Civilização de Trabalho Ou Civilização Do Lazer

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    CONCEITO DE TRABALHO no-servil, em Simone Weil, apia-se numa fi-losofia da liberdade resumida no seguinte trecho de Rflexions sur les causesde la libert et de loppression: a liberdade verdadeira no se define por uma

    relao entre desejo e satisfao, mas por uma relao entre pensamento e ao(O.L., 115).

    O livre cumprimento de qualquer obra, portanto, consistiria numa combi-nao de esforos consciente e metdica, tanto quanto o pode ser a combinaode nmeros pela qual se opera a soluo de um problema quando procede de umareflexo (O.L., 116). verdade que se trata de um ideal. No trabalho, porm,mais do que em qualquer outra atividade, possvel aproximar-se desse ideal, rea-lizar uma adequao cada vez mais perfeita entre pensamento e ao.

    Essa a razo pela qual, nos escritos de Simone Weil, o trabalho ocupa des-de os primeiros at os ltimos um lugar central. Por outro lado, na perspectivaespiritualista de Simone Weil, ponto essencial que o valor do trabalho est empermitir a libertao com relao imaginao, s paixes, ao retraimento do eu,em exigir a suspenso de qualquer perspectiva individualista. Mas a possibilidadede uma espiritualidade do trabalho vem da capacidade de realizar nele a unioperfeita entre a liberdade, identificada com a ao metdica, e a necessidade. Poisessa caracterstica nica, que pertence ao trabalho, impe-se a toda forma de pen-samento que procure acabar com a degradante diviso entre trabalho braal e tra-balho intelectual, o que, para Simone Weil, sempre constituir um fim absoluto.

    Marxismo e espiritualismo podem mergulhar a concepo do trabalho no-servil em atmosfera diversa, elucidar diferentemente a relao entre liberdade enecessidade, interpretar de outro modo a necessidade, apresentar a liberdade comoconhecimento da necessidade, conhecimento que permite domin-la, como sa-bor da verdadeira obedincia (E.L., 52), mas, de qualquer forma, o trabalho no-servil nunca deixar de constituir o fundamento de uma vida social bem ordena-da (E. col., Ides, 380). Seja ela chamada de socialismo ou de civilizao fundadana espiritualidade do trabalho, uma vida social bem ordenada s pode assentar-seno trabalho enquanto ele o nico domnio no qual possvel ser realizada aadequao perfeita do pensamento e da ao.

    Civilizao de trabalhoou civilizao do lazer?ROBERT CHENAVIER

    Atualidade do pensamentode Simone Weil

    O

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    Ao desenvolver a espiritualidade do trabalho, Simone Weil salientou que otrabalhador , por excelncia, aquele que pode ter acesso ao sobrenatural e receberdele a luz (cf. C.O. col. Ides, 361). O que falta, so os intermedirios (ib.)capazes de orient-lo para o sobrenatural. Ora, o trabalho possui todas as caracte-rsticas de um intermedirio, daquilo que Simone Weil chama de metaxu, ou seja,uma realidade temporal e social que permite alma abrir-se ao sobrenatural, ou aeste nela enraizar-se (1). , portanto, uma mesma pergunta que atravessa a obratoda: quais seriam as condies que tornariam possvel uma organizao social quetivesse como centro o trabalho no-servil?

    Estamos chegando principal dificuldade encontrada por Simone Weil (2):o surgimento de uma sociedade fundada sobre o trabalho no-servil impossvelsem a prvia dominao da classe operria na produo (uma vez que a constitui-o de uma classe dominante sempre necessria antes dos abalos socio-polticos aque se d o nome de revolues), mas a grande indstria no comporta a possibili-dade de tal dominao (por causa do aviltamento produzido pelo maquinismo eporque os trabalhadores, nessas condies, no passariam de simples peas de umaengrenagem).

    Seria absolutamente necessrio derrubar o taylorismo a fim de retornar, notrabalho, a uma relao verdadeira entre o pensamento e a ao, mas a grandeindstria no encerra elementos prprios que assegurem essa reviravolta. Tem deexistir uma correspondncia entre a perfeio das formas da vida social e o estadoda alma daqueles que participam dessas formas (assim como, inversamente, existeuma infeliz correlao entre as formas degradadas da vida social e o estado dopensamento dos homens). Como na obra de Plato, A repblica, o problema dacomunidade em Lenracinement o problema da alma, e as formas perfeitas ouimperfeitas das comunidades so avaliadas com relao maneira pela qual pos-sibilitam a satisfao das exigncias da alma, daquela alma social que o tema deLenracinement, medida em que a obra est destinada a fazer surgir uma espciede milagre: uma forma de vida social em que a coao no destruiria a coisadelicada e frgil que no deixa de ser um ambiente favorvel ao desenvolver daalma (E.H.P., 110).

    Em face da dificuldade da impossibilidade de encontrar na sociedade deseu tempo as condies necessrias para tornar real a possibilidade de um trabalhono-servil, parece mesmo que, por tipo de antecipao (a qual, no entanto, no uma utopia), Simone Weil acentuava o estudo da vida social partindo das exignciasda alma, deixando uma semente para o dia em que a realidade ofereceria as condi-es de satisfazer tais exigncias. Lenracinement tenta definir o que seria umacivilizao fundada na espiritualidade, mas, no momento em que Simone Weilescrevia sua obra, nunca havia sido to larga a brecha, to desesperadora tambm,entre as exigncias por ela formuladas e a realidade.

    Poderamos dizer que Simone Weil no percebia, na realidade de seu tempo,meios de superar tanto o taylorismo quanto o maquinismo. Tal afirmao seria ao

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    mesmo tempo verdadeira e falsa. De fato, se por um lado a racionalizao tomavaa forma do taylorismo, por outro, uma racionalizao paralela contribua para subs-tituir o trabalho vivo pela automatizao. Esse processo, j analisado por Marx,estava no centro das reflexes de alguns no-conformistas dos anos 30 (3), particu-larmente do grupo Lordre nouveau, cujas teses foram formuladas por Robert Arone Arnaud Dandieu em La rvolution ncessaire (Grasset, 1933) teses retomadaspor Daniel Rops em longo artigo intitulado Por um futuro humano, publicado nacoletnea Lavenir de la science (Plon, 1941). Constatando a tendncia do processode produo a eliminar o trabalho vivo, esse autores colocavam antecipadamenteas bases, digamos para simplificar, de uma civilizao do lazer, na qual o tempodisponvel e no o tempo de trabalho seria a medida da verdadeira riqueza.

    Simone Weil, que conhecia muito bem essas teorias, mostrou-se extrema-mente severa a respeito delas e criticou-lhes o contedo por duas vezes: em 1933(ou 1934), em fragmento indito (4) referente ao livro de Aron & Dandieu e, em1942, em artigo sobre Lavenir de la science, no qual atacava Daniel Rops (cf. S.,177 e ss.).

    Precisamente porque por duas vezes, separadas por oito ou nove anos, elaformulou as mesmas crticas que haveremos de nos perguntar qual constante desua filosofia impediu Simone Weil de considerar a nova racionalizao, ou seja, aautomatizao, uma eventual soluo para os problemas que encontrava. Em ou-tros termos, qual o aspecto do seu pensamento que resiste idia de uma civiliza-o no-fundada no trabalho?

    interessante notar que um texto de juventude um ensaio escrito nodecorrer do inverno de 1929-1930, e intitulado Fonctions morales de la profession (aser publicado no tomo I de Oeuvres compltes) j contm o princpio de todas ascrticas ulteriores. Vamos partir do exame dessa longa dissertao.

    Conseqncias da separaodo trabalho e da liberdade

    O modelo grego

    Separao da liberdade e da necessidade

    Pode-se ler no ensaio referido que a profisso constitui a soluo do conflitoentre o indivduo (com seus direitos abstratos, sua liberdade abstrata) e a socieda-de (puramente exterior e opressiva), conflito chamado por Simone Weil de dialticada adolescncia.

    De fato, para o adolescente, a sociedade aparece apenas como um regimeegpcio, um sistema de castas, uma mquina na qual os homens nada representamalm dos efeitos materiais por eles produzidos. A esse mecanismo o adolescenteope seu mundo interior, sua vida de puro jogo, jogo dos msculos e jogo dospensamentos (Fonctions morales de la profession).

