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Emilio Gennari CIPA: possibilidades e desafios. Ao reproduzir... cite a fonte.

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Emilio Gennari

CIPA: possibilidades e desafios.

Ao reproduzir... cite a fonte.

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Índice:

Apresentação 03

Introdução 05

1. Idéias mais comuns sobre saúde e segurança nos ambientes de trabalho 06

2. Caminhos para envolver a base 11

3. Dez dicas para a atuação do cipeiro/a 19

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Apresentação

Dia-após-dia, homens e mulheres de todas as idades têm suas vidas esgotadas em longas e

estafantes jornadas que deixam marcas profundas em seus corpos e em sua capacidade de se

relacionar com o mundo circunstante. O número crescente de lesões por esforço repetitivo, doenças

profissionais, distúrbios psíquicos e acidentes revelam o alto grau de dilapidação da força de

trabalho nas empresas do nosso país.

Nesta guerra não-declarada, cujos mortos e feridos caem na vala comum do esquecimento, a

luta pela sobrevivência antecipa para milhões de pessoas o amargo encontro com a doença, a

mutilação e a morte. A aparente naturalidade da rotina feita de regras, horários, cadências e gestos a

serem repetidos ao infinito esconde um massacre silencioso que consome a classe trabalhadora num

processo incessante pelo qual a exploração se aprofunda e se aprimora.

O sofrido esforço de adaptação do trabalhador coletivo aos ditames do lucro e à necessidade

de “ganhar a vida” é tão poderoso que chega a reverter a lógica do senso comum. Se fora da

empresa “saúde é tudo... o resto se ajeita”, no interior dela “salário é o que interessa... o resto não

tem pressa”. Já apresentamos as razões desta inversão no estudo “Da alienação à depressão –

caminhos capitalistas de exploração do sofrimento” e, caso você ainda não tenha feito isso,

aconselhamos vivamente a sua leitura para que possa entender melhor o ambiente onde se processa

essa mudança.

No estudo que aqui apresentamos, vamos centrar nossas atenções em dicas e instrumentos

que possibilitam começar a luta pela eliminação dos riscos e pôr fim à monetarização da saúde.

Apesar de saber que os adicionais de insalubridade e periculosidade não irão repor o desgaste físico

e os estragos produzidos por agentes agressivos de várias naturezas, sua conquista e manutenção

ainda são vistas como uma forma de arredondar o orçamento, o que produz certa acomodação

perante seus efeitos mais nefastos.

Além de enfraquecer a luta por salários maiores e abrir mão de um mínimo de segurança, a

troca de saúde por dinheiro costuma ser um bom negócio somente para os empresários que, ao

deixar de investir em medidas de proteção coletiva, acabam dispondo de mais recursos para

alimentar a fome de lucros do capital. Por outro lado, a magra satisfação proporcionada por um

ordenado maior, ainda que insuficiente para assegurar o atendimento das necessidades familiares,

leva o assalariado a aceitar passivamente as marcas irreversíveis que a exploração deixa em seu

corpo. Ao assimilar a dor como algo próprio da função exercida ou como produto de uma

fragilidade física, o trabalhador coletivo hipoteca o próprio futuro e o de toda a classe.

A lógica do “deixa rolar”, e do “é assim mesmo” levam a descuidar da luta pela implantação

de medidas preventivas, a fortalecer a visão mágica pela qual “isso comigo não vai acontecer” e a

transformar a resignação na única estratégia possível para suportar o sofrimento.

Diante dos desafios impostos por esta realidade, sentimos a urgência de fazer da saúde do

trabalhador uma das principais bandeiras do movimento operário sindical do nosso país. Sem poder

apostar, de imediato, em grandes mobilizações nacionais, em sentimentos de indignação coletiva ou

na implantação de formas milagrosas de representação, acreditamos que podemos dar os primeiros

passos ocupando e fazendo funcionar o que já existe. Apesar de seus estreitos limites, a atuação da

Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) oferece condições suficientes para ensaiar o

resgate da relação doença-trabalho e apontar as contradições que, em nome da superação das metas,

do mercado e do lucro, condenam diariamente milhões de pessoas a uma morte lenta e silenciosa.

Várias experiências do passado já mostraram que cipeiros eleitos por suas bases foram

capazes de envolver os colegas na dura tarefa de pensar o cotidiano da luta pela saúde, de estimular

a necessidade de agir coletivamente para dizer NÃO à transformação de quem trabalha em mera

peça de um processo de produção que, uma vez desgastada, pode ser descartada e substituída por

quem, ao sair do desemprego, se dispõe a tudo para conseguir os meios de sua sobrevivência.

A preocupação que alimenta as próximas páginas não é a de teorizar sobre os limites e

possibilidades da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, nem a de apresentar normas legais

que definem direitos e padrões de comportamento. O objetivo desse texto é o de apontar caminhos

de organização de base que, tendo a CIPA como forma de representação, sejam capazes de

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transformar a luta pela saúde do trabalhador num dos temas com os quais acreditamos seja possível

sacudir a classe do torpor em que se encontra.

Sem defender a construção da CIPA como um fim em si mesmo ou como um caminho

imprescindível para soluções definitivas, acreditamos na possibilidade real de utilizar este

instrumento de debate e reivindicação nos ambientes produtivos como um momento inicial no qual

trabalhadores e trabalhadoras aprimoram sua capacidade de observação, interagem para tomar

consciência da exploração a partir das marcas que esta deixa no seu corpo e começam a transformar

a passividade em rebeldia. Nada mais, mas, também, nada menos.

Por isso, sem mais delongas, passamos a palavra à coruja Nádia, cuja visão privilegiada vai

nos ajudar na árdua tarefa de resgatar as possibilidades e os desafios de transformarmos a luta por

saúde em mais um passo necessário e urgente da longa caminhada pela qual a classe trabalhadora

precisa avançar rumo à construção de um mundo onde a vida do ser humano, e não o lucro, seja o

centro das preocupações coletivas.

Brasil, junho de 2009.

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Introdução.

Tarde de terça-feira. Os últimos raios de sol pintam de vermelho o céu poluído da cidade.

Homens e mulheres de todas as idades deixam a passos rápidos os lugares de trabalho que sugaram

suas energias. Momentaneamente saciados em sua sede de lucro, escritórios, bancos, fábricas e

comércios de todos os tamanhos regurgitam ininterruptamente este exército de seres para que uma

boa noite de sono recomponha os corpos cansados e os devolva ao amanhecer prontos a enfrentar

mais uma rodada de pesada exploração.

Entre a massa anônima que volta a povoar por instantes as calçadas dos bairros-dormitório,

os olhos distinguem um homem corpulento que, de braços caídos, dirige-se até a porta de casa.

Entre as cortinas da janela, uma pequena coruja faz gestos de saudação que parecem apressar o

momento em que o girar das chaves na fechadura vence o último obstáculo que o separa do

almejado descanso. Instantes depois, pelos vidros abertos da sala, os ouvidos captam os sons de

uma conversa tão insólita quanto inesperada:

- “Hoje estive no seu trabalho...”, diz a ave com a clara intenção de puxar conversa com o

que chama de “querido secretário”.

- “Então já sabe o que aconteceu no almoxarifado...”, retruca o homem no tom típico de

quem não quer papo com ninguém.

- “Se você esta se referindo ao acidente com a empilhadeira, pois fique sabendo que observei

cada detalhe e fiquei apavorada em ver a pressa com a qual você concluiu se tratar de um descuido

dos envolvidos...”.

- “Bom, Nádia, foi o que me pareceu... E, assim como eu, quase todos os colegas chegaram

à mesma conclusão...”, responde o homem ao abrir os braços num gesto que procura justificar no

consenso coletivo uma posição aparentemente inquestionável.

- “Pelo que vi - diz a coruja ao desenhar círculos no ar com a ponta da asa esquerda -, os

empregados do almoxarifado, como os curiosos que correram ao local, preferem fechar os olhos

diante dos verdadeiros problemas e apostar na sorte de não ser o próximo a se acidentar, pois nada

fazem para denunciar e eliminar os riscos que acompanham cada minuto de suas longas jornadas”.

- “Você está sendo injusta! Já faz anos que estou nesse trabalho e posso garantir que, além

dos equipamentos de proteção individual, há cartazes que procuram conscientizar os funcionários

sobre a necessidade de evitar acidentes, uma CIPA que faz reuniões regulares e cujas atas são

expostas no quadro de aviso perto do cartão de ponto!”, rebate o homem sem titubear.

- “Pra início de conversa, o primeiro problema de suas pomposas afirmações é o de

transformar, inconscientemente, cada colega em principal responsável pelo que pode lhe acontecer.

É como se, por saber onde estão enterrados os explosivos, cabe aos funcionários se preocuparem em

evitá-los prestando atenção ao lugar onde pisam. O local de trabalhão torna-se assim uma espécie de

campo minado pelos riscos que abriga e onde triscar numa das minas significa mandar pelos ares

parcelas da própria saúde. E isso está tão arraigado nas pessoas que, até diante de um acidente, não

faltam bobos para afirmar que a criatura envolvida estava na hora errada, no lugar errado, fazendo a

coisa errada.

Como prova da veracidade das minhas palavras, vou aplicar um pequeno teste após o qual

você mesmo vai se dar conta da distância entre a realidade e como esta é apropriada pelas pessoas”,

convida a ave ao apontar a asa para a mesa sobre a qual vários papéis esparramados ocupam quase

todos os espaços disponíveis.

- “Era só o que me faltava!?! Trabalhar o dia inteiro e ainda ter que aturar você que me

manda escrever só Deus sabe o que...”, murmura o homem em tom de recusa.

- “Vai fugir da raia?!?”, pergunta a ave em aberta provocação.

Contrariado, o secretário senta. Em câmara lenta, arruma algumas folhas soltas e, com a

caneta entre os dedos, diz:

- “Pronto! Pode falar que faço questão de mostrar o quanto você está errada!”, afirma ríspido

sem fazer o menor esforço para disfarçar o mal-humor com o qual aceita o desafio.

- “Então, vejamos... Pense bem antes de responder. Lembre de tudo o que você já viu e

ouviu, porque vamos começar nossa conversa pelas...”

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1. Idéias mais comuns sobre saúde e segurança nos ambientes de trabalho.

Um silêncio profundo marca os instantes em que ave e homem trocam olhares de desafio e

provocação. Atenta a cada expressão do secretário, Nádia limpa a garganta e, ao cruzar as asas na

frente do peito, pergunta:

- “Se você tivesse que coordenar uma campanha de conscientização sobre saúde e segurança

que frases usaria para sensibilizar os colegas?”.

