CITAÇÃO, DESTACABILIDADE E AFORIZAÇÃO NO TEXTO IMAGÉTICO: POSSIBILIDADES?

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413 Alfa, São Paulo, 57 (2): 413-431, 2013 CITAÇÃO, DESTACABILIDADE E AFORIZAÇÃO NO TEXTO IMAGÉTICO: POSSIBILIDADES? Roberto Leiser BARONAS * Samuel PONSONI ** Que pode a câmara fotográfica? Não pode nada. Conta só o que viu. Não pode mudar o que viu. Não tem responsabilidade no que viu. A câmara, entretanto, Ajuda a ver e rever, a multi-ver O real nu, cru, triste, sujo. Desvenda, espalha, universaliza. A imagem que ela captou e distribui. Obriga a sentir. A, criticamente, julgar. A querer bem ou a protestar. A desejar mudança. Carlos Drummond de Andrade (2012) • RESUMO: Neste texto, realizamos uma discussão de fundo epistemológico, procurando compreender como a mídia dá a ler determinados acontecimentos históricos da política brasileira por meio de textos imagéticos. Como corpora, elegemos fotografias de atores políticos que circularam no jornal Folha de S. Paulo, durante o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras de 2010. Nossa discussão está fortemente assentada nos trabalhos de Dominique Maingueneau acerca de citação, destacabilidade e aforização. Nesses trabalhos, o teórico propõe uma densa discussão sobre a circulação dos textos verbais em nossa sociedade, isto é, sua reflexão busca saber como certos textos circulam – inteiros, em fragmentos, adaptados – e por que, de um texto integral, frequentemente circulam apenas partes – finais, começos, pequenas frases. Dessa discussão empreendida, tentamos tirar algumas consequências teóricas a partir da análise de textos que mobilizam em sua constituição não apenas recursos verbais, mas, principalmente, recursos de natureza imagética. Nossa questão de fundo é pensar, por um lado, como se dá o processo de citação, destacabilidade e aforização do texto imagético na mídia impressa e digital e, por outro, em que medida esse trabalho de recorte do imagético interfere na interpretação do acontecimento histórico, fornecendo ao leitor uma espécie de percurso deôntico de interpretação. • PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Texto imagético. Citação. Destacabilidade. Aforização. * UFSCar – Universidade Federal de São Carlos. Centro de Educação e Ciências Humanas. São Carlos – SP – Brasil. 13565-905 - [email protected] ** Bolsista Fapesp. Doutorando em Línguística. UFSCar – Universidade Federal de São Carlos - Pós-Graduação em Linguística. São Carlos – SP – Brasil.13565-905 – [email protected]

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    CITAO, DESTACABILIDADE E AFORIZAO NO TEXTO IMAGTICO: POSSIBILIDADES?

    Roberto Leiser BARONAS*

    Samuel PONSONI**

    Que pode a cmara fotogrfica? No pode nada. Conta s o que viu. No pode mudar o que viu. No tem responsabilidade no que

    viu. A cmara, entretanto, Ajuda a ver e rever, a multi-ver O real nu, cru, triste, sujo. Desvenda, espalha, universaliza. A imagem

    que ela captou e distribui. Obriga a sentir. A, criticamente, julgar. A querer bem ou a protestar. A desejar mudana.

    Carlos Drummond de Andrade (2012)

    RESUMO: Neste texto, realizamos uma discusso de fundo epistemolgico, procurando compreender como a mdia d a ler determinados acontecimentos histricos da poltica brasileira por meio de textos imagticos. Como corpora, elegemos fotografias de atores polticos que circularam no jornal Folha de S. Paulo, durante o segundo turno das eleies presidenciais brasileiras de 2010. Nossa discusso est fortemente assentada nos trabalhos de Dominique Maingueneau acerca de citao, destacabilidade e aforizao. Nesses trabalhos, o terico prope uma densa discusso sobre a circulao dos textos verbais em nossa sociedade, isto , sua reflexo busca saber como certos textos circulam inteiros, em fragmentos, adaptados e por que, de um texto integral, frequentemente circulam apenas partes finais, comeos, pequenas frases. Dessa discusso empreendida, tentamos tirar algumas consequncias tericas a partir da anlise de textos que mobilizam em sua constituio no apenas recursos verbais, mas, principalmente, recursos de natureza imagtica. Nossa questo de fundo pensar, por um lado, como se d o processo de citao, destacabilidade e aforizao do texto imagtico na mdia impressa e digital e, por outro, em que medida esse trabalho de recorte do imagtico interfere na interpretao do acontecimento histrico, fornecendo ao leitor uma espcie de percurso dentico de interpretao.

    PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Texto imagtico. Citao. Destacabilidade. Aforizao.

    * UFSCar Universidade Federal de So Carlos. Centro de Educao e Cincias Humanas. So Carlos SP Brasil. 13565-905 - [email protected]

    ** Bolsista Fapesp. Doutorando em Lngustica. UFSCar Universidade Federal de So Carlos - Ps-Graduao em Lingustica. So Carlos SP Brasil.13565-905 [email protected]

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    Primeiras palavras

    A Anlise de Discurso de orientao francesa tem se notabilizado ao longo de suas mais de quatro dcadas de existncia, principalmente no interior da cincia das humanidades, como um poderoso dispositivo de leitura fundado sobre uma teoria do discurso1. Na sua fase de constituio, na geografia francesa do final dos anos sessenta do sculo passado2, privilegiou o discurso poltico. Depois, no final dos anos setenta e incio dos anos oitenta, reconhecendo que no se pode compreender o discurso sem se levar em considerao os traos do interdiscurso, em que a presena/ausncia e a irrupo do Outro discursivo so marcadamente constitutivas da fundamentao dos discursos e que os instam a dizer, passou a tomar como objeto de leitura distintas materialidades discursivas. Atualmente, por conta mesmo de uma mudana no regime das materialidades dos discursos3, a Anlise de Discurso passou a privilegiar tambm a leitura de objetos multissemiticos. justamente a leitura discursiva de objetos multissemiticos que realizamos neste texto. Cumpre dizer que essa leitura est fortemente ancorada nas proposies de Dominique Maingueneau (2006a, 2006b, 2010, 2012b) acerca da citao, da destacabilidade e da aforizao.

