, no primeiro ano houve a-penas 6 casos (4 %) identificáveis como se-guidores do modelo de Thomsom, enquanto que na oitava série obteve-se 13 esquemas (10 %), o que indica que, provavelmente tenha sido dada maior importância à esse modelo em sala de aula, talvez em virtude da ênfase no aspecto elétrico feita pelo livro didático,

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esse modelo tenha sido mais utilizado como base para compreensão dos posteriores. E-xemplos de modelos encontrados estão repre-

sentados na tabela 3:

Tabela 3 - Comparação dos Modelos de Thomson obtidos.

O modelo de Rutherford, por sua vez, foi contabilizado juntamente com o modelo de Rutherford-Böhr , visto que os dois são muito próximos e comumente ensinados con-juntamente, e com o de Sommerfeld , que não é tratado em nenhum dos dois materiais didá-ticos e foi enquadrado seguindo Galiazzi e colaboradores (1997). Pelo fato do modelo de Rutherford ser ensinado tanto na apostila quanto no livro didático, era esperado que se

encontrasse um número semelhante entre as duas séries. Assim, foram encontradas 117 amostras no primeiro ano (80 %), e 105 na oitava série, perfazendo um percentual seme-lhante de 80 %. Esse resultado majoritário era, de certa forma, esperado, tendo em vista que esse modelo é o atualmente mais aceito para esse nível de escolaridade, sendo muitas vezes tratado como a melhor explicação atual para a estrutura atômica. (Tabela 4).

Tabela 4 - Comparação dos Modelos de Rutherford, Rutherford-Böhr, e Sommerfeld obtidos.

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Contudo, comparando-se esse resulta-do com as respostas da primeira questão, no-ta-se que na maioria das vezes há uma boa noção na localização da eletrosfera, mas que possivelmente há um obstáculo epistemológi-co no que tange a sua funcionalidade, sendo essa muito comumente representada como uma “coisa” física e palpável. Ainda assim, foram encontrados alguns modelos que a re-presentaram de uma maneira mais correta, se aproximando do que seria o ideal (tabela 5) esperado para essa idade, visto que esses alu-

nos não possuem conhecimentos sobre mode-los quânticos. É evidente que quando se pede que os alunos façam um desenho do que esta-riam vendo ao microscópio, o resultado tam-bém será, de certa forma, um esquema. Mas estas respostas obtidas, apresentam um nível maior de abstração que as demais, pois repre-sentaram apenas os elétrons ao redor do nú-cleo. Foram encontrados 2 amostras no pri-meiro ano (1 %) e 5 amostras na oitava série (4 %).

Tabela 5 - Comparação dos modelos mais próximos ao ideal.

Em ambas as séries alguns modelos não puderam ser encaixados em nenhum dos pré-estabelecidos, e foram classificados como “Outros”, aparecendo em 10 respostas (7 %)

no primeiro ano e em 12 questionários (9 %) na oitava série. Alguns desses exemplos po-dem ser vistos na tabela 6.

Tabela 6 - Modelos classificados como “Outros”.

Na segunda parte da questão, como já citado, foi pedido para que os alunos separas-sem o átomo nas partes que julgassem possí-veis. A separação que indica a noção mais correta seria em: “prótons, nêutrons e elé-trons” e foi apontada 23 vezes no primeiro

ano (19 %) e 37 vezes na oitava série (14 %). Muitos alunos, entretanto, apresentam algu-mas evidências de obstáculos, como, por e-xemplo, a possibilidade de separação da ele-trosfera, o que só seria possível conside-rando-a uma camada física, o que no primeiro

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ano apareceu em 66 respostas (54 %) e na oi-tava série em 70 respostas, perfazendo um total de 56 %.

Como pode ser visto no gráfico 3, pela quantidade de separações encontradas, pode-se inferir que a estrutura e mesmo a funciona-

lidade atômica, não está clara para os alunos, seja por excluírem partículas importantes na separação ou por equívocos graves, como a separação em número atômico ou de massa, que são apenas conceitos.

Gráfico 3 - Comparação das possibilidades de separações atômicas encontradas.

Por fim, a questão número três ques-tio-nava os alunos a respeito da exis-tência do átomo, considerando que ele nunca foi visto. Ambos os materiais didáticos apresen-tam evidências de sua existência. O livro didático tenta mostrá-lo através de duas experiências: A verificação da eletricidade estática pela a-tração de pequenos pedaços de papel em uma régua atritada por uma flanela, e o calor, até então inexistente, resultando da mistura de gesso em pó com água. A apostila, por sua vez, dá exemplos de aplicações tecno-lógicas que dependam do direciona-mento de feixes

de elétrons, como por exemplo, em telas de televisores; e propõe um experimento com o aquecimento de diferentes metais, que quando submetidos ao fogo, alteram a coloração da chama.

Assim, seria de esperar que respon-dessem à pergunta com alguma evidência dessa natureza. Mas não houve resposta ple-namente satisfatória. Na oitava série a questão foi respondida por 109 alunos (81 %), en-quanto que no primeiro ano obteve-se 85 res-postas (54 %). As respostas mais freqüen-tes estão no gráfico 4.

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Gráfico 4 - Comparação das respostas em comum para a questão 3.

Dentre as respostas comuns, na oitava série, das 9 que atribuíram a existência atômi-ca à inovações tecnológicas, 5 justificaram que a certeza ocorre graças a observação do átomo no microscópio; no primeiro ano, isso ocorreu em apenas uma resposta, embora um aluno tenha atribuído a observação a um te-lescópio. Das amostras que se referem a exis-tência pelo fato do átomo ser a menor parte da matéria, ou seja, se fosse possível dividi-la continuamente, se chegaria até ele, na oitava série as 2 pessoas que escreveram essa respos-ta apresentaram o modelo atômico de Ruther-ford-Böhr na questão 2; já no primeiro ano, das 8 respostas, duas apresentaram o modelo de Dalton, as demais também apresentaram o de Rutherford-Böhr.

Algumas questões não puderam ser enquadradas em nenhum quesito e foram classificadas como outros, como por exemplo, 2 respostas na oitava série e 1 no primeiro a-no, que atribuíam a existência atômica ao re-gistro arqueológico pré-histórico escrito e pic-tórico, ou ainda um estudante da oitava série que defendia a existência de átomos fossiliza-dos por erupções vulcânicas. Além dessas respostas, na oitava série também apareceram 3 amostras dizendo que o átomo existia por-que “a professora disse”.

As respostas que mais se aproximaram do ideal foram 6 que atribuíram a certeza da

existência atômica às reações químicas e 2 respostas relacionando a sua existência a ex-plosões de bombas atômicas. Ainda assim, boa parte das respostas obtidas são, em ambas as séries, superficiais. Isso dificulta qualquer inferência de nossa parte, pois mesmo as res-postas mais próximas do correto, são demasi-ado simplistas. As respostas que certificavam o átomo por “estudos e experiências realiza-das”, por exemplo, não possibilitam identifi-car se há realmente alguma forma de obstácu-lo epistemológico na explicação. 4. Conclusão

A intenção desse trabalho foi identifi-

car alguns dos possíveis obstáculos epistemo-lógicos propostos por Bachelard (1996) pre-sentes no ensino de química, em alunos de oitava e primeiro ano do ensino médio, além de verificar se sua existência está, de alguma forma, relacionada ao material didático utili-zado.

Assim, após sua realização, pôde-se evidenciar a existência de alguns obstáculos epistemológicos no ensino de atomística em ambas as séries analisadas. A dificuldade de superação dos modelos utilizados, conside-rando inclusive que muitos deles não são os atualmente aceitos, mas são mostrados com a finalidade de fazer uma abordagem histórica,

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são bons exemplos de possíveis entraves. Para a aprendizagem do conhecimento científico, é preciso que se tenha um modelo apenas como uma representação, havendo necessidade de abstrair de suas figuras e esquemas para que haja uma verdadeira compreensão. Além dis-so, não é apenas o conceito que está se consti-tuindo em um obstáculo, as partículas atômi-cas também não são bem compreendidas pe-las séries estudadas. É possível que as duas questões estejam relacionadas, pois as repre-sentações podem conduzir a idéias erradas de localização e funcionabilidade.

A atuação docente também é certa-mente muito importante para a aceitação ou refutação de um dos modelos atômicos, pois, considerando que o novo material didático não trazia alguns dos modelos analisados, e ainda assim esses modelos continuaram a apa-recer, a ação do professor fica aqui evidente. Isso não representa necessariamente um pro-blema. Na realidade, como o material não tra-zia essas idéias, é interessante que o professor as mostre, ampliando as abordagens que deve-rão conduzir ao conceito; mas essa aproxima-ção deve ter o enfoque histórico, formando uma linha de raciocínio, progredindo através de rupturas e incentivando a superação dos modelos. Ademais, é responsabilidade docen-te a retificação das analogias e metáforas exis-tentes no material didático, bem como a dili-gência de suas utilizações nas suas explana-ções, refletindo se seu uso está sendo, de fato, um auxílio.

Assim, a mudança do material didático não surtiu grandes efeitos na melhoria das concepções atômicas, tendo em vista que em ambos os materiais, embora a dinâmica de abordagem seja diferente, há noções que po-dem levar a formação de obstáculos, como por exemplo, as representações atômicas co-mo sistemas planetários.

Também se esperava que os alunos de primeiro ano, por se encontrarem em uma i-dade mais avançada e já terem estudado ou-tros aspectos de maior complexidade das par-tículas atômicas, como por exemplo, os orbi-tais e os números quânticos, apresentassem uma maior capacidade de abstração e concei-tos mais claros, o que não foi encontrado.

Obviamente que, embora esse conteúdo seja relativamente revisado, a defasagem de um ano desde a exposição desse conteúdo deve ser considerada como um fator. Por sua vez, a oitava série, provavelmente por ter recém o visto, na maior parte das vezes apresentou maior índice de acerto.

Podemos traçar algumas implicações desse nosso estudo para o ensino de ciências. A primeira delas diz respeito à aprendizagem de outros conteúdos relacionados à compreen-são do átomo, como é o caso da aprendizagem sobre reações químicas. Certamente a com-preensão de quaisquer interações moleculares é prejudicada em alunos que aceitem como correto o modelo de Dalton, que ainda não possuía divisão em partículas. Da mesma forma, no modelo de Thomson, que já propõe o conceito de elétron, mas não o de eletrosfe-ra, assuntos como ligações químicas, magne-tismo, e emissões de fótons também teriam a aprendizagem seriamente dificultada. Na rea-lidade, defendemos a abstração do modelo, pois mesmo o modelo mais aceito, pode oca-sionar entraves, como mostraram Fukui e Pacca (1999), que estudaram a concepção a-tômica relacionada à compreensão de corrente elétrica. Em seus resultados, o grupo estudado não mostrou apego aos modelos atômicos an-tigos, mas ainda assim:

“A estrutura atômica, o átomo para o aluno, praticamente tem existência pró-pria, sem que esteja vinculado à maté-ria, a um substrato. O elétron é uma en-tidade muitas vezes desvinculada de uma estrutura, podendo aparecer sozi-nho e sem interferir em nada.” (Fukui e Pacca,1999: 9)

Outra implicação se refere à necessi-

dade de reconhecimento por parte dos profes-sores das evidências aqui detectadas e da pos-sibilidade de estabilização do pensamento dos alunos num determinado modelo atômico que não o aceito atualmente, para que o docente trabalhe numa perspectiva de questionar essas concepções fazendo o aluno avançar nesta construção. Ou seja, possibilitar ao estudante a compreensão e a conscientização de que um

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modelo rompe com o anterior de tal forma que ele possa apreender a constituição da ma-téria segundo uma concepção de senso co-mum, de ciência clássica e de ciência quânti-ca. A essa pluralidade, Bachelard (1984) chama “perfil epistemológico”, isto é, diferen-tes formas de ver e representar a realidade. Ou ainda em suas palavras:

“Poderíamos relacionar as duas noções de obstáculo epistemológico e de perfil epistemológico porque um perfil epis-temológico guarda a marca dos obstácu-los que uma cultura teve que superar.” (Bachelard, 1984: 30)

Para reafirmar nossas conclusões fina-

lizamos recorrendo mais uma vez ao pensa-mento deste autor (Bachelard, 1984: 84):

“Não nos parece com efeito que se pos-sa compreender o átomo da física mo-derna sem evocar a história das suas imagens, sem retomar as formas realis-tas e as formas racionais, sem lhe expli-citar o perfil epistemológico.”

Explicitar os diferentes modelos é im-

portante, mas é preciso ter muito cuidado para que ocorram as rupturas necessárias, ou seja, para que a explanação ocorra construindo uma linha de raciocínio que conduza à real aprendizagem. 5. Referências bibliográficas Adrover, J.F e Duarte, A. (1995). El uso de analogias en la enseñanza de lãs ciências. Programa de estudios cognitivos, Instituto de

investigaciones psicologicas, Facultad de psi-cologia, Universidade de Buenos Aires. Andrade, B.L.; Zylbersztajn, A. e Ferrari, N. (2002). As analogias e metáforas no ensino de ciências à luz da epistemologia de Gastón Ba-chelard. ENSAIO- Pesquisa em Educação em Ciências, 2 (2), 1-11. Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Trad. Estela dos Santos A-breu. Rio de Janeiro: Contraponto. Bachelard, G. (1984). A filosofia do não. Trad. Joaquim José Moura Ramos, 2ed. São Paulo: Abril Cultural. Costa, R.C. (1998). Os Obstáculos epistemo-lógicos de Bachelard e o ensino de ciências. Cad. Educ. FaE/UFPel, Pelotas, 11, 153-167. Fukui, A. e Pacca, J.L.A. (1999). Modelo a-tômico e corrente elétrica na concepção dos estudantes. Em: Encontro Nacional de Pes-quisa em Educação em Ciências – Atas, II ENPEC (pp.1-9), Valinhos. Galiazzi, M.C.; Oliveira, L.R; Moncks, M.D. e Gonçalves, M.G.V. (1997). Perfis conceitu-ais sobre o átomo. Em: Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, Anais, I ENPEC (pp.345-356), Águas de Lindóia. Lecourt, D. (1980) Para uma crítica da epis-temologia. Lisboa: Assírio e Alvim., 2 ed., p. 25- 32 Lopes, A.R.C. (1993). Contribuições de Gas-ton Bachelard ao ensino de ciências. Enseñanza de las ciencias, 11(3), 324-330. Mortimer, E.F. (2000). Linguagem e forma-ção de conceitos no ensino de ciências. Belo Horizonte: UFMG. Nagem, R.L.; Carvalhaes, D.O. e Dias, J.A.Y.T. (2001). Uma proposta de metodolo-gia de ensino com analogias. Rev. Port. Ed., 14 (1), 197-213

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Integrando o ensino da patologia às novas competências educacionais

Integrating the learn of pathology to new education competences

Mário Ribeiro de Melo-Júnior , a, b, Jorge Luiz Silva Araújo-Filhoa, Vasco José Ramos Malta Patua, Marcos Cezar Feitosa de Paula Machadoa e Nicodemos Teles de Pontes-Filhoa

aLaboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA), Universidade Federal de Pernambuco

(UFPE), Recife, Pernambuco, Brasil; bAssociação Caruaruense de Ensino Superior (ASCES), Caru-aru, Pernambuco, Brasil

Resumo

Buscando integrar o ensino tradicional da patologia geral à construção de novas competências educa-cionais e baseando-se nos apontamentos preliminares obtidos por pesquisa realizada com 350 alunos de diferentes cursos de graduação da área de saúde da Universidade Federal de Pernambuco, este tra-balho propõe uma adequação das técnicas de ensino, com os objetivos de passar os conteúdos pro-gramados e de preparar todos os graduandos para utilizarem conhecimentos contextualizados e as competências adquiridas em situações reais da vida profissional. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 110-114.

Palavras-chave: novas competências; patologia geral; ensino superior.

Abstract

With the objective of integrate the general pathology traditional teaching to the construction of new educational abilities, and based on the preliminary notes carried out by 350 different health's sci-ences undergraduate students of the Federal University of Pernambuco, this work point out an ade-quacy of the education techniques, with the aims of transmit the programmed contents, and of pre-pare all the graduates to use contextualized knowledge and the abilities acquired in real situations of the professional life. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 110-114. Key Words: new competences; general pathology; higher education.

A patologia e a construção das competên-cias

A Patologia Geral é a ponte entre dis-ciplinas básicas e profissionalizantes da área de saúde. O ensino da patologia é um elo fun-

damental, já que o estudante implementará na sua prática profissional futura os conhecimen-tos dos processos patológicos como profissio-nais de saúde ou pesquisador engajado em diagnosticar e participar das condutas assis-tenciais para promover a saúde (Chandrasoma

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 110-114 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 05/09/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 30/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- M.R. de Melo-Júnior é Biólogo, Mestre em Patologia (UFPE) e Doutor em Ciências Biológicas (UFPE). Atua como Professor da disciplina de Patologia Geral (PPG) e Patologia Especial na Faculdade Maurício de Nassau (FMN), ASCES e Faculdade do Vale do Ipojuca (FAVIP). Endereço para correspondência: Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA), UFPE. Av. Morais Rêgo s/n, Cidade Universitária, Recife, PE 50670-910. Telefone: (81) 2101-2504. E-mail para correspondência: [email protected]. N.T. de Pontes-Filho é Professor Titular do Departamen-to de Patologia (UFPE).

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e Taylor, 2004). Observamos que nos últimos anos, o

déficit do ensino da patologia geral se acentu-ou, a partir do momento em que a disciplina Processos Patológicos Gerais (PPG) foi insti-tuída pelo Conselho Federal de Educação (LDB, 1996), como obrigatória em todos os cursos superiores da área de saúde (nutrição, ciências biomédicas, fisioterapia, terapia ocu-pacional, farmácia, fonoaudiologia e odonto-logia) e não só em medicina e enfermagem. Com isso, ocorreu um aumento brusco no número de alunos, sem que tivessem sido preparadas adequações didático-pedagógicas para o atendimento necessário a cada curso, dentro das competências para esses.

Dentre os diversos modelos de gestão pedagógica para que o ensino da Patologia fique condizente com as diretrizes de cada curso, podemos destacar o desenvolvimento de novas competências, tese elaborada pelo sociólogo suíço Philippe Perrenoud, Professor da Universidade de Genebra e especialista em práticas pedagógicas. Ele defende que compe-tências em educação são as faculdades de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos – como saberes, habilidades e informações – para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações, buscando conectar os assuntos trabalhados em sala de aula com a realidade encontrada no ambiente social dos alunos (Perrenoud, 1999).

Atualmente, essa contextualização dos saberes é uma das bases do ensino por compe-tências, tornando-se palavra de ordem da edu-cação em vários países e também no Brasil.

O processo educacional equivocado que ocorre atualmente consiste em imprimir novas reações sobre pessoas totalmente male-áveis e passivas. Contudo, tem-se observado que, simplesmente dar o conteúdo e esperar que ele seja reproduzido não forma o indiví-duo que o mercado de trabalho e a sociedade atual exigem.

O ensino por competências baseia-se em princípios complexos que devem ser ade-quados a realidade de cada área do conheci-mento. No caso da patologia, de acordo com nossa vivência em sala de aula e laboratório temos observado um aprendizado mecânico e

desmotivador para a maioria dos alunos, jus-tamente devido à ausência de atualizações e busca de novos recursos pedagógicos que au-xiliem o aprendizado dos processos patológi-cos de uma forma proveitosa e suficiente.

De acordo com a visão do ensino pela construção de competências, sugerimos al-guns princípios fundamentais para um ensino da patologia geral que, de acordo com algu-mas correntes pedagógicas aprimora e estimu-la continuamente alunos e professores (LDB, 1996).

Deve-se desde o princípio, estabelecer um “Contrato pedagógico” entre o professor e os alunos, buscando firmar posições que cada uma das partes deverá assumir durante o pro-cesso de aprendizado. Os alunos expressam ao docente o que esperam obter com o estudo e quais as suas aspirações. Por outro lado, o professor estabelece quais as diretrizes e pa-râmetros a serem trabalhados durante o curso.

Estabelecido isso, inicia-se o processo de construção de competências que irão auxi-liar na apreensão e entendimento dos conteú-dos. Aqui sugerimos algumas abordagens que poderão nortear esse processo.

O professor deverá saber:

• Gerenciar a classe como uma comuni-dade educativa. Estabelecer o senso de coletividade, evitando atividades exclu-dentes e particularizadas;

• Organizar trabalhos utilizando ao má-ximo os recursos disponíveis. Elaborar aulas diferentes com enfoques diversos, utilizando reportagens, entrevistas, pai-néis, cartazes, pesquisas, plenárias dentre outros recursos;

• Conceber e dar vida a dispositivos pe-dagógicos motivadores. Buscar com o auxílio dos alunos atividades dinâmicas e interessantes que facilitem o aprendizado, utilizar diferentes técnicas pedagógicas;

• Identificar e modificar aquilo que dá sentido aos saberes e às atividades esco-lares. Estimular discussões pertinentes a patologia e áreas afins, buscando integrar os alunos ao conteúdo estudado;

• Criar e gerenciar situações-problema. Motivar o debate sobre relatos de casos

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anátomo-clínicos e buscar, através dos conhecimentos dos conteúdos estudados, as possíveis soluções para os casos;

• Observar os alunos durante a elabora-ção dos trabalhos. Integrar os alunos às atividades coletivas, buscando resolver ou minimizar as deficiências individuais;

• Avaliar as competências em construção nos alunos. Elaborar fichas de auto-avaliação para monitorar os progressos dos alunos e atividade docente durante o curso.

Os alunos deverão desenvolver as se-

guintes competências:

• Dominar a leitura e a escrita de termos específicos da área. Na patologia existe uma grande quantidade de termos que se não forem bem trabalhados são motivos de empecilho ao aprendizado;

• Resolver situações-problema. É de suma importância conectar os processos patoló-gicos aos problemas de saúde e compor-tamento encontrados a todo momento em nosso meio social;

• Analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações. Desenvolver o senso crítico e o discernimento para que o aluno possa lidar de forma eficiente com situa-ções que exijam uma rápida solução;

• Compreender seu entorno social e atu-ar sobre ele. Estimular a conscientização de cada um, do papel social e como, atra-vés dos conhecimentos adquiridos, pode-se melhorar a sua comunidade;

• Localizar, acessar e usar melhor as in-formações acumuladas. O essencial não é decorar todo o livro, mas sim, saber co-mo resgatar estes conhecimentos quando for preciso;

• Planejar, trabalhar e decidir em grupo. Desenvolver a capacidade de atuar em e-quipe e compartilhar informações traçan-do planos de ação.

Alguns podem questionar a desvanta-

gem do tempo, já que no caso do ensino da patologia geral há uma extensa lista de assun-tos diversos que precisam ser trabalhados e

sedimentados, porém na maioria dos casos há pouca carga horária disponível. Como fazer então?

É certo que todo esse processo de-manda um esforço maior, mas o professor de-ve gerenciar esta questão estabelecendo o conteúdo programático mínimo e essencial de disciplina de Patologia, para o curso.

A questão-chave é criar no processo de ensino da patologia o hábito de estabelecer “conexões teórico-práticas”, capacitando os alunos a buscar informações, onde quer que elas estejam, para utilizá-las nas situações-problema que possam vir a enfrentar.

Um bom exemplo de como equacionar esta dificuldade é o uso da criatividade, utili-zando métodos motivadores e a discussão de problemas concretos, como o estudo de casos anátomo-clínicos. Nesta modalidade de aula, os tradicionais conteúdos são apenas um dos elementos do processo de aprendizagem.

Cria-se uma situação a partir da gera-ção de conflitos que estimula a classe a resol-vê-la. Neste caso, a solução de um problema concreto fará com que a teoria ganhe uma fi-nalidade aplicável (Feuwerker, 2002).

Quando uma pessoa se depara com uma situação desafiadora, mesmo no campo de aquisição de conhecimentos, sem que seus esquemas mentais disponham de elementos suficientes para enfrentar o desafio, ocorre um desequilíbrio momentâneo. Então, a pessoa ativa seus esquemas assimilatórios, retirando do meio as informações necessárias, e mobili-za seus esquemas de acomodação, reorgani-zando seus novos dados e superando a situa-ção de desafio; gera-se, dessa maneira, um novo estado de equilíbrio (Ceccin e Feuer-werker, 2004). A interdisciplinaridade na prática de ensi-no

A interdisciplinaridade é uma das fer-ramentas bastante utilizada para construção de competências, pois se sabe que depois de formado e inserido no mercado de trabalho, o profissional de saúde não encontrará proble-mas divididos por disciplina.

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Um bom exemplo do seu emprego é observado quando são abordados os processos que geram a calcificação patológica. Neste caso, obrigatoriamente, discutem-se questões ligadas à fisiologia (mecanismo de ação hor-monal), bioquímica (metabolismo de melani-na), biofísica (efeitos das radiações), clínica médica (reações sistêmicas associadas) e cul-tura (hábitos alimentares).

Em turmas pertencentes a cursos dife-rentes, é imprescindível atrair a atenção dos alunos com questões pertinentes a sua área de conhecimento e atuação. Não é restringir ou especializar, mas interrelacionar o saber aca-dêmico com o campo de atuação profissional. Quando se constroem estratégias de ensino como, por exemplo, os mecanismos de hiper-sensibilidade, em turmas do curso de farmá-cia, não se deve esquecer de enfatizar as prin-cipais substâncias farmacologicamente ativas liberadas pelas células, enquanto no curso de nutrição se dá mais ênfase aos aspectos nutri-cionais promotores dos processos alérgicos e esta etapa de construção do conhecimento in-tegrado, atualmente, tem se denominado de contextualização de conteúdos.

Fica claro que não existem modelos definitivos para ensinar por competências. São as necessidades de cada grupo que devem nortear o processo de ensino-aprendizagem. Não se pode ter o mesmo ritmo, dinâmica e postura didática em turmas diferentes e prin-cipalmente em cursos diferentes. O professor deve avaliar os interesses dos alunos ade-quando os conteúdos a serem trabalhados, personalizando-os a cada realidade.

Todo professor sabe muito bem como reagem os alunos à situação global da classe; eles são influenciados não apenas pelo desafio da questão formulada ou do conhecimento novo a ser fixado, mas pelo tom da voz do professor, por sua expressão facial e pela ati-tude dos outros alunos, enfim o aprendizado está condicionado a uma série de questões sociológicas e comportamentais. Avaliando as competências

A avaliação é tradicionalmente associ-ada, na escola, à criação de hierarquias de

excelência. Os alunos são comparados e de-pois classificados em virtude de uma norma de excelência, definida no conceito de legiti-midade absoluta encarnada pelo professor e pelos melhores alunos.

No decorrer do ano letivo, os traba-lhos, as provas de rotina, as avaliações orais, a notação de trabalhos pessoais criam “peque-nas” hierarquias de excelência, sendo que ne-nhuma delas é decisiva, mas o seu somatório prefigura a classificação do aluno dentro da hierarquia final (Perrenoud, 1999).

Surge, então, outro ponto importante, como avaliar as competências?

Costuma-se, infelizmente, colocar as provas e os testes previamente marcados, co-mo ponto culminante do processo de aprendi-zagem, contudo, estudos demonstraram que a avaliação deve ser algo contínuo e não pontu-al (Cecim e Feuerwerker, 2004). Deve-se mesclar os momentos de avaliação escrita, com atividades orais (seminários, debates), aulas práticas (nos laboratórios e museus de peças anatômicas), estudos dirigidos e outras atividades que motivem os alunos a mostra-rem seus conhecimentos.

Devemos lembrar que toda a aprendi-zagem bem conduzida se caracteriza como um processo altamente dinâmico, que depen-de da atividade mental do educando e que se desenvolve pela mobilização de seus esque-mas de raciocínio. Para isso, o ensino deve apelar para atividade mental do aluno, levan-do-o a observar, manipular, perguntar, pes-quisar, trabalhar, construir, pensar e resolver situações problemáticas (Gonçalves, 2001).

Em pesquisa realizada com 350 alunos de diferentes cursos de graduação da área de saúde da Universidade Federal de Pernambu-co, que estudaram a disciplina de patologia geral nos períodos entre 2002 e 2003, de-monstra-se que 35,6% dos alunos encontra-ram dificuldades em apreender os conteúdos, e, além disso, 50,2% consideraram as aulas desmotivadoras, embora a maioria (320 alu-nos) não percebesse desmotivação dos profes-sores. Cerca de 98,2% acreditam que ativida-des didáticas estimulantes como, aulas práti-cas, estudo de casos, seminários, estudos diri-gidos, facilitariam bastante o aprendizado.

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Desta forma, podemos concluir que o problema do aprendizado não está no aspecto motivacional do corpo docente apenas, mas na forma de ensinar (metodologias e didáticas escolhidas), que de acordo com esta amostra-gem, necessita de um aprimoramento e atuali-zação.

Na avaliação, segundo a doutrina da construção de competências, os seguintes as-pectos devem ser considerados:

• Desenvolver autonomia progressiva (auto-

regulação da aprendizagem); • Ver o erro, não como um ponto de repro-

vação, mas como deficiência a ser supera-da;

• Não deve haver qualquer limitação rígida de tempo quando da avaliação das compe-tências;

• Ter domínio do conteúdo sob diferentes aspectos causais e temporais (aprendiza-gem contextualizada);

• Decidir a melhor forma de expor os co-nhecimentos apreendidos;

• Utilizar instrumentos de auto-avaliação cruzada (o docente avalia o discente, e vi-ce-versa).

Contudo, a aplicação desses conceitos pode se tornar algo complexo, enquanto a escola der tanto peso à aquisição de conhecimentos de-sarticulados e tão pouca importância à contex-tualização e à construção de competências. Desta forma, toda avaliação correrá o risco de

se transformar em um simples concurso clas-sificatório de excelências.

Assim concluímos que, o estudo da patologia associado à construção de compe-tências, pode tornar-se algo muito prazeroso, motivador e útil para os graduandos tornando-os mais capazes de se destacar como indiví-duos mais críticos e atuarem de forma mais segura dentro das suas áreas profissionais. Referências bibliográficas Ceccim, R.B. e Feuerwerker, L.C.M. (2004). Mudança na graduação das profissões de saú-de sob o eixo da integralidade. Cad. Saúde Pública, 20(5), 1400-1410. Chandrasoma P., Taylor C.R. (1998). Concise Pathology. Connecticut: Appleton & Lange. Feurwerker L.C.M. (2002). Mudanças na e-ducação médica: os casos de Londrina e de Marília. Tese de doutorado, Faculdade de Medicina de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. Gonçalves, E.L. (2001). “Pedagogia e didáti-ca: Relações e aplicações no ensino médico”. Rev. Bras. Educ. Med, 25(1), 20-26. LDB. (1996). Lei de diretrizes e bases da e-ducação nacional. FTD Editora, 5a Ed. Perrenoud, P. (2002). Dez novas competên-cias para ensinar. Porto Alegre: ArtMed Edi-tora. Perrenoud, P. (1999). Avaliação: da excelên-cia à regulação das aprendizagens entre duas lógicas. Porto Alegre: Artmed Editora.

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Psicopedagogia: limites e possibilidades a partir de relatos de profissionais

Psychopedagogy: limits and possibilities according from the professionals experiences

Maria Regina Peres e Maria Helena Mourão Alves Oliveira

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP, Brasil.

Resumo A psicopedagogia tem sido uma das áreas de conhecimento que tem gerado grande interesse nos pro-fissionais ligados à educação. Este trabalho tem por objetivo investigar a prática do professor - psico-pedagogo, seus desafios, suas limitações, suas possibilidades, frente ao cotidiano da atuação psicope-dagógica preventiva em instituições regulares de ensino. São sujeitos dez professores – psicopedago-gos de diferentes instituições de ensino. O material utilizado é um questionário de entrevista semi es-truturada. Os resultados mostram que 100% dos sujeitos são do sexo feminino, entre 26 a 50 anos. As contribuições obtidas para melhores resultados na atuação nesta área são diminuição do número de a-lunos nas classes, necessidade da continuidade de estudos, melhor compreensão sobre as possibilida-des de realização do diagnóstico psicopedagógico institucional, valorização de uma atuação conjunta com diversos profissionais, ampliação de psicopedagogos em espaços institucionais. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 115-133. Palavras-chave: psicopedagogia; aprendizagem; prevenção; professor – psicopeda-gogo; atuação psicopedagógica. Abstract Psychopedagogy has been one of the areas of knowledge that has created great interest in profession-als attached to education. This work has as its objective to investigate the practice of teacher/pscychopedagogue; his challenges, his limitations, his possibilities concerning the day-to-day routine of preventive psychopedagogy in regular educational institutions. The subjects studied are ten teacher/psychopedagogues from different educational institutions. The material used was a ques-tionnaire of semi-structured interviews. The results show that 100% of the subjects are of the feminine sex between the ages of 26 and 50. The contributions obtained for better results in performance in this area are: diminishing the number of students in the classroom, the necessity of continuing studies, better comprehension concerning the possibilities of institutional psychopedagogic diagnosis, valuing the unified performance of several professionals, and elevating the number of psychopedagogues in educational institutions. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 115-133.

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 15/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- M.R. Peres é Graduada em Biologia (PUC-Campinas) e Pedagogia (ASMEC), Mestre em Metodologia do Ensi-no (Universidade Estadual de Campinas) e Doutoranda em Psicologia (PUC-Campinas). Atualmente é Professora da Faculdade de Educação e Coordenadora de Curso de Especialização em Psicopedagogia (PUC-Campinas). É integran-te do Grupo de Pesquisa Aprendizagem, Linguagem e Leitura (PUC-Campinas). E-mail para correspondência: [email protected]. M.H.M.A. Oliveira é Graduada em Fonoaudiologia (PUC-São Paulo), Mestre em Psicolo-gia Escolar (PUC-Campinas) e Doutora em Psicologia Ciência e Profissão (PUC-Campinas). Atualmente é Professora Titular (PUC-Campinas) e Líder do Grupo de Pesquisa Aprendizagem, Linguagem e Leitura (PUC-Campinas). E-mail para correspondência: [email protected].

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Key Words: psychopedagogy; learning ability; prevention; teacher/ psychopeda-gogue; psychopedagogic performance.

Introdução

A busca pela continuidade de estudos, tem-se constituído em uma crescente neces-sidade quer seja, por questões pessoais e/ou profissionais. Esta constatação nos motivou a realizar este trabalho considerando que uma das áreas de conhecimento que têm apresen-tado grande demanda para a continuidade de estudos, entre os profissionais oriundos de cursos de formação de professores, tem sido a área de psicopedagogia.

Ao se considerar a importância da formação continuada para profissionais de diversas áreas, destacamos as idéias de Batista (2000), ao enfatizar a demanda histórica que os cursos de especialização, ou seja, que os cursos de pós-graduação lato sensu vêm con-seguindo na cultura educacional brasileira. Este crescente interesse, dentre outras ques-tões, estaria relacionado às exigências do mercado de trabalho que, juntamente com o tempo de duração dos cursos de especializa-ção, geralmente um ano letivo, vêm atraindo a muitos.

A psicopedagogia, concebida como uma área de conhecimento relativamente atu-al, historicamente apresenta como objeto de estudos, o processo de aprendizagem e suas interfaces com os vários campos de conheci-mento. Atualmente, segundo Rubinstein e co-laboradores (2004: 227) “o objeto de estudo da psicopedagogia contem-porânea continua sendo a aprendizagem, entretanto passa-se a valorizar a amplitude do fenômeno educacio-nal” e mais intensamente a relação do sujeito com a aprendizagem. Considera-se assim o contexto, a situação e as interações realizadas pelo aprendiz durante o processo de ensino e aprendizagem. Diante destes referenciais é que a ação psicope-dagógica será proposta e desenvolvida.

Isto, também contribui para que se possa situar a psicopedagogia como uma área de conhecimento interdisciplinar. Neste senti-do temos que a psicopedagogia, além de ter o seu referencial na Psicologia e na Pedagogia,

ela também considera as valiosas contribui-ções, de outras áreas de conheci-mento como a Antropologia, a Sociologia, a Fonoaudiolo-gia, a Medicina, a Neurologia, a Lingüística. Desta forma se valoriza a construção de uma educação mais ampla que integre as diversas áreas de conhecimento, na construção dos sa-beres do aluno.

A prática psicopedagógica prevê além da atuação em clinicas, a atuação em institui-ções. De modo geral, o atendimento clínico visa intervir em situações de insuces-sos que já se apresentam instaladas. A atuação insti-tucional ocorre, geralmente, em instituições de ensino, empresas, organizações assistenci-ais. Esta forma de atuação apresenta um cará-ter preventivo que visa evitar ou minimizar possíveis situações de insucessos.

Na prática institucional preventiva, um dos aspectos que merece destaque tem sido a dificuldade dos psicopedagogos em propor procedimentos de avaliação e de intervenção. Esta questão também é uma das preocupações de Bossa (2000) ao enfatizar que uma das di-ficuldades práticas com que se deparam os psicopedagogos brasileiros, reside nos proce-dimentos diagnósticos para a intervenção. Se-gundo a autora, a indefinição quanto ao ins-trumental utilizado no trabalho psicope-dagógico merece ser pensada, de forma que novas perspectivas possam daí surgir e aten-der as reivindicações inerentes à atividade psicopedagógica. Ela também acrescenta que vários autores já se debruçaram sobre esta questão, entretanto enfatiza que ainda há mui-to por se fazer.

Neste mesmo sentido, quanto aos pro-cedimentos de diagnóstico e intervenção, a-presentamos as recentes inquietações de Ru-binstein e colaboradores (2004) e Masini (2006). Estas estudiosas enfatizam que a di-versidade de práticas psicopedagógicas em função da ampliação do campo de atuação do psicopedagogo impõe o desafio da realização de novos estudos. Esses estudos poderiam se iniciar junto aos cursos de formação do psico-pedagogo se estendendo aos programas for-

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mais de pesquisa desenvolvidos nas universi-dades, especialmente junto a grupos de pós-graduação. Isto contribuiria para obtermos uma visão mais aprofundada que expressasse as atuais tendências da prática psicopedagógi-ca brasileira.

Assim diante destas e de outras consi-derações, o interesse pelo tema psicopedago-gia amplia-se e articula-se à experiência de uma das pesquisadoras que atua como profes-sora universitária e coordenadora de curso de psicopedagogia em uma instituição particular de ensino. Merece também destaque, o fato de que este tema se converteu em projeto de pes-quisa de doutorado, culminando na elabora-ção deste artigo entre orientadora e orientan-da, junto ao programa de pós-graduação em psicologia. Nesta perspectiva, o presente estudo ao pretender desenvolver uma investigação sobre a atual prática do psicopedagogo utilizou co-mo referencial além de um levanta-mento bi-bliográfico sobre o tema, uma investigação com professores que também são psicopeda-gogos e que estejam atuando em diferentes instituições de ensino públicas e particulares. Entendemos que isto nos auxilia a melhor compreender os diversos limites e possibili-dades da atuação psicopedagógica institucio-nal preventiva no nosso país. 1. O Objeto de estudo, os fundamentos e as relações da psicopedagogia

Existe consenso entre vários estu-

diosos da psicopedagogia, dentre eles Fer-nández (1994), Kiguel (1990), Macedo (1992), Rubinstains e colaboradores (2004), Massini (2006) Visca (2002), e outros, de que a psicopedagogia desde a sua origem tem si-tuado o seu objeto de estudo junto às quês-tões diretamente relacionadas à aprendi-zagem.

Respeitando-se os estudos, o contexto, as particularidades, dentre outras questões, destacamos as contribuições de Macedo (1992) e Visca (1987), que ao enfatizarem o objeto de estudo da psicopedagogia consi-deram especialmente as questões de origem metodológica, dentre elas, o como?; o quan-

do? o por que?; o para que?; se ensina e se aprende. Com isto a visão positivista de edu-cação cede espaço a uma concepção de ensino e de aprendizagem decorrente da epistemolo-gia genética. Este novo enfoque, realça a construção do conhecimento por meio do a-prender fazendo. Com isto passa-se a conside-rar as etapas de desenvolvimento cognitivo do aprendiz.

Isto segundo Kiguel (1990: 39), vem favorecer a “[...] compreensão do fenômeno da aprendizagem de forma a integrar as várias áreas do conhecimento, considerando ainda, os diferentes níveis evolutivos.” Este mesmo estudioso sugere que será pela interdisci-plinariedade, ou seja, por meio da conjugação de esforços das várias áreas do conhecimento e conseqüentemente de vários especialistas, que se poderá intervir no complexo fenômeno da aprendizagem humana.

Assim, ao considerarmos a psicopeda-gogia como uma área de conhecimentos sen-sível a questões relativas do processo educa-cional e a contextualizarmos a partir de seus referenciais teóricos, nos defrontamos especi-almente com as inegáveis contribuições da psicologia e da pedagogia. Segundo Visca (1987), a psicopedagogia foi sendo construída como uma área de conhecimento ao mesmo tempo independente e complementar da peda-gogia, por considerar as questões metodológi-cas e em especial o trabalho docente. E em relação à psicologia, por considerar especial-mente, as contribuições das escolas psicanalí-ticas, piagetiana e da psicologia social, por meio de Enrique Pichón-Rivière. A partir des-tes referenciais, a psicopedagogia enfatiza os aspectos cognos-citivos, afetivos, emocionais, sociais, além de outros.

Portanto partimos da premissa de que a construção de conhecimentos não pode se limitar a contribuições isoladas de qualquer área que seja, mas sim da inter-relação entre elas em função de um objetivo maior. Assim, a psicopedagogia entendida como uma área de conhecimentos, geradora de uma prática interdisciplinar, não pode ignorar as contri-buições das várias áreas de conhecimentos.

Diante disto, Lima (1990: 19), apre-senta a importância de um “dialogo confronto

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especialmente entre a psicologia e a pedago-gia de forma que se faça algo mais efetivo em função do sujeito cognoscente”. Desta forma, não se trata de substituir a psicologia pela psi-copedagogia, pedagogia, antropologia, filoso-fia, lingüística, biologia, fonoaudiologia, me-dicina, ou por qualquer outra área de conhe-cimento. Entendemos assim que a busca por melhorias educacionais passa pela articulação das diversas áreas em busca de significados para a atuação profissional. Neste sentido es-tamos incluindo também a atuação psicope-dagógica que, no nosso entender, em muito pode contribuir com o sucesso da dinâmica educador-conhe-cimento-educando.

Dentre os estudiosos que abordam as contribuições das várias áreas de conhe-cimento à área da psicopedagogia, destaca-mos as de Bossa (2000), e de Stroili (2001). Assim, segundo os estudos desenvolvidos, sobre este tema, temos alguns subsídios que se destacam. Dentre eles, os: da pedagogia que ao estudar as diversas abordagens do pro-cesso de ensino e aprendizagem procura em-basar a ação docente; da epistemologia e da psicologia genética que analisa e descreve o processo de construção do conhecimento pelo sujeito em interação com outros e com os ob-jetos; da psicologia social que se preocupa com as relações familiares, grupais, institu-cionais, com as interferências socioculturais e econômicas que permeiam a aprendizagem; da neuropsicologia que possibilita a compre-ensão dos mecanismos cerebrais que servem de base para o aprimoramento das atividades mentais; da psicanálise que aborda o mundo do inconsciente, das representações, que se expressa por meio de sintomas e símbolos; da lingüística que traz a compreensão da língua-gem, da língua enquanto código disponível aos membros de uma sociedade.

Com isto, tomando como referencial a idéia de complementaridade das funções em busca de articulá-las as diversas áreas do co-nhecimento humano para a compreensão do fenômeno educacional, temos que a psicope-dagogia, segundo Fagali (1998), se caracteriza como uma área de atuação interdisciplinar desenvolvida por meio das modalidades, cli-nica e institucional.

A atuação clinica na psicopedagogia apresenta um caráter terapêutico, inferindo a idéia de cura, de resgate da saúde do apren-der. Neste sentido, ela atende aos portadores de dificuldades de aprendizagens, que já se encontram instaladas. Nada impede, porém que ao se diagnosticar e proceder a interven-ção, visando eliminar ou minimizar os pro-blemas, também se atue de forma a prevenir outras, possíveis dificuldades. Neste sentido, o trabalho psicopedagógico na clinica, pode também ser considerado um trabalho preven-tivo. Com isto, o psicope-dagogo atua inici-almente realizando o diagnóstico da situação problema para, em seguida buscar as formas mais adequadas para a intervenção. O diag-nóstico visa principalmente investigar os quês? e, por quês?, de determinadas situa-ções. A fase de intervenção visa a busca das melhores opções de procedimentos para se efetivar a ação.

Na atuação institucional, segundo Fa-gali (1998), a ênfase do trabalho psicopeda-gógico reside na construção de conhecimentos desenvolvidos em nível preventivo. Este tra-balho pode ser realizado em diversas frentes institucionais visando evitar o desenvolvi-mento de possíveis problemas de aprendiza-gem ou de outras situações que possam com-prometer a educação para a vida social. Den-tre as possibilidades de atuação institucional do psicopedagogo temos trabalhos na área hospitalar, empresarial, familiar, escolar, e outras.

Em especial, enfocaremos a atuação psicopedagógica institucional e neste sentido podemos constatar que, em grande parte das instituições, o ‘fazer psicopedagógico’ ocor-re, de modo geral, tendo como referencial três vertentes. A primeira, quando o psicopedago-go é contratado temporariamente, para uma assessoria psicopedagógica. Neste trabalho, geralmente as intervenções ocorrem direta-mente junto ao grupo de docentes que por sua vez, estão em busca de metodologias diferen-ciadas de trabalho, visando um melhor apro-veitamento escolar por parte do aluno. A as-sessoria pode se dar também junto a pais ou familiares de alunos que apresentam possíveis dificuldades de aprendizagem. Neste caso,

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geralmente ocorre o encaminhamento para um atendimento psicopedagógico fora do ambien-te escolar. Diante disto, o psicopedagogo difi-cilmente irá criar vínculos com o grupo, uma vez que seu trabalho, na maior parte dos ca-sos, é esporádico, ou seja, se restringe a en-contros semanais, quinzenais e até mesmo mensais.

A segunda vertente se dá quando a instituição escolar contrata o psicopedagogo para integrar a sua equipe de trabalho. Ao a-tuar junto a equipe escolar, geralmente com-posta por diretores, coordenadores, orientado-res educacionais, professores, alunos, pais, familiares e outros segmentos o psicopedago-go tem a oportunidade de interagir diretamen-te com o cotidiano das ações desenvolvidas na instituição. Neste caso, ele passa a realizar um trabalho em conjunto com outros profissio-nais, contribu-indo assim, dentre outras ques-tões, com: o desenvolvimento de estudos e reflexões sobre os materiais didáticos escolhi-dos e utilizados; a organização e seleção dos temas de ensino; o processo metodológico e avaliativo; as situações de sucessos e insu-cessos escolares; os relacionamentos interpes-soais e outros temas e questões que sejam de interesse e necessidade da instituição. O psi-copedagogo também além de desenvolver tra-balhos sistemáticos junto a equipe escolar po-de atuar junto a grupos de pais, ou como al-guns estudiosos preferem, junto a ‘escola de pais’. Neste caso, dentre outros, o objetivo maior seria a busca de melhorias nas relações entre pais e filhos frente aos desafios de um mundo em constante mudança.

Na terceira vertente temos a presença do professor-psicopedagogo, cuja atuação irá ocorrer diretamente com alunos em sala de aula. Isto certamente favorecerá, um relacio-namento de proximidade, de confiança propi-ciando um melhor conhecimento das possí-veis dificuldades de aprendizagem dos alunos. Possibilidade semelhante a esta tem sido alvo dos recentes estudos dos pesquisadores fran-ceses Hétu e Carbonneuau (2002), que inves-tigam as contribuições dos psicopedagogos no processo de gestão da sala de aula em institui-ções de ensino da França. Esses pesquisadores enfatizam, dentre outras questões, a importân-

cia do processo integrado de gestão no interi-or da sala de aula visando um melhor aprovei-tamento educacional.

Desta forma, ao considerarmos os tra-balhos do professor-psicopedagogo, no inte-rior da sala de aula, temos que ele poderá in-tervir, dentre outras questões, no sentido de prevenir ou minimizar possíveis dificuldades de aprendizagem. Esta tendência se constitui no aspecto central, portanto de maior interesse neste trabalho, pois se vincula diretamente a nossa intenção de investigar o desenvolvi-mento da prática do professor-psicopedagogo. Nele estaremos enfatizando os possíveis ins-trumentos utilizados no processo de avaliação e intervenção, visando a realização de uma prática institucional preventiva. 2. Algumas concepções de prevenção e pre-venção em psicopedagogia

As primeiras concepções sobre pre-venção, historicamente aparecem associadas à idéia de saúde, a idéia de bem estar físico e emocional. Entretanto, Durlak (1997) concei-tua a prevenção como um conhecimento mul-tidisciplinar que envolve as diversas áreas de conhecimentos, dentre elas a educação, a psi-cologia, a medicina, a sociologia, além de ou-tras. Isto se justifica em função da multicausa-lidade dos fatores e dos objetivos que devem contemplar, os programas de prevenção, em função das necessidades pessoais ou dos gru-pos. Diante disto, os trabalhos preventivos deverão considerar objetivos múltiplos, dentre eles os de: evitar o aparecimento de proble-mas, evitar que os problemas já existentes se agravem, reduzir a gravidade de novos pro-blemas ou mesmo, retardar o desenvolvimen-to do problema.

Historicamente temos, segundo Albee e Gullotta (1997), que as primeiras propostas formais de intervenção em sentido preventivo, consideraram o aspecto mental, emocional e educacional. Essas ações ocorreram no século XX e tiveram como referencial a segunda guerra mundial e a guerra do Vietnã. Assim ao final dos anos setenta, os Estados Unidos foi o primeiro país a oficializar a criação da primeira comissão de prevenção à saúde. Esta

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proposta envolvia a participação de diversos profissionais, dentre eles, os médicos, os pa-ramédicos, os psicólogos, os educadores que atuavam junto a vitimas de problemas emo-cionais. Dentre os problemas mais comuns, entre as vítimas das guerras, estavam a pobre-za, a depressão, a raiva, a discriminação, o desemprego. Com o tempo as ações preventi-vas se ampliaram e passaram a ser desenvol-vida junto a famílias e instituições escolares, não somente para as vitimas da guerra, mas sim em sentido preventivo, para toda a comu-nidade.

Desta forma se amplia a importância e a necessidade do desenvolvimento de pro-gramas de intervenção. Os estudos e pesqui-sas sobre este tema também se expandem. Com isto, podemos encontrar em Albee e Jof-fe (1977) uma das mais significativas contri-buições, ao proporem diferentes níveis para um trabalho preventivo. Assim segundo estes autores, temos a prevenção primária, a secun-dária e a terciária. A prevenção primária se constitui de ações a serem realizadas visando evitar as situações problemas. Elas ocorrem especialmente por meio do desenvolvimento de programas educacionais. Esses programas são destinados à todos e não somente a um determinado grupo da população. A preven-ção secundária consiste em, após o diagnósti-co de um determinado problema, propor uma intervenção focalizada a um determinado gru-po. Com isto ela tem por objetivo proteger determinadas populações de risco. A preven-ção terciária é mais ampla que as anteriores tendo por objetivo a intervenção em popula-ções ou grupos onde os problemas já estão instalados. Desta forma ela visa reduzir os efeitos, as conseqüências desses problemas.

Diante disto, podemos constatar a im-portância das ações de prevenção, em especial da prevenção primária, pela possibilidade de se trabalhar de forma ampla, ou seja, com to-da a população. Isto contribuiria para evitar o surgimento de possíveis problemas, para im-pedir a instalação de situações indesejáveis, antes mesmo que elas se manifestem concre-tamente. Programas como este também cola-bora para o envolvimento e conseqüente comprometimento da coletividade, o que cer-

tamente implicará em melhorias sociais. Com isto, podemos observar que o nível de maior abrangência para o desenvolvimento das a-ções psicopedagógicas preventivas é o que vai atuar junto aos processos educativos no senti-do de evitar ou diminuir os problemas de a-prendizagem. 2.1. Intervenção psicopedagógica institu-cional preventiva

Ao tomarmos como referencial os ní-veis de prevenção, Bossa (2000) propõe três níveis de intervenção psicopedagógica. No primeiro nível, o psicopedagogo atuaria junto aos processos educativos visando evitar os possíveis problemas de aprendizagem. Para isto, é proposto um trabalho que considere as questões didático-metodológicas, e também a formação e a orientação de professores, além do aconselhamento aos pais. No segundo ní-vel, a finalidade esta em, ao mesmo tempo, diminuir e tratar os problemas de aprendiza-gem que já se encontram instalados. Para isto, a proposta reside na elaboração de um diag-nóstico da realidade institucional, a partir daí se iniciaria a elaboração dos planos de inter-venção. Esse plano deverá considerar tanto o currículo como o trabalho dos professores, visando evitar que os problemas, os transtor-nos, se repitam. No terceiro nível, o objetivo consiste na eliminação dos trans-tornos que já se encontram instaladas. Neste caso, o cará-ter preventivo estaria em prevenir o apareci-mento de outros problemas, decorrentes ou mesmo diferentes dos já eliminados. Para isto, a proposta de intervenção deverá ser a de pro-por alternativas para minimizar as decorrên-cias dos problemas, além de atuar para preve-nir o surgimento de outras conseqüências.

Ao ampliar essas idéias, e enfatizar concretamente a elaboração de ações para o desenvolvimento de propostas de intervenção em nível preventivo, com o objetivo de apri-morar o processo de construção do conheci-mento, Fagali e Vale (1994) também propõe algumas alternativas. Essas alternativas con-sideram a importância da: revisão dos pro-gramas curriculares das instituições bem co-mo a articulação dos mesmos aos aspectos

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afetivo-cognitivos; atenção para a utilização de diferentes formas de trabalhar o conteúdo programático; elaboração de diversos materi-ais para uso do próprio aluno de forma a inte-grar o raciocínio, a afetividade, a cognição, o conhecimento.

Assim, a intervenção psicopedagógica preventiva proposta, toma como referencial a ação curricular e os aspectos afetivo-cogni-tivos dos aprendizes. No que se refere a ques-tão curricular, se torna evidente a necessidade do desenvolvimento de práticas que sensibili-zem os docentes sobre a importância da refle-xão critica e possível revisão de: concepções de educação; orga-nização e seleção dos con-teúdos de ensino; metodologia e avaliação. Aliado a isto se destaca a importância de se considerar a existência de vínculos afetivo-emocionais, como possíveis elementos facili-tadores do processo de ensino e aprendiza-gem.

Entretanto, se torna oportuna a consta-tação de que as propostas apresentadas, apesar de serem muito adequadas e pertinentes, nas ações que são sugeridas, para a intervenção psicopedagógica institucional, não se conside-ra a possibilidade, do professor ser um psico-pedagogo. Neste sentido partimos do pressu-posto de que, em tese, o professor-psicopedagogo, sendo um profissional especi-alizado e estando diária-mente inserido no ambiente da sala de aula, poderia também in-tervir preventivamente.

Esta nova configuração, em principio, oportunizaria a reflexão e a possibilidade de revisão da prática do professor-psicopeda-gogo e talvez, até mesmo da proposta pedagó-gica da instituição. Diante disto, consi-deramos que, este profissional estaria mais sensível a buscar propostas de trabalho que, ao mesmo tempo em que, atendessem aos in-teresses e necessidades pessoais e sociais de seus alunos, propicias-sem possíveis melhori-as nos relacionamentos e no próprio ato de ensinar e de aprender. No que se refere ao a-luno, esse professor especializado em psico-pedagogia por meio do convívio diário, pode-ria, dentre outras questões, estar atento para melhor auxiliar no desenvolvimento cogniti-vo, afetivo, emocio-nal, psicomotor, dos mes-

mesmos. Desta forma, o professor-psicopedagogo também estaria trabalhando no sentido de fortalecer as relações do grupo, não deixando de considerar a influência da escola, da família e da sociedade.

Ao abordarmos a importância da pre-venção e da intervenção psicopedagógica, não podemos ignorar a fase que precede a essas ações. A etapa de avaliar, ou seja, a avaliação psicopedagógica, que deverá anteceder a toda e qualquer proposta de intervenção, seja ela clinica ou institucional.

A avaliação psicopedagógica, de mo-do geral, aparece associada a uma queixa. Segundo Barbosa (2001), os sintomas regis-trados em uma queixa, são em princípio, ori-ginários das observações desencadeadas na instituição. Essas observações deverão, por um lado, considerar as atitudes da criança ou adolescente ao assistirem as aulas, durante os intervalos e recreios, nas atividades extra classe, nos relacionamentos com os colegas e professores. Por outro lado, na avaliação psi-copedagógica a instituição de ensino também deverá ser considerada. Desta forma, a análise da adequação dos materiais didá-ticos, da proposta pedagógica, da método-logia, da a-valiação, associadas a entrevistas com profes-sores, tem se constituído em importante ins-trumento de avaliação.

Assim diante das diversas possibi-lidades de intervenção psicopedagógica, po-demos constatar, que no Brasil os recursos mais utilizados para a avaliação na instituição, têm sido as entrevistas, as observações, os inventários, as pesquisas, as dinâmicas gru-pais e em especial os jogos pedagógicos. Comtudo a importância da ação psico-pedagógica preventiva, deverá sempre consi-derar a subjetividade do aluno, bem como as particularidades de cada situação, além da complexidade dos fatores que a permeiam.

Uma realidade diferente da brasileira, no que se refere a avaliação e intervenção psi-copedagógica, pode ser encontrada na Ar-gentina. Neste país, é prática comum, o psico-pedagogo utilizar, tanto na clinica como na instituição, diversos testes como instru-mento para a avaliação do aluno. Entretanto o refe-

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rencial para o atendimento tanto clinico como institucional está na família e na escola.

Desta forma, as propostas de interven-ção, de modo geral, se iniciam a partir de en-trevistas estruturadas ou semi-estrutu-radas com pais ou familiares, com os docentes ou coordenadores das escolas e com o aluno. Es-sas entrevistas se constituem em uma anam-nese que, com os pais ou familiares, tem por objetivo principal conhecer o histórico de vi-da do aluno e as relações que permearam es-sas histórias. As entrevistas com os docentes, coordenadores ou orientadores, visam obter informações sobre o processo de ensino e a-prendizagem, conhecer a proposta da institui-ção, a metodologia, a avaliação, o material didático, e especialmente as relações profes-sor e aluno e entre os alunos. A entrevista ini-cial com o aluno, dentre outros, tem por obje-tivo o levantamento de hipóteses sobre os comportamentos, os relaciona-mentos, os in-teresses, e até mesmo os pos-síveis silêncios do aluno diante de algumas questões.

Juntamente com a entrevista, o psico-pedagogo argentino, também utiliza com as crianças, alguns instrumentos específicos de avaliação. Dentre os instrumentos que irão nortear as propostas de intervenção psicope-dagógicas estão os testes de inteligência, as provas de nível do pensamento ou também chamadas de piagetianas, a avaliação do nível pedagógico, a avaliação perceptomotora, os testes projetivos, os testes psicomotores e ou-tros. Também merece destaque como forma de ins-trumento mais amplo e subjetivo de avaliação o que Fernández (1990: 44) denomina de “o olhar e a escuta psicopedagógica”. Segundo a autora, essa postura é revelada por meio da disponibilidade do psicopedagogo ouvir aten-tamente a família, a instituição escolar e o a-luno visando formular hipóteses sobre deter-minados fatos, situações, contextos.