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    Em suma, a oposio entre o Egito e a Grcia se reproduz para cada adoles-cente (ib.). O Egito o sistema de castas representativo da sociedade; a Grcia, omomento de liberdade interior pura em que cada um um fim para si mesmo epara os outros, em que se vivem a independncia e o lazer. A Grcia, de fato con-siderava o trabalho algo servil. As ocupaes dignas do homem eram a poltica, aeloqncia, os jogos, as artes, a geometria e a filosofia. O que Simone Weil censuranos gregos? O fato de terem conservado como imagem positiva do trabalho apenasa pura atividade; por exemplo, nesta definio do esporte: O atletismo a partedo trabalho que no regulada por um objeto (ib.).

    Em outros termos, a parte do trabalho que os gregos valorizavam era aatividade, na medida em que ela no tinha relao alguma com a necessidade,finalmente, na medida em que ela no era um trabalho mas seu exato oposto, olazer. A necessidade recaia inteiramente para o outro lado do trabalho, portanto,para o lado do escravo.

    Por que tal ciso entre liberdade e trabalho no mundo grego? Exatamenteporque desde que a atividade no mais regulada por um objeto e se encontraisolada da necessidade, o trabalho, por seu lado, apenas submisso necessidade,em forma servil. No sendo mais regulados por um objeto (particularmente o objetoda satisfao das exigncias bsicas) a atividade corporal e o esprito pensante (5)voltam-se exclusivamente para aquilo que tem seu fim em si mesmo o que Aristteleschamava de prxis (6) e deixam a atividade laboriosa a produo que tem seu fimfora da atividade em si mesma, ou seja, a poesis (7) para o escravo ou o arteso.

    Superao do modelo grego

    Poderamos resumir o esforo constante de Simone Weil dizendo que elaquis, por sua filosofia do trabalho, superar a oposio entre prxis e poesis. Por umlado, Simone Weil pe o agir (prxis) acima do produzir (poesis). O que deve sertomado por fim a dignidade do trabalho (da atividade) e no o valor (da coisaproduzida, como o caso na fbrica, na qual o produto mais valorizado do que aatividade, o que define propriamente a poesis). por sua relao com o homemque o executa que o trabalho manual deve se tornar o mais alto valor (O.L., 137).O fim da prxis o aperfeioamento do agente.

    Todavia, o valorizado um agir que exige motivaes que no sejamsubjetivas, mas impessoais (8). No , portanto, o trabalho vivo enquanto atividadesubjetiva que valorizado; o consentimento necessidade deve prevalecer sobre oprojeto do indivduo (9).

    A necessidade, porm, no exterior (como na poesis) atividade, pois aprpria atividade, quando metdica, deixa-se reduzir a um jogo de necessidades.Dessa forma, supera-se a oposio entre prxis e poesis. O indivduo pode dedicar-se a uma atividade cujo valor est no prprio agir (prxis) e no no produto, aomesmo tempo que insere seu agir numa ordem exterior. Atividade e necessidadeficam de tal forma unidas que a necessidade deixa de ser servil e a atividade vazia;

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    pois a atividade metdica do corpo e do pensamento, por um lado, e a ordem danecessidade sobre a qual opera essa atividade, por outro, esto em perfeito acordo.Uma vez que a necessidade deixa de ser exterior atividade, desaparece o perigo deela servilizar a atividade, a qual, por isso, j no tem motivo para fugir da necessida-de como de outro alienante que a subjuga, abandonando-se assim a um funciona-mento vazio, o da subjetividade entregue a si mesma. A atividade metdica penetraa necessidade, nela se inserindo e, com isso, de atividade vazia que era, passa a seratividade livre. A necessidade penetrada de atividade metdica pensante e corporalexige ento apenas o consentimento e no a submisso.

    Uma atividade sem necessidade no livre, mas vazia, uma necessidade nopenetrada de atividade metdica serviliza. Por isso, quando trabalho e lazer opem-se, cindidos em dois domnios antagnicos, a liberdade absurda e o trabalhoservil. esse, segundo Simone Weil, o modelo grego.

    Como definir ento o trabalhador livre? o corpo atleta e o esprito geometratomando por objeto a satisfao das exigncias bsicas (Fonctions morales de laprofession). Assim, o trabalho deixa de ser definido do nico ponto de vista daheteronomia, como simples conseqncia das exigncias bsicas, simples depen-dncia do homem; tampouco definido apenas pela atividade: O trabalho umarelao entre a atividade e as exigncias bsicas (ib.).

    O modelo grego invertido

    As perspectivas do modelo grego podem ser invertidas como, precisamente,Simone Weil o faz em Rflexions sur les causes de la liberte: Mesmo as atividadesaparentemente mais livres, como cincia, arte e esporte, s tm valor na medidaem que imitam a exatido, o rigor, o escrpulo prprios dos trabalhos e at osexageram. Sem o modelo que lhes fornecem () o lavrador, o ferreiro, o marinheiro,que trabalham com esmero, essas atividades se perderiam na pura arbitrariedade(O.L., 114).

    Por que essa inverso de perspectiva? Porque so os obstculos com osquais a pessoa se defronta e a necessidade de super-los que lhe proporcionam aoportunidade de vencer a si mesma (ib.). E s as coisas a matria podemconstituir um obstculo. As atividades desinteressadas no poderiam, portanto,alcanar seu pleno valor, a no ser numa civilizao do trabalho. Seria, por exem-plo, o caso da arte: ela cristalizaria nas obras a expresso do feliz equilbrioentre o esprito e o corpo, entre o homem e o universo, que s pode existir em atonas formas mais nobres do trabalho fsico; de resto, mesmo no passado, as obras dearte mais puras sempre expressaram o sentimento, ou, para falar de modo maisexato, o pressentimento de tal equilbrio (O.L., 139).

    O pressentimento, uma expresso ainda inacabada, dever ser levado per-feio por uma civilizao do trabalho, qual cabe a tarefa de dar ao maior nmeropossvel a oportunidade real de expressar esse sentimento.

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    Da mesma forma, o esporte, enquanto atividade desinteressada, seria, den-tro de uma civilizao do trabalho, uma atividade subordinada: O esporte teriacomo fim essencial dar ao corpo humano a agilidade e () a fluidez, que o tornampermevel ao pensamento e possibilitam a este o contato direto com as coisas (e,portanto, com os obstculos, como acontece no trabalho) (ib.).

    Figuras geradas pela separaodo trabalho e da liberdade

    Fora desse confronto com as coisas, o qual define o trabalho no-servil (epermite traar a figura do homem livre), apresentam-se vrias situaes negativasque podem ser caracterizadas por quatro figuras geradas pela separao do traba-lho e da liberdade.

    O escravo

    Quando, no exerccio do trabalho, o homem fica submetido a outra coisaque no a prpria que ele deve modificar, j no um trabalhador, um escravo(Fonctions morales de la profession). No matria que o escravo se submete, mas vontade de outro homem. Menos do que o homem de uma tarefa, o escravo ohomem de um homem (como Aristteles o define): Na medida em que a sorte deum homem depende de outros homens, sua prpria vida no s lhe escapa smos, mas tambm inteligncia; ... em vez de ordenar e agir, preciso que seabaixe, suplicando ou ameaando; e a alma cai em abismos sem fundo de desejo etemor (O.L., 127-128).

    No ser confrontado com o obstculo da matria expor-se ao risco de sersubmetido vontade de outros homens. E como no se pode nem penetrar nemmanipular de fora o pensamento humano (ib.) enquanto isso possvel com amatria , assim como tambm impossvel, diante do pensamento do outro,ordenar, julgar e resolver como se faz diante de necessidade material fica-seentregue s paixes (temor, desejo) e ao comportamento mgico abaixar-se, su-plicar, ameaar (10). Em contrapartida, fornecendo vontade obstculos eapenas obstculos que o trabalho liberta.

    O homem de lazer

    Existe, porm, outra situao, que consiste em estar desobrigado de qual-quer confronto com as coisas e de qualquer submisso vontade alheia. Nemacorrentado vontade dos outros, nem libertado pelo confronto com as coisas,esse o homem de lazer. o homem grego, o homem livre. Como lembra HannahArendt (La condition de lhomme moderne), a liberdade significa, para o cidadogrego, estar liberto da esfera da penria (no trabalhar), liberto das ordens alheias(no ser escravo), liberto enfim do comando. Ser livre no ter obrigao detrabalhar nem de obedecer nem de comandar.

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    A tal concepo, Simone Weil ope: Mesmo que o homem deixasse deestar submetido s coisas e aos outros homens, no que diz respeito a necessidadesbsicas e perigos, ele lhes ficaria ainda mais completamente entregue pelas emo-es que dele iriam se apoderar visceralmente, sem trgua e das quais, de ora emdiante, nenhuma atividade regular o protegeria (O.L.,114-115).