    preciso considerar tambm que o autor supramencionado, ao elaborar tais categorias conceituais, no o fez a partir da anlise de corpora multissemiticos. Suas reflexes irromperam a partir da anlise de objetos eminentemente verbais, tais como slogans, provrbios, mximas, adgios jurdicos, frmulas, ttulos de artigos da imprensa, interttulos, etc. Em outros termos, nos apoiaremos nas propostas de Dominique Maingueneau para tratar discursivamente de fotografias de atores polticos que circularam no jornal Folha de S. Paulo, durante o segundo turno das eleies presidenciais brasileiras de 2010. Todavia, para a empresa deste texto, existe a necessidade de um deslocamento por conta do prprio objeto pretenso anlise. Portanto,

    1 Uma das caractersticas mais marcantes da Anlise do Discurso a de que seus pressupostos tericos, bem como seus procedimentos de anlise, esto o tempo todo sendo revistos.

    2 A Anlise do Discurso irrompe na geografia francesa em 1969, com a publicao do livro Analyse Automatique du Discours AAD-69. Esse livro, segundo Niels Helsloot e Tony Hak (2000, p.15), [...] sappuie sur une critique des formes traditionnelles danalyse de contenu et danalyse de texte. Ces analyses prsupposent un sujet (lanalyste ou les codeurs ) apte lire le sens dun texte. Pcheux veut justement viter de sen remettre au sujet lecteur puisquil en rsulte invitablement une lecture idologique. On doit cependant reconnatre que les analystes de contenu se proccupaient eux aussi du rle de lintuition dans lanalyse.

    3 No entendimento de Jean-Jacques Courtine (1999, p.12), [...] no se faz a mesma Anlise do Discurso poltico, quando a comunicao poltica consiste em comcios reunindo uma multido em torno de um orador e quando toma a forma de talk-shows televisivos aos quais cada um assiste em casa. Tambm no se faz a mesma Anlise do Discurso independentemente dos preconceitos, das compartimentalizaes sociais e ideolgicas, das polmicas antigas ou recentes; tudo isso exerce suas restries sobre o discurso das cincias humanas, na escolha de seus temas, na definio dos objetivos, na produo de recortes formais [e na (re)criao de categorias conceituais].

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    nosso propsito tentar deslocar epistemologicamente as categorias de citao, de destacabilidade e de aforizao para dar conta de objetos distintos queles que Maingueneau frequentou. Esse movimento, como dissemos em linhas anteriores, algo que se coaduna com o prprio esprito terico da Anlise do Discurso.

    Tratamento de corpus multissemitico no arcabouo terico-metodolgico de Dominique Maingueneau

    Tratar discursivamente de objetos multissemiticos e/ou estritamente imagticos no se constitui como algo necessariamente estranho ao arcabouo terico proposto por Dominique Maingueneau. Em Gnese dos Discursos (2005), uma de suas primeiras incurses epistemolgicas de flego no domnio do discurso, o autor francs, com base na anlise dos discursos religiosos das doutrinas jansenista e humanistas devotos, postula, de um lado, a existncia de uma semntica global que rege os mltiplos planos do discurso e, de outro lado, entende que esses planos discursivos devem ser tratados enquanto prticas discursivas, visto que, independentemente do domnio semitico no qual se inscrevem, no esto livres da circunscrio, coero de uma determinada Formao Discursiva (adiante, algumas vezes, FD). Para tracejar sua hiptese, o linguista francs realiza uma vigorosa anlise dos quadros Peregrinos de Emas e Ceia de Emas, dos pintores Ticiano e Philippe de Champaigne, respectivamente. Ambas as obras derivam sua representao da mesma passagem bblica, qual seja, a passagem de Jesus Cristo em Emas.

    Figura 1 Peregrinos de Emas, de Ticiano, 1535

    Fonte: Louvre Paris (2011).

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    Figura 2 A Ceia de Emas, de Philippe de Champaigne, 1636

    Fonte: Louvre Paris (2011).

    O primeiro quadro de autoria do pintor italiano renascentista Ticiano, datado provavelmente de 1535, compreendido por Maingueneau como pertencente ao universo semntico dos humanistas devotos. O segundo, por seu turno, pintado, a partir do primeiro, por Philippe de Champaigne, provavelmente em 1636, portanto mais de um sculo depois, pertence, no entendimento do terico francs, ao universo semntico jansenista. Para formular tais hipteses de pertencimento discursivo, Maingueneau, com base na compreenso de que tais quadros sofrem, por meio das FDs que os circunscrevem, as mesmas restries de sentido que outras produes verbais, descreve/interpreta/compreende minuciosamente o funcionamento discursivo dos elementos icnicos-discursivos presentes nas duas telas. Nesse sentido, o linguista procurou, primeiramente, definir a estrutura do sistema semntico de composio de ambas as obras.

