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C INZENTO E DOURADO Vasco Rosa nos 150 anos do seu nascimento Raul Brandão em foco

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CINZENTOE DOURADO

Vasco Rosanos 150 anos do seu nascimentoRaul Brandão em foco

Raul Brandão em livros publicados pela Imprensa Nacional

A Noite de Natal, de Raul Brandão e Júlio BrandãoLeitura, introdução e notas por José Carlos Seabra Pereiraseguido de um estudo sobre Júlio Brandão1981

El-Rei Junot, de Raul BrandãoNota introdutória de Guilherme de Castilho1982

Vida e Obra de Raul Brandão, de Guilherme de Castilho2006

Raul Brandão. Do Texto à Cena, de Rita Martins2007

O Essencial sobre Raul Brandão, de António M. B. Machado Pires2.ª edição, 2007

Rouxinol e Mocho seguido de Ensaios — Raul Brandão e Vitorino Nemésio, de António M. B. Machado Pires2009

Vasco Rosa nasceu em Lisboa em junho de 1958. Foi secretário de redação de Raiz & Utopia (dir. Helena Vaz da Silva), Análise (dir. Fernando Gil) e Enciclopédia Einaudi. Foi também editor de O Independente e diretor editorial das Edições Cosmos. Colaborou e colabora com publicações literárias e culturais como Colóquio Letras, Ler, Pessoa Plural, Suroeste e O Tripeiro. Organizou uma dezena de livros de autores como Maria Filomena Mónica, Miguel Esteves Cardoso, Alexandre O’Neill, José Cutileiro, José Cardoso Pires, Rui Henriques Coimbra, Victor Cunha Rego e José Cutileiro. Pesquisou, entre outros, sobre Amadeo de Souza-Cardoso, António Dacosta e Joaquim Novais Teixeira. Colabora desde junho de 2014 com o jornal Observador.Dedicou anos a Raul Brandão: publicou A Pedra ainda Espera Dar Flor, recolha de dispersos (Quetzal, 2013), escreveu sobre ele mais de 70 artigos reunidos neste volume, organizou uma antologia da sua obra (E-Primatur, novembro de 2017) e foi curador de duas exposições dedicadas ao escritor pela Câmara Municipal do Porto por ocasião dos 150 anos do seu nascimento.Atualmente pesquisa para Raul Brandão e os Açores, um livro da editora Companhia das Ilhas a sair em 2018, num projeto apoiado pela Direção Regional da Cultura.

«São claros os pressupostos axiológicos e metodológicos de Vasco Rosa. A propósito de circunstâncias envolventes de projetos ou concretizações de ‘bustos, estátuas, lápides e outra parafernália’ celebrativa, afirma perentoriamente: ‘a edição e a leitura contínuas das obras dos grandes escritores é que são as grandes homenagens que mais importam, porque, sem elas, esses tais outros monumentos, placas toponímicas — ou prémios literários — pouco ou nada podem transmitir aos novos acerca das pessoas em causa’.Mas é mais largo e mais profundo o contributo que Vasco Rosa dá para a atualização das virtualidades do axioma eliotiano sobre o contexto vertical de cada nova criação literária no horizonte de expectativa (mais ou menos instruído) do leitor, enunciado por interposto mestre, Vitorino Nemésio, a propósito de Raul Brandão: ‘Uma literatura faz-se com vivos e mortos. Não só a ficção os junta na sua comunidade milagrosa, como têm prazo-dado na imaginação do leitor, que sente a sombra do escritor morto, de ontem ou de há seis séculos, na inspiração e no estilo do escritor contemporâneo.’»

Do prefácio de José Carlos Seabra Pereira

«Em 2013 eu sabia dispor de quatro anos para me dedicar a essa evidente tarefa de contribuir para um novo patamar de conhecimento brandoniano.»

De «Raul Brandão em foco, 2» de Vasco Rosa

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Capa: Raul Brandão visto por João Abel Manta, 1974.

9 7 8 9 7 2 2 7 2 5 2 3 1

ISBN 978-972-27-2523-1

CINZENTOE DOURADO

Vasco Rosanos 150 anos do seu nascimentoRaul Brandão em foco

Raul Brandão em livros publicados pela Imprensa Nacional

A Noite de Natal, de Raul Brandão e Júlio BrandãoLeitura, introdução e notas por José Carlos Seabra Pereiraseguido de um estudo sobre Júlio Brandão1981

El-Rei Junot, de Raul BrandãoNota introdutória de Guilherme de Castilho1982

Vida e Obra de Raul Brandão, de Guilherme de Castilho2006

Raul Brandão. Do Texto à Cena, de Rita Martins2007

O Essencial sobre Raul Brandão, de António M. B. Machado Pires2.ª edição, 2007

Rouxinol e Mocho seguido de Ensaios — Raul Brandão e Vitorino Nemésio, de António M. B. Machado Pires2009

Vasco Rosa nasceu em Lisboa em junho de 1958. Foi secretário de redação de Raiz & Utopia (dir. Helena Vaz da Silva), Análise (dir. Fernando Gil) e Enciclopédia Einaudi. Foi também editor de O Independente e diretor editorial das Edições Cosmos. Colaborou e colabora com publicações literárias e culturais como Colóquio Letras, Ler, Pessoa Plural, Suroeste e O Tripeiro. Organizou uma dezena de livros de autores como Maria Filomena Mónica, Miguel Esteves Cardoso, Alexandre O’Neill, José Cutileiro, José Cardoso Pires, Rui Henriques Coimbra, Victor Cunha Rego e José Cutileiro. Pesquisou, entre outros, sobre Amadeo de Souza-Cardoso, António Dacosta e Joaquim Novais Teixeira. Colabora desde junho de 2014 com o jornal Observador.Dedicou anos a Raul Brandão: publicou A Pedra ainda Espera Dar Flor, recolha de dispersos (Quetzal, 2013), escreveu sobre ele mais de 70 artigos reunidos neste volume, organizou uma antologia da sua obra (E-Primatur, novembro de 2017) e foi curador de duas exposições dedicadas ao escritor pela Câmara Municipal do Porto por ocasião dos 150 anos do seu nascimento.Atualmente pesquisa para Raul Brandão e os Açores, um livro da editora Companhia das Ilhas a sair em 2018, num projeto apoiado pela Direção Regional da Cultura.

«São claros os pressupostos axiológicos e metodológicos de Vasco Rosa. A propósito de circunstâncias envolventes de projetos ou concretizações de ‘bustos, estátuas, lápides e outra parafernália’ celebrativa, afirma perentoriamente: ‘a edição e a leitura contínuas das obras dos grandes escritores é que são as grandes homenagens que mais importam, porque, sem elas, esses tais outros monumentos, placas toponímicas — ou prémios literários — pouco ou nada podem transmitir aos novos acerca das pessoas em causa’.Mas é mais largo e mais profundo o contributo que Vasco Rosa dá para a atualização das virtualidades do axioma eliotiano sobre o contexto vertical de cada nova criação literária no horizonte de expectativa (mais ou menos instruído) do leitor, enunciado por interposto mestre, Vitorino Nemésio, a propósito de Raul Brandão: ‘Uma literatura faz-se com vivos e mortos. Não só a ficção os junta na sua comunidade milagrosa, como têm prazo-dado na imaginação do leitor, que sente a sombra do escritor morto, de ontem ou de há seis séculos, na inspiração e no estilo do escritor contemporâneo.’»

Do prefácio de José Carlos Seabra Pereira

«Em 2013 eu sabia dispor de quatro anos para me dedicar a essa evidente tarefa de contribuir para um novo patamar de conhecimento brandoniano.»

De «Raul Brandão em foco, 2» de Vasco Rosa

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Capa: Raul Brandão visto por João Abel Manta, 1974.