Temos ainda que o referencial teórico mais utilizado na avaliação psicopedagógica argentina, é o da “Epistemologia Conver-gente em Psicopedagogia” . Nesta proposta o psicólogo argentino Visca (2002) parte da concepção de que a psicopedagogia conver-

gente deve considerar as contribuições das escolas de Genebra, da Psicanalítica e da Psi-cologia Social. Dentre outros fatores, os tra-balhos da escola de Genebra subsidiariam os fundamentos sobre a construção do conheci-mento, os da escola psicanalítica auxiliariam na explicação de questões relaci-onadas a afe-tividade e os trabalhos da psicologia social enfocariam as questões culturais, os processos grupais e suas relações com o individuo.

Assim, ao abordarmos a diversidade de recursos da avaliação psicopedagogia insti-tucional na Argentina e confrontá-la com a realidade da avaliação psicopedagógica no Brasil, podemos constatar a existência de um enorme distanciamento entre elas. Talvez a mais significativa diferença relacionada à ava-liação e intervenção psicopedagógica resida na própria questão da formação do psicope-dagogo. Na Argentina os cursos que formam o psicopedagogo apresentam disci-plinas co-muns nos dois primeiros anos à formação do psicólogo e do psicopedagogo. Além disso, os currículos dos cursos de psicopedagogia apresentam uma significativa carga horária para disciplinas de técnicas de diagnóstico psicopedagógico, diagnóstico psicopedagógi-co institucional, intervenção psicopedagógica em instituições escolares, além de outras dis-ciplinas. Isto, dentre outros fatores, favorece a possibilidade da liberação do o uso de testes tanto para os psicólogos como para os psico-pedagogos argentinos, além de propiciar uma melhor possibilidade de preparação para o exercício profissional.

No Brasil a avaliação por meio do uso de testes psicológicos, de inteligência, proje-tivos e outros, são de uso exclusivo dos psicó-logos. No nosso entender isto é muito coeren-te, especialmente com os pressupostos que norteiam a formação do psicopedagogo no Brasil que é muito diferente dos valorizados em alguns outros paises. Assim temos que dentre outros paises, na Argentina, a forma-ção básica do psicopedagogo ocorre após qua-tro anos de estudos, em nível de graduação. Em continuidade a formação inicial, são pro-postos cursos de especia-lização, mestrado ou doutorado.

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Na França, a formação inicial ocorre por meio dos programas de ciências da educa-ção. A formação continuada ocorre nos cursos de pós-graduação na área de psicopedagogia. Isto caracteriza uma enorme diferença em re-lação a atual formação do psicopedagogo no Brasil. Podemos afirmar que, exceto raríssi-mas exceções, são os cursos de especializa-ção, geralmente com duração de aproxima-damente 360 horas distribuídas em um ano letivo, que teoricamente formam o psicopeda-gogo brasileiro. Não podemos nos esquecer também que estes cursos de especialização recebem profissionais de diversas formações iniciais, porém de ‘áreas afins’. Isto certamen-te se constitui em um diferencial altamente significativo, para o exercício desta atividade, que já se inicia na formação, perpassa pela atuação e reflete diretamente na identidade e na questão da regulamentação da profissão.

No Brasil a psicopedagogia não pos-suem o status de profissão regulamentada, ela esta oficialmente catalogadas, junto ao Códi-go Brasileiro de Ocupação – CBO, como uma ocupação. Este fato não desmerece o trabalho do psicopedagogo. Ao contrário, partimos do pressuposto de que este posicionamento além de mais coerente em sentido educacional con-tribui para se evitar dificuldades que esbar-ram, sobretudo, na construção da identidade e da legalidade para o exercício profissional. Se por um lado o exercício da psicopedagogia esbarra na questão da legalidade, por outro lado, temos também a realidade de que vários municípios, especialmente nos estados do Sul e de São Paulo, ignoram o reconhecimento da profissão e realizam concursos públicos para psicopedagogos. No estado de São Paulo, também temos a aprovação do projeto lei n.º 128/2000, que estabelece a assistência psico-lógica e psicopedagógica em todas as institui-ções de ensino básico, abrindo a possibilidade do psicopedagogo se integrar profissional-mente na área educacional. Acreditamos que, fatos como estes contri-buem com idéias po-pularmente dissemi-nadas entre os psicopeda-gogos de que, apesar da psicopedagogia ainda não ter conquistado o status de ser uma pro-

fissão regulamentada no nosso país, ela en-contra-se legitimada.

Desta forma, a questão da formação interfere diretamente na avaliação psicopeda-gógica perpassando pela possibilidade de construção e sedimentação de um referencial teórico que irá servir de parâmetros para a organização de instrumentos avaliativos e, sobretudo para analises dos resultados obti-dos. 3. Objetivos

Diante do exposto são objetivos deste estudo descrever e analisar a prática de pro-fessores que também são psicopedagogos, investigar seus possíveis limites e possibili-dades. São objetivos específicos:

• caracterizar o professor – psicopedagogo, a

partir de alguns dados pessoais e profis-sionais;

• identificar a instituição em que estes pro-fissionais estão atuando;

• descrever a prática cotidiana do professor - psicopedagogo;

• verificar a opinião dos entrevistados so-bre as influências da formação inicial na prática psicopedagógica;

• verificar os trabalhos de intervenção psi-copedagógica preventiva e os procedi-mentos de diagnósticos mais utilizados;

• descrever as propostas de intervenção psi-copedagógica considerada como bem su-cedida;

• identificar, segundo os participantes, as contribuições da psicopedagogia institu-cional preventiva, os seus desafios e suas sugestões, para a obtenção de melhorias na prática psicopedagógica.

4. Metodologia

Assim, visando atingir os objetivos propostos buscamos, por meio da trajetória metodológica, dos relatos e das ações, des-crever os limites e as possibilidades da prática cotidiana do professor – psicopedagogo. Para isto utilizamos como referencial os dados ob-tidos por meio de questionário semi estrutura-

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do além da análise qualitativa para os dados obtidos.

Para isto, utilizamos inicialmente um pré-teste com dois psicopedagogos, tivemos com isto, o objetivo de verificar validade do instrumento. Diante dos resultados obtidos, o instrumento sofreu pequenas adequações vi-sando atender ao novo universo da pesquisa que passou a considerar o grupo de professo-res – psicopedagogos que deveriam estar atu-ando em sala de aula, junto ao Ensino Fun-damental, em instituições publicas ou particu-lares do estado de São Paulo.

Participantes

Os dez professores – psicopedagogos participantes desta pesquisa, foram convida-dos pela pesquisadora, para que pudéssemos obter um universo variado em termos de tem-po de experiência profissional e de realidades de instituições de ensino.

Os entrevistados foram escolhidos in-tencionalmente em função de pertencerem a diferentes realidades educacionais e atende-rem aos objetivos da pesquisa. Isto segundo Thiollent (1986), se apresenta como um prin-cípio perfeitamente adequado ao contexto de uma pesquisa que enfatiza aspectos qualitati-vos. Apesar do convite, a participação na pes-quisa, se deu de forma voluntária, sendo pos-sível que o participante se retirasse em qual-quer momento sem que houvesse nenhuma espécie de penalidade ou ônus. Também foi destacado o nosso compromisso em respeitar a privacidade e o sigilo em relação aos dados ou informações obtidos, bem como o nosso objetivo de retornar aos participantes os resul-tados obtidos com este trabalho.

Material

O material utilizado consistiu de um questionário semi-estruturado. Os participan-tes da pesquisa tiveram acesso a este instru-mento de diferentes formas, conforme a mani-festação explicitada. Assim o questionário chegou aos participantes, nos meses de março e abril de 2007, via correio eletrônico ou pes-soalmente, isto é em mãos. O questionário

apresentou três partes, sendo que na primeira buscamos informações referentes a dados pes-soais dos entrevistados. Na segunda parte, buscamos situar o professor – psicopedagogo quanto a sua formação inicial e continuada e seu tempo de atuação. Na terceira parte, enfo-camos os relatos sobre a atuação profissional e a possível existência de intervenções psico-pedagógicas preventivas.

Procedimento

No contato inicial com os partici-pantes apresentamos o Termo de Consen-timento Livre e Esclarecido. Este termo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa, por meio do protocolo 362/06, tendo também sido registrado junto a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP, por meio da fo-lha de rosto – FR 97120. Ao apresentarmos o termo aos participantes da pesquisa, ressalta-mos a importância do registro de aceite, bem como explicitamos os objetivos da mesma além da forma de participação dos envolvi-dos, e do caráter sigiloso das informações a serem obtidas. Enfatizamos assim que todo o desenvolvimento da pés-quisa considerou a preservação da integridade física, cognitiva, afetiva e moral dos partici-pantes. Atendendo assim as normas éticas implícitas nas pesqui-sas com seres humanos.

Os procedimentos utilizados na pés-quisa foram desdobrados nas seguintes etapas:

• Elaboração de pré-teste. O pré-teste foi

realizado de forma voluntária com dois psicopedagogos;

• Contato inicial com os professores – psi-copedagogos. Neste encontro, foram apre-sentados os objetivos do trabalho de pes-quisa, sendo questionado o interesse ou não em participar da mesma. Em caso a-firmativo, o termo de consentimento livre e esclarecido foi entregue, formalizando assim a concordância na participação;

• Encaminhamento dos questionários. Essa etapa ocorreu para os pesquisados que no contato inicial manifestaram o desejo de colaborarem com a pesquisa. Conforme a opção de cada participante, o questionário

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já foi entregue ao final do contato inicial para que depois de respondido, fosse de-volvida por meio de correio, via carta se-lada. Para outros participantes que dese-jaram responder por correio eletrônico, foi solicitado o e-mail pessoal, sendo o ques-tionário encaminhado posteriormente;

• Sistematização e análise dos dados obti-dos.

5. Resultados e discussão

Os entrevistados são todos professores – psicopedagogo pertencentes ao sexo femi-nino com idades entre 26 a 50 anos. Do total de entrevistados, 60% são formados exclusi-vamente em pedagogia, 20% fizeram cursos de licenciatura, sendo, português e inglês e matemática, 10% possui dupla formação, pu-blicidade e propaganda e pedagogia e 10% apresenta a formação em psicologia. Neste último caso, podemos constatar a existência do psicólogo, atuando como pro-fessor em sala de aula. Isto não nos causou grande surpresa, pois é de conhecimento pú-blico, a existência de vários outros profissio-nais que embora não apresentem a formação desejada para a atuação, desenvolvem seus trabalhos como coordenadores, como orienta-dores educacio-nais e até mesmo como gesto-res, especial-mente junto a instituições parti-culares de ensino. Para isto, partimos do pres-suposto de que, neste caso, embora não se jus-tifique, o curso de psicopedagogia deve ter contribuído para auxiliar na preparação deste profissional para o desempenho da função de professor - psicopedagogo. Temos também que 70% dos entre-vistados realizaram seus cursos de formação inicial em instituições particulares e 30% são provenientes de instituições públicas de ensi-no. O tempo de formação inicial dos entrevis-tados varia entre dois anos a vinte e dois anos. Dos participantes, 90% atuam na formação de origem e somente 10% não atua na formação de origem. Também temos uma variação que compreende a faixa de um a nove anos, para o tempo de formação como especialista em psi-copedagogia.

Em relação a instituição de Ensino Fundamental em que os participantes atuam como professores – psicopedagogos, temos que 50% delas são instituições de origem pública, 40% de origem particular. Temos também 10% do total de participantes que a-tuam ao mesmo tempo em instituição publica e particular. Ao relatarem como desenvolvem os seus trabalhos os entrevistados indicaram co-mo principais procedimentos metodoló-gicos: aula teórica, aula prática (jogos variados, mu-sica, alfabeto móvel), exercícios de compre-ensão e aplicação, leitura e releitura de textos, produção de textos. Os recursos didáticos re-latados foram: livro didático, livro paradidáti-co, materiais concretos, televisão e vídeo.

Os dados obtidos revelam a predomi-nância de duas áreas de conheci-mentos, a de língua portuguesa e a de matemática. Isso o-correu apesar de contarmos somente com um entrevistado formado em língua portuguesa e um formado em matemática que atuam espe-cificamente nestas áreas de conhecimento. Os demais estão atuando preferencialmente nes-tas áreas, no ensino de 1ª. a 4ª.série. Podemos considerar que isto já era esperado em função das orientações da atual LDB 9394/96, que no artigo 32, enfatiza que o Ensino Fundamental, dentre outros, deverá ter por objetivos o de-senvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. Desta forma se ressalta o desenvolvimento das habilidades diretamente ligadas à essas áreas. Justamente as duas áreas de conhecimento mais enfatiza-das pelos entrevistados.

Entretanto, se por um lado a atual LDB ressalta a importância de um trabalho nas áreas de língua portuguesa e matemática, por outro lado, no mesmo artigo 32, da LDB, outros objetivos são propostos. Dentre eles destacamos os relacionados à compreensão do ambiente natural e social do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade. Neste sentido também se valoriza o trabalho com outras á-reas de conhecimentos, como as de ciências naturais, história, geografia, artes. Enten-demos como altamente significativa essa falta

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de referências a outros componentes curricu-lares. Esperamos que isto não signifique a au-sência de um trabalho com as áreas de ciên-cias, história, geografia, dentre outras, pelos professores – psicopedagogos, em detrimento da exclusividade para a realização de um tra-balho isolado somente com as áreas de língua portuguesa e de matemática.

Os procedimentos metodológicos mais utilizados pelos entrevistados são a aula teórica, a aula prática, exercícios de compre-ensão e aplicação, leitura e releitura de textos, produção de texto. No nosso entender são procedimentos viáveis que devem ser utiliza-dos de forma variada. Entretanto, independen-temente do procedimento que se utilize, enfa-tizamos a importância de que o professor - psicopedagogo incentive os alunos para que registrem as atividades desenvol-vidas. Esta estratégia se constitui em um referencial sig-nificativo, pois auxilia na melhor compreen-são dos temas estudados, possibilitando a or-ganização de idéias e estimulando a aprendi-zagem dos alunos. Ela também pode se cons-tituir em parte do processo avaliativo.

Partindo do referencial de que os pro-fessores - psicopedagogos utilizam nas aulas práticas, materiais concretos, recorre-mos a Lorenzato (2006), que se refere aos materiais concretos como recursos didáticos que agem diretamente no processo de ensino e aprendi-zagem, dependendo dos objetivos a serem a-tingidos. Assim é de fundamental importância que ao utilizar esses materiais em sala de aula, o professor planeje muito bem o seu trabalho, selecione e organize os conteúdos a serem desenvolvidos bem como a possibilidade de utilização dos mesmos. Diante disto, se torna interessante ressaltar a importância de um tra-balho com uma grande variedade de materiais concretos bem como, com a exploração de atividades diversas com um mesmo tipo de material, atendendo assim as diferentes, mas complementares áreas de conhecimentos.

Assim, diante dos dados obtidos junto aos entrevistados, seria altamente relevante que o professor - psicopedagogo construísse uma prática apoiada em sólidos referenciais teóricos e que ao exercê-la, não se limitasse ao ensino de língua portuguesa e matemática.

Outro diferencial a ser considerado na prática do professor - psicopedagogo, se refere a op-ção de escolha do material didático a ser utili-zado. Assim, mesmo que a instituição escolar imponha determinados materiais e recursos didáticos, em especial, o livro didático, que o professor - psicopedagogo não se detenha a este único material. Que ele tenha a sensibili-dade de possibilitar aos seus alunos a experi-ência de trabalhar com diferentes materiais, por meio de diversos procedimentos metodo-lógicos. Também seria fundamental que o professor – psicopedagogo considerasse a possibilidade da efetivação da avaliação diag-nóstica. Ela poderia se consti-tuir em um pro-jeto, visando inicialmente, dentre outras ques-tões, a própria organização do como e do quando seria mais oportuno realizá-la. Neste sentido esta proposta possibilitaria melhor situar o aluno, frente as diferentes áreas de conhecimentos, além de se transformar em um recurso de trabalho do professor - psico-pedagogo, que se somaria a outros visando uma aprendizagem mais real e significativa. No nosso entender, isso também é atuar pre-ventivamente na sala de aula. Obtivemos também como resultado que 90% dos entrevistados percebem as influ-ências da formação inicial na atual prática. Eles afirmam que, de modo geral, isto se re-vela por meio do desenvolvimento de ativida-des na escola. Isto vem de encontro às idéias de Castanho (2001) ao explicitar que na atua-lidade se valoriza a formação inicial bem co-mo a formação continuada com base na reali-dade da prática e na constituição da profissão docente. Deste grupo que consegue perceber as influências da formação inicial na atual prática, se destacam 60% de professores – psicopedagogos que se referem às dificulda-des de aprendizagem. Essas dificuldades apa-recem compreendendo vários fatores, dentre eles, os de origem cognitiva, emocional, dis-ciplinar. Relacionamos situa-ções como estas às idéias de Visca (2002) ao se referir a psi-copedagogia como uma área de conhecimento que favorece inter-relações com outras áreas, não deverá se prender somente a busca de respostas que envolvam a questão cognitiva de forma isolada. Ao contrário, é na interação

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dos vários fatores, dentre eles os de origem cognitiva, afetiva, emocional, social, familiar, neurológica, que estão as respostas mais pre-cisas e coerentes às questões de aprendiza-gem.

Juntamente a isto, temos que 70% dos entrevistados afirmam realizarem um trabalho psicopedagógico preventivo. Constatamos uma tendência, em indicar os jogos como um dos recursos mais utilizados para o diagnósti-co visando um trabalho preventivo. Além dos jogos, os entrevistados indicaram os brinque-dos, as brincadeiras, os desenhos, as produ-ções escolares, os questionários para entrevis-tas com a família, a observação, o olhar e a escuta psicopedagógica, o inventário com os registros dos dados. A importância dos jogos como instrumento avaliativo, para a realização de um trabalho preventivo é inegável, entretanto, Lorenzato (2006), lembra que por melhor que seja um material didático, ele não é garantia sucesso na aprendizagem. Isto vai depender muito de como o material será utilizado. Isto obvia-mente também vai depender dos referen-ciais teóricos do psicopedagogo. Também ressal-tamos que os jogos, os brinquedos, as produ-ções do aluno, por exemplo, podem ser utili-zados inicialmente como instrumento de di-agnóstico e posteriormente como junto às prá-ticas de intervenção, como um recurso meto-dológico, visando à superação de possíveis dificuldades de aprendizagem. Os dados obtidos revelam a existência de professores - psicopedagogos que apresentam maior clareza sobre que a atuação preventiva, chegando a apresentar algumas ações concre-tas. Outros se referem a importância do traba-lho preventivo, mas não chegam a apresentar ações para a sua realização, eles apresentam a intenção, mas explicitam como seria o desen-volvimento do trabalho preven-tivo institu-cional.

Temos também um significativo grupo representado por 30% dos entrevistados, que apesar de estarem atuando como professores - psicopedagogos em instituições de ensino a-firmaram não realizarem um trabalho psico-pedagógico preventivo.

Esta realidade é altamente preocu-pante, uma vez que a psicopedagogia institu-cional se caracteriza especialmente pelo de-senvolvimento de um trabalho em nível pre-ventivo. Desta forma, segundo Bossa (2000), o trabalho psicopedagógico preven-tivo na instituição, está diretamente relacio-nado ao processo de ensino e aprendizagem de forma individual ou grupal. Neste sentido caberá ao psicopedagogo, dentre outras ações, identifi-car as possíveis perturbações no processo e-ducacional, atuar conjuntamente com demais profissionais da instituição, contribuir na ori-entação do trabalho didático metodológico junto aos docentes, buscar melhorias educa-cionais. Como, estamos aqui com um grupo de professores – psicope-dagogos, entende-mos que ações como estas, além de outras, que considerassem especial-mente a questão metodológica, afetiva, o envolvimento dos pais e familiares bem como dos demais pro-fissionais da escola, deveriam ser uma cons-tante na rotina de possibilidades de trabalho dos entrevistados. Ao serem questionados sobre o(s) procedimento(s) diagnóstico(s) utilizados para a intervenção psicopedagógica, os professores – psicopedagogos mais uma vez indicaram os jogos e em seguida as atividades de leitura e escrita. Outros procedimentos também foram citados como: atividades matemáticas, ativi-dades lúdicas, representações, dramatiza-ção, desenho, brincadeiras, entrevistas com pais, entrevistas com alunos, observações e a avali-ação dinâmica do potencial da aprendizagem – LPAD. Este ultimo proce-dimento pro-posto por Reuven Feuerstein, se refere Pro-grama de Enriquecimento Curricu-lar – P.E.I. que dentre outras questões, compreende um trabalho de avaliação do potencial cognitivo. Os resultados também revelam a difi-culdade de muitos dos entrevistados em rela-tarem ou até mesmo de situarem e se posicio-narem sobre a utilização de procedi-mentos para um diagnóstico institucional. Isto pode ser constatado quando os professores – psico-pedagogos confundem procedimentos com materiais utilizados. Assim, temos entrevis-tados que diante da solicitação de registrarem os procedimentos mais utilizados indicaram

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materiais como: noticias de jornais e revistas; atividades que envolvem o uso da visão, da audição, de coordenação motora grossa e fi-na; histórias clássicas e em quadrinhos. Diante disto, seria fundamental que os professores – psicopedagogos não tomassem um único instrumento como fonte exclusiva para a avaliação, mas sim considerassem a possibilidade de utilização de vários proce-dimentos bem como das várias frentes de investigação, dentre elas a escola, a família, as relações sociais, os interesses pessoais e outros. Também deve ser analisada a possibi-lidade de se recorrer a avaliação de outros profissionais em função das necessidades a-presentadas.

Assim temos segundo Rubinstains e colaboradores (2004), que as práticas avalia-tivas e de intervenção psicopedagógica são extremamente variadas no Brasil uma vez que os psicopedagogos ancorados em suas forma-ções, em seus referenciais teóricos desenvol-vem um estilo próprio de avaliação e inter-venção psicopedagógica. Elas ainda explici-tam que apesar das particularidades, podemos encontrar pontos comuns na prática psicope-dagógica brasileira. Isso se revela especial-mente na opção em atuar utilizando recursos como os jogos, a observação, o P.E.I., os pro-jetos de trabalho.

Ao serem convidados a relatarem uma intervenção psicopedagógica considerada bem sucedida muitos professores – psicopedago-gos a fizeram em várias instan-cias. Desta forma eles destacaram interven-ções realiza-das diretamente com os alunos, com os pais e com outros profissionais da instituição. Os entrevistados também utilizaram ou mencio-naram a importância da utilização de vários recursos para isto. Com os alunos os recursos cognitivos mais utilizados foram: histórias, caderno, lousa, leituras, figuras, representa-ções gráficas, materiais concretos para alfabe-tização, atividades pedagógicas. Com os alu-nos também foram destacadas situações que envolvem a afetividade, a estimulação, a ob-servação, a auto-avaliação. Com os pais fo-ram destacadas as conversas informais e as entrevistas. Com os demais profissionais as

intervenções para a realização de um trabalho integrado.

A importância do trabalho integrado, já foi apontada por Barbosa (2001), Visca (2002), Saravali (2004) dentre outros, como um dos diferenciais da prática do psicopeda-gogo. Neste momento, entretanto, retomamos e ampliamos estas idéias destacando a rele-vância de que o professor – psicopedagogo realize um trabalho diagnóstico e de interven-ção, articulado com as equipes interna e ex-terna da escola. Diante dos relatos de intervenções bem sucedidas, podemos perceber que muitas das questões relacionadas a aprendizagem se misturam as relacionadas a afetividade. Neste caso o professor – psicopedagogo parece as-sumir a posição de um mediador entre conhe-cimentos formalmente exigidos pela escola, o interesse dos alunos, o nível de desenvolvi-mento cognitivo dos mesmos, as expectativas da família, as relações afetivas, dentre outras, que permeiam o processo educacional.

Ao considerar a indicação das contri-buições essenciais da psicopedagogia obtive-mos junto aos entrevistados resultados que se referem a: busca de melhorias na aprendiza-gem; melhor compreensão do processo de construção do conhecimento; revisão da pró-pria prática docente; prevenção a problemas de aprendizagem; diagnostico das dificulda-des de aprendizagem; consideração do con-texto emocional e cognitivo do aprendiz; pos-sibilidade de realização um trabalho conjunto; avaliação do aluno como um todo; aprendiza-gem para a ouvir o aluno e sua família; com-preensão da complexidade dos diversos fato-res envolvidos no processo educacional; de-senvolvimento de um olhar diferenciado para a aprendizagem e para as dificuldades de a-prendizagem; analise do processo de ensino e aprendizagem a partir do sujeito que aprende e da instituição que ensina; busca de metodo-logias diferenciadas de trabalho.

Como pode ser constatado, a grande parte dos entrevistados, atribuem como con-tribuições da psicopedagogia, os fatores que se articulam diretamente ou indiretamente a obtenção de melhorias relacionadas ao pro-cesso de ensino e aprendizagem. Entre-tanto

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entendemos que a psicopedagogia vai além disto pois, segundo Kolyniak Filho (2001) também seria importante que os psicopedago-gos que atuam em escolas, não se limitassem a considerar somente a superação de possíveis dificuldades de aprendizagem. Eles poderiam e deveriam, criar mecanismos pelos quais os alunos pudessem interagir com mais seguran-ça, apreço, solidariedade, respeito, dentre ou-tros valores. Enfim, que a psicopedagogia também pudesse contribuir para a formação ética e cidadã do aluno.

Ampliando os dados obtidos junto aos entrevistados, temos também os estudos e pesquisas dos educadores franceses Hétu e Carbonneuau (2002), que dentre outras ques-tões, apontam que uma das atuais contribui-ções da psicopedagogia institucional reside em auxiliar na reflexão individual e do grupo sobre a prática dos docentes e sobre a adequa-ção e diversidade dos projetos da instituição. Essa diversidade se refere, aos projetos insti-tucionais, objetivos esperados, interesses e necessidades dos alunos, seus possíveis limi-tes e suas possibilidades, seus vínculos afeti-vos, emocionais, familiares e mais recente-mente as situações de violência por eles en-frentados.

A seguir registramos os resultados ob-tidos diante da solicitação de tomar como re-ferencial a relação teoria e prática e indicar os principais desafios na área psicopedagógica. Mais uma vez se destaca a preocupação com elevado número de alunos em sala de aula. E novamente esta situação é apontada como e-lemento que dificulta o bom desenvolvimento do processo educacional. Juntamente a isto, os entrevistados agora, evocam esta realidade também como elemento desafiador para um trabalho psicopedagógico institucional. Ou-tros fatores também foram apontados como desafiadores da área de psicopedagogia como: a ausência de supervisão que acompanhe o trabalho psicopedagógico; a existência de tra-balho psicopedagógico na escola; a existência da psicopedagogia na rede pública de ensino; a ampliação do número de professores – psi-copedagogos; a ampliação dos atendimentos psicopedagógicos nas escolas; a possibilidade de auxiliar na superação das dificuldades de

aprendizagem, promovendo a aprendizagem; a realização de um trabalho integrado; o reco-nhecimento profissional e cientifico.

Ao retomarmos a idéia do excessivo número de alunos em sala e da dificuldade de se fazer um bom trabalho ou um trabalho psi-copedagógico por causa disto, os entrevista-dos reforçaram as idéias de Angelini (2006) que destaca a existência de condições que im-pedem ou comprometem a qualidade da edu-cação no Brasil. Dentre elas, esta pesquisa-dora destaca as classes numerosas; o que se entende por progressão continuada; a ausência de condições mínimas para o trabalho; a de-sestruturação das famílias; a inadequada for-mação de muitos professores; a má remu-neração dos professores.

Essas questões, com exceção da que se refere a má remuneração, já haviam sido a-pontadas em outros momentos também pelos entrevistados. Assim entendemos que seria importante que, de um lado, as instituições de ensino, sejam elas públicas ou particulares revissem as questões de caráter estruturais e pedagógicas que possam estar comprometen-do a qualidade da aprendizagem. Por outro lado, também se torna fundamental que o pro-fessor, se prepare para o trabalho educacional, que após a sua formação inicial, dentre outras questões, ele invista na continuidade de seus estudos.

Neste sentido, a expectativa de traba-lho com o professor – psicopedagogo, se tor-na uma alternativa, se considerarmos que esse profissional já apresenta um diferencial que reside na formação continuada. A isto acres-centamos a expectativa de que ele também apresente uma sensibilidade maior para o de-senvolvimento de uma prática diferenciada, que não ignora as possíveis dificuldades dos seus alunos, mas que diante dela, trabalha à partir das possibilidades do mesmo.

A coerência entre a relação teoria e prática, é o elemento essencial que irá funda-mentar as ações psicopedagógicas. Isto talvez se constitua em um dos maiores desafios da psicopedagogia, resgatar a concepção de edu-cação do professor - psicopedagogo e sensibi-lizá-lo para a sua importância no trabalho de diagnóstico e intervenção junto a seus alunos.

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Neste sentido temos as contribuições de Moo-jen (2004), que resgata a importância de um trabalho de diagnóstico e de intervenção coe-rentes, subsidiados por teorias atuais que, dentre outras questões, considerem os avan-ços do mundo cultural.

Ao serem questionados sobre as con-tribuições visando melhorias na atuação psi-copedagógica, 90% dos professores – psico-pedagogos se manifestaram indicando a ne-cessidade de: diminuição do número de alu-nos nas classes; investir na continuidade de estudos, melhorias no diagnóstico psicopeda-gógico, atuar de maneira conjunta conside-rando o envolvimento da família e dos diver-sos profissionais, ampliar o número de psico-pedagogos nas instituições. Muitas das indi-cações já haviam sido apresentadas em mo-mentos anteriores, é o caso do elevado núme-ro de alunos em sala de aula, da importância a continuidade de estudos, do diagnóstico psi-copedagógico e da atuação conjunta com os diversos profissionais.

Ao considerarmos as contribuições a-presentadas pelos professores - psicopedago-gos, partimos do pressuposto que elas se ca-racterizam como elementos complementares. Os elementos ou atitudes isoladas, dificilmen-te se caracterizam como melhorias. Se to-marmos como referencial, por exemplo, a im-portância da continuidade de estudos, isto cer-tamente influirá na realização de um melhor diagnóstico, na sensibilidade para a formação de uma equipe de trabalho, no desenvolvi-mento de ações conjuntas, dentre outras ques-tões.

A queixa sobre a dificuldade de se fa-zer um trabalho de melhor qualidade, por cau-sa do alto número de alunos em sala de aula e a proposta de se diminuir a quantidade consi-derada como excessiva, não se caracteriza como uma dificuldade exclusiva do professor - psicopedagogo. Temos vários estudos que, dentre outras questões, apresentam a necessi-dade de se rever o excesso de alunos em salas de aula, especialmente em algumas regiões do nosso país. Dentre esses estudos e propostas, destacamos as do “Projeto Brasil 2022 – Do país que temos para o país que queremos” – que enfoca o tema “A educação que quere-

mos”. Esses estudos foram realizados pelo Instituto PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais) que tem a sua principal atividade centrada na educação e contou com a participação de renomados educadores. Os resultados obtidos foram divulgados no ano de 2003 visando a obtenção de melhorias para o país em diversos setores. No que se refere a educação e ao estado de São Paulo, temos por meio do relatório apresentado em 27.04.06, a ênfase dada a necessidade do desenvolvimen-to de estudos, para que se possa diminuir o número de alunos em sala de aula. Segundo esse mesmo estudo, o estado de São Paulo conta hoje com a média de quarenta estudan-tes em sala de aula, o que tende a comprome-ter a qualidade do ensino.

Diante disto, torna-se evidente a ne-cessidade da redução do número de alunos em sala de aula. Entretanto, entendemos que isto não poderá se constituir como condição isola-da para a obtenção de melhorias educacionais e muito menos para a realização de um traba-lho psicopedagógico preventivo. Outros fato-res merecem consideração dentre eles, a pró-pria formação do professor e do psicopedago-go; as condições físicas, estruturais da insti-tuição escolar; a questão curricular; o projeto pedagógico da escola; a avaliação e interven-ção psicopedagógica em nível preventivo; a formação de uma equipe para o desenvolvi-mento de um trabalho integrado. 6. Considerações finais

Os resultados indicam por um lado, a existência de vários elementos limitantes, ou dificultadores do trabalho psicopedagógico institucional. Estas questões perpassam, em muitos casos, pela própria dificuldade de con-ceber em que se constitui um trabalho institu-cional preventivo. Juntamente ao desafio de se elaborar e realizar diagnósticos e interven-ções na instituição. Estas dificuldades, no nosso entender, dentre outras, se relacionam diretamente a ausência deste tipo de experiên-cia que deveria ter sido propiciada, especial-mente pelos cursos de especialização em psi-copedagogia e também pelas próprias institui-ções onde estes profissionais atuam.

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Por outro lado, os resultados também apontam para a enorme possibilidade que se constitui o trabalho do professor - psicopeda-gogo realizado de maneira preventiva na insti-tuição. Como este trabalho estaria sendo rea-lizado diretamente pelo professor - psicope-dagogo, portanto, de maneira natural, mas in-tencional, ele excluiria a necessidade de no-vos espaços, bem como a de novos profissio-nais da psicopedagogia que fariam o contato com o professor, visando obter informações para trabalhar com o aluno. Não estamos com isso, excluindo a necessidade de um trabalho extra-instituição, mas estamos atentando para a possibilidade de que este trabalho também seja realizado pelo professor – psicopedago-go, de forma rotineira e preventiva em sala de aula.

Assim, os resultados obtidos revelam uma tendência na direção da importância de se ampliar os trabalhos institucionais preven-tivos em função de minimizar o surgimento de possíveis dificuldades de aprendizagem, ao mesmo tempo em que contribui com a auto-nomia, com a cidadania, com o preparo do aluno para o enfrentamento de novos e cons-tantes desafios.

Neste sentido temos segundo Tonet (2004), que as mudanças sociais estão alte-rando as características da sociedade e conse-qüentemente de seus grupamentos humanos. Isto implica diretamente em alterações na es-cola e no perfil desejado pela mesma, para seus professores. Desta forma o professor - psicopedagogo se constitui como um profis-sional qualificado que dentre outras questões, promove condições para que seus alunos te-nham de forma continua e independente, o acesso a cultura. Isto contribui para a melhor preparação do aluno para o desenvolvimento de suas potencialidades e, conseqüentemente para a vida.

Diante disto, apresentamos algumas contribuições que consideramos essenciais para a ampliação do trabalho a ser realizado pelo professor – psicopedagogo em sala de aula. Assim sugerimos que:

• os cursos de especialização em psicope-

dagogia passem a considerar uma propos-

ta voltada para o trabalho do professor - psicopedagogo, investindo na preparação de seus alunos também para este tipo de atuação;

• os professores – psicopedagogos sejam incentivados a construir instrumentos pró-prios para uma melhor investigação das situações apontadas como dificuldades no processo de ensino e aprendizagem. Esses instrumentos deveriam considerar a pro-posta pedagógica da escola, o material di-dático, o próprio trabalho do professor – psicopedagogo, as expectativas do aluno, da família, os relacionamentos familiares a estabilidade afetivo – emocional, dentre outras;

• a auto avaliação da própria atuação dos professores – psicopedagogos seja uma prática constante, assim como a realização de atividades que desenvolvam a constru-ção e a formação da autonomia e de um autoconceito positivo por parte do aluno;

• a atuação do professor – psicopedagogo seja registrada, discutida e apresentada em fóruns especiais, produzindo material ci-entificamente qualificado, com conse-qüente aumento nas publicações da área.

Essas contribuições, no nosso enten-der, são viáveis, apesar de ainda convivermos com questionamentos sobre a validade do tra-balho psicopedagógico. Questionamentos estes veementemente contestados por vários estudiosos, dentre eles, Bossa (2002), Fernán-dez (2001), Hétu e Carbonneau (2002), Visca (2002), ao enfatizarem que a psicopedagogia busca respostas onde as outras áreas de co-nhecimento parecem ter deixado lacunas.

Desta forma, o valor da psicopedago-gia preventiva, já se encontra comprovado, em uma dimensão institucional, ao ser aceita e considerada como um diferencial para a a-quisição de melhorias educacionais. A psico-pedagogia também já adquiriu o status de ser reconhecida como objeto de pesquisa nos cur-sos de graduação e pós-graduação, ampliando assim a possibilidade de se estender cada vez mais aos educadores e áreas afins. Mais re-centemente estamos constatando a exigência desta especialização ou mesmo a indicação de

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literatura referente a esta área de conhecimen-to, em concursos públicos para professores. Podemos também acrescentar a estas situa-ções, os resultados obtidos neste trabalho, on-de os professores – psicopedagogos entrevis-tados legitimam, por meio de suas ações, a possibilidade da atuação psicopedagógica ins-titucional preventiva. 7. Referências bibliográficas Albee, G.W. e Gullotta, T.P.(1997). Primary prevention’s evolution. Em: Albee, G.W. e Gullotta, T.P Primary prevention works. (pp 03-21). New Delhi: Sage Publications. Albee, G.W. e Joffe, J.M. (1977). The issues: an overview of primary prevention. Univer-sity of Vermont by the University Press of New England, Hanoverand London: Albee and Joffe editors. Angelini, R.A.V.M. (2006). A qualidade da educação no Brasil: um problema de metodo-logia? Rev. Assoc. Bras. Psicopedagogia, 23(72), 213-220. Barbosa, L.M.S. (2001). A psicopedagogia no âmbito da instituição escolar. Curitiba: Expo-ente. Batista, S.H.S. (2000). Formação de professo-res: discutindo o ensino da Psicologia. Em. Azzi, R. e Sadalla, A.M.A. (Orgs.). Teorias implícitas na ação docente: contribuições teóricas ao desenvolvimento do professor prático-reflexivo (pp.21-38). São Paulo: Alí-nea. Bossa, N. (2000). A psicopedagogia no Bra-sil: contribuições a partir da prática. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educa-ção Nacional. Lei n.º 9394/96. Brasília. MEC. Castanho, M.E.L.M. (2001). Sobre professo-res marcantes. Em: Castanho, S. e Castanho, M.E.L.M. (orgs.) Temas e textos em metodo-logia do ensino superior. (pp.153 -163). São Paulo: Papirus. David, M.C. (2004). Edito. Les Cahiers de Ecole de Formation Psycho Pédagogique de Paris, 1 (1), 01-06. Durlak, J.A. (1997). Basic concepts in pre-vention. Em: Durlak, J.A. (org.). Successful

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Pensamento, crenças e complexidade humana

Thinking, beliefs and human complexity

Cristina Satiê de Oliveira Pátaro

Departamento de Metodologia de Ensino (DME), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil; Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Pau-

lo (FE/USP), São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo Considerando a complexidade do funcionamento psíquico e mental, o artigo discute as relações entre crenças e pensamento humano. Parte-se do pressuposto de que processos relativos ao pensamento en-volvem não apenas a cognição, mas também aspectos de outra natureza, como afetivos ou sociocultu-rais (crenças). São apresentados os resultados de uma investigação cujo objetivo foi verificar possíveis influências das crenças no pensamento. A pesquisa envolveu a aplicação de questionário a quatro gru-pos (católicos, adventistas, espíritas e estudantes universitários sem considerar a religião), totalizando 100 sujeitos. As questões, sobre temáticas de sexualidade, solicitavam do sujeito, primeiramente, um posicionamento pessoal e, em seguida, a postura de sua religião. Os dados evidenciaram a influência das crenças no raciocínio humano e, ao mesmo tempo, a existência de outros fatores atuantes nos pro-cessos do pensamento, ressaltando a efetiva complexidade do funcionamento mental e das relações en-tre aspectos culturais e sujeito. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 134-149. Palavras-chave: crenças; cultura; complexidade; modelos organizadores do pensa-mento.

Abstract Considering the complexity of mental and psychic functioning, this article discusses the relations be-tween beliefs and human thinking. It assumes that processes of human thinking involve not only cogni-tion but also suffers the influence of other aspects such as affective or cultural (beliefs). The article presents the results of a research that studied the possible influences of beliefs in human thinking. A questionnaire was applied to four groups (Catholics, Adventists, Spiritualists and academic students without considering the religious tendency), a total of 100 persons. The questions are concerning hu-man sexuality themes; it was asked the personal positioning and subject’s religion positioning. Results indicated the influence of beliefs and, simultaneously, the influence of other factors in human thinking, that indicate the complexity of mental functioning and of relations between culture and subject. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 134-149. Key Words: beliefs; culture; complexity; organizing models of thinking.

1. Introdução

O presente artigo busca discutir a in-

fluência de aspectos culturais no pensamento

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 13/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- C.S.O. Pátaro é Graduada em Pedagogia (Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP), Mestre em Educa-ção (UNICAMP) e Doutoranda (FE/USP). Atualmente é Professora Substituta (UFSCar). E-mail para correspondên-cia: [email protected].

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humano, compreendendo que o funcionamen-to mental se dá a partir de elementos que não se limitam apenas à cognição, à lógica e ra-cionalidade. Neste percurso, nosso intuito será o de apontar a perspectiva da complexidade como um caminho possível na compreensão não apenas das certezas e regularidades que possam permear o funcionamento psíquico e mental, mas também das ambigüidades, alea-toriedades e incertezas presentes nas relações entre sujeito, cultura e pensamento humano.

Nossa referência para as idéias que configuram a Teoria da Complexidade é o trabalho de Edgar Morin (1991, 1994, 2002a). De acordo com Morin, a complexidade do mundo real – dos objetos e fenômenos da na-tureza – só pode ser compreendida a partir de uma perspectiva multidimensional (em lugar de unidimensional e fragmentada) e que tenha em vista as incertezas e incompletudes de to-do o conhecimento. Nesse sentido, a perspec-tiva de complexidade considera, na compre-ensão do mundo real, a ordem, a certeza e a regularidade tanto quanto a desordem, a incer-teza, as não-regularidades. Busca conhecer as partes sem desvinculá-las da existência de um todo e vice-versa, levando em conta, assim, as grandes quan-tidades de interações e unidades existentes na realidade, de forma que as de-terminações e previsões dão lugar às não-determinações, às possibilidades e aos fenô-menos aleatórios.

A partir desta perspectiva de comple-xidade, nossa intenção será a de buscar com-preender o funcionamento psíquico e mental do ser humano. Para tanto, apresen-taremos os resultados e discussões de uma investiga-ção realizada que teve como objetivo analisar as possíveis relações entre o pensamento do sujeito e os aspectos vinculados à cultura, em especial, as crenças.

Assim, levando em conta os pressu-postos aqui discorridos, pretendemos inicial-mente apresentar, neste artigo, de que forma compreendemos o sujeito psicológico e as diferentes dimensões que o constituem. Em seguida, discutiremos acerca das relações en-tre sujeito e cultura, analisando de que forma os elementos culturais (como é o caso das crenças) passam a fazer parte da individuali-

dade dos sujeitos. Em um terceiro momento, nosso olhar estará voltado para a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, refe-rencial teórico e metodológico que orientou a pesquisa apresentada, e que permite conside-rar o pensamento humano a partir da articula-ção de aspectos de diferentes naturezas (cog-nitivos, mas também afetivos, socioculturais, biológicos, etc.). Por último, apresentaremos a pesquisa realizada, os resultados encontrados e as análises e discussões levantadas a partir dos dados da investigação. 2. Dimensões constituintes do sujeito

Compreender o psiquismo humano de uma forma que seja coerente com os princí-pios de complexidade, expostos anterior-mente, exige que consideremos o ser humano em sua totalidade e multidimensionalidade, levando em conta os inúmeros elementos e relações que influenciam o funcionamento psíquico.

Encontramos essas características no trabalho de Araújo (1999; 2003). Este autor apresenta um modelo cujo objetivo é explicar o funcionamento psíquico em uma perspecti-va complexa e não-fragmentada, que conside-re a influência de fatores diversos, tanto ex-ternos quanto internos ao sujeito, que ocorrem simultaneamente.

Segundo Araújo, cada ser humano, seu modo de ser, agir, pensar e sentir, é resultado da interação de diferentes dimensões, com características específicas, mas que se inter-relacionam, e que, em conjunto, fazem parte de um sistema mais complexo que define a individualidade do sujeito.

O autor afirma que o sujeito psicoló-gico é, ao mesmo tempo, um ser biológico, que sente fome, frio e sede, mas que também tem sentimentos, emoções, desejos. Este mesmo sujeito interage com a realidade ex-terna (objetiva) e também interna (subjetiva) e, nesta relação, constrói uma capacidade cognitiva de organizar suas experiências (A-raújo, 2003). Todos os aspectos constituintes do sujeito (biológico, afetivo, sociocultural e cognitivo) atuam simultaneamente, influenci-

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ando a maneira de ser, pensar, agir e sentir de cada ser humano.

Adotar este modelo como explicação para o funcionamento psicológico do sujeito implica considerar que em qualquer situação da vida cotidiana entram em ação diferentes aspectos relativos às diferentes dimensões constituintes do sujeito: o funcionamento bio-fisiológico do organismo, as estruturas cogni-tivas, os sentimentos, emoções, valores, cren-ças, desejos do indivíduo, bem como a inter-

relação deste conjunto como um todo junto ao meio.

Segundo a representação de Araújo (2003: 156), a seguir, o sujeito psicológico é constituído por diferentes dimensões – cogni-tiva, afetiva, biológica e sociocultural – e seu funcionamento se dá a partir das inter-relações destas entre si e com o mundo exter-no – físico, interpessoal e sociocultural – com o qual o sujeito interage:

Figura 1 – Modelo para o sujeito psicológico, segundo Araúo (2003).

Os estudos feitos a partir deste modelo

psicológico, de acordo com Araújo, não po-dem perder de vista a sua totalidade e a noção de organização interna e externa das dimen-sões propostas, de forma que é possível estu-dar, separadamente, cada uma das dimensões – afetiva, cognitiva, sociocultural e biológica – mas não podemos deixar de considerar que estes aspectos se inter-relacionam e que esta dinâmica exerce e recebe influências da ma-neira como o sujeito psicológico lida e intera-ge com o mundo interno e externo.

Dadas estas considerações, é possível dizer que o funcionamento psíquico ocorre a partir de um certo grau de previsibilidade, de certezas; ao mesmo tempo, entretanto, abre-se

espaço ao inesperado, ao aleatório, à possibi-lidade de desordem e incerteza. Estes pontos são de fundamental importância se queremos uma teoria que explique o funcionamento psí-quico, o sujeito da vida real, e que esteja de acordo com os princípios de complexidade.

É neste contexto, e a partir deste olhar de complexidade, que devem ser compreendi-das as discussões propostas no presente arti-go. Assim, sem perder a noção do funciona-mento do sujeito psicológico como um todo, nosso foco, a seguir, estará voltado para a di-mensão sociocultural, a partir da discussão a respeito das crenças pessoais e das relações entre sujeito e cultura.

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3. Crenças, cultura e sujeito

Ao tecer suas considerações acerca da mente humana, Morin (2002a) considera a existência de dois tipos de pensamento: o pensamento racional, ligado à lógica, ao cál-culo e à razão, e o pensamento mítico, rela-cionado a um âmbito mitológico, do imaginá-rio, das analogias e dos símbolos. Segundo o autor, o raciocínio humano acontece a partir da articulação destes dois tipos de pensamen-to, que não podem ser vistos separadamente, de forma que a esfera imaginária – dos mitos, religiões, crenças – adquire para o ser huma-no tanta importância quanto a esfera do pen-samento racional.

Diante de tal constatação, Morin colo-ca que o conhecimento é uma re-construção do real pelo ser humano e que, portanto, não é completo, nem pode ser encarado como uma cópia exata do mundo objetivo, sendo sempre permeado por constantes “erros e ilusões”. Tudo isso leva o autor a ressaltar que o co-nhecimento humano não se encerra nos prin-cípios da razão e da lógica, e deve ser sempre considerado dentro de seus limites e incerte-zas.

A partir desta premissa, passamos a nos debruçar sobre o estudo das relações entre as crenças pessoais e o pensamento humano. Considerando, desta forma, que tanto o pen-samento quanto a construção do conhecimen-to são permeados não apenas por processos relativos à racionalidade e à lógica, mas tam-bém por fatores de outra natureza, fomos em busca de investigar em que medida as crenças – enquanto construção cultural, proveniente do imaginário, da “esfera mitológica” (Morin, 2002a) – podem vir a influenciar a organiza-ção do pensamento. Ao optarmos por estudar as crenças, elegemos assim um elemento rela-tivo à cultura, a fim de investigar até que pon-to essa dimensão cultural, que se incorpora ao indivíduo a partir de seu contato com diferen-tes grupos e com a sociedade, exerce influên-cias no pensamento dos sujeitos.

Partindo do pressuposto de que as crenças, provenientes do meio cultural e soci-al, passam a fazer parte da individualidade do ser humano, é necessário explorarmos um

pouco mais de perto as relações entre sujeito e cultura, buscando compreender como se dá a internalização dos aspectos culturais pelo in-divíduo.

O estudo de tais relações entre cultura e sujeito são pontos altamente discutidos em estudos de diferentes campos do conhecimen-to, em especial da Psicologia. Para abordar-mos estas relações a fim de orientar a discus-são do presente artigo, iremos nos ater mais especificamente nas perspectivas trazidas por Morin (2002b), Vygotsky (1998) e também por Martins e Branco (2001).

Para Morin (2002b), o ser humano es-tá em constante interação com o mundo físi-co, com os fenômenos naturais, e, principal-mente, com outros sujeitos ao seu redor. É desta interação entre os seres humanos que nasce a cultura.

Própria da natureza humana e da vida coletiva, a cultura é definida por Morin (2002b: 35) como sendo constituída pelo:

“Conjunto de hábitos, costumes, práti-cas, savoir-faire, saberes, normas, inter-ditos, estratégias, crenças, idéias, valo-res, mitos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se em cada indi-víduo, gera e regenera a complexidade social.”

Em cada sociedade, de geração em ge-

ração, a cultura é protegida, nutrida, regene-rada e, ao mesmo tempo, modificada, para que não seja destruída, não caia em extinção. Segundo o autor, da mesma forma que não existe cultura sem as competências propor-cionadas pelo cérebro humano, também não haveria linguagem ou pensamento sem a cul-tura.

De acordo com Morin, as relações en-tre cultura e sujeito são estreitas e mútuas. Se, por um lado, a cultura depende da vida em sociedade, por outro, o ser humano, em sua constituição, também possui muito da cultura à qual pertence.

Essa “reprodução” da cultura em cada sujeito é o que o autor denomina imprinting. Para Morin, o imprinting pode ser compreen-dido como uma marca, uma inscrição, impos-

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ta à mente humana pela cultura. Desde o nas-cimento, através da cultura familiar e, poste-riormente, através da cultura social, o imprin-ting vai impondo sua marca e, tal qual uma cicatriz, passa a fazer parte da constituição do sujeito, sua individualidade, e com ele perma-nece continuamente.

Entretanto, a cultura exerce suas influ-ências não apenas externamente, impondo sua marca, mas também internamente, fazendo emergir do próprio sujeito o poder de suas idéias, suas crenças e paradigmas. Em muitos casos, estas influências vão além, de modo que a cultura – através das idéias, de suas in-fluências no pensamento e na visão de mundo – age também em outra direção: é ela que i-gualmente “impede de aprender e de conhecer fora dos seus imperativos e das suas normas, havendo, então, antagonismo entre o espírito autônomo e sua cultura” (Morin, 2002b: 35).

Assim, para Morin, a cultura passa a fazer parte do sujeito e não imprime apenas suas marcas, mas traz também uma consigna-ção de como deve o sujeito organizar, conce-ber, lidar com o mundo ao seu redor e com os demais seres humanos.

Diante de tais considerações e partin-do do pressuposto de que as crenças possuem suas raízes na cultura, conforme colocamos anteriormente, é possível afirmar que o sujei-to, ao mesmo tempo em que possui determi-nadas crenças e tende a agir de acordo com elas, é também, em certa maneira, tomado por suas crenças, passando assim a pensar e a en-xergar o mundo através delas. Neste aspecto, a crença é ao mesmo tempo uma forma de guiar as condutas e também de limitá-las.

Entretanto, é preciso considerar que, se por um lado o imprinting imprime as mar-cas da cultura no sujeito, por outro, como já afirma o próprio Morin, o sujeito não é passi-vo nesta relação. Vejamos.

Adentrando mais especificamente o campo da Psicologia, encontramos os estudos do psicólogo russo Lev S. Vygotsky. Dentre seus estudos sobre as relações entre cultura e sujeito, destacaremos, no presente trabalho, suas considerações acerca do conceito de in-ternalização.

De acordo com Vygotsky (1998), a in-ternalização é a reconstrução interna de uma operação externa ao sujeito e implica uma sé-rie de transformações psicológicas, a seguir:

a) Uma operação externa é reconstruída e co-

meça a ocorrer internamente ao sujeito; b) Um processo inicialmente interpessoal tor-

na-se intrapessoal. As funções superiores (como é o caso do pensamento), segundo Vygotsky, originam-se das relações entre os indivíduos e, no desenvolvimento da criança, aparecem inicialmente no nível social, entre pessoas (interpsicológica) e posteriormente no nível individual, no in-terior da criança (intrapsicológica).

c) A transformação do processo interpessoal em intrapessoal vem como resultado de um longo processo de desenvolvimento.

Nas palavras do autor,

“O processo, sendo transformado, con-tinua a existir e a mudar como uma forma externa de atividade por um lon-go período de tempo, antes de internali-zar-se definitivamente. (...) [as funções] somente adquirem o caráter de proces-sos internos como resultado de um de-senvolvimento prolongado. Sua trans-ferência para dentro está ligada a mu-danças nas leis que governam sua ativi-dade; elas são incorporadas em um no-vo sistema com suas próprias leis.” (Vy-gotsky, 1998: 75)

As idéias de Vygotsky, como é possí-

vel notar, auxiliam na compreensão dos pro-cessos psicológicos envolvidos na internaliza-ção dos aspectos culturais pelos seres huma-nos, a qual está intimamente relacionada ao próprio desenvolvimento do sujeito.

A partir dos estudos de Vygotsky, Martins e Branco (2001) abordam igualmente o conceito de internalização, ao discutirem as relações entre cultura e sujeito. A partir de uma perspectiva sociocultural construtivista, propõem considerar a relação bidirecional que caracteriza a transmissão da cultura para o sujeito. De acordo com estes autores, os parti-

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cipantes do processo de transmissão cultural estão ativa e constantemente transformando as mensagens culturais. Assim:

“Emissor e receptor organizam e reor-ganizam ativamente a informação cultu-ral de forma que a cultura se encontra continuamente em transformação medi-ante a ação de todos os participantes da experiência social.” (Martins e Branco, 2001: 171)

Esta perspectiva nos traz amplas pos-

sibilidades na relação entre sujeito e cultura, abrindo espaço para a participação de ambos na construção do novo ao longo deste proces-so de constante interação.

Para Martins e Branco, embora o estu-do do conceito de internalização venha rece-bendo a atenção de vários pesquisadores e de diferentes áreas do conhecimento, a noção apresentada por Vygotsky é a que mais trouxe contribuições para o campo de pesquisa do desenvolvimento humano. Nas palavras dos autores, o processo de internalização pode ser entendido como:

“[um] processo através do qual suges-tões ou conteúdos externos ao indivíduo apresentados por um ‘outro social’ são trazidos para o domínio intra-psicológico (do pensar e do sentir subje-tivos), passando a incorporar-se à subje-tividade do indivíduo. Este ‘outro’ são pessoas, instituições sociais ou mesmo instrumentos mediados culturalmente.” (Martins e Branco, 2001: 172)

A compreensão apresentada por estes

autores evidencia a dinâmica entre indivíduo e cultura, demonstrando de que forma ocor-rem as influências mútuas recebidas e exerci-das por ambos os pólos desta relação:

“No que se refere ao indivíduo, a inter-nalização de aspectos culturais é ante-cedida e orientada por elementos moti-vacionais, afetivos, que elegem e priori-zam objetivos e conteúdos culturais, a-tribuindo-lhes um significado próprio

no interior de um universo amplo de possibilidades. Por outro lado, a cultura à qual o indivíduo está ligado, e na qual ele se constitui, orienta suas expectati-vas e comportamentos em uma certa di-reção, sem com isto impor-lhe, necessa-riamente, um padrão definido de cren-ças, valores e comportamentos. Em fun-ção de aspectos motivacionais próprios, o indivíduo pode se opor de forma mais ou menos intensa às orientações apon-tadas pelas sugestões sociais, dando o-rigem à singularidade de sua constitui-ção subjetiva e, em conseqüência, per-mitindo-lhe introduzir novos aspectos na cultura coletiva.” (Martins e Branco, 2001: 172)

No trecho que acabamos de citar, tanto

o indivíduo quanto a cultura estão abertos à transformação, à formação de novos signifi-cados, que ocorrerão em função da forma co-mo se dá a relação entre ambos. Ou seja, não é possível considerar cultura sem indivíduo ou vice-versa.

Realizando um paralelo entre tais co-locações e as considerações de Edgar Morin (2002b), apresentadas anteriormente, pude-mos verificar nestas últimas, de forma análo-ga, as estreitas inter-relações entre cultura e sujeito. Segundo Morin, através do imprin-ting, a cultura inscreve no indivíduo um con-junto de práticas, saberes, crenças, valores, idéias, conhecimento, que influenciam o de-senvolvimento da individualidade do sujeito. Mas evidentemente, embora todos os indiví-duos de um determinado grupo sejam subme-tidos ao mesmo imprinting cultural, cada su-jeito, em sua individualidade, irá constituir-se e construir-se de maneira diferente, uma vez que não é a cultura unicamente que influencia o ser humano – o qual, para Morin, deve ser considerado de maneira multidimensional, como um sujeito ao mesmo tempo físico, bio-lógico, psíquico, afetivo, cultural e social (Morin, 2002b, 2002c). Ou seja, entram em ação, entre outros fatores, os “aspectos motivacionais” próprios de cada sujeito (Martins e Branco, que acabamos de citar), que possibilitarão que os aspectos culturais sejam apreendidos pelo indivíduo adquirindo

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didos pelo indivíduo adquirindo significado próprio.

Diante do quadro exposto até agora, entendemos que uma compreensão das rela-ções entre cultura e indivíduo, que leve em conta toda complexidade inerente a estes ele-mentos, necessita, por um lado, de uma noção de cultura que esteja aberta a transformações, que exerça suas influências sobre o indivíduo em uma relação não-unilateral e não-determinista. Por outro lado, exige também uma noção de indivíduo ativo que, embora possua, em sua subjetividade, traços da cultu-ra e da sociedade da qual participa, tenha pos-sibilidades de (re)significar e (re)construir os aspectos culturais. Esta noção de indivíduo só se faz, do nosso ponto de vista, à medida que encaramos esse ser humano de forma com-plexa e multidimensional (como já nos propõe Morin), e nos parece coerente com o modelo de sujeito psicológico apresentado no início deste artigo (Araújo, 1999, 2003) – o qual considera as diferentes dimensões constituin-tes do ser humano, a partir de uma perspectiva de complexidade.

Neste contexto, em busca de analisar as relações entre as crenças e o pensamento humano, os pressupostos apresentados até a-gora nos conduziram à opção pela Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, que discorreremos a seguir.

4. A Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento

A Teoria dos Modelos Organizadores

do Pensamento (Moreno et al., 1999; Arantes, 2000) é uma das bases que fundamenta a pes-quisa aqui apresentada e constitui-se, assim, na base teórica e metodológica para a mesma. Esta teoria foi inicialmente proposta por Mo-reno, Sastre, Leal e Bovet, e parte dos traba-lhos de Jean Piaget, e também da teoria de modelos mentais de Johnson-Laird. Vejamos.