    Ele conclui, ento, ainda sob essa base de reflexo, que a obra jansenista teria um intuito pedaggico e estritamente instrutivo para os homens, retratando, assim, as passagens dos textos bblicos tal como elas foram efetivamente engendradas. Em contrapartida, nas pinturas do humanismo devoto, existem elementos composicionais alinhavados mistura entre o divino e o mundano diferindo em grande medida das descries bblica , com diversos planos e paisagens, embora respeitando hierarquias, tanto social quanto religiosa. Com efeito, a anlise empreendida por Maingueneau busca satisfazer a dois objetivos: determinar se os espaos discursivos criados para enunciados estritamente verbais podem e/

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    ou so pertinentes tambm para outros textos4, num sentido mais amplo que Maingueneau descreve, como, por exemplo, as pinturas em questo, e se as obras so convergentes e conexas com as regras de interincompreenso, mobilizadas como a mecnica discursiva operacional pelas quais as restries e/ou manifestaes interdiscursivas decantam no dizvel dos discursos, em suas FDs especficas. Ou seja, as restries semnticas dos jansenistas teriam traduzido na representao pictrica, sob suas prprias categorias interpretativas, as identidades no aceitveis que recobrem os sentidos do discurso Outro, no caso o Outro de sua FD, qual seja, o discurso humanista devoto. Ento, a existncia de elementos mundanos, a presena de no cristos, a reluzente luminosidade contribuindo para ressaltar tanto a verticalidade quanto a horizontalidade do quadro, a colocao de smbolos no espao arquitetnico, os diversos objetos sobre a mesa, os animais, enfim, toda identificao semntica ligada a certo trao semntico de /mistura/ faz existir uma incompatibilidade entre as obras do humanismo devoto e as do jansenismo, tanto nos enunciados estritamente verbais como em outros textos, materializados em outros suportes semiticos, tais como as pinturas, as msicas, as ilustraes et cetera, que podem ser de ordem verbo-visual ou visual. Portanto, a Formao Discursiva do jansenismo no permitiria retratar elementos fora do alcance dos enunciados bblicos, sobretudo em se tratando de retirar o foco da imagem de Cristo manuseando a hstia algo da ordem semntica da /concentrao/ em torno do Messias ou, ainda, que fosse possvel misturar elementos e concorrer com Cristo no mesmo acontecimento, deixando subentendidas outras interpretaes e refraes de sentido fora da figura messinica. Ao existir essa imposio da centralidade em torno do divino, regulada, por exemplo, em marcas circulares presente no quadro jansenista, cria-se um caminho de orientao de sentido a seguir, excluindo, em grande parte, para o fiel doutrina, outras possibilidades de olhares significantes. No quadro de Ticiano, entretanto, tributado prtica discursiva do humanismo devoto, embora existam certas hierarquias e concentraes nas aes de Cristo, possvel fazer outras abordagens de interpretao, at pela mistura e presena de muitos elementos passveis de anlise fora do eixo temtico acerca do protagonismo do messias.

    Desse modo, para Maingueneau um dos principais traos semnticos do quadro humanista devoto o da /mistura/, em que:

    misturam-se mundano e divino; mesmo que os olhares estejam dispersos, eles convergem para o Cristo, este a figura em posio central (mas no concentrada), mantendo, assim, coesas as

    4 Maingueneau, em Gnese do Discurso, entende texto em um sentido mais amplo, tal como [...] aos diversos tipos de produes semiticas que pertencem a uma prtica discursiva. (MAINGUENEAU, 2005, p.146). E enunciado quando se trata de produes estritamente lingusticas.

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    hierarquias social e espiritual, i.e.: serviais em p versus hspedes sentados; cristos versus no cristos;

    a pintura est dividida em planos: o inferior com os animais, o de cima com os homens, o de fundo com o mundo celeste; alm disso, a pintura projeta-se tanto nas linhas horizontais quanto nas verticais, estando reluzente todo o quadro, ou seja, trata-se de um quadro colorido e iluminado como um todo;

    somente Cristo e o discpulo que faz a orao esto com as cabeas no plano do quadro em que aparece o cu, mas, sobretudo, o Messias, que, alm de estar com a cabea no plano celeste, tambm visto prximo base da coluna, sendo esta a marca de ligao cu-terra e condutora do plano terreno ao plano celeste;

    existem vrios objetos sobre a mesa, alm da presena de personagens e animais que a passagem bblica no menciona.

    J para a pintura dos jansenistas um dos principais traos semnticos o da /concentrao/, em que:

    a disposio centralizadora da temtica no permite que haja a disperso dos olhares para fora da figura da hstia ou do ato da consagrao feita por Cristo. Alm disso, as cores claras e escuras tornam apenas o Messias iluminado, em outras palavras, apenas o divino, e parcialmente o cristo que comunga, nada mais, para no se retirar a concentrao do centro messinico, bem como para se atribuir ao gesto do Cristo status de grande importncia;

    a mesa em forma circular a circularidade uma forma-chave de acabamento, de concentrao , a luz que circunda a cabea de Cristo e a hstia fundem-se numa nica imagem devido ao contraste escuro-claro do plano de fundo da pintura. Dessa forma, qualquer elemento fora dessa circularidade verdadeira torna-se secundrio, apagado, no presente na luz divina, assim como possvel aludir, nesse gesto interpretativo, trade crucial da base crist;

    sentados, esto apenas os cristos, ficando a no crist no caso, a servial na penumbra. Nota-se tambm a no presena de animais, alm de poucos objetos sobre a mesa;

    no h outros planos em destaque, somente o plano divino bastante enaltecido pela centralidade da luz sobre a cabea de Cristo e pela brancura da mesa, que redonda.

