cisma 3: quem de dentro de si não sai

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cisma

número 3:quem de dentro de si não sai

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cismaISSN 2238-7013

idealizadores da cismaSofia NestrovskiTiago Bentivoglio

2013, ano II, número 3 reedição 2016

editoresCarolina GiacomoGreta CoutinhoGuilherme TauilJuliano SalustianoMariana HolmsSofia NestrovskiThiago Teixeira Lopes

revisãoCarolina GiacomoGreta CoutinhoGuilherme TauilJuliano SalustianoMariana HolmsRodrigo TadeuSofia NestrovskiThiago Teixeira Lopes

projeto gráfico e diagramaçãoLucas Blat

ilustração da capaSelene Alge, 2010

fotografiasVitor Serrano

Esta versão foi adaptada para leitura online. Os seguintes textos, publicados na versão impressa, tiveram que ser removidos, por questões de direitos autorais: Tradução de "Signos e símbolos", de Vladimir Nabokov, por Juliana Cunha

Tradução de "Uma mesa é uma mesa", de Peter Bichsel, por Pedro de Abreu Meyer Pires

Tradução de "Errata", de Charles Simic, por Sofia Nestrovski

Governo do Estado, Secretaria da Cultura, apresentam a revista cisma

[email protected]/revistacismawww.revistacisma.comwww.revistas.fflch.usp.br/cisma

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editorial

Chegar à terceira edição é motivo para comemorar. Não é só pelo simbolismo do número três, místico, santo, meio inaba-lável. O que acaba, de fato, afetando a nós, da cisma, é muito mais o estarrecimento de “como é que isso deu certo?”, aliado à pergunta que continua a nos instigar: “para onde podemos ir agora?”. Percebemos que, nesses três números, fizemos um ca-minho, talvez inconsciente, curiosamente marcado pela negati-vidade: da impossibilidade do “Tudo já foi dito”, nosso primeiro tema, à proposta de enfrentar a literatura (e a crítica) tal como a concebemos em “Literatura contra literatura”, chegamos aos versos de Vinicius e Baden Powell, desafiadores, luminosos e certeiros: “Quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”. Isso tudo partindo do nome um pouco dramático que escolhemos para a revista. Cismar, separar, se contrapor, negar, partir do impossível para, enfim, sair de si em direção ao outro: parece haver um sentido em tudo isso. Vamos por partes.

Sair de si vale, para nós, em muitos aspectos. Não só pela ex-periência de alteridade que a literatura proporciona. É também a saída necessária das bolhas acadêmicas, é o desafio ao cânone, da determinação dos modos e dos objetos de leitura. A homena-gem a Vinicius vai um pouco por esse lado – adorado e detesta-do, ele é uma espécie de síntese disso tudo, no mínimo, por ser muito lido e cantarolado, porém tão pouco estudado e debatido.

Com o tema, surge, felizmente, a música. A leitura dos textos desta edição vai do samba de Noel Rosa ao violoncelo de um con-to de Machado de Assis: a canção se mostra sempre como manei-ra de sair de si, de alcançar o outro. Aliás, vemos, em outro artigo, a música popular de Vinicius como prova disso, ainda que sob o protesto de alguns de seus amigos, como o cronista Rubem Braga, seu colega também de centenário. O mar, que nos transporta, fas-cina e apavora, ligou a Bahia de Dorival Caymmi ao Cabo Verde de Manuel Lopes, um dos fundadores da moderna literatura ca-bo-verdiana. Para completar a seção de artigos, as artes plásticas

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ganham presença em outro conto de Machado de Assis. Na se-ção Novíssimos, uma resenha de Sentimental, de Eucanaã Ferraz, chama atenção ao ritmo sincopado do poeta, tão influenciado por Vinicius e pela canção. Por fim, contamos com três traduções: do suíço Peter Bischel, do russo-americano Vladimir Nabokov e do sérvio-americano Charles Simic – todos que já se arriscaram na tradução entendem como a tarefa pode ser uma forma difícil, mas gratificante, de sair de si e ouvir o outro.

E, no entanto, se falamos em ouvir o outro, é impossível ignorar os acontecimentos, do Brasil à Turquia, dos meses de junho e julho desse ano − os mesmos meses em que editamos este número da cisma (ainda que o tema da edição tivesse sido escolhido no início do ano). Esses movimentos profundamente necessários de oposição à ordem cristalizada e caduca, deram de cara, em muitos momentos, com autoridades que se recu-savam categoricamente a escutar. Ou ainda, em muitos outros momentos, o que se viu por aqui foi a falsa escuta sobretudo por parte da grande mídia, que se aliava ao que lhes convinha, neu-tralizando (ou estigmatizando) o que não queriam ou não pode-riam compreender e transmitir.

Nessas épocas em que a turbulência torna-se aparente e inegável, faz-se essencial, para uma revista como a nossa, ter em mente que crítica e crise partilham da mesma raiz etimoló-gica. O que queremos é isso: é crise e crítica juntas. No mínimo porque como alunos de graduação, não podemos − nem quere-mos − escapar dessa dupla.

Quanto à pergunta “para onde podemos ir”, respondemos – não sem alegria – que ainda não sabemos. A cada número, no-vos integrantes vêm fazer parte da cisma (aliás, todos os alunos são bem-vindos − quem quiser participar, é só entrar em conta-to: [email protected]), o que nos salva do aborrecimento de quem fica muito tempo ensimesmado. Como só publicamos textos de alunos da graduação (ou de recém-formados, ou ainda, de alunos que estejam cursando o primeiro ano da pós), sabe-mos também que os autores e tradutores estarão sempre se reno-

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vando. E daqui, se pudermos apontar um princípio de caminho por onde começar, indicamos o tema já escolhido da cisma 4: “Enquanto tudo acontece”. No ano da Copa e do centenário da Primeira Guerra Mundial, convidamos tudo o que tem aconte-cido para entrar na crítica, e, quando à crítica, que continue se manifestando: desde a “baderna” mais completa (como diriam alguns) até uma pequena cisma.

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Os cães engarrafados: a amizade de Rubem Braga e Vinicius de Moraes, Guilherme Tauil

Notas sobre malandragem, utopia, e canção popular Marcos Vinícius Ferrari

A leitura machadiana para além da literaturaMariana Chirico Machado Holms

Herói e anti-herói na roda dos ventos: Os flagelados do vento leste, Lílian Honda

Na beira do mar: uma leitura de Canções praieiras, de Dorival CaymmiJuliana Ramos Gonçalves

O violoncelo fora do lugar: arte e sociedade em um conto de Machado de AssisGabriel Cordeiro dos Santos Lima

Resenha de Sentimental, de Eucanaã FerrazIsabela de Vilhena Gaglianone

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Os cães engarrafados: a amizade de Rubem Braga e Vinicius de Moraes Guilherme Nogueira Tauil

“Nunca vi boa amizade nascer em leiteria – o uísque é o melhor amigo do homem. Uísque é o cachorro engarrafado.”Vinicius de Moraes

Rubem Braga e Vinicius de Moraes, cujos centenários agora se comemoram, compartilham mais que o ano de nascimen-to. Rubem, um de nossos maiores cronistas, foi também poeta. Vinicius, um de nossos maiores poetas, foi também cronista. Ambos exerceram postos diplomáticos, e, durante muitos anos, cultivaram uma amizade que respingou na literatura em forma de mútuas homenagens.

Entre as duas obras, existem muitos pontos convergentes. Talvez o mais notável seja o apreço às coisas efêmeras e peque-nas, pelo que já foi e pelo inalcançável, pelo interior e pela sim-plicidade. Além da literatura, a afinidade entre os dois se evi-dencia também através das personalidades, que podem sugerir algum esclarecimento de questões referentes às obras: foram homens de uma generosidade atípica, que encaravam a vida de uma perspectiva humilde, numa atitude de certa leniência dian-te de alguns dos mistérios do mundo – mas de constante ques-tionamento e inquietação a respeito da condição humana, seja pelo indivíduo ou pela coletividade.

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Bom exemplo dessa cordialidade é o fato de que tanto Vinicius quanto Rubem foram renomados anfitriões. A casa de Vinicius de Moraes permanecia sempre aberta, sobretudo nas décadas de 50 e 60. Eram frequentes as reuniões de amigos, artistas e in-telectuais, que se juntavam em saraus regados a uísque e violão. Os versos de “Água de beber”, parceria do poeta com Antonio Carlos Jobim em 1961, parecem dar conta desse espírito gene-roso: “a minha casa vive aberta/ abri todas as portas do cora-ção”. E mais do que abrir a própria casa, Vinicius parece ter sido o responsável por desencadear um destrancamento geral de por-tas entre muitos artistas da cidade, que passaram a promover em suas casas reuniões musicais muito propícias àquele Rio de Janeiro que respirava uma bossa nova.

Rubem Braga, por sua vez, jamais trancava a porta de sua famosa cobertura em Ipanema, de onde se tem uma vista privi-legiada do mar. Qualquer amigo que quisesse desfrutar de seu jardim suspenso sem aviso prévio, bastava pegar a escada do décimo segundo andar, empurrar a porta e servir-se de uísque. Inclusive quando o próprio cronista não estava em casa – ou, en-tão, quando ele nem se levantava de sua rede diante da presença dos amigos. Mas, diferente da morada de Vinicius, os encontros na cobertura de Braga não eram tão festivos. Reservado e tido como mal humorado, Rubem preferia a calma das conversas, e, não raro, dos monólogos: contam que muitas vezes ele só ouvia o que os outros tinham a dizer.

E muitos dos convidados para as festas de Vinicius eram, também, frequentadores da cobertura, pois ambos participa-vam da mesma turma de boêmios e intelectuais que se encontra-va nos bares do Rio – entre eles, o Amarelinho, o Vermelhinho, o Lidador e o Westphalia. Vinicius chegou a incluí-los em uma descontraída balada que serve como ilustração do clima:

Meu amigo Pedro Nava1

Em que navio embarcou:A bordo do Westphalia

1 Pedro Nava (1903 – 1984), médico e escritor brasileiro, conhecido por seus livros de memórias. Suicidou-se aos oitenta anos com um tiro na cabeça, numa praça do bairro da Glória, no Rio de Janeiro.

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Ou a bordo do Lidador?Em que antárticas espumasNavega o navegador?Em que brahmas, em que brumasPedro Nava se afogou?[...](“Balada de Pedro Nava”)

Eles faziam parte da “turma do uísque”, talvez a mais sedenta das categorias alcóolicas dos amigos. Ferreira Gullar, por exem-plo, era do pessoal do chope, e por isso não esbarrava muito com Braga, mas com Vinicius sim, que transitava por todas as cate-gorias, sem preconceito etílico.

Eles foram, de fato, bons bebedores. De Vinicius, em seus shows, tem-se a clara imagem do poeta escoltado por uma gar-rafa de uísque, que secava no decorrer da noite. Braga, por sua vez, protagonizou uma história inusitada: em seu tempo de cro-nista da revista Manchete, pediu aos leitores que enviassem gar-rafas de uísque à redação como presente de Natal. Em um ano, recebeu trinta garrafas. No outro, apenas dez. O pedido ia im-presso na própria revista, ainda que seus colegas de crônica se recusassem a assinar a brincadeira: “1960!/ Não sei se minh’al-ma aguenta!/ Se o Sabino2 fez promessa/ Pongetti não se inte-ressa/ E Paulinho tem mau fígado/ Ligue ao barman e diga: do/ Melhor uísque me traga/ Para o Braga!”.

De modo que a epígrafe deste texto, que é uma junção de frases que Vinicius costumava dizer entre amigos, poderia per-feitamente ter sido escrita por Rubem, embora sua vida não te-nha sido sempre tocada nesse ritmo.

Em 1944, alguns anos antes, Rubem Braga acompanhou a Força Expedicionária Brasileira à Itália, para cobrir, como re-pórter, a Segunda Guerra Mundial. Só dois anos depois, ao re-tornar para o Brasil, pôde ler o longo poema que Vinicius, sau-doso, escrevera em sua homenagem:

2 Fernando Sabino (1923 – 2004), Henrique Pongetti (1898 – 1979) e Paulo Mendes Campos (1922 – 1991), colegas de revista que também assinavam uma coluna de crônicas.

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A meu amigo Rubem Braga Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem[...](“Mensagem a Rubem Braga”)

Há, nessa carta-poema, todos os elementos de simplicidade co-tidiana que Braga costumava retratar em suas crônicas. Vinicius brindou o amigo, “Correspondente de guerra, 250 FEB, atual-mente em algum lugar da Itália”, com uma coletânea de assun-tos caros ao cronista, distante do mar de Ipanema e privado de ver as moças de maiô. Em “Mensagem a Rubem Braga”, a valo-rização das coisas desimportantes e banais aparece como uma forma de resistir à brutalidade da guerra. Assim, quase nada há de relevante nas notícias, o que revela o espírito dessa amiza-de que zelava pelos detalhes da vida simples: fulana está linda, compadre está doente, Drummond tem escrito ótimos poemas, um amigo continua apaixonado, é tempo de caju e abacaxi. Até mesmo o cardápio do almoço é compartilhado.

Além disso, a partir desse poema, é possível fazer o recor-

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te de dois grandes tópicos da obra de Rubem Braga – o fascínio pela mulher e o engajamento social:

[...]Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca Seu riso me deu vontade de beber: a tarde Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece Que havendo coma não devia haver fome: mas havia).[...](Ibid.)

A temática feminina é recorrente na prosa de Braga. Frequentemente prostrado enquanto vítima ou aprendiz dos “mistérios insondáveis” da mulher, o velho Braga está sempre suspirando ou sofrendo com seus relacionamentos, desejos e frustrações. De fato, Rubem foi um homem entregue às paixões, mas de uma maneira muito diferente de Vinicius, que se casou nove vezes em uma insaciável busca pelo amor – o cupido de seu segundo casamento, aliás, foi o próprio Rubem, que, menos ati-rado, casou-se apenas uma vez. A melancolia de amores impos-síveis parece ter o acompanhado ao longo de toda sua vida.

Outro ponto latente nas crônicas de Braga é a consciên-cia social. Logo após Vinicius ter sua tarde iluminada com o riso de uma moça, ele conta ao amigo de um menino esfomea-do. Ora mais tímido, ora mais combativo, Braga nunca se es-queceu da pobreza, que assume um papel de destaque em seus textos – aliás, o tom de engajamento político dita grande par-te de sua obra, ainda inédita no mercado editorial. A denúncia da miséria e a exposição da luta de classes, com a crítica ao sis-tema que explora os desvalidos e enriquece os patrões, contri-

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bui para uma discussão pública acerca dos socialmente excluí-dos, uma vez que as crônicas de Braga circulavam por jornais e revistas populares. Sua oposição ao governo, sobretudo nos anos de Getúlio Vargas, culminou na fundação do semanário Comício, antigetulista em essência, para o qual colaboraram Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Clarice Lispector (sob o pseudônimo de Teresa Quadros), Antonio Maria e Millôr Fernandes, entre outros. Vale lembrar também que, em 1947, Braga foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, ao lado de intelectuais como, por exemplo, Antonio Candido.

