Cinema Hollywoodiano e a política da boa vizinhança

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67 “Imagens Projetadas do Império” O Cinema Hollywoodiano e a Construção de uma Identidade Americana para a Política da Boa Vizinhança Rodrigo Medina ZagniResumo: Este trabalho tem como objetivo compreender o processo de instrumentalização política da industria cinematográfica nos EUA nas décadas de 190 e 190, no contexto de implementação da “política da boa vizinhança” para a América Latina. Nosso foco de análise é a vinda de agentes dessa política com a missão de construir, por meio do cinema, uma identidade única na qual coubessem latino-americanos e estadunidenses, no esforço defensivo para a guerra que se anunciava. Palavras-chave: Cinema, Política, EUA, América Latina, Segunda Guerra Mundial. Abstract: This work aims to understand the political instrumentalization of the movie industry in the USA during the 190’s and 1940’s of the “good neighborliness’ policy” implemented with Latin America. We focus the coming of American agents to Brazil whit the mission of constructing, through the cinema, an unique identity in which both Latin American and American could recognize themselves in advocacy of the war that was announced. Keywords: Cinema, Policy, USA, Latin America, World War Two. Historiador graduado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e doutorando em Práticas Políticas e Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo - PROLAM/USP. E-mail: [email protected]. Recebido em 22/01/08 e aceito em 20/05/08.

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Cinema Hollywoodiano e a política da boa vizinhança. relações Internacionais e cinema

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    Imagens Projetadas do ImprioO Cinema Hollywoodiano e a Construo de uma

    Identidade Americana para a Poltica da Boa Vizinhana

    Rodrigo Medina Zagni

    Resumo: Este trabalho tem como objetivo compreender o processo de instrumentalizao poltica da industria cinematogrfica nos EUA nas dcadas de 190 e 190, no contexto de implementao da poltica da boa vizinhana para a Amrica Latina. Nosso foco de anlise a vinda de agentes dessa poltica com a misso de construir, por meio do cinema, uma identidade nica na qual coubessem latino-americanos e estadunidenses, no esforo defensivo para a guerra que se anunciava.

    Palavras-chave: Cinema, Poltica, EUA, Amrica Latina, Segunda Guerra Mundial.

    Abstract: This work aims to understand the political instrumentalization of the movie industry in the USA during the 190s and 1940s of the good neighborliness policy implemented with Latin America. We focus the coming of American agents to Brazil whit the mission of constructing, through the cinema, an unique identity in which both Latin American and American could recognize themselves in advocacy of the war that was announced.

    Keywords: Cinema, Policy, USA, Latin America, World War Two.

    Historiador graduado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo e doutorando em Prticas Polticas e Relaes Internacionais pelo Programa de Ps-Graduao em Integrao da Amrica Latina da Universidade de So Paulo - PROLAM/USP. E-mail: [email protected]. Recebido em 22/01/08 e aceito em 20/05/08.

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    Saudamos a todos da Amrica do SulOnde o cu sempre azul

    Saudamos a todos amigos de coraoQue l deixamos, de quem relembramos ao cantar essa cano.

    Edward Plumb1

    Introduo

    Cinema e ideologia, e cinema e poltica, so temas j largamente debatidos por uma extensa bibliografia, contudo o que pretendemos fazer aqui discutir uma dimenso restrita dessas relaes, num perodo chave para a re-elaborao das concepes de utilizao prtica da linguagem flmica.

    Referimo-nos dcada de 1930 e Segunda Guerra Mundial, no qual as tecnologias para projeo, a estruturao dos estdios, a proliferao de salas de projeo e a consolidao de um mercado como mbito de circulao desses bens culturais desenvolviam-se em plena velocidade.

    No que tange aos EUA - lar da hollywoodiana fbrica de iluses -, seu papel no sistema internacional ao irromper do conflito, o extenso debate entre isolacionistas e intervencionistas na arena poltica interna para demarcao de sua poltica externa, e a violenta converso de um perfil poltico antiptico para com as repblicas latino-americanas (na vigncia ainda dos protecionistas neutrality acts2) para a poltica de boa vizinhana, re-configuraram no s as relaes internacionais, mas as armas de projeo de sua imagem seguindo este novo perfil de poltica externa.

    Nesse contexto o cinema foi uma importante arma para operacionalizar a mudana da imagem que as repblicas latino-americanas haviam conformado dos EUA, a partir de um histrico de conflitos, intervencionismos e isolamento econmico de suas polticas para a Amrica Latina, desde as guerras mexicano-americanas em 1848, at as leis de neutralidade dos anos 1930, passando pelo violento Corolrio Roosevelt da Doutrina Monroe.

    Nosso objetivo compreender as polticas pblicas que orientaram a produo cinematogrfica nos EUA em relao Amrica Latina, e como Versos da msica de apresentao do desenho animado Al Amigos, de 1942, de Walt Disney.2 Promulgados sob vigncia do New Deal (19-197), tinham a finalidade de evitar um outro conflito armado de iguais propores s da Primeira Guerra, criando impedimentos para o fornecimento de armamentos a outros pases, alm de outros entraves de carter extremamente protecionista.

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    essa produo se deu de fato.Nosso objeto consiste nas relaes entre a Diviso de Cinema do

    Escritrio para Assuntos Interamericanos3 e a produo cinematogrfica nos EUA, cujo pblico-alvo era a Amrica Latina.

    No trataremos da totalidade dessa produo, mas buscaremos empreender estudos de casos sobre os agentes dessas polticas, ligados ao cinema e envoltos no complexo jogo da nova poltica externa estadunidense.

    Quais as polticas que orientavam essa produo cinematogrfica? A quais interesses serviam e o que se pretendia a partir dos filmes? Como se relacionariam as obras acabadas com o mundo em guerra?

    O esforo compreensivo destas questes de fundamental importncia para lanar luzes sobre as relaes interamericanas, estando o evento relacionado a um contexto maior na complexa poltica externa dos EUA.

    O esforo justificado, pois a conformao de um ncleo de poder centrado na indstria cinematogrfica estadunidense em suas relaes com a Amrica Latina estabeleceu paradigmas ainda vigentes, guardadas as devidas propores, nas relaes culturais interamericanas.