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ISBN 978-972-27-2523-1

Imprensa Nacionalé a marca editorial da

Imprensa Nacional‑Casa da Moeda, S. A.Av. de António José de Almeida1000‑042 Lisboa

www.incm.ptwww.facebook.com/[email protected]

© Vasco Rosa e Imprensa Nacional‑Casa da Moeda

Coordenação editorial: Imprensa Nacional‑Casa da MoedaConceção gráfica, paginação e capa: Imprensa Nacional‑Casa da MoedaRevisão de texto: Imprensa Nacional‑Casa da MoedaImpressão e acabamento: Imprensa Nacional‑Casa da Moeda

Local e data de edição: Lisboa, outubro de 2017ISBN: 978‑972‑27‑2523‑1Depósito legal: 419 777/16Edição n.º 1021561

Imagem da capa: © João Abel Manta, SPA 2017 Retrato de Raul Brandão. Desenho a tinta da China sobre papel, 1974 Coleção do Museu de Lisboa/Câmara Municipal de Lisboa — EGEACMC.DES.995

Imagem da página 313: Arquivo Raul Brandão. © Sociedade Martins SarmentoFotografia de Armando Gonçalves, 1926

Imagem da página 380: Brigue italiano Torquato no calhau de Santa Catarina, Funchal — tem‑poral de 26 de novembro de 1884. Photographia‑Museu Vicentes em depósito no Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, VIC/556

Imagem da página 383: Arquivo Raul Brandão. © Sociedade Martins SarmentoFotografia de Fernandes Thomaz, 1926 (pormenor)

CINZENTOE DOURADO

Vasco Rosanos 150 anos do seu nascimentoRaul Brandão em foco

Prefácio de José Carlos Seabra Pereira

2017

Índice

ix UmaartedebemserviroamoràliteraturaPrefáciodeJoséCarlosSeabraPereira

1 RaulBrandãoemfoco, 2 4 Agradecimentos

5 Parentescocomomar 8 Oprimeiroretrato 14 Obustoquenuncahouve 18 Alápidesobreaporta 21 ACasadoAltoeaSociedadeMartinsSarmento 30 Aestreiafoidiscreta 43 Figuradeproa…epoeta 59 Acomédiahumanacomotragédia 70 Dalamaalma,dohúmussonho 76 Ograndeeditor 81 Oapóstolocompassivo 87 Os PescadOres,pinturaescrita 89 Insubmissos,disseele 98 D.ThomazdeMelloBreynereRaulBrandão 109 JaimeBatalhaReiseRaulBrandão 118 RaulBrandãoeosAçores 122 RaulBrandãoemÁfrica 130 Aprimeiraevocaçãopóstuma 133 Duplamenteesquecidos 138 Ilhasfrescasdetinta 143 Andorinhas,vidafrenética 147 Revoltaedoçura 155 Umfantasmafamiliar 159 Umecoquenuncaseapagará 164 UmavisitaàNespereira 169 Paisagem,perscrutaçãotranscendente 174 Fisgadasoblíquas 177 Supremasperplexidadesdohumano 183 NovelhoExcelsior 187 Omundodospintores 192 Sant’AnnaDionísioeRaulBrandão 196 OprimeiroRamiresFerro 201 Autenticidadetitânica

206 Otriunfodaespiritualidade 209 AsreservasdeÁlvaroSalema 216 Aânsiademodificar 222 Espantosaconfluênciadetalentos 226 Brandão,Oliveirae…Régio 233 Teatroaoalcancedamão 236 Cravoeferradura 241 Revolucionáriobíblico 244 Umbruxodaemoção 249 Umcontempladordramático 254 Tragicamenteinconveniente 257 NespereiraeFoz 262 SaramagoeditordeRaulBrandão? 266 DuasvezesMárioDionísio 272 Otalentodosnarradores 277 Compreenderomar 281 Avidanosjornais 286 Ojornalistamoderno 289 Comunhãoexpressivadetemperamentos 292 Asmulheresvãoàfrente 294 Aflorhumana297 Ummomentodaconsciênciahumana 303 Ternuraepiedade309 AtéojovemLopes-Graça

3 15 Maiscedodoquepre-visto 320 Primeiroescritosobreteatro 324 RaulBrandãon’O rePórter

336 Os simPlesdeGuerraJunqueirolidosporRaulBrandão 340 RaulBrandãonaNOva alvOrada

367 Maispescadores,1899 374 Ogrande31 377 Mãosàobra

385 EditarRaulBrandão 393 Cinquentaanosdeediçãoereceção399 RaulBrandãoeVitorinoNemésio405 RaulBrandão:407 RaulBrandãoeosjornais:mitoerealidade

413 NOtas

449 ÍNdice ONOmásticO

VIII CinzentoeDourado.RaulBrandãoemfoco

Umaartedebemserviroamoràliteratura

Rari nantes in gurgite vasto.

Virgílio, Eneida, I, 118.

Por tempos como os nossos, em que grassam na dinâmica do campo lite-rário as táticas autopromocionais e as presunções atrevidas, se possível a baixo custo de trabalho e escrutínio, Vasco Rosa tem-se confirmado, à margem dos apoios, disputas e compensações da carreira académica, como exemplo de amor desinteressado aos bens simbólicos, de operosidade infatigável, de investi-gação proba e de transparente manifestação dos recursos e meios, dos débitos a terceiros e dos créditos próprios. O presente livro ilustra superlativamente essas virtudes e leva o cuidado de honestidade intelectual até lances insólitos, como aquele em que o autor explicita não ter conseguido chegar ao conhecimento de certa dissertação que refere («Impressões e Paisagens»: na fronteira entre o Naturalismo, o Simbolismo e o Impressionismo, 2008, de Francine Camelin, orientada por Renata Soares Junqueira na Universidade de Araraquara).

Eis-nos perante livro precioso, que pretende constituir-se em continuação de A Pedra ainda Espera Dar Flor, mas que efetivamente o complementa no propósito específico de aplicar ao campo da receção crítica (e literária, e artística) de Raul Bran-dão idêntico trabalho de pesquisa e de publicação, e, por outro lado, o completa com a recolha de mais alguns extraviados ou ignorados dispersos do autor de Húmus.

De facto, graças a aturado e acurado labor de investigação em bibliote-cas e hemerotecas, Vasco Rosa reunira em A Pedra ainda Espera Dar Flor, de 2013, dezenas de Dispersos 1891‑1930 — textos brandonianos esparsos (e perdidos para a leitura e suas consequências) em múltiplas fontes de jornais, revistas e outras «folhas de papel impresso», «identificados uns, desconhecidos outros, e que nunca haviam sido lançados em livro, fosse pelo autor, fosse pelos seus póstumos editors». Neste Cinzento e Dourado visou Vasco Rosa identificar e recolher artigos, recensões, comentários e relacionações de receção

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crítica a escritos de Raul Brandão e de caracterização do seu ethos literário, ou de perspetivação de influxos seus na criação literária de outros autores, ou de motivação de criações noutras artes (visuais ou musicais) — «trazendo também à luz do dia alguns quase-inéditos e outros documentos suscetíveis de nos darem uma perspetiva mais ampla […] da sua vida e obra». Acontece que, além de considerar ambos estes processos indissociáveis e mutuamente esclarecedores, evidenciando uns e outros quanto ainda havia por saber de Raul Brandão, Vasco Rosa teve oportunidade, que entendeu não desperdi-çar, de juntar àquela coletânea crítica mais alguns textos esquecidos de Raul Brandão; e, se não me engano (mas será questão para posterior análise), nesses escritos primordiais — sobretudo em «A Vida» e nos comentários às Palavras Loucas de Alberto de Oliveira e às Palavras de Agnelo de Antero de Figueiredo — fulguram intuições e assertos que se tornarão recorrências de valor matricial na obra matura de Raul Brandão e do seu drama de encontros e desencontros com a Modernidade ou, antes, com as veleidades de autossuficiência pragmática e os engodos de cultura da ironia que distinguem essa Modernidade.

Naturalmente, é com toda a pertinência que A Pedra ainda Espera Dar Flor é mais de uma vez referida, aliás como versão ampliada da «reedição» de dispersos de Raul Brandão — como volume que efetivamente retoma as recolhas Sonhos de 2004 e Lume sob Cinzas e Paisagens com Figuras de 2006 e as completa com mais de meia centena de novos textos (como a propósito da colaboração n’O Repórter assinala). Assim procede Vasco Rosa quer para apontar o acesso a textos chamados entretanto à colação (por exemplo, verbetes do Guia de Portugal e escritos sobre Columbano e a pintura nova, ou sobre o pintor Abel Cardoso), quer para reiterar hipóteses inferenciais ali levantadas (e por vezes convalidadas por altos estudiosos brandonianos, como no caso da hipótese, logo considerada plausível por Vítor Viçoso, de uma entrevista de Raul Brandão a O Século haver inspirado Maria Lamas no seu inquérito As Mulheres do Meu País), quer para estabelecer paralelo com compensadoras alegrias do esforço de «arqueologia literária» em torno de Raul Brandão (v. g. na descoberta de um seu comentário a Os Simples, em tudo semelhante ao do anterior achamento de nota crítica sua sobre o Só), quer para celebrar novas descobertas num âmbito temático sectorial (como é o caso dos mais antigos textos de Raul Brandão sobre as gentes do mar). O passo mais peculiar de Vasco Rosa e mais prometedor para os seus leitores é justamente o da última referência, onde o investigador culto e editor criterioso liminarmente declara que «o passo seguinte será identificar, comentar e editar os […] inéditos e cor-respondência [de Raul Brandão] suscetíveis de serem lidos em tipo».

