Cinderela A história que ninguém nunca lhe...
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Cinderela ― A história que
ninguém nunca lhe contou
Você conhece aquela Cinderela dos
livros infantis que morava em um castelo
com a madrasta e duas irmãs malvadas e
que no fim de tudo ela se casou com o
lindo príncipe e foi morar com eles?
Felizes para sempre, fim. Você fecha o
livro e segue sem acreditar muito que isso
possa acontecer na vida real.
Que patético!
É o que dizem, mas hoje é feriado,
todo mundo viajou, eu estou aqui sozinha
e com uma grande quantidade de tempo
para falar sobre o que quiser, tudo mesmo.
E por que não deixar um pouquinho a
minha imaginação viajar um pouco, sair de
mim? Não tenho nada a perder com isso...
Pois bem, vamos começar bem lá
do começo, para que ninguém se perca na
ambientação cronológica, se é que há
alguém aí do outro lado. Se você estiver se
sentindo só, estamos juntos nessa. Vou
poupar o ‘era uma vez’ ou qualquer
descrição inútil do gênero, assim, quem
sabe, possamos adaptar tudo isso a nossa
realidade, ou melhor, a minha.
Cinderela era a gata borralheira da
casa. Serviçal nem mal remunerada. Nem
um centavo em troca pela dedicação,
praticamente forçada. Tem sido assim já
faz algum tempo. Nem a maioridade foi
capaz de libertá-la. Seu caso era um
daqueles em que só mesmo um milagre
muito grande a livraria de viver para
sempre com aquelas bruxas bonitas por
fora e horríveis por dentro. Trajada com
uma bermuda jeans desbotada, uma regata
simples e uma bandana na cabeça,
trabalhava noite e dia. De dever de casa às
compras, tudo dependia dela. Podia chorar
todas as noites e era o que fazia, sempre.
Mas nunca, nunca ficava doente. Sorte ou
não, não sabia dizer. Não foi sempre
assim, claro. Aquela garota tinha muitos
sonhos, sendo como qualquer outra da sua
idade até os pais morrerem em um
acidente de carro. Vovó dela cuidou até
partir e deixá-la completamente sozinha no
mundo. Sozinha no sentido mais profundo
da palavra porque ter uma parenta como a
titia Rosália era melhor não ter nenhum.
Titia Rorô era uma mulher muito
malvada e inescrupulosa, viciada em
gastar dinheiro. Queria ser a mulher mais
bonita do mundo a qualquer custo. Não
conseguia e odiava todo mundo. Ela tem
duas filhas: Brenda e Francesca,
igualmente más. As malvadas irmãs não
queriam a princesinha na casa, mas assim
determinou o juiz e ninguém poderia
contrariar ordens superiores. Não era
surpresa nenhuma que a pobre Cinderela
fosse despejada em um fétido aposento
junto com muitas baratas e aranhas, mas a
partir dali seria seu lar, amando ou não.
Gostaria de gritar, mas seria repelida.
Fugir? Nem mesmo tinha para onde. Fugir
de si mesma? Da dor?
Sem dinheiro algum, sem
ninguém... Não incomodaria aos amigos
porque não queria ser um fardo para eles.
Não queria que eles a vissem chorar, algo
que fazia dias e noites no início e se sentia
muito fraca; de nada adiantava, era apenas
jogar lágrimas fora sem ter um abraço
franco e cálido para acalmar a agonia que
sentia e pesava os ombros, o coração,
pesava a alma e por isso não escrevia mais
nada. Era melhor trabalhar, assim se
cansava bastante, preenchia todo o tempo
e adormecia rápido, pensando então que
era um dia a menos vivendo em um
mundo que odiava, que aliás estava presa,
só não sabia o que havia feito de errado
para merecer tamanho castigo.
Dezoito anos de idade. Havia
venturas de que deveria ser uma
universitária como suas amigas eram,
muito provavelmente. Balde, vassoura e
pano de chão. Esfrega, varre, enxagua.
Nenhuma beleza. As unhas nem cresciam
mais porque mal podia pintá-las. Preferiu
cortar o cabelo para não ter muito
trabalho. Comia pouco, pois nem fome
sentia. O mundo sem ela continuaria a
cumprir rotações e translações. Sua
tristeza não importava. Era apenas o
sorriso de Brenda e Francesca que
vigorava, ambas com seus namorados,
sempre debochando da condição em que
se encontrava a princesa que mesmo
sendo, assim não se sentia.
Para facilitar, vamos chama-la de
Cindy. Ela não recebia um abraço sincero
havia muito tempo. Já nem lembrava mais
quão bonito poderia ser o sorriso de uma
criança. Não se tornaria fria por dentro,
apática à vida, mas não podia negar que
faltava alguma coisa ali dentro, uma
pecinha fora do lugar, uma dorzinha
esquisita, algo que os médicos não
conseguiriam diagnosticar, a menos que
fossem muito sensíveis e o mundo não era
e nunca vai ser. Se você não é o que os
outros querem, você simplesmente não
existe. É isso e Cindy sabia que seu velho
diário era o único lugar onde a magia
podia acontecer e em poucas linhas,
torcendo para que a tinta da caneta não
acabasse antes.
Cindy era mesmo a desastrada,
aquela que da janela a felicidade olhava e
cantava para si mesma uma canção
qualquer. Se o amor existia, dela estava
distante. Um toque de mágica e a vida
poderia sim ser mais colorida, mais
emocionante, mas é meio difícil mudar
isso sozinha. Disso ela sabia. A voz
embargava ao lembrar-se do último
presente dado pela vovó.
Sim, aquele colar. O colar da
sorte. Um pingente em forma de coração.
Uma lembrança que o tempo não daria
fim. Vovó era a pessoa mais bondosa do
mundo que conhecera. Possuía um coração
puro, inocente e era uma pessoa simples,
mas encantadora, como uma típica vó.