A resposta literária de Braga ao poeta, no entanto, só vi-ria mais tarde, quando Vinicius já morava em Los Angeles em seu primeiro posto diplomático. Rubem, poeta bissexto, escre-veu-lhe “Bilhete para Los Angeles”. Mas diferente da saudação honrosa que recebeu do amigo, Braga deixou transparecer o ca-rinho viril ao qual às vezes era dada a amizade:

Tu, que te chamas Vinicius De Moraes, inda que mais Próprio fora que Imorais Quem te conhece chamara –Avis rara!

Tens uns olhos de menino Doce, bonito e ladino E és um calhordaço fino: Só queres amor e ócio, Capadócio!

Quando a viola ponteias As damas cantando enleias E as prendes em tuas teias – Tanto mal que já fizeste, Cafajeste!

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Apesar do que, faz falta Tua presença, que a malta Do Rio pede em voz alta: Deus te dê vida e saúde Em Hollywood!

Trata-se, notadamente, de uma brincadeira. O poema de escár-nio tem dimensão humorística pela temática e pelo vocabulá-rio, e acaba revelando, também, a pouca afinidade de Braga en-quanto poeta. Seu único livro de poemas, Livro de versos, muito pouco contribuiu para sua obra. Nele, nota-se falta de origina-lidade e uma forte influência de Manuel Bandeira e do próprio Vinicius. O que há em Braga de poético, e há muito, melhor se desenvolve na prosa. Seu lirismo se tensiona com o texto corri-do, suspendendo o ritmo que difere o verso da prosa, resultando numa crônica de cunho muito híbrido entre os gêneros. Não à toa, Braga prefere frases curtas, quase como se fossem versos, carregando-as com a intensidade de cada palavra. O desprezo pelos adjetivos fortalece essa construção lírica. Muitas das crô-nicas de Braga parecem ser poemas que transbordaram.

O tom de cordial agressividade que se revela era recorren-te entre os amigos. Certa vez, Vinicius pediu a Rubem que es-crevesse o texto da contracapa de um de seus discos. Braga não escondia de ninguém o desprezo pelas letras do poeta e fazia coro, junto a João Cabral de Melo Neto, para que ele abandonas-se o ofício de compositor popular e voltasse ao posto de habili-doso sonetista. Mas acabou cedendo e escreveu o texto. Assim que o recebeu, no entanto, Vinicius rasgou o papel. Com as con-tas acertadas, os dois saíram para beber.

Quando Vinicius compôs a letra da clássica “Garota de Ipanema”, Braga fez uma paródia que costumava apresentar pelos bares: “Olha que coisa mais triste/ Coisa mais sem graça/ É esse velhote/ Que vem e que passa/ Num pesado balanço/ A caminho do bar”.

Muito adiante, já com sessenta anos completos, Vinicius

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voltou a homenagear o amigo, dessa vez com um soneto – do jeito que Braga gostava. “Soneto do sessentenário de Rubem Braga” é uma reflexão sobre a vida em decassílabos, de ritmo muito marcado pela aliteração do fonema /s/:

Sessenta anos não são sessenta dias Nem sessenta minutos, nem segundos... Não são frações de tempo, são fecundos Zodíacos, em penas e alegrias.

São sessenta cometas oriundos Da infinita galáxia, nas sombrias Paragens onde Deus resgata mundos Desse caos sideral de estrelas-guias.

São sessenta caminhos resumidos Num só; sessenta saltos que se tenta Na direção de sóis desconhecidos

Em que a busca a si mesma se contenta Sem saber que só encontra tempos idos... Não são seis, nem seiscentos: são sessenta!

A ideia de vida que recorrentemente aparece na obra de Vinicius se faz notar logo na primeira estrofe: o decorrer da vida não é apenas uma marca no calendário, limitando-se a “frações de tempo” – ele traz consigo todas as marcas de sua trajetória, em “fecundos zodíacos” de tristezas e alegrias. As imagens empre-gadas em torno dessa concepção são todas astronômicas: zo-díaco, cometas, galáxia, mundos, caos sideral, estrelas-guias, sóis. São noções que estão além do nosso próprio entendimento, que nos escapam pela distância e pela dimensão. E que, diferen-te dos sessentões, resistem à passagem do tempo. Aliás, nem o próprio tempo se aplica no espaço sideral com as mesmas leis que nos regem. Portanto, quando o poeta usa dessas imagens

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para tratar da vida, a pequenez da condição humana diante des-ses astros parece ser neutralizada, e o homem se engrandece.

Como se vê, a citação mútua era comum entre os amigos. Vinicius costumava fazê-la com mais frequência. Existem pelo menos mais duas de suas crônicas em que Braga recebe desta-que. Em uma delas, “Dia de sábado”, o poeta retoma o tema da velhice e da fugacidade do tempo:

[...] Porque hoje é Sábado, desejarei estar de novo num bote-quim do Leblon, com meu amigo Rubem Braga, ambos negros de sol e com os cabelos, ai, sem brancores; desejarei ser de novo moreno de sol e de amores, eu e meu amigo Rubem Braga, pelas calçadas luminosas da praia atlântica, a pele salgada de mar e de saliva de mulher, ai...

Em outra, anterior, Vinicius conta a experiência engraçada que sua irmã teve com Rubem, quando este foi tapeado por um ma-landro, que lhe vendeu um canário supostamente treinado para sempre retornar à gaiola. Logo na primeira oportunidade, o bi-chinho voou para a mata. Braga, homem da roça, sabia reconhe-cer todos os passarinhos que habitavam sua cobertura. Vinicius diz que chegou a se interessar por ornitologia por sua influência, mas não levou os estudos para frente. Assim como, certa vez, eles decidiram aprender carpintaria, o que, diz Vinicius, “resul-tou em arrancarmos, ato contínuo, a porta da garagem da mi-nha antiga casa, sairmos meia hora depois para matar o calor com uma cerveja gelada, e nunca mais voltarmos à dita porta, que se quedou jazente por dias a fio, vítima de nossa impostura” (“O conde e o passarinho”).

Mas a grande homenagem de Rubem Braga ao amigo, Vinicius não pôde ler. A crônica “Recado de primavera”, de 1980, é uma reverência póstuma ao poeta, que morrera alguns meses antes, na banheira de sua própria casa:

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Meu caro Vinicius de Moraes,Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garo-tas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda vol-tou nesta Primavera – acho que você aprovaria. O mar anda vi-rado; houve uma Lestada muito forte, depois veio um Sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de es-puma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências pri-maveris [...].

À primeira vista, Rubem parece impassível diante da ausência de Vinicius, mas é sua postura de homem retraído numa rigi-dez viril que não lhe permite manifestar saudades nem lamen-tações. Sua maneira de fazê-lo, então, é recorrer novamente aos temas que partilhavam: a natureza, as mulheres e, sobretudo, a observação do cenário urbano. Há qualquer coisa de melancó-lico na afirmação de que viu, sozinho, as garotas por Ipanema, onde Rubem e Vinicius costumavam pedalar juntos. Depois, sentados em algum boteco para retomar o fôlego da volta, eles observavam o movimento da cidade, com especial atenção às ciclistas. Numa dessas, nasceu a “Balada das meninas de bici-cleta”, de Vinicius: “Bicicletai, meninada [...]/ Solta a flâmu-la agitada/ Das cabeleiras em flor/ Uma correndo à gandaia/ Outra com jeito de séria/ Mostrando as pernas sem saia/ Feitas da mesma matéria”.

Escrever ao amigo, então, é um modo de reaproximá-lo, como se vivo estivesse. Em seguida, Braga toma refúgio na des-crição dos passarinhos. Aos olhos de um ornitólogo amador, os tico-ticos construindo ninho são um claro sinal da chegada da primavera, que, ao destronar o inverno, carrega em si o símbo-lo da transformação, ainda que esta, em particular, não seja tão alegre assim. No último parágrafo, ele se despede:

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O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ti-cos e as moças em flor. Adeus.

É curioso notar que, no desfecho, Braga até se reconcilia com a faceta de compositor do amigo. E, ao colocar-se como herdeiro de seu posto, o cronista refirma os valores humildes que os apro-ximavam. É como se, sem Vinicius, ele fosse o responsável por zelar pelas coisas singelas da vida, perpetuando o eco da delica-deza em suas crônicas.

Rubem Braga desempenhou sua função de guardião das ondas, dos tico-ticos e das moças em flor por mais dez anos, até dezembro de 1990, quando, vítima de uma parada respira-tória consequente de um tumor na laringe que optou por não tratar, morreu num quarto de hospital, sozinho, como pedira aos amigos.

Cem anos depois, tendo sobrevivido à infalível peneira do tempo, a literatura de Rubem Braga e de Vinicius de Moraes es-tão presentes, porque necessárias. Mas me pergunto se, mais que isso, não seria preciso reviver certo otimismo cordial que nutriam, muitas vezes ingenuamente, para contrabalancear tantos valores opostos que imperam na sociedade – atualmente, muito mais do conde que do passarinho.

BR AGA, Rubem. “Recado de primavera”. In: Recado de primavera. Rio de Janeiro: Record, 1991.

______ . “Bilhete para Los Angeles”. In: Livro de versos. Recife: Edições Pirata, 1980.

MOR AES, Vinicius de. “Mensagem a Rubem Braga”. In: O operário em construção. São Paulo: Nova Fronteira, 1979.

______ . “Balada de Pedro Nava (O anjo e o túmulo)”. In: op. cit.

______ .“Balada das meninas de bicicleta”. In: op. cit.

______ . “Soneto do sessentenário de Rubem Braga”. In: Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

______ . “O conde e o passarinho”. In: Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

______ . “Dia de sábado”. In: Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.

CASTELLO, José. Na cobertura de Rubem Braga. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.

CARVALHO, Marco Antonio de. Rubem Braga: um cigano fazendeiro do ar. São Paulo: Globo, 2007.

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Notas sobre malandragem, utopia e canção popular Marcos Vinícius Ferrari

João Ninguém: uma filosofia malandra

A história da música popular brasileira é indissociável da figura do malandro. Nascida e maturada no universo urbano, a canção popular, salvo quando obrigada por forças políticas alheias a ela, sempre preferiu o malandro, a faixa inconstante e sedutora de vadios e trapaceiros à realidade dura do trabalho, ao proletário. “A música popular brasileira”, afirmam Gilberto Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr. (“A malandragem e a formação da música popular brasileira”, p. 505), “nasce neste berço folgado, à mar-gem do trabalho pesado”. Figuras ambivalentes, os malandros transitam entre o estrato da pobreza de que são originários e as classes endinheiradas, podendo ser violentos e lúbricos, deso-nestos e simpáticos. Superados o peso aviltante do trabalho es-cravo e a fixidez do latifúndio, a vida citadina permite a esses malandros um respiro de liberdade, garantido por essa anomia generalizada, essa existência leve e despreocupada aferrada aos meneios do favor, que mais do que mero resultado de condições socioeconômicas desfavoráveis,1 converte-se um princípio e um valor constantemente euforizados (“eu tenho orgulho/ em ser tão vadio”, canta Wilson Batista).

Na brilhante galeria dos tipos malandros eternizados pela canção popular, muitos podem ser creditados ao talento invul-gar de Noel Rosa. “Filósofo do samba”, em sua vasta obra (re-

1 “A aversão do malandro ao trabalho não era socialmente abstrata: cicatrizado historicamente pela experiência cruenta da escravidão, o novo trabalhador ingressa no mundo da superexploração do trabalho, que a forma de acumulação capitalista determinou entre nós.” (Suzuki Jr., Vasconcelos, op. cit., p. 511)

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lativamente ao seu curto tempo de vida) se encontrarão tanto a finura da visada do cronista, a agudeza do satírico implacável ou a delicadeza do cantor de amores frustrados e de grandes te-mas da existência. Os personagens que povoam seu imaginário podem resumir-se àquela arraia-miúda que vai daqui para lá em sua amada vila com nome de princesa e que, embora possa es-ticar até a Penha, Estácio ou Catumbi, sabe que “palmeira do mangue/ não vive na areia de Copacabana”. Em Noel, a figura do malandro ganha contornos definitivos e atemporais quanto mais se enfraquecem os laços que unem o homem ao universo do trabalho, no qual, aliás, o sambista raramente esbarra – bas-tará lembrar que, em “Três apitos”, enquanto a mulher amada ouve os apitos da fábrica de tecidos, o poeta compõe seus ver-sos ao piano. Noutro samba, igualmente magistral, o botequim é o escritório do malandro. Para melhor compreender as modu-lações da figura “malandra” no universo de Noel Rosa, tome-mos seu samba “João Ninguém”, de 1935. De acordo com João Antônio, esta canção situa-se num segundo momento da obra noelina, caracterizada pela exposição dos “tipos das ruas […] as gentes marginalizadas, os esquecidos e inconvenientes: pedin-tes, bêbados, expedienteiros, malandros, caloteiros, vigaristas, judeus, prestamistas, corridos da polícia e avaros” (Noel Rosa, p. 58). Confrontam-se nessas peças de rara mordacidade, a meio termo entre a caricatura e a crônica realista de costumes, “a grandeza quase épica” e “as personagens mais miúdas e aparen-temente insignificantes: marias-fumaça, joões-ninguém”.

De saída, somos apresentados a esse personagem de nome curioso: João Ninguém. Sua nulidade, sugerida pelo prono-me indefinido, aponta antes para a nenhuma representativida-de da figura malandra no círculo produtivo do trabalho: é um ninguém para as forças produtivas, em relação às quais assume uma função marginal. Sua sobrevivência garante-se graças ao favor: faz sua morada “num vão de escada” (a saborosa ironia de Noel não deixa escapar o barulho que vem do andar superior), “não trabalha e é custado”. Sua dependência em relação aos es-

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quemas do favor molda-lhe profundamente o caráter: por ver-se obrigado a infiltrar-se onde pode e a obter tudo de mão alheia, é forçoso elidir a própria individualidade e abdicar de ter opinião, expôr-se ao perigo ou colecionar inimigos. Seus valores, como sugere o enjambement dos versos, resumem-se tão somente a “casa e comida”:

João Ninguém Não tem ideal na vidaAlém de casa e comida,Tem seus amores também...

Até aqui, temos a descrição do tipo malandro e de seus expe-dientes de cômoda adaptação às circunstâncias. Nos versos fi-nais, entretanto, assoma um juízo sobre a conduta do persona-gem, em que a simplicidade, a leveza e a ausência de culpa com que leva a vida são confrontadas a uma existência vazia e fútil:

E muita genteQue ostenta luxo e vaidadeNão goza a felicidadeQue goza João Ninguém!