As autoras adotam como um dos pon-tos de partida os estudos de Jean Piaget acerca dos aspectos estruturais do pensamento e o funcionamento cognitivo. Reconhecem a im-portância e abrangência de tais idéias – que inovam ao constituírem uma teoria acerca dos

estádios do desenvolvimento cognitivo, colo-cando o sujeito como organizador da realida-de – mas também apontam para suas limita-ções. Neste sentido, Moreno e colaboradores (1999) consideram que o desenvolvimento cognitivo, na perspectiva de Piaget, é tomado apenas a partir do ponto de vista estrutural, sem dar muita atenção ao fato de que o em-prego de determinadas operações depende não apenas dos estádios, mas também dos conteú-dos aos quais se aplicam. Assim, as autoras propõem que o funcionamento mental se dê não apenas em vista dos aspectos estruturais, internos ao sujeito, mas também, de maneira articulada, considerando os conteúdos presen-tes na realidade – ou seja, os elementos, en-quanto “um produto da interpre-tação que o sujeito faz dos objetos e fatos perceptíveis” (Moreno et al., 1999: 77).

Um segundo ponto em que se baseia a teoria dos Modelos Organizadores do Pensa-mento é a idéia defendida por Philip Johnson-Laird de que o raciocínio humano opera por meio de modelos mentais. Johson-Laird con-sidera que o raciocínio não segue unicamente a lógica formal, mas envolve a compreensão de significados e a manipulação de modelos mentais, estes vistos como uma representação interna que o sujeito realiza do mundo ao seu redor (Johson-Laird, 1993, apud Moreno et al., 1999). De acordo com este autor, por meio de modelos mentais, o ser humano re-presenta a realidade que o cerca e é capaz de raciocinar, verificar hipóteses e alternativas. Assim, a compreensão envolve a elaboração de modelos do mundo, e o raciocínio consiste na manipulação de tais modelos. O papel da representação na teoria dos modelos mentais é de fundamental importância para explicar a elaboração dos modelos, bem como sua ma-nipulação, que se dá através do pensamento.

A partir da articulação entre as idéias da teoria dos modelos mentais e da epistemo-logia genética de Piaget – conforme destaca-mos – Moreno e colaboradores (1999) desen-volvem então a teoria dos Modelos Organiza-dores do Pensamento, segundo a qual o ser humano, a fim de orientar-se e conhecer o mundo que o cerca, constrói modelos da rea-lidade em sua interação com os objetos, pes-

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soas e relações ao seu redor, e também consi-go mesmo.

Os Modelos Organizadores do Pensa-mento – que influenciam a forma de agir, pensar, ser e sentir do sujeito, assim como a própria construção do conhecimento – são construídos com base em elementos estrutu-rais internos ao sujeito, mas também externos a ele, ou seja, os conteúdos da realidade. De acordo com as autoras,

“Concebemos um modelo organizador como uma particular organização que o sujeito realiza dos dados que seleciona e elabora a partir de uma determinada si-tuação, do significado que lhes atribui e das implicações que deles se originam. Tais dados procedem das percepções, das ações (tanto físicas como mentais) e do conhecimento em geral que o sujeito possui sobre uma certa situação, assim como das inferências que a partir de tu-do isso realiza. O conjunto resultante é organizado por um sistema de relações que lhe confere uma coerência interna, a qual produz, no sujeito que o elaborou, a idéia de que mantém também uma co-erência externa, ou seja, uma coerência com a situação do mundo real que re-presenta.” (Moreno et al., 1999: 78)

De acordo com o trecho acima, é pos-

sível verificar que, como se baseiam na repre-sentação e interpretação do sujeito, os mode-los organizadores nem sempre correspondem exatamente à situação do mundo real. Desta forma, embora confiram ao sujeito uma “coe-rência interna”, a qual, por sua vez, “produz a idéia de uma coerência externa”, isso não significa que o modelo construído correspon-da exatamente à realidade que representa.

Segundo Moreno e colaboradores (1999), o sujeito constrói os modelos organi-zadores a partir da avaliação que faz diante de determinada situação do mundo real, processo em que estão envolvidas as seguintes ativida-des cognitivas: abstração de elementos, atri-buição de significados e estabelecimento de implicações e/ou relações. Vejamos:

A abstração de elementos ocorre uma vez que o sujeito seleciona alguns elementos da realidade observada para que constituam o modelo organizador. Assim sendo, nem todos os elementos da situação observada são ne-cessariamente abstraídos e, ao mesmo tempo, o modelo organizador pode contemplar ele-mentos que não se encontram na realidade e que são, assim, inferidos pelo próprio sujeito. Na elaboração do modelo organizador, os e-lementos que não são vistos como significati-vos ou pertinentes são desconsiderados e pas-sam a não fazer parte do modelo elaborado.

Aos elementos que são abstraídos, o sujeito atribui significados. Não há, portanto, no modelo organizador, elemento sem signifi-cado. Entretanto, segundo as autoras, contex-tos diferentes podem levar um mesmo sujeito a atribuir significados diferentes a um mesmo elemento, da mesma forma que, a este mesmo elemento, sujeitos diferentes podem atribuir significados diferentes.

O estabelecimento de implicações e/ou relações diz respeito às conseqüências que o sujeito atribui na relação entre elementos e significados do modelo em questão.

A construção do modelo organizador depende de como estes três processos, que ocorrem simultaneamente, são articulados in-ternamente pelo sujeito: um determinado ele-mento é abstraído em função do significado que lhe é atribuído no contexto da construção de um determinado modelo, e destes dois as-pectos dependem as implicações estabeleci-das.

Um aspecto importante a ser ressalta-do é que a construção dos modelos organiza-dores permite a imaginação do sujeito, a infe-rência de novos elementos (Arantes, 2000), pois o modelo organizador pode ser constituí-do também de alguns elementos não necessa-riamente presentes na realidade. Tais elemen-tos passam a integrar o modelo organizador construído, adquirindo tanta importância quanto os demais na constituição do modelo. A imaginação do sujeito pode se basear em aspectos da razão, de natureza lógico-matemática, mas também de outra natureza. E, desta forma, podemos dizer que a Teoria dos Modelos Organizadores avança no senti-

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do de considerar que a organização do pen-samento está relacionada não apenas a aspec-tos (e processos) cognitivos, mas também aos sentimentos e emoções, desejos, fantasias, representações sociais, crenças, que influenci-am os próprios processos mentais de seleção de elementos, atribuição de significados e es-tabelecimento de implicações.

É neste sentido que a Teoria dos Mo-delos Organizadores do Pensamento permite-nos considerar que as crenças pessoais podem exercer tanta influência no pensamento hu-mano quanto os aspectos cognitivos. É neste contexto, portanto, que se desenvolveu a pes-quisa apresentada a seguir. 5. Objetivos da pesquisa O problema central da pesquisa foi investigar se os modelos organizadores apli-cados diante de situações da vida cotidiana estão de alguma forma relacionados às cren-ças do sujeito, ou, dito de outra maneira, veri-ficar em que medida as crenças influenciam a organização do pensamento. O tipo de crença considerado foi a crença religiosa, e o conteú-do das situações apresentadas aos sujeitos foi a sexualidade. 6. Metodologia

Para atender aos objetivos da pesquisa, foi aplicado um questionário a um total de 100 sujeitos adultos, entre 20 e 40 anos, divi-didos em 4 grupos: 25 Católicos, 25 Adven-tistas, 25 Espíritas e 25 estudantes universitá-rios sem que fosse considerada a religião. O questionário foi aplicado a cada grupo, em seu próprio espaço religioso, o que, no caso dos estudantes, foi feito na própria Universi-dade.

Ao responder às questões, que versa-vam sobre temáticas de sexualidade, os sujei-tos deveriam, primeiramente, dissertar sobre seu posicionamento pessoal diante da temáti-ca apresentada e, em um segundo momento, colocar a postura de sua religião. As duas questões analisadas foram: Questão A – “Na sua opinião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mu-

lher?” e Questão B – “Para sua religião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mulher?”.

Para a análise dos dados, foram identi-ficados os modelos organizadores aplicados pelos sujeitos, a partir das respostas dadas em cada uma das questões. De posse destes da-dos, foram analisadas as relações entre a dis-tribuição dos modelos organizadores dentro de cada um dos grupos entrevistados, bem como as relações entre o posicionamento de um mesmo sujeito diante de ambas as ques-tões. 7. Resultados e discussões

Na seqüência, temos os modelos orga-nizadores encontrados e a distribuição dos mesmos dentro dos diferentes grupos entre-vistados, considerando primeiramente a Ques-tão A e, em seguida, a Questão B: • Análise da Questão A: “Na sua opinião,

qual o papel da relação sexual no relacio-namento entre um homem e uma mu-lher?”

Dos dados da Questão A é relevante

destacar, por um lado, a presença do Modelo 1, que agrega em si elementos e significados associados à religião (Deus, casamento, pro-criação). Este modelo se faz presente nos 3 grupos religiosos entrevistados, principalmen-te dentro do grupo Católico, e evidencia que de fato as crenças religiosas parecem influen-ciar a organização do pensamento.

Por outro lado, é importante ressaltar que, mesmo sendo composto por uma maioria de sujeitos que declararam possuir alguma religião, nenhum dos entrevistados do grupo de estudantes aplicou o Modelo 1 ao respon-der à primeira questão. Este dado indica que o grau de influência das crenças parece variar de acordo com o contexto social, e que deve haver outras variáveis que influenciam igual-mente o pensamento dos sujeitos ao organiza-rem seu pensamento diante do tema solicitado (experiências pessoais, emoções e sentimen-tos, crenças de outra natureza).

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Tabela 1 - Modelos organizadores e freqüência (%) considerando o total de sujeitos na Questão A. Gráfico 1 - Distribuição dos modelos organizadores referentes à Questão A nos diferentes grupos.

• Análise da Questão B: “Para sua religião, qual o papel da relação sexual no relacionamento en-

tre um homem e uma mulher?”

Analisando os dados da Questão B podemos notar uma grande quantidade de su-jeitos aplicando o Modelo 1, pautado em princípios ligados tradicionalmente à religião, correspondendo a 61% da amostra como um todo e à maioria dos sujeitos dos grupos cató-lico e adventista.

O que chama a atenção, entretanto, é o grupo de estudantes, onde encontramos uma parcela de 6 sujeitos aplicando o Modelo 5, que considera a postura religiosa insuficiente e antiquada para explicar o papel da relação sexual. Ao notarmos que todos os estudantes

que aplicaram este modelo afirmaram ser ca-tólicos, e que a maioria dos sujeitos do grupo católico aplicou o Modelo 1, veremos que, em nossa amostra, uma mesma religião deu ori-gem a raciocínios diversos, orientados em di-reções opostas. Este dado nos faz considerar que as crenças, relacionadas a uma cultura, não são internalizadas de uma mesma maneira por todos os sujeitos, sendo que outros aspec-tos subjetivos (ex: sentimentos, valores, co-nhecimentos do sujeito) parecem atuar na forma como os indivíduos incorporam suas crenças.

Modelos Organizadores % Modelo 1 Relação sexual pautada em princípios religiosos tradicionais (criação de

Deus, casamento, procriação) 37

Modelo 2 Relação sexual como elemento que define a continuidade ou não do relacio-namento entre o casal

8

Modelo 3 Relação sexual como fator de união entre o casal 24 Modelo 4 Relação sexual como complemento do relacionamento entre o casal 24 Modelo 5 Relação sexual valorada de diferentes maneiras, em função do tipo de rela-

cionamento entre o casal 7

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Modelos Organizadores % Modelo 1 Relação sexual pautada em princípios religiosos tradicionais (criação de Deus,

casamento, procriação) 61

Modelo 2 Relação sexual exige responsabilidade, pois traz conseqüências 12 Modelo 3 Relação sexual como fator de união entre o casal 7 Modelo 4 Relação sexual como complemento do relacionamento entre o casal 7 Modelo 5 A postura religiosa é insuficiente, antiquada, ortodoxa, para explicar o papel da

relação sexual 6

----- Não respondeu à Questão B 7 Tabela 2 - Modelos organizadores e freqüência (%) considerando o total de sujeitos na Questão B. Gráfico 2 - Distribuição dos modelos organizadores referentes à Questão B nos diferentes grupos.

Partindo agora para uma análise das

respostas dadas por um mesmo sujeito às di-ferentes questões, temos os gráficos a seguir, que apresentam a freqüência de sujeitos que mantiveram ou alteraram seu raciocínio em

suas respostas às questões A e B, primeira-mente considerando o total da amostra e, em seguida, levando em conta os diferentes gru-pos entrevistados:

Gráfico 3 - Distribuição dos sujeitos que apli-caram o mesmo modelo organizador e mode-los diferentes nas questões A e B.

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Gráfico 4 - Distribuição, por grupo entrevistado, dos sujeitos que aplicaram o mesmo modelo organizador e modelos diferentes nas questões A e B

Como mostram os dados, embora as

crenças religiosas tenham exercido um certo grau de influência nas respostas, levando uma parcela dos sujeitos a manter seu raciocínio nas duas questões, a maioria da amostra apli-cou raciocínios diferentes ao responderem sobre o papel da relação sexual, primeira-mente segundo sua opinião pessoal e, em se-guida, sob a postura de sua religião.

Os dados da investigação sugerem que a cultura, internalizada pelos sujeitos, embora influencie a individualidade de cada membro da sociedade, não anula os demais aspectos subjetivos que se manifestam na dinâmica do funcionamento psíquico. Ao mesmo tempo, os resultados obtidos permitem considerar que tal funcionamento deve ser entendido a partir de uma visão de complexidade, a qual, ao considerar as diferentes variáveis que podem atuar no pensamento humano de forma não previsível, ajuda a explicar a tendência à mu-dança no raciocínio dos sujeitos, verificada em nossa amostra.

Por outro lado, os dados demonstra-ram também que cada uma das três religiões consideradas influenciou de forma diferente a organização do pensamento, levando em con-ta as variações intrapessoais diante das ques-tões analisadas. Este fato anuncia que o grau de influência exercida pelas crenças na orga-nização do pensamento de um sujeito pode também estar, de alguma maneira, relaciona-do à própria natureza da crença. 7.1. Regularidades e não-regularidades

Como vimos, os resultados gerais ob-

tidos demonstraram que efetivamente os mo-delos organizadores aplicados pelos sujeitos, ao se posicionarem diante de tematicas de se-xualidade, tiveram associados a seus elemen-tos, significados e implicações, aspectos e conteúdos relativos às crenças religiosas, mesmo quando estas não estavam explicita-mente presentes no contexto.

Como exemplo do que acabamos de colocar, dentre os modelos organizadores en-contrados a partir das respostas da amostra entrevistada, podemos citar o Modelo 1 da Questão A, que, por sua vez, correspondia ao Modelo 1 da Questão B. Nestes casos, o ra-ciocínio empregado pelos sujeitos fundamen-tava-se em princípios religiosos tradicionais para explicar o papel da relação sexual no re-lacionamento de um casal, citando elementos como Deus, procriação e casamento, de ma-neira coerente com alguns dos pressupostos encontrados nas religiões com as quais traba-lhamos. Na primeira questão, que não fazia referência explícita a princípios religiosos, tal raciocínio foi aplicado por 37% dos sujeitos, correspondendo a 18 católicos, 12 adventistas e 7 espíritas. Já na Questão B, que solicitava do sujeito a postura de sua religião, 61% de nossa amostra aplicou o Modelo 1, sendo 23 católicos, 22 adventistas, 9 espíritas e 7 estu-dantes.

Diante da ocorrência destes dados, podemos afirmar que os seres humanos incor-poram elementos vinculados às suas crenças

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na forma de pensar e de posicionar-se frente às situações cotidianas, o que indica que, de uma maneira geral, os aspectos culturais, in-ternalizados pelos indivíduos em sua relação com os grupos e com a sociedade, podem in-fluenciar a própria organização de seu pensa-mento. Tal fato, portanto, confirma, em parte, a hipótese central, de que as crenças influen-ciam a organização do pensamento humano.

Assim sendo, como já propôs Morin, é possível dizer que as crenças e a cultura – que, confirme vimos, relacionam-se ao “pen-samento mítico”, da criação, do imaginário e das analogias – são aspectos de fato tão im-portantes para o ser humano quanto a esfera do “pensamento racional”, já consagrado e exaltado desde a Modernidade, com as idéias Iluministas e o pensamento cartesiano.

Nesse sentido, consideramos que os resultados contribuem com uma perspectiva recente, dentro dos estudos da Psicologia, que busca compreender os processos do pensa-mento para além dos aspectos e processos cognitivos da mente humana.

Entretanto, como um trabalho de Psi-cologia que adota o referencial da Teoria da Complexidade, a análise dos dados obtidos com nossa investigação contempla não apenas as regularidades presentes, mas atenta tam-bém para as não-regularidades, as incertezas e aleatoriedades que regem os fenômenos ob-servados.

Desta forma, o que chama a atenção na investigação é o fato de que, mais do que as regularidades, as permanências, foram en-contradas mudanças, variações, tanto na for-ma com a qual os sujeitos organizaram seu pensamento quanto no grau de influência e-xercida pelas crenças religiosas nos modelos organizadores identificados. Sendo assim, em busca de compreender as relações entre as crenças e a organização do pensamento, foi encontrado um número maior de hipóteses e de novos questionamentos do que propria-mente respostas e/ou considerações conclusi-vas.

A seguir, discutiremos rapidamente cada uma das não-regularidades identificadas diante dos dados apresentados, as quais vêm, do nosso ponto de vista, confirmar a comple-

xidade dos processos que envolvem o pensa-mento humano e as relações entre o sujeito e a cultura:

• Uma mesma situação apresentada aos su-

jeitos da investigação deu origem a racio-cínios diversos, de modo que foram en-contrados, em cada uma das questões ana-lisadas (Questão A e B), cinco modelos organizadores diferentes, dentre os quais nem todos haviam sido elaborados levan-do em conta aspectos relativos a crenças religiosas. Tal fato pode ser explicado pe-la própria Teoria dos Modelos Organiza-dores do Pensamento, e demonstra que a elaboração dos modelos organizadores passa pela interpretação do sujeito, o qual (re)organiza internamente a realidade ob-jetiva a partir daquilo que, estando ou não presente no contexto, considera significa-tivo.

• Uma mesma “cultura religiosa” deu ori-

gem a raciocínios diversos. Mais especifi-camente, diferentes indivíduos que se de-clararam Católicos incorporaram, nos mo-delos organizadores aplicados, elementos relativos a esta religião, integrando, con-tudo, raciocínios orientados em direções opostas. É o que pudemos observar ao comparar os Modelos 1 e 5 da Questão B: enquanto um deles fundamentava-se em princípios religiosos tradicionais para ex-plicar o papel da relação sexual, o outro considerava a postura religiosa como insu-ficiente para explicar tal papel. Nos dados apresentados, verificamos que 23 sujeitos do grupo católico (92%) aplicaram o Mo-delo 1 em suas respostas à Questão B. Por outro lado, o Modelo 5 foi aplicado por 6 sujeitos do grupo de estudantes, sendo que, deste total, 5 deles afirmaram ser Ca-tólicos. Assim, diferentes sujeitos de uma mesma religião, ao responderam à mesma questão, fundamentados em suas crenças religiosas, partiram para direções comple-tamente diferentes. Estes dados deixam claro que a internalização dos elementos da cultura ocorre de forma não-linear, e em meio a outros processos subjetivos

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(ex: valores, estruturas cognitivas, senti-mentos, representações sociais) que po-dem levar o sujeito a aceitar ou contestar, de forma mais ou menos intensa, aquilo que lhe é sugerido pela cultura (Martins e Branco, 2001). Desta maneira, a organiza-ção do pensamento do sujeito não neces-sariamente é determinada por aquilo que é veiculado pela cultura da sociedade ou grupo do qual este participa.

• Diante de temáticas de sexualidade apre-

sentadas de formas diferentes, a tendência dos sujeitos foi de alterar seu raciocínio, isto é, de uma maneira geral, um mesmo sujeito aplicou modelos organizadores di-ferentes ao responder às questões apresen-tadas. Resgatando os dados encontrados, temos que, ao compararmos as respostas dadas pelos sujeitos às questões A e B, 39% mantiveram o mesmo tipo de racio-cínio – isto é, aplicaram modelos organi-zadores análogos nas duas respostas –, ao passo que a maioria, 54%, aplicou racio-cínios diferentes. Este dado indica que a influência das crenças na organização do pensamento, no caso dos sujeitos que par-ticiparam de nossa investigação, não foi tão intensa a ponto de garantir uma coe-rência no pensamento dos mesmos. O que fica evidente, portanto, é que a influência das crenças religiosas no pensamento não foi determinante, e isso, por sua vez, con-duz-nos para o fato de que os modelos or-ganizadores elaborados pelos sujeitos di-ante de situações semelhantes podem va-riar de acordo com o contexto, influencia-dos por outros fatores como os sentimen-tos, os valores, as experiências anteriores do sujeito, apenas para citar algumas hipó-teses.

• Foi possível verificar variações no grau de

influência das crenças no pensamento dos sujeitos, de acordo com os diferentes con-textos sociais e também com o conteúdo da própria crença. Assim foi que, no caso dos sujeitos que estavam em contato com seu grupo e espaço religioso, a influência das crenças no pensamento parece ter sido

mais acentuada. Isso fica claro quando ob-servamos, por exemplo, que, ao contrário do que encontramos nos grupos religiosos, nenhum dos sujeitos do grupo de estudan-tes (entrevistados no espaço da Universi-dade) fez referência às suas crenças reli-giosas ao responderem à Questão A; den-tro deste grupo, entretanto, mais da meta-de dos sujeitos declarou vincular-se a al-guma religião. Ao mesmo tempo, as dife-rentes crenças religiosas com as quais tra-balhamos influenciaram de formas e em níveis diferentes o pensamento dos sujei-tos entrevistados. Basta verificarmos, den-tro de cada grupo religioso, a quantidade de sujeitos que, influenciados por suas crenças religiosas, aplicaram o mesmo ra-ciocínio ao responderem às questões A e B: enquanto que, no grupo católico, 80% dos sujeitos mantiveram a coerência, nos grupos adventista e espírita, esta porcen-tagem corresponde a 48% e 24%, respec-tivamente. Assim, consideramos que a in-fluência exercida pelas crenças na organi-zação do pensamento humano pode ser mais ou menos acentuada, a depender de seu conteúdo e da maneira com a qual o sujeito relaciona-se ao grupo cultural no qual se insere.

A partir dos pontos aqui discutidos,

podemos afirmar que os resultados obtidos com a pesquisa que aqui se coloca, embora confirmem a hipótese inicial, também trazem indícios para considerar que as relações entre as crenças – e por extensão os aspectos cultu-rais – e o pensamento humano são permeadas por uma série de outros fatores que atuam si-multaneamente durante a organização do ra-ciocínio, isto é, na elaboração dos modelos organizadores. Tais fatores podem ser de or-dem inter e intrapsíquica, sendo que, neste último caso, podem estar relacionados, supo-mos, a diferentes dimensões constituintes do sujeito: afetiva (através da atuação de senti-mentos e valores); biológica (com o próprio funcionamento cerebral); cognitiva (influen-ciada pelos esquemas de ação e estruturas cognitivas) e até mesmo outros aspectos da

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própria dimensão sociocultural (influência da linguagem e representações sociais).

Para finalizar, devemos ter em vista que este trabalho centrou-se apenas nas possí-veis influências exercidas pelas crenças reli-giosas no pensamento humano, e que há ou-tros aspectos também relacionados à cultura (contexto familiar, linguagem, crenças de ou-tra natureza) que, julgamos, certamente exer-cem sua parcela de influência na organização do pensamento dos sujeitos.

8. Considerações finais

O presente artigo buscou discutir as

relações entre as crenças e o pensamento hu-mano, a partir de uma perspectiva de comple-xidade. Partimos do princípio de que as cren-ças pessoais, ao fazerem parte da individuali-dade do sujeito, passam a influenciar o pró-prio funcionamento mental, a organização do pensamento, atuando juntamente aos proces-sos cognitivos.

Para as discussões, apresentamos os resultados de uma investigação embasada na Teoria dos Modelos Organizadores do Pen-samento. Esta teoria considera que o sujeito constrói modelos da realidade em sua intera-ção com os objetos, pessoas e relações pre-sentes ao seu redor, e também consigo mes-mo. Os modelos organizadores do pensamen-to são construídos a partir não apenas de pro-cessos cognitivos, mas também diante da in-fluência de aspectos de outra natureza, como afetiva (sentimentos, emoções) e sociocultural (crenças).

A pesquisa apresentada teve como ob-jetivo investigar as relações entre as crenças religiosas e os modelos organizadores do pen-samento aplicados por sujeitos diante de situ-ações que envolviam questões relacionadas ao tema da sexualidade. Em uma perspectiva mais ampla, a pesquisa buscou verificar até que ponto os aspectos culturais (aqui repre-sentados pelas crenças), que são internaliza-dos pelos sujeitos, passam a influenciar a or-ganização de seu pensamento.

Os dados da pesquisa, obtidos a partir da aplicação de um questionário a sujeitos de diferentes religiões, demonstraram que os

modelos organizadores aplicados incorpora-ram elementos relativos às crenças religiosas, indicando que estas de fato influenciam a or-ganização do pensamento. Por outro lado, foi verificado também que tal influência atuou em conjunto a outras variáveis concernentes ao funcionamento psíquico dos sujeitos em questão, evidenciado pelas variações nos mo-delos organizadores encontrados, tanto entre os diferentes grupos entrevistados quanto na análise das respostas de um mesmo sujeito.

Diante de todo o exposto, gostaríamos de encerrar as discussões com algumas consi-derações suscitadas pelo estudo feito e pelos resultados obtidos.

Não nos resta dúvida de que o funcio-namento mental do ser humano deve ser com-preendido a partir de uma perspectiva de complexidade. Pensamos, assim, que os resul-tados apresentados vêm por confirmar ainda mais a necessidade de considerarmos que os processos do pensamento humano, diante da infinidade de variáveis que nele atuam, só po-dem ser de fato compreendidos levando-se em conta que as não-regularidades existem tanto quanto as regularidades, que as possibilidades não são necessariamente previsíveis, que a-quilo que influencia não determina.

O intuito, portanto, não foi delinear um caminho único, com teorias acabadas e que se pretendem absolutas. Pensamos que novos estudos, que tenham como ponto de partida uma perspectiva ampla, encarando o ser humano em sua totalidade e complexida-de, podem esclarecer ainda mais nossa com-preensão da realidade humana e de suas rela-ções com o mundo.

Ao mesmo tempo, na intenção de es-tudar as influências das crenças na organiza-ção do pensamento, a pesquisa traz também contribuições para a discussão acerca das re-lações entre o sujeito e a cultura, ao modo com o qual os elementos culturais são interna-lizados pelos sujeitos e até que ponto estes mesmos elementos passam a ser incorporados à forma de pensar do ser humano.

E, neste sentido, os resultados de nos-sa pesquisa apontam para o fato de que os as-pectos culturais, criações humanas que têm sua origem na vida social dos indivíduos, e-

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xercem sua parcela de influência, orientando o modo de pensar dos sujeitos e sua atuação no mundo e que, no pensamento humano, tais aspectos adquirem tanta importância quanto outros, de ordem cognitiva ou afetiva, por e-xemplo.

Por outro lado, essa mesma cultura não pode ser vista como determinante na constituição da individualidade do ser huma-no, uma vez que, como discutido, as crenças (em especial as religiosas) não foram sufici-entes para orientar por si só a organização do pensamento diante das questões cotidianas, em direção à homogeneidade e constância dos raciocínios aplicados pelos sujeitos, já que atuam em meio a outros fatores subjetivos.

Desta forma, estamos inclinados a considerar que a cultura, ao ser internalizada – através de aspectos como as crenças (que aqui elegemos para nosso estudo) – passa a fazer parte da dinâmica do funcionamento psíquico e mental do ser humano, mas não anula os demais fatores que influenciam este processo, tanto vinculados à própria dimensão sociocultural, como a demais dimensões do ser humano.

Isso parece ser coerente com as pers-pectivas que consideram a relação entre a cul-tura e o indivíduo, bem como o processo de internalização desta pelo sujeito, de uma ma-neira não unilateral, apresentadas ao longo do presente artigo através das idéias de Morin (2002b), Vygotsky (1998) e Martins e Branco (2001). Assim, ao ser incorporada à individu-alidade do sujeito, os aspectos culturais pas-sam, neste processo, pela subjetividade de cada ser humano, de forma que a internaliza-ção não representa simplesmente a reprodu-ção dos elementos da cultura no indivíduo.

Diante disso, ressaltamos que, em nossa opinião, qualquer estudo que tenha co-mo objetivo compreender o funcionamento mental e psíquico do ser humano e sua atua-ção no mundo deve fazê-lo sempre levando em conta as influências exercidas pelo con-texto cultural nesta dinâmica. Isto é, o ser humano não pode ser visto desvinculado da cultura e da sociedade nas quais se insere. Ademais, acreditamos que estudos futuros sobre as relações entre o funcionamento men-

tal e a influência da cultura podem contribuir para uma compreensão ainda maior destes processos. 9. Referências bibliográficas Arantes, V.A. (2000). Estados de ânimo e os modelos organizadores do pensamento: um estudo exploratório sobre a resolução de con-flitos morais. Tese de Doutorado. Barcelona: Facultat de Psicologia, Universitat de Barce-lona. Araújo, U.F. (1999). Conto de Escola: a ver-gonha como um regulador moral. São Paulo: Moderna; Campinas: Editora UNICAMP. Araújo, U.F. (2003). A dimensão afetiva na psique humana e a educação em valores. Em: Arantes, V. (Ed.) Afetividade na escola: al-ternativas teóricas e práticas (pp. 153-169). São Paulo: Summus. Martins, L.C. e Branco, A.U. (2001). Desen-volvimento moral: considerações teóricas a partir de uma abordagem sociocultural cons-trutivista. Psicologia Teoria Pesq., 17 (2), 169-176. Moreno, M.; Sastre, G.; Leal, A. e Bovet, M. (1999). Conhecimento e Mudança: os mode-los organizadores na construção do conheci-mento. São Paulo: Moderna; Campinas: Edi-tora UNICAMP. Morin, E. (1991). O paradigma de complexi-dade (Matos, D., Trad.). Em: Introdução ao Pensamento Complexo (pp. 83-113). Lisboa: Instituto Piaget (Original publicado em 1990). Morin, E. (1994). Epistemologia da Comple-xidade (Rodrigues, J. H., Trad.). Em: Shni-man, D. Novos paradigmas, cultura e subjeti-vidade (pp. 274-289). Porto Alegre: Artes Médicas. Morin, E. (2002a). O Método 1: a natureza da natureza (Heineberg, I., Trad.). Porto Ale-gre: Sulina (Original publicado em 1977). Morin, E. (2002b). O Método 5: a humanida-de da humanidade (Silva, J. M., Trad.). Porto Alegre: Sulina (Original publicado em 2001). Vygotsky, L.S. (1998). A formação social da mente (Cipolla Neto, J.; Menna Barreto, L.S.; Afeche, S.C., Trads.). São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1978).

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Ciência da computação e ciência cognitiva: um paralelo de semelhanças

The computer science and the cognitive science: a similarity parallel

Caroline Andréia Eifler Saraiva e Irani I. de Lima Argimon

Programa de Pós-graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

(PUC-RS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo O presente artigo tem por objetivo apresentar a inter-relação existente entre a área da Ciência Cognitiva e a área da Ciência da Computação, fazendo um paralelo entre suas concepções. Foram abordados aspectos históricos de cada ciência, suas definições, aplicações e críticas. Constatou-se a permanente investigação sobre os processos da mente em ambas áreas de conhecimento, criando uma intersecção de visões onde a mente segue o funcionamento do computador e o computador busca imitar as funções da mente. Nesse contexto, a Ciência Cognitiva, por ser multidisciplinar, busca encontrar uma teoria unificada de cognição, integrando as diversas áreas do conhecimento em torno do estudo da mente. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 150-155. Palavras-chave: ciência cognitiva; ciência da computação; inteligência artificial; re-des neurais; conexionismo. Abstract The aim of the present paper was to present the relations between the Cognitive Science Area and the Computer Science Area, making a parallel between their conceptions. Historical aspects of each sci-ence were approached, as well as their implications, censures and definitions. It was identified evi-dences of a great search on the processes of the mind in both knowledge areas, creating a correlation of views, in which the mind follows the functioning of a computer and the computer recreates mind’s functions. In this context, the Cognitive Science, intends to find a unificated Cognition theory, putting all the knowledge areas together around mind's study. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 150-155. Key Words: cognitive science; computer science; artificial inteligence; neural nets; conexionism.

1. Introdução A história do processamento de infor-

mação teve origem em tempos muito remotos, quando os primeiros habitantes viviam em cavernas. Ao se comunicar através de pinturas

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 150-155 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 01/10/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 28/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

- C.A.E. Saraiva é Bacharel em Informática (PUC-RS), com MBA em Tecnologias da Informação e da Comuni-cação em Educação (PUC-RS) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Psicologia (PUC-RS). Atua no ensino de informática para idosos. E-mail para correspondência: [email protected]. I.I.L. Argimon é Doutora em Psicologia. Atualmente é Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Avaliação e Intervenção no Ciclo Vital” do Pro-grama de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia (PUC-RS). E-mail para correspondência: [email protected].

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rupestres, o homem primitivo já trocava idéi-as, demonstrando sentimentos e preocupações cotidianas. Na antiga Mesopotâmia, com a invenção da escrita, iniciou-se o processo de tratamento da informação que incluía não a-penas escrever, mas armazenar, combinar e transmitir o que estava sendo produzido.

Segundo Levy (1993), o advento da imprensa, por Gutemberg, em 1445, foi um grande marco para os meios de comunicação, iniciando o período denominado de “oralidade secundária”, quando a oralidade cedeu espaço à objetividade da palavra escrita. Desde então, houve um processo evolutivo intenso em toda a forma de comunicação, com o aparecimento das transmissões de voz, em seguida de ima-gens e culminando com a transmissão de da-dos. Para esta, o computador apresenta-se como condutor mestre de um processo de fa-cilitação de tratamento de informação, pois armazena, classifica, compara, combina e compartilha dados, de forma eficiente e com grande velocidade.

Em razão da capacidade dessas má-quinas para lidar com materiais simbólicos, muitos pesquisadores se convenceram de que uma ciência da cognição poderia ser moldada à imagem do computador (Gardner, 2003).

Na primeira metade do século XX, tem início, então, a ciência cognitiva que, por sua conceituação, estuda o funcionamento mental baseado no modelo computacional, sendo caracterizada como uma área de estu-dos interdisciplinar que se inter-relaciona com a Psicologia, a Lingüística, a Ciência da Computação, as Ciências do Cérebro e a Filo-sofia, entre outras (Lima, 2003).

2. Uma breve história da Ciência Cognitiva

Os primeiros movimentos rumo a uma

nova ciência, denominada ciência cognitiva, aconteceram em 1948, no Congresso sobre Mecanismos Cerebrais do Comportamento, também chamado de Simpósio de Hixon, no Califórnia Institute of Technology, onde a questão clássica de discussão foi a forma pela qual o sistema nervoso central controla o comportamento. Além dessa abordagem, co-mo cita Gardner (2003), esse Congresso foi

especialmente importante por dois fatores: a ligação que fez entre cérebro e o computador e o desafio implacável que lançou ao Behavi-orismo.

O Behaviorismo de orientação positivis-ta, cuja idéia principal baseia-se na análise de condutas observáveis, ou seja, evitando con-ceitos “mentais”, teve lugar durante as déca-das de 20 a 40. Por não tentar explicar os pro-cessos cognitivos, Eysenck e Keane (1994) destacam sua falha no sentido de ser superfi-cial, o que deu lugar ao surgimento de novas idéias. No Simpósio de Hixon, alguns inputs teóricos foram lançados por John Von Neumman - matemático, por Warren McCul-loch – neurologista e Karl Lashley – psicólo-go, estabelecendo comparações sistemáticas entre o funcionamento do cérebro humano e máquinas do tipo computador eletrônico.

Na metade do século XX, nos Estados Unidos, surgiram os primeiros computadores eletrônicos, criados para operarem com a grande quantidade de números da Guerra Mundial. Conforme cita Hodges (2007), Alan Turing, em 1936, concebeu a idéia de uma máquina simples que utilizava a lógica para executar cálculos. Mais adiante, Turing suge-riu a avaliação de uma máquina que simulasse o pensamento humano, implementada por Neumann com o armazenamento de um pro-grama em memória. Com isso, as operações podiam ser preparadas e executadas interna-mente, sem que fosse necessário reprogramar as tarefas a cada vez que era ligado o compu-tador.

A partir destes estudos, Claude Elwood Shannon, matemático norte-americano, no final dos anos 30, formalizou o conceito da teoria da informação. Shannon considerou a utilização de duas alternativas possíveis de resposta através da ocorrência de bits (binary digit em inglês), baseado nos estados dos re-lés eletromecânicos, ligado e desligado. Pela teoria da informação de Shannon, a informa-ção poderia ser reduzida, assim como os ter-mos verdadeiro e falso do cálculo proposicio-nal, a um dígito binário, que é a quantidade mínima de informação necessária para esco-lha de uma mensagem afirmativa ou negativa, 1 ou 0.

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Foram os insights de Wiener que leva-ram Shannon à proposição de dissociação da informação e seu meio transmissor. “Informa-ção é informação, não matéria ou energia. Nenhum materialismo que não admita isto pode sobreviver nos dias atuais” (Wiener, 1961).

Posteriormente a esses fatos, Warren McCulloch e Walter Pitts, no início dos anos 40, defenderam a tese de que uma rede neural formada pelas conexões dos neurônios pode-ria ser modelada em termos da lógica, ou seja, um neurônio sendo ativado impulsionaria ou-tro neurônio e isso implicaria numa proposi-ção. Uma analogia entre neurônios e lógica poderia ser pensada em termos elétricos – como sinais que passam ou deixam de passar através de circuitos. Em função disso, a ciên-cia da computação recorreu às pesquisas so-bre neurônios e suas conexões para projetar máquinas ou programas cada vez mais pare-cidos com o cérebro humano.

Mas a consolidação do reconhecimento da ciência cognitiva, por um consenso quase unânime, deu-se a partir do Simpósio sobre Teoria da Informação realizado no Massachu-setts Institute of Technology em setembro de 1956. Gardner (2003) cita as publicações que tiveram fundamental importância para tal fa-to:

• “The Magical Number Seven”, de George

Miller: um artigo que discutia a capacida-de da memória humana de curto prazo li-mitar-se a aproximadamente sete itens;

• “Logic theory machine”, de Newell e Si-mon: a primeira prova concreta de um teo-rema executada em uma máquina compu-tadora;

• “A study of thinking” de Bruner, Good-now e Austin: obra capital da psicologia do pensamento que abordou também con-ceitos artificiais;

• “Syntatic Structure” de Noam Chomsky: versava sobre suas idéias a respeito da no-va lingüística, baseada em regras formais e sintáticas, próximas às formalizações matemáticas.

Nas décadas seguintes, houve vários movimentos no sentido de estudar a ciência cognitiva, com muitas publicações de livros sobre o assunto. Em Harvard, um grupo de doze estudiosos, com o objetivo de descobrir as habilidades representacionais e computa-cionais da mente e sua representação funcio-nal e estrutural do cérebro, elaborou o hexá-gono cognitivo – um hexágono que mostra as inter-relações entre os seis campos constituin-tes da ciência cognitiva, que são as áreas da Filosofia, Lingüística, Antropologia, Neuroci-ência, Inteligência Artificial e Psicologia. A reação da comunidade científica foi extrema-mente negativa a essa proposição, causando a não publicação desse documento.

3. Uma breve história da Ciência da Com-putação

A Ciência da Computação ensaiou seus primeiros passos através da máquina de Turing, criada nos meados dos anos 30, que serviu de referência para John Von Neumann, dez anos mais tarde, na construção dos pri-meiros computadores. Neumann revolucionou a concepção do funcionamento de um compu-tador, quando afirmou que era possível colo-car no mesmo plano, instruções e dados, não sendo necessário o uso de duas memórias. Na área da computação o termo “arquitetura de von Neumann” é muito conhecido, o que de-fine que a arquitetura permite autonomia entre hardware e software (Teixeira, 1998).

Ao mesmo tempo, Norbert Wiener a-presentava o termo “cibernética”, definindo em modelos matemáticos toda a atividade psicológica humana. Enfatizou a necessidade das máquinas seguirem o funcionamento do organismo vivo no controle de suas próprias atividades.

Passados os anos cibernéticos, a pos-sibilidade de elaborar programas que simulas-sem o comportamento inteligente, tomou forma através da expressão “inteligência arti-ficial”, cunhada por John McCarthy no cam-pus do Dartmouth College, em Hanover. Se-gundo Eysenk e Keane (1994), o homem era visto como um processador de informações, criando uma proximidade na relação entre a

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mente e o computador, através da inteligência artificial, que propõe um modelo baseado em sistemas neurais, tentando imitar o homem em sua complexidade, ensinando o computador a pensar.

A Inteligência Artificial proporcionou o passo fundamental para se tentar relacionar mentes e computadores e estabelecer o “mo-delo computacional da mente” (Teixeira, 1998: 13). Não se sabe ainda se seu propósito foi totalmente realizado, mas, como afirma Teixeira, nos obrigou a refletir sobre o signi-ficado do que é ser inteligente, o que é ter vi-da mental, consciência e muitos outros con-ceitos que freqüentemente são empregados por filósofos e psicólogos. 4. Inteligência artificial e os sistemas espe-cialistas Com o advento da Inteligência Artificial, preconizado por nomes como John McCarthy e Marvin Minsky, futuros diretores do Labo-ratório de Inteligência Artificial do MIT e Herbert Simon e Allen Newell, pesquisadores que criaram em Pittsburgh outro Laboratório de Inteligência Artificial, surgiram as primei-ras máquinas de jogar xadrez e de demonstrar teoremas. Na visão de Newell e Simon, o computador era um sistema simbólico físico como o cérebro humano e exibia muitas pro-priedades iguais às do ser humano, sendo am-bos sistemas que processavam informação no decorrer do tempo, procedendo em uma or-dem mais ou menos lógica. Mas essa visão gerou polêmica e críticas. Alguns estudiosos argumentavam que toda informação do programa do computador havia sido colocada por um humano; logo, o solu-cionador de problemas estava apenas fazendo o que fora programado para fazer. Uma outra linha de crítica versava sobre a capacidade dos seres humanos de criar atalhos para solu-ção de problemas, enquanto que os computa-dores apenas repetiriam processos pré-definidos. Conforme Gudwin (2005) relata, os filó-sofos tais como John Searle, Daniel Dennet, Patrícia Churchland, entre outros, ocupavam-se com questões como: pode haver máquinas

dotadas de inteligência comparável à inteli-gência humana? Paralelamente a esse embate, os cientistas e os engenheiros de computação, passaram a dotar as máquinas de “mentes arti-ficiais”, seguindo os modelos definidos nas ciências cognitivas.

Segundo Pozzebon e colaboradores (2004), surgiram diferentes teorias na Inteli-gência Artificial, em razão da indefinição do principal conceito que é o de inteligência hu-mana. Dentre elas, a de Vignaux (1995) ques-tionava se era necessário fornecer ao compu-tador uma avalanche de dados, ou se era ne-cessário basear o estudo da cognição no nível inferior da percepção, conciliando essas duas vertentes em uma terceira teoria híbrida, se-gundo a qual a máquina seria capaz de racio-cinar utilizando conceitos complexos e de perceber o seu meio envolvente.

Por volta dos anos 40 havia dois para-digmas vigentes relacionados à Inteligência Artificial, o simbólico e o conexionista. A In-teligência Artificial Simbólica privilegiou es-tudar a mente humana, utilizando-se de simu-lações e representações mentais através de programas autônomos em relação ao hardwa-re. Já a Inteligência Artificial Conexionista acreditava que, construindo-se um sistema que simule a estrutura do cérebro, este siste-ma apresentará inteligência, ou seja, será ca-paz de aprender, assimilar, errar e aprender com seus erros.

Na primeira vertente, os sistemas es-pecialistas foram o grande sucesso nas déca-das de 70 e 80. Os sistemas especialistas são sistemas dotados de inteligência e conheci-mento, que trabalham com bancos de memó-rias, sendo capazes de estender as facilidades de tomada de decisão para muitas pessoas. Ou seja, são sistemas providos de mecanismos de aprendizagem, capazes de analisar e gerar no-vas regras na base de dados, ampliando a ca-pacidade de resolver problemas a cada vez que são utilizados (Mendes, 1997).

Os primeiros Sistemas Especialistas que obtiveram sucesso em seu objetivo foram o sistema DENDRAL e MYCIN. O sistema DENDRAL é capaz de inferir a estrutura mo-lecular de compostos desconhecidos a partir de dados espectrais de massa e de resposta

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magnética nuclear. O sistema MYCIN auxilia médicos na escolha de uma terapia de antibió-ticos para pacientes com bacteremia, meningi-te e cistite infecciosa, em ambiente hospitalar (Harmon e King, 1988).

Atualmente os Sistemas Especialistas estão sendo revistos, uma vez que se apresen-taram limitados em seu potencial de “apren-der” novos conceitos. Estudos apontam para um novo conceito dentro da inteligência arti-ficial que é a utilização de redes neurais.

Para Teixeira (1998), computadores e cérebros são sistemas cuja função principal é processar informação e, assim, podem-se uti-lizar redes artificialmente construídas para simular esse processamento. As redes neurais, representantes do segundo paradigma anteri-ormente citado, consistem em um sistema com circuitos que simulam o cérebro humano, inclusive seu comportamento, sendo capaz de aprender regras. Tais redes constituem um intrincado conjunto de conexões entre as neu-ron-like units que estão dispostas em camadas hierarquicamente organizadas.

De acordo com Fischler (1987), Ra-buske (1995) e Barreto (1997), a abordagem conexionista trouxe uma nova visão na tenta-tiva de construir um modelo da mente, base-ando-se em redes neurais. Apesar das limita-ções computacionais da época, destacaram-se algumas conquistas relevantes, como o sur-gimento da cibernética, a modelagem de redes de neurônios como um novo paradigma para a arquitetura computacional e o desenvolvimen-to de alguns programas computacionais inte-ligentes que imitavam o comportamento hu-mano.

5. Conclusão A semelhança de conceitos existentes entre a Ciência Cognitiva e a Ciência da Computa-ção surge desde a primeira geração de cientis-tas, que acreditaram em uma ciência da cog-nição moldada à imagem do computador. Conforme Gardner (2003) afirma, poderia haver ciência cognitiva sem o computador, mas ela não teria surgido quando surgiu, nem tomado a forma que tomou, sem o apareci-mento do computador.

Os fatos se entrelaçaram em toda a his-tória, criando uma intersecção de visões onde a mente segue o funcionamento do computa-dor e o computador busca o funcionamento da mente. Mas a Ciência Cognitiva é uma área em ebulição que ainda tenta firmar seus pró-prios caminhos – uma área onde o consenso ainda está muito distante (Teixeira, 1998). Para superar esse problema é necessária uma integração entre as várias abordagens no que tange ao estudo da mente e do cérebro. A Ciência da Computação, por sua vez, tem buscado simular o pensamento humano em sua essência, uma tarefa nem um pouco fácil, que vem se aperfeiçoando ao longo dos anos e atualmente trabalha com o conceito de redes neurais. Os sistemas especialistas que tiveram seu auge nos anos 70 e 80 ressurgem com esta abordagem, combinando a arquitetura con-vencional com uma arquitetura conexionista.

Não há dúvida de que o computador tem sido uma ferramenta útil àqueles que que-rem testar virtualmente suas teorias sobre o funcionamento da mente. Nesse sentido, os cientistas vêm usando cada vez mais o com-putador como instrumentos de análise de da-dos e como laboratório para simulação dos processos cognitivos. Mas, como aborda Gardner (2003), ainda existem alguns cientis-tas que o consideram um mero brinquedo, a-trapalhando ao invés de acelerar os esforços para entender o pensamento humano. Nos campos da lingüística e da psicologia ainda existem reservas com relação à abordagem computacional. Nesse contexto, a Ciência Cognitiva, por apresentar-se um elemento multidisciplinar, pode buscar a integração do conhecimento sobre o estudo da mente, encontrando uma teoria unificada da cognição, juntamente com estudiosos de várias áreas do conhecimento. Para Teixeira (1998), o grande desafio da Ci-ência Cognitiva continua sendo efetuar pro-gressos conceituais e empíricos que permitam saber do que se está falando quando a refe-rência é a mente ou a consciência. 6. Referências bibliográficas

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Estilo de vida como indicador de saúde na velhice

Life style as health indicator on ageing

Vera Lygia Menezes Figueiredo

Programa Interdisciplinar de Geriatria e Gerontologia, Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo Uma revisão da literatura gerontológica objetivou explorar o tema do envelhecimento saudável, dan-do-se destaque aos fatores contribuintes para a manutenção da qualidade de vida. Dentre os fatores pesquisados, o estilo de vida é considerado como um importante promotor de estímulos sócio-emocionais que otimizam o funcionamento cognitivo. A conclusão sugere que estilo de vida possa ser utilizado com um indicador de saúde, recebendo assim cuidadosa atenção quando se objetiva promover ou prevenir a saúde na senescência. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 156-164. Palavras-chave: velhice; estilo de vida; qualidade de vida; saúde coletiva; geronto-logia. Abstract A gerontological literature review aimed to explore the healthy ageing emphasizing the contributive factors for the maintenance of a life quality. Among the factors researched, life style is considered as an important promoter of social-emotional stimuli that improve the cognitive functioning The conclu-sion suggests that life style may be used as a health indicator and it should earn careful attention when the objective is to promote or prevent health in senescence. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 156-164.

Key Words: ageing; life style; life quality; collective health; gerontology.

Introdução "Quantos velhos obstinados morrem intestados!

Para eles, trata-se menos de conservar até o fim seu tesouro ou seu império já meio desligados dos seus dedos entorpecidos,

do que de não se instalar demasiado cedo no estado póstumo de um homem que já não tem decisões a tomar, surpresas a causar,

ameaças ou promessas a fazer aos vivos." Marguerite Yourcenar (1980: 96-97)

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 10/02/2007 | Revisado em 27/09/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Revisão

– V.L.M. Figueiredo é Psicóloga Clínica, Especialista em Psicologia Hospitalar (CPF) e Gerontologia (UFF). Atua como voluntária pelo Programa Interdisciplinar de Geriatria e Gerontologia (HUAP/UFF) e como Coordenadora do Plantão Psicológico e de uma Oficina de Estimulação Cognitivo-Expressiva em Grupo, voltados para idosos de comunidade. E-mail para correspondência: [email protected].

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Nas sociedades modernas industriali-

zadas, um fenômeno mundial recorrente é a saída do indivíduo do cenário social via a a-posentadoria e, comumente, coincidente com a entrada na velhice. Apesar de a realidade demográfica apontar para um crescimento progressivo e expressivo da população idosa, que já vêm alcançando com facilidade faixas etárias longevas, o reengajamento funcional ou mesmo ocupacional (que significaria o a-cesso aos núcleos socioculturais) não é esti-mulado ou mesmo valorizado por conta de imagens ainda preconceituosas e/ou estereoti-padas do indivíduo envelhecido. Assim, inex-pressivos e insuficientes estímulos sociocultu-rais aliam-se à sensação de inabilidade pesso-al para conviver em um mundo estranho aos seus hábitos e padrões adquiridos em gera-ções passadas, seja por uma tendência pessoal à desvalorização de suas capacidades e habi-lidades, ou bem devido a uma dificuldade pa-ra abrir-se ao novo e permitir novas aprendi-zagens. O indivíduo idoso pode, paulatina-mente, desobrigar-se de resgatar o seu sentido de pertencimento social, deixando de ser al-guém 'desejante'.

Além do desestímulo social, e por uma série de fatores ligados às histórias pessoais e às experiências de vida, muitos idosos permi-tem que o seu prazer de viver envelheça, im-pondo-se um isolamento social ou permitindo que outros o façam. Outros há que vivem bem, porém com uma vida bastante rotinizada e pouco estimulante em termos cognitivos. E ainda há outros idosos que, por desajustamen-tos psicológicos diversos, vivem sob uma qualidade de vida inferior ao esperado.

Em comum para esses estilos vivenci-ais humanos descritos, pode-se então desta-car: uso deficitário das funções cognitivas, retração da expressividade emocional, e redu-ção das trocas relacionais e com o meio. Este empobrecimento da qualidade de vida na ve-lhice não encontra respaldo científico: princi-palmente no primeiro terço da velhice, a grande maioria dos idosos é saudável, tanto do ponto de vista orgânico como cognitivo, ou tem as suas cronicidades ainda sob contro-

le, garantindo assim a possibilidade de manu-tenção da autonomia e da independência.

Envelhecimento populacional e o conceito de saúde

O interesse pelo estudo dos fenômenos do envelhecimento é gerado pelas projeções de crescimento da população idosa nos Esta-dos Unidos e em vários países da Europa, na virada do século XX e em plena era industrial. Tanto nos países desenvolvidos como naque-les em desenvolvimento, guardadas as devi-das proporções diferenciadoras, três índices epidemiológicos vêm mantendo-se em declí-nio: a mortalidade infantil, a mortalidade ma-terna, e a mortalidade por doenças crônicas. O resultado desta combinação vem significando um crescente número absoluto de idosos que, paulatinamente, irão somando ao contingente populacional já existente. Há um consenso no meio científico de a expectativa de vida ser um dos indicadores mais importantes de saú-de.

No entanto, somente por volta da dé-cada de trinta é que a Geriatria surge nos mei-os científicos como uma disciplina médica, dedicando-se ao estudo das patologias com-preendidas como senis e dos seus aspectos curativos (Debert,1999). Da mesma forma acontece com a Gerontologia, quando a partir da década de cinqüenta os seus estudos são sistematizados para a área do envelhecimento normal, da prevenção e da qualidade de vida na idade tardia, como apropriadamente justi-fica Néri (1995: 27), "{...} de explicar os de-terminantes e as características das mudanças da velhice, que se tornam cada vez mais visí-veis e, quando patológicas, cada vez mais o-nerosas para a sociedade”. As interfaces da Gerontologia com diversas disciplinas, alcan-çando campos até mesmo transdisciplinares, abrem dimensões de estudos e pesquisas enri-quecedores.

A velhice, hoje, é uma realidade que tem longevidade. O crescimento da população de idosos, em números absolutos e relativos, já é um fenômeno mundial. Em 1950 eram cerca de 204 milhões de idosos no mundo e,

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já em 1998, quase cinco décadas depois, este contingente alcançava 579 milhões de pessoas - um crescimento de quase oito milhões de idosos por ano. Segundo Paschoal (apud Pa-paleo Netto, 1996), a expectativa média de vida da população em geral (limite biológico) encontra-se atualmente projetada em torno de oitenta e cinco anos; para o Brasil de 2005 este índice já era de setenta e dois anos (Néri, 1995:36), o que contrasta enormemente com aquela expectativa de vida do século passado de até uns sessenta e oito anos de idade.

Envelhecer com saúde vem sendo, portanto, o atual desafio para este século XXI, como bem expressa a Organização Mundial de Saúde (OMS)1:

"It is time for a new paradigm, one that views older people as active participants in an age-integrated society and as ac-tive contributors as well as beneficiaries of development.” (WHO, 2002:43)2

A ciência já acumula pesquisas e estu-

dos que oferecem algumas respostas sobre o que é ser idoso, o que é a velhice, e o que produz o envelhecimento humano. As dife-renças individuais, entretanto, por estarem delimitadas por eventos de origem psicológi-ca, sócio-histórica e genético-biológica, tra-zem dificuldade para conceituar de um modo homogêneo a tamanha heterogeneidade.

O conceito de saúde, redefinido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947 como um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, é conceituado em 1994 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como a busca de uma qualidade de vida:

"It is an individual perception of his or her position in life in the context of the culture and value system where they live, and in relation to their goals, ex-pectations, standards and concerns. It is a broad raging concept, incorporating in a complex way a person's physical health, psychological state, level of in-dependence, social relationships, per-sonal beliefs and relationship to salient

features in the environment." (WHO, 2002:13)3 Este ampliado conceito de saúde, desig-

nado como 'Envelhecimento Ativo' (Active Ageing), define o processo de otimizar opor-tunidades para a saúde, sendo o bem-estar biopsicossocial uma de suas vertentes princi-pais, e para uma participação ativa e em se-gurança de modo a aumentar a qualidade de vida das pessoas que envelhecem.

Importante destacar que o planejamen-to estratégico desenvolvido no documento da OMS prioriza os direitos e já não tanto as ne-cessidades do indivíduo idoso. Em outras pa-lavras, o objetivo é a não paternalização do indivíduo idoso, devendo ser estimulado a uma participação conjunta tanto no plano de políticas públicas quanto na vida social e co-munitária. Os seus direitos passam a ser des-taque, principalmente nos aspectos da igual-dade de oportunidade e do tratamento de saú-de à medida que envelhece. No Brasil, a Polí-tica Nacional do Idoso, implementada em ja-neiro de 1994, mostra preocupação na formu-lação de uma política voltada para a velhice e também para os que ainda irão envelhecer; através do seu 'Plano de Ação Governamental' (MPAS, 1996), a questão da prevenção é um dos destaques, justificado por tratar-se de a-ções com menores custos e que produzem re-sultados sociais melhores.

Freitas e colaboradores (2001), a partir de uma consistente revisão da literatura cien-tífica sobre pesquisas em Gerontologia e Ge-riatria, produzidas nos últimos vinte anos, a-pontam um equilíbrio nos estudos sobre a ve-lhice e o envelhecimento: 53,8% em Geriatria e 45,8% em Gerontologia. “Tal fato reforça o sentido de que, na velhice, o declínio das ha-bilidades físicas e mentais não resulta somen-te das conseqüências do avanço da idade, mas também dos fatores socioculturais que contex-tualizam o idoso”. Outra análise feita pelos autores diz respeito à ênfase das pesquisas na promoção de saúde através da educação para o autocuidado.

Senescência e a capacidade funcional

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Senescência é a condição humana de quem está envelhecendo. Há um consenso na literatura científica para designar, com este termo, o envelhecimento humano normal, sendo partes deste processo as alterações fun-cionais, orgânicas e morfológicas. Já para o envelhecimento patológico, senilidade é o termo mais utilizado, concorrendo às doenças crônicas e/ou os quadros neurodegenerativos que incapacitam ou restringem sobremaneira a autonomia do indivíduo idoso.

Um estudo feito em janeiro de 1991, no Canadá (apud Papaleo Netto, 1996: 314), com uma população de idosos com mais de 75 anos, conclui que "quanto mais velho mai-or a incidência de problemas relacionados à saúde e ao desempenho das atividades da vida diária quando comparado com grupos etários de 60-64 anos e 65-74 anos". Esta pesquisa confirma resultados semelhantes de estudos já realizados sobre a prevalência da demência em idosos velhos; no Brasil, entre outras pes-quisas, pode-se citar um estudo epidemiológi-co de 1998, realizada no interior de São Paulo e conhecido como ‘Estudo de Catanduva’ (Herrera Jr et al., 1998).

Segundo a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2002), as doenças crônicas são causas significativas e custosas de incapaci-dade e de reduzida qualidade de vida; isto tan-to para os países desenvolvidos como para os países em desenvolvimento. Porém, "incapa-cidades associadas com o envelhecimento e o início da doença crônica podem ser preveni-dos ou retardados" (WHO, 2002: 35). Enfati-za o órgão governamental que o alerta para o envelhecimento patológico tem a ver com o fato de que o declínio na capacidade funcional pode ser prematuramente estimulado ou ace-lerado, bem como pode ser reversível em qualquer idade através de medidas individuais e das políticas públicas.