- “Isso é moleza!”, atende prontamente o homem seguro de si. E acrescenta: “Com certeza

eu diria a eles „Tenha consciência! Trabalhe com segurança!‟ Ou, ainda, „Segurança é vida. Viva

com ela!‟... „Pratique segurança, sua família depende de você!‟... „Não se distraia! Alguém que te

ama espera você voltar para casa!‟... „Sua saúde depende de você! Não esqueça de usar os

equipamentos de segurança!‟... „Segurança é a sua primeira ferramenta! Seja responsável! Use-a

sempre para o seu bem e o de seus colegas‟, e outras coisas desse tipo”, arremata o ajudante ao

acreditar ter superado as expectativas da sua interlocutora.

- “Você não percebeu nada errado?”, sugere a coruja ao piscar os olhos.

- “Errado...?!? Mas por que...?!?”, rebate o secretário ao estranhar a pergunta.

- “O problema, querido bípede, é que todas as vezes que expressa algo sobre saúde e

segurança dos trabalhadores, você acaba apontando-os como únicos responsáveis pela incolumidade

pessoal e coletiva. É como se a empresa, uma vez montado o processo de trabalho e

disponibilizados os equipamentos de proteção individual, deixasse de ter qualquer papel na tarefa de

preservar a vida dos empregados. Suas frases, assim como a enorme maioria das que são divulgadas

em cartazes e palestras, deixam de fora o patrão e a empresa, ou seja, justamente os atores que, ao

exigir metas cada vez mais elevadas, cortar vagas, não oferecer treinamento adequado, proteção à

altura das necessidades ou, mais simplesmente, descuidando da manutenção preventiva,

proporcionam o ambiente ideal para que se multipliquem as ameaças à incolumidade física e

psíquica de seus funcionários.

Pelas suas palavras, pouco importa a pressão da chefia, o cansaço de quem trabalha em

turnos de revezamento, o ritmo alucinante, os gestos repetitivos, a poeira, o barulho e todos os

demais elementos que agridem a saúde ou contribuem a induzir ao erro quem trabalha. Tudo isso

desaparece como possível causa do adoecimento ou dos acidentes e, num passe de mágica, suas

frases transformam em ato inseguro do indivíduo a primeira e única hipótese com a qual começa-se

a analisar toda ocorrência nefasta. Além de ocultar as responsabilidades empresariais na produção

destas ameaças, o apelo emocional dirigido ao coração do colega busca convencê-lo de que a

responsabilidade de sair ileso do campo minado só depende dele e não da necessidade de eliminar

as bombas entre as quais é chamado a correr para cumprir as metas nas condições dadas.

Ou seja, o patrão te avisa dos riscos, expõe o mapa que visualiza os lugares mais perigosos,

nada faz para erradicá-los (a não ser que os mesmos já tenham produzido problemas suficientes

para sujar a imagem da empresa e derrubar os lucros) e, em seguida, aponta como ato inseguro

qualquer situação que, devido às condições de trabalho, vinha preparando há tempo o que é

apresentado como algo imprevisível. Voltando ao exemplo do campo minado, o problema não está

no tamanho do pé ou na agilidade do sujeito, mas sim no fato de que, ao ter que percorrer seguida e

apressadamente o único caminho que permite não pisar nas espoletas o risco de erro cresce com o

passar das horas, com a elevação do cansaço e com o estresse do ritmo ao qual o trabalhador é

submetido”.

- “Mas você não pode negar que há quem não presta atenção no que faz!”, prorrompe o

ajudante na tentativa de justificar sua posição.

- “Aí é que está o problema do seu raciocínio! Você acredita que é possível manter atenção

máxima o tempo todo, quando isso só é viável num intervalo bastante limitado. Além dos estudos

científicos que mostram o quanto a sua espécie tem dificuldades de ficar ligada durante períodos de

trabalho prolongados, há situações que revelam não passar de 30 minutos o tempo em que um ser

humano consegue manter concentração máxima no que está fazendo.

É o caso, por exemplo, das pessoas empregadas na Organização das Nações Unidas para

desenterrar os artefatos explosivos utilizados para dificultar a ocupação de um território por tropas

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inimigas. O que parece um privilégio, não passa de mera aplicação de uma constatação intrigante: o

tempo em que pode ser mantido um grau de atenção total no que está sendo feito não passa de 30-

35 minutos e tende a ser reduzido sempre e quando o trabalho que exige este esforço é realizado em

condições adversas ou com a utilização de equipamentos de proteção que contribuem para desgastar

as energias a serem empregadas no desempenho da tarefa. No caso concreto que acabamos de citar,

a jornada de trabalho não costuma passar de meia-hora. O sujeito entra no campo minado

completamente vestido com pesados equipamentos de segurança que elevam o seu desgaste físico, e

via de regra, tem que trabalhar agachado numa posição extremamente incômoda. Qualquer

movimento brusco ou rápido demais, um escorregão ou passo em falso, perda de equilíbrio ou gesto

mais pesado do pincel com o qual remove a terra em volta das minas pode provocar a detonação dos

explosivos com terríveis conseqüências para a sua incolumidade. Por isso mesmo, além do

fardamento especialmente preparado para o caso, as condições de trabalho devem ser as melhores

possíveis, pois não há o menor espaço para erro.

Quando projetamos esta realidade para o interior dos locais de trabalho começamos a

perceber que, longe de terem sido pensados com a preocupação de proteger ao máximo a vida dos

funcionários, foram planejados para proporcionar a maior produção possível em condições mínimas

de segurança. Via de regra, quando as doenças profissionais se manifestam e os acidentes não

deixam de marcar presença, não estamos diante de algo fortuito e imprevisível, mas sim de

ocorrências cujas causas têm raízes profundas na organização, manutenção e acompanhamento do

processo de trabalho”.

- “Bom, têm coisas que não aconteceriam se ao menos o pessoal usasse o equipamento de

segurança individual que é fornecido...”

- “No máximo seriam menos ruins – rebate a coruja sem pestanejar. Para que serve a luva de

couro na mão de alguém que trabalha numa prensa que produz panelas de alumínio e cujos sistemas

de segurança tiveram que ser desativados para que o operário pudesse dar conta da produção

exigida? Para limitar os ferimentos provocados pelas chapas metálicas? Para garantir que, ao ser

prensada, a mão não espalhe sangue, músculos, ossos e unhas na mesa do equipamento?

Como é que um operário pode se sentir seguro ao usar um capacete para realizar um trabalho

numa área por onde passa uma ponte rolante que carrega peças cujo peso poderia esmagá-lo

provocando a sua morte? Quanto tempo um empregado consegue agüentar a roupa que, para

protegê-lo de riscos químicos, o transforma em astronauta e, devido ao material, ao desconforto e ao

calor que esta provoca esgota rapidamente suas energias e o expõe a riscos que têm como causa

exatamente o uso do equipamento de proteção? Ou, ainda, será mesmo que ao trabalhar nas pistas

dos aeroportos o pessoal de terra vai evitar a surdez pela simples utilização de protetores que só

reduzem em 20% o barulho das aeronaves prontas para taxiar rumo a pista de decolagem?

Quando observamos atentamente as situações em que o equipamento de proteção individual

costuma ser utilizado, chegamos facilmente à conclusão de que, longe de evitar o adoecimento e

proporcionar a segurança almejada, esse tipo de recursos oferece apenas medidas paliativas. Não

resolvem, mas, ao proporcionar um adoecimento mais lento e diluído no tempo, dão a impressão de

protegerem de estragos piores e de colocar o controle dos riscos ao alcance de quem trabalha. Esta

sensação, que ajuda a reduzir a percepção do perigo e a segurar a barra, age no sentido de anestesiar

a reivindicação de medidas de proteção coletiva que realmente impeçam o adoecimento e a

ocorrência de acidentes. Resumindo, longe de serem utilizados apenas em situações de emergência

e nas condições em que as medidas de proteção coletiva são tecnicamente inviáveis, em fase de

implementação ou não oferecem uma completa proteção contra os riscos, os chamados EPIs não

passam de uma saída barata para a plena exploração da força de trabalho”.

- “Belas palavras, que, se não estiver enganado, estão na legislação do nosso país, mas o fato

é que as empresas não querem cumprir a lei!”, insiste o homem ao tentar conter o rubor que inunda

o seu rosto.

- “A questão central, querido ajudante, não está apenas no fato das empresas descumprirem a

lei, mas sim na visão mágica que as pessoas costumam ter em relação ao que esta determina. Se, de

um lado, a fiscalização deficiente do Ministério do Trabalho e a opção dos patrões de gastar em

segurança não mais do que o estritamente necessário para evitar desgastes à imagem da empresa

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alimentam o risco potencial, de outro, você e seus colegas continuam acreditando que basta um

direito ser reconhecido por uma norma legal para este ser praticado na vida de todos os dias.

Para que a lei saia do papel e se torne realidade, faz-se necessária a pressão constante de

uma força social tão grande quanto o que se pretende ver reconhecido. Do contrário, ela vira letra

morta, pio desejo, mera exposição de algo que seria bom ver acontecer, mas perante o qual em

nenhum momento nos dedicamos a construir as condições que transformam o que está escrito em

realidade. A constituição do nosso país, por exemplo, prevê que o salário mínimo deve atender às

necessidades do trabalhador e de sua família, o que, além de alimentação, roupa, casa, saúde,

transporte, estudo e lazer, inclui uma porção de itens pelos quais, a contas feitas, o salário mínimo

atual deveria ser multiplicado por cinco só para cumprir o que prescreve a lei máxima de nação.

Mas, como não há lutas e mobilizações à altura desse desafio, o valor fixado pelo governo mal-

consegue proporcionar a sobrevivência de uma única pessoa a ponto de vários institutos de pesquisa

considerarem este vencimento como o patamar de renda individual acima do qual começa a se dar a

saída da pobreza.

O que acontece nas empresas não é muito diferente. Pouco importa que as normas definam

uma hora de trabalho como tempo máximo no qual um trabalhador pode ser exposto a um ruído

contínuo ou intermitente de 100 decibéis; ou que cada hora da jornada a ser despendida na execução

de tarefas pesadas a uma temperatura entre os 28 e 30 graus centígrados deveria ser dividida em 15

minutos de atividade laboral e em 45 de descanso; ou, ainda, que a cada 50 minutos de digitação, os

empregados devem descansar outros dez para dificultar a ocorrência de lesões por esforço repetitivo

se, depois, os funcionários não se unem para fazer cumprir o direito que visa proporcionar uma

redução do desgaste físico a que são submetidos.

A lei pode até ser a mais avançada do mundo, mas, por si só, é totalmente incapaz de forçar

os patrões a gastar parte dos lucros para garantir a integridade física e mental do ser humano que

trabalha para eles. Sem uma pressão social consistente, o desemprego e o elevado nível de

informalidade vão continuar garantindo um excedente de força de trabalho suficiente para

substituir, sem grandes custos, os que, perdida a saúde, são colocados de lado como o bagaço do

qual já foi extraído todo o caldo”.