    O que permite adivinhar os espetculos que uma civilizao do lazer poderiaoferecer: Um povo de desocupados poderia se dar ao luxo de criar para si obst-culos, exercitar-se nas cincias, nas artes, nos jogos; mas os esforos decorrentesapenas da fantasia no constituem, para o homem, um meio de dominar as prpriasfantasias (ib., 114).

    Desvinculadas do modelo do trabalho (11), as atividades desinteressadas(ou livres), no melhor dos casos, nos entregariam arbitrariedade, ao capri-cho, no pior dos casos, loucura (ib.).

    As sociedades primitivas

    No h necessidade, alis, de ir buscar em futuro utpico uma viso daquiloque seria uma sociedade de no-trabalho. As sociedades primitivas poderiam nosproporcionar o suficiente para representar a nica liberdade que se pode atribuir idade de ouro (O.L., 114): nos primitivos () se representa a relao entre ohomem e o mundo sob um aspecto que no o do trabalho mas o da magia. Entreeles e a rede de necessidades que () define as condies reais da existncia inter-pem-se, ao modo de uma cortina, todos os tipos de caprichos misteriosos aosquais se julgam entregues (O.L.,120-121) (12).

    Convm examinar a fonte da mentalidade mgica, pela qual o homem seencontra submetido aos prprios caprichos. A fonte a separao da atividade e dotrabalho, ou melhor, a dominao, na atividade, de uma habilidade que no nem metdica nem laboriosa. Por qu? Porque os movimentos do corpo vivorepresentam, nessas sociedades, o papel principal na luta contra a natureza (ib.,120). Por isso, a idia de necessidade dificilmente tem possibilidade de se formar. Anatureza parece obedecer apenas aos desejos, ou repeli-los. Para que desaparea talmentalidade mgica, preciso que o corpo vivo passe para o segundo plano e osinstrumentos inertes para o primeiro (ib., 121).

    O senhor

    Resta observar a ltima figura gerada pela separao da atividade e da neces-sidade.

    Encontrar-se-ia na posio do senhor aquele que, liberto da penria, noestaria obrigado a trabalhar e, liberto da obrigao de obedecer, no seria escravo;mas no estaria livre de comando. Senhor, mas nem por isso homem livre. escra-vo dos prprios caprichos e dspota para com os outros, est entregue, ele tam-bm, ao mgico, porque, como o primitivo, (ele) est s voltas com desejos aos

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    quais nunca se contrape uma idia clara de necessidade que lhe venha apontar umlimite. Como no concebe outro mtodo de ao a no ser comandar, quando lheacontece () comandar em vo, ele passa de repente do sentimento de um poderabsoluto ao de uma impotncia radical (O.L., 128).

    Incapaz e compreender os prprios sucessos, surpreso diante dos fracassos,o senhor vive na fantasia.

    * * *

    Recapitulando, a separao do trabalho e da liberdade ou da atividade e danecessidade leva a quatro figuras:

    a servido o escravo, que trabalha, mas no est apenas confrontado coma necessidade das coisas; est entregue, em primeiro lugar, vontade dosoutros;

    a da liberdade ilusria o homem de lazer, que est liberto do trabalho e daautoridade do outro, mas escravizado a suas paixes, porque a liberdadeseparada da necessidade no seno arbitrria;

    a da liberdade ilusria junto com despotismo exercido sobre os outros osenhor, a figura mais negativa porque, ao despotismo que pratica contraos outros, est associada a escravizao aos prprios caprichos.

    a da idade de ouro os povos primitivos , que precede o conhecimento danecessidade; nela, os homens esto entregues mentalidade mgica.

    Nem mesmo se pode dizer que, como em Hegel, a figura do escravo seja amais positiva e o fator de desenvolvimento histrico capaz de conduzir liberta-o, pois s o confronto com a necessidade, nas coisas, liberta. O fato de o escravoser, antes de tudo, dependente da vontade dos outros impede que o trabalho ser-vi1 seja formador e libertador. Tal fragilidade do escravo no poderia resultar emfora ou liberdade. No existe, portanto, em Simone Weil, uma dialtica do senhore do escravo. O confronto de uma fragilidade servilizada com uma ociosidade quetransforma algum em tirano de si mesmo no constitui um motor da Histria.

    A recusa de uma civilizao do lazer

    Crtica das formas contemporneasdo modelo grego

    Lordre nouveau e a sociedade dualista

    O esprito das crticas dirigidas contra o modelo grego formuladas desde 1929 encontrado novamente no texto redigido contra o grupo Lordre nouveau (13).

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    O que dificulta a liberdade dos homens, segundo Aron & Dandieu, no seno o resduo apagado das prprias criaes. O verdadeiro problema de umarevoluo seria conseguir que os homens deixassem de estar a servio das coisasque eles mesmos inventaram. A soluo preconizada por Aron & Dandieu assimresumida por Simone Weil: Basta, para eles, separar completamente a esfera daatividade automtica daquela da atividade criadora, o que fcil, segundo dizem,j que a primeira pode, graas ao progresso tecnolgico, ser reduzida a quase nada.O trabalho no-qualificado deixaria de ser executado por alguns desfavorecidos,durante a vida inteira; seria a tarefa de todos os jovens durante alguns anos deservio civil. O resto da existncia seria consagrado ao trabalho qualificado e,principalmente, ao lazer (). O trabalho industrial no-qualificado teria uma or-ganizao muito centralizada (). Ao oposto, no que diz respeito atividade criado-ra, tudo seria descentralizado ao extremo (14) () (Fragment sur Lordrenouveau).

    Para alm do esprito quimrico e perigoso (15) do projeto, o modelo grego questionado: a separao da esfera do trabalho socialmente necessrio, mas no-qualificado, e da esfera da atividade criadora, consagrada parcialmente ao trabalhoqualificado e sobretudo ao lazer.

    Numa sociedade dualista como essa, as duas esferas seriam organizadas deforma completamente oposta. A esfera da necessidade seria, na realidade, a daservido. A idia de um servio civil , para Simone Weil, inaceitvel. Ela escreveem 1942, a respeito do artigo de Daniel Rops: Um povo submetido a curto pe-rodo de trabalho obrigatrio e no-remunerado s h de trabalhar de verdade soba presso de um poder central desptico e sob ameaa de castigos terrveis (S.,179).

    Quanto esfera da liberdade criadora, essa seria na realidade a ociosidadedesmoralizante que condenaria a grande massa a uma vida degradante, de umamanada. Em sua crtica ao artigo de Daniel Rops, Simone Weil acrescenta: Quan-to aos longos anos de lazer, preciso ser ingnuo () para no prever que algunsos dedicariam ao nico jogo pelo qual os homens se apaixonam de verdade, o jogocujo objeto a dominao sobre os homens (S., 179-l80).

    interessante observar que, excepcionalmente, Simone Weil adota o pontode vista freudiano, segundo o qual o trabalho absorveria um potencial considervelde energia, a qual, na falta de ser assim direcionada para o trabalho tomaria aforma de agresso do homem contra o homem.

    A reduo da jornada de trabalho

    Restam as crticas dirigidas s propostas de reduo do tempo de trabalho. Anica passagem em que Simone Weil considera de maneira positiva tal reduo serefere a um plano de reenraizar operrio, no qual est previsto que s haveriameia-jornada de trabalho, devendo o resto do tempo ser dedicado aos laos decompanheirismo, ao aperfeioamento de um patriotismo de empresa, s palestras

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    tcnicas destinadas a fazer com que cada operrio entendesse a funo exata daspeas que ele produz e como as dificuldades so superadas pelo trabalho dos ou-tros , s palestras geogrficas para ensinar a todos para onde vo os produtos queajudam a fabricar (). A esses elementos seriam acrescentados outros de culturageral (E., 98-99).

    Em suma, liberar tempo para melhor trabalhar na empresa. Em outras pala-vras, eliminar a separao entre a esfera do trabalho e a do no-trabalho.

    Ainda, por toda a parte de sua obra encontra-se em Simone Weil a dennciado modelo grego. Pode-se ler, por exemplo, no artigo Experincia da vida defbrica (1941): Alguns anunciam uma diminuio, alis muito exagerada, do tempode trabalho; mas fazer do povo uma massa de desocupados que seria escrava duashoras por dia no nem desejvel, mesmo que fosse possvel, nem moralmentepossvel, mesmo que materialmente o fosse. Pois ningum aceitaria ser escravo porduas horas (C.O., 344-345).

