Cioran Revisto

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1 O cético gostaria de sofrer, como o resto dos homens, pelas quimeras que fazem viver. Não consegue: é um mártir do bom senso. Cioran, Silogismo da Amargura O presente trabalho visa demonstrar o modo como se configura o ceticismo na obra de E. M. Cioran (1911-1995), principalmente nas obras da sua fase francesa (especificamente no livro Breviário de Decomposição), e de que maneira o livro Transfiguração da Romênia teve importância fundamental para esta configuração. Emil Cioran, Romeno radicado na França, foi um filósofo (alguns diriam que não; certamente até o próprio!) um tanto quanto incomum no cenário do pós-guerra. Enquanto surgiam novos sistemas e novos “empresários de ideias” 1 apresentando o quanto era absurda a condição humana, Cioran se rebelava veementemente contra a gênese de qualquer saber absoluto, mesmo os que vinham a lume travestidos de “soluções” e das quais ele sabera muito bem a que conseqüências levavam. Tomou como tarefa, e expiação, a administração do “depurativo” do desencantamento do mundo e suas quimeras erigidas pelo homem, este “ser delirante” por excelência. Entretanto, para chegar a esta posição, Cioran teria de atravessar um período que posteriormente consideraria vergonhoso: sua entusiástica adesão, ainda jovem, ao regime totalitário em ascensão no seu país; a Garde de Fer, como ficaria 1 Texto no qual Cioran se refere a Jean-Paul Sartre. Cf. Breviário de Decomposição p.213

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O ctico gostaria de sofrer, como o resto dos homens, pelas quimeras que fazem viver. No consegue: um mrtir do bom senso.Cioran, Silogismo da Amargura

O presente trabalho visa demonstrar o modo como se configura o ceticismo na obra de E. M. Cioran (1911-1995), principalmente nas obras da sua fase francesa (especificamente no livro Brevirio de Decomposio), e de que maneira o livro Transfigurao da Romnia teve importncia fundamental para esta configurao.Emil Cioran, Romeno radicado na Frana, foi um filsofo (alguns diriam que no; certamente at o prprio!) um tanto quanto incomum no cenrio do ps-guerra. Enquanto surgiam novos sistemas e novos empresrios de ideias[footnoteRef:2] apresentando o quanto era absurda a condio humana, Cioran se rebelava veementemente contra a gnese de qualquer saber absoluto, mesmo os que vinham a lume travestidos de solues e das quais ele sabera muito bem a que conseqncias levavam. Tomou como tarefa, e expiao, a administrao do depurativo do desencantamento do mundo e suas quimeras erigidas pelo homem, este ser delirante por excelncia. [2: Texto no qual Cioran se refere a Jean-Paul Sartre. Cf. Brevirio de Decomposio p.213]

Entretanto, para chegar a esta posio, Cioran teria de atravessar um perodo que posteriormente consideraria vergonhoso: sua entusistica adeso, ainda jovem, ao regime totalitrio em ascenso no seu pas; a Garde de Fer, como ficaria conhecida. Cioran, antes de sua converso poltica no final de outubro comeo de novembro de 1933, poca onde se instalou em Berlin como bolsista, foi segundo Marta Petreu, o primeiro apoltico dos representantes da Gerao 27[footnoteRef:3]. Em carta a seu amigo Bucur Tincu datada de 2 de julho de 1933 chegaria mesmo a dizer ser impossvel se envolver na poltica e que no somente a democracia que ruim, todos os outros sistemas polticos e sociais tambm so. Ainda segundo Marta Petreu, Cioran no incio dos anos 30 estaria particularmente interessado em questes de maior intensidade filosfica, como a condio trgica do homem no universo, ao mesmo tempo em que experimentou uma atrao irresistvel pela filosofia da histria e da cultura onde seu pensamento foi exercitado com uma certa espontaneidade. Nessa poca faziam parte constante de suas leituras enquanto estudante autores como Stirner, Spengler, Hegel, Troeltsch etc. O jovem Cioran passa ento, influenciado, sobretudo por Spengler e sua obra Der Untergang ds Abendlandes, a falar de declnio da cultura, fim da cultura, agonia da cultura etc. [3: Nome que Marta Petreu deu aos jovens intelectuais de Bucareste, nos quais se incluam Mircea Eliade, Constatin Noica e outros, do fim dos anos 20 e incio dos anos 30, em referncia a 12 artigos programticos publicados por seu lder, Mircea Eliade, sob o ttulo genrico Itinerrio espiritual.]