Cabelos branquinhos como a neve, voz
mansinha, acalentadora, sensível,
completamente devota. Ah, não saía de
casa sem fazer uma reza forte. Devia estar
no paraíso na companhia do vovô, da
mamãe e do papai, cantando junto com os
anjos e se olhava para a netinha que mais
amava, chorava e não gostava nem um
pouco desse filme triste. Um filme longo,
triste e inconclusivo... Um livro que se
chegasse a ser escrito nem mesmo o autor
releria porque era uma droga, não cativaria
ninguém.
― Vê se trata de lavar a roupa,
fazer a comida e o dever de casa das
meninas ― ordenava Rosália com o dedo
indicador em riste, o dedo das ordens. ―
Queremos as roupas passadas até o fim do
dia, pois à noite temos uma festa muito
importante para ir.
― Sim, tia ― assentia a garota ―,
farei tudo direitinho.
― Não faz nada direito ― ralhava
Rosália, insatisfeita por natureza, com
qualquer pessoa existente, embora a
implicância crônica fosse exclusividade da
sobrinha, pela simples e desprendido
prazer de ser “do contra”. Mesmo que
Cinderela continuasse trabalhando como
escrava, nunca seria reconhecida, embora
se trate de uma redundância bem
elaborada.
― Eu faço tudo, tia. ― Cinderela
obtemperou, chateada. ― A senhora nunca
agradece.
― Agradecer pela sua obrigação?
― rebateu a malvada. ― Ora essa! E
ainda por cima tem a petulância de me
chamar de senhora. Desde quando
serviçais podem dar ordens? Que eu me
recorde, não lhe dei permissão para me
dizer como eu devo administrar a minha
casa.
― Não estou te dando ordens, só
dizendo que eu faço tudo nessa casa, não
tiro folga e a senhora nunca fica contente,
nunca reconhece. Como se sentiria se
estivesse em meu lugar?
― Não fale isso nem por
brincadeira ― ameaçou a tia perversa. ―
E se não estiver satisfeita ― apontou para
a porta da sala ― pode arrumar suas
tranqueiras e ir para a rua.
A malvada tia Rosália falava isso à
princesinha porque não sabia que um dia a
sorte da garota mudaria. Levaram alguns
anos até as orações serem atendidas, mas
esse dia chegou. De comum ele não tinha
nada. 31 de outubro.
Já era tradição que as megeras
jovens se arrumassem para pagar de ricas
em festinhas. Quase não paravam em casa.
Titia estava muito preocupada porque as
finanças não andavam lá tão boas quanto à
perua velha tentava ostentar. Mesmo
assim, cabeça erguida, muito glitter e bora
tentar ser o que não é. Tão dela.
― Bom dia. ― cumprimentou
Cinderela, a única que mesmo maltratada
não queria deixar a educação em último
plano.
― Só se for pra você. ―
respondeu Rosália externando um mau
humor contagiante. Era muito difícil que a
tia malvada estivesse contente na parte da
manhã.
― Pensei que estivesse feliz ―
achincalhou a moça. ― Hoje é o seu
aniversário.
Brenda que estava entretida em
mordiscar uma torrada queimada voltou os
olhos para a mãe:
― É seu aniversário, manhê?
― De que você está falando,
criatura? ― rosnou Rosália, folheando o
jornal, pois ler de verdade as matérias e as
crônicas não lhe apetecia.
― A Cinderela te cumprimentou e
tal ― Brenda deu a volta na mesa para
saudar a mãe que repeliu o gesto com um
empurrão:
― Que aniversário o quê.
― Ah, tá! ― Brenda voltou para o
seu lugar. ― Mesmo que fosse seu
aniversário, nem teria dinheiro pra te dar
nada.
Rosália, um pouco mais esperta
que a filha, logo se deu conta do trocadilho
e com um olhar seria capaz de fuzilar a
sobrinha que já tratava de iniciar a jornada
de trabalho que tinha hora para começar,
mas nunca para terminar.
― Nem as piadas de mau gosto
dos serviçais podem arruinar o meu dia ―
retrucou Rosália. ― Se não sabe, as
meninas e eu temos uma festa para ir.
Festa de rico, muito chique, festa de gente
que você nunca nem vai conhecer...
Está certo! A festa era de um
homem bem importante na sociedade que
Rosália queria casar a Francesca, desse
modo garantindo a estabilidade financeira
que na atual fase era mais do que uma
quimera. Cinderela ouvia a tudo sem se
importar. Estava ciente de que aquele
sujeito jamais lhe dedicaria um único
olhar. Não se encontrasse a pobrezinha
vestindo farrapos e com um olhar tão
abatido que faria a própria tristeza chorar.
― Quero os vestidos costurados e
bem passados no final da tarde ―
pressionou Rosália com o famoso dedo
das ordens. ― Agora, se nos dá licença,
iremos passar o dia fazendo compras e
cuidando da nossa beleza.
― Mamãe, eu quero vestidos
novos. Os nossos estão muito velhos. ―
reclamou Brenda, fazendo biquinho e
batendo o pé direito contra o chão.
― Se a Brenda quer vestidos novos
eu também quero. ― rezingou Francesca,
competitiva. ― Eu quero. E eu sou mais
velha que ela.
― Vocês já têm muitos vestidos no
guarda roupa. ― finalizou titia.
― Não temos não. ― insistiu
Francesca.
― Como não tem? O guarda-roupa
de vocês está lotado.
― Mas estão velhos ― contrariou
Brenda ―, não servem nem para serem
pano de chão. E eu não posso aparecer em
uma festa desse naipe com um vestido
velho. Serei a piada entre as minhas
amigas se aparecer com um vestido que
usei... ― Ela contava nos dedos: ― Duas
vezes... Mamãe, nós somos da alta
sociedade, não podemos andar de qualquer
jeito, não se lembra?
Titia Rosália deu uma risada
nervosa.
― Nós da alta sociedade criamos
as modas, Brenda.
― Nem sonha, mamãe. ― ironizou
Francesca. ― Hoje todo mundo vai
caprichar no visual e eu, Francesca Alves
Albuquerque, não posso passar
despercebida...
― Realmente não pode mesmo,
minha filha ― lembrou Rosália ―, pois a
noite é importante e o grã fino precisa se
encantar por você.