Ora, a canção estabelece uma dicotomia entre o modo de ser de João Ninguém e daqueles que ostentam “luxo e vaidade” – não se trata, evidentemente, de uma referência às classes médias ou proletárias, mas a uma certa elite presa a valores hipócritas que, embora prometam a felicidade, não podem proporcionar aquela que experimenta o malandro. Entre o “barão da ralé” e a projeção da “aristocracia” (para usar o termo de seu samba “Filosofia”), encontram-se suspensas as classes trabalhadoras – ou, noutras palavras, desaparecem, por um passe de mágica, aqueles que “descascam” por João Ninguém (o termo é do sam-ba “O orvalho vem caindo”).

Antonio Candido, no exame das Memórias de um sargento

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de milícias, argumenta que a supressão da realidade do trabalho (no que se refere ao romance de Almeida, o trabalho escravo) legou a atmosfera natural e sem culpa de uma dança entre o lí-cito e o ilícito (ou: a ordem e a desordem), de que tomam parte os homens livres, a camada mediana da sociedade que vive ao sabor dos “arranjei-me”, dos sopros da sorte, dos sortilégios do destino e de truques e expedientes vários:

Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificiências, da sorte ou do roubo mi-údo. Suprimindo o escravo, Manuel Antônio suprimiu quase to-talmente o trabalho; suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os controles do mando. Ficou o ar de jogo dessa organização bruxuleante fissurada pela anomia, que se traduz na dança dos personagens entre lícito e ilícito, sem que possamos afinal di-zer o que é um e o que é o outro, porque todos acabam circulan-do de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das re-putações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. (Candido, “Dialética da malandragem”, p. 38)

O malandro, no romance e no samba, viveria uma espécie de “vida verdadeira”, pois, assinalando sua aversão ao trabalho, atualizaria um certo gesto brasileiro primordial cujo “desrecal-que” é levado a cabo pelo samba: “O que nos exprime: a apologia do ócio, o princípio do prazer, o bicho preguiça. Nosso gesto mais íntimo seria avesso ao trabalho: o malandro colocar-se-ia ao lado do princípio do prazer em oposição ao trabalho – princípio da realidade” (Suzuki Jr., Vasconcellos, p. 513). O negaceio do uni-verso produtivo, entendido como uma característica de alcance nacional, uma quintessência tropical e brasileira, adquire tal for-ça no samba da década de 30 que o Departamento de Imprensa e Propaganda estado-novista não tardaria a ajustar a produção musical da época a uma nova ética do trabalho: “a malandragem

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sambística, nesse contexto, aparece como um mal a ser erradica-do, como ruído e dissonância destinados a serem resolvidos num acorde coral” (Wisnik, “Algumas questões de música e política no Brasil”, p. 120). A proibição da exaltação da malandragem, le-vada a cabo pela ditadura varguista, impeliu os grandes sambis-tas do tempo ao louvor do trabalho e da ordem. Wilson Batista, em fins dos anos 1930, por exemplo, tornou célebre o samba “O bonde de São Januário”, cujos primeiros versos sintomaticamen-te alertavam: “quem trabalha/ é que tem razão”.

Entretanto, cabe ainda a pergunta: seria esta felicidade de João Ninguém efetivamente o brilho máximo de uma “vida ver-dadeira”? De um lado, o malandro, por deslizar entre duas pon-tas – a classe trabalhadora, que o sustenta e a esfera do dinhei-ro e do mando, a primeira ignorada, a segunda projetada como negativo do próprio sujeito –, não é explorado, nem vive preso a falsos valores, por isso tem sua relativa liberdade assegurada nesse jogo oscilante e incerto. Esse não-lugar, esse lugar tenso que o malandro (não) ocupa, todavia, não se reveste apenas de elementos positivos – há nele também um componente melan-cólico. Bastará lembrar “Filosofia”:

Nesta prontidão sem fim Vou fingindo que sou ricoPra ninguém zombar de mim Não me incomoda que você me diga Que a sociedade é minha inimiga Pois cantando neste mundoVivo escravo do meu samba

O malandro, nesse samba, reconhece uma autoconsciência da necessidade do disfarce, do fingimento diante de uma “socie-dade inimiga”: mais do que mera coqueteria, a dissimulação, a mentira e o mascaramento (o malandro que não tem vintém, mas fuma charuto e joga a dinheiro) são estratégias de sobre-vivência e, ainda, uma filosofia que recebe sua súmula na can-

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ção. A filosofia de Noel é desencantada: por isso, ainda que João Ninguém se distancie da falsidade reluzente do luxo e da hipo-crisia “aristocrática”, sua alegria talvez não esteja, de todo, livre de uma contraparte melancólica – a constatação de que a socie-dade é inimiga e, visto que não há meios de combatê-la em pé de igualdade, convém aceitar seus meandros e enredar-se por eles. Talvez seja possível questionar se esse lugar de tensão ocupa-do pela figura do malandro não é também o terreno, ainda não muito confortável, por que transita o compositor popular, escra-vo do samba “muito embora vagabundo”, em tempos de uma indústria fonográfica ainda incipiente. Não inserido na ordem do trabalho braçal, o compositor é ao mesmo tempo “escravo” e “vagabundo”. Não há como rimar o modelo de vida burguês, ditado pela ordem do trabalho, com os valores defendidos pelo sambista: não por outra razão, sua voz soará sempre desconcer-tada, irônica, ácida e certeira.

João Valentão: o sonho acordado

Outro é o universo de Dorival Caymmi. Em suas canções praiei-ras, temos a experiência de uma totalidade: “a poesia caymmia-na nasce de um mundo que deixa perceber inteira a sua figura” (Risério, Caymmi: uma utopia de lugar, p. 103). Parece não ha-ver nenhuma distância entre a alma e as formas, isto é, entre o sujeito e os caminhos que o mundo exterior oferece para que ele se realize plenamente. Tomando de empréstimo as palavras com que Lukács definiu as culturas fechadas que produziram a grande épica grega, a obra de Caymmi nos sugere que “a alma encontra-se em meio ao mundo; a fronteira criada por seus con-tornos não difere, em essência, dos contornos das coisas; ela tra-ça linhas precisas e seguras, mas separa somente de modo re-lativo” (Lukács, A teoria do romance, p. 29). Daí essa sensação de integração e totalidade: o trabalho não dilui as individualida-des e, antes que negado (como no samba de Noel Rosa), é incor-porado às canções, seja como conteúdo tematizado, seja como

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forma (“Canoeiro” parece recuperar o próprio ritmo da pesca-ria, na enumeração ágil de versos curtos: “cerca o peixe/ bate o remo/ puxa a corda/ colhe a rede/ ó canoeiro/ puxa a rede do mar”). No plano sentimental, as canções praieiras não apre-sentam a perspectiva do amor irrealizado, o qual é substituído, via de regra, pelo jogo lúdico e lúbrico da sedução, pelos atrati-vos da “vizinha do lado”. O verso é claro, límpido, conciso, tem potencialmente as tintas da épica e a delicadeza da lírica, esti-liza e recria a fala cotidiana – entretanto, como alerta Antonio Risério, “a poesia de Caymmi é coloquial, mas nem por isso se confunde com a poética da malandragem […] ‘malandro’ e ‘otá-rio’, os termos antitéticos da malandragem, inexistem no voca-bulário caymmiano” (Op. cit., p. 43).

Vejamos, então, como se constrói a figura de seu “João Valentão” (1953). Nos primeiros versos da canção, somos apre-sentados à figura social, à sua face pública associada à violên-cia. As tônicas dos versos recaem sobre o som nasal (“ão”) e sobre a vogal “i”, como a reforçar, neste espelhamento sonoro e neste eco incômodo, os predicados de João (força, valentia, desmedida):

João Valentão é brigão Pra dar bofetão não presta atençãoE nem pensa na vida A todos João intimida Faz coisas que até Deus duvida Mas tem seu momento na vida

João vive de inserir a desordem na ordem, sem consciência da-quilo que faz (“não presta atenção”), mas, por alguns momen-tos, passa a repousar nessa ordem outra, fechada, perfeita, nes-sa atmosfera lânguida para que convergem o ronco das ondas, o pôr-do-sol, os carinhos da morena e a vontade de contar histó-rias despertada pela noite de Lua – vale lembrar que a noite, em Caymmi, pode ser a noite de temporal que amedronta e afugenta

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os pescadores, instaurando a terrível perspectiva do mar traiçoei-ro (“pescador não vai pra pesca/ que é noite de temporal”), mas também pode, ao contrário, converter-se na noite lírica, contem-plativa, noite enluarada “que se estende vitoriosa sobre o medo, rebrilhando nas dunas e nos coqueirais” (Risério, op. cit., p. 78).

Na canção, há apenas uma referência ao trabalho: “can-saço da vida, da lida”. É significativo que o personagem esteja cansado da vida e da lida, ao mesmo tempo, posto que a rela-ção entre homem e trabalho não se encontra fissurada. A figura caymmiana que mais se aproximaria da tópica consagrada do “malandro” é também a que mais diverge dele: inserido na rea-lidade do trabalho (ordem), pode também transitar pelos me-neios da desordem (a briga, a violência), mas volta sempre a essa ordem maior, integradora, a essa terra que é um sonho acordado (“não há sonho mais lindo do que sua terra”). As estruturas tí-picas de repetição empregadas por Caymmi, que podem ser so-noras ou sintáticas (por exemplo, a anáfora em “é quando... é quando... é quando...”) também servem para reforçar esse vetor cíclico e repetitivo, esse eterno retorno a uma mesma condição. Vale lembrar que o malandro noelino vive às voltas justamente com uma incômoda ausência de lugar.

Cumpre, entretanto, perguntar pelo componente utópico desta canção. Remeto novamente a Antônio Risério:

A Bahia de Caymmi é um sonho acordado […] Essa imagem não se esgarça: mantém-se psicologicamente nítida. A afeição caymmiana impede o seu obscurecimento. Mas o mais rele-vante, do ponto de vista da idealização aqui examinada, é que a imagem da Bahia, na obra de Caymmi, está a salvo das ansieda-des cotidianas. Estas sensações de luz e cor, de gentes e gestos, estão todas apaziguadas pela distância. São cromos líricos isen-tos de conflito. (p. 121)

No rastro da argumentação de Antônio Risério, poder-se-ia di-zer que Caymmi oferece um cenário idílico e ausente de con-

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flitos, pré-industrial, congregador e fechado às ameaças de de-sestabilização. Nele, cabe com folga mesmo a figura, à primeira vista desordenadora, de João Valentão. Não nos esqueçamos de que esta “terra-sonho” projeta-se, entretanto, nas ondas do rá-dio. Projeta-se nas cidades do sudeste brasileiro em que crescia o mercado consumidor da canção popular. Composta nos anos 1950, a canção projeta-se sobretudo contra o galope presto das correntes modernizadoras da economia, o crescimento desor-denado das cidades, o processo de industrialização. Arcaizando a vida das comunidades pesqueiras, Caymmi institui sua par-ticular “utopia de lugar”. Para Risério, esta arcaização utópica não produz dialéticas ou fraturas no interior do texto caymmia-no, embora a exclusão nas canções dos conflitos históricos e so-ciais (e a apresentação do seu reverso, da comunidade pousa-da numa existência perfeita e íntegra) possa significar também uma atitude crítica. Lembremos da “Palestra sobre lírica e so-ciedade”, de Adorno: para o teórico alemão, a entrega do poeta à voz lírica soa mais social quanto mais distante da realidade decaída. O recuo do poeta, aparentemente a-histórico e intem-poral, é antes de tudo uma valoração e uma negação consciente da “supremacia do mundo das coisas”.

ADORNO, Theodor. “Palestra sobre lírica e sociedade” e “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In: ______ . Notas de literatura I.Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: 34/Duas Cidades, 2003.

ANTÔNIO, João (org.), ROSA, Noel. Noel Rosa (Literatura comentada). São Paulo: Nova Cultural, 1988.

CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem”. In: ______ . O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: 34/Duas Cidades, 2009.

RISÉRIO, Antonio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva; Salvador: Copene, 1993.

SUZUKI JR., Matinas, VASCONCELLOS, Gilberto. “A malandragem e a formação da música popular brasileira”. In: História geral da civilização brasileira. Tomo III (O Brasil Republicano). 4º volume (Economia e cultura, 1930-1964). São Paulo: Difel, 1984

WISNIK, José M. “Algumas questões de música e política no Brasil”. In: BOSI, Alfredo (org.). Cultura brasileira – temas e situações. Org.: Alfredo Bosi. São Paulo: Ática, 1992.

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O leitor convidado a ler o artista

“O olho que só reflete é espelho, mas o olhar que Sonda e perscruta é foco de luz.”Alfredo Bosi

“Paremos neste beco”, como nos diz o narrador machadiano. De “cá fora” observaremos a leitura de Machado de Assis sobre um tipo de artista que ele mesmo jamais poderia ser, ao passo que os requisitos e métodos de sua aguda composição são cuida-dosamente expostos nas figuras de João Maria e Mestre Romão. Haveria então um processo de apreensão do mundo que ocorre anteriormente (ou interiormente) para que a expressão – literá-ria, plástica e musical – desse mundo fosse possível.

Há um leitor atento, que antecede o escritor e é demons-trado nos contos: "Habilidoso" (1885) e "Cantiga dos esponsais" (HSD, 1884). Tratam do delicado tema da produção artística que demanda mais que instrução: a capacidade de ler o mundo, o rosto de seu público e a capacidade de plasmar um mundo ex-terior a si.

A vida do protagonista de "Habilidoso" é dura, mas parte de uma recusa à técnica e à reflexão dos métodos artísticos. João Maria não se pode chamar artista plástico, pois não passa de um “copista”. A descrição da pele áspera, da barba emaranhada e

A leitura machadiana para além da literatura Mariana Chirico Machado Holms

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inculta, da imagem rude e sem qualquer iluminação ou refina-mento, mesmo trabalhando em telas, com tintas e pincéis, cul-mina na envergadura de homem executando um trabalho bra-çal, porque, para ele, disso a pintura não passava.

Quando nosso narrador e crítico-guia figura as escolhas temáticas de João Maria para suas primeiras representações, presenciamos uma queda vertiginosa provocada pelos verbos e locais de contato com possíveis gêneros: na Academia de Belas-Artes, ele engenha uma cena de assassinato, o que seria uma cena trágica, notando a exigência de uma força dramática que a pintura, segundo Lessing (Laocoonte),1 necessitará captar num breve momento de ação, além disso, dispor os corpos orientan-do as linhas de perspectiva da tela. Na Rua da Quitanda, o po-bre homem irá se atirar aos legumes, com um gesto brusco, im-pensado; todavia, encontrará na natureza-morta o desafio dos estudos de luz, da exigência de precisão; então tentará as ma-rinhas, já ciente da possibilidade remota de realização plástica, sem crer que logrará.