- “E o que pode ser feito para despertar nos colegas a necessidade de se envolver na luta por

saúde nos ambientes de trabalho”, pergunta o secretário entre a curiosidade e a desconfiança.

- “Entre as atividades que podem ser desenvolvidas para dar o chute inicial estão, sem

dúvida, as que permitem visualizar e detectar os riscos que, como explosivos enterrados, marcam o

campo minado do local de trabalho. Pode parecer incrível, mas é difícil encontrar funcionários que

tenham uma visão clara e objetiva do que constitui uma ameaça diária à sua saúde mesmo quando

contam com longos anos de experiência na empresa.

Via de regra, barulho, calor, agentes químicos agressivos, vibrações, radiações, fumos,

névoas, problemas de iluminação, etc., são mais percebidos nas primeiras semanas de trabalho do

que após a superação do período de experiência. Este fenômeno se deve principalmente ao choque

que o novato enfrenta ao ser introduzido e treinado para desempenhar as tarefas pelas quais foi

contratado. Ele até sabia que havia barulho, mas não que fosse tanto assim a ponto das pessoas não

conseguirem ouvir direito o que é dito pelo colega ao lado; já haviam lhe falado de um „cheiro‟

desagradável, mas não que este provocava irritações na garganta e conjuntivite química em função

da nuvem de gás em suspensão no ambiente e assim por diante. A manifestação desses sintomas

costuma levá-lo a perguntar aos mais experientes de onde vem tamanho incômodo, porque causa

tanto desconforto e se isso faz mal à saúde. Porém, raramente, recebe respostas à altura do que seria

necessário ele saber para ter consciência de onde está se metendo e que tipo de doenças pode

adquirir devido á exposição do seu corpo a esse desgaste. O problema é que, em geral, estas

respostas ora são vagas, ora detalhadas o quanto basta para evitar que o novato meta os pés pelas

mãos, ora não fornecem informações mínimas sobre os perigos (a fim de não „assustar‟ o recém-

chegado), ora limitam-se a reafirmar que as sensações desagradáveis são passageiras, pois, quando

o corpo acostuma, ele nem vai perceber o que está ao seu redor.

Mesmo quando esta postura é sustentada pela boa fé de quem procura não desanimar o

novato, trata-se de um convite disfarçado à resignação, a aceitar que aí as coisas são assim mesmo,

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que aquilo tudo faz parte do trabalho e que não tem como ser diferente. Ou seja, não há porque o

recém-chegado chiar daquilo que eles vêm agüentando já faz anos, e que, por considerá-lo próprio

da profissão, no lugar de pensar em reagir, todos têm mais é que se conformar, segurar o rojão, não

ser frouxos, ter coragem pra trabalhar. Aliás, sempre no entender deles, nem é bom lembrar que aí

têm problemas e riscos, pois isso dá azar, pega mal e faz todo mundo se sentir inseguro.

Aqui, a resistência mais difícil de ser vencida é justamente a que leva os colegas à inércia

pelo desejo explícito de esquecer das ameaças reais como forma de se defender do sofrimento que

vem do trabalho. É como se o não lembrar do risco, o não ver a realidade para não experimentar

angústia e ansiedade, o enterrar a cabeça na areia para se sentirem seguros fosse um passe de

mágica capaz de afastar o perigo e evitar qualquer transtorno. O ponto fraco desta estratégia é o

mesmo da avestruz: fingir não saber e não ver o perigo ajuda a controlar o medo, mas transforma a

bunda num enorme alvo imóvel.

Trocado em miúdos, esta triste constatação nos alerta para a necessidade de conhecermos

profundamente os riscos e perigos do local de trabalho, de capacitarmos nossa sensibilidade a

perceber o sofrimento silencioso através do qual cada colega anestesia seu medo para dizer a si

próprio que ele agüenta, que vai conseguir dar conta do recado, que não vai dar pra trás porque com

ele nada vai acontecer.

Estas atitudes com as quais os „experientes‟ mostram sua suposta „coragem pra trabalhar‟,

são ainda mais insidiosas na medida em que pintam com as cores da covardia toda recusa do novato

a fazer o que todos fazem, acabam desqualificando-o como medroso, frouxo ou „mulherzinha‟, toda

vez que suas críticas fazem emergir a falta de reação coletiva e a responsabilidade de cada um na

aceitação do que agride a vida de quem trabalha. Por isso, uma das maiores dificuldades vai ser

justamente a de vencer a inércia, de mostrar que os aspectos descritos como „normais‟,

„corriqueiros‟, „próprios da função‟ não passam de uma forma de negar uma realidade perigosa.

Agora, como não dá pra perceber o que está ao nosso redor sem saber o que é preciso

observar e analisar, um segundo passo é dado pelo esforço de capacitar as pessoas a visualizarem os

riscos próprios de cada ambiente. Concretamente, qualquer colega deveria ter na cabeça uma lista

de lembretes que o ajudam a verificar se o setor onde trabalha traz os problemas nela contidos e em

que grau estes já estão presentes.

Sabendo das dificuldades de vencer as resistências iniciais, vale a pena simplificar ao

máximo as coisas averiguando, a cada dia, um único elemento dos que vamos descrever em

seguida. A idéia não é de prolongar indefinidamente o esforço de mapear os explosivos enterrados

no campo minado do setor, mas sim de treinar nossa capacidade de observação indo dos aspectos

mais simples aos mais complexos, dos que constatamos com um simples passar de olhos aos que

vão demandar um cuidado maior. Ver onde há calor ou barulho excessivo é sem dúvida mais fácil

do que detectar as idéias e as formas de comportamento que levam o trabalhador coletivo a pensar e

agir de acordo com a filosofia da empresa sem esboçar o menor sinal de revolta. Se é verdade que

um local de trabalho é diferente de outro, é também verdade que os pontos indicados a seguir

podem ser adaptados às especificidade do processo produtivo ou simplificados em sua formulação a

fim de serem melhor assimilados pelos colegas. Para encurtar a conversa, estou me referindo a

necessidade de mapear onde há:

Iluminação precária ou excessiva;

Ruído;

Vibrações;

Temperaturas extremas ou a passagem rápida de um ambiente muito quente para um

muito frio.

Umidade;

Radiações;

Pressões anormais;

Poeira;

Fumos metálicos;

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Névoas;

Vapores;

Gases;

Produtos químicos a serem manipulados;

Trabalho físico pesado;

Posições de trabalho incômodas;

Controle rígido da produtividade (através de metas atribuídas a indivíduos ou equipes, de

sistemas informatizados ou de equipamentos de vídeo);

Ritmo de trabalho excessivo e razões pelas quais este se encontra no nível constatado

(falta de funcionários, polivalência, velocidade da linha de produção, etc.).

Horas extras;

Pressão da chefia (aberta ou disfarçada de conselhos paternalistas);

Trabalho monótono ou repetitivo;

Problemas sociais e de saúde gerados pelo trabalho noturno ou em turnos de

revezamento;

Tensões emocionais e ansiedade em função de responsabilidades excessivas, longas

esperas, precariedade dos equipamentos, prazos reduzidos, etc.;

Arranjo físico deficiente (desníveis no piso, falta de espaço para a movimentação de

pessoas e cargas, armazenamento desordenado, etc.);

Máquinas sem proteção ou sem a devida manutenção;

Matéria-prima fora de especificação;

Ferramentas inadequadas ou defeituosas;

Fios desencapados, instalações elétricas precárias;

Transporte inadequado de matéria-prima e de produtos acabados;

Riscos de incêndio e de explosão;

Treinamento inadequado e elevada rotatividade;

Gases despejados no ambiente;

Destino dado a rejeitos sólidos, resíduos líquidos, esgoto industrial;

Estado de dutos e reservatórios;

Condições de conforto e higiene como uniformes, bebedouros, alimentação, refeitórios e

sanitários;

Coleta de lixo e limpeza do ambiente;

Atitudes da chefia e dos colegas que ajudam a banalizar situações de injustiça e de risco;

Razões de conflito entre indivíduos e equipes;

Idéias, valores e formas de comportamento que destroem a confiança recíproca e

contribuem para isolar os trabalhadores;

Como as pessoas expressam o sofrimento que vem do trabalho e que sentido costumam

lhe atribuir;

Qual é o discurso da empresa em relação à questão da saúde do trabalhador;

Que tipo de acidentes, doenças profissionais ou transtornos psíquicos têm sido mais

freqüentes.

Melhor ainda se o levantamento dos aspectos acima indicados ocorrer lado a lado com o

resgate do tipo de moradia e alimentação proporcionado pelo salário, acesso à saúde, educação,

transporte e saneamento básico das pessoas com as quais trabalhamos. Não se trata aqui de fazer um

recenseamento, mas sim de evidenciar os elementos gerais que ajudam a elevar ainda mais o grau

de sofrimento no trabalho dos colegas com os quais passamos boa parte de nossas jornadas.

- “Bom, Nádia, isso parece mais uma lista de compras do que uma forma de envolver

alguém em algo que precisa assumir”, comenta o homem ao coçar a cabeça após a longa explanação

da coruja.

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- “O que você diz faz sentido, mas, por outro lado, é impossível pedir a este alguém de

abandonar o papel de expectador sem oferecer os primeiros passos que o introduzem no longo e

tortuoso caminho da participação. Se os elementos que indicamos são aqueles que ajudam a traçar o

mapa sobre o qual vamos esboçar nosso esforço para garantir a saúde do trabalhador, o

envolvimento deve se dar em cima de algo concreto ainda que, de início, as tarefas propostas

pereçam áridas e cansativas. Mas isso é algo que vale a pena descrever com mais calma no próximo

capítulo onde vamos tratar dos...”.

2. Caminhos para envolver a base

- “Por esclarecido e preparado que seja - diz a coruja ao andar de um lado pra outro da mesa

-, nenhum cipeiro ou cipeira vai conseguir levar a empresa a alterar o local de trabalho enquanto

agir sozinho, sem uma base que sustente a amplie seu esforço de representar os trabalhadores. O

envolvimento dos colegas, porém, não é algo que nasce espontaneamente, mas sim um elemento

que precisa ser pacientemente cultivado nas relações diárias dentro e fora dos locais de trabalho. Em

geral, as pessoas apóiam o que ajudaram a criar ao passo que tendem a oferecer certa resistência a

tudo o que é imposto de cima pra baixo, sem sua participação ou sem que tenham, ao menos, tempo

para entender e assimilar o que está sendo sugerido.