    O significado da crtica est bem evidente. J que na sociedade industrial omesmo homem que, considerado livre, est escravizado no trabalho, a soluo,segundo alguns afirmam, consistiria em dividir o indivduo, restituindo a necessi-dade ao trabalho e a liberdade ao trabalhador. Bastaria para tanto reduzir o tempode trabalho. Ora, a diviso do trabalho j uma diviso do indivduo, uma vez queela reparte entre indivduos diferentes aquilo que pertence, de fato e de direito, acada um: por exemplo, o pensamento e a atividade manual. Diminuir a jornada detrabalho servil para conceder mais tempo ao lazer resultaria ento em agravamentoda situao do indivduo; servido no trabalho acrescentar-se-ia, no tempo delazer, a ociosidade desmoralizadora.

    Pela mesma razo, Simone Weil critica a tese da diviso do trabalho e a dareduo da sua jornada pelo menos enquanto concebida como soluo para aalienao , ou seja, a recusa da diviso do indivduo. O mesmo indivduo nopode ser uma formiga durante as horas de trabalho e um homem durante ashoras de lazer (Fonctions morales de la profession). No basta diminuir o tempodurante o qual um homem escravo para fazer dele um homem livre. Pelo contr-rio, quanto mais curto for o tempo de servido, mais insuportvel ele h de setornar: Represente-se o negro do matadouro de Chicago, descrito por Dubreuil,cujo trabalho consiste em afundar, a cada minuto, uma faca na garganta de umporco; mesmo que esse negro disponha de muitas horas de lazer, sua vida nodeixa de ser desumana (ib).

    Da a recusa do servio civil mesmo o de curta durao tal como propos-to por Aron & Dandieu.

    So, portanto, vrios os nveis analisados na crtica da sociedade do lazer; emprimeiro lugar, uma sociedade na qual se o homem no trabalhasse muito, seriaentregue ociosidade desmoralizadora, at mesmo s suas pulses agressivas; de-pois, uma tal sociedade agravaria a diviso do indivduo. Enfim, verifica-se, em

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    Simone Weil, a recusa de considerar que progressos tecnolgicos levaro por elesmesmos a uma sociedade de lazer.

    No entanto, para alm do maquinismo e da sociedade industrial, SimoneWeil chega a examinar uma etapa correspondente tecnologia automatizada. Comoso vistos por ela os efeitos dessa tecnologia?

    A automatizao: idia quimrica da supresso do trabalho

    Entre os mtodos que se oferecem ao homem para produzir mais e commenos esforo surge a substituio do trabalho vivo pelo trabalho morto, a qualconsiste em entregar matria o que parecia ser o papel do esforo humano(O.L., 73). O maquinismo foi uma das primeiras etapas dessa substituio. A lti-ma corresponde tecnologia automatizada, cujo princpio est na possibilidadede entregar mquina no apenas uma atividade sempre idntica, mas tambm umconjunto de operaes diversas (ib.).

    O que se pode razoavelmente esperar do desenvolvimento da tecnologiaautomatizada? Obviamente, no pode ser a supresso completa do trabalho huma-no, embora essa tcnica admite Simone Weil possa se desenvolver indefinida-mente (ib., 75). A tcnica no pode libertar o homem do trabalho, pois s otrabalho humano pode adaptar as propriedades da matria inerte, as quais ho decontinuar cegas e indiferentes, a determinados fins (cf. ib., 73).

    Por outro lado, porm, a tcnica pode libertar o indivduo ao permitir a suasubstituio pela mquina nas tarefas mais pesadas. Nesse ponto, Simone Weil constante em suas afirmaes (O.L., 159; C.O., 340; E., 79-80; C.I., 64-65).

    Todavia, os germes de libertao presentes na tecnologia automatizada nodeixam de ter inconvenientes. Os efeitos positivos da automatizao transformam-se em seu contrrio. Tal processo descrito por Simone Weil em Rflexions sur lescauses de la libert (O.L., 76 e 159):

    A diminuio do trabalho que se deve automatizao acarreta maiorvolume de trabalho, difcil e degradante nos ramos no-automatizados(por exemplo, nas minas das quais so extrados os metais utilizados nafabricao das mquinas automatizadas). Encontramo-nos novamente dian-te do modelo grego: a libertao de alguns tem como condio o aumentoda servido de outros.

    A automatizao leva tambm necessidade de produzir sem limite (asmquinas automticas s trazem vantagem se produzirem em quantidademacia). Da o surgimento de falsas exigncias. Destinada a satisfazer asexigncias essenciais do homem, a automatizao suscita-lhe, ao infinito,desejos suprfluos. Liberta o trabalhador para sujeit-lo ao consumismo efazer do consumo a esfera dominante. A tambm transparece o modelogrego, no qual prevalece o usurio, enquanto o produtor fica subordina-do. Ora, diz Simone Weil, uma sociedade ideal no pode ser aquela na

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    qual predomina o interesse (material) do consumidor, mas, pelo contr-rio, aquela na qual predomina a dignidade do homem no trabalho, o querepresenta um valor espiritual (E., 103).

    Enfim, ao criar exigncias artificiais, a sociedade automatizada cria, porisso mesmo, trabalho suprfluo. Como a produo do suprfluo coloca-da no mesmo plano que a do necessrio, ela se transforma, por sua vez,em acrscimo da quantidade de trabalho necessrio. Destinada a libertardo trabalho necessrio degradante, a automatizao cria trabalho supr-fluo (apresentando-o como necessrio!).

    Em tal sociedade, produo, consumo e trabalho humano so desviados deseu fim.

    Quadro terico da sociedade menos livre

    Mas, sob os argumentos de ordem scio-econmica, deve-se buscar umarazo mais profunda. A automatizao faria com que a necessidade se deslocassetotalmente para o lado da matria e ficasse totalmente ausente do esprito: Pode-ramos conceber, como limite abstrato, uma civilizao em que qualquer atividadehumana, tanto na rea do trabalho quanto na da especulao terica, estaria sub-metida, at nos mnimos detalhes, a um rigor inteiramente matemtico, isso semque ser humano algum compreendesse absolutamente nada daquilo que estariafazendo; a noo de necessidade estaria ento ausente de todos os espritos demaneira muito mais radical do que entre os povos primitivos (O.L., 126).

    A comparao com os povos primitivos no apenas uma imagem. Em al-guns aspectos, Simone Weil v na automatizao algo semelhante ao retorno dominao da natureza sobre o homem primitivo. Graas tecnologia automatizada,o homem escaparia aos caprichos de uma natureza cega to-somente para se entre-gar necessidade, no menos cega, de uma segunda natureza. Pois a automatizaorealizaria o ltimo estgio da sistematizao da vida contempornea descrita emRflexions sur les causes de la libert, sistematizao pelo meio da qual o domniodo pensamento individual substitudo por regularidades estabelecidas nas coisas,e que constituem o equivalente daquilo que seria o pensamento coletivo, caso acoletividade pensasse (O.L., 145).

    A coeso da cincia assegurada por smbolos; a economia regulada pelamoeda; as funes de coordenao e direo so cumpridas pela organizao buro-crtica. S caberia ainda ao maquinismo transformar-se em sistema inteiramenteautomatizado, para que o pequeno volume de trabalho restante se deslocasse douniverso da matria para o universo dos smbolos (com a emergncia da funo decontrole-vigilncia). A perda de contato com a matria no trabalho concluiria oprocesso de substituio do real por smbolos, substituio to temida por SimoneWeil (16). A sociedade automatizada seria assim uma sociedade sem possibilidadede metaxu (17), uma vez que a ciso entre atividade individual livre e necessidadematerial seria completa.

  • ESTUDOS AVANADOS 12 (32), 1998 199

    Enfim, a sociedade automatizada o simtrico da sociedade primitiva. Estase situava aqum da necessidade e levava ao reino da magia. Aquela estaria alm danecessidade e levaria ao reino do absurdo. quando os instrumentos inertes pas-sam para o primeiro plano da relao com a natureza que cessa o reino da magia.Mas quando os instrumentos inertes e sofisticados constituem uma segunda natu-reza (um verdadeiro reino tcnico), retorna-se para a magia.

    Enquanto a atividade corporal a que prevalece na luta contra a natureza, aidia da necessidade no consegue se formar. Quando atividade corporal e pensa-mento so totalmente excludos da transformao da natureza, e a necessidade secristaliza em processos puramente materiais e cegos, a atividade e o pensamentoficam entregues ao absurdo (cf. O.L., 145).