Machado de Assis, com sua originalidade, revela que “toda arte tem uma técnica” (“Habilidoso”, p. 1051). Aos leito-res ingênuos, ele expõe sua erudição e suas leituras: a tradição que o escritor sorve, referencia e discute. É possível que essa seja uma pontada a algumas concepções românticas que pre-tendiam romper o paradigma coletivo de arte, requerendo uma produção “original”, que fundasse novos topoi, mas a discussão do Romantismo se presentifica no aspecto do vocábulo “gênio”.

“Não dizia gênio, por não conhecer o vocábulo”: Genie,2 na tradição do Romantismo alemão significara multitalento, ex-pressava a “habilidade” natural de um artista em imitar, mas também inovar, recuperando e discutindo a tradição antiga, mesclando gêneros, como Shakespeare ou Goethe fizeram. Sem aprendizado, como haveria João Maria dialogar com tradições ou “fundar” um estilo de imitação? Ainda mais, ele se pautava pelo que falavam dele, agarrava-se ao adjetivo que lhe impuse-ram, “repetia consigo mesmo”.

1 Cf. Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia, pp. 193-194: “A pintura pode utilizar apenas um único momento da ação nas suas composições coexistentes e deve, portanto, escolher o momento mais expressivo a partir do qual torna-se mais compreensível o que já se passou e se seguirá.”

2 Gênio no séc XVIII: “o gênio é entendido não mais associado à ideia platônica, ou seja, ele não é mais a capacidade de lançar-se para a contemplação da Ideia, da essência última das coisas. Mas é sobre a faculdade inata de, esquecendo de si mesmo, imitar a natureza em sua perfeição que repousa tal conceito.” (Lisardo, 2009, p. 51)

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Uma bela e triste imagem, que o escritor pintará para o lei-tor, é a natureza que poderia até vingar, e que foi agressivamen-te domesticada, natureza estragada pela vida: “como ao brio na-tural do cavalo se junta o estímulo das esporas” (“Habilidoso”, p. 1051). “O brio natural do cavalo” seria cavalgar livremente, independendo do estímulo opressor das esporas; a natureza to-lhida fará o cavalo nada experimentar senão a sela, as esporas, o freio que sangra sua boca e que morde seus dentes, e quem o estimule com cliques e barulhos.

- Tem vindo muita gente?- Tem vindo algumas pessoas.- E olham? Dizem alguma coisa?- Olhar, olham; agora se dizem alguma coisa,

não tenho reparado, mas olham.- Olham com atenção?- Com atenção. (Ibid., p. 1052)

O problema de João Maria era cuidar o que diziam sobre ele, preocupava-se com o rótulo de suas cópias, não se importan-do que as vissem de longe, sem entrar no recinto onde estavam expostas, não havia uma dimensão outra em que se pudesse adentrar, não havia espaço artístico. A obra de arte celestial (ad-mirada e copiada por João Maria) jamais convidaria o observa-dor a perscrutá-la, por conta da falta de coesão interna. Afinal o próprio artista-copista não compreendera o nexo daquilo que reproduzia, pressupõe-se que ele não saberia qual dos anjinhos era o menino Jesus, nem tampouco o porquê da lua sob os pés da Virgem Maria.

Essas lacunas que explicariam algo da iconografia das pin-turas extrapolariam também a mera cópia; preenchendo-as, o senso crítico do pintor seria trabalhado e quiçá estimulado a criar ou comparar diferentes representações, diferentes concei-tos abarcados nas figuras que compunha sobre a tela. As pergun-

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tas que lhe faltavam: o quê? e para quê? fazem pensar a matéria e o propósito da produção da arte, que não é simplesmente deco-rativa, mas conceitual. O trabalho da significação estética deve existir para, ao menos, inquietar seu observador e confrontá-lo.

Não há confronto na leitura de rótulos, tão-somente na ex-periência de observação artística, na ousadia da perspectiva es-tética apresentada para o observador. Machado é bastante atual na observação da postura dos visitantes em exposições de arte: Hans Hollein expôs, em lugar de quadros e na sua mesma pro-porção, rótulos como etiquetas com informações (título, coleção, data, material) das respectivas “obras”, enquanto estas estavam em miniatura no lugar de seus rótulos.3 A perda da importân-cia da obra em si não é tematizada no conto, pois a crítica em "Habilidoso" recai sobre a incompreensão do “artista” em rela-ção à própria “obra”, contudo a preocupação excessiva pelo que se pode dizer sobre o quadro, em vez do que o quadro diz, é uma discussão que envolve a compreensão de arte como um todo.

A dificuldade em se alcançar o sentido da obra, em ler a obra, repercute na leitura que se tentará fazer de possíveis clien-tes, “João Maria não pôde ler-lhe nada no rosto”. Um pintor que não lê expressões faciais soaria um tanto risível, se nosso guia não desenhasse a agonia e a ansiedade daquele pintor quase analfabeto-funcional na linguagem que reproduzia. “E o pobre--diabo não lia nada, cousa nenhuma nas caras impassíveis”.

A dificuldade de leitura era de João Maria ou as caras seriam realmente impassíveis? João Maria não lia as pinturas que repro-duzia, não lia as caras, não lia a arte, ademais se apresentava para um público que também nada poderia ler. Da leitura passou-se à palavra: “não diziam palavra”, “não podia entender semelhante silêncio”, ironicamente, encontravam-se na Rua do Ouvidor.

“Olhemos bem para ele”. Machado então acabara de nos proporcionar a leitura de uma fisionomia, levando o seu leitor pela mão, apontando os aspectos da miséria cultural e labo-riosa de uma arte braçal. Encontraremos alguma admiração no olhar pueril das crianças à porta de seu universo de réplicas

3 Cf. “Imagem que sumiu da parede” (Dornbusch, 2011, p. 27): O artigo expõe a utilização dos espaços vazios na arte e analisa diferentes propostas. Uma delas é chamada de “imagem que sumiu da parede”, com que Hans Hollein, arquiteto e designer, ironiza a preocupação dos visitantes do museu, voltados para o comentário e a definição da obra exposta. Destarte, a imagem em si, estilo e cores não importam mais: a obra de arte tornou-se título e autoria, a obra nada mais seria, senão sua classificação e então desaparece sob o olhar dos observadores-leitores de rótulos.

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inexpressivas. “Os meninos olham embasbacados”, um deles diz à mãe “es-tou vendo alguma coisa!” e “ficam todos a olhar boquiabertos”. Continuam sem dizer palavra, mas “para não turvar a inspira-ção o artista”, no entanto, algo eles perguntarão: o quê (quem se-ria o menino Jesus?)? e para quê (há sob os pés de Maria uma lua?)?. Questiono então a inexperiência e o despreparo de uma criança em oposição à sua intuição que não fora ainda caute-rizada, ou estragada pela vida; possivelmente nesse detalhe, Machado não tenha sentenciado tão cabalmente o vulgo.

O olhar como experimentação artística

“A imaginação, mesmo quando parece mimética, é heurística: descobre na personagem de ficção virtualidades e modos de ser que a coisa empírica não entrega ao olhar supostamente realis-ta e, na verdade, apenas rotulador.” Alfredo Bosi

Saiamos agora do ciclo aprisionador do “eterno João Maria”, que, em seu “trabalho de Penélope”, apenas refaz seus traba-lhos, para não morrer, não se desenganar. Em "Cantiga dos es-ponsais", outra leitura de Machado se estabelece: a espontanei-dade e a experiência que se tornam matéria artística. Romão Pires, bom homem e bom músico, rege a orquestra nas missas cantadas com alma e devoção e o amor delineará a experimen-tação desse outro artista na linguagem musical.

A complicação se dá, pois a vocação de Mestre Romão não tinha “língua”, era uma “luta constante e estéril entre o impul-so interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens”. Distinguindo-se de João Maria, o velho músico tinha algo dentro de si, tinha um ímpeto. Todavia, assim como o pri-meiro, Romão reproduzia o discurso alheio, regendo uma exce-lente orquestra que toca músicas que não são dele, apesar de re-gê-las com amor.

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A esterilidade da luta, talvez fosse vencida pelo envolvimento amoroso, pela felicidade conjugal e lírica. Romão fora casado. Por dois anos, com uma mulher “nem muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela”; pode-se notar então, que a mulher não era uma musa onírica do ultra-romantismo, não era possuidora de uma beleza extraordi-nária, e nem o amor que ele lhe dedicava era desmesurado.4

Por conseguinte, detecta-se uma caracterização indife-rente, quase vulgar pelas indeterminações da mulher sem rosto, sem olhar, charme ou dotes artísticos e um equilíbrio na relação amorosa dos dois. Apesar da naturalidade com que tudo é esbo-çado distantemente do ideal romântico, algo parecido com ins-piração inquietou Mestre Romão três dias após seu casamento, algo que os meninos à porta de João Maria não desejaram tur-var. Bastaria inspiração para compor, pintar ou narrar? As expe-riências pessoais bastariam para desencadear uma composição comunicável? O que Mestre Romão comunicaria e para quê?

Ele tinha uma aspiração nobre, era o desejo de registrar a felicidade que sentira. Não conseguindo compor, a frustração e a tristeza pela luta improdutiva eram, naturalmente, incom-preendidas pelo vulgo. João Maria se valia dos aplausos e elo-gios vulgares para copiar e retocar, mas pertencia a esse nicho de incompreensão da arte: ele era vulgar e, por isso, permane-ceu paralisado no tempo e no espaço reduzidos de seu quarto, com seu reduzido público juvenil. A expressão musical da felici-dade que rebentava no peito de Romão e o forçava a lutar, pro-duziria mais que a libertação e a materialização do sentimento, mas faria quem tocasse a canção, contar que um mestre Romão...

Quem não conhecia Mestre Romão, com seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desapa-recia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. (p. 387)

4 Machado de Assis, no conto chamado “Um homem célebre”, apresenta uma personagem que recorre ao casamento como fonte de inspiração para compor música clássica. Pestana casa-se com Maria, uma exímia cantora lírica, tísica, também de feição indiferente à pena do narrador. O músico procura nela a realização de uma experiência ideal romântica, mas à sua mente vêm ecos de composições outras, sua memória lhe prega peças, fazendo-o plagiar seus modelos de compositores sem se dar conta.

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Romão centrava-se em si e na sua experiência amorosa para compor algo que o mantivesse vivo, mas a própria vivência não é suficiente, quando não se é uno. O riso era triste, mas ilumina-va-se: havia outro Romão, como havia o Pestana das polcas dia-bólicas e o Pestana do santuário clássico; é preciso aceitar esse duplo do artista, além de homem e músico: o intérprete e o com-positor. No homem se refletirá os valores que ele coloca para si na sua composição, no músico – no momento da interpretação − ele é livre para encher-se de vida e experimentar uma felicidade alheia, não atrelada às suas crises internas.

Sob essa perspectiva, a satisfação esfuziante do artista ao tocar era algo que ele alcançava na execução das canções alheias, pois o sentimento de apropriação da obra de outro e ter de assumir outra feição é algo próprio do artista. Embora tra-temos de entusiasmo ou felicidade, Fernando Pessoa, em sua Autopsicografia, nos adverte sobre a distância entre a máscara do ator e seu próprio rosto, cujo limite se pode confundir através do sentir: “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”.

Esse fingimento, ou essa interpretação, é fugaz e o apaga-mento instantâneo dessa iluminação, dessa euforia musical que se dissipa rapidamente, salienta a crise da sensação vã do que é executado versus a pretensão de um registro eterno. A almejada produção que sirva para registrar seu amor e sua felicidade, é antes a desejada música composta para ser executada por outros e emprestada, como a ele foram as cantigas regidas na orquestra e praticadas em seu cravo.

No intuito de emprestar ou delegar sua voz aos intérpre-tes, habilidade ou inspiração não bastam. É mister selecionar uma matéria que possa ser apropriada pelo outro, uma máscara que caiba nos rostos de quem a vestir. Romão pretendia traduzir seu sentimento de felicidade, porém olhava somente para baixo, não conseguia identificar-se, não verificou a tempo que compor, narrar ou pintar viriam após levantar os olhos e apropriar-se da matéria e do sentimento alheios, observados de um ângulo pró-

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prio que fosse capaz de estilizá-los: “[o compositor] é mais o pin-tor de sentimentos estranhos do que exibicionista dos próprios” (Dahlhaus, 1991, apud Lisardo, Richard Wagner e a música como ideal romântico, p. 43).

Assim, Mestre Romão aproxima-se da matéria alheia, quando se dedica a compor “ao menos este canto que eles [re-cém-casados] poderão tocar...”, mas é ferido mortalmente pela naturalidade com que o casal expressará a sua própria felicidade suplantando um empréstimo ou uma interpretação. “A diferen-ça é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo” (p. 389).

O fato de se olharem provocou a necessidade de comunica-ção, eles tiveram o quê e para quem expressar. O olhar ensimes-mado, para baixo, não necessita, naturalmente, de tradução, ex-ceto se for dirigido a outro. O olhar do outro motiva uma frase musical, linda e à toa, como que inconscientemente. Discutir e organizar essa mensagem e habilitá-la como arte caberia ao com-positor Mestre Romão, como coube ao nosso Machado de Assis.

ASSIS, Machado de. “Cantiga dos esponsais”, “Habilidoso” e “Um homem célebre”. In: Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

BOSI, Alfredo. “O enigma do olhar”. In: Machado de Assis: O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.

DORNBUSCH, Claudia. “1989 e as consequências: as representações da ausência no cinema pós-muro”. Pandaemonium Germanicum. Revista de Estudos Germanísticos, São Paulo, n. 17. pp. 25-49, primeiro semestre, 2011.

LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia. Trad., introd. e notas M. Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1998.

LISARDO, Roger. “A poética do inefável: a música instrumental no Romantismo literário alemão”. In: Richard Wagner e a música como ideal romântico. Campinas: UNESP, 2009.

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Herói e anti-herói na roda dos ventos: Os flagelados do vento leste Lílian Honda

“[...] Aqui nem chega a haver os que fogemPorque seria para se afogarem no mar.”Jorge Barbosa

Três ventos, Harmatão, Nordeste e Monção, são os jogadores se-culares que percorrem o oceano, determinando a sorte da popu-lação de Cabo Verde, como explica Manuel Lopes no prefácio de seu romance, Os flagelados do vento leste, publicado pela primei-ra vez em 1960. O primeiro, o vento leste conhecido pelos ca-bo-verdianos como “lestada”, sai do deserto do Saara, quente, seco e carregado de poeira, para varrer o arquipélago provocan-do seca e destruição. O alísio do nordeste, por sua vez, empurra para longe a umidade da monção, que alimenta as escassas chu-vas nas ilhas e proporciona a colheita de alimentos, principal-mente o milho. Grandes secas foram registradas na história do país, entre elas a dos anos 40, vivenciada pelo autor, que provo-cou a nefasta e trágica fome retratada no romance.