    Com esse objetivo e sob esta justificativa analisaremos parte do expediente do Escritrio para Assuntos Interamericanos, e parte da produo decorrente deste esforo.

    anlise flmica buscaremos associar uma anlise social, focando os segmentos de sociedade, nas estruturas de poder, que se articularam para vocalizar seus interesses por meio deste veculo miditico de muito longo alcance.

    Pretendemos demonstrar que o contexto de guerra mundial acompanhou no cinema no s sua instrumentalizao como bem simblico e veculo comunicacional, como arma de propaganda de guerra voltada cooptao e ao aliciamento aos valores estadunidenses; mas que no mesmo perodo estabeleceram-se mercados para sua circulao, o que foi fundamental no s para a construo e projeo das imagens do imprio, mas para a circulao

    Criado em 190 foi inicialmente designado Office of Inter-American Affairs ou Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations between the American Republics (OCCCRBAR), em 191 foi renomeado como Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (CIAA) e em 195 como Office for Inter-American Affairs ou Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA). Funcionou de 191 a 196, com sede em Washington, DC (EUA), e teve como finalidade gerenciar as polticas estadunidenses para a Amrica Latina, no mbito econmico, poltico e cultural.

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    e re-elaborao desta imagem, hegemnica no hegemnico cinema americano, nas dcadas que se seguiram ao trmino do conflito.

    Desenvolvimento

    O papel da mdia na guerra

    A cientista social Maria Sylvia de Carvalho Franco4, na polmica discusso que travou com o crtico literrio Roberto Schuwarz5, colocou o problema da circulao de idias por meio da indstria cultural da seguinte forma:

    a circulao de mercadorias e sua absoro pelos pases dependentes ou atrasados inerente natureza dos mercados internacionais, isto , se explicam pela diviso do trabalho social. Mas como se realiza a circulao de idias? Pela via de uma indstria cultural dos centros hegemnicos que criaria e determinaria seus consumidores, suas preferncias intelectuais e seu gosto? (FRANCO, 1976, p. 72)

    A resposta que encontramos em relao ao perodo da Segunda Guerra Mundial, no mbito das relaes interamericanas, positiva neste sentido, e afirma a poltica do governo de Frankiln Delano Roosevelt6 (1882-1945), por meio de seu Escritrio para Assuntos Interamericanos, de disseminar a imagem dos EUA como o plpito da liberdade e de seu conceito (prprio) de democracia como a nica sada possvel frente ao perigo nazista. Uma ao de conquista de coraes e mentes que retomava a problemtica lgica do Destino Manifesto7 num novo contexto.

    Professora dos departamentos de Filosofia da Universidade de So Paulo e da Universidade Estadual de Campinas.5 Foi professor de Teoria Literria na Unicamp.Foi professor de Teoria Literria na Unicamp.6 Presidente dos EUA, exerceu mandato de 19 a 195.7 O primeiro a utilizar o termo foi o jornalista nova-iorquino John L. OSullivan, na revista Democratic Review, no ensaioO primeiro a utilizar o termo foi o jornalista nova-iorquino John L. OSullivan, na revista Democratic Review, no ensaio intitulado Annexation, de agosto de 1845 (texto disponvel no stio: http://web.grinnell.edu/courses/HIS/f01/HIS202-01/Documents/OSullivan.html) em que defendia a anexao do Texas pelos EUA: Nosso destino manifesto atribudo pela Providncia Divina para cobrir o continente para o livre desenvolvimento de nossa raa que se multiplica aos milhes anualmente. O Destino Manifesto portanto expressa a crena de que o povo dos EUA teria sido eleito por Deus para liderar o mundo, e que portanto a sua expanso seria, alm do cumprimento desse desgnio divino, uma tarefa manifesta e inevitvel. Tornou-se doutrina poltica durante a segunda metade da dcada de 180, incluindo a compra de Gasden e do Alaska no expansionismo que tinha como direo o norte. Caiu em desuso em 1850 e foi retomada em 1880 para legitimar

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    No se trata apenas de disputa por mercados, num contexto blico a finalidade passou a ser poltica e no final das contas militar: a cooptao ideolgica no esforo de guerra, o que por sua vez garantiu aos EUA liderana absoluta nesses mercados, o meio de circulao de idias e ideologias como bens de consumo de massa.

    Como produto acabado do capitalismo, como um bem de consumo de massa, o cinema hollywoodiano tinha compromissos polticos e ideolgicos e se articulava diretamente com a poltica externa dos EUA.

    Na viragem de um ciclo sistmico do capitalismo sob hegemonia britnica para a estadunidense, o epicentro do caos sistmico foi indubitavelmente o perodo da Segunda Guerra Mundial, e para o estabelecimento e a consolidao desta nova hegemonia o novo imprio contava com uma nova arma.

    Para o socilogo Emir Sader8 nenhum instrumento foi to importante para essa hegemonia do que Hollywood (SADER, 2006, p. 1).

    Contudo o professor aponta um aspecto inusitado se pensarmos o cinema, nos EUA, como arma de guerra no contexto da Segunda Guerra Mundial, uma vez que a indstria cinematogrfica hollywoodiana, exceo do caso de Chaplin com o filme O grande ditador, no se bateu frontalmente com o nazismo. Veremos que o cinema hollywoodiano foi instrumentalizado numa estratgia defensiva, na qual o alvo era a Amrica Latina, no ofensiva, motivo pelo qual o alvo no foram inicialmente os nazistas, to somente referidos.

    A mdia nas relaes interamericanas

    No que tange s relaes entre EUA e Amrica Latina, a prpria disparidade econmica, perceptvel por meio da invaso de produtos simblicos e tecnologias a preos relativamente acessveis ao consumidor mediano, corroborou para o estabelecimento de um estado contemplativo por parte do espectador/consumidor latino-americano.