A rejeição e a desconfiança inicial, portanto, não devem ser vistas necessariamente como

algo negativo ou capaz de inviabilizar qualquer mudança, mas sim como uma postura natural com a

qual os colegas protegem suas convicções e ações de tudo o que procura questioná-las ou representa

algo novo que desperta receio ou insegurança. Exatamente por isso, a paciência, a insistência

respeitosa, o diálogo aberto, a sinceridade e o que podemos chamar de „tratar trabalhadores e

trabalhadoras como adultos‟ devem ser uma espécie de marca registrada na atuação de quem

procura conhecer a realidade para transformá-la.

Entre as ferramentas que ajudam nesta tarefa está a construção do mapa do trabalho.

Máquina a máquina, setor a setor, até atingir toda a empresa, trata-se de envolver as pessoas nas

quais podemos confiar a colocar no papel onde começa, por onde passa e como termina o processo

de trabalho. O desenho do fluxo de produção que vai sendo esboçado deve mostrar, inicialmente,

onde estão as máquinas, quantos trabalham nelas e sua profissão, a produtividade por hora ou por

turno, que produtos entram em cada fase do processo e se já ocorreram acidentes.

Neste estágio, é possível que, por exemplo, os colegas conheçam apenas o nome fantasia da

matéria-prima manipulada, mas não a sua composição ou a que elemento corresponde o nome que

consta do rótulo. Não são poucos os casos nos quais as empresas lançam mão desse recurso para

esconder dos funcionários os verdadeiros riscos aos quais estão expostos durante o trabalho a fim de

evitar que estes elaborem denúncias, acionem o sindicato, exijam mudanças ou, mais simplesmente,

adotem formas de defesa e resistência que atrasam o ritmo de produção. Para contornar este

inconveniente, é bom sugerir que se retire o rótulo do produto onde, inclusive, consta o nome e o

endereço do fabricante. Com a ajuda de um especialista, não é difícil conhecer do que se trata e que

riscos são próprios da manipulação desta matéria-prima”.

- “Então, pelo que entendi, trata-se de desenhar o fluxo de produção com quem trabalha

naquele setor no menor tempo possível!”, resume o secretário na tentativa de apressar as conclusões

da coruja.

- “Mais do que pressa, o cipeiro precisa de paciência, pois não são poucas as ocasiões em

que esta tarefa aparentemente simples demanda prazos maiores do esperado em função, justamente,

da dificuldade de ganhar a confiança e o envolvimento das pessoas.

De fato, se o desenho em si não exige nenhum talento artístico, a descrição do fluxo pede

números reais, levantamentos que se aproximem ao máximo da realidade e das especificidades de

cada setor, um apanhado dos conhecimentos ora comunicados pela empresa durante o treinamento,

ora adquiridos pelos colegas na execução das tarefas e, sobretudo, a apuração da veracidade das

informações, pois não é difícil encontrar alguém que, acreditando poder se vingar da empresa,

exagera os números e as cores de suas descrições.

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O resultado desta primeira etapa pode ser visualizado através de um esboço igual a este:

No passo seguinte, faz-se necessário associar a cada etapa do processo de trabalho os riscos

próprios daquele setor. Nada impede que as pessoas envolvidas utilizem a lista de riscos que foi

apresentada no capítulo anterior e, para evitar que o resultado final seja uma confusão de anotações

é possível substituir a descrição escrita por ícones fáceis de serem interpretadas, como estas que

você pode copiar e recortar:

Início do

processo de

trabalho.

Máquina, ferramentas,

ou equipamento

utilizado.

Quantidade de produto

final ou intermediário

produzido por hora/turno.

Próxima

etapa do

processo.

Insumos,

produtos a

serem

manipulados.

Número de

trabalhadores,

quantidades de homens

e mulheres, profissões.

Acidentes

registrados no setor.

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Sempre em trabalho coletivo, trata-se, finalmente de associar cada símbolo à etapa do

processo de produção que está sendo analisada. O resultado final deste esforço é um mapa enxuto,

fácil de ser interpretado e no qual as anotações iniciais podem ser anexadas em separado. O trabalho

realizado num setor de uma indústria de laticínios teve como resultado o exemplo que segue:

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Cumprida esta etapa, está na hora de avaliar que problemas já foram percebidos por todos,

ou pela maioria dos funcionários do setor, e quais deles geram mais descontentamento na turma. Às

vezes é possível identificar uma razão de descontentamento comum a todos, às vezes não. Ora as

pessoas estão tão acostumadas a conviver com os riscos que nem os vêem como tais e, portanto,

devem ser levadas a perceber o que está acontecendo, que perigos já são visíveis e que agressões à

saúde são como um dobermann raivoso, momentaneamente adormecido num canto do quintal.

Para complicar mais um pouco o trabalho do cipeiro, nem sempre o problema mais grave é o

que gera um maior grau de apreensão ou descontentamento, assim como, muitas vezes, os colegas

teimam em dizer que as coisas não são tão ruins quanto parece, pois, no fundo, temem que a

eliminação do risco venha a suprimir a vaga que ocupam. Sabendo disso, quem se dedica à defesa

da saúde do trabalhador não pode esquecer de três elementos fundamentais:

1. A elaboração do mapa do trabalho e dos riscos presentes em cada etapa do processo

produtivo não implica na adesão imediata dos colegas à luta por um ambiente de trabalho

que preserve a sua saúde das agressões listadas anteriormente. Em muitas ocasiões, se faz

necessário levar as pessoas a „sentir firmeza‟ e, portanto, a confiar na própria capacidade de

encontrar soluções e de vencer a inércia dos demais para desmascarar a empresa e forçá-la a

realizar as mudanças necessárias. Isso significa que, talvez, a pressão para alterar o que é

fonte de riscos na empresa deve partir de um problema pequeno, fácil de ser resolvido e que,

ao consolidar uma vitória inicial, deixe a sensação de que é possível mudar outras coisas.

2. Sabendo que não basta constatar o risco e apontá-lo na reunião da CIPA para que a empresa

gaste dinheiro para resolvê-lo, é importante que o cipeiro se preocupe em envolver cada vez

mais a base e, na medida do possível, o sindicato, na hora de criar e dar vida a formas de

luta que, por visualizar os problemas do ambiente de trabalho, representem uma ameaça à

imagem da empresa junto à comunidade local ou um motivo de vergonha por esta ainda não

ter resolvido o que há tempo vinha sendo apontado.

3. Não se deve perder de vista a dupla função que o mapa costuma assumir na cabeça dos

colegas. De fato, acompanhando a lógica patronal absorvida com o passar do tempo, o senso

comum continua convencido de que, ao ter consciência dos riscos, cabe ao trabalhador

tomar cuidado e manter-se sempre atento durante a execução das tarefas. Para nós

trabalhadores e trabalhadoras, porém, sinalizar o risco significa sempre e somente identificar

algo que deve ser combatido e eliminado pelo simples fato de representar uma ameaça que

paira sobre a cabeça das pessoas e hipoteca sua integridade física e psíquica.

Resumindo, a elaboração do mapa do trabalho e dos riscos inerentes a cada uma de suas

etapas deve representar um momento de envolvimento, de percepção mais aprimorada dos riscos e

perigos cotidianos, enfim, deve ser visto como uma espécie de mapa do tesouro no qual as

dificuldades a serem eliminadas representam cada estágio do caminho rumo à conquista de um dos

bens mais preciosos: a preservação máxima da saúde de quem gasta no trabalho os melhores anos

de sua vida.

- “Mas... será que isso pode mesmo ajudar a ampliar a visão dos colegas em relação ao

ambiente que devora suas energias mais preciosas...?”, indaga o homem em tom de desconfiança.

Cutucada pela insinuação, Nádia pára, gira o corpo até ficar frente a frente com seu

interlocutor e, ao apontar a asa direita para o secretário, franze a testa e aperta os olhos como quem

prepara a pontaria antes de disparar uma flecha venenosa:

- “Se a sua cabeça de humano servisse para algo mais do que separar as orelhas, usar boné e

carregar as pesadas lentes dos óculos, ela já teria entendido que identificar coletivamente os

problemas e apontar junto à base as ações destinadas a resolvê-los não é apenas reconhecer o que

põe em risco a própria saúde no trabalho, mas também o caminho necessário para verbalizar o que

causa angústia, apreensão, fadiga, esgotamento e os demais etceteras. Parece pouco, mas é o

primeiro passo para que as pessoas se reconheçam como vítimas de riscos coletivos e comecem a

perceber sua parcela de responsabilidade no longo caminho da luta para procurarmos impedir que as

horas passadas na empresa prejudiquem a saúde. Levar colegas a falarem do próprio sofrimento no

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trabalho e a debaterem suas causas é pouco, mas é um passo imprescindível para que comecem a

sair do ninho e a perceber que o problema, até ontem, tido como pessoal é, na verdade, a

manifestação individual de algo coletivo. Enfim, trata-se de fazer com que o homem ou a mulher

que se esfola ao meu lado possa identificar o que sente e sofre no exercício diário de suas tarefas

não como o resultado das fragilidades do seu corpo, mas sim como uma assustadora hipoteca

coletiva cuja origem está em ter o lucro como centro das preocupações empresariais”.

- “O fato é que o povo tem cabeça dura e não são poucos os que só pensam no salário e se

queixam apenas quando as coisas estão a ponto de se tornarem realmente insuportáveis!”, afirma

categórico o homem para justificar sua posição anterior.

- “Neste caso - diz a ave quase em tom de desculpa -, há uma ferramenta mais simples a ser

utilizada na reconstrução da relação doença-trabalho. Além de envolver os trabalhadores e mostrar

que seus problemas de saúde não podem ser visto como algo estritamente individual, ajuda a

colocar uma pulga atrás das orelhas das pessoas.

No lugar de começar a reflexão pelo que está fora do trabalhador, o mapa do corpo permite

que a discussão tenha como ponto de partida a dor e o sofrimento experimentados no próprio corpo

em função do trabalho desenvolvido. Para realizar esta dinâmica, é necessário que você reproduza

num papel bem maior estes dois desenhos do corpo humano:

Reúna as pessoas com as quais você trabalha e que demonstram um mínimo de abertura para

debater os problemas que percebem no dia-a-dia da empresa. Não é necessário que sejam todas do

mesmo setor, o importante é que entre elas haja certo grau de respeito recíproco para permitir que

todas se disponham a ouvir respeitosamente e possam falar sem constrangimentos sobre as marcas

de dor e sofrimento que o exercício diário das tarefas deixou no próprio corpo. Por simples que

sejam, essas atitudes são essenciais para que o mapeamento do corpo do trabalhador coletivo atinja

Corpo visto de frente Corpo visto pelas costas

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seu objetivo e, sobretudo, para impedir que o relato dos colegas não vire objeto de fofocas ou

chacotas.

