CITAC S O A H O S v - UCDigitalis | Biblioteca Digital da Universidade de … · 2016-02-03 ·...
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Desde que D. João III restituiu a Universidade a Coimbra, os grupos de teatro universitário, criados por estudantes e professores, têm sido uma constante do meio coimbrão que ainda hoje pervive. Nas centúrias do Antigo Regime, a obrigatoriedade de alguns lentes fazerem representar, anualmente, uma comédia visava um duplo objectivo: o aperfeiçoamento da latinidade dos alunos e a edificação moral de participantes e auditório, por um lado, ao mesmo tempo que preservava os espectadores do contacto com as encenações profanas veiculadas por companhias ambulantes, cuja apresentação se procurava limitar ao tempo das férias escolares. Com o advento do Liberalismo, o surto de teatros trará a Coimbra um maior movimento teatral, sendo os estudantes e elementos do corpo docente, em conjunção com cidadãos provindos de certas agremiações, os principais animadores e protagonistas de uma experiência, agora vista como necessária, ao serviço da educação e da sociabilidade gerais, esbatendo-se o peso do quase monopólio teatral que a Universidade, anteriormente, detivera. O ponto de chegada do longo percurso da experiência dramática desta cidade será o privilegiar do princípio da autonomização, concretizado com a fundação de dois organismos: o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, em 1938, e o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, que apresentará os seus primeiros trabalhos em 1956, sob a coordenação de Vasco de Lima Couto. A criação do CITAC corresponde à necessidade de desenvolver um trabalho mais vanguardista e experimental, contemplando também um reportório de autores contemporâneos. Sob a direcção de Vasco de Lima Couto, Luís de Sousa Rebelo, José Sinde Filipe, António Pedro, Paulo Quintela, Jacinto Ramos ou Carlos Avilez, para citar apenas os encenadores nacionais que aí desenvolveram a sua actividade, foram representados, entre outros, António Patrício, Tchekov, Miguel Torga, António Pedro, Molière, Lorca, Brecht, Claudel e Shakespeare. Revestiram-se de particular significado os doze "Ciclos de Teatro", que trouxeram a Coimbra o que de melhor e mais inovador se fazia no país em matéria de teatro. Iniciados ainda em 1959, prolongar-se-iam até ao encerramento do organismo pela polícia política, em 1970. Depois do 25 de Abril de 1974, o CITAC retoma a sua linha interventiva, numa primeira fase ainda sem encenador, sendo depois convidados diversos nomes credenciados que vieram coordenar a sua formação e respectivo trabalho. Deve destacar-se que a estreia de cada peça é transformada num evento, que inclui colóquios, exposições e a publicação de um número alusivo da nova série dos Cadernos do CITAC. Devem, a este respeito, recordar-se os espectáculos "Jogo de Massacre" de Eugène Ionesco, "Gog" de Giovanni
Papini, os eventos "Kafka", "Vian", e, em data mais recente, "Sartre e Simone de Beauvoir". Realce merece também a preocupação do CITAC em produzir alguns espectáculos mais dirigidos a um público infanto-juvenil, como "Citacção", ou os "Citaclowns", assim como a iniciativa internacional "Projectos & Progestos". Juntamente com o TEUC, tem o CITAC, nos últimos anos, voltado a organizar, com alguma regularidade, o ACTUS, Encontros de Teatro Universitário. Em síntese, a história já meio centenária do CITAC constitui um património precioso da Universidade de Coimbra, do qual esta se orgulha e que quer continuar a acompanhar de muito perto. Ao longo destas cinco décadas, tem sido inestimável o papel desempenhado pelo CITAC na formação de actores e de novos públicos. Mas o resultado desta acção está longe de se materializar apenas nas suas próprias produções, uma vez que são inúmeras as actividades de dinamização teatral em que os jovens formados no CITAC se têm empenhado fora da academia e da própria cidade de Coimbra, enquanto encenadores e actores de companhias amadoras e profissionais, ou simplesmente como participantes destacados em projectos culturais inovadores, marcados pelo experimentalismo e pela aventura que, afinal, foram sempre a imagem de marca deste grupo - uma referência fundamental do teatro universitário português.