― E não vai porque eu vou à festa
com um vestido que usei três vezes na
vida. Não, mamãe. ― Francesca sentou-se
com folga no sofá: ― Não mesmo. Isso só
pode ser castigo.
― Nesse momento nada de gastos
desnecessários ― observou Rosália. E ela
sabia do que falava: o limite do cartão
estava estourado. As faturas acabavam de
vir. Titia estava com o nome cadastrado no
SPC e no Serasa. Sobrevivia com a pensão
da vovó que era muito boa pelo fato de
vovô ser militar e ter se aposentado num
posto muito alto da hierarquia, mas
mesmo assim esse dinheiro se tornava
insuficiente para os tantos caprichos das
patricinhas azedas.
As megeras saíram para o dia da
beleza que deveria ser mencionado como o
“dia de aplicar cheques sem fundo”. Para
Cinderela nada mudava. Continuou dando
conta de seus afazeres e cantarolando a sua
música preferida da sua banda favorita no
mundo todo, a 5PRAMEIANOITE que era
ofuscada pelos funkeiros sem talento
falando de ostentação, putaria e outras
coisas chatas. Mesmo sendo bons no que
faziam, nunca eram notados pelas
gravadoras, o que a Cinderela considerava
uma grande perda para a música, do
mesmo jeito que ela não se conformava
em ver várias pessoas que nem eram
talentosas publicando livros pelo simples
fato de serem populares, dava para
perceber que as editoras estavam
gananciosas e queriam apenas lucrar, não
se interessavam mais por poesias nem por
histórias escritas com sensibilidade. Esse
era o mal do mundo moderno: priorizar o
dinheiro acima de todas as coisas.
― Era menina ainda quando
A vida lhe roubou a alegria...
Toc, toc. Alguém na porta...
Quem será?
Será a felicidade que enfim
lembrou-se de mim, Pensou Cinderela até
a voz chamar-lhe novamente e com
bastante insistência.
― Cinderela...
Ah sim! Era a voz da Pipoca, a
melhor amiga da Cinderela.
― Cinderela, hoje a banda vai
tocar em uma festa muito maneira. Quer ir
com a gente?
― Ir de que maneira, Pipoca?
Você melhor do que ninguém sabe que a
tia não me deixa nem respirar.
― Amiga querida, você não pode
abaixar a cabeça para as ordens dela. Por
mais que você more aqui, você já é adulta
e sendo assim pode fazer da vida o que
quiser.
― Não é tão fácil assim, Pipoca.
― Cinderela, a gente vai tocar num
baile muito chique e temos um convite a
mais. Como o meu pai não vai poder
comparecer, eu não pensei em ninguém
além de você, amiga. ― Pipoca lançou um
olhar pidão para convencer à amiga: ―
Vai, aceita, pô.
― Eu nem sequer tenho roupa para
uma ocasião como essa, Pipoca.
― Roupa e maquiagem a gente se
vira. A Docinho dá um jeito.
― Pipoca... ― advertiu a princesa.
― O Bob te passa aqui às
19h30min pra te pegar, beleza? ―
finalizou Pipoca. ― Fala com a sua tia.
Um dia de folga, poxa vida, você merece.
― Bom, não custa nada tentar.
― Essa festa promete e eu quero
ver você lá ― anunciava à roqueira.
― Vou falar com a tia.
― Vejo você às 19h30min.
Cinderela sorriu. Estranho, mas
bom ao mesmo tempo. Um convite. Sabia
que ouviria não, entretanto não custava
nada tentar, não é mesmo? Vai que por
estar de 'aniversário' a bruxa mor
amolecesse o coração e enfim deixasse
Cindy se divertir um pouquinho, por uma
noite apenas, ainda que no dia seguinte
tudo voltasse a ser o mesmo tédio que
antes. Amanhã era amanhã e poderia nem
chegar. Quem não arrisca não petisca.
Vestidos cheirosos, costurados,
bem passados, esticados nas respectivas
camas de Brenda e Francesca. Casa limpa,
impecável. Bem, era hora de se arrumar.
Se o Bob viria buscá-la às 19h30min, não
lhe restaria muito tempo para se arrumar.
Seria uma produção bem simples, só
mesmo para sair um pouco de casa e
prestigiar a banda de rock dos melhores
amigos. O pior seria enfrentar a bruaca
mal amada, ainda mais agora sem
dinheiro, ih, o motivo para mais mau
humor. Era difícil, praticamente raro ver
titia alegre.
― Ei feiosa! Onde é que você vai
desse jeito? ― provocou Rosália.
― Tia, meus amigos me chamaram
pra sair ― explicou Cinderela. ― Eles
devem estar me esperando.
Sentada no sofá fingindo estar
lendo, titia encarava Cinderela como se
fosse devorá-la viva e lentamente para
degustar de mais prazer.
― Tira essa roupa e prepara a
janta.
― Não posso, tia.
― Como não pode? Quem dá as
ordens aqui sou eu!
― Tia, nesses anos todos eu nunca
tirei um dia sequer de folga. ― A princesa
implorou: ― Pelo menos hoje.
― NÃO.
As meninas chegaram. Francesca
logo caçoou do traje de Cinderela.
― Que roupa ridícula.
― Ela pensa que vai sair... ―
acrescentou Brenda.
― Vai nada. Quem manda aqui
sou eu. ― Titia Rorô encerrou a conversa:
― Nós vamos sair e se a festa estiver
chata provavelmente voltaremos por volta
da meia-noite, então trate de cuidar bem
da casa...
Os olhos de Cinderela estavam
marejando.
― Meus amigos fazem muita
questão que eu vá.
―Vão ficar fazendo. Daqui você
não sai! ― bradou Rosália, impiedosa e
irredutível.
― Por que a senhora é tão ruim,
tia? Por quê?
Brenda cismou que Cinderela
roubou-lhe acessórios. Não era verdade.
Havia os jogado no lixo e Cindy apenas
cuidou deles, pois estavam novos em
folha.
― Desgraçada... Roubando os
pertences da minha irmã...
Francesca deu uma bofetada na
prima. Brenda desarrumou os cabelos da
princesa e Titia, rindo, apenas assistia a
tudo.