Bom, pendurados os desenhos, trata-se de explicar como as coisas vão funcionar. Um a um,

cada trabalhador ou trabalhadora levanta, diz onde trabalha e a sua função. Em seguida, usando

cores diferentes para homens e mulheres, através de pequenos adesivos ou com um pincel atômico,

todo participante marca nos cartazes do corpo o lugar da dor que está sentindo e relata qual é a

relação entre cada marca deixada nas folhas e os gestos, posições, exigências ou riscos com os quais

se depara no ambiente de trabalho.

Nunca é demais frisar que o objetivo da dinâmica é reconstruir a relação doença-trabalho-

piora-da-qualidade-de-vida, o que implica em deixar claro aos participantes que a dor a ser

registrada nos desenhos deve ter um vínculo direto com o trabalho e não com fatores de outra

origem. No caso de doenças crônicas, porém, deve se registrar em que medida estas foram causadas

ou agravadas no desempenho diário das tarefas exigidas pela empresa.

Antes de voltar ao seu lugar, cada participante conta aos presentes como o que vive e sofre

no trabalho (e que deixou marcas no seu corpo) interfere na sua vida pessoal e familiar. A ponte

entre o que ocorre dentro e fora da empresa é necessária na medida em que ajuda a solapar a idéia

empresarial pela qual nossas preocupações pessoais não devem interferir no desempenho da

profissão e vice-versa. Assim como ninguém consegue deixar seus problemas ao bater o cartão na

entrada, não há quem pode largar no relógio de ponto as dores e sofrimentos do trabalho antes de

voltar pra casa.

Para facilitar as coisas, é bom que o primeiro a falar seja o próprio cipeiro ou quem, no lugar

dele, está conduzindo a atividade. Isso ajuda a quebrar o gelo, a diminuir a inibição e a criar um

clima de maior abertura, na medida em que cada membro do grupo constata que o sofrimento no

trabalho deixa marcas, literalmente, em todas as pessoas.

Você já deve ter percebido que no desenho do ser humano visto de frente há uma nuvem ao

lado da cabeça. Nela devem ser colocadas as marcas que não representam uma dor física, mas sim

um sofrimento psíquico. Por exemplo, quando alguém sofre de insônia, ansiedade, sensação de

exaustão, tem sempre os nervos a flor da pele, alto grau de irritabilidade, passa por estados

depressivos, tem ou já deve distúrbios como a síndrome do pânico, o adesivo, ou o círculo redondo

do pincel, não podem ser colocados na cabeça, pois não se trata de um problema físico, como

surdez, vista cansada, conjuntivite química, zumbido nos ouvidos e assim por diante.

Depois que todos tiverem colocado nos desenhos as marcas deixadas pelo trabalho, está na

hora de ajudar o grupo a fazer a leitura do que acabou de produzir perguntando, por exemplo, o que

é possível concluir a partir do que observamos no mapa do corpo, que tipo de doenças ou distúrbio

são mais comuns na função, setor ou local de trabalho como um todo e que sentimentos o resultado

da dinâmica deixa em cada participante.

Após esta fase em que as pessoas começam a perceber seu sofrimento não mais como algo

individual, mas sim coletivo, a se reconhecer na dor do outro e a visualizar melhor o impacto que os

problemas, ferimentos e distúrbios psíquicos gerados pelo trabalho têm na vida pessoal, trata-se

agora de montar no papel a relação entre o mapa do corpo e o mapa do setor. Isso é possível quando

a dinâmica é realizada com colegas do mesmo ambiente de trabalho e pode acompanhar os moldes

descritos no início deste capítulo, ainda que sem as exigências de precisão e os detalhes que

descrevemos para não tornar a atividade cansativa.

No mapa do processo de produção, já desenhado num cartaz, convide cada participante a

situar os riscos apontados ao relatar os sofrimentos deixados pelo trabalho. Por este caminho, não só

é possível visualizar o peso das tarefas exigidas na relação homem-máquina, como a dimensão em

que estão presentes situações de risco ou problemas de ruído, iluminação, manuseio de produtos

químicos, umidade, pressão da chefia, conflitos interpessoais, etc., seguindo a trilha apresentada no

final do primeiro capítulo.

Feito isso, que pode ser dividido em mais de um encontro, via de regra, já se consegue

entrever a necessidade de mudar o ambiente de trabalho como condição para ter acesso a uma

melhor qualidade de vida. A experiência mostra que, em algumas ocasiões, uma vez definidas as

principais agressões à saúde e à segurança do trabalhador coletivo, não é tão difícil introduzir a

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discussão sobre por onde e como começar, a partir dos elementos e sugestões oferecidas pelos

próprios participantes.

Mais do que pressa em apresentar e viabilizar soluções, correndo o risco de queimar etapas

na medida em que as pessoas podem continuar preferindo a resignação à ação, deve-se interagir

com elas para que comecem a perceber que dá pra encontrar medidas destinadas a proteger a

própria incolumidade, que há sim saídas técnicas possíveis e que o esforço de cada um é

imprescindível não só para formular que mudanças são desejadas, mas também para matutar que

ações de curto, médio e longo prazo devem ser implementadas para sensibilizar e envolver os

demais trabalhadores, para sustentar o trabalho da CIPA e, obviamente, para exigir que o local de

trabalho seja pensado a partir da preservação da saúde.

Como você deve ter notado, manter contatos, conversas informais, reuniões, coleta de

pareceres, etc., não termina com o encerramento da dinâmica, mas ganha a partir dela os elementos

de avaliação que permitem definir o nível de consciência dos colegas, sua disponibilidade a se

envolver neste processo e o tamanho do desafio a ser enfrentado. Por isso, após se despedir dos

participantes, guarde em lugar seguro os mapas do corpo e do ambiente de trabalho que resultaram

desta atividade. Eles vão servir de base tanto para avaliar e localizar com o mesmo grupo os

avanços e as razões que até o momento impediram as mudanças, quanto para rever o alcance e as

reais possibilidades das ações e formas de luta adotadas até o momento. Além disso, o resultado

obtido com uma turma pode ser somado aos cartazes elaborados por outras a fim de proporcionar

uma visão mais clara e tangível dos riscos que ameaçam o trabalhador coletivo, das doenças e

distúrbios que marcam presença em seu meio, de onde já foi possível obter avanços e que ações se

mostraram mais eficazes tanto para sensibilizar os colegas quanto para enfrentar a empresa”.

- “E...será que vem alguma dica para lidar também com os acidentes...?”, pede o secretário

entre a curiosidade e a desconfiança.

- “Se quiser, podemos analisar o que aconteceu hoje mesmo na fábrica onde você

trabalha...”, sugere a coruja ao aceitar o desafio.

- “Fechado!”, concorda o ajudante. E continua: “O que chegou aos meus ouvidos é que

Sebastião, operador de uma pequena empilhadeira, acabou atropelando João quando este andava

pelos corredores do almoxarifado onde o primeiro estava trabalhando.

Felizmente, o choque não foi grave e João, ao bater, não sofreu nenhuma fratura. Quando

cheguei ao local, ele já havia recebido os primeiros socorros, mas ainda estava deitado em função

da dor e do susto. Ao me ver, disse que, simplesmente, não percebeu que a empilhadeira estava se

aproximando. Ao lado dele, Sebastião, pálido e trêmulo, comentou que estava indo buscar uma

carga e que, quando viu João, buzinou e pisou no freio, mas este, além de não ouvir a buzina, não

teve sorte, pois a empilhadeira não parou a tempo de evitar o choque.

Assim como eu, muita gente acredita que isso só aconteceu por falta de atenção, pois

bastaria que ambos se ligassem no trabalho para evitar situações como esta...”, emenda o homem ao

comentar o ocorrido.

Ouvido o breve relato com o queixo apoiado na ponta da asa direita, Nádia pisca os olhos,

emite um longo suspiro e, após um “muito bem...vejamos” com o qual reúne a paciência e as idéias,

se aproxima das folhas do relato com atitude típica de quem procura ter certeza de que suas palavras

serão transcritas com a fidelidade necessária. Mais alguns instantes e o silêncio da sala é rompido

por um “Se eu fosse você não teria tanta pressa de dar o caso por encerrado...” que faz o secretário

assumir uma feição entre a vergonha e a dúvida. E continua:

- “O fato de não ter tido conseqüências graves, não significa que o acidente pode ser

analisado com superficialidade e, muito menos, que devemos esperar algo bem mais sério antes de

investigar os problemas que o ambiente de trabalho pode estar acumulando sob os nossos olhos.

Via de regra, toda ocorrência desse tipo não é o resultado de uma única causa, mas sim de

um encadeamento de situações cujo avolumar-se está na base do acidente que você acaba de

descrever. Entre os caminhos que permitem investigar as causas, eu sugiro que, no lugar de adiantar

conclusões, cada cipeiro eleito se preocupe em formular perguntas a partir dos relatos dos

envolvidos, das eventuais testemunhas e das questões que precisam ser respondidas para que haja

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uma completa apuração dos fatos. O ponto de partida está na fala do João e do Sebastião que, como

sempre acontece, é curta e bem pouco esclarecedora.

Pelo que você mesmo disse, João afirma não ter percebido que a empilhadeira estava se

aproximando. Para averiguar o porquê desta afirmação eu perguntaria:

Por que João estava andando pelo almoxarifado? Para realizar suas tarefas corriqueiras ou

para dar conta de uma solicitação alheia à sua rotina?

Será que João estava apressado? Qual a origem desta pressa? O ritmo imposto na empresa?

A ordem de um chefe que, de uma maneira ou de outra, poderia atrasar a realização do seu

serviço diário? O número reduzido de funcionários? A ausência de „coringas‟ para substituir

alguém que faltou, o que, talvez, exigiu de João o cumprimento de algo que não faz parte de

sua rotina?

Na hora do acidente, ele estava usando protetor de ouvidos em função do barulho presente

no setor onde trabalha ou no próprio almoxarifado?

O fato dele não ter visto a empilhadeira, pode ser explicado pelo desordenado amontoar-se

de materiais fora do local especificado? Ou será que uma superutilização do espaço

disponível levou a um empilhamento de objetos superior à área destinada a esse fim?

No almoxarifado, existem sinalizações visíveis e marcas no piso que definem com cores

diferentes onde só trafegam veículos e que espaços são reservados à circulação das pessoas?

Quando alguém é enviado a uma área onde não costuma trabalhar, é orientado quanto ao

reconhecimento das medidas de segurança a serem respeitadas naquele local?

A iluminação do almoxarifado está adequada?

A cor do uniforme facilita a identificação de sua presença naquele ambiente?

Há quantas horas João estava trabalhando? Ele vinha fazendo horas-extras? Ele trabalha em

turno? Há quantos dias havia mudado o horário de trabalho? Enfim, será que o cansaço e a

fadiga não ajudaram?