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O labor de Vasco Rosa vem-se desenvolvendo à contraluz e ao arrepio do que, no que toca a Raul Brandão, particulariza o que tenho chamado lapso lansoniano dos Estudos Literários em Portugal, isto é, o défice heurístico e ecdótico com que se saldou na cultura literária portuguesa o período de hege-monia da História Literária positivista e o vício de acelerada sucessão de mode-los teóricos e hermenêuticos logo aplicados na relação cognitiva com textos de desafortunada trajetória editorial e não fixados, uns, em competentes edições (para-)críticas, ou nem sequer recolhidos, outros, em criteriosas e comentadas compilações. Também este novo trabalho de Vasco Rosa combate essa feição negativa da «nossa história cultural, que precisa de trabalho de reconstrução histórica para ilustrar os vindouros acerca do que realmente aconteceu» (obser-vação feita a propósito do processo litigioso em torno do destino do espólio de Raul Brandão, mas de alcance generalizável).

Aliás, a convicção de travar o bom combate leva Vasco Rosa a recorrente-mente não se coibir de, em registo variável de censura ou de estima emulatória, apontar lacunas ou corrigir erros de anteriores incursões de outros publicistas ou investigadores, de evidenciar oportunidades perdidas de edição por ocasião de efemérides ou reuniões científicas… sem se deter no adro da nossa pequena congregação de especialistas brandonianos. Assim acontece a propósito do quase envolvimento juvenil de Raul Brandão no 31 de Janeiro, do acesso tam-bém juvenil à prestigiosa editora Parceria António Maria Pereira, das fontes das Memórias e das críticas coetâneas que os seus volumes suscitaram, de dispersos de V. Nemésio ainda não compilados, de omissões em tábuas biblio-gráficas brandonianas e nemesianas, de artigos de Manuel Mendes e tantos outros (Régio, Álvaro Salema, Afonso Gaio, Caetano Vasques Calafate, José Saramago, Mário Dionísio, Ana de Castro Osório, etc.) ignorados ou votados ao esquecimento e ao abandono, das relações de mútuo reconhecimento crítico entre Raul Brandão e outros homens de letras, de escritos brandonianos sobre teatro e da tão retardada reedição da obra dramatúrgica, do alheamento gene-ralizado perante o título projetivo Teatro Cinematográfico, etc.

Globalmente, Vasco Rosa visava, e alcançou, «contribuir para um novo patamar de conhecimento brandoniano», não se limitando a «acrescentar, por capricho, diletantismo ou caturrice, este ou aquele documento que logrou escapar a ratos de biblioteca ou a estudantes ou professores académicos for-çados a folhearem jornais antigos em busca de novidades velhas», antes aju-dando quer «a perspetivar da maneira mais completa possível o que já lemos ou vamos começar a ler, conhecendo e refletindo sobre o que a respeito dum mesmo livro já foi dito antes de nós, em diferentes épocas e com diferentes

�II JoséCarlosSeabraPereira

capacidades de entendimento e fantasia», quer «a situar o escritor no seu próprio tempo histórico», quer a comparticipar na compilação da biblio-grafia sobre Raul Brandão «capaz de fixar a sua fortuna crítica ao longo do século xx».

Vasco Rosa tem-se sentido interpelado e, felizmente, motivado pela constatação pesarosa de que está em grande parte «por fazer uma recolha e avaliação crítica da receção da obra de Raul Brandão por parte de outros homens das letras — buscando nos seus papéis ecos desse magistério literário e humano», tal como sobre o trajeto existencial do escritor (como sublinha particularmente a propósito da sua morte); e, por isso, desde há anos se deci-diu a dedicar, como investigador e como publicista, «uma atenção articulada àqueles autores que num passado já distante ficaram associados à análise e valorização» da personalidade e da obra de Raul Brandão. Com efeito, sobra-lhe razão para assinalar que destacadas figuras de «colunas críticas que fizeram época mas hoje poucos conhecem ou relembram» dedicaram a Raul Brandão «textos nem sempre compilados em livros-antologia ou sequer identificados em bibliografias, seja de teses académicas, seja ainda pelo escasso trabalho de indexação bibliográfica promovida pela magna instituição que é — ou deveria ser — a Biblioteca Nacional», enquanto assim se avoluma a perceção, reiterada uma e outra vez, do que falta fazer para «complementar o que se conhece da receção crítica de Raul Brandão, mas também daquilo que podemos chamar a livre discussão de pontos de vista acerca da sua obra e da perenidade dela».

Por junto, Vasco Rosa advoga que individualidades e instituições «pro-tagonizem o levantamento, divulgação e comentário de materiais pertinen-tes, do próprio Brandão ou de terceiros, que se encontrem em bibliotecas e arquivos». E para dar o exemplo fez a caminhada heurística e ecdótica que desembocou na apresentação neste livro de «um largo espectro de depoi-mentos sobre Raul Brandão» (em especial por alturas do seu centenário e do presente sesquicentenário), antecedidos de introduções contextualizantes e apoiados em notas informativas. Esse trabalho compreende, porém, mais outras componentes de história literária e cultural, através de outros tipos de escritos relativos a lugares e episódios da vida do escritor, a projetos da sua trajetória intelectual (com destaque para o de viagem à África portuguesa, em 1930), etc. Identicamente, no âmbito mais restrito das relações pessoais e profissionais de Raul Brandão com os artistas plásticos do seu tempo, constatou e começou a colmatar a lacuna de recolha e avaliação crítica dos documentos a elas atinentes.

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E de novo Vasco Rosa deixa implícito o propósito de demandar inéditos brandonianos, quando, ao recolher aqui mais um texto de Túlio Ramires Ferro, assinala ter sido ele o único dos seus admiradores confessos que buscou comple-tar a edição da sua obra em livro pela publicação de inéditos.

Estas são as motivações de uma «arqueologia literária» infatigável — exi-gente mas «prazeirosa», pois «quem folheia com gosto nunca se cansa…» — e justamente afortunada, na medida em que esperada ou inesperadamente lhe tem acontecido que «uma descoberta nos reenvia para outra, mais outra e mais outra ainda, até conseguirmos reconstruir algo que traz novidades» acerca do autor, «como pequena peça de puzzle que ainda não houvesse sido vista e posta no seu devido lugar», no quadro, todavia, de um sistemático «trabalho de história cultural» — condição sine qua non de acesso a «novo patamar de consciência sobre a receção» de Raul Brandão.

Em certa introdução de artigo, esta reiterante explanação e justificação do programa de «arqueologia literária» ganha, mais do que novo matiz da sua índole, um novo alcance teleológico, pois o seu escopo heurístico — já de si tão meritório — vê-se aí associado a um desígnio de mutação hermenêutica: a pos-tulação de que «um raid profundo», que faça emergir a obra de Raul Brandão «na sua mais completa dimensão e complexidade», possa «criar um momento a partir do qual novas apreciações possam ser alicerçadas sobre um mais eleva-do patamar de conhecimento». Isto é, julgando Vasco Rosa que o que designei por lapso lansoniano dos nossos Estudos Literários se agravou hodiernamente «pela tendência, nas academias, de banir tout court o exercício da pesquisa em favor do desempenho da interpretação do que já é público e notório», decerto crê provável que se projete sobre a receção de Raul Brandão a mesma saturação hermenêutica de que vêm sendo vítimas, numa crítica e ensaística glosante e cerzideira, as obras de muitos escritores; e que, em contrapartida, como em parte se tem verificado com os Estudos Pessoanos, a descoberta e publicação de novos textos possa estimular uma renovação das perspetivas de análise e interpretação.

Constituem-se em espaços de pesquisa os vários circuitos literários e jor-nalísticos que Raul Brandão atravessou, em particular em certas fases menos atendidas da sua trajetória, desde as «primícias literárias e gazeteiras, no Grande Porto e em Lisboa» (cuja cartografia Vasco Rosa vai já corrigindo e completando) — num esforço de árdua urgência, tanto mais quanto se trata de «escritor que buscou afirmar-se em diferentes planos, mas não deixou episto-lário e clipping que nos deem a variedade e diversidade das suas colaborações avulsas e de ocasião em jornais e revistas ao longo dos anos, seja por convite, seja por iniciativa própria».