    Sendo assim, na anlise intersemitica, preciso levar em considerao as restries discursivas dentro de cada FD, o que ir propiciar a apreenso da semntica global regente e gestora dos textos, em qualquer suporte semitico, bem como aquilo que pode e deve ser dito e correspondido entre tais manifestaes textuais. Portanto, a partir da obra de Ticiano, Maingueneau nos faz perceber a dimenso dialgica da discursividade presente na obra de Philippe de Champaigne e o funcionamento do espao discursivo jansenista por meio da interincompreenso, filtrando, em simulacros, o discurso do humanismo

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    devoto. Dito de outro modo, existe a transposio de significados entre distintas Formaes Discursivas, mas no de qualquer maneira, isto , ela ser marcada pelas restries que identificam este ou aquele discurso dentro das prticas discursivas, empreendidas em toda sua economia de expresso.

    Dessa discusso, precipita-nos um questionamento: possvel expandir a anlise intersemitica para o tratamento de corpora distintos queles que Maingueneau trabalhou? Para tentar responder a essa questo, mobilizamos duas fotografias que foram publicadas recentemente em diversos jornais do exterior, reproduzidas por jornais brasileiros e que se referem ao acontecimento histrico: a invaso americana ao esconderijo de Osama Bin Laden no Paquisto.

    Figura 3 Fotografia veiculada por The Atlantic

    Fonte: The Atlantic, 9 maio 2011.

    Figura 4: Fotografia veiculada por Der Tzitung

    Fonte: Der Tzitung, 10 maio 2011.

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    A primeira fotografia foi publicada inicialmente no site do jornal americano The Atlantic, em 9 de maio de 2011. J a segunda, (re)produo da primeira, foi publicada em 10 de maio de 2011, no jornal impresso israelense Der Tzitung (O tempo). Este ltimo jornal apagou da fotografia, inicialmente publicada no The Atlantic, tanto Hillary Clinton quanto Audrey Tomasen, as nicas mulheres presentes na Sala de Guerra da Casa Branca, quando da invaso ao esconderijo de Bin Laden. Para os analistas norte-americanos, tal apagamento deveu-se ao fato de que, no contexto israelense, a presena de mulheres em posio de destaque pode ser sexualmente sugestiva. Numa leitura preliminar dessas duas fotografias, poderamos dizer que a proposta de Maingueneau acerca da anlise intersemitica d conta de compreender o funcionamento discursivo de tais objetos, pois as restries semnticas dos israelitas traduzem, sob suas prprias categorias interpretativas, as identidades no aceitveis que recobrem os sentidos do discurso Outro, no caso seu Outro, qual seja, o discurso liberal e democrtico, amplamente alardeado pelos americanos, de igualdade entre os sexos. Assim, a presena de mulheres em posio de destaque, alm de toda identificao semntica ligada igualdade entre sexos, faz existir uma incompatibilidade entre as fotografias do site americano e do jornal israelense, o que justificaria o apagamento das duas nicas mulheres presentes na primeira fotografia. A Formao Discursiva na qual o jornal israelense est inscrito no permitiria retratar elementos fora do alcance dos enunciados socialmente vlidos para os prprios israelitas. No entanto, preciso considerar que, no caso em questo, no se trata apenas da traduo do discurso do Outro (americano) pelas categorias do discurso. Mesmo (israelita), com sua relao com esse Outro se dando sempre sob a forma do simulacro que dele construdo, a produzir, portanto, uma interincompreenso regrada entre discursos. Nesse acontecimento, trata-se, na verdade, de um caso exemplar de aforizao, uma vez que o suporte miditico israelense fez um destaque/apagamento da presena feminina na (re)produo da fotografia que deu a circular. Em outros termos, trata-se no de um caso de interincompreenso, como na traduo regrada por filtros do simulacro que Champaigne faz de Ticiano, mas de um caso de compreenso regrada em que a (re)produo da fotografia pelo jornal israelense apaga/silencia o que se apresenta como incompatvel sua Formao Discursiva. Em sintetizando esse exerccio terico-analtico, diramos que anlise intersemitica parece muito produtiva para tratar de objetos imagticos ou multimodais em que o dilogo interdiscursivo se d sob a forma de simulacro. Todavia, quando esse dilogo se apresenta como aforizao, como executar terica e metodologicamente a anlise?

    Julia Scamparini

    Julia Scamparini

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    Citao, destacabilidade e aforizao no arcabouo terico-metodolgico de Dominique Maingueneau

    Em Maingueneau (2006a, 2006b, 2010, 2012b), a problemtica da citao tratada de forma bastante diferente tanto da visada bakhtiniana5 quanto de Authier-Revuz, pois tratar de citao, na teoria de Maingueneau, implica notar tambm a questo da destacabilidade de enunciados. Isto , o destacamento dos enunciados no se d somente a partir das sequncias destacadas, mas sim a partir de certas condies necessrias e suficientes que permitem que enunciados sejam destacveis.

    Ainda no entendimento de Dominique Maingueneau (2010), poucas pessoas atualmente contestariam a ideia de que o texto constitui em uma das principais realidades empricas em que se debrua o linguista: unidades como a frase ou a palavra so muitas vezes retiradas de textos. O texto , com efeito, no entendimento do pesquisador francs, a contraparte do gnero do discurso, que o quadro de toda a comunicao pensvel. Maingueneau mobiliza o termo gnero do discurso para atividades sociolinguageiras como registro de nascimento, debate televisivo, sermes, entre outros.

    Todavia, alguns problemas se pem quando preciso tratar de enunciados curtos que se apresentam fora do texto, geralmente constitudos de uma nica frase. Dominique Maingueneau chama essas pequenas frases de enunciados destacados, sendo eles de tipos muito diversos: slogans, mximas, provrbios, ttulos de artigos da imprensa, interttulos, citaes clebres etc. Para o estudioso francs, devem-se distinguir duas classes bem diferentes de destacamentos: a) os constitutivos: trata-se do caso em particular das frmulas (provrbios, slogans, divisas) que, por sua prpria natureza, so independentes de um texto particular; b) os que resultam da extrao de um fragmento de texto: neste caso, so os que se encontram em uma lgica de citao.