    A automatizao representaria, para Simone Weil, a ltima metamorfose ea mais perfeita de um pensamento separado do indivduo, cristalizado num me-canismo inteiramente objetivo. ltima e monstruosa ciso entre a necessidade ma-terial tornada autnoma, totalmente separada da atividade individual, e o pensa-mento livre de qualquer necessidade, ou seja, livre apenas para a fantasia, o absur-do, o vazio, a loucura. No sendo a tecnologia automatizada propensa por naturezaa se valer para sempre da reflexo metdica, mas, pelo contrrio, a exclu-la parasubstitu-la por atividades condizentes com o mtodo ou desvinculadas de qual-quer necessidade (desinteressadas), pensamento e atividades ficariam entregues extravagncia.

    Compreende-se melhor, nessa perspectiva, o interesse de Simone Weil portoda a reflexo que permitisse vislumbrar uma transformao tcnica capaz, aomesmo tempo, de nos livrar de um maquinismo alienante (o da grande indstria)e de nos preservar de uma automatizao falsamente libertadora (18).

    * * *

    Recapitulando, encontramos as diversas possibilidades abertas pelo modelogrego de ciso dentro da atividade entre liberdade e necessidade:

    Uma repartio da liberdade e da necessidade entre indivduos diferentes.Por exemplo, em Aron & Dandieu, o servio civil, que livra alguns danecessidade de trabalhar para condenar outros a um trabalho degradante.Aqueles que so livres renem aqui as figuras do senhor e do homem delazer ; a tirania sobre o outro junto com a liberdade ilusria.

    Toda a liberdade est do lado dos homens e toda a necessidade nas coisas. Porexemplo, a automatizao, que operaria a metamorfose da liberdade numresduo irreconhecvel e entregaria um povo todo a uma necessidade ma-terial opressora e misteriosa. O homem livre rene aqui as figuras do ho-mem de lazer e do primitivo; a liberdade ilusria junto com a mentalida-de mgica.

    Liberdade e necessidade distribuem-se dentro da existncia do indivduo.

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    Por exemplo, a reduo da jornada de trabalho. No mesmo indivduocoexistem o escravo e o homem de lazer; o trabalho escravizante juntocom a ociosidade desmoralizante e a fantasia (19).

    Atualidade ou inatualidade de Simone Weil (20)Na terceira parte deste texto, um confronto entre as idias de Simone Weil e

    as teses desenvolvidas por Andr Gorz (21) ser estabelecido. Duas razes justifi-cam tal confronto: em primeiro lugar, tanto para Andr Gorz quanto para SimoneWeil, a crise do capitalismo no anuncia mundo novo algum, nem prepara de for-ma alguma os trabalhadores para se apropriar dos meios de produo, tais comoexistem, a fim de edificarem uma sociedade de liberdade; em segundo lugar, emcerto sentido que haveremos de precisar, Simone Weil permanece guiada pela ins-pirao do movimento socialista tradicional. Ela acredita na possibilidade de reali-zao de um trabalho social livre, com o qual o indivduo poderia identificar-se.Pergunta-se quais as condies que tornariam possvel, na esfera do trabalho ne-cessrio, a dominao do trabalhador sobre os meios e os fins de sua atividade.

    Andr Gorz abandona tal crena e ignora a pergunta formulada por SimoneWeil.

    Atualidade

    A abolio do trabalho em si mesma no seria libertadora

    A liberdade no pode ser o resultado de uma mutao tecnolgica.

    A automatizao corre o risco de transformar o lazer em consumo forado o qual se transforma ento em ocupao assimilvel a um trabalho mere-cedor de salrio a fim de que se desenvolva o processo de produo (22)(Gorz, Les chemins du paradis, 83 e ss.).

    A reduo da jornada de trabalho no em si mesma emancipadora. Scontribuir para a libertao dos indivduos na medida em que o tempoliberado no constitua um tempo vazio, nem preenchido por uma organi-zao alienante de lazeres.

    Todavia, Simone Weil no percebe suficientemente que a reduo do tempode trabalho um dos fatores de transformao das condies de trabalho. Nin-gum aceitaria ser escravo por duas horas, afirma Simone Weil. Mas poderamoscertamente responder que a reduo da jornada de trabalho tornar inaceitvel otrabalho degradante. A experincia da liberdade repercutir necessariamente naesfera do trabalho (23).

    Recusa de uma sociedade dualista

    Uma sociedade dualista compe-se, por um lado, de um ncleo de assalaria-dos estveis, qualificados, bem pagos e protegidos; por outro, de uma massa de

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    subproletrios, sem lugar definido na sociedade, semidesempregados, empregadosem servios temporrios, ou pouco qualificados e mal pagos (pessoal de vigilncia,limpeza, servio domstico, isto , tipicamente o trabalho chamado de reproduo(24), que era o dos escravos na Antigidade e o de numerosa domesticidade negrana frica do Sul). Gorz, alis, caracteriza a sociedade dualista, que constitui umaameaa bem real, como sul-africanizao. Nesse tipo de sociedade, como se osexpulsos da produo se disputassem o privilgio de vender seus servios pessoaisqueles que conservam uma profisso, uma renda, um salrio estvel e confort-vel (25). Simone Weil teria visto em tal sociedade uma nova verso do modelogrego, da sociedade escravocrata, na qual a libertao de uns funda-se na servidodos outros.

    Durao do trabalho mantida em nvel artificialmenteelevado para a produo do suprfluo

    A utilizao de tecnologia para produzir mais faz com que todas as atividadessejam colocadas no mesmo plano: produo do til e do intil, do necessrio e donocivo. O sistema econmico tende ento a funcionar de tal forma que sua nicafinalidade parece ser a de oferecer trabalho, produzir para as pessoas trabalharem,independentemente da utilidade do trabalho fornecido, sem se preocupar com autilidade, o valor, o significado daquilo que produzido. Como escreve Andr Gorz,uma frmula que Simone Weil provavelmente no teria: Quando uma sociedadeproduz para trabalhar, em vez de trabalhar para produzir, o trabalho de modogeral que se encontra marcado pela perda do sentido (Adieux au proltariat, 100).

    Inatualidade

    A automatizao acaba com todo tipo de trabalho

    Segundo Simone Weil, a automatizao pode e deve suprimir todos os tra-balhos degradantes. Ora, em sua forma atual, a automatizao no se limita a su-primir os trabalhos menos qualificados, mas tende a acabar com qualquer tipo detrabalho, o que deve ser entendido em duplo sentido (Les chemins du paradis, 73).

    A informatizao e a microeletrnica economizam tempo de trabalho;todas as pesquisas concernentes aos efeitos da automatizao sobre o em-prego levam a prever, no decorrer dos prximos 15 ou 20 anos, uma di-minuio de mais da metade do trabalho assalariado, manual ou no-ma-nual, tanto no setor industrial quanto no administrativo.

    O trabalho, onde subsiste, j no implica em confronto direto do traba-lhador com a matria, cuja transformao j no resulta de uma atividadeimediata, completa e soberana (ib.). dizer que a automatizao supri-me os ofcios, a confrontao do homem com a necessidade nas coisas,para substitu-los por uma simples relao com smbolos.

    verdade que Simone Weil havia considerado essa situao, a qual, porm,

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    representava para ela uma via errada que deveria ser descartada; acreditava quenem o taylorismo nem o fordismo eram irreversveis. Achava, da mesma forma,que a automatizao no era inevitvel A experincia mostrou que taylorismo efordismo no eram reversveis e o retorno a um modo de produo no qual seriamreconstitudos os ofcios, em pequenas unidades de produo, pertencia utopia.Em todo caso, a esfera do trabalho socialmente necessrio no poderia ser organiza-da assim (26) (ib., 137 e ss.). Muito menos, portanto, poder-se-ia esperar daautomatizao que reconstitusse o profissionalismo dos ofcios, j eliminados pelafase anterior.

    A automatizao tem como principal efeito a banalizao das tarefas. Paraser exato, seria preciso observar que justamente por os ofcios j terem sido par-cialmente extintos na grande produo socializada que a automatizao dos postosde trabalho se tornou possvel. Na esfera do trabalho necessrio, a banalizao dastarefas , portanto, duplamente inevitvel. Tarefas banalizadas tm sidoautomatizadas e a automatizao refora a banalizao.