    O yankee era o produto acabado da modernidade, o auto-intitulado

    dessa vez o expansionismo para alm das fronteiras dos EUA. Como ideologia, uma crtica via de regra externa aos crculos acadmicos atribui a doutrina como o motriz do que chamam de imperialismo norte-americano.8 Professor da Universidade de So Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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    irmo mais velho da Amrica Latina, e essas convices circularam agregadas a objetos tridimensionais ou a produtos imateriais, como os filmes de Hollywood ou as propagandas de cigarros.

    O fenmeno da atrao cultural estadunidense j era perceptvel pelo menos desde o final do sculo XIX, conforme atesta uma significativa literatura que pensava questes identitrias referentes influncia modernizadora dos EUA - o caso de Ariel (ROD, 1947), do escritor uruguaio Jos Enrique Rod (1872-1917) -; mas na dcada de 1930 a penetrao cultural ostensiva em direo Amrica Latina, com a difuso do american way of life, tratava-se de uma estratgia multideterminada mas com um fortssimo vis poltico, como poltica de Estado.

    Nesse sentido mobilizou-se no perodo a produo cinematogrfica e radiofnica, alm da mdia impressa, esta de menor alcance.

    Durante o perodo de vigncia da neutralidade inicial americana na Segunda Guerra Mundial, a cooperao que os EUA esperavam do Governo das repblicas latino-americanas ia alm da entrega de bases militares e navais em sua geoestratgia defensiva: havia uma guerra ideolgica j em curso. A guerra contra o Eixo j aparecia no horizonte dos EUA a ponto de movimentar os esforos de sua diplomacia e demais agentes de poltica externa para uma intensa atuao na construo de uma solidariedade hemisfrica, o que ocorreu mais incisivamente com a propagao dos valores pan-americanos durante as conferncias pan-americanas9.

    Esta nova atuao de carter internacionalista impunha tambm novos desafios poltica externa dos EUA. Com uma guerra ideolgica j em curso desde a converso de sua poltica externa isolacionista para o intervencionismo, e para alm da diplomacia e dos tratados de cooperao militar, a cultura constitua um novo front.

    Era preciso engajar-se nesta frente, desenhando estratgias de ataque e mecanismos de defesa eficientes.

    A escolha foi defensiva para os EUA, mas tomou a Amrica Latina ofensivamente na estratgia de sua cooptao.

    No espectro poltico as correspondncias diplomticas que circularam 9 Mais especificamente, referimo-nos VIII Conferncia Pan-americana, realizada em Lima no ano de 198; IX Conferncia dos Estados Americanos em Bogot, em 1948; e s reunies extraordinrias de Ministros de Relaes Exteriores: no Panam, em 199; em Havana, em 190; no Rio de Janeiro, em 192; e no Mxico, em 195.

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    nos primeiros anos de guerra, entre EUA e Brasil, denunciavam uma extrema preocupao com a opinio pblica latino-americana, instruindo-se o governo brasileiro a adoo de medidas coercitivas a qualquer tipo de crtica que fosse feita poltica estadunidense.

    Segundo correspondncia do tenente-coronel Lehman Miller, chefe da misso militar dos EUA no Brasil, ao chefe do Estado-maior do Exrcito Brasileiro,

    [...] o auxlio que se deseja do Brasil, caso se torne necessrio a passagem atravs de seu territrio de foras dos Estados Unidos para ajud-lo ou a qualquer outra nao como se segue: a) - proporcionar ( . . . ) facilidades ( . . . ), a medida que a situao o exija; b) mobilizar a opinio pblica no sentido de facilitar o auxlio prestado pelos Estados Unidos e dissuadir qualquer ataque que por ventura possa ser feito pelo rdio ou pela imprensa sobre imperialismo ianque etc. (Correspondncia do tenente-coronel Lehman Miller ao chefe do Estado-maior do Exrcito Brasileiro, datada de 19 de setembro de 1940, apud SILVA, 1975, p. 79)SILVA, 1975, p. 79) p. 79)

    O aparelho estatal de controle imprensa, rdio e cinema brasileiros, o DIP10 do Estado Novo11, deveria estar desta forma alinhado s polticas dos EUA, como um instrumento fundamental da aproximao que se pretendia entre seus governos.

    O OCIAA

    Nos EUA este tipo de controle foi mais eficientemente exercido aps agosto de 1940, com a criao do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), rgo diretamente ligado ao Conselho de Defesa Nacional do governo dos EUA.

    O escritrio era chefiado pelo empresrio Nelson Rockfeller e tinha como objetivo elaborar e desenvolver projetos de aproximao entre EUA e Amrica Latina. Suas divises contavam com setores de relaes culturais, comunicaes, sade e relaes comerciais e financeiras, cujas sees por

    10 Departamento de Imprensa e Propaganda, criado em 199.11 Implantado por Getlio Vargas em 10 de novembro de 197.

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    sua vez subdividiam-se nas reas de msica, cinema, imprensa, literatura, rdio, arte, finanas, exportao, problemas sanitrios, transporte e educao infantil.

    Foi construda rapidamente uma ntima relao entre o OCIAA e as trs principais repblicas latino-americanas no perodo, segundo seus prprios critrios: Brasil, Argentina e Mxico.

    No caso brasileiro a atuao ostensiva do OCIAA se deu com o apoio do DIP, que passaria a funcionar como uma espcie de continuao do escritrio no Brasil, promovendo desde um intenso controle imprensa e sua converso para a exaltao dos valores estadunidenses, at a elaborao de cartilhas escolares e a implementao da obrigatoriedade do ensino do idioma ingls nas escolas.

    A diviso de cinema, bem como as demais divises que lidavam com informaes e comunicaes, tinham como diretriz a elaborao e difuso de imagens agradveis associadas a tudo o que viesse dos EUA. Eram promovidos desde bens de consumo de massa como refrigerantes, cigarros e indumentria, criando hbitos para o seu consumo; at valores e costumes, como o uso corrente de expresses no idioma ingls e comportamentos padronizados que denotavam e definiam um novo modelo de alta cultura destinado s classes mdias e altas, enquanto os hbitos culturais nacionais e tradicionais passavam a denotar as classes de menor poder aquisitivo.