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Essa árdua urgência traduz-se na necessidade de «rastreio paciente da imprensa, num domínio temporal e geográfico amplo (Açores e Madeira incluí-dos)» visando «cobrir as colaborações, pré-publicações e recensões críticas de Raul Brandão durante uma ‘vida literária’ extensa de mais de quatro déca-das». Mas traduz-se também na necessidade de detetar e aceder a «espólios de terceiros e um tanto ao acaso do engenho e da sorte», onde possam demorar materiais respeitantes ao escritor — sendo insofismável que a bem merecida «sorte», que de quando em vez vem prendar Vasco Rosa, corresponde em parte às virtudes propiciatórias do seu «engenho»!…

Campos de pesquisa são também o inventário raisonné dos incidentes da «história editorial» da obra de Raul Brandão — evocados, por exemplo, a propósito do litígio judicial em torno do espólio do escritor —, a investigação (e a crítica) das fontes por este usadas, particularmente na elaboração das suas Memórias (v. g. a longa «Carta a Alberto Bramão», publicada em 1890 no lis-boeta Jornal da Noite), a pesquisa dos ecos ou silêncios na imprensa aquando de acontecimentos brandonianos — intervenções e publicações do escritor ou sobre o escritor (por exemplo, perante palestra de João Gaspar Simões em 1931 na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto ou perante a con-ferência de Vergílio Ferreira em Guimarães no centenário de Raul Brandão).

Domínio prevalecente de pesquisa reside, porém, nas páginas em tempos dedicadas por autores maiores ou menores a momentos, fatores e traços da realização literária de Raul Brandão em publicações periódicas, em opúsculos, em livros esquecidos: v. g. Paulo Osório nas Aguilhadas (1904), José Régio na Bysancio (1924) e no Comércio do Porto (1959), Sant’Anna Dionísio nos seus Cepticismos (1925), Pensamento Invertebrado (1931), etc., Artur Ribeiro Lopes em A Inteligência na Literatura Nacional (1927), Túlio Ramires Ferro na revista Aqui e Além (1946), José Rodrigues Miguéis na Gazeta Musical e de Todas as Artes (1961), Álvaro Salema em revista de divulgação cultu-ral promovida pela Shell (1966), Joaquim Costa no ensaio Alma Portuguesa (1909) — o mesmo Joaquim Pereira da Costa/Celso que escreve n’O Comércio do Porto aquando do falecimento de Raul Brandão, tal como Paulo Braga n’O Povo, e Humberto Araújo no Diário de Coimbra, o jovem Vitorino Nemésio no Diário de Lisboa (1930) —, César de Frias sobre Teatro e sobre Os Pescadores (1923, 1924), Caetano Vasques Calafate e outros colaboradores d’A Bibliografia (1925), etc.

São claros os pressupostos axiológicos e metodológicos de Vasco Rosa. A propósito de circunstâncias envolventes de projetos ou concretizações de «bustos, estátuas, lápides e outra parafernália» celebrativa, afirma perentoria-

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mente: «a edição e a leitura contínuas das obras dos grandes escritores é que são as grandes homenagens que mais importam, porque, sem elas, esses tais outros monumentos, placas toponímicas — ou prémios literários — pouco ou nada podem transmitir aos novos acerca das pessoas em causa».

Mas é mais largo e mais profundo o contributo que Vasco Rosa dá para a atualização das virtualidades do axioma eliotiano sobre o contexto vertical de cada nova criação literária no horizonte de expectativa (mais ou menos ins-truído) do leitor, enunciado por interposto mestre, Vitorino Nemésio, a propósi-to de Raul Brandão: «Uma literatura faz-se com vivos e mortos. Não só a ficção os junta na sua comunidade milagrosa, como têm prazo-dado na imaginação do leitor, que sente a sombra do escritor morto, de ontem ou de há seis séculos, na inspiração e no estilo do escritor contemporâneo.» No mesmo sentido, Vasco Rosa procede segundo o princípio de que «a literatura é um património e como tal deve ser protegido e salvaguardado, o que no caso significa: ser editada». O facto de ocorrer em 2017 a efeméride dos 150 anos de nascimento de Raul Brandão torna-se fator de acrescida legitimação do afã recoletor e editor que Vasco Rosa exemplarmente leva a cabo.

Nesse meridiano, convém assinalar que por vezes não se trata apenas de aduzir dados pertinentes para análise e interpretação, mas também de avocar juízos autorizados sobre a alta cotação no cânone literário que Raul Brandão merece — como é caso paradigmático quando artigo de Nemésio estatui em 1930 que «o primeiro lugar das letras portuguesas pertence, pelo jus da idade e do génio, a mestre Raul Brandão» — ou de fazer reverter em favor dessa cota-ção o capital simbólico de grandes autores e de textos admiráveis que, por altu-ras do centenário, consagram à sua obra (Ruben A.) ou reconvertem elementos seus em obra própria de receção criativa (Herberto Helder).

No domínio específico que constitui o objeto formal deste trabalho, não escasseiam os resultados diretos, sobre o fundo de textos descobertos, recupera-dos, resgatados: o esclarecimento de episódios da vida de Raul Brandão e de suas potenciais consequências (por exemplo, por ocasião do 31 de Janeiro de 1891); o alargamento do corpus brandoniano (v. g. a reprodução integral da já referi-da «Carta a Alberto Bramão» de 1890 e a série de textos que encerra o presente volume); a descoberta e evidenciação de boas críticas subscritas por autores obs-curos, tais como o artigo de Caetano Vasques Calafate na saída da 2.ª edição de Os Pobres; a indicação fundada de efeitos de sugestão exercidos por escritos de Justino de Montalvão sobre Raul Brandão e alguns lances da sua vida; o rappel do destaque editorial dado por Gil Nozes de Carvalho ao excerto «A Ilha Azul» de As Ilhas Desconhecidas na coleção «Oceanos» no âmbito da Expo ’98, etc.

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Por outro lado, não faltam resultados colaterais de incidência brando-niana: a fixação rigorosa da data de saída a público do livro As Ilhas Desco‑nhecidas; as circunstâncias geradoras da tradução e do prefácio d’O Cerco do Porto, do coronel Owen; a efetiva redação por Manuel Mendes, em 1943, de um livro sobre Raul Brandão; a autoria aquiliniana da biografia de Raul Brandão, editada e completada por A. Sérgio, na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1939); a colaboração de Raul Brandão n’O Repórter como parte integrante das suas primícias jornalísticas; a notícia, via Alberto Bramão, de que por 1890 Raul Brandão preparava um romance que pensava intitular Os Descalços; as inferências que podem ser retiradas do contrato de edição princeps de Húmus (1917); o reavivar da importância das estadias e convi-vências em Lisboa durante a década de 1920 enquanto «trabalho de campo» para a elaboração das Memórias; a refração atualizante que ganha, após déca-das de império pessoano, a noção e designação de «estilo psicográfico» usado juvenilmente por Túlio Ramires Ferro; a hipótese plausível de influência de Os Pescadores na novela Almas do Mar de Villa-Moura e da versão manus-crita d’O Pobre de Pedir na novela Cidade Romântica de António Cruz; as marcas da atração exercida pela obra de Raul Brandão sobre o poeta neorro-mântico António Alves Martins, sobre os poemas de Rosa Silvestre/Maria Lamas em Humildes (1923) e sobre o ensaísta e contista Fernando de Araújo Lima; a interlocução de Ana de Castro Osório e Raul Brandão enquanto auto-res de literatura para crianças e jovens, nomeadamente pelas afinidades de A Nossa Pátria e de Portugal Pequenino; a evidenciação do potencial de modernidade de Raul Brandão na criação paragramática do poema-livro Húmus por Herberto Helder e pela versão operática de O Gebo e a Sombra concebida por Alexandre Delgado em 2014; a focagem da indiciada genealogia literária com valor de sugestão hermenêutica — Shakespeare, Camilo, Poe, Dostoievski… —, das relações com outros escritores e seus possíveis reflexos criativos — Pascoaes, claro, mas até o memorialista D. Thomaz de Mello Brey-ner —, da atração inspiradora exercida sobre o estádio formativo de Nemésio e Miguéis, de José Gomes Ferreira e Manuel Mendes.