Fernando Seabra SantosR e ito r da U n iv e r s id a d e d e C o im b ra
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A PROPÓSITO DOS 50 ANOS DO CITAC Assinalar a celebração dos 50 anos do CITAC é sublinhar o desenho
de um movimento "circular" interventivo. Trata-se, pois, de pôr em
evidência uma obra de tonalidade onde, a um tempo, se descobre o
toque individual e a dimensão colectiva, onde a heterogeneidade de
pessoas, ideias e ideais vivifica o comunitarismo assumido e este
germina a identidade pessoal. Falamos de um grupo de teatro
universitário que quis sempre ver, ir, fazer, mais além. Mais longe.
Perceber o que é esse ver, esse ir, esse fazer, mais além e mais
longe é dar a conhecer um projecto e uma atitude - e o que é o teatro
senão a sucessiva reinterpretação e representação de projectos e de
atitudes morais e espirituais com manifestação no espaço, no tempo,
no corpo, nos gestos, com significação no momento teatral? - que,
pela apologia da liberdade, representou e ainda hoje representa,
uma marca de água, quer para os que foram "citaquianos" quer,
também, para todos os outros que com eles puderam sonhar o
drama, a tragédia ou a comédia enquanto os instantes sem fim da
representação duravam. O CITAC encenou um permanente desafio
no negro das paredes pintadas do teatro-estúdio - a sua "casa" -, procurando encontrar a tónica colorida da ruptura, tendo a liberdade
como pano de fundo. Deste modo, o CITAC tem-se afirmado como ponto inarredável do teatro universitário, participando em
festivais nacionais e internacionais, levando o nome da Universidade de Coimbra além muros académicos, além cidade, além
fronteiras. Mas se o CITAC saiu para ver mais longe e mais fundo também fez vir gentes do teatro. E fê-lo sabendo trazer a Coimbra
- nomeadamente através dos extraordinários ciclos de teatro que organizou - a qualidade, a novidade e a avant-garde teatral.
Com um critério de bom gosto e de modernidade que nem sempre foram, então, compreendidos. Mas até nisso o CITAC se mostrava
como saudável elemento de transgressão e de procura de outras formas de representação teatral. O universo de valências
plurais, a capacidade de atrair e de jogar com novos e velhos públicos, a criatividade na procura de conseguir espectáculos diferentes
e, sublinhe-se a traço grosso, a permanente ousadia são, a meu ver, aquilo que justifica que estes 50 anos sejam assinalados. E assinalados
não só porque passaram 50 anos mas antes e, por sobre tudo, porque esse meio século deixou rasto. Criou memórias. Mudou vidas.
Desabrochou sonhos. Fez com que o teatro acontecesse. Gerações e gerações de "citaquianos" amaram o teatro. A elas e a eles o
nosso profundo e sentido bem-haja. É, por isso, que tenho o maior gosto - como académico, como universitário, como beneficiário da
asa e da raiz que o teatro me deu e, ora, como Director da Imprensa que edita esta obra - em escrever, em jeito de abertura, estas
breves e singelas palavras. Em jeito de abertura de uma obra que pretende - criando - homenagear o Círculo de Iniciação Teatral
da Academia de Coimbra e todos aqueles e aquelas que foram construindo um palco e uma cena onde o teatro - isto é, a vida em
todo o seu esplendor - tem acontecido. Sempre de forma inovadora. Sempre assumindo os riscos de ir mais além. Mais fundo.
José de Faria CostaD ir e c to r da Im p r e n s a da U n iv e r s id a d e d e C o im b ra
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O M E T E O R O D A T R A N S F I G U R A Ç Ã O No cinquentenário do CITAC, o que em primeiro lugar nos assalta é
a surpresa: 50 anos, já? Não é de somenos, a estranheza. A idade, a
caminho de vetusta, de 50 anos não rima - se me é permitido usar
aqui esta palavra - com a marca de permanente erupção experimen
tal que tem singularizado o percurso do Círculo de Iniciação Teatral
da Academia de Coimbra. A presente obra esclarecerá certamente
este ponto: a vida do CITAC, ou pelo menos o que de fora é possí
vel identificar assim, não é tanto uma existência que desdobra um
conjunto de premissas solidamente estabelecidas mas o resultado de
um intenso diálogo com o momento e a circunstância. Isso não signi
fica a ausência de substracto teórico-estético. Significa que o plano
estável de um cânone, implícito ou explícito, nunca primou sobre a
captação daquilo a que, no momento, se afigurou imperativo dar
expressão. No CITAC, a palavra "teatro" parece ter sido sempre a
nomeação de uma cena onde ocorrem dramas e transgressões,
utopias e combates - e menos o lugar de uma representação. Aqui, "teatro" significa veneno, energia, afirmação. É claro que não
pode esquecer-se o importante papel que o CITAC desempenhou e desempenha no âmbito do chamado "teatro universitário",
sejam quais forem as diferenças ocorridas neste meio século. Mas se, desde o início, a intervenção no teatro universtário teve
uma configuração particular foi porque circulava no grupo fundador uma outra ideia de teatro a que estes cinquenta anos de vida,
em continuidades e interrupções, parece terem-se mantido singularmente fiéis. O que são estes cinquenta anos, então? Um sonho
ou um pesadelo que se passou na cabeça de Macbeth? Juan Carlos Oviedo? "O arranca corações"? Boris Vian com Sartre e Beauvoir
num bar de Saint-Germain dès Près na Praça da República? Ricard Salvat? Faustos e Processos de Goethes melancólicos e
Kafkas optimistas? Pessoa plural? Fassbinder? Paulo Castro? Passeios subversivos pelo grande teatro do mundo? Victor Garcia?