    Tal evoluo tecnolgica se choca com uma possvel apropriao da produ-o social pelos trabalhadores, tal como Simone Weil a desejava. A marginalizaodo trabalho necessrio, que se deve tanto diminuio da quantidade de trabalhoquanto banalizao das tarefas, tornam totalmente utpicas a idia de poder ope-rrio e de gerenciamento da produo pelos produtores associa- dos, qualquer idiade autogesto, pelo menos no que diz respeito esfera de trabalho socialmentenecessrio.

    Tal fato permite concluir que, nesse ponto, Simone Weil se mostrou depen-dente das idias do movimento anarco-sindicalista (27). Poderamos tambm di-zer, da mesma forma, que herdou certas concepes (28) de Marx, segundo asquais o proletariado (29) deve conseguir assenhorear-se da totalidade das forasprodutivas para desenvolver a totalidade de suas capacidades. Marx acreditava napossibilidade de serem realizados coincidentemente o desenvolvimento das capaci-dades individuais no trabalho e o das foras produtivas, quando viu nascer a classedos operrios de ofcio, que se tornariam os protagonistas do anarco-sindicalismo.Citando Andr Gorz: Ora, Marx se enganou () Sabemos que foi exatamente ocontrrio que aconteceu A ascenso dos operrios profissionais, seu poder nafbrica, seu projeto anarco-sindicalista representaram apenas um parntese que otaylorismo e, sucessivamente, a organizao cientfica do trabalho, a informatizaoe a robtica se encarregaram de fechar (Adieux au proltariat, 34-35) (30).

    Foi por as idias desenvolvidas pelo anarco-sindicalismo aliarem-se ao elitismoprofissional que os idelogos do movimento puderam idealizar a supresso da di-viso da atividade em trabalho manual e trabalho intelectual. Depois de taylorismoe fordismo terem dado forma a tal esperana, foroso constatar hoje que a dimi-nuio da quantidade de trabalho necessrio, a destruio dos ofcios e a banalizaodas tarefas so irreversveis

  • ESTUDOS AVANADOS 12 (32), 1998 203

    Querer ligar necessidade e liberdade na esfera do trabalho socialmente neces-srio tornou-se impossvel, pois nela o trabalho vivo h de ficar cada vez maismarginalizado, desqualificado, banal e precrio.

    Nosso dilema

    A questo de uma civilizao do trabalho parece hoje anacrnica, se repre-sentar a reconciliao do homem com a produo do necessrio. No se trata en-to de escolher entre sociedade de trabalho e sociedade de lazer, mas entre umasociedade de desemprego e uma sociedade de lazer (Ib., 195).

    Uma sociedade de desemprego ou dualista a que Simone Weil teria descar-tado por se tratar de uma sociedade fundada no emprego em tempo integral evitalcio de uma minoria, e na inatividade (ou no trabalho precrio) da grandemaioria. Mas como no possvel pensar uma sociedade que, fundada no desen-volvimento tecnolgico conhecido atualmente, poderia garantir emprego em tem-po integral para todos os indivduos e por toda a vida, necessrio, com base nasituao atual, definir o que seria uma sociedade no-servil.

    Liberdade e necessidade no podem ser totalmente separadas sem que seesvazie a liberdade e se afunilem as capacidades que poderiam ser desenvolvidas.Nesse ponto, Simone Weil est com a razo. Sem se levar em conta que o prpriotrabalho pode ser uma exigncia da prpria natureza e (por que no?) a prioritria.

    Em se tratando porm da esfera da produo do necessrio, o trabalho nopode ser, seno excepcionalmente, a primeira exigncia a ser considerada. Quererintegrar a liberdade esfera do trabalho necessrio, como o preconizava SimoneWeil, no nem possvel nem desejvel, pois a esfera do trabalho necessrio notem condio de se tornar o campo de realizao da autonomia para todos. verdade que aspectos penosos, como monotonia e opresso, devem ser eliminadosdo trabalho heternomo (31), mas no se pode confundir uma libertao dessetipo nas relaes de trabalho com autonomia (32), a qual implica que o trabalhoefetuado possa ser assumido por livre vontade, e seu contedo e finalidade deter-minados por aqueles que trabalham, o que s pode ser excepcional na esfera dotrabalho necessrio. Ali a liberdade pode consistir apenas em trabalhar ao mesmotempo com a maior dignidade e eficincia possveis. A autogesto, pelos produto-res associados supondo-se que isso fosse possvel da produo do necessrionunca realizar o reino da liberdade (33).

    A discusso e a crtica das teses de Simone Weil deveriam concentrar-se, anosso ver, neste exato ponto: ao contrrio do que pensava a autora de La conditionouvrire, a esfera do trabalho socialmente necessrio no , ou em todo caso dei-xou de ser, a mais apta ao confronto do indivduo com a necessidade nas coisas,pelo menos numa sociedade industrial. No se deve confundir, como o faz SimoneWeil, necessidade de trabalho e confronto, no trabalho, com a necessidade nascoisas. Essas duas formas de necessidade esto to longe de ser idnticas que aorganizao industrial do trabalho necessrio nunca cessou (e irreversvel) de

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    desqualificar e suprimir aos poucos os ofcios operrios nos quais liberdade e neces-sidade encontravam seu mais feliz confronto.

    A esfera do trabalho necessrio tornou-se ento inapta reconciliao daliberdade e da necessidade. Em outras palavras, no quadro terico de uma socieda-de que seja a mais livre possvel, cabe prever, entre a produo do necessrio, orga-nizada na escala de toda a sociedade (34), e a pura atividade individual (escrever oupintar), uma esfera intermediria na qual os indivduos poderiam trabalhar, inclusi-ve produzindo algo necessrio se assim o desejassem, ou seja, confrontar-se com anecessidade nas coisas, mas escolhendo os fins e os meios de seu trabalho, pois esta a autonomia: algum poder querer aquilo que faz.

    No h, forosamente, contradio entre trabalho e autonomia, contantoque no se confunda o trabalho socialmente necessrio, sempre heternomo, como trabalho enquanto atividade autnoma, a qual supe que algum escolha os finse os meios daquilo que faz. Assim, seria possvel escapar a um s tempo ao modelogrego e s contradies encontradas por Simone Weil (35).

    * * *

    Recapitulando, uma sociedade assim concebida, que evitasse os riscos refe-rentes s sociedade dualistas, acertadamente denunciados por Simone Weil, pode-ria ser sumariamente descrita da seguinte forma:

    No haveria repartio da liberdade e da necessidade entre indivduos dife-rentes: o trabalho socialmente necessrio seria um direito e um dever para todos (esfera heternoma) (36).

    No seria concentrada toda a necessidade para o lado das coisas, enquantoa liberdade ficaria do lado dos indivduos: a automatizao da produodo necessrio no transformaria a liberdade num resduo irreconhecvel,uma vez que a liberdade continuaria confrontada com a necessidade nascoisas, dentro da esfera intermediria do trabalho autnomo.

    Liberdade e necessidade, embora distribudas dentro da prpria existnciaindividual, no o seriam na forma do trabalho servilizante e da ociosidadedesmoralizante. O trabalho necessrio (heternomo) deveria ser o menosalienante possvel; o tempo de lazer no seria compensao de um traba-lho servil, mas tempo de ao laboriosa autnoma (e no tempo de lazerdesmoralizante).

    Ao renunciar-se a uma civilizao do trabalho, nem por isso retorna-se aomodelo grego: o lazer no o lazer nocivo, compensador do trabalho; tampoucoaquele que se ope ao trabalho. A heterogeneidade do trabalho e do lazer no sesupera fazendo da esfera do trabalho necessrio uma esfera de trabalho livre (impossvel), ou transformando todo tipo de trabalho em jogo ( utpico). A solu-o deve ser buscada numa sociedade cujo espao seja descontnuo e comportenveis diferentes de liberdade (37).

  • ESTUDOS AVANADOS 12 (32), 1998 205

    Forma filosfica da crtica (38)

    O trabalho: um valor?

    A razo essencial da recusa, por Simone Weil, da civilizao do lazer que otempo de lazer significa para ela a emergncia da subjetividade individual. O traba-lho um processo necessrio, tanto quanto o raciocnio. A situao do homem quetrabalha corretamente semelhante daquele que raciocina com rigor (39). verdade que, no trabalho no-servil, o indivduo no se acha privado de iniciativa,at pelo contrrio. Mas, no caso, a iniciativa reduz-se apenas a integrar-se numacorrente de necessidade sem falha. A iniciativa do homem que trabalha a possibi-lidade que ele tem e lhe deve ser dada de descobrir a necessidade e nela consen-tir. Enquanto atividade individual, o trabalho recebe seu significado de sua integrao necessidade.