    Essa extrao no se exerce de maneira indiferenciada sobre todos os constituintes de um texto, pois, frequentemente, o enunciador sobreassevera alguns de seus fragmentos e os apresenta como destacveis . A sobreasseverao uma modulao de enunciao que habilita formalmente

    5 Muito resumidamente e sem fazer a justia terica que ambos os autores merecem, diramos que a problemtica do filsofo da linguagem Mikhail Bakthin se inscreve na questo da aproximao e alteridade de vozes outras na constituio dos discursos dos sujeitos ou, ainda, o papel desse outro e seus discursos na inter-relao entre os sujeitos por meio da linguagem. De forma semelhante, a abordagem discursiva de Jacqueline Authier-Revuz, em muito tributria a Bakhtin e a Lacan, trata da compreenso do Outro scio-histrico corporificado num complexo interdiscursivo, que emerge ou se apaga nos fios discursivos, contribuindo tambm para as identificaes e constituies dos sujeitos.

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    um fragmento como candidato a uma destextualizao. Trata-se de uma operao de colocao em relevo por relao ao desenvolvimento textual que se efetua com a ajuda de marcadores diversos, por exemplo: de ordem aspectual (genericidade), tipogrfica (posio saliente em uma unidade textual), prosdica (insistncia), sinttica (construo de uma forma pregnante), semntica (recurso aos tropos), lexical (utilizao de conectores de reformulao) etc.

    Com isso, as divergncias entre o enunciado fonte e o enunciado destacado so reveladoras de um estatuto pragmtico especfico para os enunciados destacados. Estes ltimos revelam, com efeito, um regime de enunciao que Maingueneau prope chamar enunciao aforizante. Entre uma aforizao e um texto no existe uma diferena de tamanho, de forma, de sistematicidade lingustica, mas uma diferena de ordem enunciativa. O esquema a seguir exemplifica as duas ordens discursivas propostas pelo autor:

    Figura 5 Esquema vetorial das ordens discursivas

    Fonte: Maingueneau (2010, p.13).

    Para Maingueneau, a enunciao se organiza em duas ordens do enuncivel: a enunciao textualizante e a enunciao aforizante. Esta ltima, por sua vez, se organiza em enunciao aforizante destacada por natureza e enunciao aforizante destacada de um texto. No seu entendimento, por meio da aforizao, o locutor se coloca alm dos limites especficos de um determinado gnero do discurso:

    6 Maingueneau (2010, p.13)

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    O aforizador assume o ethos do locutor que est no alto, do indivduo autorizado, em contato com uma Fonte transcendente. Ele considerado como aquele que enuncia a sua verdade, que prescinde da negociao, que exprime uma totalidade vivida: seja uma doutrina ou uma concepo vaga da existncia. Se a aforizao implica um locutor que se situa como Sujeito de pleno direito, reciprocamente um Sujeito se manifesta como tal por sua capacidade de aforizar. Trata-se fundamentalmente de fazer coincidir sujeito da enunciao e Sujeito no sentido jurdico e moral: algum que se coloca como responsvel, afirmando valores e princpios perante o mundo, dirige-se a uma comunidade que est alm dos locutores empricos que so seus destinatrios. (MAINGUENEAU, 2010, p.14-15, grifo do autor).

    Sendo assim, para Maingueneau (2010), este o ponto central do problema o aforizador no um locutor, o suporte da enunciao, mas uma consequncia do destacamento, isto , no se trata apenas de outra instncia enunciativa, distinta tanto do locutor/ alocutrio quanto do enunciador/enunciatrio.7 Desse modo, quando se extrai um fragmento de texto para fazer uma aforizao, um ttulo de uma matria na imprensa, por exemplo, converte-se ipso facto seu locutor original em aforizador.

    No intuito de deixar um pouco menos abstratos os postulados acerca da citao, da destacabilidade e da aforizao, tomemos como exemplo a recente polmica acerca do livro didtico Por uma vida melhor, de autoria de Heloisa Ramos (2009), destinado a alunos da Educao de Jovens e Adultos (EJA), no que se referia ao contedo de Lngua Portuguesa. Aqui, vamos nos deter ao trabalho de destaque realizado pela mdia sobre fragmentos do livro didtico, mais especificamente o que foi realizado pelo Jornal Nacional da Rede Globo de Televiso em reportagem exibida em maio de 2011. A propsito, fizemos tal opo pelo fato de o JN ter se constitudo numa espcie de representao metonmica do que circulou na grande mdia brasileira acerca desse acontecimento.

    7 A argumentao de Maingueneau, no que tange a esses termos, parece dialogar com as teorizaes elaboradas por Oswald Ducrot acerca das instncias da enunciao. Bastante resumido, o que se torna injusto com a teoria, este terico props uma distino entre locutor L, locutor lambda para analisar a trada sujeito falante/locutor/enunciador e seus respectivos correspondentes no processo de comunicao, quais sejam, sujeito ouvinte/alocutrio/enunciatrio. Com isso, Ducrot buscou analisar os traos (alguns diriam vozes) que se distinguem nos enunciados que compem a enunciao de um discurso. Obviamente, Maingueneau prope o deslocamento desses conceitos ducrotianos para pensar na problemtica da enunciao aforizante que, para este terico, ultrapassaria tais instncias.

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    Figura 6: Imagem que circulou no Jornal Nacional para representar o livro Por uma vida melhor8

    Fonte: Jornal Nacional, maio 2011.