― PAREM COM ISSO...
Francesca cuspiu na direção de
Cinderela.
― Agora aposto que você não vai
a lugar algum...
As três megeras caminharam em
direção à porta. Cinderela virou as costas
para que pudesse chorar muito alto, tão
alto como nunca chorou em toda a vida.
Titia abriu a porta.
― Procura algo pra assistir na TV.
E fechou a porta. Cinderela desatou
em lágrimas.
Com as lágrimas derramadas
poderia acabar com o racionamento de
água, poderia fazer chover porque de
desesperança trovejava o coração. A visão
estava turva exatamente como o para-brisa
do carro na última viagem que fez com os
pais ainda vivos. Às vezes queria ter ido
junto com eles porque viver daquele jeito
era o mesmo que não viver, pois, de fato,
para o resto do mundo não existia,
ninguém a via. E seus sonhos, o que eram
eles agora? Somente lembranças, utopias
inalcançáveis (outra redundância gentil) e
nem só de devaneios vive o homem.
Recordações cujo efeito na alma era
paradoxal porque se em alguns instantes
eram capazes de amortecer a revolta, em
outros tinham o efeito contrário.
Naturalmente enfraqueciam-se mais a cada
dia, envelhecendo como as fotos que
imortalizavam a todos àqueles que em seu
coração ainda existiam, vívidos,
sorridentes. A simplicidade dos tempos de
escola, a unidade de família que se acabou.
As tardes de bobeira, os brigadeiros de
colher, visitas na loja de CD’S para
escutar todos os álbuns que entravam e
saíam da lista de desejos, sentir cheiro de
livro novo (ou de livro velho também), a
sensação inigualável de ganhar um colo
reconfortante, sentir um frio na barriga
diferente dos outros, aquele frio na barriga
que se sente à vontade quando comparado
com o bailar de um cardume de
borboletas.
Às vezes queria colo como uma
criança desamparada que precisa tanto de
conforto, de calor humano, de uma voz
adocicada lhe sussurrando que tudo,
absolutamente tudo haveria de ficar bem,
cedo ou tarde. E sonhava que ainda era
uma menina, aquela garotinha que pulava
amarelinha sem se preocupar muito com o
futuro.
Não tinha as bonecas da moda,
nem luxuosas festas de aniversário, dormia
em um quarto pequeno e apenas uma
pequena caixinha de sapatos customizada
continha seus valiosos pertences que eram
poucos, mas necessários. E o que tinha
bastava porque tinha tudo àquilo de que
realmente precisava. Tinha imaginação
que era sua asa, de um anjinho, de uma
menina que mesmo tão magoada nunca
revidava porque era cansaço puro, sem
mais.
Chorava tanto, porém era feliz, tão
feliz que o pulmão orgulhosamente se
encheria para berrar ao mundo e deixar os
adultos abismados como coisas simples,
essas sim são tesouros e deveriam ser
cuidadas como tal para que não se
perdessem. Chorava para lavar a alma e
irrigar os nervos, para que tivesse
incumbida sempre a humildade de rezar e
nunca se esquecer de agradecer pelo que
ainda tinha porque a vida ainda não havia
lhe tirado a fé e mesmo provocando aos
poucos, persistia a força. Que fosse pouca,
é. Estava ali. Em cada prece. A cada
despertar. A cada verso reprimindo
germinando saudade, cantado para si em
um tom mais alto. Canto dos anjos. Até
quando seria assim, não sabia. Tratando-se
de desnudar o nebuloso não deveria
alimentar muitas expectativas para não
mais machucar-se.
Era noite e haveria uma festa,
apenas outra sem ela. Não deveria chorar
por isso, não, mas essa festa era diferente
das outras porque Pipoca a convidou. Bob
viria buscá-la logo mais. Pontualidade não
era o ponto forte dele ― como nem
estudar e tampouco procurar um emprego,
mas Pipoca o amava do jeitinho que ele
era porque apesar de todas as diferenças, o
baixista da banda era o seu melhor amigo
e lhe mostrou com toda a sua simplicidade
que nem todos os garotos são iguais. E o
Bob era melhor que ninguém um sonhador
incorrigível, por isso mesmo a Cinderela
gostava tanto quando os integrantes do
conjunto de rock iam visita-la, sempre ria
das histórias engraçadas e torcia para que
um dia as pessoas conseguissem
reconhecer o talento musical de seus
amigos. Se todos tinham um lugar ao sol,
nada mais justo que eles encontrassem a
sua estrela, desde que não deixassem a
fama “subir a cabeça” e ceifar a essência
dos versos todos, eles eram mais do que
rimas condicionadas a musicalizarem,
eram a parte visível e audível da magia
que compunha a amizade, o trabalho, o
compromisso, a parte árdua de persistir.
― Ora se não é a minha princesa
triste... ― vociferou uma voz feminina,
provavelmente como sendo de uma
senhora, porém não era a Rosália que
àquelas alturas devia estar enfrentando um
trânsito daqueles para chegar até o Clube
Dançante.
Cinderela esfregou os olhos.
― Vó? ― Coincidência ou não,
aquela senhora se não era a sua falecida e
saudosa avó, era alguém muito parecido
com ela.
― Não tenho cara de vó, tenho? ―
inquiriu à senhora.
― A senhora se parece bastante
com a minha avó. ― Cinderela fez o sinal
da cruz com as mãos. ― Que Deus a
tenha.
― Estou vendo uma menina muito,
muito triste. ― sussurrou.
― É uma pena que não seja mais
uma menina, senhora. ― lamentou a
moça.
― Ora! Pode me chamar de Fada
Vovó.
― Fada Vovó?
― Fique sabendo que é um ótimo
nome.
A fada madrinha de Cinderela era a
vovó. Aquele colo era o mais gostoso do
mundo. Aliás, com ele se esquecia do
mundo. O cafuné de vovó secava o pranto,
amortecia a sensação de raiva e desgosto.
― Você ainda acredita em seus
sonhos?
― Não...
― Se você não acreditasse, eu não
estaria aqui, princesinha.
― Nem sei se deveria acreditar.