Dentre os fatores precipitantes de in-capacidade funcional destaca-se a área cogni-tiva. Sua importância vem merecendo esfor-ços por parte dos pesquisadores, em nível mundial, para estudar o perfil cognitivo do envelhecimento. Dada a heterogeneidade do envelhecer, os estudos esbarram em dificul-dades para classificar déficits cognitivos,

principalmente aqueles relativos à memória. Têm sido propostos diversos termos, tais co-mo: alteração de memória associada à idade; transtorno cognitivo leve; déficit cognitivo leve; e etc., que alguns estudiosos do assunto acreditam poderem ser condições intermediá-rias entre o normal e o patológico. Por outro lado, quando se intenta classificar as altera-ções cognitivas leves (ACL) como distúrbios ou síndromes associados ao envelhecimento (Korten et al., 1997; Petersen et al., 1999, 2001; Elias et al., 2000), por exemplo, os re-sultados das pesquisas não apresentam ex-pressão significativa de modo a se poder infe-rir que aquelas alterações venham a ser um fator de risco para o desenvolvimento posteri-or de um quadro de demência. Isto porque as ACL não costumam comprometer as ativida-des sócio-ocupacionais e/ou as atividades diá-rias, não mostram significância clínica, não se enquadram nos critérios diagnósticos para síndromes demenciais ou transtornos psiquiá-tricos graves, e mais, somente a memória primária (curto prazo) parece ser a função cognitiva atingida; em termos de tratamento clínico, ainda pouco se pode oferecer para modificar tal condição alterada. Destarte, não se pode afirmar que o declínio das funções cognitivas globais seja típico do envelheci-mento, já que dados de pesquisas efetivadas com idosos normais de idades até avançadas mostram-se inconclusos (Rubin et al., 1998). A depressão é apontada em alguns estudos como causadora de problemas de memória e, em outros, como sendo um dos sintomas pri-mários de quadro demencial do tipo de Al-zheimer. Apesar de ser considerada como o segundo mais comum distúrbio psiquiátrico na velhice (Wetterling e Junghanns, 2004), ainda mostra-se clinicamente inconcluso dis-tinguir déficits cognitivos vistos na depressão com aqueles no demenciamento progressivo (Lamberty e Bieliauskas, 1993; Flicker et al., 1993; Fischer et al., 2002).

Em poucas palavras, se define falhas mnêmicas, popularmente conhecidas como ‘falhas de memória’, como alterações funcio-nais genéricas quando não comprometem a autonomia e a independência de indivíduos idosos.

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A conhecida expressão de alerta dos estudiosos das Neurociências – ‘tudo que não é usado é perdido’ vem a ser produto de inú-meros estudos e pesquisas sobre o funciona-mento cerebral. Citando alguns: Izquièrdo (2004: 46) comenta que “a maior parte dos esquecimentos resulta da falta de uso das si-napses (...) o uso reiterado das sinapses causa o seu crescimento e sua melhora funcional”; além disso, traça uma conexão direta entre memórias e emocionalidade ao dizer que “(…) os maiores reguladores da aquisição, da formação e da evocação das memórias são justamente as emoções e os estados de âni-mo”. Ainda segundo este autor, “a atenção e a concentração são as capacidades mais exigi-das para tal” (2002: 12). Damásio (1996: 117) destaca a interação do organismo com o am-biente, sendo suas relações “mediadas pelo movimento do organismo e pelos aparelhos sensoriais”, e onde “a comunicação dos seto-res de entrada entre si e dos setores de entrada com os de saída não é direta, mas antes medi-ada pela utilização de uma arquitetura com-plexa de agregados de neurônios interligados” (Damásio, 1996: 119). Néri (1995) informa que pesquisas conduzidas por Baltes e colabo-radores, no Instituto Max Planck4, apontam para uma possível compensação de perdas mnêmicas com treino da memória, associando os melhores resultados com boas condições biológicas. Estudos conduzidos com animais sobre novas experiências e mudanças nos pa-drões neuronais corticais mostram que a expe-riência muda preferências neuronais, a partir de novas aprendizagens; um desses estudos é o de Sheinberg e Logothetis (2001).

Apesar dos esforços empreendidos a produção científica, até o momento, exibe re-sultados controversos quanto à possibilidade de falhas mnêmicas poderem servir como marcadores da condição do envelhecimento humano para uma diferenciação entre uma condição benigna de declínio cognitivo e uma pré-morbidez demencial. O que se depreende dos vários estudos e pesquisas efetivados vem reforçar a importância de se pensar o idoso a partir do que ele preserva em si e do que é possível de ser otimizado. Para se ter uma ve-lhice saudável a questão central não é impedir

o declínio funcional biológico, porém dispo-nibilizar instrumentos que auxiliem na preser-vação daquilo que é fundamental à condução da vida (qualidade de) no idoso: capacidade funcional. Manter esta capacidade na velhice significa, por conseguinte, otimizar recursos que retardem a deterioração das habilidades individuais e/ou que expandam potenciais i-néditos, dentro dos parâmetros normais con-siderados aceitáveis para esta população espe-cífica.

Capacidade funcional tem como prin-cipais atributos a autonomia e a independên-cia, considerados como os fatores diferencia-dores no resvaladiço terreno entre a senescên-cia e a senilidade.

Consoante a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2002: 13), autonomia: “(…) is the perceived ability to control, cope with and make personal decisions about how one lives on a day-by-day basis, according to one's own rules and preferences". Independência, por sua vez, “(…) is commonly understood as the ability to perform functions related to daily living – i.e. the capacity of living independ-ently in the community with no and/or little help from others.”5

Estilo de vida como indicador de saúde na velhice

A prática profissional junto à popula-ção idosa costuma defrontar-se com queixas de falhas mnêmicas relatadas pelos próprios e/ou pelos seus familiares, preocupados com o espectro dos quadros demenciais. Descartados os principais fatores precipitantes (hereditá-rios, alterações ou doenças orgânicas, indu-ções por substâncias), e quando não se encon-tra respaldo objetivo para as ditas queixas, Figueiredo (2003) alerta para serem investi-gados os aspectos psicossociais e comu-nicacionais (relação eu-mundo); pois, muitas das vezes, a desarmonia nas emoções, a insu-ficiente estimulação intelectual e o retraimen-to na vida de relação podem ser os propulso-res de falhas mnêmicas, por efeito contraposto e de forma cumulativa. Canongia e colabora-dores (2004) alertam para a morte em vida, caracterizada por um abandono existencial

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auto-imposto, isto é, pelo próprio indivíduo idoso, tendo como pano de fundo as situações vividas ao longo de sua existência, paralisan-tes do seu viver pelo alto custo emocional en-volvido.

Smits e colaboradores (1999) apontam os fatores psicológicos e a capacidade cogni-tiva como fortes preditores do envelhecimento ativo e da longevidade. Para esses autores, os declínios no funcionamento cognitivo são disparados pelo desuso, enfermidades, fatores comportamentais, fatores psicológicos e soci-ais, mais do que pelo envelhecimento em si. Bassuk e colaboradores (1999), face os resul-tados de um estudo longitudinal, concluem que o desengajamento social é um fator de risco para o comprometimento cognitivo em adultos idosos. Herculano-Houzel (2002: 166) aponta a rotina e o cotidiano repetitivo em que estacionam alguns indivíduos como res-ponsáveis por pouco exercício para o cérebro. “É sabido que problemas novos colocam para funcionar muito mais neurônios no córtex do que outros que podem ser resolvidos ‘sem pensar’, no ‘modo automático’”.

Pode-se entender, então, porque estilo de vida e cognição compartilham uma estreita relação: a redução da qualidade de um afeta diretamente a qualidade do outro.

A qualidade de vida na senescência vem sendo uma preocupação hodierna da Ge-rontologia, enfatizando-se a importância da promoção e prevenção de saúde. Pois, apesar de o declínio na capacidade funcional poder estar influenciado tanto por fatores ligados ao estilo de vida do adulto como ao seu ambiente externo, estudos conduzidos em diversos paí-ses, na área da biogerontologia, vêm apontan-do a supremacia do estilo de vida entre os fa-tores de saúde e longevidade, no processo de envelhecimento. A OMS traça, em suas pu-blicações, uma estreita relação entre manu-tenção de comportamentos favoráveis e enve-lhecimento saudável (WHO, 2002). Conforme Silva (2001), a autonomia e a saúde mental são apontadas como contribuintes principais para a satisfação de viver, possibilitando a vivência de uma velhice bem–sucedida. Gui-marães (1999: 100) afirma que "o maior indi-cador do bem-estar na maturidade e na velhi-

ce é o conceito que as pessoas têm de si mes-mas e não a presença de problemas ou indica-dores clínicos". Néri (1995) discrimina a ve-lhice bem sucedida em perspectivas sociocul-turais e individuais; no tocante a esta última, diz que "[...] depende, pois, do delicado equi-líbrio entre as limitações e as potencialidades do indivíduo, o qual lhe possibilitará lidar, com diferentes graus de eficácia, com as per-das inevitáveis do envelhecimento” (Néri, 1995: 34). Freire e Rezende (apud Néri, 2001) entendem que velhice bem sucedida é um conjunto de recursos necessários à pessoa pa-ra enfrentar eventos estressantes, envolvendo habilidades e capacidade para solucionar pro-blemas, bem como a capacidade social. Re-sultados de pesquisas originadas do Seattle Longitudinal Study6 (Schaie, 1993) revelam pertinente relação entre flexibilidade compor-tamental e adaptação na velhice. Destes estu-dos mencionados se depreende que a capaci-dade de adaptação a mudanças está direta-mente associada a altos graus de abertura à experiência.

Bem-estar subjetivo, enquanto uma das vertentes do atual paradigma do ‘Enve-lhecimento Ativo’ (WHO, 2002: 43), é consi-derado pela literatura científica como um dos principais propulsores para a competência a-daptativa7 do indivíduo idoso; isto porque en-volve uma abertura à experiência e uma flexi-bilidade comportamental.

Importante lembrar que mudanças no estilo de vida podem e devem ser estimulados junto ao idoso, porém não é algo que se ad-quire no meio exterior. Estudos gerontológi-cos concluem consensualmente para a impor-tância de o indivíduo idoso ser o promotor de atitudes positivas que o levarão a enfrentar, com qualidade, esta sua etapa evolutiva (WHO, 2002; Silva, 2001; Baltes, 1994). As-sim explica Wood, ao discorrer sobre mudan-ças atitudinais (1994: 271): “Os seres huma-nos, ao mudarem as atitudes internas de suas mentes, podem mudar os aspectos externos de suas vidas”; este autor entende que estar-se receptivo para mudanças advém, essencial-mente, de um processo sentido pelo indiví-duo, de uma receptividade nem sempre cons-cientizada ou pronta - uma prontidão em po-

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tencial. E. Rogers (1991: 166), ao conceituar o objetivo do processo do viver, argumenta:

“A ‘vida plena’ é um processo, não um estado de ser. É uma direção, não um destino. A direção representada pela ‘vida plena’ é aquela que é escolhida pelo organismo total, quando existe li-berdade psicológica para se mover em qualquer direção.” (grifos do autor)

Considerações finais

A linha divisória entre senescência e senilidade pode ser traçada a partir da capaci-dade funcional e da cognição. Por outro lado, ao se focalizar promoção e prevenção de saú-de, o estilo de vida de um indivíduo idoso de-ve ser levado em alta consideração, dentre os outros indicadores de saúde. A revisão da lite-ratura gerontológica efetivada aponta a impor-tância do estilo de vida para a qualidade do viver na velhice.

Deve ser salientado que estilo de vida e bem-estar subjetivo são produtos da consci-entização do indivíduo de suas necessidades, desejos, limitações, potencialidades e, princi-palmente, do grau de abertura individual à aceitação e incorporação de novas experiên-cias; enquanto aspectos passíveis de oscila-ções temporais necessitam de eventuais adap-tações ou ajustamentos.

A adaptação a este novo ciclo vital, para dar conta de transformações plurais que estarão acontecendo ao longo do processo de envelhecimento, traz a necessidade de mu-danças na postura frente à vida e o viver. Uti-lizando-se as habilidades individuais e os po-tenciais ainda disponíveis (às vezes até mes-mo alguns inéditos), em forma de aprendiza-gem, o indivíduo idoso terá condições de res-ponder aos desafios. Referências bibliográficas Baltes, P.B. (1994). Lifespan Psychol-ogy/Central concepts/Living with boundaries. Center of LifeSpan Psychology. Max Planck Institute for Human Development. (s.n.) Reti-

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Notas (1) As chamadas de citação para OMS constarão nas Referências bibliográficas sob a entrada World Health Organizati-on. (2) Tradução livre: "Já é tempo para um novo paradigma, aquele que vê as pessoas idosas como participantes ativos em uma sociedade integrada etariamente, e como contribuintes ativos assim como beneficiários do desenvolvimento". (3) Tradução livre: É uma percepção individual de sua (dele ou dela) posição frente à vida, no contexto cultural e no sistema de valores onde vive, e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e conceitos. É um amplo conceito, incorporando de um modo complexo a saúde física de uma pessoa, o estado psicológico, o nível de independência, as relações sociais, as crenças pessoais e a relação com os aspectos relevantes no meio ambiente. (4) Max Planck Institute for Human Development and Education. Berlim, Alemanha. (5) Tradução livre: “Autonomia é a habilidade percebida para controlar, lidar com e tomar decisões pessoais sobre co-mo se viver no dia-a-dia, de acordo com suas próprias regras e preferências". Independência, por sua vez, "é comumente compreendida como a habilidade para desempenhar funções relacionadas ao viver diário, e.g., a capacidade de viver independentemente na comunidade com nenhuma ou com pequena ajuda dos outros” (6) Estudo longitudinal de Seattle.Trata-se de um estudo longitudinal investigativo de diferenças individuais e padrões diferenciais de mudança para habilidades psicométricas selecionadas, efetivado ao longo de trinta e cinco anos, sobre o desenvolvimento intelectual adulto. (7) Termo utilizado por Freire (Néri e Freire, 2000: 24), que designa "{...} a capacidade generalizada para responder com flexibilidade aos desafios resultantes do corpo, da mente, e do ambiente. {...} Como competência adaptativa, o envelhecimento envolve a preservação e a expansão das reservas para o desenvolvimento pessoal".

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Interação e construção: o sujeito e o conhecimento no construtivismo de Piaget

Interaction and construction: the subject and the knowledge in the constructivism of Piaget

Isabelle de Paiva Sanchis e Miguel Mahfoud

Programa de Pós-graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo O construtivismo de Piaget trata o conhecimento como uma construção, a partir da ação do sujeito, numa interação com o objeto do conhecimento. Este artigo trata da importância da interação, na teoria de Piaget, não apenas para a construção do conhecimento, mas também para a própria constituição e construção do sujeito. São analisados os conceitos construtivistas que se referem aos mecanismos ge-rais de funcionamento da inteligência, através dos quais as noções de interação e de construção podem ser definidas; e aludidos conceitos presentes nas últimas obras de Piaget, com o objetivo de mostrar o fio condutor entre os mecanismos mais gerais e mais específicos da inteligência humana como sendo a ação, dentro de uma interação. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 165-177. Palavras-chave: construtivismo de Piaget; sujeito; interação; conhecimento; cons-trução. Abstract The constructivism of Piaget treats the knowledge as a construction, from the action of the subject, in an interaction with the object of the knowledge. This article deals with the importance of the interac-tion, in the theory of Piaget, not only for the construction of the knowledge, but also for the constitu-tion and construction of the subject. The constructivists concepts related to the general mechanisms of functioning of intelligence are analyzed, through which the notions of interaction and construction can be defined; and concepts of the last workmanships of Piaget are alluded, with the objective to show the permanence of the importance of the action, in a interaction, in his whole work. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 165-177. Key Words: constructivism of Piaget; subject; interaction; knowledge; construction.

Piaget, ao longo de sua obra, discutiu questões colocadas em diversas áreas da ciên-cia. Questões propriamente biológicas, em seus primeiros trabalhos; sociológicas, como em “Estudos Sociológicos” (1965/1973b); as relações entre ciência e filosofia, em “Sabedo-

ria e Ilusões da Filosofia” (1965/1969); as re-lações entre psicologia e pedagogia, em “Psi-cologia e Pedagogia” (1969/1970b); ou ainda questões sobre a história da ciência, em “Psi-cogênese e História da Ciência” (1983/1987a), em parceria com Rolando Gar-

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 16/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Revisão

- I.P. Sanchis é Psicóloga e Mestre em Psicologia Social (UFMG). E-mail para correspondência: [email protected].

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cia. Mas as questões que ocuparam a maior parte de sua produção e que nunca o abando-naram eram questões epistemológicas: o que é o conhecimento, qual sua origem, como se transformam o conhecimento e o sujeito do conhecimento ao longo do tempo? As respos-tas para essas perguntas foram buscadas por ele através do ponto de vista do sujeito que conhece, visto como construtor e ao mesmo tempo resultado desse processo. O fato de Pi-aget ter se preocupado com o que acontece no sujeito suscitou interpretações que tomam sua teoria como uma psicologia cognitiva indivi-dual. Como coloca Lajonquière (1997), há interpretações que, mesmo reconhecendo a importância da interação, reduzem-na a uma interação entre duas realidades previamente separadas: o sujeito e a realidade. Queremos mostrar aqui que a interação está no funda-mento mesmo da construção de um e outro pólo.

Através do método clínico, Piaget buscou conhecer o desenvolvimento das for-mas de interação do sujeito com a realidade (Delval, 2000), e a construção do conheci-mento delas decorrente. A partir de 1936, com “O Nascimento da Inteligência na Criança”, e logo em seguida (1937) com “A Construção do Real”, Piaget procurou pelo início do co-nhecimento, pela passagem do biológico ao cognitivo através da interação mediada pela ação do sujeito dirigida ao objeto; e pela rela-ção que o sujeito e o objeto mantêm, cada um, com a construção do conhecimento, como também um com o outro. É nesse momento que ele coloca explicitamente a ação do sujei-to, em uma interação com o objeto, como fon-te do conhecimento (Parrat-Dayan, 2006), a-inda que só fale explicitamente em sujeito e-pistêmico mais tarde, no fim dos anos 50 (Montangero e Maurice-Naville, 1994/1998). Os conceitos fundamentais tratados nessas obras, que se referem aos mecanismos mais gerais de funcionamento da inteligência (a-daptação, organização, assimilação e acomo-dação), já trazem a idéia de que o sujeito se constitui na interação com o objeto; e que é a própria interação que permite a construção do sujeito, do objeto e do conhecimento. Idéia que permanece até sua última obra. Assim, a

interação entre o sujeito e o mundo tem não apenas um caráter construtivo, mas também constitutivo. Gênese de uma teoria

No construtivismo de Piaget, o pro-cesso de construção do conhecimento confun-de-se com o próprio processo de constituição e de desenvolvimento do sujeito, na sua rela-ção com o mundo, que é físico e ao mesmo tempo simbólico. Esse sujeito se define como tal a partir do momento em que se constitui junto com o objeto do conhecimento, que não é apenas, nem necessariamente, físico. Dessa forma, falar em construção do conhecimento significa falar ao mesmo tempo em constru-ção do sujeito que conhece e do objeto a ser conhecido. Ambos “aparecem como resultado de um processo permanente de construção” (Coll, 1987: 186).

Piaget opôs-se ao mesmo tempo ao apriorismo, que considera o processo de co-nhecimento como fruto de uma estrutura pronta do sujeito; e ao empirismo, que parte do princípio que o conhecimento provém ex-clusivamente do que é externo ao sujeito. No primeiro caso, o sujeito já nasce “pronto”; enquanto que no segundo, o sujeito é dissol-vido, se transforma no próprio objeto, por ad-quirir como conhecimento uma cópia do real. Para ele, a natureza de todo conhecimento consiste na constituição de uma relação entre o sujeito e o objeto:

“(...) o conhecimento repousa em todos os níveis sobre a interação entre o sujei-to e os objetos, (...) mesmo quando o conhecimento toma o sujeito como ob-jeto, há construções de interações entre o sujeito-que-conhece e o sujeito-conhecido.” (Piaget, 1967b: 590, tradu-ção dos autores)1

Isto significa, por um lado, que as es-

truturas cognitivas do sujeito não estão pron-tas ao nascer2, e por outro, que o sujeito co-nhece e interpreta o mundo a partir de estrutu-ras próprias, apesar de não serem estanques. A palavra construtivismo se refere exatamente

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a essa relação entre a estrutura e o processo que permite a transformação da própria estru-tura. E esse processo se funda na interação entre o sujeito e o objeto, o que faz com que as estruturas sejam construídas ao mesmo tempo pelos dois, ou melhor, pela relação es-tabelecida entre eles. A interação é mediada pela ação do sujeito. Ou seja, todo conheci-mento está, em todos os níveis, ligado à ação: “Conhecer não consiste, com efeito, em copi-ar o real, mas em agir sobre ele e transformá-lo” (Piaget, 1967/1973a: 15), dentro de um sistema de interações. Como colocam Becker e Franco (1999: 7): “(...) o conhecimento se constitui na medida em que ele se desfaz - ele não é coisa, mercadoria, mas relação criada pela ação humana”. Isso significa que o co-nhecimento não é cumulativo. O que é estável num determinado momento deve se desestabi-lizar, para que um novo arranjo seja feito. E essa ação se dá através dos mecanismos sub-jacentes aos processos construtivos das estru-turas do sujeito, mais especificamente a assi-milação e a acomodação. Piaget define pela primeira vez com precisão esses conceitos no momento em que procura pelas relações entre o funcionamento dos seres vivos em geral e a inteligência, e quando busca compreender a constituição do sujeito em seu início, num processo que leva à construção de uma estru-tura sensório-motora.

Mesmo que Piaget tenha abandonado os estudos propriamente biológicos, presentes em seus primeiros trabalhos, suas questões iniciais sobre a adaptação dos seres vivos permaneceram. Ao desenvolver sua teoria da epistemologia genética, buscou encontrar as relações entre o biológico, o psicológico e o epistemológico. Sua obra “Biologia e Conhe-cimento” (1967/1973a), publicada original-mente em 1967, tem essa preocupação explí-cita em seu sub-título: “Ensaio sobre as rela-ções entre as regulações orgânicas e os pro-cessos cognoscitivos”. Mas já em “O Nasci-mento da Inteligência na Criança” (1936/1975c), de 1936, 31 anos antes, essas relações são enfatizadas, principalmente na introdução, com o título de “O Problema Bio-lógico da Inteligência”.

Nestas duas obras, Piaget (1967/ 1973a, 1936/1975c) trata detalhadamente do que ele acredita ser a continuidade entre o bi-ológico e o intelectual, a partir de dois tipos distintos de fatores hereditários para o ser humano. No entanto, Piaget não fala de uma continuidade linear, e alerta para os reducio-nismos possíveis decorrentes dessa interpreta-ção:

“Há dois métodos que não devem ser seguidos. (...) o método que conduz a projetar nas estruturas ou fenômenos de ordem inferior os caracteres das estrutu-ras ou fenômenos de ordem superior (inteligência, consciência intencional, etc); (...) ou o método que consiste em suprimir as características originais dos níveis superiores para reduzi-los de uma vez só (...) aos níveis inferiores (redu-ção da compreensão inteligente a asso-ciações condicionadas, etc). Nos dois casos a comparação entre as funções cognoscitivas e as formas elementares de organização torna-se inoperante.” (Piaget, 1967/1973a: 51-52)

O primeiro tipo de fator hereditário é

de ordem estrutural, e se refere ao sistema nervoso e aos órgãos sensoriais, que colocam certos limites ao nosso conhecimento e à nos-sa percepção (e ao mesmo tempo possibilitam a construção do conhecimento propriamente humana). Dessa forma, só conseguimos escu-tar um som, por exemplo, que esteja dentro de uma determinada escala. Esses fatores estru-turais influem na construção de noções fun-damentais (como o espaço) de modo a res-tringir as nossas possibilidades de percepção: “As nossas percepções são tão-somente aquilo que são, entre todas as que seriam concebí-veis” (Piaget, 1936/1975c: 14). Já o segundo tipo diz respeito ao funcionamento da inteli-gência, e não à transmissão de uma ou outra estrutura específica. Esse funcionamento é traduzido pelas duas grandes invariantes fun-cionais: a adaptação e a organização, que, como diz Abib (2003), dizem respeito a uma propensão para a transformação e para a cons-

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trução de um sistema de relações e coordena-ções, respectivamente.

A adaptação e a organização são as ca-racterísticas fundamentais de qualquer ser vi-vo. Mas, se:

“O organismo adapta-se construindo materialmente novas formas para inseri-las nas do universo, [a inteligência] pro-longa tal criação construindo, mental-mente, as estruturas suscetíveis de apli-carem-se às do meio.” (Piaget, 1936/1975c: 15-16)

E Piaget completa:

“Afirmar que a inteligência é um caso particular da adaptação biológica equi-vale, portanto, a supor que ela é, essen-cialmente, uma organização e que sua função consiste em estruturar o universo tal como o organismo estrutura o meio imediato” (Piaget, 1936/1975c: 15, gri-fo nosso).

Assim, se a inteligência estrutura o u-

niverso, ele é o universo humano, que supõe o mundo físico, assim como a cultura, as redes simbólicas, os valores, as relações e seus sig-nificados (Becker, 2003; Ramozzi-Chiarottino, 1997). Além do quê, não há uma equivalência entre as funções gerais de qual-quer ser vivo e as funções especificamente humanas:

“(...) se as funções que caracterizam os mecanismos cognoscitivos fossem exa-tamente as mesmas que as grandes fun-ções do organismo em geral, isto signi-ficaria que o conhecimento não contém nenhuma função própria. Daí decorreria duas conseqüências igualmente absur-das, a saber, ou a inteligência já está presente em todos os níveis da vida or-gânica, ou nada introduz de novo e não contém, assim, nenhuma razão funcio-nal de desenvolvimento.” (Piaget, 1967/1973a: 170)

Os conceitos de inteligência e de in-tencionalidade só fazem sentido se referidos ao ser humano. Pode-se falar em coordenação de esquemas conceituais ou sensório-motores como inteligência, mas “nada disso se aplica ao genoma” (Piaget, 1967/1973a: 53). E quanto ao conceito de intencionalidade3, ele só “tem sentido no caso da consciência, e não tem mais nenhum fora dos atos mentais.” (Pi-aget, 1967/1973a: 54).

A adaptação, na perspectiva de Piaget, não significa um estado, e nem pressupõe um equilíbrio com o ambiente, uma adequação do sujeito com o meio. Pelo contrário, ela é o próprio processo -dialético- que permite uma transformação permanente, tanto de um, como do outro. O processo de adaptação é regido por dois mecanismos, que supõem, ambos, a ação do sujeito (por isso há transformação): a assimilação e a acomodação, que são “os dois pólos de uma interação que se desenvolve en-tre o organismo e o meio, a qual constitui a condição indispensável de todo funcionamen-to biológico e intelectual” (Piaget, 1937/ 1975a: 328). Mas as formas biológicas de as-similação são hereditárias, enquanto que “a-quilo que é característico das assimilações cognitivas é construir sem cessar novos es-quemas em função dos precedentes ou aco-modar os antigos” (Piaget, 1983/1987a: 246).

Adaptação, nesse sentido, confunde-se com a própria inteligência. Melhor dizendo, a inteligência seria a forma de adaptação huma-na, que, enquanto assimilação, “(...) incorpora nos seus quadros todo e qualquer dado da ex-periência” (Piaget, 1936/1975c: 17), conser-vando o ciclo de organização anterior, e coor-denando os dados para que seja possível in-corporá-los a esse ciclo. E enquanto acomo-dação modifica o próprio ciclo já organizado, de modo a responder às exigências do meio. A inteligência, vista dessa perspectiva, se dis-tingue de uma concepção pré-formista, como também daquela que a toma como o resultado de um processo. Ela é o próprio processo. Tanto que os esquemas mesmos de ação “são ‘formas’ da organização vital, mas formas funcionais de estrutura dinâmica e não mate-rial” (Piaget, 1967/1973a: 45). A adaptação não é, então, o equilíbrio progressivo entre o

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sujeito e o meio, mas sim entre os mecanis-mos de assimilação e acomodação, através de um processo em que sujeito e objeto são cons-truídos em parceria. Ela não tem como objeti-vo atingir uma harmonia perfeita entre os su-jeitos e o mundo. Pelo contrário, supõe um desequilíbrio permanente, para que novas es-truturas possam surgir. Significa, em suma, a abertura para as possibilidades de compreen-são e de relacionamento com o mundo.

Apesar das diferenças de natureza que separam a vida orgânica, a inteligência prática ou a inteligência reflexiva, a adaptação em todos os casos é possibilitada pela assimilação dos objetos (que também são de naturezas di-ferentes) pelo sujeito4. E a partir daquilo que é incorporado, o sujeito se reorganiza de modo a se incorporar ao objeto:

“A assimilação nunca pode ser pura, visto que, ao incorporar os novos ele-mentos nos esquemas anteriores, a inte-ligência modifica incessantemente os últimos para ajustá-los aos novos dados. Mas, inversamente, as coisas nunca são conhecidas em si mesmas, porquanto esse trabalho de acomodação só é pos-sível em função do processo inverso de assimilação.” (Piaget, 1945/1975b: 18)

A organização, segunda invariante

funcional, caminha necessariamente junto com a adaptação, como a outra face de um mesmo mecanismo. Nas palavras de Piaget, ela é “(...) o aspecto interno do ciclo do qual a adaptação constitui o aspecto exterior” (Pia-get, 1936/1975c: 18). Ou seja, enquanto a a-daptação diz respeito à relação do sujeito com o que é exterior a ele (experiência), a organi-zação atua na relação do sujeito consigo pró-prio (atividade racional), permitindo novas maneiras de adaptação, que por sua vez per-mitem novas formas de organização. Nenhum esquema ou operação intelectual está desco-nectado de todos os outros. “Todo e qualquer ato de inteligência supõe um sistema de im-plicações mútuas e de significações solidá-rias” (Piaget, 1936/1975c: 19). A partir disso, pode-se ver que conhecimento significa ne-cessariamente relação. Tanto do sujeito com o

mundo, como entre os esquemas e as estrutu-ras próprias do sujeito. A possibilidade de o sujeito se constituir como tal, assim como o objeto, está na existência desta relação, sendo que “(...) a atividade do sujeito é relativa à constituição do objeto” e que há “uma inter-dependência irredutível entre a experiência e a razão” (Piaget, 1936/1975c: 26). A própria conservação, procurada pela auto-organização, diz respeito à transformação:

“Não se trata, porém, da manutenção de estados ou estruturas, mas, isto sim, da preservação do processo, ele mesmo, de auto-organização: o que se preserva é a invenção incessante de novas possibili-dades.” (Abib, 2003: 64)5

Através desse duplo processo de adap-

tação e organização, e consequentemente da assimilação e da acomodação, há uma relação permanente entre estrutura e gênese, pois são esses processos que permitem a construção das estruturas.

As estruturas são construídas ao longo do tempo através de um processo dialético. Uma estrutura tem o caráter de totalidade, de transformação e também de auto-regulação (Piaget, 1970a). No entanto, Piaget reivindica a todo momento a existência de um sujeito como centro organizador das próprias estrutu-ras:

“Se as estruturas existem e comportam mesmo, cada uma, sua auto-regulação, fazer do sujeito um centro de funciona-mento não significa reduzi-lo à posição de simples teatro, como o censurávamos à teoria da Gestalt e não é voltar às es-truturas sem sujeito, com as quais so-nham um certo número de estruturalis-tas atuais? Se elas permanecessem está-ticas, é evidente que seria este o caso. Porém, se por ventura se pusessem a es-tabelecer ligações entre si, de outro mo-do que por harmonia pré-estabelecida entre mônadas fechadas, então o órgão de ligação volta a ser, de direito, o su-jeito.” (Piaget, 1968/1970a: 58)

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Ou seja, o sujeito existe apesar das es-truturas, ou porque “de maneira geral, o ‘ser’ das estruturas é sua estruturação” (Piaget, 1968/1970a: 114). Dessa forma, pode-se pen-sar a relação entre o ser e o tornar-se como um dos pontos mais importantes do construti-vismo piagetiano (Macedo, 1994). O processo dialético é caracterizado pela construção de “interdependências não estabe-lecidas até então entre dois sistemas, [de] in-terdependências (...) entre as partes de um mesmo objeto” (Piaget, 1980/1996a: 199), de superações que levam a uma nova totalidade. Como também pela “intervenção de circulari-dades ou espirais na construção das interde-pendências” e por desembocar em relativiza-ções, já que “um caráter até então isolado” é posto “em relação com outros pelo jogo das interdependências” (Piaget, 1980/1996a: 198-200). Isso significa que há interdependência em todos os níveis: entre a assimilação e a acomodação, entre os esquemas e também entre as estruturas e a totalidade. Ou seja, a principal característica da dialética é a “cons-trução de interdependências entre domínios ou subsistemas concebidos anteriormente co-mo opostos ou sem relação entre si” (Mon-tangero e Maurice-Naville, 1994/1998: 72). Piaget refere-se ao papel da dialética como sendo o de constituir “o aspecto inferencial de toda equilibração” (Piaget, 1980/1996a: 200), sendo que a equilibração não é a manutenção de um estado ou estrutura, mas sim um “pro-cesso construtivo que conduz à formação de estruturas” (Piaget, 1980/1996a: 200). O pro-cesso dialético gera superações (equilibração majorante) que constituem uma mudança qua-litativa em relação ao estado anterior, sem que, com isso, os elementos presentes anteri-ormente deixem de fazer parte da nova orga-nização:

“Enfim, o construtivismo relacional ou dialético, por sua dupla preocupação com a totalização e a formação históri-ca, é naturalmente levado a fazer a sín-tese entre as considerações de estrutura e de gênese.” (Piaget, 1967a: 1238, tra-dução dos autores)6.

Então, a constituição das estruturas não pode “ser dissociada do desenrolar histó-rico da experiência” (Piaget, 1936/1975c: 359). E essa importância da formação históri-ca vem desde os esquemas mais elementares: “Um esquema resume em si o passado e con-siste sempre, portanto, em uma organização ativa da experiência vivida” (Piaget, 1936/1975c: 56). Piaget diz ainda “da impos-sibilidade de divorciar qualquer conduta, seja ela qual for, do contexto histórico de que ela faz parte” (Piaget, 1936/1975c: 56).

O construtivismo apresenta, por de-fender uma construção possibilitada pela inte-ração, um modo de existir relacional, tanto do sujeito quanto do objeto (Abib, 2003). Dessa forma, o objeto nunca é “coisa”, é sempre re-lação, pois ele também depende da interação para se constituir como objeto. Até mesmo características físicas de um objeto, por e-xemplo, o fato de ser sólido, é já um fenôme-no constituído por sua relação com o sujeito. Não há outra maneira de perceber e significar um objeto, a não ser a partir das estruturas e da ação do sujeito. No entanto, isso não signi-fica que o sujeito crie o objeto, independente do próprio objeto, pois ele é, de fato, um dos dois pólos a constituir a relação.

Em “A Construção do Real na Crian-ça”, Piaget trata especificamente desse ponto, fundamental, do papel da relação na constitui-ção do sujeito e do objeto, desde o nascimento de toda criança:

“(...) assimilar significa, desde esse momento [em que se instaura um con-junto de relações elaboradas pela ativi-dade do sujeito com os objetos], com-preender e deduzir, e a assimilação con-funde-se com a relacionação.” (Piaget, 1937/1975a: 7)

E continua:

“(...) o sujeito assimilador entra em re-ciprocidade com as coisas assimiladas: a mão que apanha, a boca que chupa ou o olho que observa, deixam de limitar-se a uma atividade inconsciente de si própria; embora concentrada em si pró-

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pria; passam a ser concebidas pelo su-jeito como coisas entre coisas, manten-do com o universo relações de interde-pendência.” (Piaget, 1937/1975a: 7)

Quando a criança nasce, o universo

para ela não é composto por objetos perma-nentes, presentes em um espaço objetivo; também as noções de tempo ou de causalida-de ainda não se constituíram. Mas desde esse momento ela começa a elaborar esse universo exterior, que vai sendo construído e identifi-cado na medida em que ela identifica e cons-trói a si própria: “(...) essa construção não é o produto de uma dedução a priori, tampouco é devida às tentativas e explorações puramente empíricas” (Piaget, 1937/1975a: 90). E Piaget enfatiza a construção mútua: “(...) ao desco-brir o objeto, a criança organiza seus esque-mas motores e elabora relações operatórias, ao invés de sofrer passivamente uma pressão dos fatos” (Piaget, 1937/1975a: 90). A intera-ção entre o sujeito e o objeto se refere tam-bém aos mecanismos que tornam possível o conhecimento:

“(...) a interação do sujeito e do objeto é tal, dada a interdependência da assimi-lação e da acomodação, que se torna impossível conceber um dos termos sem o outro.” (Piaget, 1936/1975c: 388)

Piaget se refere, neste momento, a

uma organização prática do universo, numa época em que a criança ainda não domina a linguagem, que por sua vez está subordinada ao exercício da função simbólica (Piaget, 1945/1975b). No entanto, o desenvolvimento, em qualquer época da criança ou do adulto, se dá de acordo com esse mesmo processo dialé-tico de construção mútua (Piaget, 1936/1975a, 1945/1975b). A tomada de consciência, por exemplo, não é uma espécie de iluminação de algo que já existia e estava apenas escondido. Ela é uma construção, que tem como funda-mento uma interação mediada pela ação:

“(...) o estudo da tomada de consciência nos conduziu a colocá-la na perspectiva geral da relação circular entre o sujeito

e os objetos, o primeiro não aprendendo a se conhecer senão agindo sobre estes e os segundos só tornando-se conhecíveis em função do progresso das ações exer-cidas por eles.” (Piaget, 1974: 281-282, tradução dos autores)7

A progressiva construção do real (na

medida em que há também construção do su-jeito) implica a definição de dois conceitos de extrema importância para a constituição de uma noção de sujeito na teoria de Piaget: ob-jeto e interação. Pois é precisamente através da interação com o objeto do conhecimento que o sujeito se constitui. Como já dito, o ob-jeto não pode ser considerado “coisa”, mas deve ser pensado como “um fragmento de cultura a ser reconstruído” (Lajonquière, 1997, sem página), pois ele é um “objeto situ-ado ou intelectualizado por outras inteligên-cias, mais ainda, ele é, por sua vez, um frag-mento da interação sujeito-objeto” (Lajonquière, 1997, sem página). Além do que, ele se torna objeto apenas quando o su-jeito o constitui como significante (Piaget, 1937/1975a).

Se é através de sua relação com o ob-jeto que o sujeito se transforma, o objeto é, então, “a mediação entre o sujeito atual e o sujeito que se constrói a partir dessa interação com o objeto” (Franco, 1999: 16). Lembran-do-se também da constituição do sujeito para-lela à constituição do real, não se deve pensar a interação como sendo simplesmente a pre-sença simultânea de um sujeito e de um obje-to. Piaget define o tipo de interação na teoria construtivista, contrapondo a outras visões que ele buscava combater:

“(...) de fato em todas as epistemologias clássicas, o conhecimento é interpretado sob o modo da contemplação ou do pensamento, e o problema dos papéis do objeto e do sujeito reduz-se então a de-terminar se esse pensamento ‘especula-tivo’ (no sentido estrito) se limita a a-preender, sob a forma de um tipo de có-pia, uma realidade exterior e ele, ou se ele retira em parte esse conhecimento dele próprio, enquanto fonte de estrutu-

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rações. A posição construtivista ou dia-lética consiste, ao contrário, em sua própria raiz, a considerar o conhecimen-to como ligado a uma ação que modifi-ca o objeto e que, por conseguinte, não o atinge senão por intermédio das trans-formações introduzidas por essa ação. Nesse caso o sujeito não está mais fren-te ao objeto, e num outro plano, olhan-do-o tal como ele é ou através de lentes estruturantes: ele mergulha no objeto por seu organismo, necessário para a ação, e reage sobre o objeto enrique-cendo-o com as contribuições da ação; quer dizer que o sujeito e o objeto estão doravante situados exatamente no mes-mo plano, ou melhor, sobre os mesmos planos sucessivos ao longo das mudan-ças de escalas espaciais e do desenrolar genético e histórico. Enfim, em princí-pio, não há mais fronteira entre o sujeito e o objeto (...).” (Piaget, 1967a: 1244, tradução dos autores, grifo nosso)8

Vê-se, então, que o sujeito e o objeto

do conhecimento não são construídos pela interação entre duas realidades previamente constituídas, estanques e separadas. Mais do que isso, a interação através da ação (assimi-lação e acomodação) permite que tanto um quanto o outro passem a ser conhecidos, não simplesmente por suas próprias característi-cas, mas sim pelas características da relação estabelecida entre elas:

“A inteligência não principia, pois, pelo conhecimento do eu nem pelo das coi-sas como tais, mas pelo da sua intera-ção; e é orientando-se simultaneamente para os dois pólos dessa interação que a inteligência organiza o mundo, organi-zando a si própria.” (Piaget, 1937/1975a: 330, grifo nosso)

Pode-se definir a constituição do sujei-

to se dando precisamente pela interação. Não porque essa interação permita que o sujeito assimile o objeto; o mais importante é que ela possibilita a assimilação da própria interação,

o que contém, simultaneamente, um e outro. O sujeito do conhecimento

“É subjectum, isto é, emerge das pro-fundezas de um organismo, mas não se reduz a esse organismo, pois interage com a cultura abstraindo - não só dessa cultura, mas, sobretudo do resultado dessa interação - os mecanismos de seu desenvolvimento.” (Becker, 2003: 26)

A partir das interações, o conhecimen-

to se direciona simultaneamente para os dois pólos. Isto é, há um duplo processo de interio-rização e exteriorização, na direção de uma compreensão do sujeito e do objeto, respecti-vamente. O sujeito se constrói, então, nesta dupla relação de construção do conhecimento do outro e de si, na interação mesma com o outro. Pode-se pensar num diálogo constante do sujeito com o mundo e com sua própria subjetividade, que se transforma por causa mesmo desse diálogo.

Daí a importância do conceito de ação na teoria piagetiana, pois é ela que faz a me-diação na interação do sujeito com o mundo, é ela que permite haver a assimilação e a aco-modação, inclusive a assimilação da própria interação. Mesmo a percepção só tem sentido se ligada às ações (Piaget, 1967/1973a: 16):

“Perceber uma casa, dizia o neurologis-ta v. Weiszäcker, não é ver um objeto que entra pelos olhos, mas, ao contrário, assimilar um objeto no qual se vai en-trar”.

Essa idéia é compartilhada por Piaget,

que coloca a ação como a explicação para o papel da assimilação, que por sua vez “expri-me o fato fundamental de que todo o conhe-cimento está ligado a uma ação (...)” (Piaget, 1967/1973a: 15). Uma ação que é na verdade interação, pois não se dá no vazio, mas se di-reciona para o objeto. Da mesma forma que um objeto não pode ser entendido como um objeto apenas físico e sim como qualquer ob-jeto do conhecimento para o sujeito, a ação também deve ser considerada a ação humana em todos os seus aspectos: “Ação física, ação

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simbólica, ação social, ação cultural, ação lin-güística, ação concreta, ação formal, ação de primeiro grau, ação de segundo grau...” (Bec-ker, 2003: 53). A operação é uma ação, diz Piaget, como também a reflexão (Piaget, 1974/1996b, 1977/1995). Uma ação que é ao mesmo tempo, e permanentemente, estrutura-da e estruturante. Permanência e prospectiva de uma teoria

Piaget, através desses conceitos, dis-cutia as relações entre a possibilidade de co-nhecimento e o sujeito conhecedor. Um sujei-to epistêmico, nas suas palavras, abstrato e universal, presente em todos os sujeitos reais, que se constitui na sua relação com o mundo. Essa relação não é uma relação qualquer, mas uma interação com o(s) objeto(s) do conhe-cimento mediada pela ação do próprio sujeito, que dessa forma assimila – não o objeto puro, mas o resultado da interação – e acomoda-se, construindo, assim, novas estruturas de com-preensão da realidade. Através de um proces-so dialético, as estruturas são reconstruídas, assim como também as estruturas do mundo na medida em que este adquire significado para o sujeito. Isto é, para falar em constitui-ção do sujeito, faz-se necessário falar em constituição do objeto e construção do conhe-cimento, pois é exatamente nesse processo – de uma determinada relação de um sujeito com um objeto, tendo como resultado o co-nhecimento - que surge, se constitui e se cons-trói qualquer sujeito. Os mecanismos funda-mentais de adaptação (ou seja, assimilação e acomodação) e de organização traduzem, res-pectivamente, o diálogo do sujeito com o mundo externo e consigo próprio, que é tam-bém o duplo processo resultante da interação. Estrutura e gênese não podem ser dissociadas, já que não existem estruturas inatas/prontas. Elas se constroem, na medida mesmo em que há construção de conhecimento. E têm, no sujeito, seu centro organizador.

Piaget passa a se preocupar mais, nas últimas décadas de sua produção, com a ex-plicação para o aparecimento de conhecimen-tos realmente novos, não sendo “nem prede-terminados no espírito do sujeito nem retira-

dos tais quais do meio” (Montangero e Mau-rice-Naville, 1994/1998: 68). Assim, num primeiro momento a construção das estruturas foi explicada apenas em termos de um fun-cionamento geral dos seres vivos (mesmo que analisado em termos de um sujeito e um mundo humano, com suas características pró-prias): a assimilação e acomodação. Neste momento, passam a ser enfatizados modos de construção do conhecimento específicos do ser humano. Mas os novos conceitos introdu-zidos nesta época aperfeiçoam, detalham e enriquecem os conceitos mais gerais, sem, no entanto, contradizê-los. Assim, por exemplo, Piaget (1974) explica a tomada de consciência como uma reconstrução, necessária, na passa-gem entre o inconsciente e a consciência, não podendo ser reduzida a um simples processo de iluminação. E insere este conceito também em suas conclusões mais gerais de que “o co-nhecimento procede a partir, não do sujeito, nem do objeto, mas da interação entre os dois” (Piaget, 1974: 263)9. Novamente, pro-cura definir a posição construtivista, desta vez apoiando-se na formação dos “possíveis”:

“Para justificar nossa epistemologia construtivista contra o inatismo ou o empirismo, não é suficiente mostrar que todo conhecimento novo resulta de re-gulações, de uma equilibração portanto, pois sempre se poderá supor que mesmo o mecanismo regulador é hereditário (...), ou ainda que resulta de aprendiza-gens mais ou menos complexas. Procu-ramos, por isso, abordar o problema da produção de novidades de outro modo, centrando as questões na formação dos ‘possíveis’.” (Piaget, 1981/1985: 7)

Pois o possível “não é algo observá-

vel, mas o produto de uma construção do su-jeito” (Piaget, 1981/1985: 7), que interage com o objeto, mas que o insere em interpreta-ções devidas à sua própria atividade sobre ele.

A obra “Vers Une Logique des Signi-fications” (Piaget e Garcia, 1987b)10 traz a idéia de que existe uma lógica das significa-ções (baseada na ação) que precede a lógica dos enunciados. Isso significa que, uma ação

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não sendo nem verdadeira nem falsa, as im-plicações entre as ações são suscetíveis de verdade ou falsidade. A lógica das significa-ções estaria fundada, então, sobre as implica-ções entre as ações, ou entre as significações, pois toda ação ou operação é carregada de significações para o sujeito. Talvez este con-ceito traga uma relação mais próxima entre forma e conteúdo. Mas pode-se ver a idéia de significação do objeto pelo sujeito já contida no conceito de assimilação, pois todo conhe-cimento supõe uma assimilação, que “consiste em conferir significações (...) ao que é perce-bido ou concebido” (Piaget, 1967/1973a: 17). E a significação é ligada à ação:

“A importância da noção de assimilação é dupla. De um lado implica, como aca-bamos de ver, a noção de significação, o que é essencial, pois todo conhecimento refere-se a significações (...). Por outro lado, exprime o fato fundamental de que todo o conhecimento está ligado a uma ação (...).” (Piaget, 1967/1973a: 14-15)

A assimilação, ao permitir a significa-

ção, constrói novos conhecimentos, mas está também em no fundamento mesmo de qual-quer conhecimento:

“Julgar (...) é assimilar, isto é, incorpo-rar um novo dado a um esquema anteri-or, num sistema de implicações já ela-borado. Portanto, a assimilação racional supõe sempre, é verdade, uma organiza-ção prévia. Mas donde vem essa organi-zação? Da própria assimilação, pois to-do conceito e toda relação exigem um julgamento para se constituírem.” (Pia-get, 1936/1975c: 382)

Piaget procurou encontrar, por um la-

do, as estruturas cognitivas do sujeito e, por outro, o funcionamento da inteligência que permite a construção do conhecimento, e das próprias estruturas. Isto é, um sujeito univer-sal que se direciona para a aquisição de uma lógica capaz de interpretar o mundo, de forma cada vez mais abrangente. O olhar de Piaget voltado para os aspectos lógicos do conheci-

mento gerou diversas críticas, como por e-xemplo a de Boesch11, que aponta para uma insuficiência na teoria de Piaget, justamente por se concentrar nesses aspectos lógicos:

“Podemos, como Piaget demonstrou, estudar a construção de conceitos lógi-cos amplamente sem levar em conta as ações que levaram a eles. Entretanto, se quisermos olhar para resultados indivi-dualmente ou culturalmente diferentes do processo de construção, não pode-mos divorciá-los das experiências nas quais estão baseados. A ação se torna assim um conceito de muito maior im-portância do que Piaget alguma vez te-nha a ela atribuído.” (citado por Simão, 2002: 116)

No entanto, Piaget mostrou a impor-

tância da ação precisamente (ou até mesmo) para a construção de conceitos lógicos. Não apenas para a construção do conhecimento, mas para a própria constituição do sujeito:

“O intermediário entre os objetos e os acontecimentos, por um lado, e os ins-trumentos cognitivos, por outro lado, é de facto, como foi possível verificar por diversas vezes, a acção. O modo como a acção participa no processo de conhe-cimento, na perspectiva própria da epis-temologia genética, dá a esta posição epistemológica um sentido preciso, que, ao mesmo tempo que converge para uma linha de pensamento já clássica em filosofia dialética, confere-lhe entretan-to uma identidade em si própria, na me-dida em que a prática é analisada nas suas acções constituintes que aparecem então como factores essenciais no ponto de partida do processo cognoscente.” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 228)

A ação, portanto, é fundamental, mas

também seu contexto, já que todo esquema é “uma organização ativa da experiência vivi-da” (Piaget, 1936/1975c: 56), e que qualquer ação de um sujeito “é sempre coordenada por outros porque não existem acções isoladas,

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[sendo que] os seus significados são sempre solidários” (Piaget, 1983/1987a: 247). Na a-ção está também implicada a significação, pois o objeto é conhecido pelo sentido atribu-ído a ele. O sujeito adquire conhecimento dos objetos em contextos determinados, “com o tipo de significados sociais que lhe são atribu-ídos” (Piaget, 1983/1987a: 244). Afinal, como diz o próprio Piaget: “o que é a criança em si mesma se não existem crianças a não ser em relação a certos meios coletivos bem determi-nados?” (Piaget, 1965/1973b: 26). A ação não é realizada em função de impulsos internos; pelo contrário:

“na experiência da criança, as situações com as quais ela se depara são engen-dradas pelo seu ambiente social envol-vente, as coisas aparecem em contextos que lhe conferem significados particula-res.” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 228)

Em conclusão, o mais fundamental é

que essa ação se dá numa interação que não permite apenas a construção do conhecimen-to, mas que é constitutiva do próprio sujeito: as “relações entre o sujeito e seu meio consis-tem numa interação radical” (Piaget, 1936/1975c: 386). O sujeito aparece, assim, “imerso num sistema de relações” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 244), que se dá com os objetos e com os outros sujeitos. Mas os pró-prios objetos não são “puros”, não são “defi-nidos por seus parâmetros físicos” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 228). Eles são já constru-ídos em função de outras interações, carrega-dos de significações construídas por outros sujeitos. Pode-se pensar então em uma inter-subjetividade constituinte, a partir da qual o sujeito se constrói, ao mesmo tempo que o conhecimento, de si, do outro e do mundo. Piaget se aproxima do sujeito ao pensar na possibilidade de conhecimento, dada pela in-teração constituinte entre o sujeito e o mundo (significado já por outros sujeitos); e pelo re-conhecimento de uma relação permanente en-tre o presente (do qual o passado faz parte) e o futuro, entre estrutura e gênese, que é o lu-gar, de fato, da construção.

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Notas (1) “(...) la connaissance repose à tous les niveaux sur des interactions entre le sujet et les objets, (...) même quand la connaissance prend le sujet comme objet, il y a construction d’interactions entre le sujet-qui-connaît et le sujet-connu.” (2) Isto não quer dizer que não haja, nesse momento, nenhuma estruturação. Mas os esquemas reflexos com os quais a criança nasce irão se transformar em esquemas de ação prática ou mental, que por sua vez se coordenarão em formas de estruturas de fato, cada vez mais complexas, que permitirão outras formas de relacionamento com o mundo. (3) “A intencionalidade define-se pela consciência do desejo, ou da direção do ato” (Piaget, 1975c, p.146), ou então pela “direção global do ato” (Piaget, 1974). Segundo Flavell (1975), Piaget considera a intencionalidade como uma das características distintivas da inteligência humana. (4) Piaget distingue a assimilação presente no processo de construção do conhecimento da assimilação físico-química: “a assimilação é apenas uma noção funcional e não estrutural. (...) é, pois, evidente que a assimilação cognoscitiva deve representar formas completamente diferentes(...)” (Piaget, 1973a, p71). (5) Piaget enfatiza esse ponto tanto em “O Nascimento da Inteligência na Criança”, como em “O Estruturalismo”. (6) “Enfin, le constructivisme relationnel ou dialectique par sa double préoccupation de la totalisation et de la formation historique est naturellement conduit à faire la synthèse entre les considérations de structure et de genèse.”

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(7) “(...) l’étude de la prise de conscience nous a conduit ainsi à la replacer dans la perspective générale de la relation circulaire entre le sujet et les objets, le premier n’apprenant à se connaître qu’en agissant sur ceux-ci et les seconds ne devenant connaissables qu’en fonction du progrès des actions exercées par eux”. (8) “(...) en fait dans toutes les épistémologies classiques, la connaissance est interpreté sur le mode de la contemplation ou de la pensée, et le problème des rôles de l’objet ou du sujet revient alors sans plus à déterminer si cette pensée ‘spéculative’ (au sens propre) se borne à appréhender, sous la forme d’une sorte de copie, une réalité estérieur à elle, ou si elle tire en partie cette connaissance de son propre fonds, en tant que source de structurations. La position constructiviste ou dialetique consiste au contraire, en son principe même, à considérer la connaissance comme liée à une action qui modifie l’objet et qui ne l’atteint donc qu’à travers les transformations introduites par cette action. Em ce cas le sujet n’est plus face à l’objet, _et sur un autre plan_, à le regarder tel qu’il est ou à travers des lunettes structurantes: il plonge dans l’objet par son organisme, nécessaire à l’action, et réagit sur l’objet en l’enrichissant des apports de l’action; c’est à dire que le sujet et l’objet sont désormais situés exactement sur le même plan, ou plutôt sur les mêmes plans successifs au fur et à mesure des changements d’échelles spatiales et des déroulements génétiques et historiques. Em bref, il n’y a plus en droit de frontière entre le sujet et l’objet (...)”. (9) “la connaissance procède, non pas du sujet, ni de l’objet, mais de l’interaction entre les deux”. (10) Piaget faleceu antes de poder terminá-la. (11) Boesch, E.E. (1991). Symbolyc Action Theory and Cultural Psychology. Berlin, Heidelberg: Apringer, Verlab.

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O que é ser humano?

What is to be a human being?

Luiz Antonio Botelho Andrade , a, Edson Pereira da Silvab e Eduardo Passosc

aDepartamento de Imunobiologia, Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil; bLaboratório de Genética Marinha, Departamento de Biologia Mari-nha, UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil; cDepartamento de Psicologia, ICHF, UFF, Niterói, Rio de

Janeiro, Brasil

Resumo

Este artigo tenta mostrar que o humano do ser humano é mais o resultado de um devir do que o apo-geu de um acabamento biológico capturado e engessado por uma concepção tipológica de espécie. A partir do processo evolutivo e de algumas etapas da evolução humana, ressalta-se a importância da so-ciabilidade para o surgimento da linguagem articulada e desta para a explosão da inventividade huma-na, o surgimento da cultura e a emergência da autoconsciência. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 178-191. Palavras-chave: australopithecus; autoconsciência; cultura; evolução; linguagem; ser humano. Abstract

This essay tries to demonstrate that the adjective “human” attached to the term “human being” is not given as the result or the end of the biological process; it can not be understood under a typological concept of species. Using the evolutionary process and especially some of its steps, the importance of the sociability to the development of language which explains the explosion of human creativity, the appearance of the culture and the emergence of the self-consciousness is underlined. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 178-191. Key Words: australopithecus, self-consciousness, culture, evolution, language, hu-

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 24/09/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Ensaio

- L.A.B. Andrade é Doutor em Imunologia (Instituto Pasteur, França). Atua como Professor Adjunto do Departa-mento de Imunobiologia, Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da Faculdade de Educa-ção da UFF. O professor Andrade se dedica ao estudo e desenvolvimento das idéias de Humberto Maturana e Francis-co Varela à educação. Endereço para correspondência: Departamento de Imunobioloiga, Instituto de Biologia, Outeiro São João Batista, s/n, Campus do Valonguinho, Niterói, RJ, Brasil. E-mail para correspondência:[email protected]. E.P. Silva é Doutor em Genética (Universidade de Wales-Swansea). Atua como Professor Adjunto do Instituto de Biologia e Chefe do Laboratório de Genética Marinha (UFF), onde trabalha com genética de populações utilizando métodos moleculares. O professor Edson é responsável por artigos científicos nas áreas de Ge-nética e Evolução, bem como sobre a epistemologia e aprendizagem nestas áreas. Endereço para correspondência: Laboratório de Genética Marinha, Instituto de Biologia, UFF, Niterói, RJ, Brasil, 24.001-970. E-mail para correspon-dência: [email protected]. E. Passos é Doutor em Psicologia (Universidade do Rio de Janeiro). Professor Associ-ado I do Departamento de Psicologia (UFF). Atua como Professor na Graduação e Pós-graduação (Departamento de Psicologia, UFF). Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia, Instituto de Ciências Humanas e Filo-sofia, Campus do Gragoatá, s/n, bloco O, segundo andar, UFF, Niterói, RJ. E-mail para correspondência: [email protected].

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man being. 1. Introdução

O principal objetivo deste ensaio é

ressaltar o devir e o inacabamento biológico e histórico do ser humano usando, para tanto, o ferramental teórico da Biologia do Conhecer (Maturana e Varela, 1990, 1997; Maturana, 1997). Assim, para dar início à nossa emprei-tada intelectual, analisamos a questão coloca-da no título desse artigo a partir de duas eta-pas importantes do processo evolutivo huma-no, a saber: (a) do andar bípede ao gênero Homo e (b) do gênero Homo ao Homo sapi-ens, para alcançar a questão que nos interessa discutir: (c) do Homo sapiens ao vir a ser hu-mano. Ou seja, o que é ser humano?