João faz uso de remédios que reduzem os reflexos, produzem sonolência ou retardam as

reações diante do perigo? Por que ele está usando estes medicamentos?

Que outras preocupações podem tê-lo deixado com a cabeça distante?

- “Meu Deus! Isso parece um interrogatório...”, murmura o homem em tom de

autojustificação.

Sem ligar para a inesperada interrupção, a ave ajeita as plumas do peito e acrescenta:

- “No que diz respeito a Sebastião e à situação da empilhadeira, eu não deixaria de verificar

estes aspectos:

Ele está habilitado e devidamente treinado para a função?

A rapidez do acionamento da buzina e do freio foi prejudicada pelo cansaço e a fadiga

do operador? Ele faz uso de medicação que reduz os reflexos e o grau de atenção? Por

que ele está usando esse tipo de medicamentos?

Além da buzina, a empilhadeira tem giroflex? Este sinal luminoso estava funcionando na

hora do acidente? Seu acionamento depende da vontade do operador ou é automático e

ocorre sempre que a empilhadeira é ligada?

O fato de João não ter ouvido a buzina é fruto do barulho no almoxarifado ou ao não

funcionamento apropriado deste mecanismo por falta de manutenção?

Sabemos que a empilhadeira não parou logo. Isso se deve ao precário funcionamento dos

freios? Ao material não antiderrapante do piso? À presença de algum produto que o

torna escorregadio? A pneus carecas? Ao fato de Sebastião estar trafegando acima da

velocidade permitida em função da carga de trabalho da qual tem que dar conta?

A resposta a cada uma destas interrogações, que em alguns casos servem tanto para João

como para Sebastião, tem o mesmo papel da peça de um quebra-cabeça que, unida às demais,

monta o quadro completo das causas visíveis e latentes que deram origem ao acidente. Por isso, se

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você entendeu bem o que discutimos no início deste trabalho não vai ter nenhuma dificuldade em

perceber que as situações costumeiramente apontadas como „ato inseguro do empregado‟ ou „falta

de atenção‟ não passam de um cômodo biombo atrás do qual a empresa esconde as razões que

apontam sua responsabilidade direta e, como minas enterradas no solo, estão prontas a explodir

quando fatores mínimos provocam o seu acionamento”.

- “Mas, de onde você tirou tudo isso?”.

- “Ora – responde a coruja ao abrir as asas diante do peito – a partir da lista de riscos que

trabalhei no início do estudo e dos elementos que a própria fala dos envolvidos no acidente deixa

entrever.

A busca de respostas, por sua vez, vai demandar não só a sua capacidade de observar o local

de trabalho, mas de fundamentar cada conclusão a que se chega com intervenções, descrições e

depoimentos não só dos envolvidos no acidente, mas dos colegas dos setores onde ambos

trabalham”.

- Bom, você já me ensinou quais são os riscos a serem analisados, como montar o mapa do

local de trabalho com os problemas de cada setor e como proceder em caso de acidentes. Mas

confesso que ainda não entendi direito como o cipeiro deve se comportar em relação aos colegas e

nas atividades próprias da CIPA. E aqui mais vale um conselho prático do que muita teoria difícil

de ser entendida...”, sugere o ajudante ao testar novamente os conhecimentos da ave.

Sem pestanejar, Nádia levanta a asa direita e, ao fechar os olhos, diz:

- “É pra já! O que posso dizer a esse respeito é fruto da experiência de pessoas

comprometidas com a luta para pôr fim aos acidentes e às doenças profissionais que vitimam os

trabalhadores. Mas, por se tratar de algo não tão rápido quanto parece, vou reunir seus principais

conselhos no próximo capítulo ao explanar, justamente, as...”

3. Dez dicas para a atuação do cipeiro/a.

- “Sem a pretensão de esgotar o assunto e, muito menos, de limitar novas possibilidades de

ação, o esforço de delinear em dez pontos as principais orientações vindas da experiência de vários

cipeiros/as tem o objetivo de traçar uma espécie de caminho das pedras a ser adaptado pelos

representantes eleitos de acordo com as condições reais do ambiente em que atuam.

Por isso, mais do que uma receita pronta e acabada, a lista que segue deve servir de bússola

para orientar a ação dentro e fora da CIPA:

Dica número 1: converse com todos os colegas, sobre qualquer assunto. Pode parecer

estranho, mas o primeiro passo é ser amigo das pessoas e ganhar sua confiança. Para isso, ninguém

precisa fingir ou ser falso, mas sim aberto à conversa sobre os mais variados temas que são objeto

de bate-papo nas rodinhas de trabalhadores. Do futebol à novela, do comentário sobre algum

acontecimento ou reportagem ao resultado da corrida de Fórmula 1, passando pelas piadas e

momentos de descontração, o cotidiano como um todo pode ser objeto de conversa. Ninguém deve

se sentir forçado a ver um programa que detesta para ter assunto no dia seguinte, mas apenas

lembrar que, como cipeiro/a, não pode ser uma pessoa que fala apenas sobre saúde e segurança,

pois, desta forma, corre o risco de ser visto como „um cara chato‟, que „só pensa naquilo‟ e cuja

presença é recebida de forma negativa, como a de um estraga-prazeres que, ao ver alguém

conversando, corre para cortar o assunto e desviá-lo para os temas que lhes são caros.

Aproveitar qualquer instante para conversar não significa também falar o tempo todo, mas

tão somente ter um comportamento amigável, sincero, honesto, autêntico, solidário, aberto ao

diálogo e capaz de respeitar as diferenças e as visões de mundo das pessoas que lhe são próximas.

Por isso, além de dizer o que pensa, como amigo, precisa saber ouvir tanto as palavras como os

silêncios ou os gestos que, em suas mais variadas manifestações, expressam sentimentos, temores,

ansiedades e esperanças.

Graças a este caminho de mão dupla, todo cipeiro/a vai perceber melhor a forma pela qual

os colegas interpretam a vida dentro e fora da empresa numa visão de mundo freqüentemente

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contraditória e bizarra, mas que precisa ser respeitada por constituir o esqueleto em volta do qual

cada trabalhador e trabalhadora pensa e vive seu cotidiano na história. Ao dizer isso, não quero

sugerir que devemos aceitar tudo passivamente ou aprovar o que consideramos errado, mas sim que

a melhor forma de ajudar os colegas a superar os limites do que orienta seus pensamentos e ações

não passa pelo discursar ou impor a eles novos valores e perspectivas. A paciência de quem

pretende organizar um time para travar a luta por saúde e segurança dos trabalhadores demanda a

capacidade de entender como pensam e agem os colegas, de incorporar respeitosamente suas

posições como objeto de diálogo e levar à superação das mesmas buscando prioritariamente plantar

dúvidas e perguntas na cabeça das pessoas e não afirmações rígidas perante as quais os colegas

costumam concordar apenas para se verem livres de uma mala-sem-alça.

Com calma, e observando pacientemente as ações e reações de cada um diante das situações

do dia-a-dia, ouvindo, falando e perguntando, o cipeiro/a tem chance de conhecer melhor com quem

está lidando, de ver quem é quem no local de trabalho, de identificar aqueles nos quais pode ou não

confiar, os que falam muito, mas fogem na hora do „vamos ver‟ e os que sem fazer alarde

permanecem ao seu lado. Enfim, ser amigo e se relacionar com todos é um ponto de partida

essencial para quem busca agir como fermento na massa.

A mesma atitude vai ajudar a abrir caminhos para uma conversa mais séria com as vítimas

de acidentes ou doenças profissionais. Quando as pessoas sentem firmeza em nossa postura e

percebem que podem confiar, vão deixar de lado mais facilmente o receio de falar de seus

problemas de saúde e o testemunho aberto delas pode ser fundamental tanto na hora de sensibilizar

os demais quanto à importância de lutar para que o trabalho não danifique o ser humano, como para

ajudá-los a se indignar diante do que vêm ocorrendo debaixo de seus próprios olhos.

Pode parecer pouco, mas sem o sentimento de coletividade que a conversa, a amizade e a

solidariedade costumam fortalecer e sem a indignação diante da injustiça que se manifesta na vida

dos que estão ao nosso redor, as pessoas não costumam reagir nem se rebelar, mas tendem a

reafirmar sua resignação e conformismo com a realidade, impedindo assim o nascimento de ações

coletivas de defesa e resistência.

Último, mas não menos importante, o fato de conversar com todos serve também para ajudar

os chefes a não mapear os colegas. Na medida em que você fala com todos e todos se relacionam

com você, torna-se mais difícil para a hierarquia da empresa e os dedos-duros identificar quem são

aqueles nos quais apostamos para dar vida a um processo de luta por saúde e segurança sempre

muito longo e desgastante”.

- “Meu Deus, esse ponto tomou um espaço enorme! Se forem todos assim, nosso leitor vai

cansar!”, queixa-se o secretário ao expressar sua expectativa frustrada de que tudo não passava de

algo bem breve.

- “O que sua cabeça de vento não consegue entender – retruca a ave ao espetar com a asa o

espaço que a separa do ajudante – é que sem esta pedra fundamental, as outras que seguem não

fazem muito sentido, pois não podemos esquecer que a relação humana vem sempre antes do

envolvimento militante em qualquer luta e, via de regra, constitui uma de suas bases essenciais. Por

isso deixe de preguiça porque vêm aí a...

Dica número 2: substitua o EU pelo NÓS. É muito comum ouvir cipeiros, ativistas e

militantes usar expressões como „eu vou fazer isso!‟, „vou lutar para defender nossa saúde!‟, ou

„preciso resolver esse problema‟. O fato é que, ao somar todas as ocasiões em que o EU está em

evidência, quem ouve tem a clara sensação de que não precisa fazer nada a não ser esperar que o

candidato a super-homem, ou a mulher-maravilha, resolva todas as questões, desfaça o que está

errado e entregue tudo prontinho, sem a menor intervenção do coletivo.

No que pesem as posturas assistencialistas, paternalistas ou supostamente combativas, a

linguagem do EU faz com que o cipeiro seja visto não como o técnico que monta o time para

ganhar o jogo, mas sim como um super-herói capaz de jogar ao mesmo tempo no gol, meio de

campo e ataque dispensando a atuação dos outros 10 jogadores. E como não faltam pessoas que

fazem o impossível para não serem incomodadas e para não assumir a menor responsabilidade nos

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enfrentamentos, o „EU resolvo‟ é tudo o que elas querem ouvir para continuar esperando que outro

faça o que só pode ser conseguido com a colaboração da maioria.

Por outro lado, o NÓS permite sempre resgatar a necessidade do envolvimento tanto na

localização dos problemas como na busca dos caminhos pelos quais estes podem ser apontados,

denunciados e ter sua solução debatida e encaminhada pela participação e intervenção do coletivo.