    Apesar do cinema ter ocupado um lugar de destaque dentre as divises relacionadas cultura e informao, os maiores esforos se concentravam na diviso de rdio, por conta de seu alcance e popularidade.

    A guerra era coberta em tempo real pela rdio A voz da Amrica, cujos estdios e transmissores funcionavam nos EUA, gerenciados pelo OCIAA, mas cujas difuses eram dirigidas ao territrio e pblicos brasileiros, fundamentalmente jovens de classe mdia. Nos programas eram comuns os slogans exaltando o estilo americano, conformando consenso e as convices de seus ouvintes.

    No to popular quanto o rdio, mas j largamente difundido como hbito das classes dominantes, o cinema foi o segundo grande veculo de comunicao no interesse do escritrio.

    Por meio dos estdios de Hollywood os filmes de fico e documentrios

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    produzidos durante as dcadas de 1930 e 1940, em geral, faziam apologia ao modo de vida da classe mdia dos EUA, sob a orientao direta das polticas do escritrio, conforme pode corroborar um intenso expediente de papis governamentais que circulavam entre o OCIAA e os estdios, com as diretrizes que deveriam ser seguidas nos roteiros dos filmes.

    A estrutura organizacional que relacionava o OCIAA aos estdios, e por sua vez aos roteiristas, produtores e diretores, pode ser verificada no documento redigido na oportunidade em que o ento CIAA, por meio de sua Diviso de Sade, produzia 24 curtas em parceria com o Instituto Nacional de Cinema Educativo Brasileiro.

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    Quanto ao contedo dos filmes, as diretrizes constam em um trecho do documento produzido pelo Coordinator Of Inter-American Affairs em agosto de 1943 e dirigido Motion Picture Society For The Americas, que inclua entre outros estdios a Paramount e a Metro-Goldwyn-Mayer:

    it would likewise be very helpful to the general program if, when the occasion presents itself, material could be included in both

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    features and shorts that will be helpful, if only in a small way, to the general purpose we have in mind. It might be possible, without any impairment of the entertainment quality of the films, to inject into the story an occasional scene, music, character, or line of dialogue, in thorough harmony with the spirit of the story, which will have its effect in contributing something to the over-all program. If, for example, a Latin American boy, or one with a distinctively Latin American name, could be included in, say a group of American soldiers fighting in the war, such a indication would be helpful. There are many such boys, from a number of the Latin American countries, now serving in the American Armed Forces, and to throw some slight emphasis on their activities, would be certain to please, at least, a part of the audience in Latin America. These minor incidents, inserted in American films, should serve in building up an accumulated favorable impression in the minds of those who see our pictures in Latin America. (grifos nossos)grifos nossos)

    Houve tambm um imenso cuidado para que os filmes, ao exaltarem os valores, usos e costumes estadunidenses, no denegrissem de alguma forma o que entendiam como cultura e modo de vida latino. Isso obrigou adoo de uma nova conduta por parte dos roteiristas e produtores, por exemplo, nos westerns to populares naquele perodo, em que os foras da lei no poderiam mais ser mexicanos, a fim de evitar qualquer tipo de mal estar que pusesse em risco as novas polticas culturais de cooperao.

    Quanto questo de gnero, sociedades notadamente machistas como as hispano-americanas naquele perodo foram referidas por meio da exaltao virilidade dos latinos e sensualidade das latinas, ambos estereotipadas.

    Carmem Miranda, a portuguesa que se tornou esteretipo da cultura brasileira, um exemplo clssico da construo identitria que se deu, de forma exgena, em torno da mulher latino-americana: a selvagem que arranhava homens civilizados maravilhados por sua sensualidade e exotismo.

    O inevitvel envolvimento dos EUA na guerra, aps um longo embate entre isolacionistas e intervencionistas na arena poltica interna, como resultado da vitria do poder executivo no Congresso, refletiu diretamente nas polticas culturais dentro e fora dos EUA, e com isso nas polticas sobre a utilizao do cinema como instrumento de cooptao ideolgica.

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    Neste novo momento o filme de Chaplin se tornou arma de propaganda antinazista do OCIAA na Amrica, conforme demonstra o Memorandum CO-No. 1029, datado de 7 de maio de 1942 e endereado ao coordenador do OCIAA, cujo ttulo era The Dictator film, onde se pode ler sobre os preparativos para sua primeira exibio no Brasil, que ocorreria em So Paulo, no dia 14.

    Mas para que os filmes fossem realizados seus artfices precisavam previamente mapear o terreno at ali desconhecido: a Amrica Latina. Alm desta necessidade, a influncia que esses agentes exerciam sobre a mdia e entre espectadores latino-americanos poderia ser utilizada para a promoo dos valores estadunidenses e para a ampliao de seu poder e influncia na Amrica Latina.

    Na lista de celebridades que visitaram a Amrica Latina com este escopo esto as atrizes Lana Turner e Tyna Power, o diretor John Ford e os cineastas Orson Wells e Walt Disney.

    Para cumprir nossos objetivos nos ateremos visita destes dois ltimos.

    Walt Disney vem Amrica

    Para que a poltica da boa vizinhana reorientasse uma nova poltica cultural o mtodo utilizado foi a criao de personagens que concentrassem os traos caractersticos do que se pensava como uma identidade latino-americana. O que de fato ocorreu que nesses personagens estavam contidas as caractersticas do que os estadunidenses, que pouco ou nada conheciam da constituio cultural latino-americana (dada a oscilao entre isolamento e intervencionismo em sua poltica externa e a histrica ausncia de cooperao) pensavam que fosse esta identidade. O produto final foram as caricaturas que j conhecemos.

    Um dos principais agentes dessas polticas e criador de algumas dessas caricaturas, por conta de sua influncia, era Walt Disney (1901-1966), responsvel pelos personagens para cinema mais significativos desse processo.

    Trat-lo como um agente direto da poltica externa dos EUA no constitui nenhum tipo de conspiracionismo. Christophe Barbier (2001) e Marc Eliot (1993) demonstraram que alm de ter sido simpatizante do nazismo, Disney

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    foi ainda informante do FBI nos primeiros anos da Guerra Fria, tendo delatado atores e cineastas ao Comit Parlamentar liderado pelo senador de Joseph McCarthy no auge da perseguio anticomunista nos EUA.