Viver em função de chuvas irregulares e insuficientes é, portanto, o destino dos cabo-verdianos que, a despeito das con-dições adversas, dedicam-se à agricultura, atividade mais im-portante ainda à época em que se passa a narrativa: a década de 40. É dessa luta obstinada pela sobrevivência daqueles que vivem da terra, à mercê de forças que fogem ao seu controle, que

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o autor extrai um romance neorrealista com tinturas épicas, em que a insularidade se irradia e se reproduz em formas circulares por toda a narrativa.

Desde o início, o romance é marcado pela necessidade que o cabo-verdiano tem de seguir os vestígios das condições climáticas. Os personagens frequentemente estão com os olhos no céu ou perscrutando o ar à procura de sinais da vinda de chuva, com base em crenças tradicionais ou na simples intui-ção, como no trecho: “Os homens espiavam, de cabeça ergui-da, interrogavam-se em silêncio. [...] Nem um fiado de nuvem pairava nos espaços” (Lopes, Os flagelados do vento leste, p. 12). Ou no segmento: “Outubro tem de ser de calmaria . Todo mun-do sabia. Todos esperavam a calmaria de outubro” (p. 63). Ou, ainda: “A primeira quinzena de novembro foi assim: ora escu-sas, ora promessas, negaças e sorrisos [...]. Borrifos no ar que cheiravam a pó” (p. 63).

As crendices juntam-se ao animismo e à fé de origem cató-lica coexistentes no arquipélago, formando a base da estrutura circular do romance. Os ventos, a chuva e a própria natureza são retratados como divindades que determinam a sorte dos perso-nagens – e de todo um povo. Os corvos Becente e Becenta, que aparecem no quarto segmento do capítulo “Chuva”, por exem-plo, são humanizados e ganham inteligência superior a das pessoas do local – “eram sabidos, endiabrados, trocistas, céti-cos e filósofos” (p. 63) – e podem ser associados às divindades tricksters, cujo papel é lançar truques ou jogos para aumentar a consciência ou promover a instabilidade necessária à renovação (esses são os casos de Eros ou mesmo de Hermes, na mitologia grega). Estabelecendo uma relação de Os flagelados do vento les-te com a épica grega, vale lembrar que os ventos eram filhos do deus Éolo, habitante de uma ilha por onde passa o herói Ulisses, segundo a Odisseia. É Ulisses, aliás, quem provoca a liberação dos ventos no mar.

Os protagonistas da trama são José da Cruz e o filho gerado em seu primeiro casamento, Leandro. José da Cruz apresenta as

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virtudes do herói clássico: retidão, honestidade, perseverança, coragem, força, equilíbrio e liderança, por exemplo. É dele o so-nho premonitório que leva os amigos e familiares a “semear em pó”, ou seja, a plantar antes que a terra seja molhada pelas chu-vas. O grupo semeia sob os olhares céticos da comunidade, mas, depois da chuva, vem a confirmação dos méritos do herói:

Sim, José da Cruz sabia o que fazia. E o que fazia era sempre a tempo e horas. Era um homem de bom pensar e de bom con-selho [...]. Não acreditaram. Tirante o compadre João Felícia e nhô Manuelinho, ninguém mais acreditara na sua profecia. O seu papel era agir por palavras e obras. Dizer na boca e mostrar no trabalho. (p. 35)

Leandro, por outro lado, é o oposto do pai. Em épocas de maior fartura, o rapaz ganha a vida como pastor de rebanho nas mon-tanhas, trabalho de que gosta por mantê-lo apartado da comu-nidade. Todavia, nos períodos de seca e fome, torna-se ladrão de flagelados ainda mais pobres do que ele. É dissimulado, men-tiroso, fraco, humilhado, ladino, desonesto e eventualmente violento, vícios inscritos em seu rosto por uma grande cicatriz, como descreve Manuel Lopes:

Evitava descer aos povoados para não atrair os olhares, não des-pertar suspeitas. A cicatriz do seu rosto constituía um alvo com-prometedor. Os olhares fixos, a curiosidade das gentes suspeito-sas atingiam-no, não no aspecto do rosto, mas nas verdades da sua alma, na insegurança da sua consciência; não na aparência mas na realidade mais profunda do seu ser. (pp. 174-175)

Leandro é multifacetado, como um típico anti-herói da literatu-ra moderna: sente culpa e compaixão, bem como um genuíno afeto pelo pai e sua nova família, composta pela segunda mu-lher, Zepa, e os três filhos do casal, a quem ajuda no sustento com o fruto dos seus roubos. Protagonista da segunda metade

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do livro, Leandro vai formar com Libânia um casal excluído e isolado, como Adão e Eva das montanhas, que acena para um recomeço no interior de uma gruta (poder-se-ia dizer “útero”), no alto de paredões de granitos, longe dos povoados e da fome. Não só a gruta está abastecida de mantimentos roubados por ele, como se parece muito mais com um lar do que os “funcos” (habitação precária cônica) do povoado onde vive o pai.

O primeiro círculo se fecha em torno de José da Cruz. Em sua fé inabalável, Inzé, como é chamado, obedece aos desígnios de seu deus católico não porque terá resultados, mas porque é a sua única alternativa:

De qualquer maneira, destino de homem de enxada é cavar e semear. Este é que é destino de homem: cavar e meter grão. A espiga vem do desígnio de Nosso Senhor. Se não vem é porque Ele não quis. Seja feita a sua vontade. (p. 37)

Esse deus que determina o plantio não recompensa o fiel. Outros deuses, os dos ventos e da chuva, porém, respondem pelo casti-go à hýbris do herói, que é a obstinação em não abandonar seu lar para ir à busca do trabalho nas frentes de construção de estra-das abertas pelas autoridades. Por outro lado, a migração dentro da ilha tampouco representa garantia de sobrevivência, porque a comida não é suficiente nem mesmo nas frentes de trabalho.

Como um herói épico, José da Cruz representa todo um povo e seu calvário é também o do cabo-verdiano preso à ilha, va-gando em círculos à procura de alimento. O estoicismo com que o protagonista e, por extensão, a população das ilhas, encaram os sofrimentos corresponde também a um desígnio divino e os inimigos do homem não são mais do que, eles próprios, vontade divina, como mostra o trecho em que a seca se torna realidade:

Era a luta. A luta braba que começava. Contra os elementos ne-gativos. Contra os inimigos do homem. A luta silenciosa, de vida ou de morte. Introduzia-se no primeiro entendimento. Depois,

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entrava no sangue e no peito. O homem tornava-se a força con-trária às forças da Natureza. Por um mandato de Deus, o ho-mem lutava contra os próprios desígnios de Deus. Dava toda a vontade e sua força. Não podia fazer mais nada. O que está aci-ma da força do homem não pertence aos seus domínios. O ho-mem tinha uma medida. Chuva, vento e sol estavam fora dessa medida, e o homem não se podia incriminar pelo que sucedia fora da sua medida. Os desígnios de Deus eram superiores à vontade dos homens, mas o dever do homem era lutar contra esses desígnios. (pp. 95-96)

Gradativamente, e pontuando o texto com maus presságios, pres-sentimentos ruins e agouro, o autor vai narrando o agravamento da situação, passando da esperança para o espectro da fome e deste para a calamidade, situações enfrentadas com resignação pelos agricultores e suas famílias, que vão apenas cedendo às im-posições da seca, afrouxando os vínculos e a dignidade. Não há espaço para a esperança, a não ser no início do romance, quan-do a chuva dá alento às personagens, mas não ao leitor, porque o próprio título da obra traz em si o aceno da tragédia.

Os modestos sonhos a que se entrega José da Cruz são de antemão malogros, pois ao leitor é revelado que Miguel Alves não irá fazer os investimentos na terra que alardeia. O próprio motivo da viagem de Miguel Alves à ilha, de cunho pessoal, re-vela-se uma ilusão.

No entanto, ao contrapor duas formas de enfrentar o fla-gelo da seca, a da regra, representada por Inzé, e a do desregra-mento, representada por Leandro, a narrativa não está propon-do saídas para o calvário do cabo-verdiano. Nenhum dos dois escapa aos círculos de isolamento, em diversos níveis: primei-ramente, o fato de serem todos prisioneiros de uma ilha; em se-gundo lugar, pela constituição de uma comunidade de agricul-tores fechada, em que personagens “de fora”, como Maria Alice (a professora), Miguel Alves (o funcionário público) e até mesmo Leandro não se inserem plenamente; por fim, isolamento em si

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mesmo, pelas dificuldades de comunicação e relacionamento dos personagens. Pai e filho tampouco escapam ao destino de-terminado pelo deus católico e pelos deuses do vento e da chuva, pois tanto num caso, como no outro, suas trajetórias terão desfe-cho tragicamente similar, em decorrência de diferentes formas de “desenraizamento”, quais sejam, o êxodo do primeiro e a ida à cidade do segundo.

Assim, a astúcia ou as habilidades do anti-herói moder-no não possibilitam uma fuga ao flagelo da seca, acabando, ironicamente, no infortúnio em meio à fartura de seu retor-no ao útero. Com Libânia, mais um círculo se fecha: o de que sempre haverá habitantes na ilha para continuar cumprindo os desígnios divinos. Ao final, porém, o ruído das asas das ca-nhotas, aves brancas da família dos abutres, voando em cír-culos ao redor do penhasco onde se situa a gruta de Leandro, lembram-nos de que a desgraça continua rondando.

BAPTISTA, Maria Luísa. Vertentes da insularidade na novelística de Manuel Lopes. Porto: Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2007. Disponível em: <http://www.africanos.eu/ceaup/uploads/EB001.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2013.

BROMBERT, Vitor H. Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura européia. Cotia: Atelier Editorial, 2002. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=TW1SvKaBaA0C&oi=fnd&pg=PA11&dq=her%C3%B3i+tr%C3%A1gico&ots=hWTZ8POwG6&sig=1T7lI4hHcip4sL60yTPX9H0UZz0#v=onepage&q=her%C3%B3i%20tr%C3%A1gico&f=false>. Acesso em: 10 jun. 2013.

LOPES, Manuel. Os flagelados do vento leste. São Paulo: Ática, 1979.

VEIGA, Manuel (coord.). Cabo Verde, insularidade e literatura. Paris: Karthala, 1998.

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“Jankélévitch a écrit : La musique nous enveloppe et c'est ainsi Qu'elle nous pénètre car elle est vaste et infinie comme la mer.”1

Pascal Quignard, Boutès

I

Dentre todos os predicados sobre o mar que se possa elencar, tal-vez um dos que mais mantenha a atenção de um olhar atento e sensível seja o seu movimento, a um só tempo variado e repetido. Para acompanhá-lo com precisão, é necessário desvencilhar-se de tudo aquilo que estiver ao redor e mergulhar a atenção no ir e vir das ondas, nesse ritmo cíclico e natural, às vezes tão alheio às concepções de existência do homem contemporâneo. No vasto campo das artes, talvez a música seja aquela que mais se aproxi-me da dinâmica marítima, ao exigir do ouvinte uma contempla-ção igualmente hipnótica e submersa, que prescinda do mundo além-som durante o tempo da escuta, que reclame a repetição das canções para uma compreensão mais aprofundada – porque assim como cada onda quebra diferentemente sobre a areia, cada escuta pode fazer emergir novos pensamentos e sensações.

Não é exatamente uma surpresa fazer do mar tema para a música. Há muito tempo ele é cantado, em diversas partes do

Na beira do mar: uma leitura de Canções praieiras, de Dorival Caymmi Juliana Ramos Gonçalves

1 “Jankélévitch escreveu: a música nos envolve e é assim que nos atravessa, pois ela é vasta e infinita como o mar.”

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mundo. No entanto, talvez tenham sido poucos os composito-res que de fato atingiram uma consonância entre a matéria mu-sical e aquilo sobre o que ela canta, entre o tempo indefinível do mar e o tempo de uma canção, o qual, ainda que limitado em um fonograma, exija um mergulho contínuo na multiplici-dade de questões levantadas. No Brasil, o conjunto de canções que – acredito – melhor consegue concentrar e espraiar essa at-mosfera é aquele do álbum Canções praieiras (1954), de Dorival Caymmi, obra que me parece não apenas um cantar sobre a na-tureza marítima, mas a própria continuação do seu movimen-to, seja ele um convite à jangada ou uma tempestade temerosa. Não bastasse a sofisticação estética que emerge da simplicidade – o álbum é bastante conciso, todo à base de voz e violão, sem espaço para excessos –, essas canções ganham em significação ao serem absolutamente atreladas à experiência histórica de um lugar específico, num tempo igualmente específico: as comuni-dades pesqueiras do recôncavo baiano no início do século xx.

Embora Caymmi não tenha sido um pescador ou canoeiro, suas canções praieiras revelam bastante intimidade com aquele universo, como se o cancionista, ao cantá-lo, dele também fizes-se parte. Essa característica confirma-se e explicita-se quando nos precipitamos em seu mar sonoro, com especial atenção às letras. O ponto de vista do narrador ou do eu lírico não é o de quem olha para essas comunidades distanciadamente, do alto da cidade grande. Não: os seus pés também estão no cais ou na areia, às vezes até mesmo numa jangada, sobre as ondas verdes do mar. É um ponto de vista de dentro, de alguém que partilha esse universo e canta suas belezas e tragédias. Logo na canção de abertura, ouvimos: “Andei por andar, andei/ E todo cami-nho deu no mar”, e depois: “Quem vem pra beira da praia, meu bem/ Não volta nunca mais”. Estamos, portanto, diante de um sujeito que, apesar de se enveredar por caminhos diversos, aca-ba sempre voltando para a beira do mar, daquele mar do recôn-cavo, como se ele também estivesse sujeito à ação da lua sobre a maré. Também nós, os ouvintes, ficamos sujeitos a essa ação

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após uma primeira escuta. Este é o texto de alguém que tenta se aproximar intimamente dessas canções.

II

Penso em falar de Canções praieiras de maneira mais ou menos linear, isto é, acompanhando a ordem a partir da qual o álbum é construído, pelo fato de que ela não me parece aleatória, e sim um importante elemento constituinte da obra. Assim, retornan-do à primeira canção, de título “Quem vem pra beira do mar”, podemos considerá-la um anúncio do que virá nos próximos vinte e três minutos e meio, ao longo de oito canções. É uma apresentação temática, evidentemente, mas não só: também são introduzidos a posição do cancionista e o modo como ele tra-ta os seus temas. O primeiro ponto, já referido e comentado, fi-cará mais claro ao pensarmos especificamente sobre cada uma das letras do álbum, poesias nas quais Caymmi “estetiza reali-dades que vivenciou de forma integral e imediata”, no dizer de Antonio Risério (Caymmi: uma utopia de lugar, p. 12).