Cantoras e carecas e rinocerontes que ajudam Ionesco a contar a nossa vida errante ou a encontrar a saída que não há na floresta
da própria existência? Ciclos de Teatro, Programas de teatro, Cadernos de Teatro? Luís de Lima? Mergulhos em oceanos invisíveis
na companhia de ítalo Calvino? António Pedro? Mário Barradas? Performances, noites de poesia? Andrezj Kowalski? Nós, no
círculo da lua? Cinquenta anos são tudo isto. E muito mais: nomes, títulos, actividades - encontra-se neste livro. E muito mais
ainda - tudo o que não pode estar neste livro e duas actuais citaquianas referiram assim: "o mais importante de tudo é o meteoro
da transformação que só cada citaquiano viveu, o que só nós pudemos sentir. É o que o CITAC tem de intransmissível. O mais precioso".
E quando se comunica sob a forma do "intransmissível", a herança cultural está, toda, na ordem cósmica ou poética.
António Pedro PitaDelegado Regional da Cultura do Centro
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Coordenação Editorial: CITAC • Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra • Edição de Texto: CITAC • Design e Edição de Imagem: António Barros Produção Gráfica: Estúdios ESTÍMULUS [design] • Tiragem: 750 exemplares • ISBN: 972-87-04-97-6 • Depósito Legal: 247975/2006 • Coimbra 2006 • © CITAC e IUC
Esta Danada Caixa Preta só a Murro é que Funciona • Afirmação colhida a um texto de Alexandre 0'Neill, titula este livro, publicado por ocasião da comemoração dos 50 anos do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra. Começou a inscrever-se no desejo partilhado por Sílvia das Fadas e Vânia Álvares, depois veio a Joana Maia. E não é que o trio das infatigáveis levou isto até ao fim? Neste entretanto, contaram com a ajuda de Luís Rodeiro, Sara Andrade, Xé Pizarro. Colaboraram ainda nos festejos Agostinho Martins, Ana Aidos, Ana Fernandes, Ana Sofia Costa, António Moisés, Moisés Esteves, Gonçalo Maia,Jorge Correia, Luís Filipe Rocha, Maria Inês Coroa, Mário Pais, Nolga Valentino, Paula Rita, Pedro Fabião.Créditos de Imagem • p. 4 - © Foto Virgílio Ferreira; p. 14 - Fotos cortesia Feliciano Cruz David; p. 16,17 - a. d. Arquivo CITAC; p. 22 - Desenho de Aníbal de Almeida; p. 35, 36 - a. d. Arquivo CITAC; p. 41 - Foto António Portugal; p. 43 - Desenho de Francisco Relógio; p. 44 - Fotos António Portugal; p. 45 - Fotos cortesia António Lopes Dias; p. 47 - Foto António Portugal; p. 50, 51 - Fotos cortesia António Lopes Dias; p. 54, 55 - a. d. Arquivo CITAC; p. 71 - Fotos Miguel Correia; p. 73, 77 - Fotos cortesia Celso Cruzeiro © Afrontamento (1989); p. 78 - a. d. Arquivo CITAC; p. 80, 81, 82, 83, 84 - Fotos Guilherme Silva; p. 94 - Fotos cortesia Jorge Vasques, p. 95 - Foto Mário Leite; p. 96, 97, 98, 99 - Fotos Guilherme Silva; p. 102, 102 - Fotos Narciso Saraiva; p. 105, 106, 107, 108; 109, 110, 113 - Fotos Projectos & Progestos; p. 122, 123 - Fotos Andrezj Kowalsky; p. 124, 125 - Fotos Paulo Ramos; p. 126, 127, 131, 132, 134, 137,138 - Fotos Susana Paiva; p. 128, 129, 135 - a.d. Arquivo CITAC; p. 140, 141 - Foto Jorge Torres e Teresa Amado; p. 142, 143 - Fotos Pedro Crisóstomo; p. 145, 146 - Fotos Ruy Malheiro; p. 147 - Foto Tiago Hespanha; p. 148 - Fotos Acto Único / António Pires, Nuno Patinho, António Martins e Paulo Mora; p. 172 - Fotos Ana Madureira; p. 173 - Foto Acto Único / António Martins, António Pires, Nuno Patinho, Paulo Mora; p. 174, 175 - Fotos Emanuel Brás; p. 177 - Foto Tiago Lança, Tiago Hespanha; p. 178 - Desenho Ana Madureira; p. 179 - Fotos Sal; p. 180 - Foto CITAC, Paulo Castro; p. 181 - Foto Miguel Silva; p. 184 - Fotos Luís Filipe Rocha, Tiago Lança; p. 185 - a. d. Arquivo CITAC; p. 186 - Foto Pedro Fabião; p. 187 - Fotos CITAC, Paulo Castro; p. 188 - Fotos Eloisa Valdez; p. 189 - Foto Moisés Esteves Anexos • O livro integra como suplemento a peça teatral "Os sapatos", texto de Yvette Centeno como complemento ao seu testemunho, gentilmente cedida ao CITAC como prova do seu amor ao teatro.
O CITAC agradece:À Fundação Calouste Gulbenkian, mãe e pai do grupo, desde os primeiros passos em volta
Ao Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Dr. Emílio Rui Vilar, por ter reconhecido que esta história merecia ser contada.
À Reitoria da Universidade de Coimbra, nas pessoas do Reitor, Prof. Doutor Fernando Seabra Santos, e do Pró-Reitor para a Cultura, Prof. Doutor João Gouveia Monteiro
À Imprensa da Universidade de Coimbra, nas pessoas do seu Director, Prof. Doutor José de Faria Costa, e Directora-Adjunta, Dra. Maria João Padez de Castro
À Delegação Regional da Cultura do Centro, na pessoa do seu Delegado Regional,Prof. Doutor António Pedro Pita
Ao Governo Civil de Coimbra, na pessoa do Governador Civil, Dr. Henrique FernandesAo Teatro Académico de Gil Vicente, na pessoa do seu Director, Prof. Doutor Manuel Portela
A Alexandre 0'Neill, em cujas palavras encontrámos a essência do CITAC E muito especialmente:
A António Barros, por ter acreditado que da nossa desordem poderia nascer um livro, e por tê-lo feito tão bem.
Aos que ajudaram a resgatar esta memória colectiva, nesta cidade ou dispersos pelo mundo, partilhando o CITAC em palavras, fotografias, esquissos ou pelo simples
contar de histórias que não ficaram escritas [e já agora uma palmadinha nas costas aos que não nos passaram cartão]
A todos os citaquianos do início ao fim do Círculo, até quando tudo sem nós por si permaneça.
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Há Leitor?
Trata-se de um exercício de impaciência, feito por um anóni
mo e lustrado.
Durou alguns dias e algumas noites de insónia.
Ao fundo da cena, do lado esquerdo, um armário grande e
antigo. Do lado direito um plátano, a ser aparado por um fun
cionário dos serviços municipalizados. Vai cortando, serran
do, arrancando, de tal modo que no fim do espectáculo já
nada resta do plátano. Nem o tronco se lhe aproveita.
Entrará então o Presidente da Câmara com uma maquette de
gesso para pôr no seu lugar. O arquitecto que a fez passa-lhe
um chorudo cheque. Os zeros caem do papel como bolas de
ping pong.
Vozes dirão: o que é isto?
Outras vozes responderão: maravilhas do novo modernismo...
O nosso... É assim que se progride, sempre atrás da Europa...
Atrás é o caminho!
Na banda sonora utilizam-se os trechos que vão sendo cita
dos: de Pierre Henry, Variations pour une porte et un soupir; de
Mozart, Die Zauberflote; de Michael Jackson, Bad.
E tudo o mais que o compositor de serviço achar por bem
acrescentar.
A o L e i t o r D e s c r i ç ã o
Duas velhas descalças, uma vestida de preto, outra vestida de
branco.