― Todos têm o direito de sonhar.
Seus sonhos te trouxeram até aqui e se eles
continuam vivos dentro de você é porque
pode e vão se realizar. ― Fada Vovó
olhou as horas no relógio da parede: ―
Ainda tem tempo de ir à festa e arrasar.
― Arrasar? Não posso... Olha
como eu estou... Não posso aparecer
assim...
― Não se preocupe! Nós ainda
temos algum tempinho...
Fom fom, só podia ser o Bob. Ele
tinha um jeito especial de buzinar, todo
mundo o reconhecia num instante.
― Por que não vai? ― sugeriu a
fada vovó.
― Talvez, mas...
― Talvez não é uma resposta
muito legal.
― Já passa das 20h00min. Vou
estragar tudo...
― Não, não vai...
― Eu não tenho roupa nem
maquiagem. O que eu vou fazer lá?
― Por que não fecha os olhos?
― Fechar os olhos?
― Apenas feche os olhos e confie
em mim.
Fechar os olhos.
― Não vale trapacear, hein,
Cinderela.
Cinderela cerrou os olhinhos de
jabuticaba como pediu a fada vovó. Estava
ansiosa e ao mesmo tempo sem saber se o
que vivia era um sonho ou estava
acontecendo de verdade.
― Esqueci as palavrinhas mágicas,
mas bem... ― A fada tirou do bolso a
varinha de condão: ― Eu tenho a varinha
de condão. ― coçou a cabeça. ― Estou
lembrando... Eu juro que deixei o
papelzinho cair por aí... Ando tão
desastrada...
― Posso te ajudar a procurar.
― Muito gentil da sua parte,
princesa, mas hoje você não faz mais nada.
A fada não podia se agachar, pois
sua coluna doía um pouco. Apressada,
esqueceu-se de colocar na bagagem da
mão aquele analgésico cuja composição
essencialmente é de pó de estrela que,
pasmem, cura até coração partido.
― Sabe como é a idade, né? E eu
sem o meu analgésico Pó de Estrela fico
mais perdida do que nunca.
― Analgésico feito com pó de
estrela?
― Pó de Estrela que cura até
coração partido.
― Uau! ― Cinderela estava
procurando a folhinha de papel com as
palavras mágicas.
― Bem, acho que não preciso mais
delas... ― disse a simpática fadinha de
cabelos brancos, contente ao reencontrar
dentro de um dos bolsos da sua capa o
analgésico de Pó de Estrela.
Pipoca, lá de fora, gritou.
― Cinderela, Cinderela...
Cinderela, lá de dentro, disse:
― Já vou.
A fada apenas concordou com a
cabeça.
― Hoje você viverá uma noite
mágica, mas deve se lembrar de que a
meia-noite as bruacas, cof cof, suas
parentas estarão em casa, portanto divirta-
se e não desobedeça, pois tudo vai
acontecer no seu tempo. Agora vai,
Cinderela. Vai que a noite é sua.
E quando Cinderela saiu de casa
não encontrou o famoso carro de Bob, mas
uma carruagem.
Era sim. Uma carruagem. Luxuosa
como aquela da Cinderela. Bob era o
motorista que puxava os lindos cavalos
brancos. Jairo, também amigo, abriu a
portinha para que ela entrasse.
― Entre, Cinderela. ― Jairo
estendeu as mãos para que a princesa se
acomodasse no estofamento de couro. Ao
lado dela estava a Pipoca, faceira como
sempre, e também muito elegante:
― Hoje a noite é sua ― anunciou.
Jairo olhou o relógio de bolso e
disse:
― Agora podemos ir.
Mas é claro que a Fada Vovó como
toda vovó tinha de nos parar por mais um
minuto para as famosas recomendações.
― Vocês viverão uma linda e
encantada noite, mas lembrem-se de voltar
antes da meia-noite para não trazerem
nenhum problema à Cinderela. Essa noite
será mágica, mas o final feliz vem para os
pacientes, aqueles que dotam de senso
para saber que não se colhe o fruto verde
nem se tenta ser o que não é, portanto
divirtam-se e cuidem bem da princesa,
pois ela merece.
― Pode deixar, Fada Mad... Quer
dizer, Fada Vovó. ― Pipoca assentiu com
a cabeça
― Então é hora da gente ir... ―
concluiu Bob.
A carruagem era com certeza o
centro das atenções pelas ruas. As pessoas
das janelas dos apartamentos e dos carros
não deixavam de voltar os olhos curiosos
para comentarem tudo o que
conseguissem. Noite de Lua Cheia,
Halloween. Evento assim só se repetiria,
segundo os astrólogos e astrônomos, em
2020. Sim, sim, mas eles também
poderiam estar errados porque noite como
aquela nunca existiu e não existiria jamais.
Em alguns momentos Cinderela queria
esfregar os olhos só para saber que não
estava vendo coisas por demais ou às
vezes temia que um simples tropeção a
fizesse descobrir que estava vivendo nada
mais que um sonho.
Acontece que alguns sonhos viram
realidade mesmo, nem que seja por
pouquíssimo tempo. Às vezes, mas só às
vezes, a fantasia compensa a dureza dos
dias. Cinderela sabia. Aquela noite
marcaria de algum jeito. Aquela alegria a
pertencia e a tratava como uma velha
amiga, com honras da realeza e tudo o
mais. Quem olhava não reconhecia a
serviçal infeliz que usava roupas velhas e
o cabelo amarrado. Era outra pessoa.
Não de muito longe Cindy viu Titia
chegar à festa com as filhas. Por haver
muitas câmeras ali, as três megeras
aproveitavam a ocasião para rebolar e
tentar a sorte, um furo de reportagem,
qualquer coisa. Elas queriam ser as
sensações da festa custasse o quanto fosse.
Elas pagariam por isso e muito mais.
― Será que eu devo mesmo entrar?
― perguntou Cindy se olhando no espelho
retrovisor da carruagem.
― Você não veio de longe pra
ficar aqui, né? ― brincou Pipoca.