Na primeira parte, chamaremos aten-ção para o bipedismo e para algumas espécies de australopitecos situadas em pontos chave do processo de hominização. Na segunda par-te, destacaremos o surgimento dos artefatos de pedra lascada e as características anatômi-cas e comportamentais de algumas espécies do gênero Homo, chamando atenção para a dispersão desse gênero para fora da África, berço da humanidade. Na terceira e última parte, avançaremos a idéia e discutiremos a questão de que o humano do ser humano é mais o resultado de um devir do que o apogeu de um acabamento biológico capturado e en-gessado por uma concepção tipológica de es-pécie. Assim, ao invés de darmos ênfase à corporalidade do Homo sapiens, ressaltare-mos o devir, ou seja, o vir a ser humano. 2. Do andar bípede ao gênero Homo

Nossa aventura poderia começar com a descoberta de uma trilha de vinte e sete me-tros de comprimento com pegadas deixadas por dois indivíduos que caminharam juntos numa superfície mole de cinzas vulcânicas que endureceu por volta de 3,6 milhões de anos atrás. Haja vista as marcas feitas pelo calcanhar, pelo arco das plantas dos pés e pelo dedão não-opositor, as pegadas de outrora se assemelham ao andar bípede humano, de ago-ra (Leakey, 1995). Pela marca temporal e pe-

los registros fósseis encontrados, tudo indica que essas pegadas pertenceram a dois indiví-duos da espécie Australopithecus afarensis (Johanson e Edey, 1981).

A partir de várias evidências fósseis, os especialistas deduziram que o A. afarensis possuía um cérebro pequeno, se comparado ao do homem moderno, mas de igual tamanho ao cérebro de um macaco. Sua estatura corpo-ral era, também, pequena, sendo os machos maiores e mais pesados do que as fêmeas. Os dentes caninos dos machos eram significati-vamente maiores do que os das fêmeas, acen-tuando o dimorfismo sexual. Como caracterís-tica comum da espécie, as mandíbulas do A. afarensis se projetavam mais para frente (prognatismo) do que em qualquer outra es-pécie pertencente à família hominídea. Com relação às suas proporções corporais - inter-mediárias entre o macaco e o homem - os bra-ços eram muito longos em relação às pernas e o antebraço longo e forte. Essas característi-cas, combinadas com a curvatura dos ossos dos dedos das mãos e dos pés (falanges), permitiam aos membros dessa espécie uma grande agilidade para subir em árvores, à se-melhança dos macacos. Pela análise de todos os fósseis encontrados até agora, datados de 3,8 e 2,9 milhões de anos atrás, o A. afarensis atravessou um período de mais ou menos um milhão de anos, sem muita mudança (Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Ed-gar, 2005).

Embora alguns estudos demonstrem que a marca temporal de 3,6 milhões de anos para o bipedismo deva ser recuada no tempo evolutivo, nenhuma demonstração do andar bípede é mais convincente do que os registros fósseis deixados pelo A. afarensis (Klein e Edgar, 2005). O leitor poderá indagar agora: muito bem, macacos bípedes, mas por que o bipedismo é tão importante?

Várias hipóteses têm sido propostas para responder a pergunta acima formulada: (a) adaptação às savanas, (b) vigília contra a ação de predadores, (c) aumento da eficiência locomotora, (d) liberação das mãos para o transporte de alimentos ou da prole (McHenry

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e Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005). Embo-ra todas estas hipóteses sejam plausíveis, elas se apóiam em um argumento muito questio-nável em biologia – o finalismo. Por tanto, na ausência de uma boa explicação, nos resta um consolo, ou melhor, um consenso: o bipedis-mo constituiu uma novidade evolutiva impor-tante uma vez que a linhagem de macacos bí-pedes diversificou e proliferou. Além disso, depois de iniciado o bipedismo, o processo de hominização “sempre caminhou por dois pés”.

Embora ainda exista um debate sobre o provável ancestral do gênero Homo (Asfaw et al., 1999), algumas simplificações podem ser feitas sem comprometer os objetivos desse ensaio – ênfase no processo de humanização. Nesse sentido, é importante ressaltar a desco-berta de fragmentos de um hominídeo desco-berto em Afar, na Etiópia, em 1999. Esse ma-terial foi datado em 2,5 milhões de anos e, após análise, classificado como uma “nova” espécie - Australopithecus garhi (Asfaw et al., 1999). Como afirmam vários autores, essa espécie se encontra no lugar certo e na locali-zação temporal correta para ser considerada como um possível ancestral do gênero Homo.

O primeiro registro fóssil do gênero Homo – um pedaço de crânio - foi encontrado por Jonathan Leakey na garganta Olduvai, Tanzânia, África (Leakey, 1964). A pouca espessura relativa do crânio indicou que este indivíduo tinha uma constituição ligeiramente mais leve do que qualquer uma das espécies conhecidas de australopitecíneos. Ele tinha dentes molares menores e, o que é mais signi-ficativo, seu cérebro era quase 50% maior (650 cm3) do que o cérebro de qualquer outro australopiteco já encontrado (350 cm3). Ele recebeu o nome de Homo habilis - homem habilidoso - pela grande correlação temporal e estratigráfica existente entre os registros fós-seis dessa espécie e os primeiros artefatos de pedra lascada (Leakey, 1995; Klein e Edgar, 2005).

3. Do gênero Homo ao Homo sapiens

Em torno de dois milhões e quinhentos

mil anos atrás uma criatura bípede e franzina

descobriu que se batesse uma pedra contra a outra, de maneira adequada, produziria lascas finas capazes de penetrar e cortar o couro de um animal morto, podendo, assim, descarná-lo completamente. Essa descoberta aumentou consideravelmente as chances de sobrevivên-cia desta espécie e da linhagem que a sucedeu (McHenry e Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005).

Esta tecnologia primitiva de produção destes artefatos é denominada de indústria olduvaiana, em referência ao importante sítio arqueológico conhecido como a “Garganta de Olduvai”, na Tanzânia, onde muito destes ar-tefatos foram encontrados (Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Edgar, 2005).

Se por um lado é certo que o Homo habilis produziu e utilizou artefatos de pedra lascada, não é evidente, por outro, que esse comportamento possa ser chamado de cultura, no sentido que discutiremos no próximo tópi-co. Um forte argumento para não incluir a produção destes primeiros artefatos de pedra no legado cultural da humanidade é o fato de-les terem sido produzidos, por mais de um milhão de anos, sem nenhuma variação.

Voltando aos registros fósseis do gê-nero Homo, é importante ressaltar a descober-ta do esqueleto de uma criança - o menino de Turkana - que media aproximadamente 1,62 metros quando morreu, mas que poderia atin-gir cerca de 1,80 metros, se tivesse sobrevivi-do até a idade adulta. Esse fóssil foi classifi-cado como Homo ergaster (McHenry e Cof-fing, 2000, Klein e Edgar, 2005). Os mem-bros dessa espécie apresentavam as mesmas proporções corporais mostradas pelos seres humanos atuais no que tange ao tamanho e proporções entre braços e pernas. Com rela-ção ao volume do cérebro, estimado em 880 cm3, ele era maior do que o do H. habilis (650 cm3) e menor do que o do homem moderno (1.350 cm3), em valores absolutos.

A descoberta do fóssil do menino de Turkana teve um grande valor para a paleon-tologia e antropologia. Assim como Lucy (fóssil de A. afarensis) não deixou dúvida quanto ao fato de pertencer à categoria dos macacos bípedes, o menino de Turkana, i-

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gualmente, não deixou dúvida quanto ao fato de pertencer à linhagem que deu origem aos humanos. Algumas de suas características e-videnciam isto: testa chata e recuada; nariz projetado para frente, com narinas orientadas para baixo. Nesse ponto, diferenciava-se do H. habilis, que possuía narinas embutidas no rosto, semelhantes às dos macacos. Apesar das mandíbulas serem muito projetadas para frente e os dentes de mastigação significati-vamente maiores do que os nossos, as feições do menino de Turkana forneceram uma de-monstração inequívoca a respeito da estrutura corporal de nossos antepassados (McHenry e Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005).

Uma característica marcante do H. er-gaster - a diminuição do comprimento dos braços, em relação às pernas - assinala o a-bandono final de qualquer utilização tipica-mente símia das árvores, seja para alimento ou para refúgio. É importante ressaltar que a exclusividade da vida no solo significou uma ênfase maior no andar bípede, o que poderia explicar, no decorrer do tempo evolutivo, o estreitamento dos quadris. Nas fêmeas, esse estreitamento acarretou, também, o estreita-mento do canal vaginal, a diminuição do tem-po de desenvolvimento intra-uterino, o nas-cimento precoce e, por conseguinte, a expan-são da neotênia e uma maior dependência do recém nascido aos seus progenitores (Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Ed-gar, 2005). Estas duas últimas conseqüências serão ressaltadas quando discutirmos o pro-cesso de humanização.

Alguns autores enfatizam a existência de uma relação inversa entre o dimorfismo sexual e o comportamento cooperativo. Essa idéia é fortalecida pela observação de que, em algumas espécies de símios, quando os ma-chos são muito maiores do que as fêmeas, eles tendem a competir intensamente entre si pelas fêmeas sexualmente receptivas, mas não esta-belecem com as mesmas o que os especialis-tas denominam de relações cooperativas. As-sim, é sugestivo pensar que, pari passo à re-dução do dimorfismo sexual em nossa linha-gem, intensificou-se o comportamento coope-rativo entre macho e fêmea. Se imaginarmos que a intensificação do comportamento coo-

perativo entre macho e fêmea tenha aumenta-do também a atenção e o cuidado dispensado à prole, teremos assim o embrião do núcleo familiar, fundamental ao processo de humani-zação, como discutiremos mais adiante.

Acredita-se que o H. ergaster – que significa homem trabalhador – tenha sido o ancestral comum do H. erectus e do H. hei-delbergensis (McHenry e Coffing, 2000; Kle-in e Edgar, 2005). As características do Homo ergaster e do Homo erectus são tão similares entre si que alguns autores preferem a deno-minação de “complexo ergater/erectus”. Ou-tros utilizam de critérios temporais e geográ-ficos para fazerem a distinção entre essas es-pécies e, assim, consideram a emergência do Homo ergarter como anterior à do Homo e-rectus e restringem, ao primeiro, o espaço ge-ográfico que constitui o continente africano.

É importante ressaltar que os indiví-duos das espécies Homo ergaster, Homo erec-tus e Homo heidelberguensis possuíam uma anatomia, uma fisiologia e uma tecnologia (corpo robusto, inclusão da caça na dieta, produção de artefatos de pedra e uso do fogo) que lhes permitiam andar por longas distân-cias e, portanto, migrar e habitar territórios nunca dantes ocupados. Assim, por exemplo, o Homo erectus chegou à China e à Indonésia e, por algum desvio para o norte e/ou oeste, chegou, também, à Europa.

Com relação ao domínio tecnológico demonstrado pelo complexo ergaster/erectus, há de se remarcar um novo tipo de artefato de pedra, mais sofisticado, o machado de mão, em forma de lágrima. Há registros deste tipo de utensílio em vários sítios arqueológicos na África, datados de cerca de 1,4 milhões de anos. Os arqueólogos chamam a produção deste novo tipo de utensílio de indústria a-cheulense, em alusão ao sítio arqueológico de Saint Acheul, localizado na França, onde este mesmo tipo de produção industrial foi encon-trado, em uma versão temporalmente posteri-or. Embora a forma do machado de mão já exija um modelo mental para produzi-lo, não consideramos que esse seja ainda o ponto de inflexão para o desencadeamento da explosão da inventividade humana e o surgimento da cultura. Há de se destacar, no entanto, que

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independente da discussão acadêmica sobre a inclusão ou não da indústria acheulense no conceito de cultura, a confecção dos macha-dos de mão e o fogo aumentaram ainda mais a chance de sobrevivência da linhagem que dominou essas técnicas, seja pela utilização das mesmas como proteção, seja pelo enri-quecimento alimentar, com maior aporte pro-téico à dieta, derivado das atividades de caça animal e preparação do alimento.

Voltando ao processo evolutivo da li-nhagem humana, destacaremos agora o sur-gimento do Homo heidelbergensis (600 a 500 mil anos atrás). Essa espécie parece ter evolu-ído, abruptamente, no complexo ergas-ter/erectus. Alguns autores mostraram que o Homo heidelbergensis compartilhava traços primitivos comuns, tanto com Homo ergaster quanto com o Homo erectus, incluindo o rosto largo e projetado um pouco para frente, man-díbula inferior sem queixo, dentes grandes, extensas arcadas superciliares, osso frontal (testa) chato e baixo, parede craniana grossa. Por outro lado, divergia do H. ergaster e do H. erectus sob vários aspectos: cérebro relati-vamente grande, medindo 1.200 cm3, maior do que o do ergaster (900 cm3) e do erectus (1000 cm3), arcadas superciliares mais curvas - em oposição à arcada em forma de prateleira (Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Edgar, 2005).

As evidências arqueológicas sugerem que o Homo heidelbergensis foi o ancestral comum que deu origem às espécies Homo sa-piens e Homo neandertalensis. A primeira evoluiu na África, há cerca de 180 mil anos atrás. Os registros fósseis do H. neandertalen-sis, no entanto, foram encontrados principal-mente na Europa, mas já se demonstrou sua dispersão para fora deste continente, particu-larmente na Ásia.

A biologia molecular e alguns marca-dores genéticos (DNA mitocondrial) sugerem que uma pequena população da espécie H. sapiens emigrou, com sucesso, para fora da África em torno de 70 mil anos atrás. Essa pequena população proliferou e se dispersou para várias partes do mundo tais como a Eu-ropa, a Ásia e também a América. A chegada neste último continente parece ter ocorrido

em pelo menos três levas, uma em torno de 25 mil e as outras duas em torno de 15 e 12 mil anos atrás (Groves, 1994; Klein e Edgar, 2005).

Embora saibamos que o Homo sapiens substituiu os seus contemporâneos Homo ne-andertalensis - que já se encontravam na Eu-ropa, ainda há um debate acadêmico a respei-to de como essa substituição ocorreu (Groves, 1994). 4. Do Homo sapiens ao vir a ser humano

Neste tópico, advogaremos que o aper-

feiçoamento da linguagem, em algum período de nossa pré-história mais recente, produziu uma dimensão inteiramente nova para o Ho-mo sapiens - a cultura. Seguindo essa linha argumentativa, demarcaremos o surgimento da linguagem, a explosão da inventividade humana e o principal ponto deste ensaio – o processo de humanização.

Tendo anunciado a nossa linha argu-mentativa para este tópico, iniciaremos com alguns comentários sobre a linguagem, a par-tir do paradigma da Biologia do Conhecer. Assim, no âmbito desse paradigma, a lingua-gem é um processo progressivo de orientação e re-orientação de condutas entre indivíduos, ou seja, uma coordenação de coordenação condutual consensual (Maturana, 1997). Mas o que é uma coordenação de coordenação condutual consensual? Como ela se estabele-ce? Qual o seu significado para a humaniza-ção? Para responder essas questões, propore-mos um exemplo, um cenário. Imaginemos uma situação de caça em que o animal caçado (touro enfurecido) é muito mais forte do que o caçador (hominídeo). Visto assim, a única maneira do caçador obter sucesso nessa difícil empreitada é através de um “chamamento”, da formação de um coletivo. No entanto, esse coletivo só terá sucesso se as ações individu-ais estiverem, relativamente, coordenadas.

Cabem aqui dois comentários impor-tantes para nossa discussão. No primeiro, as-sumimos como pressuposto que os artefatos até então produzidos por esse hominídeo não tinham o valor de armas com suficiência para superar a dificuldade dessa caça específica -

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um pressuposto razoavelmente plausível. Em segundo lugar, é preciso ressaltar que o “chamamento” diz respeito à coordenação de coordenação de condutas e não ao fato de se encontrar um parceiro, uma vez que o com-portamento societário é comum a várias espé-cies, particularmente nos mamíferos.

Chamamos a atenção do leitor para o fato de que, a todo o instante, nós, seres hu-manos, coordenamos as nossas condutas com as de outra pessoa. Se essa observação for um pouco mais aguçada veremos que, a todo o momento, novas coordenações são geradas sobre as primeiras e, assim, sucessivamente. A esse processo recursivo de coordenar uma ação sobre outra, já coordenada - como se déssemos uma volta sobre a volta – pode ser denominado “coordenação de coordenação”. Há de se fazer agora um comentário impor-tante para o entendimento da unidade básica da linguagem, qual seja: uma coordenação de coordenação de ação entre dois indivíduos só ocorre se houver, em ambos, uma vontade, um desejo e a partir daí um consenso. Como toda ação humana é conduta, chega-se, com isso, à unidade básica da linguagem: uma co-ordenação de coordenação condutual consen-sual (Maturana, 1997).

Dito isto, voltemos ao nosso exemplo anterior no qual os caçadores primitivos en-frentam um touro enfurecido. Advogamos que, para se obter sucesso nessa empreitada arriscada, aqueles caçadores de outrora já de-veriam estar imersos em alguma rede lingüís-tica, mesmo que rudimentar, na qual gestos, disposições corporais, grunhidos ou mesmo algum tipo mais elaborado de som, se torna-ram palavras no devir, ou seja, na recursivi-dade do próprio processo.

A partir desta reflexão, podemos ima-ginar pequenas conversações, gestuais ou so-noras, do tipo:

- Oi! - Olá! (coordenação); - Veja o touro! - Onde? - Atrás! (coordenação de coordenação) - Vamos correr! Não, vamos pegá-lo (conduta consensual).

Deixando os exemplos lingüísticos, nos propomos agora a imaginar situações e/ou cenários que pudessem, num passado longín-quo, favorecer a recorrência de encontros e de re-encontros entre nossos antepassados e, as-sim, possibilitar o surgimento da linguagem. Embora nunca possamos ter certeza de como era a vida diária dos nossos antepassados, po-demos utilizar nossos conhecimentos atuais para imaginar e recriar alguns cenários, como esses que estão propostos logo a seguir. 4.1. Redução do dimorfismo sexual e socia-bilidade

Embora possamos detectar um grau de

sociabilidade em todos os primatas, este fe-nômeno é particularmente bem desenvolvido entre os humanos. Para explicar o aumento de relações cooperativas entre os machos e as fêmeas, chamaremos atenção para a ocorrên-cia de uma relação inversa entre dimorfismo sexual e sociabilidade.

É bem conhecido pelos primatologis-tas que, em muitas espécies de macacos, quanto maior a diferença corporal entre ma-chos e fêmeas, maior será a competição entre os machos maduros por oportunidades de aca-salamento. Assim, por exemplo, entre os ba-buínos das savanas, os machos são duas vezes maiores em tamanho do que as fêmeas e se observa que eles competem fortemente entre si por domínio territorial e por oportunidades de acasalamento. Os machos de chipanzés, por outro lado, apresentam um comportamen-to mais cooperativo entre si e isto parece ser o resultado da redução, nessa espécie, do di-morfismo sexual (Leakey, 1995; Klein e Ed-gar, 2005). É importante ressaltar que outros fatores, além da redução do dimorfismo sexu-al, devem ter contribuído para a sociabilidade nos primatas, dentre os quais, a própria sexua-lidade, como demonstrado por Frans B. M. de Waal (2007), ao comparar o comportamento dos chipanzés com o dos bonobos.

Sabendo-se que os machos australopi-tecíneos seguiam o mesmo padrão dimórfico dos babuínos, é razoável supor que a coopera-ção entre eles fosse menor do que àquela que ocorreu, supostamente, nas espécies do gêne-

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ro Homo, com a redução do dimorfismo sexu-al. Seguindo essa linha de raciocínio, acredi-ta-se que as mudanças fisiológicas e compor-tamentais que ocorreram nas fêmeas ao longo da linhagem evolutiva humana, fazendo com que as mesmas se tornassem mais receptivas sexualmente aos machos, independentemente do período fértil, possam ter contribuído para o aumento da freqüência dos encontros e dos reencontros entre macho e fêmea e, por con-seguinte, do estabelecimento de um compor-tamento mais cooperativo entre ambos. Se acrescentarmos a esse prazer do encontro co-operativo a dinâmica que envolvia o cuidado dispensado à prole, teremos o surgimento do núcleo familiar.

4.2. O amor como emoção fundamental pa-ra a sociabilidade

Para discutir a assertiva explicitada a-

cima, é importante entender que as emoções, diferentemente do que a nossa tradição cultu-ral costuma associar com sentimentos, são disposições corporais (ou estados do corpo) que nos abrem ou nos fecham à possibilidade de realizar certas condutas (Bloch, 2002; Ma-turana e Bloch, 2003). Assim, por exemplo, não se espera uma conduta gentil no âmbito emocional do ódio.

Destarte, quando o amor é apontado como emoção fundamental para a construção da sociabilidade, não se está falando de sen-timento, mas apontando a disposição corporal que permitiu, ao primata bípede, a aceitação do outro, de forma mais intensa e perene, na convivência. E porque o amor seria assim tão importante para a sociabilidade e para a hu-manização? Fundamentalmente, porque o amor permitiu o prazer na espontaneidade dos encontros e dos reencontros e, assim, a convi-vência ininterrupta entre humanos (Maturana, 1997).

Seguindo essa linha de raciocínio que considera o amor como emoção fundamental para a convivência (Maturana, 1997), retorna-remos ao ponto de discussão sobre o nasci-mento precoce do bebê e a expansão da neo-tênia. Se considerarmos que durante o proces-so evolutivo da linhagem humana houve um

marcante estreitamento da pélvis e, por con-seguinte, do canal vaginal, podemos inferir que o nascimento precoce significou uma vantagem adaptativa em face de uma alta taxa de mortalidade durante o nascimento. Se as-sim o foi, tornou-se fundamental uma maior atenção dos pais para com a prole excessiva-mente frágil. Se aceitarmos que a expansão da neotênia e tudo que ela implicava (e ainda implica) desencadearam mudanças emocio-nais mais perenes, de aceitação sem maiores exigências, e que essas mudanças foram con-servadas transgeracionalmente, isto explicaria o aumento da sociabilidade entre humanos e, de acordo com o que estamos defendendo a-qui, o ambiente adequado ao surgimento da linguagem. O correspondente dessa emoção fundamental de aceitação do outro, enquanto legítimo outro, na convivência, é denomina-do, na nossa cultura, de amor.

4.3. Cooperação em atividades complexas, perigosas ou prazerosas

Assim como foi mostrado no exemplo

da caça ao touro, a cooperação deve ter sido benéfica para a linhagem evolutiva que levou ao homem moderno. Alguns antropólogos argumentam que a cooperação deve ter sido importante não só para a coesão e sociabilida-de do grupo, mas também como defesa contra predadores ou mesmo contra grupos rivais. Outra atividade complexa, que deve ter en-volvido uma mudança organizacional centra-da na sociabilidade e na recursividade dos en-contros, deve ter sido aquela produzida pela construção e utilização de abrigos coletivos. Se acrescentarmos a esses abrigos o conforto gerado com o domínio do fogo - aquecimento, possibilidade de um sono ininterrupto, prepa-ração da carne e o seu compartilhamento - a convivência e a sociabilidade deve ter sido muito intensificada. O fogo criou o lar, este espaço de convivência onde ocorriam o parti-lhar de alimentos, a elaboração de ferramentas de pedra, a proteção mútua, as relações sexu-ais e todo um sistema complexo de reciproci-dade e cooperação. Acreditamos que o estabe-lecimento e a perenidade destes espaços de convivência favoreceram aquilo que veio a

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surgir bem mais tarde no tempo evolutivo: o aperfeiçoamento da linguagem.

É importante explicitar neste ponto de nossa argumentação que não estamos advo-gando que a convivência tenha induzido mu-danças genéticas que levaram ao aperfeiçoa-mento da linguagem. Estamos simplesmente dizendo que a conservação transgeracional deste modo particular do viver na linguagem, facilitou a fixação de mudanças genéticas que reforçaram esse mesmo modo de viver (Matu-rana e Podozis, 1992), ou seja, o fluir do viver humano, na linguagem. 4.4. Aperfeiçoamento da linguagem

Como sugere Maturana (1997), a lin-

guagem originou-se na intimidade de peque-nos grupos de nossos antepassados que con-viviam na sensualidade, compartilhando ali-mentos, na participação dos machos na cria-ção das crianças e nas coordenações de coor-denações de conduta que isso implicava. A essa rede cooperativa da comunidade lingüís-tica, subjaz o amor como emoção básica que possibilitou tanto a aceitação quanto a legiti-midade do outro, fundado na relação.

Embora esta história transgeracional de interações recorrentes, própria da lingua-gem, tenha surgido lenta e paulatinamente em nossa linhagem evolutiva, advogaremos agora que o surgimento da linguagem falada ou o seu aperfeiçoamento produziu a explosão da inventividade humana. Essa hipótese tem sido levantada por vários antropólogos, dentre os quais Diamond (1997). Este autor afirma que a linguagem, em si mesma, já é pura inven-ção: cada sentença é uma nova invenção, pro-duzida pela combinação de elementos familia-res.

4.5. O vir a ser humano

Neste subitem reforçaremos a idéia de que o humano do ser humano surge com a dinâmica relacional própria do modo de viver humano. Não queremos dizer com isso que estamos negando a corporalidade do Homo sapiens ao fazer referencia ao humano, esta-

mos, simplesmente, afirmando que essa cor-poralidade, por si só, não é suficiente.

Interessa-nos a discussão que na litera-tura se apresenta como o caso das “crianças selvagens”. São casos de crianças criadas sem contato, ou com muito pouco contato com outros seres humanos. Linnaeus, em seu Sys-tema Naturae, de 1758, já descrevera seis ca-sos do que ele designou de Homo ferus, elo perdido entre o homem e os primatas, que o naturalista buscava recuperar. Malson (1967) distingue, entre as crianças selvagens, aquelas que foram criadas por animais daquelas que foram enclausuradas e/ou privadas do contato humano, como são os casos de Victor de A-veyron, encontrado vivendo sozinho nos Piri-neus, no ano de 1799, e de Kasper Hauser, jovem que vivia confinado em Nuremberg e que foi descoberto em 1828.

Há registros de 105 casos encontrados em diferentes regiões do mundo, sendo a Ín-dia o país onde se tem notícias do maior nú-mero deles. Embora se possa crer que estes registros sejam todos antigos, alguns casos recentes contraria esta crença. Assim, em 2004, foi identificado na Rússia um menino criado por cães e, logo no ano seguinte, em 2005, foram registrados seis casos de crianças selvagens que viviam enclausuradas nos EUA, Alemanha, Romênia, Quênia e Índia (http://www.feralchildren.com).

Aprofundaremos nossa discussão nar-rando a história de duas crianças hindus que foram “resgatadas” de uma família de lobos com a qual elas viviam no norte da Índia. Elas foram criadas isoladas de qualquer contato humano e “resgatadas” da família lobo pelo reverendo anglicano J. Singh, em 1920. Quando elas foram resgatadas, uma das meni-nas tinha cerca de oito anos e a outra era mui-to mais jovem. Elas foram transferidas para o orfanato dirigido pela família do missionário e lá receberam o nome de Amala, a mais jo-vem, e, a outra, de Kamala.

Quando foram transferidas para o or-fanato, as meninas não sabiam andar em dois pés, mas se moviam com desembaraço an-dando de quatro. Elas não sabiam falar, comi-am carne crua, lambiam os líquidos e se ani-nhavam, de quando em vez, nos cantos do

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quarto. À noite, quando ficavam mais ativas, uivavam e gemiam com o desejo de fugirem. Elas rejeitavam o contato humano, preferindo a companhia uma da outra ou de cães. O gos-to quase exclusivo por carne levava Kamala a caçar frangos para comê-los e, de quando em vez, enterrava as carcaças ou entranhas no chão. Com o passar do tempo, Kamala mudou seus hábitos alimentares e seus ciclos de ati-vidade (Malson, 1967; Newton, 2002).

Amala morreu em setembro de 1921, um ano após a sua transferência para o orfa-nato, enquanto Kamala sobreviveu por mais oito anos, vindo a morrer em 1929.

Depois da morte das duas crianças, o reverendo Singh descreveu a evolução psico-lógica de Amala e Kamala. Considerando que tanto o bipedismo quanto a linguagem são pontos importantes para a nossa discussão, nos limitaremos a transcrever, a partir das observações do reverendo Singh, algumas poucas passagens que consideramos ilustrati-vas e marcantes.

Com relação ao refinamento da motri-cidade e do andar, o reverendo disse: “pro-gressiva e muito lentamente a motricidade da criança humanizou-se”. Ao fim de dez meses no orfanato, Kamala estendia a mão para so-licitar alimentos. Depois de um ano e quatro meses (fevereiro de 1922), ela conseguiu se erguer com o auxílio de um apoio. Um ano mais tarde conseguiu ficar de pé, sem o auxí-lio de apoio. Em dezembro de 1926 conse-guiu andar com os dois pés, com certa desen-voltura. Entretanto, voltava a assumir a mar-cha lupina e a correr de quatro toda vez que ela se sentia em apuros (Malson, 1967; New-ton, 2002).

Com relação à linguagem, Kamala a-prendeu a pronunciar duas palavras: “ma” que significava mãe, ao referir-se à esposa do missionário, e “bhoo” para exprimir fome ou sede. Em 1923, dizia sim ou não com a cabe-ça e já pronunciava oralmente o sim - “hoo”. Em 1924, conseguiu expressar “eu quero ar-roz” (“am jab bha”). Em 1926, já dominava três dezenas de palavras e quando estas lhe faltavam, recorria aos gestos. Já no final de sua vida, em 1929, dominava cinqüenta pala-vras, reconhecendo o nome das pessoas

(Malson, 1967; Newton, 2002). Embora Ka-mala tenha aprendido a falar algumas dezenas de palavras e a andar com os dois pés, a famí-lia do reverendo teria dito que eles nunca a sentiram, verdadeiramente, humana.

Este relato demonstrou que a triste condição de Amala e Kamala não era devida a uma incapacidade física ou mental inata, mas, principalmente, à ausência do contato humano e/ou do modo de viver humano, nu-ma fase precoce da ontogenia. Ou seja, em-bora as meninas-lobo possuíssem a anatomia e a fisiologia do Homo sapiens, elas não pu-deram compartilhar a dinâmica relacional humana em uma janela importante do desen-volvimento – a primeira infância.

Interessa-nos perguntar, neste ponto de nossa discussão, que dinâmica relacional é essa que nos faz humanos? Muitos autores formularam esta pergunta e a responderam utilizando referenciais de natureza mais filo-sófica (Heidegger, 1982; Nietzsche, 1873/1974), científica (Morin, 1979; Matura-na, 1992; Changeaux, 1985) ou religiosa (Sto Tomáz de Aquino, 1258/1973). Para respon-dê-la, vamos nos basear nas contribuições ad-vindas do arcabouço teórico da Biologia do Conhecer (Maturana, 1997; 2000; Maturana e Bloch, 2003).

Assim, para a Biologia do Conhecer, o humano e toda construção humana, ideal e material, se dá com e na linguagem (Matura-na, 1997, 2000). Como nos mostra Maturana (1997), o humano surge no entrelaçamento do linguajar e do emocionar, a que chamamos de conversar. Destarte, nós, membros da es-pécie Homo sapiens, nos tornamos humanos ao viver no entrecruzamento de muitas redes de conversações, de muitos domínios opera-cionais (Maturana, 1992). Se aceitarmos que o conversar é o entrelaçamento do linguajar com o emocionar, segue-se que as redes de conversações em que vivemos interferem na dinâmica entre o nosso ser e o nosso atuar. Nesta ótica, fica mais fácil entender a trans-formação do homem no devir das redes de conversações que ele mesmo configura. Ou seja, atuamos de acordo como somos, mas também somos de acordo como atuamos (Ei-cheveria, 1994).

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4.5.1. Surgimento da Cultura

Se aceitarmos que o humano é consti-tuído no conversar, o viver humano se dá como uma rede de conversações ou, de uma forma mais ampla, na trama de várias redes de conversações. Estas diferentes redes de conversações constituem o que nós aponta-mos como diferentes culturas.

Nessa perspectiva e de acordo com essa linha argumentativa, se um grupo hu-mano mantiver, recursivamente, uma rede de conversações relativamente durável no tem-po, estaremos diante de uma cultura. Como a conversação implica tanto o linguajar quanto o emocionar, há de se incluir as emoções na definição de cultura. Assim:

“uma cultura é uma rede de conversa-ções que define um modo de viver, um modo de estar orientado no existir, um modo de crescer no atuar e no emocio-nar. Cresce-se numa cultura vivendo nela como um tipo particular de ser humano na rede de conversações que a define.” (Maturana, 1997)

Não queremos afirmar que toda a cul-

tura humana possa ser reduzida à linguagem. Estamos afirmando apenas que não há ne-nhum lugar fora da linguagem desde o qual podemos observar a cultura. Como nos mos-tra Echeverría (1994), somente através do mecanismo de reconstrução lingüística é que podemos ter acesso aos fenômenos não-linguísticos de nossa existência.

Assim, no contexto que estamos dis-cutindo, a linguagem humana não somente precede todas as características apontadas como indicadoras da cultura - idioma, cren-ças, concepções, sistemas de conhecimento, normas, hábitos, costumes, arte, símbolos, objetos - como também é geradora das mes-mas.

Tendo em vista que essa dimensão ge-rativa da linguagem não é auto-explicativa, mostraremos como alguns dos epifenômenos anteriormente citados, tais como a arte, os símbolos, os sistemas de conhecimento e a

própria reflexividade, ou autoconsciência, surgem com a linguagem.

Ainda que seja muito forte afirmar que a linguagem da arte surge com a arte da linguagem, muitos autores corroboram com esta afirmação (Leakey, 1995; Charbonnier e Lévi-Strauss, 1989). A seguir apresentaremos alguns exemplos dessa correlação.

Dentre as várias manifestações artísti-cas, daremos prioridade às pinturas rupestres surgidas no período conhecido como paleolí-tico superior. Assim, os rinocerontes dese-nhados a carvão, os touros e os cavalos mul-ticoloridos encontrados em várias cavernas da Europa - Lascaux, Chauvet, Altamira, etc. - são exemplos da resplandecência dessa arte e do comportamento simbólico de nossos an-tepassados (Leakey, 1995; Klein e Edgar, 2005).

Com relação às pinturas rupestres, du-as questões interessantes podem ser formula-das: como explicar o surgimento das mesmas e porque elas levaram um tempo evolutivo longo para se manifestar? Embora estas duas questões sejam difíceis de responder, alguns autores sugerem a existência de uma relação direta entre as pinturas rupestres e os diversos rituais culturais que as ensejavam tais como a fartura da caça, a criação de ambientes propí-cios à entoação de cantos, acompanhados ou não por instrumentos musicais, de motivação mais imanente ou transcendente e o xama-nismo (Leakey, 1995; Klein e Edgar, 2005).

Com relação ao longo intervalo de tempo que levou para o surgimento das mani-festações artísticas e simbólicas, alguém po-deria tentar explicá-lo, seja pela ausência de matéria prima disponível aos “artistas poten-ciais de outrora”, seja pela insuficiência de um desenvolvimento sensório-motor mais refinado, ou seja, uma habilidade especial. Estas explicações ficam, a nosso ver, prejudi-cadas, principalmente quando consideramos que o subproduto das fogueiras - o carvão - já era regularmente disponível há, pelo menos, 250 mil anos atrás e que o simples ato de im-primir as mãos ou os dedos nas paredes das cavernas, como faria qualquer uma de nossas crianças de agora, dispensaria qualquer habi-lidade especial. Se não foi pela falta de maté-

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ria prima nem por uma incapacidade motora ou habilidade especial, o que foi então?

Advogamos que o aperfeiçoamento da linguagem permitiu tanto a emergência do comportamento simbólico quanto o surgi-mento das técnicas de pintura que envolvia, entre outras coisas, a busca, o transporte e a mistura de pigmentos e fixadores naturais. Afirmamos isso porque entendemos que a mistura, enquanto processo, é uma coordena-ção de coordenação de ações e, portanto, é linguagem. Os preparativos para a execução das pinturas policromadas em locais de difícil acesso, que envolveria, entre outras coisas, a produção de uma iluminação artificial e até mesmo a montagem de “andaimes”, só pode-ria ocorrer na linguagem. Destarte, reforça-mos a idéia de que os preparativos e as técni-cas básicas de pintura de nossos antepassados já deveriam ser produtos de redes de coorde-nações de coordenações de ações bem sofisti-cadas, provavelmente a linguagem falada.

Continuando a nossa discussão sobre a linguagem da arte e a arte da linguagem, é importante fazer uma referência ao compor-tamento simbólico de nossos antepassados, haja vista que os animais representados nas paredes das cavernas nem sempre eram os mais consumidos. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss nos brinda com uma magnífica expressão antropológica produzida a partir dos estudos com os povos San do Ka-lahari e com os aborígines australianos: “cer-tos animais eram representados mais frequen-temente não porque eram bons para comer, mas sim porque eram bons para se pensar” (Lévi-Strauss, apud Leakey, 1995). Para nós, tanto a representação do que se come quanto a representação do que se pensa é simbólico e os símbolos, por não existirem em si mes-mos, surgem na linguagem e com a lingua-gem. É por isso que podemos criar novos símbolos a partir do fluir recursivo de nossas conversações.

Antes de passarmos a correlacionar a linguagem com os diferentes sistemas de co-nhecimento, gostaríamos de ressaltar que a emergência do comportamento simbólico não surgiu na Europa, mas sim na África. Isso ficou demonstrado com a descoberta, no

Quênia, de vários fragmentos de ovos de a-vestruz talhados em forma de contas, datadas de cerca de 40 mil anos. Pelo imenso número de sobras quebradas ou imperfeitas, foi suge-rido que aquelas populações de outrora dedi-cavam muitas horas de trabalho para a fabri-cação das referidas contas, sem nenhum mo-tivo utilitário imediato (Ambrose, 1998). Es-sa marca temporal de 40 mil anos para o sur-gimento do comportamento simbólico na Á-frica pode ser ainda recuada para 75 mil anos atrás, ou mesmo mais, considerando a desco-berta do sítio arqueológico “Caverna de Blombos”, África do Sul, onde foi encontra-do um número relativamente grande de con-chas da espécie Nassarius kraussianus, perfu-radas intencionalmente. Estas e outras obser-vações corroboram com a tese de que a e-mergência do comportamento simbólico e o desencadeamento da inventividade humana tiveram início na África, bem antes das popu-lações humanas se deslocarem para a Europa. Por conseguinte, a África é o berço da huma-nidade (Klein e Edgar, 2005).

Já tivemos a oportunidade de apresen-tar a vinculação entre a linguagem e os siste-mas de conhecimento (Andrade e Silva, 2005). Assim, de forma bem sintética, se prestarmos atenção para o que é produzido por alguém quando esse alguém evoca a no-ção de conhecimento, notaremos que esse produto não passa de enredos explicativos para enredos fenomênicos. Na qualidade de enredos, eles estão, necessariamente, na lin-guagem. 4.5.2. A emergência da autoconsciência

Dedicaremos nossos últimos comentá-

rios para a emergência da autoconsciência no devir do processo de humanização. Ainda que este termo - autoconsciência – suscite outros termos correlatos – mente e pensamen-to - em torno dos quais é travado um intenso debate acadêmico na contemporaneidade (Searle, 1998), vamos nos restringir a comen-tar a capacidade do homem em fazer referên-cia a si e ao mundo com o qual interage.

Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciência como um fe-

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nômeno imanente, particular ao viver bioló-gico humano, reside no fato de termos de en-contrar o mecanismo pelo qual somos capa-zes de distinguir a nós mesmos, como se fos-semos entidades independentes de nosso pró-prio viver e, ao mesmo tempo, de especifi-carmos um eu que nos habita e que, portanto, é dependente de nossa biologia.

Este aparente paradoxo pode ser re-solvido se aceitarmos que a operação de au-toconsciência é uma distinção reflexiva de um “eu” forjado na linguagem, de tal forma que este eu não somente constitui o corpo que surge na distinção, mas também que este eu pode ser referenciado, como uma abstração, no fluir da rede lingüística.

Para tornar mais claro este argumento, desdobraremos a questão em duas perguntas, quais sejam:

1- Como este eu, corpóreo e abstrato, é capaz de fazer referência ao mundo e se auto-referenciar, ou seja, como nos tornamos ob-servadores? 2- Como os laços da rede lingüística, que nos liga uns aos outros e ao mundo, mesmo se mantendo na exterioridade de nossa corpora-lidade, nas franjas das relações interpessoais, cria em nós o que, em nós, é tão intimo - a autoconsciência?

Vamos tentar responder estas duas

perguntas e esperamos que, ao final, tenha-mos explicado nossa indagação inicial, qual seja: como nos tornamos autoconscientes no devir?

Cônscios de que toda explicação exi-ge tanto uma condição formal, mecanismo gerativo, quanto uma informal, aceitabilida-de, convidamos o leitor para participar co-nosco da formulação de um mecanismo gera-tivo para a autoconsciência. Antes, porém, faremos uma solicitação, sem a qual será im-possível caminharmos juntos: é indispensável romper com a crença de que representamos os objetos que estão no mundo em nossa mente, como um espelho.

A razão de nosso alerta e da contro-versa que ela suscita advém do fato de que tanto a célula nervosa quanto o sistema ner-

voso, como um todo, é sensível somente à intensidade dos sinais químicos de seu pró-prio modo de operar e, portanto, não podem captar e processar “informações” ou qualida-des do mundo lá fora, como música, cheiro, sabor, cores, etc. Como nos mostra Heins Von Foerster (1994) não há uma correspon-dência, ponto a ponto, do que acreditamos ser o mundo lá fora com o que acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente. Somente pa-ra se ter uma idéia da ordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos, pa-ra os duzentos ou trezentos milhões de recep-tores sensóreos, há cerca de dez bilhões de sinapses no sistema nervoso, sugerindo que as dinâmicas internas de nosso próprio orga-nismo, ao se entrecruzarem com as perturba-ções advindas do meio externo, participam na criação interna do que o organismo "vê", “sente” e “nomeia”, tais como cores, sons e sensações. Quais as conseqüências desse en-tendimento para nossa discussão?

A conseqüência mais fundamental é a de que o mundo lá fora, com os seus objetos e acontecimentos, não pré-existem ao obser-vador, pois que eles não são entidades primá-rias ao ato de observar e, portanto, indepen-dentes da biologia do observador. As caracte-rísticas que supostamente são dadas às coisas mostram-se também como características do observador. As cores não estão lá fora, inde-pendentes de nossa biologia, mas também não estão cá dentro, independentes de nosso mundo cultural. Se isso é assim, nega-se tan-to o realismo de um mundo predeterminado que o organismo é capaz de representar quan-to o idealismo que toma a percepção como uma projeção de um mundo interno prede-terminado (Varela et al., 1993).

É com essa dupla negação que se diz que os objetos não antecedem à distinção que deles é feita pelo observador. Os objetos sur-gem na práxis do viver do observador e o que é essa práxis do viver humano senão as coor-denações de coordenações de ações que reali-zamos em nosso cotidiano?

Seguindo esta linha de raciocínio, o observar surge no domínio das coerências experienciais inerentes ao próprio viver. Ao darmos ênfase ao processo, deslocamos a po-

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sição do observador de ente corporificado para ente operacional.

Se o leitor aceitou que é impossível a este ente operacional fazer referência a algo fora de seu domínio de experiências, fora de sua própria história, deduz-se que os objetos, o corpo e suas partes e, por extensão, o pró-prio “eu”, surgem no operar das coordena-ções de coordenações condutuais consensu-ais, ou seja, na linguagem. É importante notar que, embora enclausurados em nossa própria biologia, nós só nos tornamos observadores na presença do outro, ao partilharmos do pro-cesso recursivo e transgeracional que é o vi-ver na linguagem.

O importante é que nós, seres huma-nos, repetimos esse processo transgeracio-nalmente a cada ontogenia. Assim, quando nascemos e nos inserimos no mundo através das primeiras triangulações criadas pelo a-pontar da mãe, no sentido lato deste termo, para um objeto, que pode ser o nosso corpo ou parte dele, já estamos na linguagem.

A necessidade do outro, fundado na relação, já nos coloca frente ao desafio de responder à segunda questão anteriormente formulada, qual seja: como os laços de uma rede lingüística podem criar em nós o que, em nós, é tão intimo - a autoconsciência?

Chamamos atenção, neste contexto, para intuição de Luigi Pirandello (1926/1989):

“... se, por acaso, a visão dos outros

não nos ajudar a constituir em nós, de algum modo, a realidade daquilo que vemos, os nossos olhos já não sabem o que vêem; a nossa consciência perde-se, porque aquilo que pensamos ser a nossa coisa mais íntima, a consciência, signi-fica os outros em nós; e não podemos sentir-nos sós.”

Para além desta intuição, a Biologia

do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode ser entendido como uma co-emergência da experiência de um mundo vivido e da identidade do eu vivente. Se acei-tarmos a ressalva que a experiência é tanto um evento pessoal, porque necessariamente

auto-referencial, mas, também, coletivo, por-que necessariamente relacional, poderemos compreender o surgimento de seres vivos ca-pazes de fazer referência ao mundo e se auto-referenciar, sem termos de apelar para uma transcendência ou para a imanência de um suposto “eu”, independente e centro desta vi-vência (Depraz et al., 2000).

Se o leitor aceitou que o nosso viver humano é gerado no fluir recursivo de nossas próprias conversações e que estas, por serem abertas ao indeterminado, abrem-nos, tam-bém, a possibilidade de construção de novos mundos possíveis, torna-se evidente que o humano é forjado na linguagem e que toda conversa tem um fundo ético, porque consti-tutiva do mundo humano, e revolucionário, porque capaz de mudar a história. 5. Referências bibliográficas Andrade, L.A.B. e Silva, E.P. (2005). O co-nhecer e o conhecimento: comentários sobre o viver e o tempo. Ciências & Cognição. 4, 35-41. Disponivel no endereço eletrônico: http://www.cienciasecognicao.org/. Ambrose, S.H. (1998). Chronology of the later stone age and food production in East Africa. J. Archeological Sci., 25, 377-392. Aquino, Sto T. (1973). Compêndio de Teologia (Baraúna, L.J., Trad.). Em: Civita, V. (Ed.). Os Pensadores (Vol. 8, pp. 73-105). São Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1258). Asfaw, B.; White, T.D.; Lovejoy, O.; Lati-mer, B.; Simpson, S. e Suwa, G. (1999). Aus-tralopithecus garhi: A new species of early hominid from Ethiopia. Science, 284, 629-635. Bloch, S.A. (2002). Alba emoting: bases cien-tíficas del emocionar. Santiago do Chile: Edi-torial Universidade de Santiago. Changeaux, J.P. (1985). O homem neuronal. Lisboa: Publicações Dom Quixote. Charbonnier, G. e Lévi-Strauss, C. (1989). Arte, linguagem, etnologia. Campinas: Papi-rus. De Waal, F.B.M. (2007). Eu, primata: porque somos como somos (Motta, L.T., Trad.). São

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A teoria da representação cognitiva de Hobbes

Hobbes´s theory of cognitive representation

Cláudio R. C. Leivas

Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil Resumo O presente artigo procura analisar a teoria da representação cognitiva no contexto da filosofia natural de Hobbes, objetivando mostrar que o filósofo inglês possui uma consistente teoria do conhecimento fundada em conceitos derivados da experiência e de estudos ópticos e metafísicos. © Ciências & Cog-nição 2007; Vol. 12: 192-202.

Palavras-chave: representação natural; metafísica; óptica.

Abstract This article intends to analyze the theory of cognitive representation in the context of Hobbes´s Natu-ral Philosophy, aiming at to show that the British Philosopher had a solid epistemology established on concepts derived from experience and from his optical as well as metaphysical studies. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 192-202. Key Words: natural representation; metaphysics; optica. Concepções e pensamentos são repre-

sentações no modo de compreender de Hob-bes. Considerados isoladamente ou desenca-deados - isto é, não articulados como elos a-marrados e justapostos numa rede ou cadeia de pensamentos - cada pensamento ou con-cepção em particular "é uma representação ou aparência" (Hobbes, 2003: 9) dos objetos ex-ternos. O modo de acesso ao conhecimento da realidade externa é inicialmente representa-cional: "Estas imagens mentais e representa-ções das qualidades das coisas fora de nós, são o que chamamos cognição, imaginação, idéias, informação, concepção, ou conheci-mento delas. E a faculdade, ou poder, pelo

qual somos capazes desse conhecimento, é o que aqui denomino por poder cognitivo ou conceptual" (Hobbes, 1983: 48).

As representações cognitivas podem apresentar-se de diferentes formas conforme o tipo de "faculdade da mente" (Hobbes, 1983: 48) escolhido para entrar em contato com o objeto externo. Como tudo começa na sensa-ção, a própria sensibilidade é definida inici-almente como um tipo de representação ori-ginária.. A representação cognitiva, nesse caso, é denominada representação sensível. Esse tipo de representação depende da pre-sença do objeto. Constatada a ausência do ob-jeto e o conseqüente enfraquecimento ou obs-

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 28/06/2007 | Revisado em 29/11/2007 | Aceito em 30/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Ensaio

- C.R.C. Leivas é Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRS), Doutor em Filosofia (UFRS). Atualmente é Professor (UFPel). E-mail para correspondência: [email protected].

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curecimento de sua imagem chamamos então a representação cognitiva de representação imaginativa. A diferença entre essas duas ver-sões oriundas das representações cognitivas é assinalada por Hobbes a seguir: "Uma con-cepção obscura é aquela que representa todo o objeto em conjunto... e quanto mais ou menos partes forem representadas, assim se diz que a concepção ou representação é mais ou me-nos clara. Considerando então a concepção que, quando produzida pela sensação era clara e representava distintamente as partes do ob-jeto, e quando nos vem novamente é obscura, achamos que nela falta algo que esperávamos e, por isso, a julgamos passada e enfraqueci-da" (Hobbes, 1983: 62).

As representações sensíveis

O conhecimento sensível assinala o principio da vida cognitiva dos seres vivos. Através da sensação o mundo externo é pri-meiramente percebido como objeto de conhe-cimento. Porém, como o acesso cognitivo à realidade externa é indireto, a natureza dotou os seres vivos de um medium para extrair as informações dos objetos que pressionam os diversos órgãos sensoriais. Essa estrutura me-diúnica é a própria sensação metamorfoseada como fantasma ou representação: "A sensa-ção é um fantasma, feito pela reação e esforço para fora no órgão da sensação, causado por um esforço para dentro a partir do objeto, permanecendo ali por algum tempo" (Hobbes, 2000: 391).

No Curto tratado dos primeiros prin-cípios Hobbes se refere a uma sutil equivalên-cia entre phantasma e repraesentatio: - "Co-mo os objetos são um, por união ou reunião, assim são os fantasmas que os representam" (Hobbes, 1988: 42). Enfim, nas primei-ras linhas do primeiro capitulo do Leviatã Hob-bes enfatiza que considerados não por união ou reunidos em cadeia, mas isoladamente, cada pensamento do individuo humano per-ceptivo "é uma representação ou aparência de alguma qualidade, ou outro acidente de um corpo exterior a nós, o que comumente se chama um objeto" (Hobbes, 2003: 15). A sen-sação tem pois uma função representacional

em Hobbes. O início das representações sen-síveis se assenta naquilo que na visão de Hobbes é o acontecimento mais admirável de toda a vida cognitiva das criaturas sensíveis, isto é, o próprio aparecer:

“De todos os fenômenos ou aparências que existem próximos de nós, o mais admirável é a própria aparição (to phainesthai); ou seja, que alguns corpos naturais têm neles mesmos as estruturas [ou modelos (patterns)] de quase todas as coisas e outros de nenhuma. De for-ma que se os fenômenos ou aparências são os princípios pelos quais nós conhe-cemos todas as outras coisas, devemos necessariamente reconhecer a sensação como o princípio pelo qual conhecemos aqueles princípios, e que todo conheci-mento que temos é dela originário." (Hobbes, 2000: 389)

Consideremos, antes de tudo, que os

termos fenômeno, aparência, fantasma e ima-gem são termos equivalentes em Hobbes, pois de acordo com o que ele diz no Exame do “De Mundo” de Thomas White, “[em meu esquema] um e o mesmo movimento da men-te tem agora recebido quatro [diferentes] no-mes para quatro diferentes pontos de vista ...: Esses nomes são: phantasma, imago, imagi-natio e memoria” (Hobbes, 1976: 367). Po-demos dizer, porém, que as representações cognitivas — sejam elas sensíveis, imaginati-vas ou visuais - são definidas por Hobbes me-ramente como tipos distintos de efeitos cau-sados por um mesmo movimento que ocorre no interior de nossas vidas mentais? São as representações cognitivas simples efeitos des-ses movimentos internos operados mental-mente?

Felizmente, o point de départ da phi-losophia prima de Hobbes no capítulo VII do De Corpore esclarece de forma definitiva essa questão ao estabelecer ali uma divisão fun-damental quanto à forma como conhecemos as coisas, ou seja, (1) como acidentes internos da mente ou (2) como não existindo realmen-te, mas simplesmente parecendo existir:

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“Conseqüentemente as coisas podem ser consideradas ... ou como acidentes internos de nossa mente, de tal modo que as consideramos quando a questão é sobre alguma faculdade da mente; ou como espécies (species) das coisas ex-ternas, não como existindo realmente, mas apenas como parecendo existir, ou [parecendo] ter uma existência (being) fora de nós.” (Hobbes, 2000: 94)

Essa sensação aparente de exteriori-

dade - que o professor Zarka denomina de consciência de exterioridade - é o que, num só tempo, define as representações cognitivas e impede que elas sejam diluídas pela força avassaladora da teoria do movimento hobbe-siana. Nos Elementos da Lei Hobbes diz que as "representações das qualidades das coisas fora de nós são o que chamamos cognição" (Hobbes, 1983: 48). A representação cogniti-va é pois a capacidade de conhecer as quali-dades sensíveis dos objetos conforme esses aparecem para nós e parecem fora de nós.

Esses objetos se apresentam em nós e para nós, originando, a partir disso, fenôme-nos distintos, que aparecem na forma de fan-tasmas ou representações, isto é, como uma aparição das coisas exteriores, de forma que o que é próprio da representação é o "apresen-tar ou representar alguma coisa sem ser ela mesma uma coisa, quer dizer, sem receber o estatuto de uma realidade" (Zarka, 1992: 18). Hobbes acredita que a forma como represen-tamos as coisas é tão forte e intensa que mes-mo na configuração apocalíptica da hipótese da destruição do mundo externo continuaría-mos a acreditar nas imagens representadas das coisas armazenadas no interior de nosso cére-bro antes do the day after como algo indubi-tavelmente externo e independente da mente:

"A esse homem [isto é, o único sobrevi-vente do apocalipse] ficariam as idéias do mundo e de todos os corpos que ha-via contemplado com seus olhos antes da aniquilação... tudo o qual, ainda que não fosse mais que idéias e fantasmas que estariam presentes internamente somente a quem as imaginasse, apare-

cer-lhe-iam, porém como externas e não dependentes da mente." (Hobbes, 2000: 389)

O estatuto representacional da sensa-

ção, mutatis mutandis, vem a ser possível, em primeiro lugar, porque a sensação é dotada de uma memória de curtíssima duração, porém suficiente para gerar uma sensação aparente de exterioridade que permite a percepção do percebido:

"Não podemos começar nossa busca por tais princípios [isto é, a busca de nossas representações da realidade externa] por outro fenômeno que a própria sensação, ... [ou seja,] pela memória que por al-gum tempo permanece em nós das coi-sas sensíveis, ... pois aquele que perce-be que tem percebido, lembra." (Hob-bes, 2000: 389)

A equivalência entre sensação e repre-

sentação é assegurada, em segundo lugar, pela capacidade de mudança, que resulta da forma diversa como os fantasmas são representados, por exemplo, quando o objeto da percepção é alterado e novos fantasmas tomam o lugar dos primeiros. Essa capacidade de mudança — aqui associada com as representações sensí-veis — é identificada por Hobbes como sendo o conatus, isto é, um tipo de movimento in-terno plenamente compatível com a sensação: tal compatibilidade parece justificada pelo fato que a sensação é ela própria um tipo de movimento — além de ser, como foi dito an-tes, a sede central das representações ou fan-tasmas intermitentes que aparecem continua-mente em nossa vida mental. Ver-se-á a se-guir que é justo através da capacidade da mu-dança que se abre um campo cognitivo bas-tante extenso e complexo em que o principio de comparação e de diferença atuará como uma espécie de chef d´équipe. Comparação, diferença e representação

O princípio de comparação e diferen-

ça é fundamental para que as representações enquanto fantasmas surjam nos órgãos sensí-

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veis das criaturas vivas. De fato, "não se pode falar de sensação se não há comparação e dis-tinção de fantasmas" (Zarka, 1992: 18). A aparição dessas entidades fenomênicas cha-madas fantasmas - entidades essas que sur-gem por reação sensível provocada pela pre-sença de um objeto epistêmico qualquer - é engendrada por um processo de discriminação ou separação operado pelo principio de com-paração e diferença:

"Por sensação compreendemos comu-mente o juízo que fazemos dos objetos por seus fantasmas; a saber, ao compa-rar e distinguir aqueles fantasmas ... de forma que a sensação tem necessaria-mente alguma memória aderente a ela, pela qual os primeiros e os últimos fan-tasmas podem ser comparados juntos, e diferenciados uns dos outros." (Hobbes, 2000: 393)

A seletividade e a diversidade são pois

dois aspectos inerentes à sensação e sem os quais não haveria conhecimento sensível e, conseqüentemente, as representações cogniti-vas. Se quisermos uma analogia com o adágio popular que diz que uma única andorinha não faz o verão, diremos com Hobbes que na hi-pótese de podermos representar um único fan-tasma isso implicaria uma suspensão da sen-sação, pois "sentir sempre o mesmo e não sentir vem a ser o mesmo" (Hobbes, 2000: 394). O princípio de comparação e diferença, dessa forma, atua de modo a fazer com que a multiplicidade de fantasmas gerados no centro nervoso da vida cognitiva dos indivíduos sen-síveis seja submetida a um discernere - isto é, uma clara percepção das diferenças - justa-posto no plano de uma ordem de prioridades. A seleção e a discriminação de fantasmas, por outro lado, influi decisivamente na inten-sidade daquela memória que é própria da sen-sibilidade animal. Aliás, uma das diferenças fundamentais dos vegetais em relação aos a-nimais é que os primeiros não possuem ór-gãos que funcionem como retentores mnemô-nicos da multiplicidade de fantasmas gerados na sensação:

“Embora pela reação dos corpos inani-mados um fantasma possa ser feito, ces-saria, contudo, tão logo o objeto fosse removido. Pois a menos que esses cor-pos tenham órgãos, como as criaturas vivas os têm, adequados para reter tais movimentos, sua sensação seria tal que eles nunca se lembrariam." (Hobbes, 2000: 300-301)

Pudemos perceber anteriormente que

na opinião de Hobbes a sensação deve de ter em si mesma uma variedade contínua de fan-tasmas para que esses possam ser discernidos uns dos outros. Pois da mesma forma que sem sensação não há memória, sem memória não há retenção de fantasmas, e, por conseguinte, nada para ser discernido ou diferenciado comparativamente. É de se indagar no mo-mento se essa multiplicidade fenomênica, en-quanto submetida àquele princípio fundamen-tal que orienta a comparação e a distinção de fantasmas (isto é, o princípio de comparação e diferença) é algo que se dá num só tempo ou em tempos distintos. E Hobbes dirá que a na-tureza da sensação é tal que a comparação e a diferenciação dessas entidades fenomênicas chamadas fantasmas ocorre uma de cada vez, de forma que dois objetos registrados nos ór-gãos sensoriais não produzem dois fantasmas distintos, mas um só resultante da composição de ambos.