    Fora dessa insero, a atividade subjetiva, segundo Simone Weil, feita dearbitrariedade, imprevisibilidade, contingncia. No produtora de sentido, masde absurdo, fantasia, loucura. Da a recusa da atividade livre como criao de si porsi mesmo, desenvolvimento das capacidades subjetivas, realizao de si mesmo.At a idia de busca da perfeio pessoal na arte refutada (40). A nica atividadelivre a des-criao (41), a qual funciona em sentido oposto ao desenvolvimentodo eu. A atividade livre deve, segundo Simone Weil, estar isenta de motivo e objetivoligados com a existncia pessoal. Se ela pensa que o trabalho deve estar desvinculadode qualquer objetivo referente existncia, no apenas por serem exignciasbsicas o dinheiro, a existncia nua, objetivos demasiadamente vis ou deses-peradores , mas porque o apego aos objetivos da existncia pessoal impede que otrabalho seja processo de des-criao.

    Em todos pontos analisados o pensamento de Simone Weil levanta proble-mas filosficos temveis. Em primeiro lugar, porque nada h de impedir que otrabalho seja antes de tudo uma atividade submetida s necessidades vitais e preo-cupao da sobrevivncia individual e especfica. A finalidade do trabalho a re-produo da vida e isso que associa para sempre o trabalho a uma atividade quegira no crculo dos processos naturais, como bem o mostra Hannah Arendt em Lacondition de lhomme moderne.

    Querer desvencilhar o trabalho da existncia e da satisfao das exignciasbsicas a mesma coisa que fazer dele uma atividade desligada da prpria necessi-dade que o fez surgir, da necessidade vital de satisfazer exigncias bsicas (42).

    Tal necessidade haveria de conferir algum valor ao trabalho? Simone Weildeprecia as atividades autnomas em nome do seguinte princpio: o obstculo (aresistncia da matria, a necessidade) a oportunidade de vencer a si mesmo. Al-gum, todavia, poderia argumentar que, se verdade que houve vitria sobre simesmo graas ao trabalho, tal vitria no foi resultado de uma escolha. A liberdadeque dela resulta no foi o fim diretamente procurado. Vencer a si mesmo no traba-lho uma necessidade vital, no um valor.

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    O fato de o trabalho me impelir a me libertar (da imaginao, das paixes)no implica, de forma alguma, que a liberdade seja um valor digno de ser procura-do, escolhido e assumido por si mesmo. Particularmente, no implica que essavitria sobre si mesmo e essa liberdade sejam valores a promover para alm daesfera do trabalho (pelo bem, pelo belo ou pela liberdade) e em campos diferentes(relaes com o outro, ao poltica).

    Mesmo admitindo que a relao com a necessidade a resistncia da matria no trabalho seja uma condio de aparecimento da liberdade, no resulta da que aliberdade de fato surgida da relao de transformao da natureza seja um valor.Tal liberdade conquistada de fato precisa ser valorizada, transformada em projeto aser desenvolvido por aquilo que em si mesmo. verdade, enfim, que o trabalho(como qualquer conduta vital resultante de uma necessidade) envolve condutasque pertencem a um plano superior (o da liberdade, da superao de si mesmo).Mas a mobilizao de tais valores no mbito da necessidade no poderia determi-nar por si s a passagem para o plano superior (moral, esttico ou espiritual), nemconstituir o bastante para essa passagem.

    Por que razo so considerados superiores os valores morais e estticos? Por-que o trabalho, em ltima instncia, permanece um valor vital relativo e o suple-mento de valor (absoluto) que se lhe pode conceder prende-se ao coeficiente deliberdade, beleza e desprendimento que ele tem a capacidade de integrar. A liber-dade, como valor desejado por si mesmo, e a beleza, tambm como valor procura-do por si mesmo, que conferem ao trabalho no-servil um valor superior a seuvalor relativo.

    Ser possvel, nessas condies, considerar o trabalho o modelo de qualquertipo de atividade livre, at mesmo de qualquer tipo de vida livre? No estaria aquiem jogo a prpria possibilidade de uma civilizao fundada sobre o trabalho?

    O trabalho, modelo de todo tipode atividade livre e vida livre

    Simone Weil desejaria que o trabalho se tornasse pura atividade tcnica, ouseja, uma atividade fundada sobre o saber daquilo que se faz, ou ainda, que aatividade do trabalhador prolongasse a atividade de inveno; que o funcionamentoda mquina, a significao daquilo que ela faz, o modo como foi construda deixas-sem de ser um mistrio. Havendo ruptura entre o saber tcnico e a execuo deuma tarefa, desenvolver-se-iam operaes nas quais o trabalhador no entenderianada, das quais ele no participaria. O fato de o trabalho passar a ser uma atividadetcnica, significa, em outros termos, que constituiria (uma) combinao de esfor-os to consciente e metdica quanto pode ser a combinao de nmeros pela qualse opera a soluo de um problema quando procede da reflexo (O.L., 116).

    Essa combinao de esforos representaria o modelo de todo tipo de atividadelivre e at de vida livre na qual o homem teria constantemente em mos a prpria

  • ESTUDOS AVANADOS 12 (32), 1998 207

    sorte; haveria ele de criar a cada instante as condies da prpria existncia por umato do pensamento (ib.).

    Mas poder-se-ia afirmar da mesma forma e seria igualmente verdadeiro que, longe de ser o indivduo quem dobrou a necessidade aos prprios fins, foi odeterminismo quem anulou o indivduo, dobrando-o s suas leis. Pois pode-sedizer que uma vida em que todas as dificuldades reais se apresentariam de certomodo como problemas e todas as vitrias como solues postas em ao seriatotalmente livre (ib.). Entretanto, pode-se dizer tambm que seria uma vida daqual teria desaparecido qualquer parcela de liberdade, uma vida na qual odeterminismo anularia o indivduo dobrando-o s suas leis. Tal fato significaria ummundo no qual todos os elementos de sucesso seriam dados, isto , conhecidose manejveis como o so os smbolos da matemtica?

    Se um ideal desse tipo pudesse ser alcanado, a realidade desse mundo seesvaneceria em idia. Seria um mundo sem resistncia, a no ser aquela que ope opensamento ao pensamento (como na matemtica). A liberdade reduzir-se-ia adecifrar o dado, a previso verificar-se-ia infalivelmente. Ora o mundo real, a hist-ria, a poltica ou as relaes com o outro constituem um entrelaamento feito decontingncia, acidental, fortuita, em suma, de imprevisvel. neste mundo queagimos, neste mundo que se exerce nossa liberdade pessoal e no num mundoideal no qual todas as vitrias seriam solues matemticas postas em ao.

    Se a liberdade algo impessoal, ento o mundo ideal concebido por SimoneWeil o da liberdade perfeita. Mas se a liberdade mesmo algo pessoal, nessemundo restaria liberdade apenas a possibilidade de produzir o erro. Esse mundoseria a imagem daquele da matemtica, no qual, se uma criana erra uma conta desomar o erro leva a marca pessoal da criana; mas caso ela proceda de formatotalmente correta, a pessoa dela est ausente de toda operao (E.L., 17). SimoneWeil toma o modelo de todo tipo de atividade e vida livre ao trabalho, no qual aatividade fundada no saber daquilo que se faz liberdade. Trata-se, no entanto, deuma liberdade impessoal que, ao se inserir num universo impessoal, cria com omundo uma relao que no pode ser vivida como minha maneira de ser no mundo.

    Que nenhuma forma superior de liberdade possa ser alcanada na esfera dotrabalho necessrio, uma afirmao com a qual podemos concordar. Mas no serexatamente ela que condena a idia de uma sociedade fundada sobre a primazia dotrabalho?

    Que o trabalho domine a vida individual at constituir no apenas a ocupa-o principal mas tambm um modelo de atividade; que a esfera do trabalho e,mais ainda, a do trabalho socialmente necessrio sirva de base para uma civilizao, a mesma coisa que operar uma aniquilao da liberdade pessoal de meus finssubjetivos. Numa sociedade como essa, eu realizaria fins que no seriam os meus,que no poderiam ser os meus. Seria convidado essa seria a minha nica liberda-de pessoal para consentir na necessidade; mas, na falta de uma relao subjetiva

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    com esse mundo, na falta de tempo para exprimir a minha maneira de ser no mundo (a no ser pelo trabalho e nas atividades subordinadas ao trabalho), minhavida seria um fracasso.