E Cinderela, cuidando muito bem
do belo vestido vermelho, saía da
carruagem caminhando lentamente em
direção às escadarias que hoje estavam
enfeitadas por um tapete vermelho. Era um
baile muito importante, só poderia ser. A
decoração recriava os tempos do
Renascimento com castiçais, quadros
muito bonitos e tudo muito rústico, sem
muitas frescuras. Procurava por um lugar
onde pudesse não ser vista pelas malvadas,
no entanto, parece que antes mesmo que
pudesse se esconder de qualquer coisa, o
amor a encontrou.
Sim, sim, o amor. Frio na barriga,
coração acelerando, um homem bonito,
atraente. Ah, ele era. E ele também olhou
para ela. Não eram todos os homens que
conseguiam enxergar que por baixo dos
olhos tristes e das roupas simples vivia
uma mulher que apesar de se esconder
atrás do medo e das intermináveis tarefas,
desejava ser amada e notada, desejada,
acarinhada. Sei lá, eles nunca tinham se
encontrado, nunca mesmo, só que o que os
uniu ali naquele momento era tão forte que
nem mesmo eles entendiam ou poderiam
controlar. Era como se eles já se
conhecessem, porém não sabiam nem de
onde, ficava difícil de explicar em um
parágrafo curto a revolução que aconteceu
numa fração de segundo e quebrou a
concha dela. Era como se já tivessem se
amado, embora nunca tivessem trocado o
mais terno dos selinhos. Nada. E do amor
ninguém se esconde não importa o que
tente fazer, mas mais difícil que fugir do
amor é viver sem ele, especialmente
quando você passa anos e anos só até
avistar alguém que muda de forma drástica
sua vidinha boba e calminha, se bem que
de tranquila a vida de Cinderela não tinha
nada, nadinha. Ela não pensava muito em
como seria dali para frente, se esse amor
teria futuro, se ele era, de fato, o homem
que ficaria para todo o sempre e faria o
final feliz ser sua realidade tanto quanto
passar o esfregão na cozinha.
― Boa noite. ― disse o príncipe.
― Boa noite. ― responde
Cinderela.
― Fico feliz que tenha vindo.
― Eu?
Como assim?
― Parece que eu te conheço de
algum lugar, só não lembro onde.
― Bem, pode ser que você tenha
me visto por aí.
― Não, não. ― Ele se aproximou
sorridente e assertivo: ― Eu sinto que te
conheço de algum lugar, só que não sei
onde, porque não me lembro. Mas... mas...
Agora eu te conheço...
― Legal... ― Cinderela concordou
com a cabeça.
― Parece que eu estava sufocado...
― Não encontrou as janelas a
tempo?
Ele riu. As covinhas no rosto
ficaram tão evidentes e lhe era um charme.
― Eu não entendi muito por que
resolvi vir a essa festa, pois não tinha
'nada' para mim aqui, mas agora, agora eu
tenho um motivo para querer ficar e eu
acho que o encontrei assim que seus lindos
olhos foram de encontro aos meus... Eu
adoraria que me desse a honra de dançar
comigo esta noite.
― Sinto-me muito honrada, mas
acontece que não sei dançar ―
desconversou a moça que nunca foi
convidada para dançar com ninguém
antes, a não ser naqueles montinhos
organizados pelos amigos. Dançar
abraçadinho daquele jeito romântico era
novidade para ela.
― Faz muito tempo que eu não
danço e peço desculpas se tiver perdido as
habilidades, mas hoje sinto vontade de
dançar e gostaria que fosse com você.
― Comigo? ― Cinderela apontou
para si mesma, acreditando que aquele
homem tão bonito e importante poderia
escolher qualquer moça daquele salão.
Qualquer uma.
― Opõe-se a ideia? ― sondou.
― Não, de forma alguma, mas...
Cinderela deu uma rápida analisada
no recinto. Haviam muitas moças bonitas e
ricas ali no salão, incluindo suas primas
que adorariam ter uma chance com o
príncipe, aquele cara legal que com ela
conversava como se fosse mais uma
daquelas moçoilas chiques que
perambulavam de um lado a outro com
taças na mão.
― Você aceitaria ser a minha
Cinderela?
― Claro!
E quando ele beijou a mão dela foi
difícil dizer não. Complicado. Ela
constatou que com ele era diferente de
tudo que havia sentido. E ela gostava,
gostava muito do que sentia, por isso
poderia fechar os olhos e voar. De fato não
sabia dançar, ou melhor, pensava não
saber.
― Não tem problema se eu pisar
no seu pé?
― Eu piso no seu também... ―
brincou ele. ― A propósito, será uma
honra que meus pés sejam pisados pelos
seus.
Se Cinderela só queria se divertir e
passar a noite sem incomodar ninguém,
certamente tornou-se o centro das atenções
do baile. Algumas pessoas em montinhos
se agrupavam e comentavam a respeito da
linda jovem que parece ter conquistado o
coração do príncipe. Era, na verdade, o
que todas as raparigas ali queriam.
Rodopiavam pelo recinto como se
ali fosse a própria. Passos leves,
desprendidos. Não havia medo nem
preocupação, apenas a vontade certa de
que a música não acabasse nunca. Estavam
na Lua e não respeitavam a gravidade
porque juntos poderiam dar as mãos e voar
pelo infinito, pedir a bênção da Deusa-
Mãe que tanto protege aqueles pelo amor
vivem e acreditam. Talvez esse seja o
significado de eternidade: viver o
momento sem pensar em mais nada, então
vamos adaptá-lo para o amor eterno:
desfrutar da magia do amor sem dar
importância a quaisquer interferências.
Os lábios iam se encostando como
a abelha a flor. Pelo mel. O beijo da vida.