    Ariel Dorfman e Armand Mattelart (1980) relacionaram sua produo diretamente ao fenmeno do imperialismo estadunidense, demonstrando que seus filmes serviram como instrumentos de uma poltica externa que disputava coraes e mentes, desta vez contra o comunismo.

    Com isso no resulta difcil caracteriz-lo, Walt Disney, como fez o historiador Sidney Ferreira Leite, como um agente especial da boa vizinhana (2006), tendo sido indicado Nelson Rockfeller pelo prprio presidente Franklin Roosevelt.

    Sua vinda para o Brasil em junho de 1941, como agente do OCIAA com a misso de expandir e consolidar a poltica da boa vizinhana, marcou um momento decisivo para a expanso de seus estdios. Tendo enfrentado problemas econmicos e inclusive uma greve de funcionrios, Disney se via ainda em meio a acusaes da imprensa que o relacionavam ao nazismo.

    A aliana com Rockfeller, nesse contexto, lhe era extremamente favorvel. Acabava de receber do governo Roosevelt mais de 100 mil dlares para que produzisse duas peas de propaganda poltica, dois desenhos com um tema demarcado: a solidariedade entre as Amricas; o que resolvia tanto os problemas econmicos quanto apaziguaria as notcias de que seria um colaborador do nazismo dentro dos EUA.

    Todas as despesas de sua viagem, bem como de toda a equipe, foram pagas pelo governo Roosevelt.

    O pretexto para a viagem era a busca de novos talentos e inspirao para novas obras, alm da premiao que a crtica brasileira daria ao desenho animado A Branca de Neve e os Sete Anes e a divulgao de sua nova obra, Fantasia. Mas a agenda de Disney revela encontros com autoridades governamentais, como o prprio presidente Getlio Vargas, e declaraes imprensa, promovendo a integrao continental sob a poltica da boa vizinhana, sob a liderana dos EUA.

    O entusiasmo de Vargas aps a visita de Disney e a disposio que manifestou em cooperar com o projeto de integrao proposto pelos EUA,

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    representava possibilidades de cesso das bases pretendidas pela geoestratgia estadunidense em Natal e Fernando de Noronha.

    Disney ainda se encontrou duas vezes com o diretor do DIP, Lourival Fontes, no Cassino da Urca e na sede do departamento, no Palcio Tiradentes; demonstrando que os agentes do OCIAA conectavam as estratgias culturais dos EUA aos aparelhos de censura na Amrica Latina.

    De volta aos EUA, em 1942 os estdios Walt Disney apresentam o desenho animado Al amigos!, onde o sisudo Pato Donald transformado em uma espcie de guia turstico por uma viagem Amrica Latina, percorrendo rapidamente Bolvia, Chile, Colmbia, Peru e Venezuela, e prolongando-se mais demoradamente no Brasil e na Argentina. O recorte sobre essas repblicas outro denotador importante para vincular o desenho como pea de propaganda do OCIAA, que privilegiava em suas polticas de aproximao o contato com Brasil, Argentina e Mxico, pases que aspiravam liderana regional e exerciam enorme influncia, como plos irradiadores de cultura, em relao s demais repblicas latino-americanas.

    A viagem fantasiosa o palco da criao do personagem Z Carioca, o papagaio que ao ser colocado como o novo amigo do j clebre Pato Donald edificava no plano simblico as bases para a influncia cultural e poltica dos EUA na Amrica Latina no plano real.

    Os valores expressos no desenho corroboram a tese de que a produo seguia no s as diretrizes do escritrio mas tambm a cartilha de recomendaes do DIP. O tom nacionalista assumido na seqncia onde a cultura brasileira reduzida simplificadamente no carnaval carioca e no molejo da baiana, ambientada pela composio de Ari Barroso, Aquarela do Brasil, pea de propaganda por sua vez do Estado Novo.

    A frmula para o tipo de cooperao desejada: Z Carioca, o brasileiro simptico, malandro, falador e indolente, amigo do srio e temperamental Pato Donald, o estadunidense. O irresponsvel que precisava, nos tempos de crise, da liderana do responsvel.

    Para Sidney Ferreira Leite,

    apesar de todos os cuidados da produo em no cometer erros para desempenhar de modo eficiente a misso diplomtica traada, as

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    contradies e as ambigidades do desenho so explcitas. Donald e seus companheiros no se comportavam como amigos, mas como turistas que visitavam terras exticas. O turista interpreta as culturas das regies que visita como uma seleo de monumentos. O resultado de tal interpretao a reduo dos nativos a tipos, desprovidos de personalidade e histria, isto , esteretipos. No Brasil, por exemplo, o carioca caracterizado como o malandro simptico e cordial, a sntese do esprito brasileiro, o argentino representado pelo vaqueiro gacho, aventureiro e corajoso. Em outras palavras, tipos que resumiam o olhar americano sobre seus vizinhos latinos, sem a inteno de observar as diferenas culturais, mas comprometido em reduzir e classificar, estratgias para submeter o desconhecido condio de inferior (LEITE, 2006).

    O segundo filme encomendado pelo governo Roosevelt foi lanado apenas em 1945, o desenho animado Os trs cavaleiros, que no Brasil recebeu o nome de Voc j foi Bahia?. Nele a conjuntura do conflito armado, que j envolvia alm dos EUA, o Brasil e o Mxico, reflete na elaborao de um novo personagem: o mexicano Panchito. Reflete tambm o distanciamento da poltica externa dos EUA da Argentina, por conta dos desentendimentos havidos nas conferncias Pan-Americanas e sua relutncia em reconhecer a hegemonia estadunidense na liderana continental; pela ausncia de referncias ao pas que deixara de ser um bom vizinho, ao contrrio do que acontece em Al amigos!. J Brasil e Mxico, cujos personagens simbolizavam a fidelidade aos EUA, recebiam de volta sua amizade no plano simblico no mesmo ano em que, no plano real, os dois pases reconheciam oficialmente a hegemonia estadunidense e sua liderana hemisfrica, consolidando o modelo do moderno sistema pan-americano vigente do ps-guerra at pelo menos a Guerra das Malvinas, em 1982.