Verbi gratia, quando abrimos um livro percebemos uma página inteira. Mas isso não nos dá acesso ao seu conteúdo: - Dessa forma, somente ao lermos cada palavra, uma de cada vez, podemos com isso fazer associações, comparando umas com as outras, etc., o que nos permitirá enfim emitir um juízo sobre o conjunto das informações extraídas. Tudo isso requer, obviamente, a representação de cada uma das partes numa certa linha de tempo. Com efeito, nossas representações sensíveis, determinadas como sensações aparentes da exterioridade ou consciências da exteriorida-de, não podem estar separadas da consciên-cia do tempo. O objeto da rpresentação

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O objeto que é próprio da representa-ção é formado por um engano da sensação que ao considerar um acidente interno da mente como sendo algo externo e objetivo fixa os limites das aparências perceptivas como se fossem os limites de entidades reais. Objeto real, no vocabulário de Hobbes, é tudo aquilo que constitui o mundo exterior e pode ser concebido como independente de estrutu-ras mentais. Numa acepção mais ampla os objetos reais são corpos e “Hobbes define um corpo como aquilo que não depende para sua existência do pensamento humano e que coin-cide com algum espaço” (Zarka, 1992: 53). (Veremos depois que na compreensão de Hobbes considerar um corpo como possuidor de certa substancialidade imaterial é uma con-tradictio in adiecto, isto é, uma contradição nos termos.)

A percepção ou apreensão da multipli-cidade de objetos ou coisas que constituem a realidade exterior depende da forma como as capacidades sensório-perceptivas de uma cria-tura sensível são estimuladas pelos movimen-tos externos constitutivos desses mesmos ob-jetos ou coisas. O objeto real se metamorfo-seia num objeto aparente — isto é, num obje-to representacional — quando um movimento ou conatus exterior pressiona um determinado órgão sensorial originando ali (como resulta-do de sua força centrífuga) um movimento ou conatus interior que, devido a sua natureza reativa, é então fisiologicamente pressionado para fora, cujo efeito no indivíduo senciente é aquilo que denominamos antes de sensação aparente de exterioridade:

"A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona o órgão próprio de cada sentido ... a qual pressão, pela mediação dos nervos e outras cordas e membranas do corpo, prolongada para dentro em direção ao cérebro e coração, causa ali uma resistência, ou contra-pressão, ou esforço do coração para se transmitir, cujo esforço, porque para fo-ra, parece ser de algum modo exterior. (Hobbes, 2003: 15)

O mais importante no momento, pri-ma facie, parece ser concentrar esforços na tentativa de não confundir o objeto real com o objeto da representação. De fato, se o primei-ro é determinado no estrito âmbito do movi-mento exterior, o segundo, por sua vez, é o resultado de uma consciência de exteriorida-de proveniente da projeção de qualidades e acidentes considerados, de forma ilusória ou enganosa pelo espírito, como sendo aquelas propriedades pertencentes à realidade exteri-or. Um passo além e veremos Hobbes afirmar que essas qualidades e acidentes das coisas que constituem nossas representações cogni-tivas não estão na verdade nas próprias coisas, mas pertencem in totum à vida mental do su-jeito epistêmico. Opera-se aqui, portanto, uma visível subsunção das qualidades secundárias e primárias à vida cognitiva subjetiva, pois de acordo com o que diz Hobbes a seguir:

“Quaisquer acidentes ou qualidades que os nossos sentidos nos fazem pensar que existam no mundo, não estão lá, constituindo apenas aparências e apari-ções. As coisas que realmente estão no mundo, fora de nós, são os movimentos que causam essas aparências.” (Hob-bes, 1983: 56)

Todos os nossos pensamentos podem

então ser definidos, diz Hobbes, como uma "representação ou aparência de alguma qua-lidade ou acidente de um corpo exterior a nós" (Hobbes, 2003: 15). Definir os pensa-mentos como representações cognitivas pare-ce plenamente justificável no âmbito de um sistema de pensamento que combina compo-nentes empíricos com componentes fenomê-nicos. Essa combinação revela uma démarche fundamental no interior do Leviatã quando Hobbes inscreve ali o seguinte axioma: “O homem não pode ter nenhum pensamento re-presentando uma coisa que não esteja sujeita à sensação” (Hobbes, 2003: 29). As representações imaginativas

No contexto da pura sensibilidade a-nimal, porém, essas representações sensíveis

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— aqui traduzidas em pensamentos — estão todas invariavelmente circunscritas a enganos e ilusões. A razão disso é que todo pensamen-to representando algo está sujeito à sensação e a sensação é uma fonte originária de enga-nos e ilusões ocorridos na vida cognitiva dos indivíduos sencientes:

“As coisas que realmente estão no mundo, fora de nós, são os movimentos que causam essas aparências. E esse é o maior engano da sensação, que também deve ser corrigido pela sensação, pois, assim como a sensação me diz, quando vejo diretamente um objeto, que a cor parece estar no objeto, assim também a sensação me diz, quando vejo por refle-xão um objeto, que a cor não está nele.” (Hobbes, 1983: 56)

O De Homine-óptico (isto é, a parte óptica do De Homine) tece importantes considera-ções relativas a esse engano originário da sensação. De fato, Hobbes diz ali que "se-gundo uma instituição da natureza todo ser animado começa por julgar que essa imagem [uma luz, uma cor assim representada] é a vi-são da coisa mesma" (Hobbes, 1974: 43). Ob-servemos que Hobbes está ali usando nova-mente um modelo da percepção animal em geral para explicar o engano da sensação. En-ganar-se ou iludir-se é pois algo inerente a todos os seres vivos animados. Em outras pa-lavras, o engano originário da sensação é uma propriedade de todo indivíduo senciente que cai dentro do reino animal, gênero maior em que os sencientes humanos estão compreendi-dos como simples partes na relação com o todo. A confusão quanto à distinção entre ob-jetos reais e objetos aparentes é originada pois naturalmente no interior da sensibilidade a-nimal. Decorre disso que representações sen-síveis cognitivas — isto é, "as representações das qualidades das coisas fora de nós" (Hob-bes, 1983: 48) - apresentarão ou representa-rão interiormente os objetos externos como se eles fossem exteriores ao processo mental: "Muito embora, a certa distancia, o próprio objeto real pareça confundido com a aparên-cia que produz em nós, mesmo assim o objeto

é uma coisa, e a imagem ou ilusão uma outra" (Hobbes, 2003: 16).

Hobbes está abrindo caminho aqui pa-ra a instituição de um outro tipo de represen-tação cognitiva. De fato, se a distinção no momento é entre objeto real e objeto imagi-nário, as representações sensíveis se trans-formam então em representações imagina-tivas. Essa transformação ocorre sem que o segundo termo implique a exclusão do pri-meiro, em nosso entendimento, porque em Hobbes a capacidade da imaginação é defini-da como um tipo específico de sensação, ou seja, ela é uma sensação enfraquecida ou de-bilitada, e isso devido ao estatuto da ausência de seu objeto. Com efeito, dada a ausência de um objeto epistêmico atual - representado an-teriormente no contexto de um objeto presen-te responsável por aquela geração fenomênica de um objeto aparente - devemos pensar no momento num objeto aparente imaginário que é o objeto próprio das representações i-maginativas cognitivas. As representações imaginativas são definidas por Hobbes da se-guinte forma:

“Quanto à maneira pela qual se tem co-nhecimento de uma concepção passada, recorde-se a definição da imaginação onde dissemos que se trata de uma con-cepção que pouco a pouco declina, ou se vai tornando mais obscura. Uma con-cepção obscura é aquela que representa todo o objeto em conjunto, mas nenhu-ma das suas partes por si mesmas; e quanto mais ou menos partes forem re-presentadas, assim se diz que a concep-ção ou representação é mais ou menos clara. Considerando então a concepção que, quando produzida pela sensação era clara e representava distintamente as partes do objeto, e quando nos vem novamente é obscura, achamos que nela falta algo que esperávamos e, por isso, a julgamos passada e enfraquecida.” (Hobbes,1983: 62)

Na próxima seção desejo examinar a

teoria da representação visual de Hobbes ob-jetivando com isso uma melhor compreensão

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de sua teoria da representação cognitiva. Co-meço ali explicando como Hobbes concebe sua teoria física da luz para depois concernir à formação das representações visuais. As Representações Ópticas

(a) Teoria física da luz

A teoria da intromissão da luz de Al-Hazen (isto é, a idéia que vemos através de raios de luz que entram nos olhos a partir do exterior) substitui gradativamente a teoria da emissão da luz dos antigos (isto é, a idéia que vemos através de raios visuais emitidos pelo olho). Vitelo continua os estudos de Al-Hazen e acrescenta que o raio de luz deve ser defini-do como um feixe de linhas matemáticas (Prins, 1987: 296). A explicação física da luz recebe com Vitelo um “tratamento puramente geométrico” de forma que o fenômeno óptico passa a ser explicado em termos de “pontos e linhas”. Prins sugere que os estudos desen-volvidos pelos ópticos medievais reduzem a óptica à geometria de forma que a natureza da luz é por eles formulada a partir de um trata-mento puramente geométrico de problemas físicos justificado pelo conceito de raio de luz. Em resumo, a forma geométrica como os antigos explicavam a visão através da noção de raio visual sofre uma readequação com os medievais de forma a conduzir a uma explica-ção física da luz justificada pela geometriza-ção do raio de luz.

A teoria física da luz de Hobbes pare-ce compatível com a teoria da intromissão da luz dos ópticos medievais. Hobbes utiliza, por exemplo, o termo lux para se referir à fonte original de luz que irradia de um corpo lumi-noso antes de se dirigir para o centro do olho. Lux, dessa forma, é distinto de lumen, visto que esse último termo se refere não à luz ori-ginal mas à luz refletida — isto é, à luz como fantasma, que pertence à sua teoria da visão1. A objetividade da causa física da luz — lux — é diferenciada em Hobbes da subjetividade da qualidade sensível – lumen -, que surge como uma reação no interior do dispositivo óptico em decorrência de estímulos nervosos no cérebro e no coração. A óptica hobbesiana

remete dessa forma a uma teoria da intromis-são da luz ao definir as causas físicas da luz pelo termo lux e a uma teoria da emissão da luz compreendida como lumen ou fantasma2. A primeira explicação do fenômeno óptico na terceira seção do Curto Tratado evidencia a objetividade da causa da luz respaldada na idéia clássica da emissão da luz pelas espécies através de um medium:

“Luz, cor, calor e outros objetos pró-prios da sensação ... nada mais são do que as diferentes ações das coisas exte-riores sobre os espíritos animais, pelos diferentes órgãos. Pois se a luz e o calor fossem qualidades inerentes em ato às espécies, e não diferentes modos de a-ção - porque as espécies entram por to-dos os órgãos para ir aos espíritos - se deveria ver o calor e sentir a luz, o que é contrário à experiência.” (Hobbes, 1988: 45)

O Curto Tratado apresenta dessa for-

ma uma explicação da teoria mediúnica da luz fundada no conceito de Species. O fundamen-to dessa explicação — conforme estabelecido por Hobbes na terceira seção do Curto Trata-do - consiste em que a causa eficiente está do lado do objeto e não do lado do sujeito. De fato, a terceira seção do Curto Tratado escla-rece que "o objeto é a causa eficiente ou a-gente do desejo e os espíritos animais o paci-ente" (Hobbes, 1988: 53). Uma vez estabele-cido que o princípio de causalidade é da or-dem do objeto e não da ordem do sujeito se-gue como corolário que a natureza mediúnica da luz é compatível com a teoria da emissão das Species: - “Todo agente que age sobre um paciente à distância o toca seja pelo Medium, seja por alguma coisa que sai dele mesmo, a qual será denominada Species" (Hobbes, 1988: 25).

Essa concepção começa porém a so-frer mudanças a partir do Tractatus Opticus I onde Hobbes afirma que se não houvesse vi-são não haveria nada que chamaríamos de luz. A aparição da luz e das cores é doravante um fenômeno subjetivo e situa-se em claro contraste com a tese objetivista da emissão da

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luz pelas espécies do Curto Tratado. Se no plano da origem da luz a teoria da luz de Hobbes — dada a inserção das teses do Trac-tatus Opticus I — indica um movimento que articula a ação do meio a partir da fonte lumi-nosa, esse movimento, concebido como pro-pagação da luz a partir do meio, vem a ser luz somente quando há um sentimento da luz em nós, sentimento esse que é definido como vi-são. Em resumo, lux e lumen são agora expli-cados de forma subjetiva. A conclusão das teses ópticas no pensamento maduro3 de Hobbes parece indicar o que segue: — A ação física da luz não basta para explicar todas as modalidades da visão4. A passagem das cau-sas físicas da luz para a explicação da visão através da constituição do conceito de repre-sentação visual é o que pretendemos exami-nar no próximo item. (b) A formação das representações visuais

Estabelecida a hipótese que a ação fí-sica da luz é insuficiente para produzir a vi-são, a teoria óptica hobbesiana remete a um complexo sistema psíquico-fisiológico para adequar a teoria da luz à teoria da visão:

“A ação de um objeto luminoso, quando propagada para o fundo do olho e con-seqüentemente para o cérebro, é a causa da reação pela qual um movimento é transmitido para fora do cérebro, atra-vés do olho, na direção dos objetos ex-ternos. O ultimo movimento, contudo, é experimentado não como movimento mas como fantasia ou imagem ... de al-gum corpo luminoso. Essa fantasia chamamos iluminação ou luz.” (Hob-bes, 1976: 102)

Doravante a luz e a cor são considera-

das “não como emanações do objeto mas co-mo fantasmas de nosso mundo interior” (Hobbes, 1974: 43). É de se observar que a idéia de fantasma como recurso para explicar o fenômeno visual faz parte da literatura ópti-ca dos medievais e dos renascentistas. Vitelo, por exemplo, recorre à idéia de fantasma para explicar a ilusão visual e podemos constatar,

além disso, que o Optical Thesaurus de 1572 traz uma identificação entre fantasma e ima-gem refratária5. Uma outra observação que nos parece relevante é que se na Critica do 'De Mundo' Hobbes se refere à luz como fan-tasia, no De Homine ele se refere à luz como fantasma. Seria devido ao fato que na Critica do 'De Mundo' ele em muitos aspectos se mostra disposto a seguir Aristóteles para quem a raiz etimológica da palavra fantasia é dada pelo vocábulo luz? De fato, Dherbey su-gere que a identificação de fantasia e luz em Aristóteles serve para dissipar o erro de não se diferenciar a sensação da imaginação: — “A confusão feita por Protágoras entre sentir e imaginar se explica se atentamos à etimologia de phantasia que, nos diz Aristóteles, vem de phaos, a luz” (Dherbey, 1983: 61).

Diferentemente de Aristóteles, con-forme podemos observar nos escritos ópticos do De Homine, Hobbes não está preocupado em identificar fantasia e Luz para separar sen-sação e imaginação e sim identificar fantasma e luz para separar a imagem visual do objeto da visão. Com efeito, após definir a luz no De Homine como fantasma de nosso mundo inte-rior, Hobbes pode operar uma distinção fun-damental entre o que é da ordem da represen-tação visual e o que é da ordem da própria coisa:

“Uma luz, uma cor assim figurada [isto é, representada], isso se chama uma i-magem. E, segundo uma instituição da natureza, todo ser animado começa por julgar que essa imagem é a visão da coisa mesma ... [Sendo que] mesmo os homens ... confundem a imagem com o próprio objeto.” (Hobbes, 1974: 43)

Lembremos que essa idéia de uma se-

paração radical entre o fenômeno visual e a própria coisa estabelecida por Hobbes no De Homine de 1658 remonta ao ano de 1649 quando ele escreve o tratado óptico A Minute or First Draught of the Optiques. Essa consta-tação se deve ao fato de que a parte óptica do De Homine corresponde quase que integral-mente à segunda parte do First Draught, parte essa que Hobbes dedica ao estudo da visão6.

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A construção óptica da representação em Hobbes começa a ser delineada enfim através da justaposição de uma fundamental diferenciação entre o que é da ordem do aparecer e o que é da ordem da realidade.

Tendo isso em mente podemos consta-tar que a imagem é construída visualmente em nosso cérebro na medida em que somos afeta-dos por um objeto externo e que quando essa imagem é projetada de dentro para fora por reação dos estímulos nervosos centrais temos a ilusão que o que vemos é a coisa mesma. Constata-se pois que as teses ópticas de Hob-bes se posicionam de forma antagônica com a óptica antiga uma vez que "aquilo que um Antigo vê num espelho é a coisa mesma"7. Em A teoria aristotélica da visão Cappelletti diz, por exemplo, que é importante sublinhar que existe em Aristóteles uma teoria realista da sensação visual segundo a qual o sujeito capta qualidades que se encontram verdadeira e realmente no objeto, de forma que os "erros e ilusões se referem aos sensíveis comuns (distancia, magnitude, etc.) e não são na reali-dade erros da vista mas do entendimento" (Cappelletti, 1977: 91).

Explicar como se formam as imagens visuais a partir de uma separação radical entre o que é da ordem do fenômeno e o que é da ordem das coisas é o tema do primeiro capitu-lo da parte óptica do De Homine. De fato, a noção de representação visual orienta ali o processo de formação das imagens. A percep-ção visual da irradiação do corpo luminoso é enviada através do dispositivo óptico para o sistema nervoso central provocando ali uma reação para fora que consistirá nas aparições ou fantasmas de nosso mundo interior. O que segue disso tudo é uma síntese dos múltiplos pontos de visão que irão constituir a imagem visual do objeto segundo uma correspondên-cia ordenada:

“Uma visão [isto é, uma imagem visual] distinta e figurada ocorre quando a luz ou a cor forma uma figura cujas partes tem por origem as partes do objeto, e lhes corresponde uma à uma na ordem. Uma luz, uma cor assim figurada [isto

é, representada], isso se chama uma i-magem.” (Hobbes, 1974: 43)

O estatuto representacional da visão

da forma apresentada nessa passagem no De Homine óptico é plenamente compatível com o que Hobbes descreve na Crítica do 'De Mundo' nos termos de uma superfície aparen-te imaginária: - “A área aparente do sol ou de qualquer outro objeto não é inerente no pró-prio objeto mas é meramente imaginária” (Hobbes, 1976: 40). A superfície aparente imaginária é constituída ponto por ponto a partir das informações visuais que temos das partes do objeto luminoso. Ora, no De Homi-ne Hobbes enuncia justamente que a configu-ração dos pontos de visão justapostos numa linha reta no centro retinal do aparelho óptico se chama linha de visão: “Cada ponto visto é situado sobre uma linha reta que passa primei-ramente pelo centro da retina, depois por um ponto de sua superfície ... [sendo que] essa linha reta chamar-se-á linha de visão” (Hob-bes, 1974: 44). O lugar aparente das imagens que temos dos objetos - a saber, “a forma co-mo aparecem na visão direta” - é então expli-cado no capítulo terceiro do De Homine a par-tir da mencionada noção de linha visual: “Por conseguinte, se damos a distancia aparente de um objeto (colocado em linha reta), [bem co-mo] a sua grandeza aparente e a sua figura aparente, [segue que] o seu lugar aparente é igualmente dado” (Hobbes, 1974: 59).

A localização dos objetos na represen-tação é dessa forma estabelecida na linha de visão - isto é, na linha reta - pela determina-ção do lugar e da distancia real dos objetos a partir de seu lugar e de sua distância aparente. Sobre essa questão Zarka esclarece que em Hobbes “a constituição visual da representa-ção governa o problema da determinação da distancia e do lugar real do objeto a partir de seu lugar aparente”8. O lugar e a distancia real são dessa forma reduzidos ao que apare-ce. A imagem visual, formada a partir da li-nha de visão, é percebida pelo individuo re-ceptor “como se”9 fosse a própria coisa. Nos Elementos da lei, lembremos novamente, Hobbes esclarece essa questão da seguinte forma:

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"Por isso, segue-se também que quais-quer acidentes ou qualidades que os nossos sentidos nos fazem pensar que existam no mundo, não estão lá, consti-tuindo apenas aparências e aparições. As coisas que realmente estão no mun-do, fora de nós, são os movimentos que causam essas aparências.” (Hobbes, 1983: 56)

Existindo no mundo apenas aparên-

cias e aparições, a realidade se encontra sub-sumida nas representações visuais. A forma como vemos as coisas é então a forma como o visível se manifesta. Tudo isso constitui a ins-tigante e ainda hoje pouco explorada teoria óptica de Hobbes. A relação do desejo com as cores ou a metafórica comparação da filosofia política com “lentes prospectivas... que per-mitem ver de longe” (Hobbes, 2003: 158) são algumas das questões que surgem de forma surpreendente diante de nossos olhos quando examinamos o mundo predominantemente visual de Hobbes.

Referências bibliográficas

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Zarka, Y.C. (1986). Vision et désir chez Hobbes. Em: Recherches sur le XVII' siecle,

n° 8. Paris: CNRS.

Notas (1) É de se observar que já no CurtoTratado Hobbes se refere ao termo lux como luz primitiva e ao termo lumen como luz derivada. Na medida que “por luz primitiva se entende lux [e] por [luz] derivada lumen” surge então como corolário que assim como “a luz primitiva e a cor estão para os corpos luminosos ou coloridos assim a luz derivada e a cor estão para as espécies”. (2) Segundo Prins a óptica de Hobbes não é geométrica uma vez que ela está determinada causalmente pelo movimento. A óptica de Hobbes estaria, ainda segundo Prins, situada no plano da física matemática. Zarka sugere, ao contrário, que ela é geométrica e remete ao começo do De Homine onde Hobbes diz que a óptica é uma ciência demonstrativa da mesma forma que a geometria, de modo que, continua Zarka, é importante não confundir “os movimentos da matéria que produzem em nós a representação da luz ou do calor com as qualidades sensíveis”.1 Em nossa opinião, são dois diferentes enfoques da teoria óptica de Hobbes que não precisam ser necessariamente excludentes. Há em Hobbes a compatibilidade entre uma mecanização da luz e uma geometrização do olhar, o que podemos observar, por exemplo, através da passagem em Hobbes das razões físicas da luz para o ato da construção geométrica do visível, ou ainda pela comparação do termo lux com o termo lumen. (3) Isto é, no Tractatus Opticus I e II, no De Homine, etc. (4) Cf. Zarka, idem, p. 137. (5) Cf. Prins, op. cit., pp. 303-304. (6) O motivo pelo qual Hobbes deixou a primeira parte do First Draught, isto é, a teoria da luz, fora do De Homine ain-da hoje é um mistério para os que estudam sua teoria óptica. Seria porque ao tratar do homem (De Homine) ele pensava que as razões físicas da luz podem ser subsumidas na noção de luz como fantasma de nosso mundo interior? O fato é que dois anos depois do First Draught Hobbes escreve no inicio do Leviathan (1651) — sua obra política maior — que embora “o próprio objeto real pareça confundido com a aparência que produz em nós, mesmo assim o objeto é uma coisa, e a imagem ou ilusão uma outra”. A critica à doutrina óptica escolástica da emissão da luz por species visível é o recurso que Hobbes usa no Leviathan para sustentar a diferença entre percepção visual e a realidade. Aristóteles criticou Protágoras por não diferenciar sensação e imaginação. O primeiro capítulo do Leviathan é dedicado ao exame da sensa-ção e o segundo capitulo ao exame da imaginação. Mas ao contrário de Aristóteles, embora Hobbes num primeiro mo-mento diferencie sensação e imaginação, num segundo momento ocorre a subsunção da imaginação à sensação, isto pelo fato que para ele “a imaginação é uma sensação diminuída”. (7) Simon, G. op. cit., p. 197. (8) Cf. Zarka, op. cit., p. 138. (9) É de se observar, contudo que o componente racional não está presente nesse estágio de argumentação. Em outras palavras, as correções efetuadas pelo raciocínio — por exemplo, aquelas relativas às ilusões ópticas — remetem a um plano objetivo que não interessa a Hobbes nesse estágio do argumento. (A critica de Hobbes das Species invisíveis dos escolásticos, por exemplo, é uma critica da razão dirigida a todos aqueles que postulam raciocínios equivocados por não conseguirem decifrar os enganos da visão natural a partir da distinção entre a dimensão do aparecer e a dimensão da realidade ou ainda a partir da distinção entre o que é da ordem da subjetividade e o que é da ordem da objetividade.) O que realmente importa aqui é que “por natureza” a luz e a cor são compreendidas como fantasmas puramente subjetivos que determinam o modo como vemos as coisas.

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Robôs como artefatos

Robots as artifacts

Dulce Maria Halfpap, Gilberto Corrêa de Souza e João Bosco da Mota Alves

Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC), Universidade Fede-ral de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

Resumo Robôs são artefatos criados pelo homem. Essa visão é apresentada a partir da investigação primeira do papel do conceito de artefato na evolução da história humana, até o desenvolvimento de artefatos es-pecíficos, os robôs. Esses também foram então destacados na história da humanidade como artefatos especiais que tentam reproduzir as funções humanas. Nessa empreitada foram identificadas gerações de robôs, as quais puderam exemplificar melhor o desenvolvimento dos robôs como artefatos na soci-edade humana, desde seu surgimento até os dias de hoje. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 203-213. Palavras-chaves: robôs; artefatos; história.

Abstract Robots are artifacts created by man. This vision has been presented since the earliest investigation of the role of the artifact concept in the evolution of human history until the development of specific arti-facts, the robots. These were also pointed out in the humanity history as special artifacts that try to reproduce the human functions. In that effort, generations of robots were identified, which could bet-ter exemplify the development of the robots as artifacts in the human society, since its beginning until today. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 203-213. Key Words: robots; artifacts; history.

1. Introdução

Antes de discorrer sobre robôs, consi-dera-se pertinente neste momento, colocar em discussão o conceito de “artefato” e demons-trar como essa palavra se relaciona com a ro-bótica1. Tais termos, aparentemente parecem

ser distintos, justamente porque a idéia inicial que se tem de artefato é que se trata de algu-ma coisa elaborada artesanalmente, mais ru-dimentar. Em geral, não é bem assim. Pode-se observar que existem outras perspectivas a serem adotadas.

Sobre o significado do termo artefato

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 15/10/2007 | Revisado em 28/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Ensaio

- G.C. de Souza é Graduado em Processamento de Dados (CESUPA), Mestre em Ciência da Computação (UFSC) e Doutorando em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC). E-mail para correspondência: [email protected]; D.M. Halfpap é Graduada em História (UFSC), Mestre e Doutora em Engenharia de Produção (UFSC). E-mail para correspondência: [email protected]; J.B.M. Alves é Graduado em Engenharia Elétrica (Uni-versidade Federal da Paraíba), Mestre em Engenharia Elétrica (UFSC) e Doutor em Engenharia Elétrica (Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como Professor no Departamento de Informática e Estatística (UFSC). E-mail para correspondência: [email protected].

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utilizado neste artigo, buscou-se suporte em alguns dicionários2, como segue: Autor Conceito de artefato Ferreira (1978) a) Produto da indústria. Var. de artefato.

b) Do lat. Arte factu, ‘feito com arte’; var. de artefacto. Ferreira (1999) c) Qualquer objeto manufaturado; peça.

d) Observação ilusória durante uma medição ou experiência científi-ca e que se deve a imperfeições no método ou na aparelhagem.

e) Observação ilusória durante uma Merriam-Webster3 f) Something created by humans usually for a practical purpose;

espe-cially: an object remaining from a particular period <caves containing prehistoric artifacts>;

g) Something characteristic of or resulting from a human institution or activity <self-consciousness ... turns out to be an artifact of our education system – Times Literary Supplement>;

h) A product of artificial character (as a scientific test) due usually to extraneous (as human) agency - ar.ti..fac.tu.al adj.

Stanford Encyclopedia of Philosophy4

i) An artifact may be defined as an object that has been intentionally made or produced for a certain purpose. Often the word ‘artifact’ is used in a more restricted sense to refer to simple, hand-made objects (for example, tools) which represent a particular culture (This might be termed the “archaeological sense” of the word). In experimental science, the expression ‘artifact’ is sometimes used to refer to experimental results which are not manifestations of the natural phenomena under investigation, but are due to the par-ticular experimental arrangement.

Houaiss (2001) j) Produto de trabalho mecânico; objeto, dispositivo, artigo manufa-turado;

k) Aparelho, engenho, mecanismo construído para um fim determi-nado [...].

Quadro 1 - Classificação de artefato.

Em geral, as interpretações apresenta-das mostram algo em comum. Neste artigo, utilizam-se aquelas do Dicionário Houaiss (2001), que são consensuais com as demais. Então se artefato é qualquer objeto feito à mão, então se deduz que artefato pode ser vá-rias coisas. Com efeito, as explicações ora apresentadas são consideradas significa-tivas quando se associa artefato à robótica, além de ajudar a esclarecer, inclusive, o título deste artigo.

À vista disso, recorre-se à história para tornar mais compreensível esta polêmica com o seguinte questionamento: a partir de quando o homem começou a construir artefatos? Uma resposta imediata seria: a construção dos pri-meiros artefatos que se tem notícia remonta à história da origem do comportamento humano

e à evolução da inteligência e Wilson (1975 apud Burke, 2002: 179-180), resume bem to-da essa trajetória quando diz que:

“Os homens mais primitivos, ou ho-mens-macacos, começaram a andar ere-tos quando passaram a viver a maior parte ou a totalidade do tempo no chão. Suas mãos ficaram livres, a manufatura e manipulação de artefatos tornou-se mais fácil e a inteligência cresceu à me-dida que o hábito de utilização de fer-ramentas foi aprimorado. Com a capa-cidade mental e a tendência a usar arte-fatos aumentando mutuamente, toda a cultura material expandiu-se. A espécie dirigiu-se, então, para a trilha dupla de evolução: a evolução genética pela sele-

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ção natural ampliou a capacidade de de-senvolvimento da cultura, e a cultura aumentou a aptidão genética daqueles que dela faziam máximo uso. A coope-ração durante a caça foi aperfeiçoada e proporcionou um ímpeto novo à evolu-ção da inteligência, a qual, por sua vez, permitiu sofisticação ainda maior no uso de ferramentas, e assim por ciclos repetidos de causalidade. A distribuição das atividades de caça e de coleta de ou-tros alimentos contribuiu para aguçar as habilidades sociais.”

Ilustrando esta citação, menciona-se

algumas cenas do filme de Kubrick (1968) - “2001: Uma Odisséia no Espaço”, quando um macaco faz uso de um pedaço de osso da car-caça de um animal e, ao bater com ele com uma das mãos, descobre a partir daí, a ampli-ação do poder da sua força. A aptidão para manipular e criar outros instrumentos equiva-lentes e utilizar para determinados fins de-monstra já ter adquirido a capacidade de abs-tração dando início à construção do edifício da civilização. O ato de manipular aquele ob-jeto e fazer uso dele, não vem sozinho. Ele utiliza o seu cérebro, as suas mãos, para exe-cutar aquela tarefa. Em outras palavras, o re-sultado da força daquele ancestral do homem, revela que ele já dispõe dos primeiros equi-pamentos cognitivos para realizar algumas atividades mentais com funções essenciais de sobrevivência: do acaso à necessidade, a vida fez emergir a consciência. São cenas inusita-das que resumem graficamente o texto antes citado.

De fato, ao longo do processo evolu-cionário, o homem desenvolveu: seu cérebro, sua inteligência, sua capacidade de raciocínio, a linguagem e outras habilidades bem mais poderosas e complexas do que qualquer outra espécie. Isso quer dizer que o homem atingiu um nível de conhecimento que pode ser con-siderado como fundamental para a sua sobre-vivência. O conhecimento permitiu ao homem a ca-pacidade de construir desde uma simples lan-ça para abater uma caça para o seu sustento e de sua família, ao mais sofisticado projeto de

uma bomba atômica. Refletindo sobre tudo isso, destaca-se a questão do conhecimento como condição primordial para a construção de artefatos de um modo geral.

Ampliando um pouco mais essa dis-cussão, Dennett (1998: 151), comple-menta:

“[...] se isso estiver certo, então todas as realizações da cultura humana – lingua-gem, arte, religião, ética, a própria ciên-cia – são artefatos (ou artefatos de arte-fatos...) do mesmo processo fundamen-tal que desenvolveu as bactérias, os mamíferos e o Homo sapiens.”

Pensamento que é corroborado por

Burke (2002). Em conformidade com o histo-riador Burns (1972), a história registra que os primeiros artefatos criados pelo homem apa-recem no período Paleolítico Inferior, quando o homem de Neanderthal já fazia uso de al-guns instrumentos como, armas e utensílios que suprissem as deficiências da força muscu-lar. A princípio, eram simples galhos de árvo-res utilizados como porretes. Depois, desco-bre que lascando as pedras poderia dar-lhes gumes cortantes. A parte mais grossa da pedra (o que sobrava), era segurada na palma da mão, dando origem ao machado manual de-sempenhando as funções de: rachador, serra, faca e raspador. No final desse período, sur-gem métodos mais aperfeiçoados de lascar a pedra. Passa a utilizar as próprias lascas dan-do início à manufatura de pontas de lanças, facas, perfuradores e raspadores bem mais eficientes.

No Paleolítico Superior, o Homem de Cro-Magnon convive com instrumentos e u-tensílios mais aperfeiçoados e com mais vari-edades. Utiliza além das lascas de pedra e hastes de ossos, outros materiais como o chi-fre de rena e o marfim. Exemplos de artefatos mais complicados começam a surgir: a agulha de osso, o anzol, o arpão e a flecha. O uso de roupas (feitas de peles de animais costuradas umas às outras) já aparece, visto o homem desse período ter feito botões de ossos e de chifres e por ter inventado a agulha.

É provável que o homem de Cro-Magnon utilizava adornos feitos de dentes de

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animais e conchas perfurados. Contudo, a su-prema realização do Homem de Cro-Magnon, foi a sua arte – escultura, pintura, entalhe e gravação, acham-se bem representados em uma clara evidência de que está registrando os seus construtos, o que já pode diferenciá-lo dos outros animais (Burns, 1972).

Pela arte o homem primitivo teria co-meçado a refletir, dando um enorme salto no desenvolvimento cognitivo, desenvolvendo um cérebro com um excesso de possibilidades criativas, usadas para a solução de problemas mais complexos e para a arte. Com isso vão aparecendo as várias subjetividades no ser humano. Os padrões rígidos coletivos sendo alterados em várias culturas, com valores e modos de viver diversos (Pacheco e Silva Fi-lho, 2003).

No período Neolítico, as armas e os instrumentos de pedra passaram pelo método do polimento através do atrito, ao contrário dos períodos anteriores, quando utilizava o sistema de fratura e separação de lascas. O nível de progresso material é bem mais ex-pressivo, sobretudo no que diz respeito ao de-senvolvimento da agricultura e da domes-ticação de animais.

O homem neolítico era produtor de a-limentos. Tais circunstâncias demonstram que o homem desse período começa a se sedenta-rizar. O aumento mais rápido da população torna-se viável favorecendo o desenvol-vimento das instituições: a família, a religião e o estado. É provável que uma das causas da origem do estado – talvez a mais importante – remonta no desenvolvimento da agricultura. Inventou os primeiros barcos e jangadas, o que contribuiu para a sua difusão para várias partes do mundo. Destacam-se ainda as artes de tecer e fiar pano. Foi o primeiro a fabricar cerâmica e descobriu o fogo através do atrito. Observa-se que a faculdade inventiva do ho-mem neolítico era bem mais aguçada do que a dos seus antepassados. Novos instrumentos e habilidades técnicas são acrescentados ao seu arsenal. Construiu casas de madeira e barro secado ao sol e no final desse período, desco-briu a possibilidade do uso dos metais e já apareciam alguns instrumentos de cobre e ou-ro entre os demais artefatos do seu cotidiano.

Em resumo, segundo Burns (1972), as verda-deiras pedras angulares da cultura neolítica foram, sem dúvida, a domesticação de ani-mais e o desenvolvimento da agricultura.

Um grande passo no desenvolvimento da espécie humana foi a possibilidade de usar uma linguagem. A invenção da escrita tornou possível estocar informação e conhecimento fora do cérebro humano e tudo leva a crer que, num certo sentido, a invenção da lingua-gem escrita indica o nascimento da ciência. Entretanto, não se pretende aprofundar esta discussão porque tende a ultrapassar as fron-teiras desta proposta, ou seja, trabalhar com o conceito de “artefato”, termo tão utilizado e nem sempre bem compreendido, porém, não no sentido lato, mas restrito à construção de objetos de uma maneira geral.

Esse retrospecto histórico é importante na medida em que favorece o reconhecimento que homem, ao longo do seu processo evolu-tivo, atingiu uma enorme capacidade intelec-tual. Isto lhe permitiu desenvolver uma extra-ordinária cultura e a tendência, é avançar sempre porque a busca do conhecimento não cessa e não pode ser interrompida; faz parte da natureza humana.

No princípio, os procedimentos eram extremamente simples e rudimentares e, nem poderia ser diferente. Entretanto, quando o homem foi se tornando mais criativo e exi-gente, esses mesmos artefatos evoluem e ad-quirem contornos mais sofisticados, com ou-tras utilidades e com mais aplicações até atin-gir o atual nível tecnológico. Afinal, eles fo-ram e devem continuar sendo criados para cumprir um objetivo. Como salienta Dennett (1998: 24), “[...] a meta ou o propósito de um artefato é a função a que ele deve servir de-signada pelo seu criador”.

Quando se trata de procurar os ante-passados de todo esse arsenal tecnológico tal como hoje é visto, sentido e usufruído, não se pode esquecer que todas essas descobertas possuem efeitos multiplicadores, já que se repercutem em muitas outras ações, bem dife-rentes e mais aprimoradas.

Depois de tudo que foi analisado, re-toma-se à questão inicial, ou seja, quando se associa artefato à robótica a partir das expli-

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cações dadas, torna-se mais fácil compreender que um robô é apenas um exemplo de artefa-to, aliás, é o artefato mais moderno e mais em voga hoje. O que foi apresentado é o ponto de partida para uma compreensão mais facilitada da robótica, das suas aplicações e de suas in-ter-relações com a sociedade.

Considerando que artefatos podem ser várias coisas, diz-se ainda que eles poderiam ser ou não, inteligentes. A propósito, a ques-tão da inteligência, hoje embutida no conceito de artefato, é fruto da época contemporânea e será esclarecido mais adiante, especialmente quando forem mencionados os robôs atuais. Contudo, antes de falar sobre inteligência, toma-se a dianteira com as manifestações de Piaget (apud Calvin, 1998: 11): “[...] inteli-gência é aquilo que você utiliza quando não sabe o que fazer [...]”. Esta ênfase de Piaget, aparentemente simples, por si só pode ajudar a compreender que inteligência não é sim-plesmente uma aptidão inata defendida e a-pregoada por muitos, isto é, somos ou não inteligentes. Ela envolve esperteza, criativi-dade, improvisação, intuição, capacidade crí-tica, tomada de decisão, capacidade de memo-rização e outros atributos mais. Como arrema-ta Calvin (1998: 23): “a inteligência diz res-peito ao processo de improvisação e aprimo-ramento na escala temporal do pensamento e da razão”.

Certamente é isso que se deseja das nossas máquinas inteligentes. As pesquisas em Inteligência Artificial caminham nesta di-reção. Sem dúvida é um desafio, porém, não é de hoje que os cientistas defrontam-se com grandes desafios em todo o campo científico que tendem a ressurgir com mais força, à me-dida que a ciência avançar cada vez mais para tentar explicar os mistérios da mente humana.

Essa introdução é o ponto de partida para uma compreensão da robótica, para cla-rear a idéia de robô, a grande variedade deles e, sobretudo, para as finalidades para as quais são projetados e suas implicações tecnológi-cas. Na seqüência, será examinado o início desse processo. 2. Histórico da robótica

O desejo veemente de construir robôs não é de hoje. Alguns fatos remetidos à histó-ria mostram que a idéia é muito antiga e se levado às últimas conseqüências, ver-se-á que o conceito de robô acompanha a história do homem, ou seja, desde quando os mitos fazi-am alusão a certos mecanismos que passavam a ter vida. Desta feita, os primeiros registros de seres artificiais com capacidades humanas, envolvem mitos e lendas. A história ilustra com alguns fatos muito significativos.

Segundo Pazos (2002), no Egito anti-go sacerdotes construíram os primeiros braços mecânicos que eram utilizados em estátuas de deuses com a intenção de atuar sob a “inspi-ração” daqueles, como meio de impressionar o povo. Na Grécia antiga, há registros de está-tuas que operavam hidraulicamente. Na Idade Média, havia relógios no cume das igrejas e exibiam uma figura humana de tamanho natu-ral, às vezes em forma de anjo, ou mesmo de demônio, fazia movimentos com um martelo que batia num sino para marcar as horas. A lenda de Golém, por exemplo, é um dos fatos mais interessantes do passado mítico. Conta a lenda que:

“Joseph Golém era um homem artificial que teria sido criado no fim do século XVI por um rabino de Praga, na Tche-coslováquia, que resolvera construir uma criatura inteligente, capaz de espi-onar os inimigos dos judeus – então confinados no gueto de Praga. O Golém teria sido criado a partir de um boneco de areia esculpido pelo rabino, que lhe concedeu também o dom de falar e ra-ciocinar. A lenda diz que o Golém era de fato um ser inteligente, mas que um dia se revoltou contra seu criador, o qual então lhe tirou a inteligência e o devolveu ao mundo do inanimado.” (Teixeira, 1990: 17)

Nos séculos XVII e XVIII, prolifera-

ram muitos mitos e lendas a respeito de seres artificiais. O caso do flautista mecânico, do célebre “pato de Vaucanson”, o leão animado de Leonardo da Vinci e seus esforços para fazer máquinas que reproduzissem o vôo das

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aves, são alguns exemplos. Porém eram arte-fatos muito limitados (para nós, hoje), pois não podiam realizar mais do que uma tarefa, ou um número bem reduzido delas. Mas, tal-vez resida aí o início desta inquietação huma-na.

Houve muitas outras invenções mecâ-nicas durante a revolução industrial sendo a grande maioria, direcionada aos interesses da produção têxtil. A máquina de fiar de Cromp-tom de 1779 (Pazos, 2002: 7), é um exemplo entre tantas outras.

Em 1805, a boneca construída por Henri Maillardet em Londres, escrevia e de-senhava com precisão. “Levava uns cinco mi-nutos para executar uma tarefa e tinha vários itens no seu repertório (armazenados numa memória mecânica) que podiam ser selecio-nados” (Pazos, 2002: 6). Hoje ela pode ser vista no Franklin Institute de Pensilvânia – Estados Unidos.

O conceito de robótica há muito con-vive conosco. Ele evoluiu do conceito de au-tomação. Derivada do grego, automação sig-nifica: “having motion within itself5 ” (Mor-timer, 1987: 1).

O termo robótica aplica-se ao estudo, à construção e à utilização de robôs em geral. Foi expresso pela primeira vez em 1942 pelo cientista e escritor Isaac Asimov, numa histó-ria chamada “Runaround” (História da Robó-tica, 1998). Na verdade, Asimov começou a escrever histórias sobre robôs em 1939, em-butidas de salvaguardas. Tais salvaguardas foram formalizadas em três leis para a robóti-ca, “hoje tidas como código de ética dos pro-fissionais da área” (Alves, 1988: 1). São as seguintes:

1ª lei: Um robô não pode prejudicar um ser

humano ou, por omissão, permitir que o ser humano sofra dano.

2ª lei: Um robô tem de obedecer às ordens recebidas dos seres humanos, a menos que contradigam a Primeira Lei.

3ª lei: Um robô tem de proteger sua própria existência, desde que essa proteção não en-tre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis (Asimov, 1997, p. 9).

Mais tarde, Asimov, acrescentou uma quarta lei - a Lei Zero: “Um robô não pode causar mal à humanidade nem permitir que ela própria o faça6.”

As leis propostas são vistas hoje atra-vés de uma perspectiva puramente relaciona-da à ficção, uma vez que na época em que fo-ram escritas, não se poderia prever o avanço vertiginoso nesta área.

Entretanto, duas tecnologias desen-volvidas mais recentemente e consideradas como o antecedente imediato da robótica, me-recem destaque: o comando numérico (final da década de 40 e início de 50) e o teleco-mando. A primeira se baseia no trabalho ori-ginal de John Parsons:

“Essa tecnologia é utilizada para contro-lar as ações de uma máquina operatriz, a qual é programada por meio de núme-ros, que podem ser introduzidos através de um teclado ou pela leitura de um car-tão perfurado. Esses números podem especificar, por exemplo, as diferentes posições das ferramentas da máquina para efetuar uma usinagem adequada numa peça.” (apud Pazos, 2002: 7)

A segunda tecnologia, o telecomando,

trata do uso de um manipulador remoto con-trolado por um ser humano:

“O manipulador é um dispositivo, em geral eletro-mecânico, que pode ser uma garra, um braço mecânico ou ainda um carro explorador, que reproduz os movimentos indicados por um operador humano localizado num local remoto. Esses movimentos podem ser indicados pelo operador através de um joystick ou algum outro tipo de dispositivo adequa-do. O telecomando é especialmente útil no manuseio de substâncias perigosas, tais como materiais radiativos, a altas temperaturas, tóxicos ou explosivos. O operador pode ficar num lugar situado a uma distância segura, e manipular o ma-terial observando e guiando os movi-mentos do manipulador através de uma

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janela ou de um circuito fechado de te-levisão.” (Pazos, 2002: 7)

Uma aplicação do telecomando muito utilizada hoje é na medicina, em cirurgias rea-lizadas em órgãos pequenos, como por exem-plo, olhos e ouvidos, o que permite maior precisão de movimentos.

A base do robô moderno encontra-se na combinação de telecomando e comando numérico. Contudo, é tão somente no início do século XX, que a idéia de construção de robôs ganha corpo devido a necessidade de aumentar a produção e da melhora da quali-dade dos produtos. E é nesse período que o robô industrial encontrou suas primeiras apli-cações.

Em 1950, Asimov publicou o livro “I, Robot”, um verdadeiro clássico da ficção ci-entífica. Por muito tempo a robótica não pas-sou disso. Os robôs eram vistos em história em quadrinhos, filmes, livros e até mesmo em peças teatrais. A propósito, a palavra robô tem origem numa das suas mais prestigiadas peças de teatro do autor tcheco Karel Capek, apre-sentada em Praga no início do século XX, in-titulada Rossum’s Universal Robots (R.U.R.)7.

A palavra robô, de origem tcheca – robota - quer dizer trabalhador forçado, que na obra de Karel Capek, se refere ao robô Rossum (cientista) e seu filho, criados para prestar serviços à humanidade de forma obe-diente e servil vindo este termo posteriormen-te a generalizar-se na indústria por causa da evolução introduzida pela automação. No de-senrolar da tragédia tais “criaturas” se rebe-lam contra seus criadores assumindo o co-mando. É a imaginação do autor utilizada pa-ra criticar o progresso tecnológico introduzido na Europa pelos norte-americanos.

A exemplo desta tão famosa peça tea-tral, a ficção científica ganha corpo e inúme-ros filmes do gênero foram produzidos. Entre os mais famosos estão: “O dia em que a terra parou” de 1951, “2001: Uma odisséia no es-paço” de 1968, “Guerra nas estrelas” de 1977, entre tantos outros. E, bem recentemente, o filme “AI” de Spielberg, que trata de um robô dotado de consciência. Mas, não é esse tipo

de robôs mágicos da ficção científica que a robótica trata, pelos menos, até agora. Na verdade, os roboticistas concentram suas pes-quisas na produção de artefatos e no desen-volvimento de robôs como máquinas informá-ticas, com sistemas complexos com funções interligadas, com a finalidade de processar informações. Suas ações dependem da varie-dade de informações que elas consigam pro-cessar. Neste contexto, de acordo com Mar-tins (1993: 10): “robótica é a ciência dos sis-temas que interagem com o mundo real com pouca ou mesmo nenhuma intervenção huma-na”.

Para conceber os mais variados dispo-sitivos robóticos, esta ciência é uma área transdisciplinar em grande expansão. Necessi-ta de conhecimentos de vários campos cientí-ficos: da microeletrônica, da engenharia me-cânica, da engenharia elétrica, da matemática e de outras ciências e, como não se poderia deixar de mencionar, da Inteligência Artifici-al. Busca o desenvolvimento e a integração de técnicas e algoritmos para a criação de artefa-tos inteligentes ou não, sendo o artefato de maior popularidade hoje, o robô. É esta sinto-nia com várias áreas do conhecimento, reque-rida pela robótica, que tem possibilitado o a-vanço nesse campo.

Para uma melhor compreensão da ro-bótica e seu relacionamento com a sociedade é importante esclarecer, dentro do possível, o que significa um robô e porque estas criações de laboratórios de Inteligência Artificial se distinguem de outras máquinas. Algumas de-finições são de origem mais abstratas e vêem os robôs como sistemas que interagem com o mundo real. Outras, mais técnicas, os conside-ram como verdadeiras máquinas animadas, porém, outras ainda mais detalhadas ajudam a sintetizar suas principais características não só dos já existentes, bem como dos que ainda estão por vir.

Na verdade, inúmeras definições têm surgido como é o caso desta, por exemplo, baseada na idéia francesa de robô, assim ex-pressa: “Robô é um dispositivo automático adaptável a um meio complexo, substituindo ou prolongando uma ou várias funções do homem e capaz de agir sobre seu meio” (Mar-

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tins, 1993: 13). Este conceito pode ser compa-rado com a moderna interpretação do pesqui-sador canadense, Marshall McLuhan, ao afir-mar que: “todo produto da tecnologia, de al-guma forma, faz estender nossos sentidos e nervos” (apud Martins, 1993: 13). Neste con-texto, alguns exemplos como o automóvel e outros meios de transporte seriam extensões de nossos pés, assim como os meios de co-municação, rádio, TV, etc., estendem as capa-cidades do nosso sistema nervoso central: fa-la, audição e visão.

Assim são os robôs quando substituem ou prolongam uma ou mais funções humanas ao agirem nos ambientes para os quais foram projetados e tem impulsionado enormemente o desenvolvimento da robótica. Entre outras aplicações, os robôs são utilizados para pintar automóveis a pistolas (a spray), para fundir metais ou plásticos, para misturar produtos químicos, para desativar bombas, na pesquisa científica e educacional, etc.

Entre as definições de robô apresenta-das, salienta-se aquela que é oficializada pela Associação das Indústrias de Robótica (antigo RIA – Robot Institute of América), que o de-fine como: “a programmable, multifunction manipulator designed to move material, parts, tools, or specific devices through vari-able programmed motions for the performan-ce of a variety of tasks8” (Roussel e Norvig, 1995: 773).

Este conceito, um pouco mais abran-gente, coloca em evidência os termos ‘mani-pulador’ e ‘programável’, característicos do robô propriamente dito excluindo, assim, cer-tas máquinas que não são robôs como, os ele-trodomésticos de um modo geral, que para muitos se confundem com eles. Entretanto, este conceito é válido para os robôs da segun-da geração.

De acordo com Martins (1993: 15-16), esses conceitos parecem não satisfazer os pesquisadores da área da robótica, argumen-tando que são por demais simplificados e in-completos e por não se referirem às caracte-rísticas fundamentais dos robôs atuais, ou se-ja:

a) sensitividade;

b) capacidade de excluir por inspeção; c) capacidade de identificar peças; d) capacidade de posicionar peças.

No entanto, existem controvérsias por

parte da Japan Industrial Robot Association (JIRA), que defende que máquinas operadas pelo homem podem ser consideradas robôs, independentemente da complexidade delas. Como se pode observar, as divergências entre os profissionais desta área são visíveis. Po-rém, independente dos desacordos, seria pos-sível uma definição que possa ser adotada mundialmente? O que se pode adiantar, é que a robótica entre nós se mostra incipiente e o caminho a ser percorrido é longo e árduo.

A chegada dos robôs propriamente di-tos é muito recente; deu-se nos inícios dos anos 60, agindo no complexo mundo da pro-dução industrial. Desde então, vem ganhando espaço e desempenhando tarefas geralmente difíceis de altíssimo risco para o homem, ou extremamente cansativas. 3. Gerações de robôs

Aqui serão consideradas três gerações de robôs9, a saber:

• Primeira Geração: Robô Pick-and-Place; • Segunda Geração: Robô Play-Back; e, • Terceira Geração: Robô Inteligente.

Importante ressaltar que, dessas, as

duas primeiras gerações continuam a ter apli-cações generalizadas. A terceira geração, os chamados Robôs Inteligentes não apenas têm limitação em aplicações, como também care-ce de consenso sobre suas reais característi-cas, uma vez que a própria palavra “inteligen-te” ainda é objeto de debate em várias áreas do conhecimento, da psicologia à tecnologia. No entanto, aqui será levado a cabo o fato de que essa terceira geração de robôs é necessá-ria, como será visto na breve descrição de ca-da uma delas, a seguir. 3.1. Primeira geração: robô pick-and-place

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A primeira geração de robôs é caracte-rizada por movimentos simples de ida e volta, com o efetuador (garra, etc.) abrindo-se e fe-chando-se para a realização de tarefas como manipulação repetitiva de materiais. Nesta categoria encontram-se os alimentadores de papel em gráficas, manipuladores de materiais incandescentes em metalúrgicas, etc.

O controle dos robôs de primeira ge-ração é feito por curso e parada mecânica, a-través de parafuso sem fim, o que equivale dizer que a programação de uma tarefa para esses robôs é quase inflexível, e feita com muito pouca liberdade de mudança. Em outras palavras, os robôs de primeira geração não possuem flexibilidade de programação de no-vas tarefas, o que limita muito sua aplicação em células flexíveis da manufatura. Ainda, pode-se afirmar que (os robôs de primeira ge-ração) tem um número bastante reduzido de tarefas diferentes as quais pode executar.

Além disso, os robôs de primeira ge-ração não possuem sensores externos para monitoração de seu ambiente de trabalho. Com isso, alguma mudança ocorrer em seu ambiente, que por ventura vier a ocorrer, a mesma não é detectada pelo robô. Por exem-plo, se a peça que o robô deveria pegar, para deslocá-la para outro lugar, não estiver no de-vido lugar, o robô se comporta como se a mesma lá estivesse. Isso pode ocasionar para-das obrigatórias em uma linha de produção, por exemplo. 3.2. Segunda geração: robô play-back

A segunda geração de robôs conseguiu

superar a limitação observada nos robôs de primeira geração, ampliando significativa-mente o número de tarefas diferentes as quais pode executar. Tendo seu controle efetuado por computador digital, a programação de uma tarefa é armazenada em um programa de computador, escrito em uma linguagem dedi-cada ao robô alvo. Isso significa que mudança de tarefa equivale a mudança do programa correspondente. Essa flexibilidade é a princi-pal característica que diferencia a primeira da segunda geração de robôs.

É comum ver-se nos pátios de monta-doras de veículos automotores os robôs de segunda geração, com aplicações em pintura, solda, montagem, etc. Se um robô de segunda geração está executando uma tarefa de solda a ponto na linha de produção de um modelo de automóvel, por exemplo, a mudança de sua tarefa para um outro modelo se dá através da mudança do programa que fará o robô execu-tá-la.

Importante salientar, no entanto, que os robôs de segunda geração não necessaria-mente possuem sensores externos, que o fari-am capazes de monitorar mudanças em seu ambiente de trabalho. Nisso, os robôs de se-gunda geração se igualam aos de primeira ge-ração. Há casos, é verdade, em que alguma forma de sensoriamento é agregada ao efetua-dor do robô, trazendo alguma facilidade na execução de tarefas. Mas isso representa uma exceção, não a regra. Isto é, o robô de segun-da geração não é capaz de descobrir, por si só, se o modelo de automóvel não é mais o mes-mo e, sozinho, tomar a decisão de mudar o programa (tarefa) para atender a esta mudan-ça. Evidentemente que, se o número de mode-los é pequeno, pode-se até prever algumas (poucas) situações em que tal mudança pu-desse efetuar-se. Mas, ainda assim, isso teria um custo elevado.

Também, isso seria exigir demais da segunda geração de robôs, pois alguma coisa parecida com inteligência (seja isso o que for) estaria presente. Daí a necessidade de uma nova geração de robôs, a terceira, os chama-dos robôs inteligentes. 3.3. Terceira geração: robô inteligente

A necessidade de se dotar um robô de capacidade de tomar decisão em situações não previstas leva, necessariamente, a uma nova geração de robôs, a qual se convencionou chamar de robô inteligente. Note que, para a mudança da primeira para segunda geração de robôs, a área tecnológica foi auto-suficiente. Mas, da segunda para a terceira geração, isso não é possível. Uma das razões para isso é o fato da área tecnológica ser extremamente

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eficiente em “como fazer”, e não necessaria-mente em “o que fazer”.

O nome, inteligente para a terceira ge-ração de robôs, deve ser explicitado, o que é feito a seguir: do latim, intellegere, significa aprender, mas ela é muito mais que a capaci-dade de aprender. Além da capacidade de a-prender, é preciso levar em conta uma série de outros atributos, tais como: raciocínio, memo-rização, adaptação ao meio e, ainda, a moti-vação e o esforço. Verifica-se, então, como John McCarthy (2007), conceitua inteligên-cia: “intelligence is the computational part of the ability to achieve goals in the world. Varying kinds and degrees of intelligence oc-cur in people, many animals and somemachi-nes”.

A inteligência é um processo. Se fosse possível chegar a um consenso sobre o con-ceito de inteligência, provavelmente facilitaria a árdua tarefa de caracterizar os assim chama-dos robôs inteligentes. Essa complexidade da inteligência dificulta não só a compreensão da inteligência propriamente dita, como também a ampliação dessa compreensão para os robôs.

A evolução presenteou a nós, seres humanos, com capacidade de tomada de deci-são. E, também, aos animais e, até certo pon-to, aos vegetais. Mas, principalmente, aos se-res humanos. Aprender um pouco o que signi-fica essa capacidade pode ser o "caminho das pedras" para a mudança da segunda para a terceira geração de robôs. E essa é uma tarefa não trivial, uma vez que, a área tecnológica sozinha, não é capaz de tal façanha. Como diz o poeta, "vamos precisar de todo mundo": psicologia, pedagogia, evolução, etologia, en-genharia, educação, etc., e, principalmente, a neurociência, pois ela é que tem nos presente-ado (neste inicio de milênio), com pesquisas sobre novos modelos mentais. Tais modelos podem ser de grande utilidade para dotar os robôs de terceira geração de capacidade de tomada de decisão em situações não previstas.

Em resumo, a principal característica da terceira geração de robôs (robô inteligente) é a sua capacidade de monitorar seu ambiente e, em função de mudanças ambientais, tomar decisões que podem, inclusive, modificar este próprio ambiente. Em outras palavras, o robô

inteligente terá que descobrir, sozinho "o que fazer" em certas situações. Isso já é suficiente para ter-se uma idéia da complexidade envol-vida em projetos de robôs de terceira geração. Não é a toa que a robótica, literalmente, parou na segunda geração. Não há nada de novo na área (Dyson, 1999), preocupando-se apenas a desenvolver brinquedos para ricos.