Sem tirar a responsabilidade e o papel de quem foi eleito representante dos trabalhadores na CIPA,

o NÓS ajuda sempre a lembrar os limites da ação do indivíduo, a visualizar a necessidade da união

e do companheirismo, a marcar a vontade do coletivo e a avaliar até a que ponto o tamanho

reduzido das conquistas se deve justamente ao fato de que boas idéias e bandeiras de luta só

caminham quando carregadas por um exército onde os generais são apenas parte de sua estrutura e

não os que devem atuar em tudo.

Então, após ouvir um colega, não corra para resolver, mas se preocupe em dar forma e fazer

ressoar o NÓS no meio do trabalhador coletivo. Ou seja, trata-se de avaliar com outras pessoas o

verdadeiro tamanho do pepino que lhe foi entregue, de verificar nas conversas informais até a que

ponto os demais também vêem aquele problema como fonte de insegurança e descontentamento e

nunca deixe de perguntar a cada um o que acha que deve ser feito para conseguirmos a solução

desejada. No debate informal que vai se estabelecendo não vai ser difícil levar as pessoas a perceber

que o fato de um nosso direito constar na lei não implica em sua aplicação automática pela empresa,

mas que esta depende sempre da nossa capacidade de levantarmos força e poder de barganha

suficientes para garantir o seu cumprimento.

Na hora de formatar e encaminhar concretamente as questões a serem levadas à reunião da

CIPA e as formas de pressão que devem acompanhá-las, sempre que possível, além das conversas

informais, é bom realizar reuniões com os colegas dos setores envolvidos ou com pessoas nas quais

podemos confiar.

Mais uma vez, o olhar da chefia, dos dedos-duros e das câmaras de vigilância pode

contribuir significativamente para o fracasso dos nossos esforços. De pouco adianta saber por onde

anda o chefe, verificar se o dedo-duro está na área ou se ficamos supostamente fora do alcance das

câmaras, pois nem sempre o equipamento visível é aquele que registra as imagens. Há muitas

empresas nas quais foram espalhadas câmaras que atraem as atenções por sua forma e tamanho, mas

que servem apenas de enfeite. Em praticamente todos os locais de trabalho já foi constatada a

possibilidade de capturar imagens através de equipamentos escondidos nas luminárias, em buracos

de falsas tomadas e até mesmo em peças do maquinário que permitem focalizar o ambiente sem

chamar a atenção. Por isso, como seguro morreu de velho, sem criar paranóias ou falsos alarmes, é

bom que os contatos iniciais sejam feitos no local de trabalho, mas que as conversas mais

demoradas e as reuniões ocorram longe deste e, de preferência, em ambientes onde é possível se

preservar de olhares indiscretos”.

- “Até agora, você deu conselhos gerais, mas a reunião da CIPA, por exemplo, tem data

marcada, uma dinâmica própria, registros de suas atividades e assim por diante. Será que para isso

também vamos ter dicas precisas?”, solicita o homem com ar típico de quem procura se desculpar

de uma mancada recém-cometida.

- “É justamente disso que ia falar agora”, responde a ave ao balançar a cabeça em sinal de

afirmação. E, abrindo um sorriso de compreensão silenciosa, diz:

Dica número três: toda reunião da CIPA deve ser preparada e nada pode ser deixado

ao sabor do improviso. Antes de cada reunião, o cipeiro deve recolher informações junto aos

colegas de trabalho e com aquelas pessoas fora da empresa que, com sua experiência, lhe permitem

descrever, entender e apresentar melhor os problemas cuja solução precisa ser encaminhada. Em

seguida, toda vez que for possível, é bom sentar com os membros eleitos nos quais se pode confiar

para acertar os ponteiros. Sem grandes pretensões, trata-se aqui de apresentar e ouvir o que precisa

ser debatido na reunião e não pode deixar de ser registrado em ata. Quando mais pessoas defendem

as mesmas questões é mais fácil pressionar os representantes da empresa a colocar por escrito os

problemas apresentados após o levantamento feito junto ao trabalhador coletivo. Até onde for

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possível, é sempre importante chegar a um consenso, ou, pelo menos, sensibilizar os demais eleitos

para a CIPA a aceitarem a discussão das questões no interior da reunião e apoiarem o registro em

ata da denúncia que está sendo apresentada, independentemente de se tratar, ou não, de um

problema comum aos ambientes onde atuam.

Mesmo quando as coisas estão claras e cristalinas, nunca é bom confiar exclusivamente na

memória. A tensão e o nervosismo que às vezes costumam entrar em cena diante das posições

defendidas pelos representantes da empresa podem levar até os mais preparados a esquecer deste ou

daquele item que foi examinado junto aos colegas. Por isso, é bom vencer a preguiça, anotar as

questões que devem ser levantadas na reunião e ordená-las de acordo com sua importância e

gravidade, para evitar que algo urgente acabe não ganhando a ênfase necessária devido à falta de

tempo. E, como idéias e problemas não tem hora marcada para aparecer, vale a pena deixar sempre

no bolso do uniforme aquele toquinho de lápis e pedaço de papel para anotar o que estamos

percebendo e não perder nada do que é conversado com os colegas ou ajuda a defender as questões

na reunião da CIPA.

Dica número quatro: durante a reunião, seja experto como as cobras e simples como as

pombas. Já foi constatado em inúmeras ocasiões que atitudes constantemente agressivas não levam

a lugar algum. Não poucas vezes, o levantar o tom de voz, dar socos na mesa, usar palavras de

baixo calão ou gestos desrespeitosos acabam transformando os representantes da empresa em

vítimas que apelam a este ou aquele comportamento para desqualificar as intervenções dos que se

dispõem a lutar pela saúde dos trabalhadores.

Neste sentido, mais do que tentar ganhar no grito, vale a pena aprender a ter jogo de cintura,

a saber escolher o momento de calar e o de dar o bote, a hora de levantar vôo com as próprias

colocações e a de chegar a alianças tácitas para garantir que as preocupações e denúncias

apresentadas não caiam no esquecimento. Se, de um lado, só a experiência pode ensinar a não ser

ingênuo, afoito, petulante e a escolher a atitude certa para o momento, de outro, o cipeiro eleito pela

base não deve entrar numa reunião com atitudes submissas, voz trêmula e olhar incapaz de encarar

o olhar dos demais. Ou seja, assim como é desaconselhável falar da boca pra fora, é bom que o

nosso representante aja como quem está defendendo a afirmação de um direito a ser conquistado,

daí que suas palavras devem revelar conhecimento de causa, seu tom de voz precisa mostrar

convicção, seus olhares precisam se fixar nos olhos dos presentes e suas frases não podem deixar

entrever „achismos‟ estritamente pessoais e facilmente questionáveis.

Além disso, é necessário anotar tudo o que deve ir para a ata da reunião e expressar da

melhor forma possível a ênfase a ser dada a cada item. Do contrário, corremos sempre o risco de

que fique o dito pelo não dito, pois, quando a registrar as conclusões é um representante da empresa

e este pode fazê-lo a seu bel prazer, a chance que a ata saia de acordo com os interesse do patrão

cresce na exata medida em que não estamos preparados para colocar por escrito a forma que melhor

retrata a realidade do trabalho que reivindicamos seja alterada.

Dica número cinco: a ata é bem mais do que um mero registro burocrático. Já encontrei

cipeiros para os quais a ata da reunião da CIPA não passa de um papel sem valor algum. Se assim

fosse, os próprios representantes da empresa não usariam de tanto cuidado na hora de registrar o

que foi dito e debatido.

Apesar de o seu conteúdo ser apenas uma „recomendação‟ e não uma obrigação para a

empresa, é sempre bom lembrar que o registro em ata torna-se um comprovante incômodo de que

este ou aquele problema já havia sido apresentado, o que transforma a empresa em displicente,

omissa e culpada de qualquer ocorrência negativa que seja o resultado de uma mudança solicitada e

não-viabilizada. Há casos de acidentes em que, ao serem convocados pela justiça, os patrões se

depararam com o pedido do juiz de que fossem entregues as atas da CIPA. Este, ao constatar a

inércia da empresa diante do que havia sido seguidamente denunciado, agravou a responsabilidade

do empregador infligindo penas mais severas do que seria normal esperar. Trocado em miúdos, uma

ata que registre cuidadosamente as questões apresentadas torna-se uma verdadeira pedra no sapato

do patrão, daí o cuidado que devemos ter na sua elaboração e divulgação.

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Além disso, cada cipeiro deve também fazer questão de receber todas as atas das reuniões da

CIPA e, caso tenha acabado de ser eleito para o cargo, deve pedir o acesso ao que foi debatido, na

gestão anterior. Esta medida simples permite verificar quantas vezes e desde quando o mesmo

problema vem sendo apresentado e que aspectos do mesmo foram ou não resolvidos. Feita a

verificação, em cada reunião da CIPA, vale a pena fazer questão de registrar novamente o que ficou

para trás com frases do tipo: „E reafirmamos aqui a necessidade de a empresa tomar providências

urgentes a respeito de.... conforme já apresentado na ata das reuniões realizadas nos dias...”. Pode

parecer pouco, mas ajuda a aumentar o tamanho da pedra no sapato e a evitar que os problemas

apresentados sejam pura e simplesmente engolidos pela gulosa gaveta do arquivo morto”.

- “Pelo visto, chegamos na metade...”, comemora o secretário ao deixar cair a caneta antes

de se conceder uma longa e gostosa espreguiçada.

- “Sim. Você tem razão, mas não é bom pararmos por aqui e deixar o leitor esperando feito

um bobo!”, rebate prontamente a coruja ao lançar um olhar de reprovação. Por isso, trate logo de se

recompor para a:

Dica número seis: a transparência como peça-chave da confiança. Como representante

eleito – diz Nádia ao cruzar as asas atrás das costas – o cipeiro nunca deve esquecer de prestar conta

de sua atuação aos colegas. Ao sair de uma reunião da CIPA, por exemplo, é recomendável contar o

que aconteceu nela e até a que ponto foi possível transformar o levantamento informal realizado

com os colegas em recomendações que constarão da ata.

Logo que estiver de posse da dita ata, pendure cópias em lugares visíveis e, sabendo que a

linguagem com a qual foi redigida costuma desanimar toda vontade de lê-la, não se canse de contar

o que está escrito e de ajudar os colegas a visualizar onde e como foram registrados os problemas

por eles apresentados. Ao agir dessa forma, você não vai demorar a perceber que, ao aliar o contato

informal à confirmação do „papel timbrado‟ oficial, os colegas vão começar a sentir que a coisa é

séria e que você está sendo realmente uma ponte na qual suas angústias e preocupações podem

transitar para incomodar a empresa.