O beijo que acordaria Cinderela e faria
intertextualidade com outro conto de
fadas. O beijo que Cinderela esperou sim
por toda a vida porque não há garota que
não sonhe em se sentir como uma
princesa, usando coroa ou não. A grande
maioria pensa que princesas só moram em
castelos e saem para esquiar na Suíça na
temporada de inverno ou então vão para
Cancun no verão ou alguma praia
paradisíaca, mas cada um de nós tem uma
história diferente, então se nesses
momentos em que somos donos da nossa
história pudéssemos dizer palavras que
com toda força pudessem mudar nossa
vida para sempre, o que Cinderela diria? O
que eu ou você diríamos? O que você mais
gostaria de ter na vida? O que lhe falta? O
que gostaria de mudar? O que não faria de
novo ou faria tantas vezes mais? Se todos
têm uma história de vida que merece
respeito, a da Cinderela, sem dúvida,
sofria uma reviravolta que nem a mesma
apostava. Os cenários eram diferentes, os
personagens também, no entanto, algumas
coisas se repetiam como para sua velha
amiga dos livros encantados.
Lábios cada vez mais próximos. Se
tocando, se explorando. Pediria sim para
que ele dela cuidasse, para que ficassem
juntos. Diria que o amava. Nunca amou,
não sabia o que era amar, mas sabia que o
amava e que se não dissesse agora poderia
não dizer nunca mais e o que ela faria com
o nunca mais, com o beijo que ganhou,
com a noite maravilhosa que nunca sairia
de suas lembranças? Como seria voltar à
realidade tão chata de sempre? Respostas
não tinha, não queria procurar. Deixaria
sim que ele o beijasse. Naquela noite ela
era a princesa dele. Não importava quem
ela pudesse ser. Aos olhos do amor eles
eram um lindo e amável casal. Para
sempre. Entretanto no Rolex do príncipe já
era quase meia-noite...
― Eu preciso ir ― avisou a
princesa, receosa.
― Mas já? ― indagou o príncipe,
espantado, e também um pouco
desapontado. Logo agora que o beijo de
amor acendeu as suas esperanças, a garota
dos olhos de jabuticaba lhe arrancava o
chão. ― Não é nem meia-noite!
― É que... ― Cinderela não queria
se soltar daqueles braços fortes e quentes,
mas precisava mesmo ir.
― Não pode ir embora ―
implorou. ― Eu nem mesmo sei seu
nome, nem onde te procurar...
― Obrigada por tudo. Adeus.
Apressada, Cinderela correu em
direção à porta do salão.
― MOÇA... MOÇA... ― chamava
o príncipe, tentando munir-se de forças
para impedir sua amada de partir.
As pessoas começaram a comentar
o incidente. Cinderela não escutou mais
nada, pois saiu correndo com toda força
que tinha e até tirou os sapatos para ganhar
mais velocidade. Se ousasse correr usando
aqueles saltos altos e finos com os quais
não estava habituada, o resultado seria
uma torção no pé. E das fortes.
Nada de carruagem. Nada de nada.
Escondida atrás do muro percebeu que a
festa não foi assim tão boa para as
megeras.
― O vestido era bacana, mas não
achei nada demais naquela metida. ―
debochou Francesca. ― Sou muito mais
eu...
― Esse cara é um pateta ―
suspirou uma Rosália frustrada. ― Vocês
podem conseguir coisa melhor...
― Pois eu acho que esses vestidos
deram azar, mamãe. ― trotou Brenda. ―
Eu te disse que esse negócio de usar
vestido repetido não era uma boa ideia.
― Mas até que a festa não foi ruim
― Brenda sorriu, tirando de dentro da
bolsa um saco plástico cheio de docinhos
artesanais furtados: ― Já que vocês
ficaram se enrolando, são todos meus.
― Nada disso, gulosa ―
admoestou Francesca. ― Não sabe que
sua irmãzinha aqui adora docinhos?
― Não é você que vive falando de
fazer dietas? ― redarguiu Brenda com a
boca cheia. ― Eu te ajudo, ora!
Francesca e Rosália,
inconformadas, partiram para cima de
Brenda. Eram cúmplices em todos os
momentos. Eram docinhos, puxa vida.
― Cinderela. ― berrou Rosália
assim que trancou a porta principal de
casa, descalçando os sapatos e reclamando
da coluna.
― Espero que tenha nos
obedecido. ― acrescentou Francesca.
E, por incrível que pareça, sim.
Rosália bufou e fechou a porta. Assim que
saiu, a Fada Vovó, debruçada ao vão da
janela, sorriu.
― Parece que você está muito
feliz.
― Foi a melhor noite da minha
vida... ― admitiu Cinderela. E só então
percebe, quando apalpa o pescoço, que seu
colar da sorte não está mais ali. ― Onde
será que eu perdi o colar da sorte? É o meu
colar da sorte! O último presente da minha
avó. É uma relíquia. Ninguém se
interessaria por ele.
Não muito longe dali o príncipe fez
um pronunciamento na televisão
procurando à ‘dona do colar’, descrevendo
uma bela moça de cabelos castanhos muito
longos, lindos e expressivos olhos de
jabuticaba, pequenininha, de vestido
vermelho com espartilho. Muitas moças se
aventuraram a experimentá-lo, porém ele
sabia que em nenhum daqueles rostos
estava à princesa.
Ela, por sua vez, voltava a
trabalhar na falida loja de bijuterias da
Titia falida. Quando não estava em casa,
se revezava atrás do balcão para dar conta
da outra fonte de renda de Rosália, no
entanto os negócios não iam nada bem.
O príncipe estava muito
desesperado. A cada jovem morena que
via a esperança de reconhecer aqueles
olhos de jabuticaba que despertaram o seu
amor.
― Ela não pode estar longe. Eu
preciso encontra-la... Mas como se não sei
seu nome, sei apenas que este colar a
pertence... E muitas outras jovens podem
usar semelhante colar...
Cansado e faminto o príncipe
resolveu passar no shopping para tomar
um cappuccino. Lá do alto a princesa o
reconheceu. Sentiu até um friozinho
engraçado na barriga ao vê-lo sentado
sozinho acariciando o colar como se
pudesse afagar a cabeça da pequena
novamente. Clamaria por isso com todas
as forças.
― O que você está olhando,
Cinderela? Não vê que lá dentro da loja
tem muito serviço te esperando? ―
retrucou Rosália. ― Eita menina
preguiçosa. Tem que passar fome pra ver
se dá valor ao que tem...
― Sim, sim, tia ― assentiu
Cinderela. ― Estou voltando.
― Ridícula... ― resmungou a tia.