A de preto está a enrolar com muito cuidado uma corda fini-
nha à roda da de branco. Começa pelos pés e vai subindo,
subindo.
Um pianista. Faz escalas para aquecer as mãos.
Um príncipe encantado. Com uma pá desenterra a princesa,
que acaba de encontrar numa sepultura cavada de fresco.
A princesa é azul.
Vozes: só duas velhas, um príncipe e uma princesa enterrada, não
chegam para animar o palco. Fazem falta mais algumas figuras, de
preferência femininas.
Outras vozes: essa agora! Femininas porquê?
Uma bailarina encosta-se ao piano. O pianista levanta-se e
dá-lhe um empurrão discreto. Não gosta de bailarinas, e de
testa que lhe mexam no piano.
Um primeiro-ministro num cavalo de pau. Entra e sai a cor
rer, por várias vezes. De cada vez atira um chapéu ao ar.
Os chapéus são de senhora: com rendas, com véus, com flo
res, com frutos.
Um trapeiro recolhe todo esse lixo e no fim do espectáculo
despeja os sacos para cima do público.
O público está sentado nas confortáveis cadeiras de um teatro
convencional: o S. Carlos, ou o S. Luís, ou o Trindade.
Vozes: e por que não o teatro Garcia de Resende de Évora? Há que
descentralizar.
Voltando ao público: ora adormece, embalado pelo piano, ora
acorda, com os empurrões que são dados à bailarina, que
insiste em encostar-se ao piano, e com os gritos da velha de
branco quando a corda a magoa, ou ainda com o arfar do
príncipe que se excita ao desenterrar e abraçar a princesa.
O primeiro-ministro troca o cavalo de pau por um jovem
porta-voz, disposto a alguns sacrifícios pela sua carreira.
Vozes: tais como?
O primeiro-ministro e o porta-voz, sentados a um canto,
snifam voluptuosamente pó de talco Ausónia, o único auto
rizado pelo ministro das finanças devido aos cortes orçamen
tais.
A princesa, que se despira para sacudir a terra dos vestidos,
volta a vestir-se, com grande desgosto do príncipe.
Vozes: mas não chora. Os príncipes bonitos nunca choram.
O príncipe volta a metê-la na sepultura, o que ela aceita. Está
cada vez mais azul.
A velha de preto já enrolou a corda à roda da de branco, e
prepara-se para a esganar.
A velha de branco grita. Não é um grito qualquer. É um ran
ger de porta, doloroso, prolongado.
Vozes: a velha é culta. Deve ter ouvido a música concreta de Pierre
Henry.
Outras vozes: Variações para uma porta e um suspiro.
Príncipe: Note-se que aí se fala de febre e de morte. Na minha opi
nião a velha corre perigo.
Vozes: todos os velhos correm perigo.
O pianista, que já aqueceu as mãos, ora ao piano ora aos
empurrões à bailarina, salta para cima do banco e começa a
aquecer os pés.
A bailarina observa-o de longe. Sai de cena e regressa pouco
depois com um espelho de armário que vai mostrando a uns
e a outros.
O príncipe começa a namoriscar a bailarina. Ela entrega-lhe o
espelho.
A velha de preto abre o armário que está ao fundo da cena e
tira de lá de dentro um par de sapatos de salto alto. Tenta cal
çá-los à velha de branco, que continua a ranger.
Vozes: experimenta no porta-voz.
Outras vozes: não, no primeiro-ministro.
Surge logo à boca de cena, com ar ameaçador, um batalhão de
comandos. Uns matam, outros morrem. Outros põem-se a be
ber vinho tinto por biberons de litro, concebidos para o efeito.
O público assustado, encolhe-se nas cadeiras. Perde a sen
sação de conforto de quem não tem nada a ver com o que se
está a passar. E se alguém se mete com eles?
"Os Sapatos" (Exercício cruel) de Yvette Centeno,
inédito escrito para José Ribeiro da Fonte iti memoriam, foi amavelmente cedido ao CITAC
como complemento do seu testemunho e, nas suas palavras, como prova do seu amor ao teatro.
É parte integrante do livro "Esta danada caixa preta só a murro é que funciona • CITAC 50 Anos"
e não pode ser vendido separadamente.
50AN0SC ÍRCUL0DE IN IC IAÇÃ0 EATRALDAACADEMIADECOIMBRA O S S A P A T O S Y V E T T E C E N T E N O
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