Em prisma análogo, Vasco Rosa prospeciona a área das relações com pin-tores ou desenhistas — Columbano e António Carneiro, Celso Hermínio e Abel Cardoso, Carlos Carneiro e Alberto de Souza, e da inspiração temática que gerou em Roberto Nobre, Abel Salazar e Bernardo Marques (em fenómeno de intersemiose artística mais vasto do que o apontado na música de Lopes-Graça e Jorge Peixinho, tal como no cinema de Manoel de Oliveira). Essas incursões exercem-se no quadro mais vasto de consequências interpretativas perante

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um escritor que se desdobrou em pintor (cujas telas de amador são também focadas por Vasco Rosa) e assume um génio literário que uma e outra vez con-voca na leitura — não de seus «quadrinhos ao ar livre» (como indicativamente chamou aos textos de Os Pescadores), mas sim de todo o seu «visualismo antropológico» — os conceitos de impressionismo e expressionismo, sobretudo na perspetiva superiormente exemplificada por Vítor Viçoso ao estudar a «pin-tura escrita» de Os Pescadores, que supera, como temos também advogado, o espartilho de supostos ciclo impressionista e ciclo expressionista no devir da obra brandoniana. Assim deve ser, até porque, como assinalou Mário Dionísio (com multíplice autoridade de escritor e pintor, teorizador estético e crítico), poucos escritores «tão bem nos tenha[m] mostrado que pintar é ver por dentro» e tenham sabido fundir «o desinteresse pelo contorno dos impressionistas (tudo nele se interpenetra e flui), a deformação dramaticamente sombria e vincada dos expressionistas (tudo nele se torce e grita)».

Além disso, Vasco Rosa passa continuamente do plano da deteção de dados para o da congeminação de hipóteses no domínio da biografia, da histó-ria editorial e literária, da hermenêutica textual: intermediação de Columbano no acesso do jovem Raul Brandão ao editor António Maria Pereira, valorização da «eucarística vara mágica do Amor» em ponte entre Justino de Montalvão e Dom Manuel Clemente, hábitos incomuns do jovem Raul Brandão durante os invernos da Foz, os caminhos e descaminhos dos temporãos tentames em verso do estro verdadeiramente lírico de Raul Brandão, as potencialidades que a abortada viagem a África nele teria enquanto escritor confesso cultor «dum sonho nostálgico» perante evocações literárias das «grandes selvas» e ansioso por captar «a obra de Deus em toda a sua pureza», o influxo motivador que certa entrevista de Raul Brandão a O Século sobre a condição das mulheres em Portugal terá exercido sobre Maria Lamas no sentido de conduzir o inquérito As Mulheres do Meu País, etc.

Assim, de vários modos Vasco Rosa pode aduzir novos dados e lançar novas luzes sobre a biografia, a edição, a experiência artística, a receção crítica e criativa de Raul Brandão — sintomaticamente olhado a partir da adesão à visão nefelibata do escritor como «monstro literário» (na aceção difundida no fim-de-século, até pro domo sua, por Paul Bourget) — «alucinado […] viven-do num surménage voluntário, entre a atmosfera mórbida do seu sonho, tecido com voluptuosidade e com febre» (no dizer de Justino de Montalvão).

Da biografia ficamos a ter mais nítida perceção no que toca aos já refe-ridos hábitos do jovem Raul Brandão nos invernos da Foz, ao afastamento do jornalismo na primeira década da República e distanciamento pessoal em

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relação aos centros nevrálgicos da turbulência lisboeta, ao costume nos anos 20 de passar temporadas de inverno em Lisboa, entre a York House e o aparta-mento na Rua de São Domingos à Lapa (onde haveria de morrer), e dos ganhos de convívio literário e de informação histórica e cultural na redação da Seara Nova e nos cafés do Chiado, na Biblioteca Nacional e no atelier de Columbano, com Pascoaes e com Batalha Reis, com o bibliófilo Aníbal Fernandes Thomaz e com o heterogéneo «Grupo da Biblioteca»; a importância que ganha a até agora subestimada atividade vinhateira na última fase da vida de Raul Bran-dão na propriedade da Casa do Alto (Nespereira, Guimarães) e sobretudo as motivações e os intuitos, as metamorfoses e as vicissitudes do projeto de viagem à «África portuguesa» por 1930 em ordem a elaborar um livro a intitular com denominação — Portugal Maior — ao tempo irradiante no nacionalismo transversal aos vários quadrantes político-ideológicos; e até o prolongamento póstumo do destino da personalidade de Raul Brandão recebe mais desenvolvi-dos esclarecimentos no que toca aos projetos escultóricos de consagração na Foz natal da sua vinculação existencial aos «homens e mulheres que tantas páginas definitivas [lhe] inspiraram […], desde ‘O Manuel Vareiro’, saído num Correio da Manhã de fevereiro de 1893».

Da história editorial da obra brandoniana, entrecruzada com a história do seu devir literário e até com a história da sua receção crítica, este inquérito e estudo de Vasco Rosa torna-nos presente a destreza juvenil para o versejar de tópicos madrigalescos e o imediato projeto de um romance que pelo título anunciado por Alberto Bramão — Os Descalços — indiciaria inflexão pós--naturalista a caminho de Os Pobres; atesta as afinidades dostoievskianas que finisseculares próximos de Raul Brandão liam nos desgarros humanos da História dum Palhaço, numa perturbação vivencial incompatível com a obje-tividade artiste atribuída a um Leconte de Lisle e a um Flaubert e colocando Raul Brandão à beira do dilema baudelairiano — «ou se brûler la cervelle, ou se faire chrétien!» — estigmatizado por Barbey d’Aurevilly; dá-nos conta do desorientado juízo que A Farsa podia provocar em leitores representativos, como Paulo Osório, no dealbar do século xx e revela-nos como vinte anos depois em Espanha se fazia eco de que Raul Brandão se seguia a Camilo e a Eça na cadeia descontínua de grandes figuras da novelística e que A Farsa estava considerada o melhor romance contemporâneo; reforça, pelo resgate da extraordinária recapitulação de Rodrigues Miguéis aquando da reedição d’Os Pobres, a chocante falta de «uma voz amiga, uma voz justa» que na altura da publicação originária dessa obra «dissesse o seu nome às turbas idiotas que por esse tempo iam já lendo menos mal o Dantas»; mostra-nos, por meio de

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certa crítica de César de Frias, que por 1923 se antevia que a anunciada reedi-ção d’Os Pobres viria enriquecida por prefácio de Guerra Junqueiro diferente do que antepusera à edição prínceps; leva-nos a revisitar os cadernos de bolso de inquérito social de Raul Brandão nos alvores do século xx (e a reapreciar matizadamente a organização por Túlio Ramires Ferro do grosso volume Os Operários, ed. 1998) e pormenoriza os loca sancta da carreira jornalística de Raul Brandão na última década do século xix e na primeira década do sé- culo xx (O Popular, Revista Ilustrada, Revista de Hoje, O Repórter, O Monitor, O Universal, Correio da Manhã, Diário da Tarde, O Dia, Revista Literária, Científica e Artística d’O Século, Brasil‑Portugal, A Leitura, O Imparcial, etc.); alerta, através do testemunho de José Rodrigues Miguéis, para a irradia-ção de sensibilidade cativante da seleta escolar Livro de Leitura organizada por Raul Brandão (em parceria com D. João da Câmara e Maximiliano de Azevedo), ensinando desde os alvores do século «a ler, a sentir as belezas e dores da vida através da forma»; reaviva a íntima conjugação de esforços entre Raul Brandão e Álvaro Pinto na «trabalhosa e transatlântica refundição oficinal» da primeira edição do Húmus e o contraste com a relutância racionalista de Antó-nio Sérgio relativamente à obra de Raul Brandão, tal como reaviva o impacto ou a fuga que a insólita índole narrativa de Húmus provocou na leitura e na crí-tica coeva — em contraste com a compreensão deslumbrada de companheiros nefelibatas como Justino de Montalvão: «Que importa que a Crítica, de óculos indignados a julgue na efabulação imperfeita como romance, alheia a todos os moldes gastos do género? Em vez desse equilíbrio ponderado e fácil, que o autor lhe teria dado, se apenas quisesse fazer uma novela naturalista, […]» — e repõe a questão, de contornos e ilações ainda hoje não bem dirimidas, do silêncio e do aparente alheamento ou incompreensão dos modernistas relativamente à novi-dade forte do romance; desvela a importância de D. Thomaz de Mello Breyner no conhecimento d’O Cerco do Porto, do coronel Owen, e na motivação para o trabalho de tradutor e prefaciador realizado por Raul Brandão num só ano; confirma o carácter deliberado da publicação póstuma do Vale de Josafat, volume derradeiro das Memórias; explana de forma impressionante as reações ferozes que as Memórias suscitam na imprensa de vários quadrantes; reaviva o intenso envolvimento de Raul Brandão no relevantíssimo programa do Guia de Portugal e o processo de composição e ilustração (por Carlos Carneiro) de Portugal Pequenino; evidencia que o jovem Vitorino Nemésio cedo assinalou aos anos 20 como a narrativa de Raul Brandão, vindo de um fundo de realismo queirosiano, «oferece a singularidade da mais forte e funda reação ao cânone realista»; mostra como mesmo o empático Sant’Anna Dionísio de Pensamento