Quanto ao modo do cantar/tocar, percebemos logo de iní-cio que ele não é festivo ou alegre, nem mesmo quando o anda-mento das canções se intensifica. Ouvimos antes um som que parece contemplar, e que muitas vezes será envolto pela melan-colia. Precisamos estar atentos a esse modo das canções, ele sublinha e traz à tona aquilo sobre o que se canta. Sobretudo por-que o universo praieiro não é unilateral: “A onda do mar leva/ A onda do mar traz”. Leva e traz não apenas o cancionista, mas também o jangadeiro, o peixe, a tempestade. A natureza é cí-clica, dá e tira sem cessar. O modo de vida referido e estetizado por Caymmi é arcaico quando comparado aos nossos dias – e até mesmo aos dias contemporâneos às Canções praieiras, se pen-sarmos no contexto da década de 1950. O tempo dessas canções é outro, refere uma relação íntima com a natureza, o que inclui estar submetido a ela, inclusive quando é indomável e cruel. A vida nas comunidades praieiras é portanto cíclica, “não no sen-

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tido da repetição abstrata, metronômica, mas no sentido do re-torno fundamental dos eventos. Mais assemelhada à pulsação mesma do mundo do que ao relógio obsessivo” (Ibid., p. 74).A segunda canção, “O bem do mar”, introduz outra polaridade que permeia todo o universo praieiro: o olhar do pescador sobre aquilo que ele ama e escolhe. A voz de um narrador aproxima o ouvinte e dá o mote: “O pescador tem dois amô/ Um bem na terra, um bem no mar”. Bem, aqui, não é apenas um sinônimo de querido, de amado. A construção nos autoriza a pensar nes-sa palavra também como um advérbio, que caracteriza e encer-ra cada ser estimado no lugar que lhe é conferido, um estando como fincado no solo (“bem na terra”) e o outro, submerso e es-praiado nas águas (“bem no mar”). São bens que não se mistu-ram, e a voz que vem a seguir, não mais a do narrador, mas a de um sujeito participante dessa realidade – como mostra o uso de “a gente” o confirma:

O bem da terra é aquela que ficaNa beira da praia quando a gente saiO bem de terra é aquela que choraMas faz que não chora quando a gente saiO bem do mar é o mar, é o marQue carrega com a gente pra gente pescar

O bem da terra é, portanto, a mulher, que nessa comunidade tem uma posição sedentária, o que não significa isenta de fun-ções. O bem do mar, por outro lado, é ele próprio, que dá o ali-mento e o trabalho. A forma como isso é dito, entretanto, sugere algo ainda além: “O bem do mar é o mar, é o mar”. Esse verso, tão simples em sua construção, é cantado de modo muitíssimo enfático, o acento da canção inteira recai sobre ele. Esse verso é o ápice, o instante preciso em que uma onda atinge sua altura máxima antes de se desmanchar com vastidão. A repetição e o acento não são gratuitos. Eles revelam o absoluto, como quan-do o mar torna-se oceano. Penso aqui no “sentimento oceâni-

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co” referido por Freud – “Um sentimento de vinculação indis-solúvel, de comunhão com todo o mundo exterior” (O mal-estar na civilização, p. 8) –, e que talvez o pescador o experiencie por alguns instantes, ao estar em meio às águas. Digo isso passando sob a óptica do próprio Caymmi, que aponta já no título a esco-lha feita dentre os amores, e que talvez seja aquela que mais dê ao pescador a sensação de plenitude: o bem do mar.

Se nessa última canção a ideia de mar acentuava sobretu-do as benesses do que ele dá (ao menos do ponto de vista mascu-lino) em “O Mar”, a terceira do disco, as tragédias que ele causa são finalmente explicitadas, para além do que poderia fazer su-por os versos introdutórios: “O mar/ quando quebra na praia/ é bonito, é bonito”. Aqui não é mais só a mulher quem “chora mas faz que não chora”. O próprio homem também demostra apreensão (“Pescador quando sai/ Nunca sabe se volta nem sabe se fica”), assim como aqueles do seu entorno (“Quanta gen-te perdeu seus maridos, seus filhos/ Nas ondas do mar”). E tudo isso cantado de modo grave e desassossegado. Mas logo após essa introdução o cancionista incorpora outro ritmo para iniciar o relato de um episódio. Ele conta a história de Pedro, que “vivia da pesca / Saía no barco/ Seis horas da tarde/ Só vinha na hora do sol raiá”, e que tinha como admiradora apaixonada Rosinha de Chica. Uma manhã, porém, Pedro não retornou de sua pesca noturna. O seu corpo apareceu posteriormente, na praia, “roído de peixe”. O relato não especifica a causa dessa morte: não se fala em tempestade ou em mar revoltoso. O que se sublinha são, antes, os efeitos que essa morte causou:

Pobre Rosinha de ChicaQue era bonitaAgora parece Que endoideceuVive na beira da praiaOlhando pras ondasAndando, rondando

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Dizendo baixinhoMorreu, morreu

E o que é a loucura, senão ser ou estar alheio às instâncias or-ganizadoras da vida comum, incluindo-se aqui o tempo e suas subdivisões mecânicas? Rosinha de Chica, ao endoidecer, in-corpora uma atitude cíclica e repetitiva diante do que lhe é doído e inexplicável, a qual se espelha na própria construção poética, que equipara o movimento das águas à reação da moça, por meio dos sons nasais: “Olhando pras ondas/ Andando, rondando/ Dizendo”. Aliás, a atitude de Rosinha é exatamente oposta à pró-pria ideia da morte, que abarca a impossibilidade de repetição e retorno. Note-se que a partir desses versos que destaquei, o anda-mento da canção se desacelera gradualmente e as vogais são can-tadas de modo prolongado, o que enfatiza a melancolia do que se diz – como se o narrador se solidarizasse com a dor da persona-gem, incorporando o tempo subjetivo de Rosinha à sua canção.

Ao final dessa estrofe, o refrão é retomado: “O mar/ quan-do quebra na praia/ é bonito, é bonito”. E é com essas palavras contemplativas que Caymmi finaliza a sua canção, que acabara de relatar a morte de um pescador e o consecutivo enlouqueci-mento de sua admiradora. São esses versos que criam uma ex-pectativa inicial, a qual é desfeita durante a narração, e que ao fi-nal circunscrevem o ouvinte numa zona de estranhamento. Por que é bonito, se mata? Ora, os pescadores descritos por Caymmi estão, como já dito aqui, intimamente relacionados com a natu-reza. O mar inspira-lhes, ao mesmo tempo, fascínio e assombro, como coloca Jorge Amado em Mar morto: “O mar que tudo lhes dá, tudo lhes toma”, inclusive a vida. Daí essa espécie de mote pelo avesso que, embora pareça desdizer o que é narrado, acaba na verdade complementando o sentido da canção.

Um procedimento semelhante é utilizado por Caymmi em “É doce morrer no mar”, única canção do álbum feita em par-ceria – com o escritor Jorge Amado, a partir de frases do seu ro-mance Mar morto (1936). A pequena introdução instrumental já

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anuncia um tom bastante melancólico, que será mantido e es-miuçado ao longo de toda canção. Após alguns poucos segun-dos, emerge a voz grave de Caymmi, que apresenta o refrão: “É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do mar”. E essa formu-lação estranha, que aproxima a ideia de afogamento a certa do-çura (nas águas do mar, que são salgadas!), ganha status de afir-mação: “No contexto, a descendência melódica parece indicar certeza e distensão”, nas palavras de Mirella Longo (“Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes”, p. 70). Embora eu não con-corde com a ideia de distensão (o que se verá mais bem explica-do a seguir), o refrão atua de fato como uma máxima, como a comprovação de uma realidade. Mas essa morte seria doce pra quem, então, já que a voz que a relata é de uma melancolia tão latejante? As estrofes seguintes dão algumas pistas, quando o canto, que até então era impessoal, adquire uma voz de contor-nos mais definíveis: “A noite que ele não veio foi/ Foi de triste-za pra mim/ Saveiro voltou sozinho/ Triste noite foi pra mim”. Estamos, assim, diante de uma voz feminina, que lamenta a per-da trágica de um amor. Ao retratar o universo praieiro, Caymmi realmente o faz à beira do mar. Nessa canção, isso significa in-corporar o lugar da mulher, que acompanha com o olhar a par-tida de um saveiro. É uma relação de alteridade criada pelo can-cionista, que, ao assumir um corpo e uma posição que não são originalmente seus, dá voz a uma realidade que o toca.

Em seguida, após a repetição do refrão, uma nova es-trofe complementa a história: “Saveiro partiu, de noite foi/ Madrugada não voltou/ O marinheiro bonito/ Sereia do mar le-vou”. Aqui, introduz-se um novo elemento, que até então só ti-nha aparecido como sugestão, na primeira canção do álbum, ao se falar “nas águas de Dona Janaína”. Numa comunidade pes-queira da Bahia, onde o candomblé é bastante respeitado e pra-ticado, a “sereia do mar” não seria outra senão Iemanjá (nome que de fato aparecerá na estrofe seguinte). Dentre todas as re-presentações dessa entidade religiosa, “sereia” talvez seja aque-la que mais sintetize o sincretismo sofrido pelo candomblé ao

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longo dos tempos. E essa é uma imagem cuja força é remota e dúbia. Desde os mais antigos mitos das mais diversas tradições, as sereias fascinam e amedrontam marujos. Elas atuam no cer-ne de um limiar: entre a promessa dos prazeres do seu canto e o horror do afogamento. Essa imagem, nesta canção, dá força a uma possível leitura que se solidifica a partir da última estrofe: “Nas ondas verdes do mar meu bem/ Ele se foi afogar/ Fez sua cama de noivo/ No colo de Iemanjá”. O eu lírico da canção, re-lembremos, é feminino. O seu canto é lamentoso porque é o re-lato de uma perda. Mais que isso: é lamentoso porque é a cons-tatação resignada da atração fatal sofrida pelo seu homem, que se foi afogar, e não se afogou simplesmente. É a constatação de uma mulher que, estando inserida no universo mitológico do candomblé, sabe que Iemanjá não é apenas a mãe protetora dos marinheiros, mas é também sua amante num único momento da vida que é, na verdade, a morte. O trecho a seguir, de Mar morto, ilustra bem esse sentimento:

Lívia pensa com raiva em Iemanjá. Ela é a mãe-d'água, é a dona do mar, e por isso, todos os homens que vivem em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens a não ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tem-pestade são seus preferidos. E aqueles que morrem salvando ou-tros homens, esses vão com ela pelos mares em fora, igual a um navio, viajando por todos os portos, correndo por todos os mares. Destes ninguém encontra os corpos, que eles vão com Iemanjá. Para ver a mãe-d'água muitos já se jogaram no mar sorrindo e nun-ca mais apareceram. Será que ela dorme com todos eles no fundo das águas? Lívia pensa nela com raiva. (p. 31, grifos meus)

Após todo esse trajeto analítico, fica claro que talvez só um ma-rinheiro devoto de Iemanjá considere doce morrer no mar. Daí a impessoalidade da voz do refrão, como se o eu lírico feminino repetisse essa máxima para expor, resignadamente, o conheci-mento dessa mitologia do cais, com a qual discorda e contra a

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qual nada pode fazer. É o seu canto lamentoso contra o canto sedutor da sereia. Daí essa canção ser cheia de arestas, atraves-sada por uma tensão que não se resolve. A melancolia do can-to e do instrumento ressignificam o refrão, como se o eu lírico confessasse: dizem que é doce morrer no mar, mas eu não acho. Aliás, se repensarmos a canção “O bem do mar”, podemos rela-cionar aquele sentimento de absoluto experimentado pelo pes-cador à sua relação com Iemanjá. O bem do mar é o próprio mar porque é lá que vive a divindade dos marinheiros.

A ressignificação do mote “é doce morrer no mar” é um dos elementos que faz com que a canção tenha a sofisticação que tem – característica ausente no livro de Amado, pois a fal-ta do teor melancólico torna esses dizeres menos complexos e com uma força menor. Comparando ambos, Mirella Longo diz que “a canção não contempla o projeto de transformação social presente na literatura de Jorge Amado dos anos 30. Pelo contrá-rio, ela afirma a fatalidade e a converte em doçura” (op. cit., p. 71). Embora eu discorde absolutamente dessa “conversão em doçura”, reconheço que, nas canções praieiras, de fato não há um projeto de transformação social. No entanto, acho que isso se dá principalmente por conta da posição adotada por cada au-tor em relação a suas obras. No prólogo de Mar morto, Amado faz uma espécie de advertência: “E se ela [a história] não vos pa-recer bela a culpa não é dos homens rudes que a narram [os ho-mens do cais]. É que a ouviste da boca de um homem da terra, e, dificilmente, um homem da terra entende o coração dos mari-nheiros” (p. 17). O narrador de Mar morto é, assim, alguém que apesar de ter uma admiração sincera pela vida no cais, reconhe-ce-se fora dela, o que é muito diferente da posição de Caymmi, que parece trazer o coração dos marinheiros para junto do seu. Aliás, o teor político do romance se dá sobretudo porque o au-tor insere personagens intelectuais no contexto praieiro, como a professora Dulce e o médico Rodrigo, as quais, por não fazerem parte originalmente daquele universo, reconhecem suas maze-las de modo diferente.

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Retomemos, agora, uma faixa precedente de Canções praieiras: “Pescaria (Canoeiro)”, a quarta do álbum, que descreve a pes-ca marítima com rede. O ritmo dessa canção é diferente do das demais; mais acelerado, é como se mimetizasse a agilidade ne-cessária a essa atividade: “Cerca o peixe/ Bate o remo/ Puxa a corda/ Colhe a rede/ Ô canoeiro/ Puxa a rede do mar”. Embora eu não concorde com Risério quando ele diz que essa canção tem uma “vívida alegria” – pois a considero antes concentrada no trabalho que festiva –, de fato “ainda não estamos aqui num mundo em que o desempenho produtivo implique a supressão da individualidade” (Risério, op. cit., p. 45). Trata-se de uma comunidade pesqueira, e a voz que a canta está muito próxima dela como um todo, como também de cada um em particular. Ela sabe que “Vai ter presente pra Chiquinha/ Ter presente pra Iaiá”, e o diz utilizando os nomes íntimos dessas personagens. Além disso, esse “desempenho produtivo” não suprime a indi-vidualidade porque depende quase exclusivamente do corpo do pescador, da sua resistência física, da sua relação com o meio natural, da sua experiência e perspicácia na observação dos mo-vimentos ao redor. Digo quase exclusivamente porque, ao pes-car no mar, esses homens dependem não apenas do seu conhe-cimento e trabalho, mas também do que a natureza dispõe. E talvez esse seja um ponto considerável para interpretar o único momento dessa canção que destoa do seu aspecto geral, por ces-sar o andamento rítmico das estrofes e incorporar um tom me-lancólico, desacelerado: “Louvado seja Deus, ó meu pai”. Aqui, é a voz do próprio pescador que parece surgir, como se ele fi-zesse de modo lamentoso um agradecimento (em caso de muito peixe na rede) ou uma súplica (em caso de escassez).