    Nota-se que o enunciador jornalista faz o trabalho de destaque em seis enunciados que, retirados de seu contexto e contexto mais amplo, alm de terem sido modificados em relao ao livro, so postos a circular em outro lugar, em outro tempo, para outros interlocutores. Vejamos:

    1: Os livro ilustrado mais interessante esto emprestado. (Igual ao livro - p.14)

    2: Na variedade popular, basta que (os) esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. (Diferente do livro - p.15)

    3: A lngua portuguesa admite essa construo (Criado pela reportagem)

    4: Mas eu posso falar os livro? (Igual ao livro - p.15)

    5: Claro que pode. (Igual ao livro - p.15)

    6: Dependendo da situao, voc (a pessoa) corre o risco de ser vtima de preconceito lingustico (Diferente do livro - p.15).

    Esses enunciados figuraram, em primeiro plano, em um livro virtual criado computacionalmente, em que o restante do texto apagado, permanecendo apenas os elementos destacados. Dessa forma, constitui-se um trabalho de aforizao, pois nem todos os leitores do JN tero ou tiveram acesso prvio ao contedo total do livro. Mais ainda, o que est destacado nos itens 2, 3 e 6, respectivamente, no existe ou no est integralmente no material didtico Por uma vida melhor tal como citado. Os enunciados no esto l, como comprova uma busca simples pelo texto do livro. Ademais, em 6, o pronome pessoal voc

    8 Esta imagem foi retirada da reportagem exibida pelo Jornal Nacional. A reportagem completa, aos interessados, encontra-se disponvel em: . Acesso em: 29 nov. 2011.

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    substitudo por a pessoa; neste caso, retira-se qualquer marca ditica que aproxime do trabalho textual completo, algo a parecer estritamente referido a um dado termo anterior, apresentando-se como uma retomada ou substituio de um termo j existente. Com efeito, esse movimento de trajeto interpretativo parece inferir que o livro generaliza o uso de uma suposta forma errada do portugus, autorizando essa competncia especfica no mais um determinado contexto, mas a todas as pessoas que recebem tal texto, em indistintos tempos e contextos. Em 3, no h em nenhum lugar do captulo do livro em si a afirmao de que a lngua portuguesa admite tal construo, o que marca ainda mais o ato de aforizao na edio jornalstica.

    Assim, esse trajeto interpretativo demonstra que no h apenas o trabalho de citao, como no caso dos outros exemplos, em que os enunciados citados so colocados a circular em outros espaos e podem ganhar alguma marca de distanciamento, como, por exemplo, aspas, uma orao intercalada introduzida por um verbo dicendi mais que. H, sim, nesse caso do livro Por uma vida melhor, o trabalho de aforizao que corrobora o percurso dentico interpretativo numa dada direo de sentido, qual seja, jogar as asseveraes do posicionamento do editorial jornalstico para a responsabilidade da autoria do livro e de quem o mantm em seus auspcios, no caso as prtica discursivas que sustentam uma pedagogia de ensino de lngua mais ampla, mais plural, capaz de abarcar um espectro maior de alunos e lhes mostrar que as variantes de lngua que utilizam no so merecedoras de preconceito, mas sim de respeito, valorizao e afirmao.

    Isso pode ser dito tambm em outros casos de citao, quando o enunciador marca seu distanciamento de alguma maneira, entretanto, no caso da aforizao, existe o apagamento de elementos para a compreenso real do acontecimento. Por seu turno, o enunciador jornalista se constitui num aforizador que se sobrepe tanto ao seu leitor quanto ao outro cuja fala recorta, mostrando uma imagem de si, do jornal, bem como um posicionamento a ser preenchido. Algo da ordem de um sujeito autorizado a realizar o trabalho de destaque da fala da outro. Trabalho este que realizado sob a validao da instituio miditica, no caso o JN, que estabelece valores para alm das interaes e das argumentaes. Trata-se de um trabalho de direcionamento de sentidos, de constituio de subjetividades em que, sem que se d conta, o leitor levado a aderir interpretao do enunciador jornalista e, por extenso, ao posicionamento do veculo miditico no qual esse jornalista est inscrito, qual seja, os que se prendem a valores mais conservadores, que destoam de prticas de ensino voltadas para as heterogeneidades subjetivas e para fenmenos mais sociais e reais na vida dos sujeitos estudantes por exemplo, as variantes dentro lnguas que, sem dvida, esto presentes nas inter-relaes sociais dadas por meio da linguagem verbal humana.

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    Citao, destacabilidade e aforizao no texto imagtico?

    A anlise do exemplo anteriormente arrolado deixa claro que a proposta de Dominique Maingueneau bastante pertinente para se pensar o trabalho de destaque de pequenos enunciados verbais, sobretudo os destaques realizados pelos mais diversos suportes miditicos. Todavia, seria possvel expandir epistemologicamente tal proposta com o objetivo de dar conta de objetos multimodais? Tomemos como exemplo duas fotografias publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo, em 12 de outubro de 2010. As duas fotografias referem-se ao mesmo acontecimento histrico: visita Baslica de Aparecida, em Aparecida do Norte, no estado de So Paulo, da ento candidata presidncia da Repblica, Dilma Rousseff, no dia 12 de outubro de 2010, feriado religioso em que se comemora o dia da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.

    Figura 7: Fotografias veiculadas pela Folha de S. Paulo no dia de Nossa Senhora de Aparecida, durante a celebrao em Aparecida, SP.

    Fonte: Folha de S. Paulo, 12 out. 2010.