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Invertebrado considera Raul Brandão vítima de «dieta de leitura» típica da «incultura da nossa literatura», por comparação com uma das referências da época (o Chestov que tenho chamado à colação para melhor perscrutação das virtudes do mal em Régio e outros presencistas), ao mesmo tempo que defende Raul Brandão do «silêncio sistemático, surdamente hostil» a que o «nosso pequeno mundo literário» o votava ou da alternativa superficialidade com que o impressionismo crítico sujeitava a sua escrita a «um trabalho indecoroso de análise morfológica»; lembra a compensatória conferência de Câmara-Reys na série Aspectos da Literatura Portuguesa (1929); confirma, através do resgate de crónica de César de Frias em começos de 1924, o efeito de conquista de público e popularidade que Os Pescadores finalmente trouxeram a Raul Brandão e, em contrapartida, por crónica de Joaquim Pereira da Costa em dezembro de 1930, que por morte de Raul Brandão parecia não haver no Porto ou mesmo no país gente capaz de manifestar visão compreensiva e valorativa da sua obra; comprova, pagando tributo a Luísa Dacosta como pioneira crítica, o valor precursor do tratamento brandoniano das figuras femininas (antes de Florbela e de Irene Lisboa, «foi ele que transformou a mulher-corpo, fantasia e objeto do desejo masculino, num sujeito de trabalho, de sofrimento, e de sonho»).

Finalmente, a démarche de Vasco Rosa que, sem temer as conotações apressadas de caturrice erudita de curto raio de ação, a si mesma se designa como «arqueologia literária», vai em demanda dos arcanos — arquétipos subliminares e transcendentes — da criação brandoniana. A fisionomia literá-ria (espiritual e estética) de Raul Brandão ilumina-se por luzes interpretativas do próprio Vasco Rosa ou de outros leitores qualificados por ele descobertos e transcritos, desempenhando exemplarmente entre a obra e nós o papel do interpres (na aceção etimológica, recuperada por Starobinski e pela Crítica de Identificação da escola fenomenológica de Genève), num magistério a revisitar em que, como sempre, V. Nemésio é o expoente máximo: a «alma angustiada e febril», a autenticidade artística contrária «ao nosso convencionalismo formal e hipócrita» e feita «expressão do horror» correlata do «medonho» vivido por dentro, e a sua escrita liberta do academismo pós-queirosiano, «sem essa obses-são do adjetivo» então tanto em voga (José de Figueiredo); a «arte aflitiva» de reiteração vocabular e «prosa agreste, agressiva», com «audácia de epíteto que esbofeteia a retórica e o código», para enraivar o leitor com sua tremenda verdade antropológica, em «todo o misterioso lodo de vícios, perversões, abu-sos, que jazem ao fundo da alma humana», à contraluz do «sonho do Longe» e da terna piedade em que o «sombrio água-fortista, às vezes tão doloroso até ao sarcasmo, da Farsa, dos Pobres, do Húmus, transforma-se, no contacto

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destes lavradores das ondas, num apóstolo tão evangelicamente compassivo como o Michelet d’O Mar», «de livro para livro, as figuras que ele visionou são todas irmãs — da imensa irmandade da angústia e da miséria humana» e todavia ao lado das «magras velhas grotescas […] escondendo os ódios e as invejas» movem-se as «criadas de servir, desajeitadas, feias e rotas, […] no coração inocente trazem, como miraculosa flor desabrochando num tronco ressequido e tosco, o luminoso amor, que, a irradiar na sombra, sem ninguém o ver, todas as desgraças beija» — em suma, «Aflitivo de análise dolorida, pairando na atmosfera turva da sagrada loucura, a macabra e aguda sinfonia que nessas páginas freme, sugere a espaços […] Dostoievski e Poe — mas com um não sei quê de mais vago e lunar, que é o timbre deste lírico da Alucinação. […] A visão torturada da Vida reveste-se, neste pessimista, que é também um comovido idealista e um doce elegíaco, dum halo espiritual de sonho.» (Justino de Montalvão); a viragem ideotemática de reação aos paradigmas realista e naturalista, no âmbito de uma poética que descarta os preceitos aristotélicos de verosimilhança: «preferência do mundo subconsciente à esfera do racional; preponderância do valor simbólico da existência sobre a sua captação e nota-ção descritivas; concorrência da transcrição pictural do concreto com o esbater e obnubilar da realidade psíquica, cuja notação fenomenológica escapa ou não interessa ao escritor, mas cuja constante referência a um fatum e a um sentido é muitas vezes genialmente aludida ou surpreendida», num quadro em que cada personagem «se mantém na prisão do seu monólogo interior denunciado por curtas frases cunhadas de trivialidade trágica, e é só num fundo de sombra, na massa apocalíptica de um acontecer cósmico, em que não há duração cro-nografada senão espera pura e radical desesperança, que […] assumem uma significação e entram num ideato» (Vitorino Nemésio); cultivando vetores dos vários modos e géneros literários em livros que não conhecem solução de conti-nuidade, sob o signo da «voz dolorosa e magoada que vem das coisas», ressalta nova forma de ficção narrativa, pois «Para haver um romance não basta nem talvez seja preciso o enredo, nem sequer (como nos livros de Manuel Ribeiro) o fio contínuo duma preocupação espiritual. O romance está na nossa intuição, no plano infinito onde se arrasta a vida, surpreendida em seus aspetos pela retina aguda, hipersensível do escritor. Dados os aspetos, que nos resta? Ligá-los e fundi-los. Eis a nossa obra inconsciente.» (Rodrigues Miguéis); «a viver o seu mundo de assombro e fantasmagoria, a obra espantosa que é como uma tessi-tura de raízes, que obscura e silenciosamente se ia emaranhando, no mistério sombrio da dor, do sonho, da piedade e da quimera» (Manuel Mendes); «Van Gogh da nossa literatura», só dostoievskiano pela comunhão de «dois espíritos

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trágicos, shakespearianos», vivendo em «espanto» o confronto com «o enigma», «muito mais do que simples escritor imaginativo, um incomparável exemplo de temperamento interrogativo originário», exprimindo em solilóquios o «pensa-mento elementar» de «espírito saturado de ansiedade ontológica que antecede e excede em muito o poder de comoção dos chamados existencialistas de hoje» (Sant’Anna Dionísio); movido por «sentimento de uma missão a cumprir, ine-xoravelmente, e para a qual se sentiu predestinado», sob esse imperativo categó-rico julgando-se «obrigado a organizar, a dar um sentido, uma configuração ao que é informe, desordenado», ressalta «um estilo, digamos, psicográfico, porque regista fielmente todo o tumulto das sensações desconexas, das ideias e imagens que a razão ainda não elaborou, isto é, a atividade psíquica inconsciente ou automatismo psicológico», aliás indissociável daquela «autenticidade titânica» com que, a partir d’A Farsa e d’Os Pobres, Raul Brandão se manifesta «pensa-dor típico do paradoxo, da tensão , dos contraditórios inconciliáveis» à maneira de Kierkegaard, numa vertigem de «autenticidade absoluta […], de plenitude vital, de expressão dionisíaca dos instintos vitais, [que] lembra a dialética impetuosa de Nietzsche» (Túlio Ramires Ferro); especialmente em O Gebo e a Sombra e mais ainda nas Memórias, Raul Brandão «tem uma noção da má-fé e do mal-estar burguês próxima da ética de J.-P. Sartre» (Urbano Tavares Rodrigues); «Importa-lhe, sim, fazer drama; isto é, revelar o drama — conflito e angústia — que pulsa no próprio coração da vida. […] Ora drama fá-lo Raul Brandão em toda a sua Obra: até nas evocações históricas, estou em dizer que até nas suas manchas de pintor impressionista.» (José Régio); «um ponto ele alcançou que estaria no caminho da possível alegria humana: a ternura. Mas, em Raul Brandão, a ternura vem sempre molhada de lágrimas, e assim o ciclo se fecha num anel de sofrimento» (José Saramago); «A sua escrita é uma exal-tação enganosamente possessa […] que simula mais a precipitação do que se deixa levar por ela. E quem não ficou pela cómoda conclusão do nihil novi sub sole e acompanhe, interessado, a revolução que se está operando na linguagem literária dos nossos dias, há de verificar que o autor de O Pobre de Pedir é um caso de verdadeira antecipação.» (Mário Dionísio); etc.