    A estrutura ideolgica que d sustentao ao desenho a mesma do primeiro, ou seja, Donald o turista em busca do exotismo, e a Amrica Latina, encarnada pela Bahia, a terra onde os desejos so saciados pela natureza exuberante e pela seduo das mulheres, catalisadas pela baiana Iai, que seduz e beija o pato.

    A integrao simbolizada pela dana de Donald que no resiste ao ritmo latino e se entrega aos fascnios da baiana.

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    Orson Welles vem Amrica

    O cineasta estadunidense George Orson Welles12 (1915-1985) esteve profundamente envolvido pelos processos polticos que levaram implementao da poltica da boa vizinhana. Contratado pelo estdio RKO Radio Pictures Inc. - subordinado s polticas do Escritrio para Assuntos Americanos e sua Diviso de Cinema -, para realizar um filme no novo perfil implementado, Welles enveredou para uma narrativa crtica dessas identidades, sendo demitido pelo prprio estdio enquanto ainda realizava filmagens no Brasil.

    Mas para entendermos a natureza do papel que desempenhou como agente dessas polticas necessrio compreender parte de sua biografia, que se confunde com a prpria histria da comunicao social.

    Poucos eventos foram to significativos no sentido de demonstrar o poder de controle social dos meios de comunicao de massa quanto o trote pregado por Orson Welles na noite de Halloween de 1 de novembro de 1938, quando dramatizou com imenso realismo a obra de Herbert George Wells, A Guerra dos Mundos, narrando pela rdio CBS que a Terra estava sendo invadida por extraterrestres.

    O pnico criado pela transmisso radiofnica tomou ruas, congestionou estradas e provocou a ira de pessoas que se armaram para enfrentar o perigo aliengena. Isso no s por conta da transmisso mas pelo imaginrio instantneo que a concebeu como realidade, tendo como base no apenas as narraes de Welles mas as imagens catastrficas amplificadas no imaginrio coletivo e que instantaneamente se tornaram realidade para aqueles que ouviram a transmisso ou que souberam dela. Com riqueza impressionante de detalhes muitos a partir dali juravam ter visto evidncias da invaso como, por exemplo, sinais de fumaa vindos do local do ataque.

    No apenas um simples trote ou a demonstrao do brilhantismo na dramatizao de Welles, o evento marcou a ascenso de uma hegemonia miditica, de veculos de comunicao de massa voltados construo da realidade e obtendo xito como mecanismos de controle social.

    O evento garantiu a Welles um milionrio contrato com o estdio RKO, de Hollywood, para dois filmes, com total liberdade para dirigir, atuar, produzir e escrever os roteiros.12 Alm de cineasta foi tambm diretor, roteirista, produtor e ator.

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    Em 1941 estreou no cinema como diretor, co-roteirista (junto de Herman J. Mankiewicz), produtor e ator, com a aclamada obra Citizen Kane, considerada por grande parte dos crticos posteriores como um dos melhores filmes de todos os tempos13.

    Citizen Kane inovava a prpria linguagem flmica, introduzindo novas tcnicas ou tcnicas raras e pouco utilizadas. Recursos at ali inexplorados como a profundidade do campo (campo e contra-campo), angulaes de cmera (plonge e contra-plonge), planos longos, aes entrecortadas num mesmo ambiente e narrativas no-lineares, que obrigavam Welles a um cuidado muito maior na fase de edio e montagem do filme.

    A trama central de Citzen Kane era a vida de um magnata da rea da comunicao, de sua ascenso queda: o personagem Charles Foster Kane, interpretado pelo prprio Orson Welles.

    O resultado final no foi bem recebido pelos estdios de Hollywood. Polemizou-se a possibilidade de Welles ter se baseado na biografia de William Randolph Hearst, que por 40 anos foi o mais rico e poderoso homem da comunicao nos EUA14.

    Ainda gozando do contrato firmado com Hollywood, Welles filmou Soberba, em 1942. Um retrato crtico da sociedade americana, com os mesmos recursos estilsticos de Citizen Kane, mas sem o mesmo sucesso de pblico ou clamor da crtica, ou mesmo sem a polmica que no final das contas catapultou a bilheteria de sua obra de estria.

    Se pensarmos que a contratao de Welles para a co-direo junto de Norman Foster - e produo do filme documental Its All True (que consiste numa obra alinhada politicamente proposta do OCIAA), se d logo em seguida polmica recepo que Citizen Kane tivera no mbito do pblico, crtica e estdios, que foras ento levaram o Escritrio para Assuntos Interamericanos, por meio do estdio RKO, a contratar Welles como co-diretor de um filme cujo objetivo era a construo de identidades hermanas?

    1 Por exemplo, a opinio de Danny Peary em Guide for the Film Fanatic: Can justifiably be called the greatest picture of all time. Countless classic moments. Foi ainda o nmero 1 da lista Best American Movies, em 1998, do American Film Institute.1 A polmica foi abordada no documentrio The Battle Over Citizen Kane, que venceu o Oscar na categoria documentrio em 1995.

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    Nossa hiptese de que o objetivo do OCIAA era instrumentalizar o poder de controle social demonstrado pelos veculos de comunicao de massa quando Welles narrou a obra de H.G. Wells na transmisso radiofnica da Guerra dos Mundos, no a crtica que empreendeu em Citizen Kane ou que propunha em Soberba. A imensa mobilizao causada pela transmisso chamou a ateno dos agentes do Estado, demonstrando claramente possibilidades de sua instrumentalizao poltica e militar, muito mais do que a inovao esttica proposta em sua obra prima.

    Um nmero significativo de pessoas havia sido convencido por notcias absurdas, e porque no utilizar os mesmos recursos para coopt-las no interesse do Estado em tempo de guerra? Os prprios alemes, especificamente o ministro da propaganda nazista Goebbels, j haviam percebido o poder da propaganda como arma de guerra, transformando o rdio e o cinema em instrumentos dela.