    A primeira fotografia foi publicada como manchete de capa da edio do dia 12 de outubro de 2010 do jornal Folha de S. Paulo. Logo abaixo da fotografia est escrito: Sem comunho Dilma assiste a (sic) missa em Aparecida (SP) ao lado de Gabriel Chalita (PSB atualmente PMDB); ela no comungou e deu a entender que a doena a reaproximou de Deus. J a segunda foi publicada no mesmo dia na pgina A 34. Ambas focalizam a ento candidata presidncia da Repblica pelo Partido dos Trabalhadores PT Dilma Rousseff. Essa focalizao, no entanto, realizada em dois momentos distintos. Num primeiro momento (a primeira fotografia da esquerda para direita), aparecem as pessoas que esto ao lado de Dilma persignando-se, e esta no repetindo o mesmo gesto dos outros. No segundo momento (a segunda fotografia da esquerda para direita), mostra-se justamente o contrrio, ou seja, Dilma benzendo-se e as pessoas que esto ao seu

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    lado no repetindo tal gesto. Esse descompasso, no tocante ao ato de persignar-se pela ento candidata, evidencia certo descompasso implcito, no que tange inscrio no catolicismo da postulante ao cargo de presidente da repblica, e deixa explcito que ela supostamente no conhece a liturgia da missa. Ou, mais discursivamente falando, traz tona uma memria discursiva que foi sendo gestada ao longo da campanha presidencial de 2010, que significa(ou) Dilma como adepta do atesmo. Tal memria comeou a ser gestada quando da manifestao da petista acerca da questo do aborto. poca, disse Dilma em entrevista: Um governo no tem de ser contra ou a favor do aborto; ele tem de ser a favor de uma poltica pblica. A maneira como esse enunciado foi dado a ler pela mdia gerou a constituio de uma memria sobre o atesmo de Dilma, o qual reiterado no destaque feito pelo enunciador jornalista ao flagrar a ento candidata errando ao benzer-se na missa em homenagem a Nossa Senhora Aparecida. Essa memria atualizada a partir do prprio passado da atual presidente que, durante a Ditadura Militar deflagrada a partir de 1964, militou em grupos de esquerda, vinculados aos postulados comunistas. Historicamente, existe uma no unio entre os ideais comunistas calcados no materialismo histrico, portanto no real dos processos histricos das relaes sociais e as doutrinas e ideais religiosos. Dessa forma, surge desse descompasso certa desconfiana em relao s prticas polticas a serem adotadas, caso a candidata poca fosse eleita, principalmente no que tangenciava as questes religiosas imbricadas no trato poltico, como, por exemplo, a legalizao do aborto. Ademais, como afirmam Kress e Van Leeuwen (2006, p.365-366):

    [...] il y a une diffrence fondamentale entre les images dont les participants reprsents regardent directement les yeux de celui qui regarde, et les images o ce nest pas le cas. Quand les participants representes regardent le spectateur, des vecteurs, forms par les trajectoires du regard des participants mettent ces participants en relation avec lui. Le contact est tabli, mme si ce nest que sur un plan imaginaire () Le regard des participants (et leurs gestes, sil y en a) exige quelque chose du spectateur, exige que le spectateur entre dans une sorte de relation imaginaire avec lui ou elle.

    Tais fotografias, embora produzidas em momentos diferentes e, apesar de o autor representado no focalizar diretamente os leitores, deixam evidente o trabalho de aforizao do enunciador jornalista, posto que ele flagra/destaca/apreende por meio de suas lentes inscritas na Formao Discursiva do jornal que, nessa matria, (pre)tendia a dissimular um suposto descompasso na liturgia religiosa e por meio da aforizao das fotografias o prprio momento em que elementos j-ditos, significados em outro tempo- -espao, independentemente, encaixando-se nos discursos sobre o atesmo de Dilma e inscrevendo-os no intradiscurso cristo. Esse alhures do atesmo de

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    Dilma Rousseff reiterado no enunciado verbal logo abaixo da fotografia: Sem comunho Dilma assiste a (sic) missa em Aparecida (SP) ao lado de Gabriel Chalita (PSB); ela no comungou e deu a entender que a doena a reaproximou de Deus. No enunciado em questo, a nfase a ser recuperada de elementos pr-construdos, abrigados no espao interdiscursivo dessas prticas discursivas, dada, primeiro, pelo destaque conferido ao sintagma Sem comunho, grafado em caixa alta, em cor azul, portanto distinto, em cor e em diagramao, ao restante do enunciado e, segundo, pela escolha lexical da locuo verbal deu a entender e pelo vocbulo reaproximou. Assim, conforme assevera Maingueneau (2012a, p.38):

    [...] comme laphorisation, la photo du visage est le produit dun dtachement, qui limine tels ou tels lments du contexte (vtement, lieu, moment) que montrerait une photo de lensemble de la personne. Ces deux dtachements celui de laphorisation et celui de la photo du visage se renforcent lun lautre : le visage est celui du Subjectum, qui reste stable travers la variation, tandis que laphorisation, en ce quelle exprime ce Subjectum, dit ce qui est valide au-del de telle ou telle circonstance.

    Alm do mais, esse destaque, que amalgama texto verbal e visual, tem seus efeitos potencializados, visto que mostra o atesmo de uma candidata presidncia de uma Repblica, majoritariamente catlica, no santurio e dia destinado sua padroeira. Da mesma forma que a (re)produo da fotografia do jornal israelense, O tempo, em que Hilary Clinton e Audrey Tomasen so retiradas da histria, nas fotografias da Folha de S. Paulo no temos um caso de interincompreenso regrada, isto , um discurso segundo construdo a partir do simulacro do discurso primeiro. Temos, sim, em ambos os casos, uma compreenso regrada pelas restries semnticas de uma Formao Discursiva(FD). A diferena entre esses dois casos reside no fato de que, enquanto na (re)produo da fotografia do jornal israelense temos, em relao ao texto-fonte (fotografia do site do jornal americano The Atlantic), discursos produzidos a partir de saberes bastante distintos, recuperados das FDs em discrepncia no interdiscurso o que, por seu turno, implica a construo de acontecimentos discursivos tambm distintos , no caso das fotografias da Folha de S. Paulo temos o mesmo elemento de saber sustentando as diferentes fotografias, o que implica a reiterao de um mesmo acontecimento discursivo.