Ao lado disso, não esqueça também de visualizar que encaminhamentos já foram dados pelo

patrão em resposta às questões que eles pressionavam para que fossem resolvidas. Resgatar a

relação envolvimento-forma-de-luta/pressão-desfecho ajuda as pessoas a manter diante dos olhos a

importância de o conjunto do time estar acima do destaque deste ou daquele jogador, a avaliar as

estratégias adotadas e que tipo de ação se faz necessária; e o cipeiro a visualizar melhor os pontos

fortes e fracos de sua atuação, a abrir os ouvidos para as críticas motivadas, a tentar entender o que

os colegas querem realmente expressar ao apresentá-las, a verificar as responsabilidades do

indivíduo e do coletivo nos acontecimentos que acompanham a luta no local de trabalho.

Apesar de sua importância, o cuidado com a transparência não pode se limitar ao que vai

ocorrer depois da reunião da CIPA. Diariamente, nos deparamos com situações corriqueiras frente

às quais agimos sem refletir, mas que podem ser usadas contra o próprio cipeiro eleito por quem

estiver interessado em minar a confiança conquistada. Por isso, ao ser chamado por algum chefe ou

supervisor, avise quem estiver por perto de que está saindo do seu posto porque foi solicitado por

fulano ou sicrano sem saber o porquê daquela convocação inesperada. Ainda que se trate apenas de

algo relativo às suas tarefas na empresa, ao voltar, não esqueça de comunicar o que ocorreu.

Por representar os trabalhadores, não há nada de „secreto‟ que deve ficar entre o cipeiro e a

empresa, pois o silêncio alimenta as fofocas que inflam facilmente a suspeita de um conluio com o

patrão ou de um duplo jogo em relação aos colegas e à empresa. Enfim, ainda que alguns possam

continuar desconfiando de suas intenções, a transparência e a honestidade observadas pela maioria

vão ajudar a blindar a confiança que o trabalhador coletivo deposita no cipeiro.

Dica número sete: investigue sozinho e em grupo os detalhes de cada acidente. Nas

páginas anteriores, já dei um exemplo de como é possível realizar esta tarefa e aqui vou acrescentar

apenas duas recomendações: solicite uma reunião extraordinária da CIPA sempre que considerar

necessário para analisar detalhadamente os acidente mais graves; e, na medida do possível, lute para

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conquistar o direito de visitar os setores durante o andamento normal dos trabalhos, pois as

impressões coletadas vão ajudá-lo a conhecer de perto as condições reais nas quais são realizadas as

tarefas e a ter uma visão mais ampla e fundamentada dos elementos que podem provocar acidentes

e doenças profissionais.

Dica número oito: cuidado com os exames periódicos. A realização de exames clínicos

aos quais são periodicamente submetidos os trabalhadores da empresa tem sido sinônimo de dor de

cabeça para muita gente que se dedica a eliminar as ameaças à saúde do trabalhador. Às vezes, os

patrões limitam os tipos de exames às modalidades que não têm a menor capacidade de medir o

grau de contaminação. São testes feitos apenas para cumprir tabela e seu resultado, obviamente, não

vai poder servir de prova contra o empregador. Em casos como este, a rotatividade dos funcionários

costuma ser tão alta quanto basta para que o trabalhador seja demitido antes que os primeiros sinais

de adoecimento e contaminação mostrem sua relação inequívoca com o processo de trabalho.

Quando o treinamento dos novatos exige um período de tempo que varia de 4 a 6 meses, os

procedimentos são outros. A experiência tem mostrado que as empresas optam por dois caminhos

paralelos: realizar os exames necessários para assegurar um controle confiável da saúde (ou seja,

para identificar o momento exato em que uma demissão pode livrar o patrão de um fardo

indesejado) e entregar ao funcionário apenas o laudo emitido pelo médico da empresa no qual se

atesta que as condições físicas obedecem aos padrões normais da faixa etária daquele colega.

Ainda que não seja possível saber se as amostras de sangue e outros materiais são usadas

apenas para medir os elementos oficialmente declarados pelo departamento de recursos humanos, é

necessário exigir que os resultados dos exames laboratoriais, e não apenas o laudo final do médico,

sejam entregues aos próprios trabalhadores os quais, em caso de dúvida, podem refazê-los e

procurar uma segunda opinião junto a um profissional de sua confiança.

Aos poucos, entre as discussões que os cipeiros devem levantar e debater com o trabalhador

coletivo está a da lista de exames que realmente podem comprovar se há algum desgaste ou

contaminação provocada pelo trabalho. A depender da especificidade do processo de produção e

dos agentes agressivos nele envolvidos, é possível elaborar uma lista específica de demandas junto

a um médico do trabalho e, em seguida, sensibilizar os colegas a se mobilizarem no sentido de

reivindicar a ampliação dos testes periódicos e de garantir a confiabilidade dos mesmos.

Dica número nove: nunca fale por falar, nunca blefe. Um erro bastante comum entre os

cipeiros é o de acreditar que o seu papel pode ser cumprido apenas com base na agitação, nos

discursos inflamados, nos chavões altissonantes, mesmo quando não há uma relação visível entre a

realidade e as palavras que saem de sua boca. Ainda que, de imediato, esse tipo de atitude possa

animar grupos de pessoas a se mobilizarem, a base material sobre a qual o envolvimento é

construído é tão frágil que derrete como gelo ao sol no primeiro embate com a empresa.

Justamente por isso, além do necessário estudo das Normas Regulamentadoras (as chamadas

NRs), é imprescindível que o cipeiro fundamente sempre suas afirmações, pois qualquer

superficialidade ou falha na argumentação pode ser usada a fim de desqualificar o seu trabalho.

Sabendo que o patrão e seus prepostos conhecem a empresa melhor do que ele, o representante dos

trabalhadores deve sempre se preocupar em ter uma visão aprimorada do que pretende denunciar.

Às vezes, o que se busca corrigir pode ser visto na foto tirada pelo celular, numa conversa

gravada, na exigência de que as ordens de serviço sejam sempre encaminhadas por escrito, em

capacitar a base a exigir que o chefe coloque no papel e assine as demandas que, de uma maneira ou

de outra, ferem as normas da empresa e as disposições de segurança. Ou seja, trata-se de criar um

ambiente que leve o trabalhador coletivo a, de um lado, assumir a necessidade de se defender diante

dos abusos e de tudo o que, apesar de contrariar as disposições de cima, é tolerado pelos patrões em

nome do lucro, e, de outro, a produzir com o envolvimento dos colegas, provas contundentes de que

algo errado está realmente acontecendo.

Entre os fatores que podem ajudar a desqualificar a atuação de um cipeiro, não podemos

esquecer os riscos oferecidos pela estabilidade no emprego. Não têm sido poucos os casos em que o

representante eleito se aproveita das vantagens oferecidas pelo mandato para fazer corpo mole,

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descarregar nos colegas as tarefas que não quer fazer, chegar atrasado, aproveitar toda oportunidade

para largar o trabalho e deixar sua equipe em maus lençóis, sem que nada disso seja em função de

um conhecimento profundo do ambiente de trabalho e de uma atuação séria neste meio.

O fato é que há coisas que se falam com a língua e outras, mais comprometedoras, que se

dizem através das próprias ações, do comportamento adotado em relação aos colegas, à profissão e

à empresa. Se um bom profissional (atenção, eu disse profissional, algo bem diferente de um puxa-

saco que, via de regra, não é um bom profissional) pode não ser cipeiro, é impossível que um bom

cipeiro não seja também um bom profissional. Ainda que suas palavras incentivem à luta, à

mobilização, a sair da submissão, a se rebelar diante dos desmandos da empresa e todos os demais

etceteras do caso, as atitudes mais simples e cotidianas do seu comportamento podem comprometer

a confiança que os colegas depositam nele.

- “Pelo visto, estamos caminhando para o fim...”, sussurra o homem ao expressar o alívio

típico de quem, próximo da meta, já saboreia o prazer de se livrar da carga que pesa nas suas costas.

- “Última, mas não menos importante – sublinha a coruja ao erguer a asa esquerda – é a

Dica número dez: denuncie abertamente as ações da empresa que tentam boicotar o

trabalho da CIPA e articule formas de resistência à altura da situação. Estou me referindo, por

exemplo, a reuniões da CIPA desmarcadas em cima da hora ou a representantes patronais que não

aparecem para que o cancelamento se dê por falta de quorum, a ameaças ou boatos destinados a

criar um clima de terror e insegurança. Estas formas de agir, em geral, procuram esfriar a

mobilização jogando com o atraso das decisões ou com o medo de que as mudanças solicitadas

possam levar a um corte de empregos e benefícios. O conselho é que as ações dos cipeiros

comprometidos com a luta dos trabalhadores se destinem a desmascarar as verdadeiras intenções e

interesses da empresa colocando sob suspeita a suposta transparência e naturalidade das motivações

que estão na base desse tipo de reação.

Do mesmo modo, é importante não se calar diante dos conselhos da chefia para maneirar ou

tirar da pauta um determinado item, da oferta de promoções ou vantagens econômicas alheias às

regras do plano de carreira, das pressões da empresa para tirar o cipeiro do setor onde trabalha, da

colocação de um cão-de-guarda pago para vigiá-lo de perto, das provocações, advertências e

suspensões destinadas a criar precedentes que justifiquem uma possível „justa causa‟.

- “Se o representante eleito pelos trabalhadores der conta de seguir as dicas apresentadas –

diz Nádia com um gesto que parece reunir num único feixe a pluralidade de conselhos oferecidos –

já é meio caminho andado. A segunda metade vem com o tempo, com a experiência adquirida, com

a sabedoria de saber quando e como é preciso falar, relevar, sacudir, ouvir, orientar os colegas para,

aos poucos, dar cor e forma ao descontentamento coletivo e fazer da luta pela saúde dos

trabalhadores um dos caminhos pelos quais aprendem a dizer NÃO à exploração”.

Enquanto o secretário ainda anota as palavras do relato, a coruja deixa cair na mesa uma tira

de papel cuidadosamente enrolada como um diploma destinado a atestar uma realidade da qual os

trabalhadores e trabalhadoras do nosso tempo não devem se afastar.

Um rápido bater de asas, uma saudação singela ao ajudante e Nádia ganha os céus escuros

da noite com seu vôo silencioso.

Curiosas, as mãos humanas se apressam a abrir a mensagem que contém o último legado.

Atentos, os olhos percorrem a estranha letra como quem ainda procura uma saída mágica para o

avolumar-se dos problemas que, dia-após-dia, marcam presença nos ambientes de trabalho.

Trêmulos, os lábios reafirmam em voz baixa uma velha realidade: “Patrão é como galo

velho: só cozinha se botar pressão!”