É imperativo, portanto, que trabalhos como este ganhem espaço no meio científico, pois uma vez que novos modelos mentais são disponibilizados pela neurociência, podem ser colocados em uma linguagem formal e, a par-tir daí, poderem ser tentados em robôs, agora sim, de terceira geração. 4. Conclusões

As três gerações de robôs contemplam a totalidade dos robôs implementados hoje. Sejam fixos ou móveis, antropomórficos ou não. Aliás, algumas pesquisas sobre robôs antropomórficos, como os que auxiliam no estudo do equilíbrio de bípedes (que não pode ser considerado um problema trivial, tam-bém), podem ser de grande ajuda para pessoas com dificuldade de locomoção9.

É interessante, também, colocar o ro-bô, independente de sua geração, como mais um artefato de automação. Nada mais que is-so. Ou seja, ele representa a tentativa da capa-cidade intelectual do ser humano de exercer as funções superiores de sua mente em ação: procurar facilitar a vida. 5. Referências bibliográficas Alves, J.B.M. (1988). Controle de robô. Campinas: Editora Cartgraf. Asimov, I. (1997). O homem bicentenário. (Persson, M, Trad.). Porto Alegre: L&PM E-ditores, (Original Publicado em 1976). Burke, T. J. (2002). Vida e morte na terra. Blumenau: Editora da FURB. Burns, E.M. (1972). História da civilização ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. 2. Ed. (Machado, L.G., Ma-chado, L.S. e Vallandro, L., Trads.). Porto Alegre: Editora Globo. (Original Publicado em 1941).

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Notas (1) Importante: Este artigo é uma compilação de capítulo de mesmo título da tese de doutorado de Dulce Halfpap, de-

fendida em 2005, Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

(2) Os dicionários não necessariamente contemplam definições técnicas, todavia se foi buscar de outras fontes para ajudar a esclarecer temas como: artefato, mente, consciência e memória; que são tratados neste trabalho.

(3) a) Alguma coisa criada pelo homem, geralmente para uma finalidade prática; especialmente: um objeto remanes-cente de um período específico (cavernas contendo artefatos pré-históricos); b) alguma coisa característica de, ou resultante de uma atividade ou instituição humana – self-consciousness... resulta num artefato de nosso sistema de educação – Times Literary Supplement; c) um produto de caráter artificial (assim como em um teste científico) ge-ralmente devido a uma ação externa (humana). Tradução livre). Disponível no endereço eletrônico: http://www.merriam-webster.com/dictionary/artifact

(4) Um artefato pode ser definido como um objeto que foi intencionalmente feito ou produzido para um determinado propósito. Frequentemente a palavra ‘artefato’ é usada em um sentido mais restrito ao se referir a objetos feitos a mão simples (ferramentas) que representam uma cultura em particular. (Este pode ser o sentido arqueologico da pa-lavra). Em ciência experimental, a expressao artefato é usada para se referir a resultados experimentais os quais não são manifestações do fenômeno natural estudado, mas são devidos a uma configuração em particular do experimen-to. Tradução livre). Disponível no endereço eletrônico: http://plato.stanford.edu/entries/artifact/#Oth.

(5) Aquilo que se movimenta por si mesmo. Tradução livre. (6) Isaac Asimov. Disponível no endereço eletrônico: http://en.wikiquote.org/wiki/Isaac_Asimov#Three_Laws

_of_Robotics (7) Os Robôs Universais de Rossum. (8) Um robô é um manipulador programável, multifuncional projetado para manipular materiais, peças, instrumentos,

ou dispositivos específicos através de vários movimentos programados para desempenhar uma variedade de tarefas. (Tradução livre).

(9) Obtida em palestra sobre Robótica, proferida pelo Prof. João Bosco da Mota Alves, no RExLab/UFSC, no dia 14 de outubro de 2005.

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Cognição e texto: a coesão e a coerência textuais

Cognition and text: the literal cohesion and coherence

Carmen Elena das Chagas

Estudos de Linguagem, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil

Resumo Este trabalho objetiva apresentar um estudo sobre a importância da coesão e da coerência na constru-ção da progressividade do texto, mas tomando como modelo, o processo cognitivo que ambas necessi-tam para exercer o fundamental papel de elementos lingüísticos presentes na superfície textual, pois se interligam e se interconectam, por meio de recursos também lingüísticos, de modo a formar um “teci-do” no contexto em que estão inseridas. Utilizando os pressupostos teóricos da Lingüística Textual e os fundamentos dos autores cognitivistas, observarei o desenvolvimento dos modelos cognitivos que as justificam, proporcionando a continuidade de sentido. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 214-218. Palavras-chave: sentido; modelos cognitivos; coesão; coerência; progressão textual. Abstract This paper objectives to present a study on the importance of the cohesion and the coherence in the construction of the progressive of the text, taking as model the cognitve process that both need to exert the basic paper of linguistic present elements in the literal surface, that if they es-tabilish connection and if they interconnect, by means of also linguistic resources, in order to form one text in the context where they are inserted. Using the estimated theoreticians of the Linguistic and the bedding of the cognitivistes authors, I will observe the development of the cognitives models that justify them, providing the direction continuity. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 214-218. Key Words: signification; cognitive models; cohesion; coherence; progression.

1. Introdução

A interpretação real é um ato mental, precisamente, um processo cognitivo de usuá-rios da linguagem. O resultado deste processo é uma representação conceitual do discurso na memória. Se esta representação é satisfatória para um número de propriedades, diz-se que

um usuário da linguagem entendeu o discurso. Beaugrande e Dressler (1981: 37) pos-

tulam que o texto é originado por uma multi-plicidade de operações cognitivistas interliga-das, “um documento de procedimentos de de-cisão, seleção e combinação”, de maneira que caberia à Lingüística Textual desenvolver

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 214-218 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 13/10/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 28/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Ensaio

- C.E. das Chagas é Mestranda na Área de Linguagem, Sub-área Língua Portuguesa (UFF). Atualmente, é Profes-sora de Língua Portuguesa dos Ensinos Fundamental e Médio. Apresenta interesse por pesquisa nas áreas de Língua Portuguesa, especificamente Lingüística Textual, Análise do Discurso e Sociolingüística. E-mail para correspondência: [email protected].

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modelos procedurais de descrição textual ca-pazes de dar conta dos processos cognitivos que permitem a integração dos diversos sis-temas de conhecimentos dos usuários da co-municação, na descrição e na descoberta de procedimentos para a sua atualização e para o tratamento no quadro das motivações e estra-tégias da produção e compreensão dos textos. A mente humana é um processador de infor-mação, ou seja, ela recebe, armazena, recupe-ra, transforma e transmite informação, bem como os processos correspondentes que po-dem ser estudados como padrões.

Van Dijk (1977) defende que o pro-cessamento cognitivo de um texto consiste de diferentes estratégias processuais, entenden-do-se estratégia como “uma instrução global para cada escolha a ser feita no curso da a-ção”. Tais estratégias são hipóteses operacio-nais eficazes sobre a estrutura e o significado de um fragmento de texto ou de um texto in-teiro. Falar em processamento estratégico sig-nifica dizer que os usuários da língua reali-zam, simultaneamente, em vários níveis pas-sos interpretativos finalisticamente orienta-dos, efetivos, flexíveis, e eficientes .

O cognitivo apresenta-se sob a forma de representações e tratamento ou formas de processamento da informação. Pode-se, as-sim, dizer que a memória opera em três mo-mentos ou fases. Estocagem, quando as in-formações perceptivas são transformadas em representações mentais associadas a outras; retenção, quando se dá o armazenamento das representações; e reativação, quando se opera, entre outras coisas, o reconhecimento, a re-produção, o processamento textual.

Existem duas maneiras gerais para se construir representações mentais. No proces-samento “de-baixo-para-cima” o falante co-meça com eventos perceptuais individuais que ocuparão os mais baixos níveis da representa-ção e se constrói generalizações sucessivas para dar sentido a esses dados. No processa-mento “de-cima-para-baixo” revela um con-fronto com um número de fatos bem limitado. O falante importa um esquema mental inteiro, com toda sua estrutura já feita e todos os seus compartimentos disponíveis, mesmo que va-gos. Assim, qualquer que seja a fonte, entre-

tanto, estruturas de expectativa são mecanis-mos poderosos que nos possibilitam a chegar a uma representação mental e manter o inte-resse pelo texto. 2. Coesão e coerência

A coesão e a coerência no texto falado

mostram que o estudo destes dois fatores que constituem o texto deve ser feito de forma diferenciada dos textos escritos, pois a con-versação se produz de maneira dialógica, já que se refere a uma criação coletiva.

A coerência apresenta-se como um princípio de interpretabilidade do texto, en-volvendo fatores de ordem cognitiva, intera-cional e lingüística. Este princípio se relacio-na à boa estrutura do texto, estabelecendo a partir de uma unidade de sentido o que a ca-racteriza como ato global, ou seja, refere-se ao texto como um todo. “É algo que se articu-la pela interação, num processo de construção mútua, pelas relações estabelecidas e percebi-das pelos falantes” (Aquino, 1991: 85).

O falante utilizará certos sinais lin-güísticos no texto com o objetivo de dar pistas para ajudar os interlocutores a chegar a uma representação mental adequada. Este uso de meios lingüísticos para facilitar a coerência pode ser definido como coesão textual. As-sim, um sinal de coesão indica como a parte do texto na qual ele aparece se liga conceitu-almente a outra parte do texto. Este sinal, normalmente, é designado como elo coesivo. A coesão é bem comum no discurso, isto nos leva a acreditar que ela tem uma função co-municativa grande: possibilitar a coerência em alguns casos.

Um sinal de coesão indica como a par-te se liga, conceitualmente, com uma outra parte do texto. É normal referir-se a estes si-nais como ligações ou elos coesivos. Cada língua possui seus próprios meios de utilizar a coesão. Ela pode ocorrer através de: expres-sões descritivas que, na representação mental, o conceito se liga a um anterior, contribuindo, assim, para a coerência; identidade que faz ligação com formas idênticas ou com referên-cia ou denotações idênticas; relações lexicais

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que ocorrem através de hiponímia e meroní-mia e outros meios afins.

Um texto é coerente se descreve fatos conhecidos ou que sejam relacionados entre si. Em termos mais cognitivos, portanto, um texto é coerente se puder ser interpretado em um modelo mental ou formal.

“Os temas “coesão” e “coerência” estão longe de uma definição clara. Na con-versação, a coesão não pode ser defini-da em termos estritamente formais, pois o texto se produz dialogicamente, con-corrência de dois ou mais agentes. A coerência não é uma unidade de sentido e sim uma dada possibilidade interpreta-tiva resultante localmente. Dois interlo-cutores se entendem não só são coeren-tes no que dizem, mas principalmente, porque sabem do que se trata em cada caso. E quando não sabem, manifestam seu desentendimento de modo a integrá-lo como parte efetiva no próprio texto.” (Marcuschi, 1986: 02)

O texto conversacional é coerente,

mas acontece é que o mesmo obedece a pro-cessos de ordem cognitiva e, muitas vezes, torna-se difícil detectar as marcas lingüísticas e discursivas dessa ocorrência, pois ela nem sempre se dá com base nessas marcas, mas na relação entre os referentes. Desta forma, um texto conversacional pode ser considerado coerente se os referentes apresentados pude-rem ser organizados como pertencentes ao mesmo quadro. Além disso, estes referentes precisam fazer parte de um conjunto, isto é, os elementos presentes no co (n) texto devem ser pertinentes.

Breaugrande e Dressler (1981) consi-deram constituírem a coesão e a coerência níveis de análise. A coerência apresentada muitas vezes, macrotextualmente, refere-se à maneira como os elementos do universo tex-tual (Levinson et al., 2004) se unem numa configuração de modo acessível e relevante. Isto é, a coerência é o resultado de processos cognitivos operantes entre os usuários e não uma simples parte dos textos. Esses conheci-mentos que determinam a produção de senti-

do e, conseqüentemente, a coerência estão armazenados na memória em forma de estru-turas cognitivas como conceitos, modelos cognitivos globais e superestruturas.

Os conceitos são um conjunto de co-nhecimentos guardados nas memórias semân-tica e episódica, em unidades consistentes, mas não estanques.

Os modelos cognitivos globais são blocos de conhecimentos utilizados, intensa-mente, no processo de comunicação e que re-presentam de forma organizada nosso conhe-cimento armazenado na memória. Dividem-se em: 1- Frames são situações estereotipadas e sem

ordenação em nossa memória como, por exemplo, elementos que se referem ao carnaval (serpentina, mascarado e samba) ou ao Natal (chaminé, presentes, ceia).

2- Esquemas são seqüências ordenadas previ-síveis e fixas como, por exemplo, a situa-ção de um casamento, um acidente ou a-niversário.

3- Planos são possibilidades onde se pode perceber a intenção do escritor ou do fa-lante como procedimentos para conseguir um emprego ou uma promoção.

4- Scripts é quando se pode especificar os pa-péis dos participantes de forma determi-nada como, por exemplo, características de crianças ou de adolescentes.

5- Cenário são situações que se estendem ao domínio da referência como a idéia de a-tos que acontecem num clube, numa esco-la ou num tribunal.

Já as superestruturas compõem a for-

ma global de um texto e definem a organiza-ção e as relações hierárquicas entre seus fragmentos.

Os estudiosos do texto afirmam que a coerência depende, acima de tudo, de nosso conhecimento prévio e não só dos modelos cognitivos globais citados acima, mas sim do elemento base, situado em nosso conhecimen-to de mundo que sustenta todos os outros, já a coesão é bem constante no discurso, pois in-dica que ela possui uma carga de comunica-ção expressiva. A coesão está para a coerên-

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cia como a forma lingüística que se usa está para aquilo o que se quer expressar.

3. Progressão referencial

A progressão referencial de um texto

refere-se às estratégias lingüísticas por meio dos quais se firmam (estabelecem) entre seg-mentos do texto diversos tipos de relações semânticas ou pragmático-discursivas, contri-buindo para a progressão do texto.

Weinrich (1964) postula uma “estru-tura determinativa” cujas partes são interde-pendentes, sendo todas necessárias à inter-pretação. Esta interdependência é permitida, às vezes, pelo uso de diversos mecanismos de seqüenciação encontrados na língua.

Koch (2006: 7) mostra que a referen-ciação constitui uma atividade discursiva, pressuposto este que implica uma visão de não-referenciação da língua e da linguagem. Na mesma linha de pensamento Mondada e Dubois (apud Cavalcante et al., 2003) subli-nham que no lugar de pressupor uma estabili-dade a “priori” das entidades no mundo e na língua, é possível reconsiderar a questão de estabilização, pois os objetos-de-discurso pe-los quais os indivíduos entendem o mundo não são preexistentes, nem dados, porém são elaborados no desenrolar de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos.

A referenciação privilegia a relação intersubjetiva e social, na qual as referências do mundo são elaboradas e avaliadas de acor-do com a adequação dos objetivos das ações que estão em desenvolvimento nos enuncia-dores. Segundo Castilho (2004), durante a interação, tomam-se decisões sobre como administrar o pensamento, que palavras esco-lher, que propriedades ativar. Essa adminis-tração configura um conjunto de momentos mentais, no sentido etimológico de “movi-mentos”. Três conjuntos simultâneos de ins-truções, três movimentos ou processos discur-sivo-computacionais podem ser aí identifica-dos: a ativação, a reativação e a desativação.

Ainda Koch e Marcuschi (apud Koch et al., 2005) defendem que a discursivização ou textualização do mundo por meio da lin-guagem não consiste em um mero processo de

elaboração de informações, mas na (re) cons-trução do próprio real. Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade externa ao ato lingüístico, mas (re) constro-em-na no próprio desenvolvimento da intera-ção. Assim, a realidade é construída, mantida e alterada não apenas pela forma como se nomeia o mundo e sim pela forma como, só-ciocognitivamente, interage-se com ele. Os sujeitos interpretam e constroem o mundo na interação com os espaços físico, social e cul-tural.

Marcuschi e Koch (apud Abaurre, 2002) examinam alguns aspectos de dois con-juntos de estratégias de progressão referencial na língua falada: primeiro, a referenciação por meio de expressões nominais definidas e, se-gundo, a referenciação anafórica sem antece-dente explícito. Ambas desempenham papel importante na organização do texto e, por de-corrência, na construção do sentido. Ambas dizem respeito à sucessão de referentes, um aspecto central no processo de textualização e fator relevante da coesão e da coerência. 4. Conclusão

Desta forma, conclui-se que a progres-

são textual precisa garantir a continuidade de sentidos e o permanente ir e vir responsável pela tessitura do discurso. Assim, para propi-ciar o constante movimento de progressão e de retroação, o produtor dispõe de uma série de estratégias ou procedimentos que desen-volvem um papel relevante que, também, são destinados a assegurar uma continuidade de referentes, ou melhor, de objetos de discurso, adquirida pela cadeia referencial que não permite que estes objetos sejam arquivados, permanecendo em estado de ativação na me-mória de trabalho durante o processamento textual.

Representações mentais não ficam li-mitadas à compreensão de discurso, mas são ferramentas mais gerais, fundamentais para a cognição humana. A organização que os ou-vintes associam a um determinado discurso é um reflexo da maneira como o conteúdo é visto como coeso pelo ouvinte e assim fica armazenado na sua mente. Outros fatores que

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contribuem para a representação mental que os ouvintes têm do discurso são os seus co-nhecimentos prévios de como as coisas acon-tecem no mundo real, junto com as suas ex-pectativas sobre o que o falante pretende di-zer, pois os discursos nos forçam a utilizar tudo o que sabemos sobre a nossa cultura, língua e o mundo.

O produtor de um texto cumpre regras gerais de coesão e coerência e usa um núme-ro elevado destas estratégias ou destes proce-dimentos eficientes para conseguir alcançar a unidade do texto. Estas articulações cogniti-vas e sociais podem desenvolver pequenos cortes interpretativos quando o interlocutor fala fora do tópico ou quando algum turno parece incoerente com o turno anterior. O fa-lante pode reagir quando uma tomada de tur-no anterior for brusca, pode acrescentar algum detalhe explicativo sobre determinado assunto ou usar uma troca de turno para uma ratifica-ção, retomando o que fora afirmado antes. Tais estratégias semânticas fazem parte de um conjunto de elos comunicativos e interacio-nais usados para estabelecer certos objetivos como, por exemplo, compreender o mundo. 5. Referências bibliográficas Abaurre, M.B.M. (Org.) (2002). Gramática do Português Falado – Novos estudos descri-tivos. Vol. VIII. São Paulo: UNICAMP.

Aquino, Z.G.O. (1991). A mudança de tópico no discurso oral dialogado. Dissertação de mestrado. São Paulo: PUC- SP. Beaugrande, R. e Dressler, W.N. (1981). Einfhrung in die Textlinguistik. Tübingen: Niemeyer. Castilho, A. (2004). A língua falada no ensino de português. 6ª ed. São Paulo: Editora Con-texto. Cavalcante, M.M.; Rodrigues, B.B. e Ciulla, A A. (2003). Referenciação. São Paulo: Edi-tora Contexto. Koch, I.G.V. (2006). Introdução à lingüística textual. São Paulo: Editora Martins Fontes. Koch, I.G.V.; Morato, E.M. e Bentes, A.C. (2005). Referenciação e Discurso. São Paulo: Editora Contexto. Levinsohn, S.H. e Dooley, R.A. (2004) Análi-se do Discurso – conceitos básicos em lin-güística. 2ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes. Marcuschi, L.A. (1986). Análise da Conver-sação. São Paulo: Editora Ática. Negri, L.; Foltran, M.J. e Oliveira, R.P. (2004). Sentido e significação: em torno da obra de Rodolfo Ilari. São Paulo: Editora Contexto. van Dijk, T.A. (1977). Text and context. Londres: Longman. Weinrich, H. (1964). Tempus: besprochene and erzählte welt. Stuttgard: Kokthammer.

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O uso de narrativas autobiográficas no desenvolvimento profissional de professores

The use of autobiographical narratives in the professional development of teachers

Denise de Freitas , a e Cecília Galvãob

a Departamento de Metodologia de Ensino, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universi-dade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil; bCentro de Investigação

em Educação, Departamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Lis-boa, Portugal

Resumo Utilizar o recurso da narrativa autobiográfica levou-nos a inscrever nossos episódios de vida pessoal e profissional e encontrar lugar para os significados das trajetórias e das práticas de formadoras de pro-fessores. A narrativa pessoal nos ajudou a perceber como nos fomos construindo profissionalmente. Duas questões constituíram-se como fios da investigação: 1) Que momentos marcantes identificamos na nossa vida profissional? 2) Como descrevemos esses momentos e como explicamos teoricamente a sua influência no nosso desenvolvimento profissional? A própria construção da metodologia de inves-tigação se constitui em uma narrativa na medida em que a recolha de dados são as escritas autobiográ-ficas sobre os percursos singulares que foram sendo construídas por nós, investigadoras, no entrecru-zamento de nossas histórias de professoras e formadoras de professores e pesquisadores. A análise ressignifica e reinterpreta os olhares que temos de nós mesmas, pondo em evidência outras emoções e razões das quais antes não nos tínhamos apercebido. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 219-233. Palavras-chave: narrativas de professores; desenvolvimento profissional; pesquisa autobiográfica. Abstract

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 16/10/2007 | Acei to em 26/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Ensaio

- D. Freitas é Doutora em Educação (FEUSP) com Pós-doutoramento (Universidade de Lisboa). Atua como Pro-fessora Associada do Departamento de Metodologia de Ensino (UFSCar) e como Pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Educação (UFSCar) no campo da Educação (sub-áreas: i) formação de professores de Ciências; ii) e-ducação científica; iii) inovação curricular; iv) educação ambiental). Endereço para correspondência: Departamento de Metodologia de Ensino (UFSCar). Rodovia Washington Luis, Km. 235, SP 13565-905. Telefone: (16) 3351-8662. E-mail para correspondência: [email protected]. C. Galvão é Graduada em Ciências Biológicas, Mestre em E-ducação na área de Metodologia do Ensino das Ciências e Doutora em Educação (FCUL). Atua como Professora no Departamento de Educação, Faculdade de Ciências (Universidade de Lisboa). Leciona e Investiga nas áreas de De-senvolvimento Curricular, Educação em Ciências, Desenvolvimento Profissional de Professores, Narrativa em Educa-ção, Educação para a Saúde e Educação Ambiental. Participa do Grupo de Coordenação do Centro de Investigação em Educação e a Comissão Executiva do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lis-boa. Endereço para correspondência: Departamento de Educação da Faculdade de Ciências (Universidade de Lisboa), Campo Grande, Edifício C6, Piso 1, 1749-016, Lisboa, Portugal. Telefone: (351) 21 75 000 49, E-mail para corres-pondência: [email protected].

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Making use of such means as the autobiographical narrative has led us to put into words our personal and professional life stories and to find a place to the meaning of those paths and our practices as teacher educators. The personal narrative has helped us to notice how we’ve been developing as pro-fessionals. Two questions have become the thread of investigation: 1) What meaningful moments do we identify in our professional life? 2) How do we describe such moments and how do we explain theoretically their influence on our professional development? The construction of the investigation methodology becomes a narrative itself, considering that the data collecting refers to the autobio-graphical writings about the remarkable paths which have been built by us, researchers, in the inter-section of our stories as teachers and teacher/researcher educators, and researches. This analysis brings a new meaning and a new reading on the way we see ourselves, also setting in evidence other emotions and reasons which we hadn’t been aware of. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 219-233. Key Words: teachers´ narratives; professional development; autobiographical re-search.

Introdução

“Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa, de algum modo, escrito em mim. Tenho é que me copiar...”

Clarice Lispector

Olhar para o passado pode ajudar-nos a encontrar explicação para significados nas ações que temos hoje como pessoas que fo-ram construindo um percurso pessoal e pro-fissional rico de cruzamentos com os outros e a dar sentido ao nosso posicionamento como professoras e formadoras de professores. As nossas intenções são acadêmicas, mais do que pessoais, embora saibamos que a pessoa e o profissional se interligam e se expressam de um modo completo e integrado (Moita, 1995). O recurso à narrativa autobiográfica inscreve-se na idéia de que, ao narrarmos episódios com significado, os analisaremos de uma forma contextualizada, tentando que essa aná-lise ponha em evidência emoções, experiên-cias ou pequenos fatos marcantes, dos quais antes não nos tínhamos apercebido.

Para Bakhtin (1981: 345), há uma “decisiva significância na evolução da consci-ência individual, à medida que a pessoa dis-tingue o seu próprio discurso do de outros, entre o seu próprio pensamento e o de outras pessoas”. O discurso internamente persuasivo, para Bakhtin, está fortemente interligado com a “própria palavra”; mesmo no “pensamento próprio” e na compreensão dialógica da lin-guagem, esse discurso é metade nosso e me-tade do outro, construindo-se sobre elementos de discursos de autoridade. Para a compreen-

são dessa consciência individual, o recurso à narrativa, trazendo à luz o que está escondido, configura-se como um método que estabelece ligação entre o processo mental e o discurso que o exprime (Bruner, 1991: 6), isto é, “a narrativa opera como instrumento do pensa-mento ao construir a realidade”. Como diz Hannah Arendt, é no espaço para palavras que se podem produzir verdades de si. E por meio do autoconhecimento e da experiência de si, Michel Foucault considera que se dá o pro-cesso de subjetivação, experiência entendida como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acon-tece, ou o que toca” (Larrosa, 2002: 21).

Com esta investigação, procuramos saber quem somos ou, citando Heikinen (1998), como me tornei quem sou?

Florbela Espanca, a esse respeito, diz magistralmente no poema “Eu” o seguinte:

“Até agora eu não me conhecia. Julgava que era Eu e eu não era Aquela que em meus versos descrevera Tão clara como a fonte e como o dia.” “Mas que eu não era Eu não o sabia E, mesmo que o soubesse, o não dissera… Olhos fitos em rútila quimera Andava atrás de mim e não me via!”

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Quantas vezes nos descrevemos a par-tir de imagens que fomos criando, longe do nosso verdadeiro eu, tentando que os outros nos devolvam a imagem que pensamos que estamos a transmitir-lhes, mas apenas nos en-ganamos a nós próprios.

Vamos neste artigo procurar que a nar-rativa de nós nos ajude a perceber como nos fomos construindo profissionalmente, através de um olhar mais personalizado, tentando que o eu e o Eu do poema se tornem coincidentes e consistentes.

Optamos por partir de um problema central: como construímos, narrativamente, o nosso processo de desenvolvimento profissio-nal? E desenhamos, com base nele, duas ques-tões de investigação:

1) Que momentos marcantes identificamos na nossa vida profissional? 2) Como descrevemos esses momentos e co-mo explicamos teoricamente a sua influência no nosso desenvolvimento profissional?

Na idéia da curvatura de espaço-

tempo, em “que o espaço e o tempo interagem e são relativos um ao outro e que o espaço é curvo” (Elbaz-Luwisch, 2002: 25), se harmo-niza nosso “desejo narrativo” neste trabalho. Queremos poder revisitar um tempo passado de nossas vidas e, ao recontá-lo, potencializar novos significados do nosso presente e pers-pectivar a construção do devir, em consonân-cia com a forma como Cavaco (1991: 157) vislumbra esse movimento no meio físico e social.

“Num universo saturado de informação tecem-se as palavras e os factos, as re-gras e os usos, os implícitos e os explí-citos, em processos de fluidez movedi-ça, reveladora do jogo das forças con-trastantes. O sentido das coisas torna-se difuso e, todavia, em cada um de nós coexistem, em cada momento, memó-rias do passado e expectativas de futuro que se combinam na forma como vive-mos o presente e contribuímos para o modelar, projetando-o no devir.”

Do mesmo modo, desejamos curvar o espaço guiando reflexões que poderão dar no-vas direções aos conhecimentos no campo da formação de professores e de pesquisadores na educação científica.

Tentaremos, a partir dos momentos que identificamos como marcantes e que nos permitem fazer um balanço retrospectivo, isto é, olhar para o caminho percorrido, para os acontecimentos, as situações, as atividades, as pessoas com significado, perceber:

“os recursos, os projetos, os desejos que são portadores de futuro. No passado não há somente as coisas que ocorre-ram, há também todo o potencial que cada indivíduo tem para prosseguir a sua existência de futuro.” (Josso, 2004a: 16)

O querer da caminhada é guia pela grafia da memória

A própria construção da metodologia de investigação se constitui em uma narrativa, na medida em que não se pode dissociar a fa-se de recolha de dados dos percursos singula-res que foram sendo construídos por nós, in-vestigadoras, no entrecruzamento de nossas histórias de professoras e formadoras de pro-fessores e pesquisadores. Ou seja, são duas histórias com começo, meio e fim, que dialo-garam para a sua construção. O início: reconhecimento da empatia para desnudar

Como é natural da vida social dos se-

res humanos, procuram-se permanentemente situações de estabilidade para manutenção do eu. Dependendo da posição que se ocupa na profissão, impõem-se níveis de exigências mais ou menos elevados em relação à preser-vação de identidade profissional. Via de re-gra, na academia a exigência e a inflexibilida-de estão colocadas em patamares muito ele-vados. Dessa forma, a entrega para elaborar nossas próprias narrativas, neste trabalho, não esteve alheia a esse tipo de resistência devido à personalidade, como caracteriza Huberman

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(1973), uma vez que as nossas imagens pes-soais e profissionais poderiam estar em jogo.

Acreditamos que esta perspectiva foi se despontando depois que farejamos e reco-nhecemos pontos de confluência em nossas maneiras de ser e estar na vida e em nossas trajetórias pessoais. Apesar das diferenças, inclusive de pátrias (Brasil e Portugal), a i-dentificação de inúmeras similaridades permi-tiu a aproximação por indicar possibilidades de compreensão.

De forma natural, o projeto deste arti-go nasce ao mesmo tempo em que incorría-mos na etapa do discurso. Era o início de um percurso metodológico para a construção das narrativas em que “a forma oral é importante, pois a memória não funciona num ápice, é necessário criar condições que facilitem a re-memorização da sua história” (Josso, 2004b). O “desejo narrativo” foi ativado de forma in-tensa e logo seus primeiros traços figuravam no papel. Cartografias das narrativas: os primeiros esboços Traçando suas escritas...

Uma de nós sentiu necessidade de rea-

lizar a narrativa sem interrupção, sem parada, e nessa retrospectiva a narrativa surge como uma catarse constantemente “interrompida” para dar lugar à objetivação. Os fatos da sua história de vida foram ordenados temporal-mente e dispostos numa seqüência classifica-tória de acordo com a expressão máxima de sua relação com os momentos considerados por si como charneiras. Assim, foram dispos-tos em fila seus antecedentes e suas conse-qüências, colocados ali de forma apressada e apertada, quase “pisando os calcanhares uns dos outros”.

Para outra de nós, ao começar, a escri-ta desperta o sabor que a ela lhe é peculiar. Pouco a pouco, lentamente, aquecendo a me-mória, as reminiscências vão tomando conta de si e ganhando dimensão própria, impassí-veis ao controlo. Os acontecimentos, ainda com lugar no tempo, andam errantes. E como que suspensos no ar, sem lacunas, os fatos são

detalhados pelo prazer de reviver cada espaço, cada canto, cada cheiro, cada sabor; é a delí-cia de ser a si reinventada numa escrita livre e marota trazendo para fora o seu lado mais a-legre da infância.

Apesar das diferenças culturais, o re-sultado dessas narrativas foi o mesmo obser-vado por Sousa (2005: 105):

“[...] quando homens e mulheres profes-sores narram suas histórias de vida e de formação observa-se que, em maior ou menor grau, elas estão articuladas à fa-mília, à escola, aos grupos de convívio, que funcionam como espaços de cons-trução e de reprodução de padrões soci-almente aceitos de feminilidade e mas-culinidade.”

Ao evocarem as memórias nos territó-

rios escolar e familiar, os acontecimentos e-mergiram e fizeram novamente história. E a força e o poder das palavras escritas fizeram “coisas conosco” e nos colocaram novamente “diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos” (Larrosa, 2002: 21).

Elaborando suas leituras...

Nós, interlocutoras primárias dessas

narrativas, trocamos os olhares, os pedaços de vida não revelados. Ao mesmo tempo em que a leitura e releitura evocavam em cada uma nova profusão de acontecimentos, aqueles que foram colocados de lado não por serem menos marcantes, mas por ficarem algures sem sa-bermos, por ora, os porquês, os significados e os significantes do conteúdo foram intensa-mente compartilhados. Os focos foram para as diferenças, mas, principalmente, para as simi-laridades que ajudaram a consolidar a confi-ança.

Para nós, esta fase funcionou como uma transferência simbólica do processo psi-canalítico (Villani, 1999). Uma espécie de ajuste inicial em que aspectos simultaneamen-te cognitivos e subjetivos entram em jogo. Acreditar que o Outro tem escopo e saber pa-ra ajudar e orientar-nos no encontro de nós

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mesmas foi fundamental para a entrada e a manutenção neste processo quase analítico, mesmo que sustentadas por esta passageira, mas necessária, ilusão.

Desse encontro das leituras, surgem movimentos para inclusões dos acontecimen-tos. Devemos continuar ou paramos onde es-tamos? Quais as implicações num e noutro caso? O que interessa para uma pesquisa cien-tífica? Interromper o desejo e a necessidade de falar sobre si é lícito na perspectiva adota-da da indissociabilidade entre a pessoa e o professor?

Com o apoio advindo do discurso de autoridade, especificamente em Bakhtin (1981), verificamos que as autobiografias ao longo da história da civilização traçam uma tipologia e esta se relaciona com o conceito de público e privado, realidade interior e exte-rior versus indissociação do campo visível e invisível, esferas do silêncio e da exposição do discurso.

As autobiografias platônicas envolvem uma autoconsciência individual relacionada com as formas estritas de metamorfose. No seu íntimo, está o “curso da vida à procura do verdadeiro conhecimento” (Bakhtin, 1981: 130). Nelas, a vida aparece partida em épocas ou degraus bem demarcados. Vai da ignorân-cia autoconvencida, passa pelo cepticismo autocrítico, por autoconhecimento e, final-mente, por conhecimento autêntico. No es-quema platônico, há um momento de crise e de renascimento como um ponto de viragem no curso da vida.

As autobiografias retóricas, desde os primórdios da escrita nos gregos clássicos, são determinadas por acontecimentos; relatos de atos de natureza cívica ou política ou mesmo relatos de seres humanos quando estes dão visibilidade a acontecimentos vividos. Diferentemente, “o mais importante não é o tempo e o espaço da vida representada, mas é o exterior real no qual a representação de al-guém ou da vida de alguém é realizada atra-vés da narrativa verbal de um ato cívico ou político ou através do relato do self” (Bakhtin, 1981: 131). Este tipo de autobiografia é de uma época em que o privado não existia, tudo era público, nada era secreto, tudo era subme-

tido ao controle público e do estado e era ava-liado publicamente. Não havia diferença entre o ponto de vista biográfico e autobiográfico.

Na era Helênica e Romana, alguns re-tóricos puseram a questão: é permitido um relato do próprio eu? A resposta positiva diri-giu-se para a imagem que os gregos clássicos tinham da existência humana e das coisas e nesta não havia o conhecimento de uma reali-dade invisível, portanto, “a unidade da totali-dade externalizada do homem era de natureza pública” (Bakhtin, 1981: 135). Nas épocas seguintes, a imagem do homem foi distorcida pelo aumento de participação nas esferas mu-das e invisíveis da existência. E com elas veio a solidão. O pessoal e dividido ser humano perdeu a unidade e totalidade que tinha sido um produto de origem pública, tornou-se abs-trato e idealista. Um vasto número de novas esferas de consciência e de objetos apareceu na vida privada do indivíduo, esferas essas que, em geral, não eram tornadas públicas (a sexual e outras).

Nos dias atuais, portanto, num contex-to novo, as escritas personalizadas que refle-tem a influência do esquema platônico incor-poram um novo objetivo. Recentemente, o que obtemos no inventário de uma pessoa é a exposição dos seus acontecimentos, o registro dos seus sucessos, com um comentário auto-biográfico público. É a seqüência da obra própria pelo próprio que fornece o sólido su-porte para se compreender a passagem do tempo numa vida. A objetivação da narrativa autobiográfica dá-se a partir da seqüência crí-tica marcante na continuidade da vida relata-da. A consciência do eu nesse contexto é re-velada apenas para um círculo restrito de lei-tores (no nosso caso, a academia), a biografia é construída para eles, havendo aqui a noção de público, embora numa dimensão menor (Bakhtin, 1981: 139).

Desse diálogo, algumas respostas pro-visórias foram construídas para definir esta etapa da pesquisa. Entendemos que, na narra-tiva, a catarse pessoal é um fenômeno natu-ralmente humano, ou seja, dependendo da pessoa e do contexto, ele ocorre com maior ou menor exposição do eu. Esta não deve ser evi-tada, mas orientada definindo os seus contor-

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nos dentro do campo científico. Não significa sua castração, muito pelo contrário, abre e aponta perspectivas de construção de outros espaços para sua vazão (social, psicanalítico, autoconhecimento, entre outros). Dessa for-ma, nossa resposta sobre a continuidade ou não da narrativa caminhou na direção do que consideramos necessário para a explicitação do pensamento dos professores sobre a cons-trução do processo de identidade de modo a fornecer pistas significativas para a compre-ensão da cognição situada (Roth, 2004). Im-bricando o processo de construção das narra-tivas pessoais com os movimentos iniciais de (de)formação de olhares na investigação, de modo a construir um outro campo de signifi-cações, o científico, orientamos a memória das narrativas para preencher os espaços la-cunares necessários a esse campo.

Dar significado ao conteúdo discursivo no campo da ciência

Na perspectiva de Wenger (1998) de

que as comunidades de prática são caracteri-zadas como histórias partilhadas de aprendi-zagem em que construir uma identidade signi-fica negociar os significados da nossa experi-ência como membros de comunidades sociais, entendemos que falar de identidade em ter-mos sociais não é negar a individualidade, mas ver a individualidade como fazendo parte de práticas de comunidades específicas. Na vida do dia-a-dia, é difícil dizer com exatidão onde acaba a esfera individual e começa a co-letiva. As nossas práticas, linguagens, artefa-tos e pontos de vista refletem as nossas rela-ções sociais. Até os pensamentos mais priva-dos fazem usos de conceitos, imagens e pers-pectivas que compreendemos através da nossa participação em comunidades sociais. A iden-tidade na prática é definida socialmente, não só porque está reificada num discurso social do eu e num discurso de categorias sociais, mas também porque é produzida como uma experiência vivida de participação em comu-nidades específicas. Uma identidade é uma classe de acontecimentos de participação e de reificação através dos quais a nossa experiên-cia e a sua interpretação social se constroem

mutuamente. “Sabemos quem somos através do que é familiar, compreensível, usável e negociável; sabemos quem não somos pelo que é estranho, opaco, inutilizável e improdu-tivo” (Wenger, 1998: 153).

Numa primeira interpretação, a dialo-gicidade dos textos indica, de maneira global, que as histórias apresentam momentos por vezes relacionados aos espaços da historiogra-fia, do entrecruzamento cultural, quiçá da e-volução das civilizações. Encontramos tem-pos marcados pelas idéias, filosofias, políticas locais e globais.

Numa classificação tipológica, as nar-rativas neste trabalho aproximam-se do esbo-ço platônico, em que a exposição dos aconte-cimentos da vida aparece partida em épocas bem demarcadas por pontos de mudanças i-dentificadas por uma análise autobiográfica pública. Ou seja, não só encontramos episó-dios que indicam o que pensamos que somos ou dizemos acerca de nós, como também o que os outros pensam ou dizem que somos. Percebemos as esferas mudas e invisíveis da vida privada que, em geral, não são tornadas públicas, ao mesmo tempo em que observa-mos uma tentativa de recriar a totalidade e exterioridade da existência.

Para Wenger, à medida que crescemos através de uma sucessão de formas de partici-pação na sociedade, as nossas identidades formam trajetórias. Trajetória é um movimen-to contínuo em que se interpõem os aconteci-mentos próprios e os de conjunto, produzidos num campo de influências, o qual se delineia numa linha de coerência que liga o passado, o presente e o futuro. Para sua definição, esse autor parte da idéia de que a construção da identidade é um processo que se dá em con-textos sociais nos quais ela vai sendo definida pelas interações de múltiplas trajetórias con-vergentes e divergentes e nesse percurso a temporalidade é fundamental e muito mais complexa do que a simples noção linear de tempo. Para Wenger (1998: 155), as trajetó-rias podem ser classificadas em:

i) periféricas – caminhos que não levam à

participação total; ii) de entrada – início a novos percursos;

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iii) interiores – a evolução da prática continua através de novos acontecimentos, pedidos, invenções, novas gerações, criando ocasi-ões para renegociar a sua identidade e a dos outros;

iv) de fronteira – algumas trajetórias encon-tram o seu valor tecendo fronteiras em seus próprios percursos e ligando comu-nidades de prática;

v) de saída – conduzem para fora da comu-nidade;

vi) paradigmáticas – fornecidas aos novatos pelos pares mais experientes; a sua comunidade, a sua história e a sua evolução configuram as trajetórias que constroem. São testemunhas vivas do que é possível, do que é esperado e desejável.

Numa análise mais focada nos mo-

mentos de crise e de renascimento, nos pontos de viragem no curso da vida encontramos al-gumas trajetórias que, tendo em vista seu con-teúdo, poderiam significar momentos de risco para a evolução de uma identidade profissio-nal.

Em ambas as narrativas, a visão da passagem de uma fronteira para outra parece corroborar a tese rousseauniana de que a in-fância é para ser passada no seio familiar e que a escola constituir-se-ia num perigo para a libertação das crianças face às restrições das normas e das regras.

“Antes da obrigação da escola, sem pressas, num tempo de férias contínuas, assim se iam tecendo os dias nessa ou-tra escola de avós e de velhos, de mui-tas crianças e animais. A natureza ple-na onde, de pés nus sujos de terra e er-va, corria horta fora, abraçando árvores e sonhos, inventando vidas.” (Formado-ra A – grifo dela) “…ir para a escola significou, no pri-meiro momento, uma “intervenção pe-rigosa”, que punha em risco a relação familiar. Uma relação marcada por um sentimento de medo pelo afastamento das pessoas queridas. A imagem da es-

cola era angustiante.” (Formadora B – grifo dela)

Percebemos nas narrativas que as tra-

jetórias de entrada no universo da escola pe-lo papel de alunas deram-se tanto pela trans-formação da inclinação natural da infância de experimentar as coisas da vida contemplando a natureza de forma solitária como pela per-cepção de ruptura com os laços afetivos do convívio familiar.

Entretanto, ainda nessa trajetória, o papel da escola ganha contornos significati-vos. Na linha do pensamento de Dewey e Pi-aget sobre a importância que assume a escola na construção de um espaço em que as crian-ças possam desenvolver, ao seu ritmo, a sua aprendizagem, tem-se uma significação de-senvolvida a partir das correlações entre o papel da família e o da escola.

“Quando busco rememorar esta fase, duas imagens são fortes: a imagem da pessoa terna e maternal da minha pri-meira professora e de sua relação de presença com os seus alunos e a ima-gem do meu jogo de aluna-filha que impunha tacitamente regalias concedi-das pela professora para desempenhar o seu papel em algumas ocasiões, privi-legiadamente naquelas em que exercia controle, como, por exemplo, verificar as tarefas feitas pelos alunos (colegas da sala) passando visto em seus cadernos. Hoje, penso que essa explicação que construí muito mais tarde pode acober-tar outras razões de busca. Da família queria o limite e da escola, a liberda-de.” (Formadora B – grifo dela)

Em outra narrativa, o fato de a família

já ter significação sobre a aprendizagem faz com que a ressignificação se dê pela clarifi-cação da distinção dos objetivos entre a pri-meira escola (família) e a segunda escola (instituição escolar).

“Quando entrei para a escola na cidade, a aldeia ficou intermitente na minha vi-da, em que as férias recriavam todas as

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vivências anteriores. Passei a olhar à volta de outra maneira, a compreender um pouco mais os acontecimentos e a espantar-me por nunca ter notado antes certas ocorrências. Notei como as pes-soas pareciam precocemente envelheci-das, como as crianças estavam persis-tentemente com feridas nas pernas e nos braços, fruto de picadas de insetos, co-çadas e não desinfectadas. Incomodava-me o facto de as pessoas não dizerem bem as palavras, “mãos” eram trans-formadas em “mãs”, algumas termina-ções das palavras não existiam e havia frases e palavras que, por vezes, não en-tendia por estarem tão deturpadas como a pergunta “aonde vandas?” corruptela de “onde é que vocês vão?” Foi a cons-tatação de que afinal eu não aprendia tudo ali, havia a escola que me ensina-va melhor algumas coisas como a fala e a escrita.” (Formadora A – grifo dela)

Alguns acontecimentos das narrativas

apontam para a constituição da memória co-letiva e nesta evidenciam-se alguns aconte-cimentos que marcam épocas históricas da educação em vários contextos políticos, eco-nômicos e culturais, trazendo à tona o que Charlot (2005) chama de os universais das situações de ensino. Nos dois contextos, te-mos:

“A imagem é de escola “cinzenta” e castigadora, formadora de espíritos o-bedientes e sem opinião, modelo de uma época fascizante para quem a edu-cação era uma ameaça. Associo sempre medo ao dia-a-dia, da professora que podia bater, do teste que viria negativo, da matéria que não tinha compreendido, do exame que não me deixaria passar, do que dizer aos meus pais para não os magoar ou defraudar nas suas expecta-tivas.” (Formadora A – grifo dela) “Uma professora temida por todos pela sua relação distante e extremamente ri-gorosa com os alunos. Desta fase tenho poucas lembranças, mas quando busco

evocar, uma me ocorre sempre, que é a de uma professora gordinha, com cara de brava e com expressão tensa de quem está com medo. Lembro-me do dia em que ela bateu com a régua na minha carteira. Era costume fazer em si-tuações de desagrado, batendo, por ve-zes, na mão ou cabeça dos alunos. Não me recordo de sentir medo, muito pelo contrário, encontro, na escola, o senti-mento de indiferença na relação inter-pessoal, e este não me afetou, nem para calar, nem para bradar.” (Formadora B – grifo dela)

Para essas formadoras, a imagem de

uma escola fria e de uma professora hostil não teve força para configurar o que Wenger defi-ne como trajetórias de saídas. Ou seja, para conduzi-las para fora da comunidade escolar. Contrariamente, como vemos abaixo na narra-tiva da Formadora B, a sua ligação com a fi-gura materna e as práticas de representação de papéis sociais vivenciadas por ela na infância e apoiadas pelos familiares constituíram-se como trajetórias de fronteiras que acalenta-ram um desejo crescente pela participação na comunidade escolar, não no papel de aluna, mas sim no de professora.

“[...] elegi como brincadeiras preferi-das as de mãe e de professora [...] Ti-nha o maior prazer em cuidar da minha imagem pessoal ao encarnar a perso-nagem de professora e talvez essa in-fluência tenha vindo da minha mãe, que era uma mulher vaidosa e elegante (...) Por volta dos 10 anos, quando já me sentia envergonhada com os olhares dos outros e quando já não queria mais ser alvo das atenções, é que percebi que o que era no início uma representação, uma brincadeira, tinha se tornado um método de estudo, ou seja, já não con-seguia estudar se não fosse dessa for-ma, ensinando [...] Mais tarde, com 13 anos, essa forma foi transferida para o estudo em grupo. Assim, sempre que possível, eu estudava com os colegas

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dissertando sobre o que tínhamos a-prendido.” (Formadora B – grifo dela)

No caso da Formadora B, em que a

família e a escola constituem trajetórias de fronteira para a sua inclusão e pertencimento ao mundo intelectual e educacional, vemos que alguns acontecimentos promovidos pelos pais são potencializados pelas ações de alguns dos professores. Conforme excertos de sua narrativa, podemos dizer que essa amplifica-ção de ações tenha, inclusive, definido mais tarde a sua opção pela área Ciências Naturais.

“[...] professor de Ciências que conside-ro uma referência importante, por ter contribuído com a minha mudança na forma de conceber a metodologia de ensino. [...] uma professora de Biologia que [...] todos nós gostamos do seu mé-todo de aula. Além disso, admirávamos a sua competência intelectual. [...] pro-fessor de Química fantástico [...] muito respeitado pela comunidade escolar por sua competência. De suas característi-cas abstraí sua paixão pela Química (á-rea de conhecimento) e respeito e valo-rização pela profissão professor. [...] Foi a partir daí que comecei a traçar uma meta profissional: queria ser cien-tista. Nesse ponto, fui bastante estimu-lada pelo meu pai, que comprava para mim os Kits “Pequenos Cientistas” [...].” (Formadora B – grifo dela)

As narrativas autobiográficas trazem

em sua elaboração pessoal o sentido idiossin-crático das experiências de vida e fazem e-mergir os processos identitários da inserção dos sujeitos nos grupos sociais. As memórias-denúncias apontam a existência de tempos em que a escola se alinha aos preceitos de uma política ditatorial e reclamam por resistências.

“Houve, no entanto, um episódio que foi, talvez, o que mais contribuiu para uma viragem no modo como passei a encarar a minha relação com a vida, is-to é, intervindo mais nos acontecimen-tos do que esperando que acontecessem

para depois reagir. Estava no último ano do curso [secundário], conseguira ir a exame a todas as disciplinas com boas notas excepto a Físico-Química, porque as aulas eram de molde a que não con-seguíssemos acompanhar a matéria. [...] No dia da oral, lá estava ela, presidente de júri, imponente e de cara fechada. Senti um vómito a acompanhar o medo e olhei para as caras pálidas das outras alunas e sabia que eram o espelho da minha. A oral correu bem [...] No fim todos os que assistiam me deram os pa-rabéns, incluindo a minha professora de física do ano anterior. [...] Quando a pauta da oral saiu, à frente do meu no-me havia uma palavra escrita a verme-lho que eu não conseguia ler pela im-possibilidade que o meu cérebro estabe-lecia [...] eu tinha reprovado no exame. Olhei para a cara triste dos meus pais e a rapariga tímida que corava quando os professores se lhe dirigiam acabou ali. Corri em direcção à sala dos professo-res, e com o magote de colegas e fami-liares atrás, abri a porta, enfrentei a pro-fessora e perguntei aos gritos “Por que é que reprovei?” “Quais as questões a que não respondi?” “Exijo uma resposta!” [...] Talvez de todo o episódio o que mais me marcou foi a solidariedade de todas as pessoas presentes, a maior par-te eu desconhecia por serem familiares de alunas, oferecendo-se para testemu-nhas de um processo em tribunal. Está-vamos em 1973, vivíamos tempos de grande repressão, o meu pai era militar e desaconselhou a queixa. O sentimento de injustiça foi tão forte que a certeza da minha razão fez-me crescer e não me incomodar com a reprovação. [...] É provável que este acontecimento tivesse mudado o meu futuro, se, por acaso, se pode falar assim. [...] Foi um ano em que comecei a dar explicações de todas as matérias aos vizinhos, a preços bara-tíssimos, mas que me permitiram perce-ber o valor de ganhar o meu próprio dinheiro e constatar que gostava de ex-plicar os assuntos e de ver como aque-

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las crianças ultrapassavam as dificulda-des.” (Formadora A – grifo dela)

Esse trecho da narrativa, como diz

Larrosa (1999:15), indica que muitas vezes a educação é o lugar de realização do projeto que o educador tem sobre o educando, mas também é o lugar em que o educando resiste a este projeto, afirmando sua alteridade, a-firmando-se como alguém que não se deixa reduzir aos modos como ele o vê, como al-guém que não aceita a medida do seu saber, do seu poder.

Outros momentos das narrativas a-pontam para as trajetórias paradigmáticas (Wenger, 1998), nas quais elementos consti-tutivos da identidade profissional vão ga-nhando força e significado no contato com os membros mais experientes da comunidade.

No caso da Formadora A, vemos que a sua interação com o pensamento de autores, pelo ato da leitura, é o mote para a construção da sua identidade com o campo intelectual: “descobrir que os livros continuavam o meu mundo com o qual me relacionava imediata-mente foi outra conquista, abrindo-me novas perspectivas de viver, como se eu me desdo-brasse noutras pessoas”; e a envolve profun-da e empaticamente nessa esfera coletiva, dando-lhe o sentido de pertencimento a essa comunidade. Mais tarde, na entrada à Facul-dade, a evolução dessa prática (trajetórias interiores) se dá com o advento de novos a-contecimentos.

“A faculdade constituiu uma mudança total na minha vida. A autonomia, que já iniciara no serviço cívico, expandiu-se ao longo desses anos, [...]. A consci-ência social desenvolveu-se com as lei-turas de livros revolucionários, proibi-dos anteriormente (encontrei-me, por vezes, em círculos de amigos a discutir o materialismo dialéctico), com a parti-cipação em reuniões de alunos para se organizar a defesa de posições que se apresentariam nos órgãos de gestão da faculdade, com a identificação com movimentos, fosse de libertação de po-vos ou de defesa ambiental ou de ani-

mais em risco de extinção. Lutava-se muito, reivindicava-se ainda mais e a-prendia-se a argumentar nas múltiplas reuniões, organizadas como assembleias de debates organizados.” (Formadora A – grifo dela)

Concordamos com Chaves (2006:

166) que, como professoras:

“somos definitivamente marcadas pela instituição escola. Nela forjamos parte importante de nossa subjetividade e ali entramos em contato com modelos com base nos quais vamos instituir, criar, fundar nossa identidade profissional.”

Numa pesquisa comparativa sobre nar-

rativas autobiográficas de professores univer-sitários, Sousa (2006) verifica que quando os docentes narram suas histórias de formação, tal como essas nossas narrativas, elas estão articuladas à família, à escola, aos grupos de convívios e suas sínteses apresentam seleções, omissões, preferências de determinados as-pectos e que delas resultam uma série de questionamentos que vão fazendo ao longo de suas vidas.

Igualmente em nossas narrativas, para a fase de formação na Universidade foram deixadas poucas palavras, apenas para pontu-ar brevemente um período marcado por revo-luções pessoais, novas aprendizagens, opções temporárias e instáveis e perguntas que ainda permanecem, já que para elas não bastam ex-plicações do presente.

“Da época da Universidade a verdadei-ra revolução foi sair de casa, mudar de cidade e viver entre grupos bastante he-terogêneos. Esse foi o maior desafio. Das disciplinas lembro que a cada se-mestre fazia escolhas temporárias em busca de novas descobertas: Botânica, pelas aulas de laboratório; Zoologia, pe-los estudos de campo, especialmente as aulas de Biologia Marinha; Imunologia, pela perfeição metabólica; Ecologia, pe-las interações e conexões complexas… Das disciplinas da licenciatura não me

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lembro de nenhuma.” (Formadora B – grifo dela)

“As disciplinas consideradas pela maio-ria dos alunos como difíceis, como as matemáticas e as múltiplas Físicas e Químicas, constituíram desafios que ul-trapassei com gosto e boas notas. Isso levanta-me uma questão a que não con-sigo dar resposta: seriam os conheci-mentos base que já tinha adquirido an-tes, mesmo que não tivessem sido valo-rizados pelo sistema de avaliação do se-cundário, os responsáveis por esse su-cesso? Ou seria antes o sentir que aque-le era o curso com o qual me identifica-va, em que a natureza assumia um papel preponderante, trazida nas disciplinas de Zoologia, Botânica, Fisiologias, Eco-logia ou Antropologia, por exemplo, e, por isso, tudo era estudado com deter-minação e vontade de saber?” (Forma-dora A – grifo dela)

No entanto, para uma de nós “um a-contecimento trágico, que constituiu também um momento de viragem no (...) seu percurso, aparentemente, linear” colocou-a em contato com a sala de aula ainda durante sua forma-ção.

“Em Março, estávamos em 1978, houve um enorme incêndio e a faculdade ar-deu em parte. Foi um desnorte total para alunos e professores e foi urgente en-contrar um espaço onde se pudesse ter-minar o ano lectivo. Fomos colocados em instalações do ministério da educa-ção [...], edifício de escritórios, conver-tido à pressa para albergar estudantes e professores, habituados a anfiteatros amplos, laboratórios e espaço ao ar li-vre. Não me adaptei e a faculdade per-deu o encanto. Ao mesmo tempo, conti-nuava a dar explicações à vizinhança e soube através de um aluno que a escola estava a pedir um substituto de uma professora em licença de parto. E se eu tentasse? Tentei, fiquei não como subs-tituta, mas ocupando um horário legíti-

mo, completo com 5 turmas de 8º ano e 4 turmas de 9º.” (Formadora A – grifo dela)

A Formadora B começou sua carreira depois de licenciada, mas o fez dividindo es-paço com um estágio científico no laboratório de Liminologia na universidade. Para ela, que durante a infância brincou de ser professora e que idealizou ser cientista quando adulta, os dois mundos seguiam, nesse momento inicial, sem se constituírem em trajetórias de frontei-ra, ou seja, sem ligações entre as comunida-des de práticas. Assim, enquanto “o estágio não era muito atraente, pois tratava de taxo-nomia do zooplâncton. Era um trabalho can-sativo e muito isolado [...] as aulas… estas sim eram emocionantes. Cada dia uma des-coberta nova. Ao mesmo tempo em que des-cobria sobre os alunos, o funcionamento da escola, desvendava as minhas reações, minha maneira de ser... e também passei a ver o conteúdo de Ciências de um outro ângulo”. No entanto, um episódio de aula constituiu-se num evento marcante que a colocou para den-tro da profissão de forma definitiva.

“Com aquela turma da 7ª série sentia-me muito insegura e a cada dia testava diferentes manejos em sala de aula. Como é de praxe numa escola particu-lar, as regras são criadas pela direção e a nós só resta cumpri-las. Estávamos numa época em que a “chamada” (con-trole de presença dos alunos) não deve-ria ser feita no início da aula. Um belo dia, quando entrei na sala da 7ª série, os alunos estavam extremamente agitados, então, resolvi começar pela chamada com o intuito de dar-lhes um tempo pa-ra se acomodarem. O coordenador, que costumava fazer a ronda pelo corredor olhando através das janelas, me viu de-sobedecendo a uma ordem sua. Entrou abrupta e furiosamente na sala e me re-preendeu na frente de todos. Não esque-ço o olhar dos meus alunos assistindo publicamente à minha derrota como professora. A situação naquele exato momento se constituiu como vida ou

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morte naquela profissão... Desafiei o coordenador: olhei para ele, olhei para os alunos, empinei o tronco e continuei a chamada em voz bem alta. Esta foi a virada! A partir desse dia, os alunos passaram a me ver de outra forma. Me-lhor: começaram a prestar atenção em mim. A partir desse momento, senti que tinha entrado efetivamente na profissão pela porta da escola.” (Formadora B – grifo dela)

Muitos foram os momentos charnei-

ras, descritos nas duas narrativas, mas os a-pontados acima se constituem em divisor de águas para quem faz uma formação híbrida. Ou seja, o percurso da formação de professo-res na área de Ciências Naturais, em geral, é marcado pela sedução inicial dos futuros pro-fessores com os discursos e as práticas profis-sionais das culturas científicas específicas em detrimento dos das ciências humanas.

Só muito mais tarde, quase ao final do curso, ou mesmo no início da carreira, se de-frontam com a necessidade de se posiciona-rem em relação aos saberes da docência e op-tarem pelo seu exercício. A partir desse mo-mento, suas narrativas são marcadas por acon-tecimentos que levam a trajetórias interiores, determinando suas escolhas ao longo do ca-minho para o desenvolvimento profissional.