Suas reflexes gerais sobre a cultura levam-no pouco a pouco a avaliar e julgar o estado das realidades tanto culturais como histricas atuais de sua ptria; Romnia. Cedo ou tarde o jovem Cioran iria voltar seus olhos para a questo romena, donde passariam a surgir sentenas que denunciariam a carncia constitutiva da cultura romena. A transio da postura apoltica para o entusiasmo totalitrio viria cerca de duas semanas aps a chegada a Berlin em 1933. Escreveria, na ocasio, a Mircea Eliade: Estou mesmo entusiasmado com a poltica daqui. Em 1 de dezembro a Nicolae Tatu: quanto a mim, apenas uma ditadura poderia ainda me excitar. Os homens no merecem a liberdade. O jovem Cioran foi o primeiro da Gerao 27 a se deixar seduzir pela extrema direita, seguido por Eliade em 1936 e Noica em 1938.Aps novembro de 1933 Cioran passaria a incorporar em seus discursos a filosofia da histria, a filosofia da cultura, a questo romena e a soluo de extrema direita recm encontrada no hitlerismo. a soluo encontrada para transfigurar a Romnia de um pas insignificante e com uma histria menor em uma forte nao, tudo isso aliado a metafsica da vontade de Schopenhauer, filosofia de Nietzsche com sua vontade de poder e o vitalismo de Spengler faz-no crer que so as zonas mais profundas e irracionais as verdadeiras criadoras da cultura, da histria e do indivduo. Da provm a sua admirao pela Alemanha de Hitler possuidora de certa mstica do irracional e do inconsciente: No h no mundo contemporneo um poltico que me inspire mais admirao e simpatia que Hitler[footnoteRef:4] [4: Impresses de Munich. Hitler na conscincia alem, Vremea, n 364, 15 julho 1934]

Transfigurao da Romnia um livro composto com fortes bases nas ideias Spenglernianas de histria e cultura e que prope uma soluo radical para os problemas ligados Romnia, soluo essa que passa pelo culto excessivo e permanente da fora. curioso notar que Transfigurao da Romnia o terceiro livro, redigido ainda em romeno, escrito por Cioran; Nos Cumes do Desespero e O Livro das Iluses so os outros dois, e trata-se do nico de todos os seus livros onde ele foi sistemtico. Em mais nenhum outro, seja antes ou depois, ele criou um sistema para propor o que quer que seja, sendo este livro, portanto, um divisor de guas dentro das obras de Cioran. Seu prximo livro Brevirio de Decomposio um misto de condeno e tentativa de expiao pelas teorias levantadas na Transfigurao da Romnia, utilizando-se principalmente de um ceticismo mais apurado do que aquele apresentado, ainda que de forma rudimentar e carregado de dvida da carne, nos seus escritos do perodo romeno. Pode-se afirmar, portanto, que a partir do Brevirio que se instaura o ceticismo, muitas vezes radical e pouco ortodoxo, presente nas obras franceas de Cioran.Em si mesma, toda ideia neutra ou deveria s-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demncias; impura, transformada em crena, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lgica epilepsia est consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas[footnoteRef:5]. com estas palavras que Cioran inicia seu primeiro livro no idioma francs ps-exlio, deixando entrever qual ser a tnica das prximas pginas. Ele dedicar grande parte deste primeiro trabalho na nova lngua a desmascarar o profeta que reside em cada um dos homens e a restituir a frivolidade, o banal, o desimportante de volta ao seu lugar na vida humana de onde sempre ficara de fora pelos sistematicidade filosfica: Ningum alcana logo de sada a frivolidade. um privilgio e uma arte; a busca do superficial por aqueles que, tendo descoberto a impossibilidade de toda a certeza, adquiriram nojo dela; a fuga para longe desses abismos naturalmente sem fundo que no podem levar a parte alguma.[footnoteRef:6] [5: Cioran, E. Brevirio de Decomposio. P.13] [6: Ibid., p. 20]

Entretanto, o ceticismo de Cioran no parece levar a nenhuma ataraxia como normalmente se espera ser o resultado das suspenses sobre verdades dadas (ataraxia aqui pensada como objetivo do que convencionou-se chamar de ceticismo pirrnico e no o acadmico, que afirma ser inapreensvel toda e qualquer tipo de verdade; este ltimo teve como representantes Clitmaco e Carndeas), pelo contrrio; h no ceticismo cioraniano um certo tipo de anelo pela aporia e uma tentativa de manter-se em tal estado como nica forma do autntico filosofar: A definio a mentira do esprito abstrato[footnoteRef:7], pois o homem, este animal indireto sempre se furta a ter que lidar com algo que lhe escapa a categorizao, ao controle rgido. Da seu desinteresse pelas coisas das coisas ditas comuns e pela tentao pelo absoluto, por verdades no evidentes. O no reconhecimento destas coisas por parte da filosofia como um todo deve-se, sobretudo, fuga empreendida pelos sistemas rumo ao incondicionado; tentativa de fugir contigncia e finitude inerente a todo viver humano. Cioran vai nas antpodas desta soluo; se regozija e mostra que no h qualquer tipo de salvao na razo delirante por grandezas transcendentais: A obsesso dos remdios marca o fim de uma civilizao; a busca da salvao, o de uma filosofia.[footnoteRef:8] [7: Ibid., p. 32] [8: Ibid., p. 53]