Ainda quanto à individualidade preservada no univer-so praieiro, lembremos que em “O mar” estamos falando, por exemplo, de Rosinha de Chica, e é comum, em comunidades pequenas, que as pessoas se refiram umas às outras a partir de suas relações de parentesco, ou ainda a partir das funções que desempenham. Assim, na canção “A jangada voltou só”, a sex-

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ta do álbum, o narrador caracteriza os personagens da maneira como são conhecidos em seu arraiá: “Chico era o boi do rancho/ Nas festas de Natal” e “Bento cantando modas/ Muita figura fez”. Na introdução dessa canção, o violão sugere um clima de suspense, ainda mais acentuado pelo intervalo entre os versos do refrão: “A jangada saiu/ com Chico Ferreira/ E Bento”, e de-pois: “A jangada voltou só”. Temos, mais uma vez, uma história de morte no mar: “Com certeza foi lá fora/ Algum pé de ven-to/ A jangada voltou só”. A ação do vento, que impulsiona e dá movimento à jangada, é também a que pode derrubá-los. Outra canção de Caymmi – que não se encontra em Canções praieiras –, de nome “O vento” (1954), descreve bem a importância desse elemento natural para o trabalho do pescador:

Vento que dá na velaVela que leva o barcoBarco que leva a genteGente que leva o peixePeixe que dá dinheiro

No entanto, o seu refrão diz “Vamos chamar o vento” de modo que também sugere suspense e desassossego, pois o vento é de-sejável e necessário para impulsionar a vela, mas também pode soprar de um jeito indomável e ameaçador. É a natureza a ins-pirar fascínio e receio nos homens junto a ela, o que também se dá na penúltima canção do álbum, “A lenda do Abaeté”, e dessa vez com algum teor sobrenatural. As notas graves da introdução ao violão sugerem sobriedade, que se mantém no início da letra: “No Abaeté tem uma lagoa escura/ Arrodeada de areia bran-ca”. A seguir, algumas cenas são descritas, como a da lavadeira que, ao trabalhar junto à lagoa, “Vai se benzendo porque diz que ouve/ Ouve a zoada do batucajé”, e também a do pescador que “dá pancada se o filhinho brinca/ Perto da lagoa do Abaeté”. Esse lugar em Itapuã já foi cenário de muitos afogamentos, o que criou uma aura de mistério em torno dele – a ponto da la-

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vadeira escutar o som dos atabaques ao se aproximar. Mas eis que o canto se modifica e adquire um matiz contemplativo pra falar das belezas da lagoa e de seu entorno sob a luz da lua, para depois, como que acordando dessa admiração incontida, voltar a expressar temor: “Credo cruz te desconjuro/ Quem falou de Abaeté?”. Diante do que se desconhece ou não se pode dominar, adota-se uma posição de respeito, refletida na sobriedade de al-gumas das canções desse álbum, mas também no trato íntimo dessa comunidade com as coisas ao redor, como o apreço ao mar e a devoção a Iemanjá.

III

A última canção do álbum de fato o encerra, pois é a voz de um sujeito finalmente distanciado do universo praieiro – tanto que seu título é “Saudade de Itapuã”. O eu lírico relembra o coquei-ro, a areia, a morena. E confessa: “Eu nunca tive saudade igual”. Note-se que, quando o seu olhar não está mais colado ao univer-so praieiro, o que ele rememora não é mais o trabalho braçal ou os casos de morte no mar, mas sim os prazeres de se estar sobre a areia, sob o sol. Até o vento é manso aqui, fazendo “cantiga nas folhas”. São reminiscências seletivas. E assim, nessa can-ção, o eu lírico fala de Itapuã deixando claro que o faz de um outro lugar, de um outro ponto de vista, no sentido literal mes-mo – o próprio Caymmi, aliás, deixara sua terra natal (Salvador) em 1938, aos 24 anos. E é esse mesmo sentimento que engendra, posteriormente e com resultado bem diverso, uma canção como “Saudade da Bahia”, de 1957.

Ainda haveria muito pra se pensar a respeito de Canções praieiras, inclusive sobre em que medida a visão de Caymmi estaria ou não atinada com questionamentos sociais ou com as transformações pelas quais passava, então, a região do recôn-cavo baiano. Mas é difícil precisar esse “então”, esse tempo no qual as canções praieiras se situam, justamente porque esse ál-bum é o resultado de um cruzamento de tempos. Há o tempo

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da vivência, o da lembrança, o da composição, o do registro em fonograma. Há o tempo subjetivo, da percepção de um homem quanto ao que ele vive, relembra e esquece; o tempo histórico, esse suceder de eventos que se pretende o mesmo para cada in-divíduo em cada espaço distinto; e ainda o tempo da natureza, esse que ambos, homem e história, às vezes subjugam por achar que não faz parte de sua travessia. Canções praieiras não aspi-ra ao todo. É, antes, um recorte, e sendo um recorte comunica com precisão e beleza aquilo a que se propõe. Talvez ele esteja mesmo mais próximo da natureza e das relações de alteridade, em detrimento das preocupações sociais de Jorge Amado, por exemplo. Mas essa escolha não é menos legítima. Pelo contrá-rio, num tempo em que não mais conhecemos a direção dos ven-tos e trabalhos manuais, essas canções de Caymmi são um res-piro aliviado, ainda que melancólico.

AMADO, Jorge. Mar morto. São Paulo: Martins Editora, 1965.

CAYMMI, Dorival. Canções praieiras. Gravadora Odeon, 1954.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras, 2013.

LONGO, Mirella Márcia. “Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes”. In: Literatura e sociedade, nº 4. São Paulo, USP/FFLCH/DTLLC, 1999, pp. 68-77.

RISÉRIO, Antonio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.

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O violoncelo fora do lugar – arte e sociedade em um conto de Machado de Assis Gabriel Cordeiro dos Santos Lima

“De todas as coisas humanas, a única que tem o fim em si mesma é a arte.” Machado de Assis

Introdução

A presente análise tem por objeto de estudo o conto “O ma-chete”, de Machado de Assis. O protagonista de tal narrativa – Inácio Ramos – é um violoncelista admirável, porém pouco co-nhecido. Ciente da impopularidade de sua arte, o músico vive pacificamente, sem grandes aspirações. Entretanto, ao ser des-coberto por estudantes de direito, Inácio vê sua vida se transfor-mar radicalmente, até as mais drásticas consequências. Com a prosa ímpar de Machado de Assis, o texto apresenta comentá-rios significativos no que tange à sociedade brasileira do início do século XIX e à condição do artista carioca nessa época.

O violoncelo fora do lugar

Logo no primeiro parágrafo de “O machete”, o narrador já des-cortina a condição contraditória do artista erudito brasileiro, que tem sua arte valorizada, mas não necessariamente mate-

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rialmente recompensada. O pai do violoncelista corporifica essa contradição: tem uma bela voz de tenor mas é, com toda a franqueza e simplicidade do termo, pobre. Ao longo do texto, tampouco Machado poupa adjetivos à caracterização da música clássica: chama-a de “elevada”, “austera”, “pura” e “sublime”. Contudo, não deixa de salientar a pobreza financeira à qual os artistas eram submetidos à sua época. Em uma passagem sig-nificativa, o narrador diz que “a sociedade deles [das persona-gens] não era certamente dispendiosa nem vivia de ostentação; mas qualquer que seja o centro social há nele exigências a que não podem chegar todas as bolsas”. A desigualdade inerente ao sistema é, portanto, naturalizada e aceita de maneira assusta-doramente resignada.

No entanto, no que tange à condição social dos indivíduos, os comentários mais férteis parecem se dar a respeito das per-sonagens femininas. A mãe de Inácio, por exemplo, é uma se-nhora “cuja alma parecia superior à condição em que nascera, tão elevada tinha a concepção do belo”. Esse é um aspecto ele-mentar da ironia machadiana. Ao analisar Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, Roberto Schwarz se detém no epi-sódio em que Brás Cubas lamenta o fato de Eugenia, sua possí-vel pretendente, ser coxa; e diz: “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. Aqui, Schwarz observa que “se o univer-so fosse ordenado razoavelmente, moças coxas (pobres) não se-riam bonitas, e moças bonitas não seriam coxas (pobres)” (em Um mestre na periferia do capitalismo). O mesmo, então, se apli-ca a “O machete”. E o argumento é metafísico: do trecho re-ferido, depreende-se que, se o universo do narrador do conto correspondesse a sua ideologia, a alma dos desfavorecidos não permitiria elevadas concepções do belo, as quais estariam lega-das apenas às elites. Em outras palavras, pobres não gostariam de boa arte. “Trata-se de harmonia universal, mas concebida a partir da mais imediata conveniência particular, com supressão dos demais pontos de vista, e, sobretudo, sem supressão da do-minação de classe”, acrescenta Schwarz no mesmo texto.

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Nessa esteira, então, o que dizer de Carlotinha (a mulher de Inácio), cuja única riqueza era a beleza (“Toda a riqueza da fi-lha era a beleza”)? Esta parece um exemplo crasso das palavras de Schwarz, quando este diz que “Não sendo proprietários nem escravos, estas personagens não formam entre os elementos bá-sicos da sociedade, que lhes prepara uma situação ideológica desconcertante. O seu acesso aos bens da civilização, dada a di-mensão marginal do trabalho livre, se efetiva somente através da benevolência eventual e discricionária de indivíduos da clas-se abonada” (Ibid.). Carlotinha tem na sua aparência física sua única perspectiva de ascensão, para não dizer de sobrevivência. É o desvelo escancarado da sociedade patriarcal que reifica a mulher, transformando-a em objeto. Não por acaso, com efei-to, ela se casa com um homem que a sustenta. Se não fosse pelo casamento, ela não teria como se manter. O matrimônio surge, então, como um favor (“nossa mediação quase universal”, irá dizer Schwarz) que recompensa os atributos físicos. Estes últi-mos, no entanto, não são capazes de transcender a condição de classe, uma vez que, no caso da personagem, a beleza não tem “poesia nem ideal” (ou seja: até quando a beleza é permitida à mulher pobre, a beleza, em si, é pobre).

Há, no entanto, uma personagem em “O machete” cuja condição laboral difere das demais. Trata-se do violoncelis-ta Inácio, o único no universo do conto a exercer o trabalho li-vre assalariado. É verdade: poder-se-á argumentar que ele deve algo ao favor, em última instância. Em uma sociedade que pa-radoxalmente desvaloriza a arte no sentido material, para valo-rizá-la enquanto capital cultural “sublime”, o acesso ao estudo de violoncelo, bem como a contemplação de suas peças, surge como um luxo das altas classes. É necessário, então, que o bur-guês preste um “favor” ao artista. Isso é fato, e nos abre a porta para outro conflito importante em “O machete”: a antítese entre a arte erudita e a arte das massas. Vejamos.

Quando o personagem tocador de machete (Barbosa) é introduzido na história, demonstra certa vergonha do próprio

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instrumento; se sente inibido na presença de um instrumen-tista clássico, pertencente às supostas altas esferas da cultura. Sua arte é impressionante, como demonstra sua execução que, contudo, só é realizada mediante muito encorajamento por par-te do próprio Inácio. O amigo de Barbosa, Amaral, muito mais atento ao violoncelo, também se preocupa em salvaguardar um abismo de qualidade entre os dois instrumentos, dizendo que “É outro gênero...” e, posteriormente, ante a perspectiva de um concerto dos dois instrumentos juntos, clamando: “Não profa-nemos a arte!”, e exigindo que apenas Inácio toque.

Amaral representa uma concepção elitista de arte. O ins-trumento clássico, cujo conhecimento é privilégio das elites, é mais valorizado por ele do que o instrumento popular. Ao mes-mo tempo, Machado mantém o violoncelista isolado da socieda-de “que não o entende”, até este ser descoberto por estudantes universitários. Não por acaso, o primeiro admirador confesso de Inácio é um aspirante a jurista, pertencente a um setor da so-ciedade que, geralmente, não se aflige com preocupações de or-dem trabalhista. Afinal, a instrução de nível superior é, até hoje, um privilégio no Brasil. E, uma vez que a apreciação do violon-celo se restringe aos que já possuem esse privilégio, o caráter restrito desta apreciação é reforçado.

Há, no entanto, um descompasso entre a ideologia estéti-ca de Amaral e a sociedade do conto. Tão logo o machete vem a público, repercute positivamente, sendo prontamente aclama-do (diferentemente do violoncelo, que nunca provocou grandes manifestações por parte das massas). Aqui, então, cabe pensar acerca do que a idolatria à música clássica representava nesse contexto. Pelo menos em “O machete”, esta aparece (confor-me já vimos) na forma de um berloque cultural da classe domi-nante. Ademais, se observarmos alguns comentários feitos pelo narrador, poderemos associar o violoncelo à cultura estrangei-ra, europeia. Isso porque Inácio aprende a tocar o instrumen-to com um “velho alemão”, preterindo a rabeca (instrumento popular) em uma cena em que “o artista fluminense” contrasta

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com o “artista germânico”. Também quando Inácio se refere aos “grandes mestres” do violoncelo, recorda Mozart e Weber (am-bos germânicos). Surge aqui, então, uma ideia de música clássi-ca semelhante ao que Schwarz chama de “ideia fora do lugar”. Para ilustrar esse conceito, Schwarz faz menção às pinturas e esculturas do período colonial como exemplos do deslocamen-to de ideologias, revelando a forma como a colônia incorporava elementos da metrópole sem que estes correspondessem à rea-lidade prática dos países onde imperava a economia escravista. Diz o crítico que

Em certos exemplos, o fingimento atingia o absurdo: pintavam--se motivos arquitetônicos greco-romanos – pilastras, arquitra-ves, colunatas, frisas etc. – com perfeição de perspectiva e som-breamento, sugerindo uma ambientação neoclássica jamais realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local. Em outros, pintavam-se janelas nas paredes, com vistas sobre am-bientes do Rio de Janeiro, ou da Europa, sugerindo um exterior longínquo, certamente diverso do real, das senzalas, escravos e terreiros de serviço. (“As ideias fora do lugar”)

Na comparação com outros contos de Machado de Assis, tam-bém somos capazes de notar esta contradição. No conto “Um homem célebre”, por exemplo, o personagem central busca in-cessantemente uma epifania que lhe permita compor uma peça clássica (europeia) já que, a despeito de seus esforços, só conse-gue compor marchinhas e polcas (brasileiras). Com Inácio ocor-re justamente o contrário: ante o sucesso do machete, só con-segue reagir com composições eruditas e melancólicas que não caem no gosto popular. Se há uma diferença, a temática dos dois contos, nesse sentido, é a mesma.