Sínteses e insights de idêntica craveira são-nos proporcionados em páginas ou passagens particularmente concentradas em cada uma das obras de Raul Brandão — de Impressões e Paisagens a História dum Palhaço, d’A Farsa a Os Pobres, de Húmus a O Pobre de Pedir, das Memórias (e da epistolografia) ao Guia de Portugal, de Os Pescadores a As Ilhas Desco‑nhecidas, de Livro de Leitura a Portugal Pequenino —, mas com especial relevância no domínio da dramaturgia, na medida em que «Como todos os

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espíritos trágicos, Raul Brandão possuiu a nítida intuição de que a existência tem mais do que uma face e que o teatro é precisamente um dos processos de dar o que está para lá do real usualmente conhecido» (Sant’Anna Dionísio): pelo reconhecimento, em Luiz Francisco Rebello e outros, de «quanto ele bata-lhou por uma mudança radical da Cena em finais do século xix»; pela atenção de Sant’Anna Dionísio ao «caso único na literatura portuguesa de ficção este transe reflexivo e inefável de uma ansiedade feminina» personificada na Sofia de O Gebo e a Sombra («obra-prima do teatro português», no juízo de Jorge de Sena, e onde Urbano Tavares Rodrigues mais valorizou o protoexistencialismo brandoniano); pelo discernimento de críticos argutos como Luísa Dacosta para quem nada «parece servir melhor, como introdução ou chave, à obra de Raul Brandão, do que a sua peça de teatro O Doido e a Morte», que Régio tinha por «uma das grandes peças em um ato de literatura dramática europeia», enquan-to espantoso exemplo dramático de «alto humorismo» em que, tocando-se o ridículo e o trágico num «ponto de contacto, que é talvez o centro da alta comé-dia», aí se impõe como «fulcro da farsa de Raul Brandão».

Eis-nos, pois, com acrescidos motivos de gratidão a Vasco Rosa e acres-cidas razões de confiante expectativa perante esta sua arte de bem servir o conhecimento fruitivo e cognitivo da obra de Raul Brandão e, por sinédoque, todo o genuíno amor à realização do Homem na literatura.

Agosto de 2017.

josé carlos seabra pereira

RaulBrandãoemfoco,2

A Luís Amaro e Joana VarelaÀ memória de Vitoriano Rosa

e de Vasco Graça Moura

Este livro é, para todos os efeitos, a continuação de A Pedra ainda Espera Dar Flor. Dispersos 1891-1930 de Raul Brandão, que publiquei em fevereiro de 2013. Ali tratou‑se de pesquisar, reunir e publicar textos do escritor que esta‑vam perdidos em folhas de papel impresso, identificados uns, desconhecidos outros, e que nunca haviam sido lançados em livro, fosse pelo autor, fosse pelos seus póstumos editors. Aqui trata‑se de ir mais além na identificação da sua receção literária, da juventude do escritor até hoje, trazendo também à luz do dia alguns quase‑inéditos e outros documentos suscetíveis de nos darem uma perspetiva mais ampla, e quanto possível mais completa, da sua vida e obra. Ambos estes processos são indissociáveis e mutuamente escla‑recedores, evidenciando uns e outros quanto ainda havia por saber de Raul Brandão depois das comemorações do seu centenário (1967), da biografia de Guilherme de Castilho (1978), do congresso na Universidade Católica do Porto (1990) e dos estudos de José Carlos Seabra Pereira, Vítor Viçoso e Maria João Reynaud, entre outros, hoje particularmente dirigidos em bene‑fício da edição da Obra Completa em curso desde 1989 (9 títulos publicados, 7 por publicar).

Em 2013 eu sabia dispor de quatro anos para me dedicar a essa evi‑dente tarefa de contribuir para um novo patamar de conhecimento bran‑doniano. Este livro não é — nem nunca pretendeu ser — a soma de novos estudos literários ou uma nova biografia do escritor, pois nem para uns nem para outra eu teria capacidades suficientes, muito menos ainda pre‑tende dar por encerradas as inquirições em volta de Raul Brandão, próprias ou alheias. Mas é já a recolha de 75 artigos que nestes últimos anos escrevi sobre este tema, um processo contínuo e exigente em que a possibilidade

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de publicação imediata serviu de estímulo contínuo para a abordagem de novos aspetos biográficos e recetivos, cuja abundância todavia me sur‑preendeu. Nem o suposto isolamento do escritor numa pequena aldeia minhota durante quase três décadas o afastou de circuitos literários e jornalísticos (cuja completa rede está ainda por determinar), nem as suas primícias literárias e gazeteiras, no Grande Porto e em Lisboa, haviam sido ou já foram totalmente postas a claro por trabalhos de profundidade, como os de Seabra Pereira, em particular.

Estamos perante um escritor que buscou afirmar‑se em diferentes pla‑nos, mas não deixou epistolário e clipping que nos deem a variedade e diver‑sidade das suas colaborações avulsas e de ocasião em jornais e revistas ao longo dos anos, seja por convite, seja por iniciativa própria. E assim sendo, só o rastreio paciente da imprensa, num domínio temporal e geográfico amplo (Açores e Madeira incluídos), permite cobrir as colaborações, pré‑‑publicações e recensões críticas de Raul Brandão durante uma «vida literá‑ria» extensa de mais de quatro décadas.

Quer isto dizer que necessariamente será também alhures, em espólios de terceiros e um tanto ao acaso do engenho e da sorte, que se devem pro‑curar materiais respeitantes ao escritor nascido na Foz do Douro em 1867 e falecido em Lisboa em 1930. E isso pressupõe duas condições essenciais, nem sempre cumpridas, como bem sabemos: boa conservação e inventariação detalhada dos ditos espólios; e respetiva visibilidade e acessibilidade. Seja na Biblioteca Nacional, depauperada há muito de meios humanos e materiais (um quase colapso sem fim à vista), seja em casas‑museu dependentes de estabilidade e competência autárquicas ou privadas — sempre voláteis —, documentação pertinente corre riscos de passar despercebida por ausência de inventariação detalhada, instrumentos de consulta em linha e generosa partilha de informações, ou, na pior das hipóteses, por destruição negligente ou intencional. Arquivos só estarão vivos se forem comunicantes, doutro modo serão apenas depósitos inertes e dispendiosos, mais cedo ou mais tarde destinados ao desaparecimento. Além disso, não faz parte da tradição da nossa biblioteconomia, pública ou universitária, o trabalho paciente de indexação cuidada das fontes impressas, e depois dos hercúleos trabalhos dicionaristas de Daniel Pires nas décadas de 1980‑1990, os estudos históricos de periódicos portugueses parecem estar hoje circunscritos aos desenvolvi‑dos pela Hemeroteca Municipal de Lisboa. E isso é francamente muito pouco ou quase nada (apesar da generosa competência de Rita Correia e outros), diante da necessidade duma história literária‑cultural atualizada, e de resto

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um problema agora muito agravado pela tendência, nas academias, de banir tout court o exercício da pesquisa em favor do desempenho da interpretação do que já é público e notório.

É pois neste contexto e cenário que este meu trabalho sobre Raul Brandão conscientemente se desenvolveu, proporcionando a todos nova documen‑tação isenta de triagem valorativa de qualquer tipo e procurando preencher lacunas mais ou menos patentes na bibliografia disponível.

O leitor encontrará nas páginas seguintes um largo espectro de depoi‑mentos sobre Raul Brandão, antecedidos de introduções contextualizantes e apoiados em notas informativas quando conveniente, mas também outro tipo de escritos, como aqueles que dedico ao seu importante projeto duma viagem literária à então África Portuguesa, em 1930; às peripécias do seu espólio literário, da placa que encima a casa onde nasceu e do monumento ao escritor na Foz do Douro; à história editorial da sua obra; à sua receção entre o seu centenário e o atual sesquicentenário.