    Ficava demonstrado que os limites entre fico e realidade poderiam ser gerenciados pelo Estado, segundo seus propsitos, mesmo que militares, criando realidades distorcidas.

    Os interesses do Estado se sobrepuseram s tendncias do mercado que j via Welles como um forte candidato ao ostracismo - em virtude da campanha movida pelo prprio Hearst para boicotar o filme e o diretor em Hollywood -, para coloc-lo ao seu servio no esforo de guerra.

    Isso explica em grande parte a vinda de Welles ao Brasil assim que terminou as filmagens de Soberba, para filmar o carnaval carioca, cujas cenas fariam parte do seguimento My Friend Bonito, do filme que tinha como tema a amizade entre um menino pobre e seu touro.

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    As atividades de Welles

    O Memorandum CO-948 do CIAA, datado de 27 de abril de 1942 e que relatava as atividades de Orson Welles no Brasil, demonstra que mais do que um diretor, cumpria ele uma agenda digna de um embaixador da cultura estadunidense na Amrica Latina.

    Praticamente todos os dias Welles se encontrava, oficialmente ou no, com jornalistas dos mais expressivos peridicos brasileiros e de jornais de outras repblicas latino-americanas, alm de empresrios, banqueiros, literatos, acadmicos, intelectuais, artistas de teatro, personalidades do rdio e polticos ligados ao governo brasileiro. Tornou-se ainda ntimo da famlia Vargas e de Osvaldo Aranha, alm de amigo pessoal do interventor de Minas Gerais, Benedito Valladares.

    Welles ainda viajou a Buenos Aires, onde foi recebido por membros do governo e das artes, alm de conceder inmeras entrevistas imprensa.

    De volta ao Brasil assumiu um programa dirio de rdio, o que complicava ainda mais seu comprometimento com o projeto do filme.

    No se referia nessas oportunidades exclusivamente ao seu trabalho, na realidade a maior parte de suas declaraes estava centrada na questo da guerra e da poltica de integrao continental proposta pelo governo dos EUA, o que corrobora a tese de que se tratava de um agente dessa poltica externa.

    Welles deveria ser o criador da imagem do imprio e o operador das mquinas que a projetariam aos espectadores latino-americanos, e mostrava-se o porta-voz direto dessas polticas.

    Tantas atribuies atrasaram o calendrio do projeto e conseqentemente aumentaram os gastos previstos, alm de consolidar a crescente influncia de Welles nas mais altas esferas de poder no Brasil. Mas no expediente que circulou neste perodo o escritrio no parecia, de forma grave, preocupado com o fiel cumprimento do cronograma.

    O relatrio ainda informa que 85% do projeto Carnaval j havia sido concludo, e que os 15% restantes seriam constitudos pelo trabalho de trs semanas de estdio (da Cindia) e da tomada de cenas do Cassino da Urca, onde boa parte da seqncia se desenrolaria, o que levaria mais 10 dias.

    Depois disso metade da equipe poderia retornar Hollywood, enquanto

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    Welles e mais 5 ou 6 homens viajariam para Salvador para terminar a polmica seqncia do Jangadeiro, para a qual seriam necessrias de 4 a 7 semanas. Nisso consistia o problema.

    A seqncia decorrente da tomada inusitada, feita no Rio de Janeiro, de um jangadeiro que viajava em protesto capital da Repblica, morto por afogamento quando j estava prximo praia.

    A insistncia de Welles em criar uma seqncia que no estava prevista no projeto inicial para a morte do jangadeiro, e sua relutncia em desistir dela, iniciavam uma crise que culminaria na demisso de Welles.

    O relatrio soa entusiasmado mas demonstra que, a partir da insistncia de Welles em terminar a seqncia, os problemas tanto em relao aos gastos da viagem quanto demora para concluso do projeto passaram a ganhar maior importncia.

    making a Picture in Brazil means working day and night. It means working several days on a problem which an organized studio in Hollywood could cope with in a few hours []. It should be clear, then, that the difficulties accompanying a major production are enormous and are impossible to overcome in a few weeks [] [] this means, first of all, that a full cooperative relation with official government departments and unofficial groups must be established. A double handicap a) that of experienced men ignorant of the language on one hand, and inexperienced Brazilians on the other b) must be got over.

    O problema maior no aparece no relato, inscreve-se em suas entrelinhas: consiste na queda de brao que Welles iniciou com o DIP, e que perdeu.

    Logo em seguida polmica, Soberba teve 43 minutos da edio original amputados da verso final, enquanto Welles ainda estava no Brasil. O fracasso de bilheteria foi o argumento utilizado para sua demisso bem como de toda a sua equipe.

    Sua viso crtica, que no aparecia na seqncia Carnaval mas em Jangadeiro, no interessava ao Escritrio, muito menos o mal estar que resultava com o DIP e o Estado Novo.

    A insero que conseguiu nas esferas governamentais no impediu que

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    com Jangadeiro Welles passasse a constituir uma ameaa aproximao entre Brasil e EUA.

    Quando a crtica no pde mais ser anulada, quando Welles no desistiu da seqncia e bateu de frente com as diretrizes do OCIAA, caiu em desgraa nas polticas do Escritrio.

    Its All True ficou inacabado.

    Relaes possveis entre as polticas do OCIAA, as iniciativas de Welles e seu desligamento

    No basta dizer que o OCIAA e o DIP mantinham ntimas relaes, a correspondncia oficial de Lourival Fontes, Diretor-Geral do departamento, endereada a John Hay Whitney, demonstra mais do que intimidade, demonstra o que o prprio governo brasileiro esperava do cinema hollywoodiano.

    Para o diretor,

    [] o que mais nos agradaria seriam filmes produzidos sobre assuntos brasileiros, nos Estados Unidos ou no Brasil. Com artistas americanos e, quando possvel, com o emprego de alguns elementos brasileiros. A principal fonte a explorar, nesse terreno, seriam os episdios ligados nossa histria, como, por exemplo, a epopia dos Bandeirantes, os episdios da catequese pelos jesutas as lutas de independncia, (como a Inconfidncia Mineira), os episdios da corte de D. Joo VI, de D. Pedro I e de D. Pedro II, que pem em relevo o esprito nacional brasileiro.