Seria, portanto, a idolatria a Weber e Mozart mais um des-ses exemplos? O descompasso entre o gosto artístico de Amaral e Inácio e o gosto musical do conjunto da sociedade carioca não seria um caso prático da importação de ideias estéticas euro-

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peias, sem que estas correspondessem à realidade da periferia do capitalismo? Por todos os elementos já mencionados, é pos-sível pensar que sim. E a exposição dessa confusão ideológica é mais clara no desfecho dramático do conto.

A inveja do machete

A crítica literária sempre apontou ciúmes e loucura como dois temas centrais do universo machadiano. Nesse sentido, pode--se dizer que “O machete” é um conto emblemático. Ambos os temas se entrelaçam ao final da história para engendrar sua conclusão.

O casamento de Inácio e Carlotinha, desde o princípio, pa-rece algo incompleto. Tão logo ambos começam a se relacionar, é dito que a mulher renuncia a seus hábitos “frívolos”, sabendo “curvar-se à lei que de coração aceitara”. Já aqui a instituição do casamento surge não como um produto da vontade interior, do coração, por assim dizer; mas sim como produto de uma lei externa que é imposta à revelia do desejo do indivíduo. Mais: a necessidade de aceitar o “favor” do casamento, já que a única riqueza de Carlotinha era beleza, obriga-a a tolher a própria sub-jetividade em um exercício castrador de superego. Mais irôni-co impossível, se pensarmos que, ao final, o casamento termina graças à “frivolidade” de Barbosa, que reconcilia a mulher adúl-tera com seus hábitos originais.

Os instrumentos musicais começam a surgir, então, como representantes do espírito das personagens entre as quais Carlotinha transita. O violoncelo é grave, “silencioso” e “profundo”; o machete é frívolo e alegre – ao cabo, vitorioso. Também “grave” e “profunda” é a alma de Inácio, que recusa os aplausos de sua mulher à execução de sua primeira peça, argu-mentando que seu instrumento “não era lindo, como ela dizia, mas severo e melancólico”. E o casamento é o laço social que ata Carlotinha a essa alma cuja essência tanto diverge da sua.

Uma vez juntos, o casal passa a ter uma vida que “corre-

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ria assim monotonamente bela, e não valeria a pena escrevê-la” (comentário que coloca o “bela” muito mais como uma aceita-ção convencional da perfeição aparente do matrimônio do que, efetivamente, como um reflexo da felicidade dos cônjuges). Com o desenrolar da trama, porém, a prosa machadiana vai dando evidências da atração de Barbosa por Carlotinha. Inácio parece não perceber. Se percebe, não se manifesta. No entan-to, a grande demonstração de ciúmes se dá no instante em que o machete de Barbosa começa a receber mais atenção do que o violoncelo. E aqui, importante observar, não se trata de um ciúme destrutivo (como o de Bentinho em Dom Casmurro) mas sim de um ciúme resignado. A mulher de Inácio, inclusive, sur-ge como personagem secundária na inveja do marido. É o que se vê quando este afirma: “O que tenho é que estou arrependido do violoncelo; se eu tivesse estudado o machete!”. Para Inácio, o instrumento musical parece mais importante do que a própria esposa que o abandona ao poucos.

Neste instante, podem surgir duas interpretações. Uma, conforme apontado por Antonio Candido em Vários escritos, po-deria relacionar as preocupações de Inácio com um tema muito caro à obra de Machado de Assis: “o tema da perfeição, do ato completo, à obra total”. Argumentar-se-á, então, que o violon-celista – mais preocupado com a busca por sua opus magna, por seu reconhecimento enquanto grande músico – se preocuparia antes com seu instrumento do que com sua mulher. Esta ideia não pode ser descartada. Mas o próprio Antonio Candido traz outra questão à baila.

Ao analisar outro conto de Machado (“O espelho”), Candido descreve a forma como o personagem central da histó-ria é levado à “beira da dissolução espiritual” quando seus escra-vos fogem, e este para de ser socialmente reconhecido enquanto “senhor”. Faz-se necessário, então, que ele se olhe diariamente no espelho, devidamente fardado (instrumento simbólico de seu status social), caso contrário seu reflexo torna-se turvo e irreco-nhecível. O mesmo acontece com Inácio Ramos, que tem sua sa-

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nidade mental dissolvida no instante em que sua mulher o troca por Barbosa. O mais curioso, porém, é observar que, ao se referir a seu rival, Inácio diz que a mulher “foi-se com o machete”. O ser humano, já transformado em instrumento de trabalho, é então representado por uma metonímia fantasmagórica que substitui seu próprio nome. O fetichismo da profissão é evidente: importa mais o Barbosa músico do que o Barbosa indivíduo.

Dessa forma, a cisão espiritual da personagem submetida às regras da divisão do trabalho conduz à derradeira loucura. A auto-imagem de violoncelista de sucesso em “O machete” equi-vale à auto-imagem de senhor em “O espelho”. Por isso, uma vez preterido, Inácio enlouquece. Sua sanidade mental é perdi-da no mesmo instante em que se perde o reconhecimento so-cial pelo desempenho no ofício. Como aponta Adorno, “[a obra de arte] na própria constituição de sua autonomia [...] ratifica a posição social do espírito cindido segundo as regras da divisão do trabalho” (Teoria estética). É essa perda espiritual (decorren-te da própria divisão do trabalho) que transforma Barbosa em machete e Inácio em violoncelo. E é a vitória do primeiro que conduz o segundo à loucura.

ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2008.

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Avenida, 2012.

______ . Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Orbis, 2012.

______ . “O espelho”, “O machete” e “Um homem célebre”. In: 50 Contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

SCHWARZ, Roberto. “As ideias fora do lugar”. In: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2000.

______ . Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

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novíssimos

Resenha de Sentimental, de Eucanaã Ferraz1

Isabela de Vilhena Gaglianone

“Estranha matéria, que sobe do fundoÀ flor da memória camada de espumaDiário de bordo vem quebrar aqui” “Talvez hoje”

O verso, nas línguas, dizem tantos filósofos, antecede a prosa. Por ser mais imediato, por ser mais sentimental. A linguagem poética permanece existindo como verso e então não se deixa estender por uma prosa, porém, invisível: suas palavras, suas imagens, ecoam-se entre si e interiorizam discursos inteiros sem nem precisar proferi-los. As imagens poéticas encerram um círculo hermenêutico de compreensão da parte pelo todo e do todo pela parte. O livro mais recente de Eucanaã Ferraz par-ticulariza em si essa coesão e Sentimental é um desdobramento semântico da própria palavra que lhe dá título, vai de um sarcas-mo melancólico, sensorial, a uma leveza quase etérea, corredei-ra de figuras mágicas. Octavio Paz diz que a poesia é, no limite, mágica, no sentido de mágico semelhante ao que entende a an-tropologia: uma chave simbólica.2

Ao longo de Sentimental, o teor dos poemas beira o nar-

1 A resenha faz parte de um projeto da cisma de tratar sempre de escritores contemporâneos e de livros recém-lançados. Sentimental, de Eucanaã Ferraz, saiu em Outubro de 2012, pela Cia. das Letras. Na revista Cisma n. 1, tivemos resenhas sobre Tarde, de Paulo Henriques Britto (por Aline Rocha) e Junco, de Nuno Ramos (por Sofia Nestrovski). Na cisma n. 2, publicamos uma entrevista com o poeta mexicano Fabio Morábito, feita por Mayra Moreyra Carvalho e Priscila Genelhú.

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rativo, a correnteza das sinestesias e das significações, porém, nasce de imagens imediatas que, juntas, desnovelam a imagi-nação, imagens que se equilibram no tempo; no tempo que pas-sa, morte em tantos sentidos, mas também no tempo do sonho e do passado que, como memória, revive-se a cada momento do presente – o sentimental é latente. O tom é grave, mas leve; por vezes, quando ácido, e, então, descrente e também nostálgico. Os extremos coexistem, na plenitude da complexidade de sua coexistência. Surdo e com “os dois olhos bem abertos”, na “mí-mica sem sentido” que “parece ser o sentido de tudo” (versos do poema “Oboé”) é como se o mundo estivesse submerso, mudo, de modo que somente às imagens coubesse significar – com to-das as polissemias e flutuações de significados a que levam os poemas de Eucanaã.

O ritmo geral dos poemas é sincopado, o ritmo quebrado do deslocamento tônico dos versos. Efeito gerado por diferen-tes formatos e divisões dos versos, que ora prolongam, ora cor-tam as sonoridades, mas também causado pelas experiências ri-cas da pontuação: tanto nos encadeamentos sem vírgulas, que amalgamam signos em um único significado, abstraindo-os, e, que, ambivalentes, geram duplos sentidos – como os substan-tivos que são ao mesmo tempo possíveis verbos poéticos, por exemplo, “Janeiro bicicletas” (de um verso de “Papel tesoura e cola”). Ou ainda, nos versos com seguidas pontuações expressi-vas, como no angustiado poema “Dizer adeus, amigo”:

Devia ter sido, naquele tempo, antes do destino,Que, talvez um movimento, meu, de alguém,

[...] Qual teria sido?, e tudo fosse diferente, outro caminho.Mas nada se fez. Tantas vezes nada se faz

A síncopa musical dá ao ritmo um caráter um pouco folclórico, um pouco rústico, porque a tônica do compasso é deslocada e o ritmo torna-se fugidio – o contratempo, esperado a ser o tempo fraco,

2 Nas palavras de Paz, a poesia “é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso é limítrofe da magia, da religião e de outras tentativas para transformar o homem e fazer ‘deste’ ou ‘daquele’ esse ‘outro’ que é ele mesmo”; “O valor das palavras reside no sentido que ocultam.” (PAZ, Octavio. “A imagem”, In: Signos em rotação. pp. 43 – 50)

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passa para um primeiro plano. Um ritmo dissonante. Na poesia de Eucanaã, o ritmo sincopado do deslocamento sonoro ilumina al-gumas palavras e transmuta suas imagens, deixa a tônica semân-tica muitas vezes suspensa – por exemplo, no poema “Dance”

Retesa enquanto repuxos de sangue aveludam Avenidas que pareciam inquebrantáveis masAgora castelos em degelo sob pés em desafio

Cada contorcionismo é mais que desesperoE que beleza – é fora do tempo é sem narrativaÉ ainda graça leveza cada gesto que

Surge

ou “A flor aberta do gramofone por onde amídala/ a música pas-sava lisa;” (“Victor talking machine”). O próprio sentimental, enquanto ambivalência de sensação e de sentimento, desenvol-ve-se nessa musicalidade, em que a base conceitual e a tonalida-de coexistem nos movimentos simbólicos dos poemas.

Esse ritmo sincopado, que aparece algumas vezes como quebra violenta, outras, sereno deslocamento – é o caso da sim-plicidade de “dezembros de dezembro” (do poema “O círculo negro”) –, é como o ritmo da água, que, quer rio, ou quer mar, é imagem recorrente no livro. O mar metaforiza, por um lado, o morrer poético, condensa a profunda e irreversível sensação do tempo que passa. “E como nunca antes: aéreo. Mais/ que isso, marítimo. Repara:// tem ares de quem navega a todo/ pano em seu navio-fantasma” (“Só faço verso bem-feito”); mas o mar também se revolve infinitamente e metaforiza, por outro lado, um constante murmurar do passado relembrado pelo presente – um tempo subjetivo, presente solitário em que vivem, em uni-versos próprios mas espelhados, o viúvo, o astronauta, o homem a bordo de seu silêncio e o insone urbano, separados pela mes-ma margem arenosa às avessas. Entre “nuvens algas”, atrás de

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uma “epopeia mística de mais de mil/ de milhares de versos”, a poesia do livro lembra a definição de Octavio Paz, segundo a qual “o poema é tempo arquetípico”, ou seja,

um perpétuo presente que é, também, o mais remoto passado e o futuro mais imediato. [...] A condição dual da palavra poéti-ca não é diversa da natureza do homem, ser temporal e relativo mas sempre lançado ao absoluto. (“A consagração do instante”, In: Signos em rotação, p. 54)

Assim, “De nada adiantaria dizer ao rio que// chegando à praia ele não retornará” (“Tão bonita”) na imensidão navegante, o tempo é fugidio, repleto de silêncios e de fábulas.

A poesia de Eucanaã Ferraz, em Sentimental, parece um trapezista. Nela, o sentimental equilibra-se sobre o intelectual e cria um mundo próprio, uma atmosfera quimérica. Os poe-mas escapam-se uns nos outros, formando um todo que abarca rumos de destinos distantes, além-mar. De um ponto a outro, desdobram o caráter de tensão existencial do “sentimental”, em suas dimensões históricas e humanas.

FERR AZ, Eucanaã. Sentimental. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.

PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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Gabriel Cordeiro dos Santos Lima é estudante de Letras – Português e Espanhol, na USP. É também pesquisador na área de crítica literária e literatura latino-americana.

Guilherme Nogueira Tauil é graduando em Letras – Português e Espanhol, na USP. É representante discente do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, pesquisa a obra de Rubem Braga, gerencia o maior acervo digital sobre Chico Buarque e escreve sobre literatura para o site quartacapa.com.

Isabela Gaglianone é formada em Filosofia pela USP. Publicou textos na Cisma 1 e 2.

Juliana Cunha, estuda Letras – Português e Inglês na USP, e faz iniciação científica sobre J.D. Salinger no departamento de Teoria Literária com o Prof. Dr. Edu Teruki Otsuka. É repórter e tradutora freelancer com traduções publicadas em veículos como Folha de S.Paulo e revista piauí.

Juliana Ramos Gonçalves é graduanda em Letras – Português e Francês, na USP

Lílian Honda é jornalista e aluna de Letras – Português e Latim, na USP.

Marcos Vinícius Ferrari é graduando do curso de Letras – Português e Russo, na USP. Atualmente, dedica-se à tradução de contos de Anton Tchékhov, com apoio da FAPESP.

Mariana Chirico Machado Holms está cursando sua graduação em Letras – Português e Alemão, na USP.

Pedro Abreu Meyer Pires é aluno do quarto ano de Letras – Português e Alemão, na USP, e estagiário de tradução pela Lionbridge Participações. A tradução de Ein Tisch ist Ein Tisch foi produzida para a aula de Tradução Comentada do Alemão II.

Sofia Nestrovski é uma das editoras e idealizadoras da cisma. Pesquisou a obra de Nuno Ramos sob orientação da Profa Dra Viviana Bosi. No momento, dedica-se à tradução de The Renaissance, de Walter Pater, sob orientação da Profa Dra Lenita Esteves. Cursa graduação em Letras – Inglês, na USP.

Vitor Serrano nasceu em Setúbal (Portugal), estudou na Universidade de Lisboa, cidade onde vive e trabalha.

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