Também me foi possível determinar: que As Ilhas Desconhecidas saiu a público em 1927 e não em 1926, como sempre foi dito e repetido; que foi por indicação pessoal do 4.º Conde de Mafra, D. Thomaz de Mello Breyner, que Raul Brandão leu, e depois traduziu e prefaciou as memórias do coro‑ nel Owen sobre o cerco do Porto; que Manuel Mendes escreveu de facto, no início de 1943, um pequeno livro sobre Raul Brandão, anunciado no seu Bairro mas nunca antes conhecido ou sequer comentado (nem mesmo nos rele‑vantes contactos pessoais que no fim da década seguinte ele teve com Maria Angelina Brandão); que a biografia de Raul Brandão na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1939) foi escrita por Aquilino Ribeiro mas editada e completada por António Sérgio; que Vitorino Nemésio leu o livro açoriano do seu mestre ainda em cadernos dobrados frescos de tinta, e publicou sobre ele um primeiríssimo artigo em que ninguém reparou; que antes d’O Correio da Manhã Raul escreveu para O Repórter, onde saiu o seu primeiro texto sobre Columbano Bordallo Pinheiro, igualmente desconhecido, como suce‑deu também com um comentário a Os Simples, de Guerra Junqueiro; que o seu «instinto jornalístico» e capacidade de coordenação redatorial eram estimados na classe.

vasco rosa

CINZENTOE DOURADO

Vasco Rosanos 150 anos do seu nascimentoRaul Brandão em foco

Raul Brandão em livros publicados pela Imprensa Nacional

A Noite de Natal, de Raul Brandão e Júlio BrandãoLeitura, introdução e notas por José Carlos Seabra Pereiraseguido de um estudo sobre Júlio Brandão1981

El-Rei Junot, de Raul BrandãoNota introdutória de Guilherme de Castilho1982

Vida e Obra de Raul Brandão, de Guilherme de Castilho2006

Raul Brandão. Do Texto à Cena, de Rita Martins2007

O Essencial sobre Raul Brandão, de António M. B. Machado Pires2.ª edição, 2007

Rouxinol e Mocho seguido de Ensaios — Raul Brandão e Vitorino Nemésio, de António M. B. Machado Pires2009

Vasco Rosa nasceu em Lisboa em junho de 1958. Foi secretário de redação de Raiz & Utopia (dir. Helena Vaz da Silva), Análise (dir. Fernando Gil) e Enciclopédia Einaudi. Foi também editor de O Independente e diretor editorial das Edições Cosmos. Colaborou e colabora com publicações literárias e culturais como Colóquio Letras, Ler, Pessoa Plural, Suroeste e O Tripeiro. Organizou uma dezena de livros de autores como Maria Filomena Mónica, Miguel Esteves Cardoso, Alexandre O’Neill, José Cutileiro, José Cardoso Pires, Rui Henriques Coimbra, Victor Cunha Rego e José Cutileiro. Pesquisou, entre outros, sobre Amadeo de Souza-Cardoso, António Dacosta e Joaquim Novais Teixeira. Colabora desde junho de 2014 com o jornal Observador.Dedicou anos a Raul Brandão: publicou A Pedra ainda Espera Dar Flor, recolha de dispersos (Quetzal, 2013), escreveu sobre ele mais de 70 artigos reunidos neste volume, organizou uma antologia da sua obra (E-Primatur, novembro de 2017) e foi curador de duas exposições dedicadas ao escritor pela Câmara Municipal do Porto por ocasião dos 150 anos do seu nascimento.Atualmente pesquisa para Raul Brandão e os Açores, um livro da editora Companhia das Ilhas a sair em 2018, num projeto apoiado pela Direção Regional da Cultura.

«São claros os pressupostos axiológicos e metodológicos de Vasco Rosa. A propósito de circunstâncias envolventes de projetos ou concretizações de ‘bustos, estátuas, lápides e outra parafernália’ celebrativa, afirma perentoriamente: ‘a edição e a leitura contínuas das obras dos grandes escritores é que são as grandes homenagens que mais importam, porque, sem elas, esses tais outros monumentos, placas toponímicas — ou prémios literários — pouco ou nada podem transmitir aos novos acerca das pessoas em causa’.Mas é mais largo e mais profundo o contributo que Vasco Rosa dá para a atualização das virtualidades do axioma eliotiano sobre o contexto vertical de cada nova criação literária no horizonte de expectativa (mais ou menos instruído) do leitor, enunciado por interposto mestre, Vitorino Nemésio, a propósito de Raul Brandão: ‘Uma literatura faz-se com vivos e mortos. Não só a ficção os junta na sua comunidade milagrosa, como têm prazo-dado na imaginação do leitor, que sente a sombra do escritor morto, de ontem ou de há seis séculos, na inspiração e no estilo do escritor contemporâneo.’»

Do prefácio de José Carlos Seabra Pereira

«Em 2013 eu sabia dispor de quatro anos para me dedicar a essa evidente tarefa de contribuir para um novo patamar de conhecimento brandoniano.»

De «Raul Brandão em foco, 2» de Vasco Rosa

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Capa: Raul Brandão visto por João Abel Manta, 1974.

9 7 8 9 7 2 2 7 2 5 2 3 1

ISBN 978-972-27-2523-1

CINZENTOE DOURADO

Vasco Rosanos 150 anos do seu nascimentoRaul Brandão em foco

Raul Brandão em livros publicados pela Imprensa Nacional

A Noite de Natal, de Raul Brandão e Júlio BrandãoLeitura, introdução e notas por José Carlos Seabra Pereiraseguido de um estudo sobre Júlio Brandão1981

El-Rei Junot, de Raul BrandãoNota introdutória de Guilherme de Castilho1982

Vida e Obra de Raul Brandão, de Guilherme de Castilho2006

Raul Brandão. Do Texto à Cena, de Rita Martins2007

O Essencial sobre Raul Brandão, de António M. B. Machado Pires2.ª edição, 2007

Rouxinol e Mocho seguido de Ensaios — Raul Brandão e Vitorino Nemésio, de António M. B. Machado Pires2009

Vasco Rosa nasceu em Lisboa em junho de 1958. Foi secretário de redação de Raiz & Utopia (dir. Helena Vaz da Silva), Análise (dir. Fernando Gil) e Enciclopédia Einaudi. Foi também editor de O Independente e diretor editorial das Edições Cosmos. Colaborou e colabora com publicações literárias e culturais como Colóquio Letras, Ler, Pessoa Plural, Suroeste e O Tripeiro. Organizou uma dezena de livros de autores como Maria Filomena Mónica, Miguel Esteves Cardoso, Alexandre O’Neill, José Cutileiro, José Cardoso Pires, Rui Henriques Coimbra, Victor Cunha Rego e José Cutileiro. Pesquisou, entre outros, sobre Amadeo de Souza-Cardoso, António Dacosta e Joaquim Novais Teixeira. Colabora desde junho de 2014 com o jornal Observador.Dedicou anos a Raul Brandão: publicou A Pedra ainda Espera Dar Flor, recolha de dispersos (Quetzal, 2013), escreveu sobre ele mais de 70 artigos reunidos neste volume, organizou uma antologia da sua obra (E-Primatur, novembro de 2017) e foi curador de duas exposições dedicadas ao escritor pela Câmara Municipal do Porto por ocasião dos 150 anos do seu nascimento.Atualmente pesquisa para Raul Brandão e os Açores, um livro da editora Companhia das Ilhas a sair em 2018, num projeto apoiado pela Direção Regional da Cultura.

«São claros os pressupostos axiológicos e metodológicos de Vasco Rosa. A propósito de circunstâncias envolventes de projetos ou concretizações de ‘bustos, estátuas, lápides e outra parafernália’ celebrativa, afirma perentoriamente: ‘a edição e a leitura contínuas das obras dos grandes escritores é que são as grandes homenagens que mais importam, porque, sem elas, esses tais outros monumentos, placas toponímicas — ou prémios literários — pouco ou nada podem transmitir aos novos acerca das pessoas em causa’.Mas é mais largo e mais profundo o contributo que Vasco Rosa dá para a atualização das virtualidades do axioma eliotiano sobre o contexto vertical de cada nova criação literária no horizonte de expectativa (mais ou menos instruído) do leitor, enunciado por interposto mestre, Vitorino Nemésio, a propósito de Raul Brandão: ‘Uma literatura faz-se com vivos e mortos. Não só a ficção os junta na sua comunidade milagrosa, como têm prazo-dado na imaginação do leitor, que sente a sombra do escritor morto, de ontem ou de há seis séculos, na inspiração e no estilo do escritor contemporâneo.’»

Do prefácio de José Carlos Seabra Pereira

«Em 2013 eu sabia dispor de quatro anos para me dedicar a essa evidente tarefa de contribuir para um novo patamar de conhecimento brandoniano.»

De «Raul Brandão em foco, 2» de Vasco Rosa

Vasc

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os 1

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men

toCapa: Raul Brandão visto por João Abel Manta, 1974.

9 7 8 9 7 2 2 7 2 5 2 3 1

ISBN 978-972-27-2523-1