    Sobre o papel dos censores do DIP o diretor diz que,

    [] A censura exercida da maneira mais benvola possvel (sic). So raros os casos de interdio de filmes (sic). A lei da Censura estabelece como causas para a interdio: a) filmes que incitam a rebelio das massas, ao desrespeito s autoridades, greve e ao terrorismo e sabotagem; b) os que contm insulto a chefes de Estado estrangeiros e a credos religiosos, ou que constituam ofensa aos sentimentos nacionais;

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    c) os que induzam ao desregramento e dissoluo social.

    Definitivamente, jangadeiros morrendo em protesto contra as polticas do Estado Novo no interessavam ao DIP, por incitarem as massas, o desrespeito s autoridades e o desregramento social, segundo sua concepo de censura para protestos populares. No interessava evidentemente OCIAA, por ameaar a frgil aproximao do governo dos EUA e seu esforo defensivo com um regime declaradamente simptico aos fascismos europeus (uma demonstrao pblica de simpatia ao fascismo ocorreu no discurso proferido durante o almoo de comemorao do dia da Marinha do Brasil, a bordo do Minas Gerais, em companhia do alto escalo das armas brasileiras no dia 11 de junho de 1940; sua transcrio foi publicada em Barros e Faria, (1984,Barros e Faria, (1984, p. 89-92).

    O diretor-geral do DIP tinha a receita para o que deveria constituir os temas dos filmes realizados por Hollywood no Brasil, para ele,

    [] o pblico brasileiro se interessa grandemente pelos filmes de reconstituio histrica e pelas pelculas culturais, como os tapetes mgicos e Viagens de Fitzpatrick, etc.

    Nessa concepo, este tipo de protesto no constitua a imagem de Brasil que o Estado Novo gostaria que fosse projetada pelo cinema hollywoodiano. Sua sugesto a John Hay Withney para elevar o nvel cultural das massas so:

    a) filmes sobre as grandes quedas dgua do Brasil, como Iguass, Avanhandava e Paulo Afonso;b) sbre a regio amaznica: rios, fauna e flora;c) a extrao de quartzo, em Minas Gerais (material estratgico de que o Brasil o maior e quasi (sic) nico produtor mundial);d) experincias brasileiras sobre o ofidismo e o Instituto Butantan;e) o Instituto de Manguinhos, grande centro de estudos de molstias tropicais, mantido pelo governo do Brasil;f ) arte religiosa de Minas Gerais e obras do Aleijadinho;g) o problema das secas do Nordeste Brasileiro e as grandes obras realizadas para combat-las;

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    h) a extrao de cera de carnaba (de to emprego na indstria americana) nas regies do Nordeste;i) a vida dos jangadeiros;j) a vida dos gachos nas fazendas do Rio Grande do Sul;l) as lavras diamantferas de Minas Gerais e Mato Grosso;m) a lavra do ouro e as minas (So Joo Del Rey, Mining Co., Morro Velho, etc.) (grifos nossos)

    No Brasil que o Estado Novo queria fazer acreditar que existisse no havia restries sociais, luta de classes, protestos desesperados nem jangadeiros morrendo, havia o gigantismo de um pas cujo territrio de propores continentais era dono de uma natureza monumental e de recursos ilimitados, havia fonte de riqueza e recursos prontos para serem explorados pela indstria dos pases capitalistas mais desenvolvidos, havia um repertrio de monumentos que denotavam um modelo de nao, e havia uma histria que exaltava o colonizador como detentor do fardo civilizador por um lado e heroicizava mrtires libertrios por outro.

    Para o diretor de um dos mais violentos rgos de censura, de um dos negros perodos de ditadura no Brasil, os temas elencados [] fixam problemas de real importncia e ligados defesa comum das Amricas.

    Sobre Walt Disney o prprio Osvaldo Aranha declarou que a exibio de Fantasia deveria ser obrigatria; sobre Orson Wells, o at ali amigo Aranha nada mais dizia.

    Depois de assistir Fantasia e Al Amigos fica claro que Disney era a pessoa certa segundo os propsitos do OCIAA. Depois de ver Citzen Kane e o que restou de Its All True de Wells, incluindo a seqncia Jangadeiro (material disponvel no Centro de Apoio Pesquisa Histrica do Departamento de Histria da Universidade de So Paulo), pensamos que definitivamente o OCIAA, de acordo com os seus propsitos, enviou a pessoa errada!

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    Concluses

    O perodo da Segunda Guerra Mundial foi fundamental para a consolidao da indstria cinematogrfica estadunidense como lder do mercado cinematogrfico mundial. No apenas isso, sua instrumentalizao poltica no contexto da guerra fez difundir valores e imagens de modernizao, resultando nos pases perifricos a implementao de modernizaes abstratas e um estado catatnico de estupefao.

    Estava inaugurado o perodo de imperialismo cultural, mas que no havia sido extirpado de sua dimenso poltica e econmica.

    No momento imediato do ps-guerra este imperialismo cultural fio exercido pela via poltica, por meio da incluso de clusulas aquisitivas de enlatados culturais em tratados e pacotes de auxlio econmico.

    O potencial demonstrado pelos veculos de comunicao de massa na construo da realidade social e de suas imagens consolidou-se de forma irreversvel como poltica de Estado no Plano Marshall, e sua nova instrumentalizao poltica e militar no contexto da Guerra Fria demonstram que a eficcia desta arma de guerra e seu poder de seduo j haviam sido constatados durante a Segunda Guerra Mundial.

    Disney e Welles foram instrumentos desta lgica, os gatilhos que acionados pelo Estado fariam funcionar a arma. Disney cumpriu fielmente sua misso como agente da poltica de boa vizinhana de Roosevelt; Welles foi o gatilho que tomou conscincia de si mesmo e deliberadamente emperrou, motivo pelo qual foi substitudo por outros agentes, conscientes ou no de seu papel naquele contexto.

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