    (In)concluses preliminares

    Nosso objetivo neste texto foi o de tentar deslocar epistemologicamente as categorias de citao, destacabilidade e aforizao propostas por Dominique

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    Maingueneau (2006a, 2006b, 2010, 2012b), para dar conta de pequenos enunciados verbais, com o intuito de, com isso, tratar discursivamente de objetos multissemiticos, sobretudo os de natureza imagtica. Entendemos que as anlises empreendidas, embora pouco numerosas, autorizam tal deslocamento terico, visto que, assim como o trabalho de aforizao realizado pelo enunciador jornalista do JN, mostrado no caso da anlise do livro didtico de Lngua Portuguesa Por uma vida Melhor, que (re)construiu um percurso interpretativo dominante para os telespectadores, a saber, que o livro didtico ensina a falar errado a lngua portuguesa, corroborando uma lngua no padro, portanto uma lngua errada, o destaque do descompasso de Dilma Rousseff ao persignar-se tambm (re)construiu um percurso de leitura para os leitores do jornal, qual seja, que Dilma Rousseff adepta ao atesmo, portanto trabalhar a favor de polticas que no coadunam com a moral e com os princpios cristos.

    Portanto, cremos que, nos dois casos, as aforizaes realizadas pelos jornalistas, a partir das restries semnticas das Formaes Discursivas nas quais esto inscritos no material analisado, quais sejam, dissimular os acontecimentos em favor de um ponto de vista conservador em relao ao livro e de um ponto de vista tendencioso em relao a ento candidata Dilma constituem-se num percurso interpretativo dentico. Ou seja, no momento em que o JN destaca seis enunciados do livro didtico, silenciando todo o restante do texto e, tambm, no momento em que a Folha de S. Paulo destaca o suposto descompasso de Dilma Rousseff em relao realizao do sinal da cruz, silenciando todos os outros gestos realizados pela ento candidata durante a missa na Baslica de Aparecida, o leitor interpelado ideologicamente a um posicionamento de atribuir a esses gestos interpretativos um sentido que extrapola o seu sentido primeiro e a aderir a esse outro e nico percurso em alguma medida. Ao dizer de Maingueneau (2010, p.15), a interpretao assume a equao: [...] dizendo X, o locutor implica Y, onde Y um enunciado genrico de valor dentico. Sendo assim, reiterando, esse enunciado genrico de valor dentico, no caso da primeira aforizao, assume-se que [...] se trata de um livro didtico que ensina a falar errado o portugus. e, no caso da segunda, assume-se que [...] se trata de uma candidata adepta ao atesmo.

    Poderiam nos objetar dizendo que h fotos que tm uma ampla circulao nos mais variados suportes miditicos, que todos levam em conta e interpretam de maneira diferente, mas, a partir dessa constatao, afirmar que so aforizaes, como dizer que bom dia um chiste, porque, afinal, breve. Contra essa objeo nos posicionamos dizendo que, assim como o critrio para classificar determinado enunciado como um chiste no se resume sua brevidade, uma vez que provrbios, por exemplo, tambm so breves, mas nem por isso so chistes, a questo das fotografias em anlise so aforizaes, no somente pelo fato de circularem, mas pelo fato mesmo de interdiscursivamente entrarem em contato

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    com uma verdade gestada alhures, apresentando-se como inquestionvel, qual seja, a de que Dilma adepta do atesmo.

    As possveis interpretaes produzidas pelos leitores no so da mesma ordem e profundidade das que acompanham os textos literrios, filosficos ou religiosos, por exemplo. No entanto, trata-se de uma verdadeira atitude hermenutica, em que a exegese atual faz com que os leitores percorram um conjunto de trilhas interpretativas dadas previamente pelo enunciador jornalista. Ou seja, os leitores so mobilizados a interpretar o destaque, procurando (re)construir o percurso interpretativo desenhado pelo jornalista/jornal.

    BARONAS, R, L.; PONSONI, S. Quotation, detachment and aphorization in pictorial texts: possibilities? Alfa, So Paulo, v.57, n.2, p.413-431, 2013.

    ABSTRACT: In this article, we will undertake a discussion with an epistemological background and try to comprehend how the media offers to read certain historical events in Brazilian politics through pictorial texts. As corpora we elected political actors photographs that circulated in the newspaper Folha de S. Paulo during the second round of the 2010 Brazilian presidential elections. Our discussion is firmly based on Dominique Maingueneaus work (2006, 2008 and 2010) about quotation, detachment and aphorization. In these papers, the French theorist proposes a rich and refined discussion about the circulation of verbal texts in our society, that is, a discussion about how certain texts circulate as a whole, in fragments, adapted, etc. and why, from an integral text, often circulates only parts of it endings, beginnings, small phrases, etc. From this discussion, well try to take some analytical-theoretical consequences for the analysis of texts that mobilize in their constitution not only verbal resources, but mainly resources of pictorial nature. Our background question is to think, on the one hand, on how the process of citation, detachment and aphorization works in pictorial texts in printed and digital media, and, on the other hand, on how these fragments of pictorial texts interfere with the interpretation of the historical event, which means how they are put into narrative, providing the reader a kind deontic journey of interpretation.

    KEYWORDS: Discourse. Pictorial text. Quotation. Detachment. Aphorization.

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    Recebido em outubro de 2011

    Aprovado em novembro de 2012