Mas ao ver o príncipe poderia
fingir ser a dona do colar. Em sua mente
Titia Rorô era uma Barbie irresistível e
poderia ter o homem que quisesse. O
mesmo dizia às filhas. Ambas tinham egos
tão gigantescos que era realmente difícil
conviver com elas, pois todos eram feios,
inferiores, fracassados, ridículos. Só o que
elas diziam e pensavam importava, por
isso Cinderela, vestindo regata, jeans e
allstar, tinha os pés no chão, sabia que não
atrairia a atenção do príncipe como
realmente era. Ainda assim sabia que o
que viveu naquela noite, mesmo que
ninguém mais soubesse, ninguém poderia
tirar dela.
O príncipe estava passando de loja
em loja, com o coração aflito a cada ‘não’
ouvido. Lógico que toda moça solteira e
que idealizava um bom partido adoraria
ser dona daquele colar. Algumas até
fingiam, no entanto, a tal da ‘química’ não
convencia. Quando adentrou a espelunca
de Titia, a mesma expulsou Cinderela.
― Anda! Pra dentro.
― Mas é um cliente.
― Eu atendo.
― Mas tia, a senhora nunca...
Ao ver Cindy o coração do
príncipe bateu mais rápido.
― Ela pode ficar. ― ordenou o
bonitão.
― Ela estava tentando roubar a
loja. ― inventou Rosália sem nenhuma
outra desculpa disponível. ― Eu logo
chamarei a polícia.
― Eu quero que ela fique ―
redarguiu o príncipe apaixonado. ― Ela
não roubou nada. Sei que ela trabalha aqui
e ordeno que ela fique...
― Mas...
― Notei que a senhora e suas
filhas foram à festa, então...
― Sim, fomos. ― concordou
Rosália, assanhada, debruçando-se na
bancada para seduzir o príncipe com
olhares. ― Mas não precisa me chamar de
senhora. Poupemos o formalismo. Sou
apenas Rosália. Rorô, para você. ―
sussurrou a malvada.
Brenda e Francesca, atrapalhadas,
quase pisaram no pé do príncipe. Tudo por
um minuto de atenção e 15 minutinhos de
fama. Brenda piscava os olhos e sacodia
os cabelos enquanto Francesca empinava o
bumbum.
― Esse colar é meu, me dá. ―
gritou Francesca.
― Não, eu não usaria essa
porcaria. ― berrou Brenda. ― Quem usa
esse lixo é a Cinderela.
― Não, não usa. ― mentiu Titia
Rorô dando um sorrisinho amarelo. ―Nós
não conhecemos ninguém com esse nome.
― Como não? ― questionou
Brenda. ― Ela vive com esse troço feio no
pescoço. Como não?
Rosália arrastou Brenda para um
canto discreto da loja e ralhou com ela.
― Não estraga tudo, sua pateta de
meia tigela.
― Posso conhecer Cinderela? ―
sorrindo, o príncipe perguntou.
― NÃO.
Titia Rorô tentou tomar o colar das
mãos do príncipe.
― Você só pode ter dançado com
uma das minhas lindas filhas. Nem
conhecemos Cinderela. Esse colar não é de
ninguém.
― Mamãe, o que você vai fazer?
― indagou Francesca, cada vez mais
confusa com o desfecho da situação.
― Algo que já deveria ter feito há
muito tempo!
Revoltada, titia correu para fora da
loja e atirou o colar para longe. O mesmo
acertou a cabeça de um rapaz.
― Sem noção... ― gritou o moço
atingido.
Cinderela, o príncipe, Brenda,
Francesca e a Titia (sem saber aonde
enfiar a cara por conta da péssima
pontaria) desceram até o saguão onde
estava o colar, cujo pingente se partiu em
dois. O príncipe o juntou do chão. Quando
viu a foto de Cinderela dentro, disse.
― É você.
― Bem... Esse colar é meu... ―
respondeu Cinderela.
― Então você é a moça do baile?
― Sim, sou eu. ― confirmou.
― Então acho que eu tenho algo
para te dar.
― Bem, o colar estragou, mas...
O príncipe agarrou a cintura de
Cinderela e beijou-a bem como naqueles
filmes românticos que ela vivia assistindo.
Titia estava possessa.
― Isso não pode estar
acontecendo! Isso não está acontecendo!
Após o beijo você imagina que
Cinderela e o príncipe resolveram se
conhecer melhor enquanto devoravam
hambúrgueres, milk-shakes e batata-frita
na praça de alimentação. Titia precisou
trabalhar e não o faria sozinha. Brenda e
Francesca a ajudariam, mesmo sem
disporem de paciência para atenderem ao
respeitável público, mas quem sabe com o
tempo elas melhorem, não?
A banda dos amigos da Cinderela
continua se apresentando por aí. Mesmo
que não tenham uma legião de fãs, seguem
trabalhando por amor à vida, à música, à
vocação. Os semelhantes sempre se
encontram. Os sonhadores podem ser
derrotados, mas nunca abrem mão.
A Fada Vovó está atarefada
ajudando outras gatas borralheiras mundo
afora. Apesar de ser muito espevitada,
gosta mesmo é de trabalhar sem se deixar
envaidecer, afinal, sua maior recompensa é
receber um sorriso de alguém. Ela ainda
precisa tomar aquele analgésico feito com
Pó de Estrela, pois ser fada também dá
uma canseira danada, e ela que o diga, não
para nem aos feriados.
Ah, se tudo terminasse em
casamento e a famosa citação ‘ e eles
viveram felizes para sempre!’. Sabe que
enquanto esse dia não chega, a gente
sonha? Podem tirar tudo de nós, menos a
capacidade de sonhar? E é. A história não
é lá aquelas coisas, mas espero que alguma
coisa lhe sirva, que seja para matar o
tempo ou só uma frase estúpida que você
curtiu. Talvez bem lá dentro de você exista
uma criança que acredita tanto em sonhos
que cedo ou tarde eles vão se realizar.
Pequenos ou grandes, não importa. Mais
cedo ou mais tarde a Fada Vovó pode te
visitar...
FIM