“Este foi outro salto na minha autono-mia, agora com plena independência fi-nanceira, diploma académico e estatuto profissional completo. A novidade foi integrar o conselho directivo da escola e passar a analisá-la do lado de quem manda, de quem se preocupa com as regras e que tem de, além de dar o e-xemplo, castigar quem as não cumpre. Missão pouco compatível com os meus 25 anos, de aparência de muito menos, para ter credibilidade. Mas foi um ano bem sucedido, cheio de peripécias e al-gumas incompatibilidades com interes-ses instalados, como o de ter de proibir antigos professores de continuarem a ir à escola tirar fotocópias sem pagar, ou de fechar material de limpeza à chave

para que um antigo funcionário não os fizesse desaparecer para uso próprio. Estas decisões foram tomadas sempre em equipa de gestão, mas como o presi-dente era da terra, um dos elementos era provisório e eu era a efectiva e, portan-to, com responsabilidade profissional e, ainda por cima, de Lisboa, era o alvo da inimizade. Mas, genericamente, fizemos uma boa gestão e eu aprendi imenso so-bre esse outro lado da profissão de pro-fessor.” (Formadora A – grifo dela)

Os primeiros estudos sobre o ciclo de vida ou desenvolvimento profissional dos professores juntamente com o interesse pelo estudo biográfico avançam a partir da década de oitenta, indicando que a vida profissional dos professores é marcada por fases e ciclos. Huberman (1995) delimitou uma série de “se-qüências ou de maxiciclos” que atravessam as carreiras das pessoas dentro de uma mesma profissão. No início da carreira docente, por exemplo, tal como em nossas narrativas, veri-ficamos a fase de “exploração”, marcada por escolhas provisórias e pela experimentação de papéis, e a fase de “estabilização”, assinalada pelo compromisso e pela aquisição de papéis e responsabilidades de maior importância ou prestígio. A evolução de uma fase a outra só foi possível pelo fato de a fase de exploração ter sido bem sucedida, tal como nos ocorreu.

“Foi um deslumbramento, foi o encon-trar do meu palco, uma sala de aula funcionou como a oportunidade de ge-rir as matérias com as quais me identi-ficava bem, de poder explicar os assun-tos que tinha mesmo acabado de estu-dar, de partilhar ideias e experiências, de cativar, de seduzir! Não sei de que gostava mais, se dos alunos que mostra-vam que gostavam de mim, se de expli-car os assuntos, se de preparar as aulas e estudar as matérias, se falar da escola em casa.” (Formadora A – grifo dela)

“Essa forma de entrar na profissão acei-tando o desafio e saboreando resultados conquistados foi extremamente impor-

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tante para delinear minha forma de estar na profissão [...]. Pouco a pouco o re-torno do aluno acarinhava a auto-estima, o autocontrole e autoconceito pessoal/profissional. [...] Os alunos, em sua maioria, me consideravam como uma professora competente, uma pessoa compreensiva e envolvente que os esti-mulava para o estudo…” (Formadora B – grifo dela)

Para Huberman (1995: 40) a fase de

“estabilização” na profissão é marcada pelas escolhas subjetivas e pela admissão oficial ao sistema de ensino. “Num dado momento, as pessoas passam a ser professor, quer aos seus olhos, quer aos olhos dos outros (...)”. E a op-ção por permanecer na profissão requer esco-lha por uma identidade profissional e, ao mesmo tempo, renúncia ao apelo constante de outras orientações. Os estudos indicam que essa fase é acompanhada por um “sentimento de competência pedagógica crescente”, como também observamos em nossas narrativas.

Para esse autor, os percursos individu-ais do desenvolvimento profissional na sua fase subseqüente (fase de “diversificação”) parecem divergir. No entanto, em nossas nar-rativas, a entrada na pós-graduação direciona para a consolidação pedagógica e inclusão da dimensão da pesquisa para ajudar nos questi-onamentos sobre seus saberes e suas práticas na docência.

“O meu melhor ganho com o mestrado foi ter tempo para estudar e pensar [...]. Os grandes pedagogos, as reflexões so-bre o significado das estratégias de en-sino, múltiplas experiências pedagógi-cas descritas e analisadas, em que a Psi-cologia e a Sociologia assumiam um ca-rácter preponderante, estava tudo lá. As aulas, nem sempre interessantes, pontu-almente desafiadoras, iam abrindo al-gumas perspectivas. Mas paralelamente com o tempo, outra dimensão que so-bressai é a investigação sobre a esco-la.” (Formadora A – grifo dela)

“O que eu buscava era o encontro de novidades para atuar no ensino [...]. O mestrado foi uma fase de identificação com o discurso na área de educação.” (Formadora A – grifo dela)

Um patamar da consolidação profis-sional se deu nas primeiras experiências como formadoras de professores. Nas narrativas, evidencia-se que a partir desse momento em suas carreiras a identificação social com a profissão de professor assume sínteses pesso-ais. Parafraseando-as, tem-se para a Forma-dora A que entrar como professora para a fa-culdade a fez ver a escola e o seu próprio de-senvolvimento profissional de uma nova ma-neira. Dos anos como docente universitária não encontrou um só ano que não tenha sido rico em termos de experiências profissionais. Desde os primeiros anos, a intensidade das trocas intelectuais e a azáfama que a relação professor-aprendizagem-aluno implica man-têm-se. Nesse percurso, ganhou a serenidade e os conhecimentos para tirar partido de todas as situações, mesmo as mais adversas. Do mesmo modo, o desempenho de tarefas varia-das ligadas à vida acadêmica, como a partici-pação em diversos órgãos de gestão, a tem ajudado a criar uma vinculação indissociável com a profissão. Ao longo do tempo, nas múl-tiplas entradas que foi fazendo, como aluna, como professora, como investigadora e como formadora de professores, foi criando laços com a escola. Sempre lá esteve. Aprendeu a olhá-la de diferentes maneiras e o que procu-rava sem perder nenhuma perspectiva de vis-ta, pois acredita que só assim se cria a verda-deira empatia com os outros, com as situações e os problemas. E que, nos momentos de des-crédito, é preciso encontrar a motivação e as razões para se continuar. E recomeçar sempre, mesmo que seja noutro lugar.

Para a Formadora B a experiência na disciplina de Prática de Ensino em Biologia e Prática de Ensino em Ciências revelou-se marcante para o seu desenvolvimento profis-sional. Acompanhar as aulas dos seus alunos no estágio lhe permitiu balizar suas compe-tências e habilidades no ensino. A entrada no mundo da pesquisa por meio de ações de in-

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tervenção na própria prática docente ajudou-a a refletir sobre o próprio processo de aprendi-zagem e, ao mesmo tempo, a utilizar melhor as ferramentas teórico-metodológicas para analisar e compreender a nuances dos proces-sos de ensino e de aprendizagem. Esses pro-cessos possibilitaram, ao longo do seu desen-volvimento profissional, tornar consciente sua ação de ensino, ajustando aos aspectos cogni-tivos do processo os elementos subjetivos considerados preciosos, como por exemplo, a dose de intuição que orienta a sua prática pe-dagógica. Uma síntese

Contrariamente a Clarice Lispector, o

processo de construção de nossas narrativas e sua posterior análise nos permitiu ressignifi-car e reinterpretar os olhares que temos de nós mesmas e de nossa identidade como professo-ras, pondo em evidência outras emoções e razões as quais antes não tínhamos percebido.

Neste percurso estivemos refazendo a nossa existência, pois como diz Paulo Freire (1987: 78): “Existir humanamente é pronun-ciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pro-nunciado, por sua vez, volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar”. Nos diferentes patamares da in-terpretação narrativa, as vidas vão-se recons-truindo em círculos cada vez mais complexos, fechando tempos e abrindo novas perspecti-vas. Onde ficam as pessoas e as suas identi-dades, despidas e revestidas de novas cama-das? Onde ficamos nós, narradoras e ouvin-tes? Nos olhares externos, públicos, ou no cir-cuito interno, privado, que criamos para nós próprias, pronunciando-nos sucessivamente? Talvez este duplo olhar permita uma melhor compreensão do significado do que realiza-mos, constituindo-se a narrativa, a que aqui deixamos, como a mediação de um e de outro percurso, abrindo caminho para uma identi-dade profissional reconhecida e assumida.

Agradecimento

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Membro-fantasma: o que os olhos não vêem, o cérebro sente

Phantom-limb: what the eyes don’t see, the brain feels

Alessandra de Oliveira Demidoff , a, Fernanda Gallindo Pachecoa e Alfred Sholl-Franco , b

aFaculdade de Medicina, Centro de Ciências da Saúde (CCS), Universidade Federal do Rio de Ja-neiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; bPrograma de Neurobiologia, Instituto de Bio-

física Carlos Chagas Filho (IBCCF), Centro de Ciências da Saúde, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo Os estudos sobre membro-fantasma se iniciaram a partir de relatos de pessoas que sofreram amputa-ção de algum membro, lesão de plexo braquial ou até mesmo em pacientes tetraplégicos que diziam sentir sensações da presença do membro perdido ou inativo, as quais muitas vezes eram dolorosas. Durante muito tempo, acreditava-se que a origem da sensação fantasma era psíquica, no entanto, sabe-se hoje que tal fenômeno está relacionado também com o fisiológico, a partir da reorganização corti-cal, que consiste em alterações estruturais na representação topográfica dos mapas corticais. O objeti-vo deste trabalho é abordar os diversos fatores que ocasionam a sensação de membro fantasma, assim como seus principais sintomas além de apresentar experiências já realizadas em indivíduos portadores deste fenômeno. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 234-239. Palavras-chave: membro-fantasma; dor fantasma; imagem corporal; homúnculo de Penfield; reorganização funcional cortical. Abstract The researches about phantom limb begun with relates of people that suffered limb amputation or brachial plexus avulsion, and even in tetraplegic subjects that related the feeling of the lost or inactive limb, and many times these feelings were painful. During many time, we believed that the cause of the phantom limb feeling was psychic, but nowadays we know that this phenomenon is related to a physiological cause as well, whit the cortical reorganization, that consist in structural modifications in topographic representation of the cortical maps. The aim of this work is to point the different fac-tors that cause the phantom limb feeling and the principal symptoms of this phenomenon, as well as show experiences already develop in subjects that present this phenomenon. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 234-239.

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 15/10/2007 | Acei to em 20/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Divulgação Científica

– A.O. Demidoff é Monitoras de Neurofisiologia, Programa de Neurobiologia (IBCCF, UFRJ) e Graduanda do Curso de Fisioterapia, Faculdade de Medicina (UFRJ). E-mail para correspondência: [email protected]; F.G. Pacheco é Monitora de Neurofisiologia, Programa de Neurobiologia (IBCCF, UFRJ) e Graduanda do Curso de Fisioterapia, Faculdade de Medicina (UFRJ). E-mail para correspondência: [email protected]; A. Sholl-Franco é Biólogo (FAMATh), Especialista em Neurobiologia (UFF), Mestre e Doutor em Ciências (UFRJ). Atua como Professor (IBCCF, UFRJ), Membro Efetivo do Programa Avançado de Neurociência (PAN; UFRJ) e Ori-entou este trabalho. Endereço para correspondência: Sala G2-032, Bloco G, CCS, Programa de Neurobiologia, IBCCF, UFRJ. Av. Brigadeiro Trompowiski S/N, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21.941-590, Brasil. Telefone: +55 (21) 2562-6562. E-mail para correspondência: [email protected].

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Key Words: phantom limb; phantom pain; corporal image; Penfield’s homunculus; cortical functional reorganization.

Introdução

Pode-se definir como membro fantas-ma a experiência de possuir um membro au-sente que se comporta similarmente ao mem-bro real, assim como sensações de membro fantasma a vários tipos de sensações referidas ao membro ausente (Rohlfs e Zazá, 2000). A sensação da presença do membro ou do órgão após a sua extirpação é descrita por quase to-dos os doentes que sofreram amputação e muitas vezes vem associada a dor que varia em intensidade e duração de caso para caso.

Muitos indivíduos afirmam que o fan-tasma se manifesta de forma rígida e que, em muitos casos, estão na posição em que perde-ram o membro. Além disso, relatam que quando o membro se movimenta em direção a um objeto, o fantasma penetra neste objeto, podendo também atravessar o próprio corpo do paciente. Um outro relato consiste no fato de que, muitas vezes, uma parte do membro amputado desaparece, permanecendo apenas, a extremidade distal do mesmo (Schilder, 1989).

A sensação de ter um membro fantas-ma durante muito tempo despertou em muitos o medo da loucura, sendo motivo de segredo e até mesmo vergonha. Muitos indivíduos omi-tiam dos médicos a sensação de ter um mem-bro fantasma, devido ao receio de serem con-siderados insanos, entretanto, com o passar do tempo, as hipóteses psicológicas foram ce-dendo lugar para as hipóteses fisiológicas.

A sensação fantasma pode ser com-preendida como uma superposição cortical de áreas vizinhas, que pode ocorrer, por exem-plo, pela invasão do território representativo da face sobre o território da mão, ou até mes-mo pelo desmascarar de sinapses silenciosas. Variações de membro-fantasma

A sensação de membro fantasma pode se manifestar nos indivíduos em diferentes situações, como por exemplo: amputação de

algum membro, em casos de aferição de plexo braquial, e, até mesmo em situações de tetra-plegia (Conceição e Gimenes, 2004). Segun-do Ramachadran e Blakeslee (2002) não são apenas pernas e braços fantasmas, há muitos casos de seios fantasmas em muitas pacientes que sofreram uma mastectomia radical (reti-rada da mama). Um outro registro foi um caso de apêndice fantasma onde o paciente se recu-sava a acreditar que o cirurgião o tinha retira-do devido às dores que persistiam.

Sabendo-se que o fenômeno da sensa-ção fantasma pode se manifestar em variadas circunstâncias, as situações mais comuns se-rão descritas mais detalhadamente, juntamen-te com algumas pesquisas realizadas em paci-entes que possuem a sensação fantasma. Sintomas

A sensação de ter um membro-fantasma é muito real. Muitos indivíduos rela-tam que, logo que perderam a perna, sentiram o impulso de sair da cama e andar, e acaba-ram caindo, outras pessoas com mãos fantas-mas já tentaram, até mesmo, atender o telefo-ne. Esses fatos são conseqüências da vívida sensação de um membro fantasma.

Dentre os sintomas descritos por paci-entes com sensação de membro fantasma, os que se apresentam com maior freqüência são: a dor “fantasma”; dormência; queimação; câimbra; pontadas; ilusão vívida do movimen-to do membro fantasma, ou até mesmo, ape-nas a sensação de sua existência. Em casos de lesão do plexo braquial, são relatados tam-bém; estiramento da mão inteira que irradia para o cotovelo; constrição do pulso; espas-mos da mão e descargas elétricas na mão e cotovelo (Giraux e Sirigu, 2003).

Uma outra sensação de membro fan-tasma já observada consiste no desapare-cimento de partes do membro, permanecendo apenas, a extremidade distal do membro, o que pode ser explicado com base no fato de que o modelo postural do corpo se desenvolve

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especialmente em contato com o mundo ex-terno. Sendo assim, as extremidades corporais que mantêm um contato mais estreito e varia-do com a realidade tendem a ser mais presen-te que as demais (Schilder, 1989). Além dis-so, pode ser observado o fenômeno de dupli-cação de membros, caso dificilmente encon-trado, no qual pacientes relatam ter a vivida sensação da presença de outros dois membros, paralelamente com seus membros reais (Conceição e Gimenes, 2004) O que é a dor fantasma?

A dor fantasma é uma sensação dolo-rosa referente ao membro (ou parte dele) per-dido que pode se apresentar de diversas for-mas tais como ardor, aperto, compressão ou até mesmo uma dor intensa e freqüente. A proporção relativa dos amputados em grupos “com dores crônicas” e “sem dores crônicas” varia de um estudo para o outro, dependendo da definição que se dá às palavras “crônicas” e “queixa”, sendo então esta dor relatada por 2 % dos pacientes, número que em outras po-de variar em até 97 %. A dor normalmente está presente na primeira semana após ampu-tação, mas ela pode aparecer após meses ou até vários anos, estando localizada principal-mente na parte distal do membro fantasma. A duração da dor fantasma varia de acordo com cada indivíduo, entretanto a dor severa persis-te em apenas uma pequena fração dos ampu-tados, na ordem de 5-10 % (Rohlfs e Zazá, 2000).

Muitos estímulos internos e externos modulam a dor fantasma, dentre os fatores relatados pelos amputados que modificam a experiência dolorosa estão os fatores agravan-tes da dor, os quais são a atenção, emoção, toque no coto ou pressão, mudança de tempe-ratura, reflexos autônomos, dor de outra ori-gem, colocação de uma prótese. E ainda, os fatores que aliviam a dor, que são o descanso, distração, movimentos do coto, uso de uma prótese, elevação do coto, percussão ou mas-sagem no coto. Isto prova que a experiência de dor fantasma é um resultado não de um único evento, mas da interação de vários efei-tos neuronais (Rohlfs e Zazá, 2000).

Quando ocorre a desaferenciação (perda da inervação sensorial de uma região) ou a amputação de um membro as informa-ções sensoriais periféricas se tornam inteira-mente ausentes, fazendo com que neurônios no sistema nervoso central que até então rece-biam informações daquela parte do corpo se tornem anormalmente hiperativos. Na dor do membro fantasma, a ausência dessas informa-ções sensoriais faz com que neurônios nas vias nociceptivas se tornem excessivamente ativos. A superposição extensa de representa-ções corticais que, normalmente estão separa-das se relacionam com a intensidade da dor do membro, ou seja, a reorganização cortical maciça pode aumentar esse fator. Brugger e colaboradores (2000) apresentaram importan-tes evidências de que o crescimento pós-lesão e o novo padrão de conexões estabelecidas por neurônios no cérebro de amputados po-dem ser possível causa do problema.

Psíquico versus fisiológico

Durante milênios acreditava-se que as sensações em partes ausentes do corpo eram de origem psíquica, entretanto, a partir deste século, as explicações psíquicas foram ceden-do lugar às explicações fisiológicas.

Grande parte de nossas informações sensoriais está relacionada com áreas especí-ficas do córtex pós-central, de modo que per-mitem a construção de mapas sensorial, des-tacando-se aqui o mapa somato-sensorial pre-sente no giro pós-central (Schilder, 1989). Como resultado, cada indivíduo tem uma i-magem interna que é representativa do pró-prio ser físico, sendo esta conhecida como “imagem corporal”.

A imagem corporal é construída de acordo com as percepções, idéias e emoções sobre o corpo e suas experiências, podendo ser, constantemente, mudada. Sendo assim, o fantasma de uma pessoa amputada seria a rea-tivação de um padrão perceptivo dado pelas forças emocionais. Está claro que o quadro final de um fantasma depende grandemente de fatores emocionais e da situação de vida do indivíduo. Depois da amputação, o indivíduo sofre um grande impacto psicológico e vários

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distúrbios emocionais surgem na adaptação física e social, o que lhe faz enfrentar uma nova situação, mas como reluta em aceitá-la, acaba tentando, inconscientemente, manter a integridade de seu corpo (Schilder, 1989).

Desse modo, o membro-fantasma po-de ser entendido como a interação entre o que se detecta ao nível periférico (corpo) e o que se integra ao nível central (mente), sendo cri-ada então, a aparência final do corpo no sis-tema nervoso. Como o ser humano está acos-tumado a ter um corpo por completo, o fan-tasma acaba sendo a expressão de uma difi-culdade de adaptação a um defeito súbito de uma parte periférica importante do corpo. A-lém desse fator, o córtex cerebral, que possui um mapa sensorial das partes do corpo, ainda possui uma área de representação da região amputada, o que dificulta o cessar das sensa-ções corporais. Assim, as sensações de mem-bro fantasma são caracterizadas por fatores psíquicos e fisiológicos, que agem, conjunta-mente para expressar tal fator. Arrumando a bagunça: o fenômeno de re-organização funcional do córtex cerebral

As áreas de representação cortical, de-nominadas mapas corticais (e.g. homúnculo de Penfield) podem ser modificadas através da plasticidade neural a partir de alterações estruturais (adaptativas) por estímulos senso-riais, experiência, aprendizado, e após lesões cerebrais (Lundy-Ekman, 2004). Assim, em indivíduos que sofreram amputação ou lesão do plexo braquial é que podemos observar alterações sinápticas que podem explicar o proceso de fortalecimento (desinibição) de sinapses anteriormente silenciosas. No siste-ma nervoso normal, muitas sinapses parecem não ser usadas, a não ser que a lesão de vias acarrete um maior uso das sinapses até então silenciosas (Farnè et al., 2002).

Estudo de casos

A organização cortical é alterada após alguma perda sensorial, sendo assim, áreas que antes eram ativadas pelo membro ampu-tado passam a ser invadidas por neurônios de

áreas não alteradas cujas representações te-nham localizações próximas no córtex. Na amputação de mãos a área da face “invade” a área da mão, consistente com os relatos de estimulação tátil da face induzindo sensações de mão fantasma em amputados. O sistema motor mostra, portanto uma capacidade subs-tancial de plasticidade (Farnè et al., 2002).

Pacientes que tiveram seus membros superiores transplantados após uma amputa-ção possibilitaram o estudo de reversibilidade da organização cerebral após lesão periférica, utilizando-se de análises de ativações de M1 antes e após o transplante, observando suas evoluções ao longo do tempo. Em um estudo (Giraux et al., 2001) os resultados mostram que as mãos transplantadas são ativadas e re-conhecidas pelo córtex sensório-motor, sendo que as novas entradas periféricas permitiram uma remodelagem global do mapa cortical das extremidades e reverteram à reorganiza-ção induzida pela amputação. As representa-ções de mão e braço tendem a retornar a seus locais originais; este estudo tenta explicar es-sa reversibilidade cortical dizendo que em macacos com segmentos amputados, moto-neurônios eferentes rompidos preservam sua eficácia funcional direcionando-se para novos músculos (Farnè et al., 2002). Como os neu-rônios eferentes e aferentes da via central so-brevivem após serem cortados, o circuito sen-sório motor pode estar funcionalmente pronto após o transplante, podendo explicar as mu-danças na atividade cortical poucos meses após o transplante de membro.

Em um outro caso, descrito por Con-ceição e Gimenes (2004), um paciente tetra-plégico referia ter uma vívida sensação de du-plicação de membros. Dizia possuir um par de mãos que se situavam paralelamente ás mãos normais e duas pernas igualmente situadas paralelamente ás pernas reais. O paciente também referia que o par de braços cruzava em cima do peito e lhe causavam dificuldades respiratórias. A pesquisa realizada, neste caso, utilizou a técnica de biofeedback, que é usada na aprendizagem de controle voluntário de respostas fisiológicas específicas. No fim do tratamento o paciente apresentou como resul-tado a eliminação total da queixa, resultando

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na recuperação da capacidade motora funcio-nal.

Uma outra maneira de encontrarmos o membro fantasma é através da lesão de plexo braquial, onde o paciente parece sofrer com a sensação do membro perdido assim como a dor a ele relacionada, mesmo não havendo a perda física do membro (amputação). Giraux e Sirigu (2003) mostraram que em pacientes com lesão de plexo braquial onde eram apli-cados testes com exposição a movimentos virtuais do membro verificou-se que há indu-ção de mudanças plásticas na representação cortical do membro danificado e que esta plasticidade estava relacionada a mudanças na sensação de dor fantasma. A gravação dos movimentos da mão normal que eram refleti-dos por um espelho dava ao paciente a ilusão de que quando ele realizava determinado tipo de movimento era o seu membro afetado que estava realizando, sendo ele instruído a mexer com o membro fantasma ao olhar para o espe-lho. Foi observada uma melhora significante na avaliação da atividade do córtex entre o pré e pós-treinamento assim com a diminui-ção da dor para esses pacientes sendo que dos 3 avaliados 2 reduziram sua medicações no final da pesquisa graças à diminuição da dor.

Considerações finais

Apesar de não se saber ao certo a ori-gem da sensação do membro fantasma, sabe-se que esta é baseada tanto em fatores psíqui-cos como em fatores fisiológicos. Sabe-se também que ainda não existe um tratamento específico para tal fenômeno. Entretanto, e-xistem terapias e medicamentos que são utili-zados para a redução da dor, sem contudo te-rem se mostrado eficazes para a cura da dor fantasma e de suas sensações. Desse modo, como não existe, ainda, uma cura para o fas-cinante fenômeno das sensações fantasmas, muitos indivíduos precisam se adaptar com essa situação, como descrito no relato:

“Hoje sou altamente conformista de que sou amputado e vivo bem como estou. Porém, como vivi 34 anos com a perna e há cinco anos e meio sem a perna, em

todos os meus sonhos à noite, eu tenho a perna. O cérebro, o inconsciente ainda mantém a memória anterior. Hoje eu sou um grande jogador de tênis nos meus sonhos, coisa que eu não era an-tes. É muito comum eu sonhar com uma partida inteira, desde o primeiro ponto até o final, ganhando ou perdendo. A-cordo suado e feliz por ter jogado uma partida de tênis, com a perna que eu não tenho.” (Disponível no endereço eletrô-nico: http://www.amputadosvencedores. com.br/fenomeno_membro_fantasma.htm).

Sendo assim, este trabalho propôs-se a

realizar uma breve revisão da literatura, de forma a identificar as informações mais obje-tivas e acuradas a respeito da sensação do membro fantasma, tema de extrema impor-tância e ainda pouco explorado nos ambientes acadêmicos e clínicos de nosso país. Referências bibliográficas Brugger, P.; Kollias, S.S.; Müri, R.M.; Creli-er, G.; Hepp-Reymond, M.C. e Regard, M. (2000). Beyond re-membering: phantom sen-sations of congenitally absent limbs. Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A.. 23, 6167-6172. Conceição, M.I.G. e Gimenes, L.S. (2004). Uso de biofeedback em paciente tetraplégica com sensação de membro fantasma. Interação em Psicologia, 8 (1), 123-128. Disponível no endereço eletrônico: http://calvados.c3sl.ufpr. br/ojs2/index.php/psicologia/article/viewFile/3246/2606. Farne, A.; Giraux, P.; Roy AC.; Dubernard JM e Sirigu A. (2002). Face or hand, not both: perceptual correlates of correlates of reaffer-entation in a former amputee. Cur. Biol., 12, 1342-1346. Giraux, P.; Sirigu, A.; Schneider F. e Duber-nard JM (2001). Cortical reornization in mo-tor córtex after graft of both hands. Nat. Neu-rosci., 4(7), 691-692. Giraux, P. e Sirigu, A. (2003). Ilusory move-ments of the paralyzed limb restore motor córtex activity. Lyon: Institut des Sciences Cognitives, CNRS.

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Repensando a função do manicômio na sociedade

Reflexions about the role of lunatic asylum in the society

Maurício Aranha

Núcleo de Psicologia e Comportamento, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

Clínica em movimento: por uma sociedade sem manicômio (2003). Ana Maria Lobos-que. Editora Garamond, ISBN 85-86435-92-9, 200 págs. Palavras-chave: filosofia da ciência; saúde mental, psiquiatria.

Este é um livro que desde o título

mostra seu compromisso abrangente com a análise da alma na luta revolucionária dos profissionais que a praticam pelo viés do ideal antimanicomial.

O livro propõe novos modelos para o exercício da clínica psiquiátrica e, ao mesmo tempo, instrumentaliza idéias para um projeto de sociedade mais humana. Esta mudança de paradigma alavanca a crença num projeto te-rapêutico para a loucura, mostrando a impos-sibilidade de reconhecimento desta em sua singularidade e diferença. A obra evidencia a vocação originariamente totali-tária dos hos-pitais psiquiátricos, o que demonstra ser o tra-tamento da loucura permeado de uma coletiva vontade de poder que captura e exclui a lou-cura do espaço político da cidadania. A abor-dagem, tão bem encadeada tem por fim o de-sencadeamento de um movimento que impul-siona a abordagem clínica a um exercício de autonomia e liberdade das pessoas.

A obra leva ao questionamento do pa-

pel da psicanálise no contexto da loucura ten-do em vista que nem mesmo ela, que tanto prometera reconhece no delírio uma tentativa de cura e re-organização do equilíbrio psíqui-co. Mesmo a psicanálise se voltou para a normatização da loucura oferecendo como modelo estruturante a mítica edipiana. Na edi-ficação do Instituto da Lei normativa à loucu-ra, a família passa a representar a moral que deve ser imposta às manifestações psicóticas, como se a cura aí se encontrasse. Portanto, o grande destaque do texto é que sua aborda-gem parte do sofrimento humano para a ele retomar como compreensão que não se furta ao embate diário com a miséria humana. Um “movimento” que é também comprometimen-to.

Este livro se debruça sobre a filosofia de Nietzsche para propor uma transvalori-zação da ética e da política, com a finalidade de reconhecer não apenas a positividade da loucura como experiência, mas também de que maneira ela pode ser um remodelador de

Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 240-241 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmet ido em 30/10/2007 | Acei to em 20/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publ icado on l ine em 03 de dezembro de 2007

Resenha

– M. Aranha é Médico (UFJF), Especialista em Neurociência e Saúde Mental (Barcelona), Neurolingüística (IBMR), Psicologia Analítica, Psicopedagogia Institucional e Clínica, Terapia Holística e Metodologia dos Processos de Aprendizagem. Atua como Coordenador do Núcleo de Psicologia e Comportamento do Instituto de Ciências Cog-nitivas (ICC). E-mail para correspondência: [email protected].

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nossa cultura. O sentido político que advém da desospitalização tem por missão o enfren-tamento de modelos lucrativo economicamen-te.

A obra de Ana Marta Lobosque lança mão de outros autores contemporâneos como Foucault, Deleuze e Guattari, para esboçar a desconstrução dos conceitos de lei, desejo e culpa dominantes no Ocidente. Preocupa-se em revisar as estruturas que sustentam o mo-delo especulativo-científico, confessional-analítico, singular-coletivo, autonômico-normatizado para se dar a devida dimensão ao texto da autora e a sua proposta de novas prá-ticas de convívio com a loucura. Assim, busca romper definitivamente com as Instituições manicomiais como forma de resgate a digni-dade humana prolatada, até mesmo, pela Constituição.

Na parte I do livro, "Clínica em Mo-vimento: o cotidiano de um serviço substituti-vo de saúde mental", a autora expõe sua posi-ção ao abordar o modelo asilar e o racional no contexto de uma sociedade global. Demonstra a desigualdade e preconceito que permeiam o tratamento do portador de transtorno mental. Isso significa que para que haja uma nova contextualização do tratamento, haverá a ne-cessidade de uma mudança estrutural em to-dos os setores que se voltam para a aborda-gem da saúde mental. Indo desde a capacita-ção técnica até revisões conceituais de grande complexidade. Mas o foco da autora é a clíni-ca da saúde mental e é nela que centra suas reflexões. Por assim ser, questiona a noção habitual de clínica, que tem servido mais aos profissionais que aos pacientes.

Ana Maria Lobosque critica os profis-sionais da saúde mental por transformarem suas abordagens e set terapêuticos em lugares

que tem por fim acolher o suposto saber indi-vidualista. Negando a interdisciplinaridade, a singularidade, a autonomia e a cidadania do portador de sofrimento mental. Incita a novas prática que contemple uma forma de supera-ção não só autocrítica, mas também implicada nas questões de políticas públicas. A autora convida à uma reflexão sobre a respeitabili-dade às diferenças que deve permear o conví-vio entre os operadores da saúde mental e sua clientela. Na busca de uma vivência conjunta, uma aposta no encontro de um espaço coleti-vizado, respeitador e acolhedor ao “diferente” e suas necessidades.

Na parte II, a autora fala da influência sofrida no contato com os textos de Freud, da sua relação com a psicanálise, com a saúde mental e suas práticas. Expõe as contribuições dos textos de Foucault, Delueze e Guatari e o retorno a Freud proposto por Lacan. Os textos confrontam a autora com elementos constitu-tivos do universo “psi” tais como aspectos políticos, modelos científicos, o Instituto do poder que permeia as relações, objetos e su-jeito.

Finalizando, na parte III, defende-se a igualdade, a partir da reflexão sobre o presen-te e se afirmando que em toda sociedade or-ganizada o direito é uma conquista edificada pela própria sociedade, pois que a sociedade não serve ao direito, mas sim o direito, ao normatizar, o faz em prol da sociedade a qual deve existência.

Desta forma, observa-se que o “mo-vimento” proposto por Lobosque soa como um caminhar refletido e transformador em prol de uma prática clínica que se alia a justi-ça social, lembrando que o portador de trans-torno mental é, antes de mais nada, um sujeito de direito, portanto, um cidadão.

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Política Editorial

Objetiva-se publicar artigos de caráter aca-dêmico por meio de uma abordagem transdisciplinar de questões que digam respeito ao estudo da mente e do comportamento humano, da capacidade de produzir, as-similar e distribuir conhecimento, bem como do funcio-namento do cérebro em si. A política editorial da revista privilegia a abordagem de tais temas através do mapea-mento do tema, incentivando o diálogo entre diversos campos de conhecimento. Outro ponto essencial diz res-peito ao caráter de divulgação científica, devendo ser observada a clareza da abordagem para o nível de gradu-ação, obviamente sem abrir mão da qualidade técnica e do rigor científico.

A publicação aceita colaborações, reservan-do-se o direito de publicar ou não, após avaliação, o ma-terial submetido espontaneamente. Profissionais que atu-em com pesquisa acadêmica podem propor a abertura de novos núcleos temáticos, devendo para tanto pertencer ao quadro de associados do Instituto de Ciências Cognitivas (ICC). O sistema de associação está informado no site do ICC, uma comunidade virtual de pesquisadores de âmbi-to nacional. As colaborações de associados titulares ou colaboradores, ou ainda de colaboradores externos, deve-rão seguir igualmente as normas e diretrizes de publica-ção que se seguem.

O Que Pode Ser Submetido

O material submetido à Revista Eletrônica Ci-ência & Cognição deve possuir afinidade com alguma das seções que a compõem, a saber:

• Editorial: restrito ao Conselho Editorial. • Artigos de Divulgação Científica: material destina-

do à divulgação de trabalhos realizados como conse-qüência de uma investigação ou aplicação de técnica ou tecnologia calcada em teoria existente. Estes arti-gos incluem trabalhos de Iniciação Científica (IC) e partes de monografias de conclusão de curso, desde que co-assinados por um orientador capacitado. Ain-da aqui é cabível a publicação de revisões críticas da literatura ou conclusões parciais de pesquisas, disser-tações ou teses.

• Artigos Científicos: material produzido como con-seqüência de investigação científica, quer ao nível de pesquisa independente por pesquisador capacitado, quer como resultado originado de projetos com enti-dades de fomento à pesquisa, de trabalhos de diplo-mação ao nível de graduação, especialização, mes-

trado ou doutorado. O material deve ser original e destinado exclusivamente para esta revista, ou seja, não ter sido publicado integralmente em nenhum ou-tro veículo, inclusive anais de eventos, revistas e pe-riódicos.

• Comentários a Artigos: trata-se de material que tenha por objeto outro artigo publicado, estabelecen-do uma complementação acadêmica útil e uma críti-ca embasada, podendo ser ainda uma segunda visão sobre o tema. Estes textos serão relacionados por links ao artigo comentado, formando uma rede de temas relacionados.

• Resenhas: análise (informativa ou crítica) de livros cujo tema esteja circunscrito na área de interesse da revista.

• Informações e Divulgações: divulgação de jorna-das, workshops, feiras, seminários, colóquios, sim-pósios, congressos e outros eventos de cunho aca-dêmico.

• Cartas: espaço de interação com o leitor, através do qual estes poderão submeter questões sobre material publicado ou sobre a própria publicação, as quais se-rão encaminhadas ao(s) Autor(es) ou ao Editor-chefe, no caso das dúvidas que não sejam de interes-se geral, o Conselho Editorial poderá deixar de pu-blicar, embora seja encaminhada à pessoa responsá-vel para eventual resposta privada.

Normas para Apresentação de Trabalho

Prazos: os manuscritos podem ser submetidos a qualquer tempo. Entretanto, caso sejam encaminhados até as datas que se seguem podem ser indicados como prioritários para a publicação nos prazos indicados. Toda e qualquer submissão inicial de material deverá ser realizada somen-te por correio eletrônico para: [email protected] - 15 de fevereiro para o volume de Março. - 15 de junho para o volume de Julho. - 15 de outubro para o volume de Novembro.

O texto original, rigorosamente sob a forma es-tabelecida abaixo, deve ser apresentado como arquivo gravado em *.doc; Office 97 ou superior; fonte Times New Roman, tamanho 12; espaço entre linhas simples; sem espaço de parágrafos; alinhamento com as margens esquerda e direita (justificado) e identação de 1,25cm no início de cada parágrafo.

Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org> ISSN 1806-5821 © Ciências & CogniçãoNormas para Publicação: 242-246.

Normas para Publicação

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Ao enviar um texto para submissão, redija no corpo da mensagem, uma carta de encaminhamento diri-gida aos Editores contendo:

• Autorização para o processo editorial de seu texto. • Garantia de que todos os procedimentos éticos refe-

rentes a um trabalho científico foram atendidos. • Concessão dos direitos autorais de seu texto à revista

Ciências & Cognição. • Endereço completo de um dos Autores para corres-

pondência com os Editores (incluir CEP, fone, fax e e-mail).

Envie também, por correio postal, carta dirigida aos Editores com o mesmo conteúdo daquela mensagem, assinada por todos os Autores do estudo ou pelo Autor responsável (modelo disponível no site www.cienciasecognicao.org). Remeter para: A/C Prof. Dr. Alfred Sholl Franco Sala G2-032, Bloco G - Centro de Ciências da Saúde. Programa de Neurobiologia - Instituto de Biofísica Car-los Chagas Filho. Universidade Federal do Rio de Janei-ro. Av. Brigadeiro Trompowiski S/N - Cidade Universitária Ilha do Fundão - CEP 21.941-590 - Rio de Janeiro/RJ. Fone: 0055/21/2562.6562.

Procedimentos Editoriais

O processo de revisão editorial só será iniciado se o texto obedecer a todas as condições acima. Caso contrário, será solicitada a adequação às normas e, então, a realização de nova submissão.

Se o texto estiver de acordo com as normas aqui mencionadas, e for considerado, pelos Editores, potenci-almente publicável na revista eletrônica Ciências & Cognição, os Autores serão comunicados por e-mail so-bre o início do processo editorial. O texto será, então, encaminhado por indicação dos Editores dos Núcleos para 2 (dois) revisores membros do corpo editorial fixo da revista, ou para consultores ad hoc, em casos extraor-dinários. Os Revisores são escolhidos pelos Editores, entre pesquisadores de reconhecida competência na área. Os Autores podem sugerir possíveis consultores ad hoc (pesquisadores qualificados afiliados a instituições, que não as dos Autores) na carta de encaminhamento. De qualquer maneira, Ciência & Cognição reserva aos Edi-tores a escolha dos revisores e/ou consultores.

A autoria do texto não é informada aos Reviso-res ou Consultores ad hoc, bem como a identidade dos mesmos não é informada aos Autores. Para que se man-tenha um prazo médio entre a submissão e o retorno do parecer, os revisores têm um prazo para realização da avaliação e, caso um revisor tenha qualquer espécie de impedimento para expressar seu parecer, deverá comuni-car, imediatamente, aos Editores. Os Revisores e/ou Con-sultores ad hoc, após análise do texto, rejeitam, reco-

mendam com sugestões de modificações ou indicam sua publicação. Os Autores recebem cópias dos pareceres dos Consultores.

Caso o texto venha a ser rejeitado, os Autores podem submetê-lo novamente depois de cuidadosa revi-são, considerando os pareceres recebidos. Em geral, é encaminhado aos mesmos Revisores/Consultores ad hoc. A recomendação para publicação associada a sugestões de modificação do trabalho visa melhorar a clareza ou precisão do texto, segundo os padrões de qualidade da revista científica. Uma versão reformulada do texto deve ser apresentada para apreciação, tendo em vista obter a aceitação; versão esta acompanhada de carta dos Autores aos Editores quando estes não concordarem com algumas das sugestões dos Revisores/Consultores, informando as modificações efetuadas e justificando as não realizadas. Esta carta e o texto reformulado são encaminhados a um dos Conselheiros da revista, juntamente com a versão original e os pareceres dos Revisores/Consultores, para análise. O Conselheiro pode rejeitar, sugerir modifica-ções (quantas vezes considerar necessário) ou indicar o texto reformulado para publicação. Nesta fase, o Conse-lheiro terá conhecimento da identidade de Autores e Re-visores/Consultores envolvidos.

O texto aceito será convertido em formato *.pdf e enviado ao(s) Autor(es) na forma final em que será publicado para que sirva como uma prova do manuscrito, a qual deverá ser conferida e devolvida com possíveis correções (exceto no título ou no nome dos(s) Autor(es)). A não devolução da prova corrigida, no prazo estipulado, implicará no aceite da mesma na forma em que se encon-trar.

A decisão final sobre a publicação de um texto submetido à revista Ciências & Cognição cabe aos Edito-res dos Núcleos, auxiliados pelos pareceres de Reviso-res/Consultores e Conselheiros. Os Editores comunicam o resultado final aos Autores, por e-mail, o mais rapida-mente possível, indicando a data e número da revista prevista para a publicação do artigo.

Direitos Autorais

São da revista eletrônica Ciências & Cognição os direitos autorais de todos os artigos publicados por ela. A reprodução total de qualquer artigo desta Revista em outras publicações, por quaisquer meios, requer autoriza-ção por escrito dos Editores. Reproduções parciais de artigos (resumo, abstract, mais de 500 palavras de texto, tabelas, figuras e outras ilustrações, arquivos sonoros ou de vídeo) deverão ter permissão por escrito dos Editores e dos Autores.

Carta de Autorização – Modelo

“Os autores abaixo assinados transferem à Revista Ciên-cias & Cognição, com exclusividade, todos os direitos de publicação, em qualquer meio, do artigo ......................., garantem que o artigo é inédito e não está sendo avaliado por outro periódico e que, no caso de estudo, foi condu-zido conforme os princípios da Declaração de Helsinki e

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de suas emendas, com o consentimento informado apro-vado por comitê de ética devidamente credenciado.” (In-cluir nome completo, endereço postal, telefone, fax, e-mail e assinatura de todos os autores.) * Segundo a Resolução n. 1.595, do Conselho Federal de Medicina de 18-5- 2000, é obrigatório que os autores de “artigos divulgando ou promovendo produtos farmacêu-ticos ou equipamentos para uso em Medicina declarem os agentes financiadores que patrocinaram suas pesquisas”.

Reprodução de Outras Publicações

Citações (com mais de 500 palavras), reprodu-ção de uma ou mais figuras, tabelas ou outras ilustrações, bem como de arquivos sonoros, devem ter permissão escrita do detentor dos direitos autorais do trabalho origi-nal para a reprodução especificada em Ciências & Cog-nição.

A permissão deve ser obtida pelos Autores do trabalho submetido. Os direitos obtidos secundariamente não serão repassados em nenhuma circunstância.

Desenhos e esquemas mesmo que modificados apenas serão admitidos com autorização. Entretanto, o Conselho Editorial coloca a disposição dos Autores, quando da diagramação da prova do artigo, de pessoal habilitado a formular esquemas e montagens adequadas ao padrão estilístico da publicação.

Apresentação do Texto Partes do Texto Original e Roteiro para Apresentação do Texto Original:

O texto original deve ser apresentado como ar-quivo gravado em *.doc; Office 97 ou superior. Corpo de texto em fonte Times New Roman, tamanho 12; espaço entre linhas simples; sem linha adicional entre os pará-grafos e com deslocamento de 1,25cm na primeira linha de cada parágrafo; alinhamento nas margens esquerda e direita (justificado).

Use itálico em palavras ou expressões a serem enfatizadas e também no caso de palavras estrangeiras à língua empregada. Use negrito apenas nos título, subtítu-los e nomes dos Autores. Não use palavras sublinhadas ao longo do texto, nem marcas d’água. • Título na língua empregada no artigo (fonte Times

New Roman, tamanho 16, negrito, centralizado) e em inglês (fonte Times New Roman, tamanho 12, i-tálico, centralizado; deve informar o leitor sobre o objetivo do artigo).

• Nome dos Autores (fonte Times New Roman, ta-manho 12, negrito, centralizado)

• Afiliação institucional e o país (fonte Times New Roman 12, centralizado). Incluir nome da universi-dade, Institutos, Centros de Pesquisa etc e o país.

• Resumo, em português, contendo entre 100 e 150 palavras (fonte Times New Roman, tamanho 12, ali-nhamento e recuo de 1,25cm nas margens direita e

esquerda). No caso de relatos ou comunicações bre-ves de pesquisas, o resumo deve apresentar breve-mente os objetivos, método, resultados e discussão do estudo. O resumo não precisa incluir informações sobre a literatura da área, nem referências bibliográ-ficas. O objetivo deve ser claro, informando, caso for apropriado, qual o problema e as hipóteses do estu-do. Para os relatos de pesquisa, o método deve ofe-recer informações breves sobre os participantes, ins-trumentos e procedimentos especiais utilizados. A-penas os resultados mais importantes, que respon-dem aos objetivos da pesquisa devem ser menciona-dos no resumo. É vetada a utilização de abreviaturas não convencionais ou sem prévia colocação por ex-tenso do termo a ser abreviado.

• Palavras-chave em português (fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento e recuo de 1,25cm nas margens direita e esquerda). No mínimo 3 e no máximo 6, em letras minúsculas e separadas com ponto e vírgula.

• Abstract (resumo traduzido para o inglês). Deve ser escrito de modo fluente e corresponder o máximo possível ao conteúdo explicitado no Resumo, se-guindo a mesma forma (fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhamento e recuo de 1,25cm nas margens direita e esquerda).

• Key Words (fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhamento e recuo de 1,25cm nas mar-gens direita e esquerda), palavras-chave traduzidas para o inglês, ou termos correspondentes.

• Autor para Correspondência (indicado com um asterisco). Deve incluir uma breve descrição sobre as atividades atuais do Autor, sua formação, vínculo a-tual e, se desejar, endereço completo para contato, incluindo e-mail e homepage, caso haja.

• Corpo do Texto: Os Subtítulos devem aparecer em negrito, alinhados à margem esquerda, precedidos e seguidos de uma linha em branco. Quando o texto for um relato de pesquisa deverá apresentar Intro-dução, Materiais e Método (quando for o caso, ou Metodologia), Resultados, Discussão e Referências Bibliográficas, numerados em arábico, assim como possíveis subtítulos. Em revisões pode-se utilizar o recurso de um Índice (sem paginação) que apresente a listagem dos tópicos e dos subtópicos. Caso o Au-tor ache interessante e relevante, poderá acrescentar um subtítulo sobre “Hiperlinks de Temas Relaciona-dos”.

• Figuras, Fotos, Tabelas e audios. As fotos ou figu-ras devem ser enviadas separadamente, em arquivo anexo, no formato *.jpg (resolução máxima de 72dpi, não ultrapassando o limite de 1,4 MB cada um). Indicar no texto o lugar onde serão incluídas, com referências do tipo: figura01, tabela02 ou gráfi-co01 etc., salvando os arquivos com nomes corres-pondentes: figura01.jpg, tabela02.jpg ou grafi-co01.jpg. Os arquivos de áudio, também enviados separadamente, em anexo, no formato *.mp3, devem ser apresentados já editados (cortes, formato, defini-ção de mono ou estéreo, não podendo ultrapassar o

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limite de 1,4 MB cada um). Os arquivos serão inclu-ídos exatamente como nos forem enviados. Indicar no texto o lugar em que o arquivo de áudio deverá ser incluído. Citar autoria, data e local de gravação. Não nos responsabilizamos pelo uso indevido das gravações por terceiros.

Importante: para nomear as imagens ou áu-dios não use letras maiúsculas, acentuação, espaços ou caracteres especiais (o "ç" é entendido como ca-ractere especial). Ao preparar arquivos de imagens teste a resolução final: opte sempre por manter legí-veis as linhas e dados dos gráficos e/ou tabelas. Para tanto, ao "reamostrar" as imagens a fim de adequá-la à resolução pedida (em algum programa de edição de imagem), selecione a opção "manter proporções da imagem", tomando o cuidado de obedecer ao limite de 1,4 MB. Acrescente sempre na margem esquerda da fotografia, tabela ou gráfico uma marca de autori-a.

• Notas (quando houver) devem ser indicadas por al-garismos arábicos no corpo do texto, as notas deve-rão ser listadas após as referências bibliográficas, sob o título Notas (não usar o recurso “Inserir No-tas...” do Word).

• Agradecimentos e créditos a instituições de finan-ciamento deverão aparecer no final do texto e antes do item Referências Bibliográficas.

• Anexos (quando houver) devem ser indicados no corpo do texto e apresentá-los no final, após as Refe-rências Bibliográficas, identificados por letras mai-úsculas (A, B, C, e assim por diante) e por títulos a-dequados. Utilizar anexos somente quando for im-prescindível: dar preferência à informação que facili-te o acesso a materiais e instrumentos, por meio de notas e/ou links.

• Normas para fazer Citações. Observe rigorosamen-te as normas de citação. Todos os estudos referidos devem ser acompanhados dos créditos aos autores e das datas de publicação. • No caso de trabalho de única autoria, o nome do

autor deve ser seguido da data de publicação, na primeira vez em que for citado, em cada pará-grafo. Exemplos: (Santos, 2000) ou Santos (2000). Trabalhos com dois autores, citar no tex-to os dois sobrenomes dos autores (usando o se-parador e) sempre que o artigo for referido, a-companhado da data do estudo entre parênteses. A citação também poderá ser feita com os so-brenomes entre parêntesis separados por uma vírgula do ano de publicação. Exemplo: “Santos e Silva (1999) demonstraram que...” ou ... foi demonstrado na literatura (Santos e Silva, 1999). Para trabalhos com três ou mais autores: Quando a citação for inserida como parte do texto, citar apenas o sobrenome do primeiro au-tor, seguido de "e colaboradores" e da data de publicação entre parênteses (exemplo: Santos e colaboradores (2000) demonstraram que ...). Po-rém, na seção de Referências Bibliográficas to-dos os nomes dos autores deverão ser relaciona-

dos. A citação, no corpo do texto, também pode-rá ser feita apenas entre parêntesis, onde o so-brenome do primeiro autor deverá ser seguido pela expressão et al. – em itálico – seguido por uma vírgula e o ano de publicação (Exemplo: Santos e colaboradores (2003) ou (Santos et al., 2003)).

• A citação de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte forma: autor (data de pu-blicação original/data de publicação consultada). Evite citações secundárias, quando o original pode ser recuperado com facilidade. Quando ne-cessário, informar no corpo do texto o nome do autor que faz a citação original e a data de pu-blicação do estudo, e, em nota, a referência bi-bliográfica original. Somente a obra efetivamen-te consultada deve ser listada nas referências bi-bliográficas. Usar, nos casos de citação secundá-ria, os termos apud, op. cit., id. ibidem etc.

• A citação literal de um texto deve ser indicada colocando o trecho entre aspas e deve incluir a referência ao número da página da publicação do qual foi copiado (Santos, 2000: 16). Citações de mais de três linhas devem ser apresentadas como novo parágrafo, recuado de 0,5 cm da margem esquerda e 0,5 cm da margem direita e entre aspas.

• Lista de Referências Bibliográficas. Deixar uma linha em branco entre cada referência bibliográfica. Apresentar as referências em ordem alfabética, pelo sobrenome dos autores, apenas com as inicias em maiúsculo. Referências a vários estudos do mesmo autor são apresentadas em ordem cronológica, do mais antigo ao mais recente. Quando coincidirem au-tores e datas, utilizar letra minúscula como diferen-ciador após a data: Santos (2000a), Santos (2000b) como critério para listar as referências em ordem al-fabética. Ao repetir nomes de autores não substituir por travessões ou traços. Não usar os comandos “sublinhado” ou “negrito” nesta seção. Os grifos, quando necessários, devem estar presentes como nos exemplos abaixo.

Exemplos de Citação na Lista de Referências:

Artigo de Revista Científica Bloch, M. (1999). As transformações das técnicas como problema de psicologia coletiva. Signum, 1, 169-181. Artigo de Revista Científica Ordenada por Fascículo

- Citar como no caso anterior, e acrescentando o número do fascículo, entre parênteses, sem sublinhar, imediata-mente após o número do volume: Dunaway, D.K. (1991). The oral biography. Biography, 14 (3), 256-266.

Artigo de Revista Científica no Prelo - No lugar da data, indicar que o artigo está no prelo. Não referir data, volume, fascículo ou páginas até que o artigo

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Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 242-246 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

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seja publicado. No texto, citar o artigo indicando, entre parênteses, que está no prelo. Texto Publicado em Revista de Divulgação Comercial - Havendo indicação do autor, iniciar a citação pelo so-brenome e inicial do nome, seguido do ano, dia e mês entre parênteses, nome do artigo, nome da revista em itálico, volume e páginas: Toledo, R.P. (2001, 23 de maio). O santo de Assis – Jac-ques Le Goff. Veja, 20, 160. - Quando o texto não indicar o autor, iniciar com o título, seguido do ano, dia e mês, nome da revista em itálico, volume e páginas. Como no exemplo a seguir: As armas do barão assinalado (1998, maio). Bravo!, 8, 58-63.

Livro com Autoria Única Halbwachs, M. (1925). Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Presses Universitaires de France.

Livro Organizado por um Editor Neisser, U. (Ed.). (1982). Memory observed: remember-ing in natural contexts. San Francisco: Freeman.

Capítulo de Livro Benjamin, B.S. (1967). Remembering. Em: Donal, F. G. (Ed.). Essays in philosophical psychology (pp. 171-194). London: Macmillan.

Capítulo ou Artigo Traduzido para o Português de uma Série de Múltiplos Volumes

Bausola, A. (1999). O Pragmatismo (Capovilla, A.P., Trad.). Em: Rovighi, S.V. (Ed.). História da Filosofia Contemporânea. Do século XIX à Neoescolástica (Vol. 8, pp. 459-471). São Paulo: Edições Loyola. (Original publicado em 1980).

Livro Traduzido para o Português Foucault, M. (1992). As palavras e as coisas (Muchail, S.T., Trad.). São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. (Original publicado em 1966).

Texto Publicado em Enciclopédia Stroll, A. (1990). Epistemology. Em: The new encyclo-pedia Britannica (Vol.18, pp. 466-488). Chicago: Ency-clopedia Britannica.

Trabalho Apresentado em Congresso, mas Não-publicado

Massimi, M. (2000, outubro). Identidade, tempo e profe-cia na visão de Padre Antônio Vieira. Trabalho apresen-tado na XXX Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Brasília, Brasil.

Trabalho Apresentado em Congresso com Resumo Publicado em Anais

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Trabalho Apresentado em Congresso e Publicado em Anais

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Comunicação Pessoal Carta, mensagem eletrônica, conversa telefônica ou pes-soal podem ser citadas, mas apenas no texto, apresentan-do as iniciais e o sobrenome do emissor e a data comple-ta. Não inclua nas referências.

Web Site ou Homepage Para citar um Web Site ou Homepage na íntegra, incluir o endereço no texto. Não é necessário listá-lo nas Referên-cias.

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– L. G. L. Freire é Psi-cólogo esco-lar, mestran-do em Psico-l i d Ed

– L.P. Rocha é Mo-nitor de Neu-rofisiologia, Programa de N bi l

- I.S. Pe-reira é gra-duando em Psicologia (UFC). E-

il

– A. L. Rolnik é Monitor de Neurofisiolo-gia, Programa d N bi

(4) Já para a inteligência artificial fraca o computador é uma ferra-

t útil

(3) John Se-arle define intencionali-dade como “a característica

l l

(2) Tradução minha. No original: “What is it like, for in-t t

(1) Como se sabe, para demonstrar racionalmente a existência d t d

- F. Régis é Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). At

- S. Jucá é Professor do CEFET-CE na Área da Indústria,

d d

(26) Tradu-ção nossa: “em um sen-tido objetivo, real e físico,

i é d

(32) Tradu-ção nossa: “Neste livro eu tentei um novo nível de d i ã El

(23) Tradu-ção nossa: “na percep-ção, a psique não adiciona l t

(19) Tradu-ção nossa: “divide exis-tência em um unificado

i t

(17) Tradu-ção nossa: “não são fa-cilmente lo-calizáveis fi i t

(14) Tradu-ção nossa: “Uma banana é comestível para um hi é

(13) Tradu-ção nossa: “para as a-ções serem apropriadas e f ti l

(11) Tradu-ção nossa: “informação para especifi-car as utilida-d d bi

(9) Tradução nossa: “… atividades perceptuais são atividades d b

(10) Tradu-ção nossa: “… informa-ção sobre um mundo que i d

(7) Tradução nossa: “se uma superfí-cie terrestre normalmente h i t l

(6) Tradução nossa: “a al-tura do joelho de uma crian-ça não é a

lt

(5) Tradução nossa: “uma específica combinação das proprie-d d d

(3) Tradução nossa: “o que ele [ambien-te] ‘oferece’ ao animal, o

l ‘

(2) Tradução nossa: “per-cepção é vista como uma captação ati-

d i f

(1) Tradução nossa: “as superfícies que separam as substâncias d i

- F. I. da S. Oliveira é Mestre em Filosofia (Fa-culdade de Fil fi

- A.C.D. Miranda é Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Engenharia

- R.E. Eisenkrae-mer é Mes-tranda em Letras (UNISC)

- N.K.Freitas é Psicóloga e doutora em Psicologia. At

- P.L.M. Pederiva é Doutoranda (Faculdade de Educação, U B) At

- A.M. Tokumoto é Pesquisadora Associada (UNESP). E d

- E.C. da Veiga é Dou-tora em Psi-cologia. Atua como Profes-

d C

(4) A noção de jogo nos reporta à di-mensão lúdi-ca do fingi-

t f

(3) O neolo-gismo enação corresponde à tradução do termo inglês

ti

(2) Segundo Deleuze, o atual e o vir-tual se opõem e se comple-

t

(1) Adotamos aqui o termo mimesis na acepção cor-rente, de imi-t ã

- M. I. Accioly é jornalista, consultora em comunicação

ti

- J. Mi-quel-Vergés trabalha no Departamento de Tradução e Li í ti

- G.A. Castañon é graduado em Psicologia (UERJ) e em Fil fi

(4) “O dialo-gismo é, para Bakhtin, um termo usado para designar

i ã

(3) Hetero-glossia são os diferentes discursos voltados para

(2) “A inter-textualidade é o processo de incorporação de um texto

t

(1) Bakhtin caracteriza a polifonia co-mo a “multi-plicidade de

- Â.Á.C. Dias é Douto-ra (Universi-dade de Lon-dres). Atua

P f

(2) Embora a professora N. tenha de-monstrado aceitação na

li ã d

(1) Recorda-mos que esta proposta con-templava em muito as pro-

t d

– E.D.C.W. Menegolo é Mestre em Educação (UFMT

Divulga-ção Cien-

tífica

Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 1 6 2 - 1 6 8 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 1 5 8 - 1 6 1 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ensaio Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 1 5 0 - 1 5 7 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ensaio Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 1 4 6 - 1 4 9 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ensaio Ensaio Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 1 3 7 - 1 4 5 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 1 3 1 - 1 3 6 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ensaio Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 1 2 0 - 1 3 0 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Revisão Revisão Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 1 1 1 - 1 1 9 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Revisão Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 9 7 - 1 1 0 . <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 9 1 - 9 6 . <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Revisão Revisão Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 8 3 - 9 0 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

Categoria B: 51% Categoria A: 49% Categoria D: 8% Categoria C: 8% Categoria B: 36% Categoria A: 48%

Artigo Científi-

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Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 7 3 - 8 2 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

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Ciências & Cogni-ção 2006; Vol 09: 6 4 - 7 2 <http://www.cienciasecognicao.org> © C i ê n c i a s & C o g n i ç ã o S u b m e t i d o e m

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