    Ao fazer do trabalho o modelo de tal atividade impessoal que, se dominar avida de cada um, permitir que ele anule esse eu no-essencial, ser que SimoneWeil no nos pede que saltemos para fora da condio humana?

    Notas

    1 Os metaxu possibilitam, ao mesmo tempo, alma a via ascendente e ao sobrenatu-ral a via descendente. Os metaxu transbordam os limites da vida social, mas asformas da vida social e particularmente o trabalho tm um papel fundamental.Cf. os artigos de Eric O. Springsted: Mtaphysique de la transcendance et thorie desMetaxu chez Simone Weil, Cahiers Simone Weil, dez. 1982; e de Alain Birou,Larticulation entre le surnaturel et le social chez Simone Weil, Cahiers Simone Weil,mar. 1985.

    2 Para uma anlise mais detalhada, permito-me remeter o leitor para meu artigo RelireSimone Weil, publicado em Les temps modernes, mar. 1983.

    3 Esse o titulo da obra que lhes consagra J.-L. Loubet del Bayle (ed. du Seuil,1969).

    4 Biblioteca Nacional da Frana, Fonds Simone Weil, Caixa IV, p. 340-343. Cito essetexto com o ttulo de Fragment sur Lordre nouveau.

    5 Colocado do lado da pura liberdade, do lazer.

    6 Em Aristteles, a prxis uma atividade que no produz qualquer obra distinta doagente, uma atividade que para si mesma o prprio fim. Seu fim o aperfeioa-mento do prprio agente. Mesmo que se trate de atividades que produzam algoexterior a elas mesmas, seu fim imanente. o prprio exerccio que o fim (porexemplo, danar ou tocar um instrumento).

    7 A poesis uma ao que se realiza numa obra exterior ao agente. Ela tem um fimdistinto de si mesma. a atividade tcnica (construir uma casa, por exemplo),atividade imperfeita, segundo Aristteles, por correr atrs de um fim que lhe exterior.

    8 Cf. artigo de Miklos Vet, Thmes kantiens dans la pense de Simone Weil, CahiersSimone Weil, mar. 1985, p. 46.

    9 Cf. P. Litthe, Action et travail chez Simone Weil, Cahiers Simone Weil, mar. 1979.

    10 Quando, como o caso para o operrio moderno, a execuo da tarefa pensadapelo outro em seus mnimos detalhes e a atividade corporal fica submetida em seusmnimos gestos a uma vontade alheia, a escravizao total, pois de forma algumapensamento e corpo encontram na matria obstculo, mas to somente a cristaliza-o da vontade de outrem. O homem j no pode ser nem mesmo um feiticeiro

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    para o homem nem fazer o outro dobrar-se suplicando ou ameaando.

    11 E mais do que isso, opostas a ele.

    12 Veremos mais adiante em que ponto se justifica, no esprito de Simone Weil, aanalogia entre sociedade primitiva e sociedade de lazer.

    13 Texto escrito talvez em 1933 data de publicao de La rvolution ncessaire deAron & Dandieu e no artigo de 1942 dirigido parcialmente contra Daniel Rops,que retomava as teses de Lordre nouveau.

    14 Esfera que est nas mos da corporao, composta por aqueles que participam daproduo.

    15 A centralizao da rea da produo no-qualificada e a organizao hierrquica dascorporaes levariam ao Estado totalitrio.

    16 As anlises de Simone Weil (p. 145 e ss. de Rflexions) constituem um desenvol-vimento bastante sistemtico das pginas dedicadas por Marx ao fetichismo no pri-meiro livro do Capital. Marx s analisava o carter fetiche da mercadoria, cujaconseqncia, porm, era transformar toda a realidade social em relao entre coi-sas. Simone Weil retoma e prolonga a anlise, enfatizando o desenvolvimento deuma realidade tornada quase totalmente autnoma com relao ao indivduo, oque leva subsuno real de todas as atividades individuais sob um funcionamentoreificado: pensamento, trabalho, coordenao e direo no trabalho e na economia,harmonia das relaes entre os homens, toda aquela atividade viva (ligada aos indi-vduos e relaes que entre si estabelecem) recoberta, derrubada e substituda pormecanismos cegos os quais, diz Simone Weil, imitam, a ponto de nos confundi-rem, o esforo do pensamento (O.L., 145); e, poderamos dizer de modo maisgeral, o esforo prprio, a atividade individual. Assim, Simone Weil escreve, a res-peito das mquinas automticas, que parecem apresentar o modelo do trabalhadorinteligente, fiel, dcil e consciencioso (ib.).

    17 Cf. acima, nota 1.

    18 Cf. C2, I, 64-65; e sobretudo as cartas dirigidas ao engenheiro Jacques Lafitte,publicadas em Cahiers Simone Weil, set. 1980. A obra de J. Lafitte, Rflexions sur lascience des machines, foi reeditada pela editora Vrin em 1972.

    19 Esta primeira parte do texto encontrada em Robert Chenavier, in C.S. W., X-4,dez. 1987.

    20 Cahiers Simone Weil, X-4, dez. 1987.

    21 Particularmente em seus dois ltimos livros: Adieux au proltariat, Ed. Galile,1980, nova ed. na col. Points) e Les chemins du paradis (Ed. Galile, 1983).

    22 Possibilidade evocada igualmente por Hannah Arendt em Condition de lhommemoderne, p. 147 e ss.

    23 Cf. Adret, Travailler deux heures par jour, Ed. du Seuil, col. Points

    24 Ao oposto do trabalho produtivo, o trabalho de reproduo aquele cujo resultadono pode ser conservado nem acumulado (limpeza, manuteno, preparao dos

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    alimentos). Esses trabalhos, que devem ser executado e repetidos todos os dias,eram na Antigidade trabalho de escravos.

    25 O modelo americano e o futuro da esquerda, em Autogestions, n. 19, maio 1985, p.12.

    26 O grifo meu, pois Simone Weil menciona sempre uma nica esfera de trabalho, ado trabalho necessrio.

    27 Cf. o artigo de Patrice Rolland, Simone Weil et le syndicalisme rvolutionnaire,Cahiers Simone Weil, dez. 1980, particularmente p. 256-262.

    28 Algumas concepes, pois h outras em Marx, particularmente no fim do livro IIIdo Capital.

    29 E cada proletrio em particular.

    30 interessante observar que, nos anos 60, S. Mallet (La nouvelle classe ouvrire, ed.du Seuil), R. Richta (La civilisation au Carrefour, ed. Anthropos, reedit., Seuil, col.Points) e o prprio Andr Gorz (Stratgie ouvrire et no-capitalisme, ed. du Seuil)pensaram que o aperfeioamento das tcnicas de produo e sua automatizaoiriam suprimir o trabalho no-qualificado e deixariam apenas subsistir os trabalha-dores tcnicos em nvel relativamente elevado, com viso global dos processotecnolgico-econmicos e capazes de autogerir a produo (Gorz, Adieux auproltariat, p. 34). Enganaram-se, como o salienta agora Andr Gorz.

    31 O trabalho heternomo determinado em exterioridade por um sistema de rela-es para o qual cada um contribui, mas sem as ter querido e sem que seja possvelquer-las. Essa a esfera do trabalho socialmente necessrio.

    32 Uma atividade autnoma no tem outro fim seno a si mesma. a possibilidadeque tem o agente de ser ativo com relao a objetivos definidos por ele prprio eusando meios que ele pode tambm querer. O trabalho pode corresponder a taldefinio, mas, em se tratando do trabalho necessrio, s excepcionalmente. Umaatividade s pode ser verdadeiramente autnoma quando no for economicamentenecessria.

    33 Como Marx finalmente reconhece, quando escreve no livro III do Capital: Oreino da liberdade s comea no momento em que cessa o trabalho ditado pelanecessidade e pelos fins exteriores. Ressalta, assim, que o reino da liberdade sesitua pela prpria natureza, alm da esfera da produo material propriamentedita (Oeuvres, Bibl. de la Pliade, 1968, t. II, p. 147).

    34 E na qual trabalhar seria um direito e um dever.

    35 O leitor interessado por esses problemas poder consultar Andr Gorz, Les cheminsdu paradis, teses 24 e 25.

    36 Cf. A. Gorz, Allocation universelle: version de droite et version de gauche, La RevueNouvelle, Bruxelas, abr. 1985.

    37 Cf. Les chemins du paradis, p. 25 e ss.

    38 Inspiro-me nesta parte na distino entre axiologia relativa e axiologia absoluta,

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    desenvolvida por Andr Gorz em Fondements pour une morale, ed. Galile, 1977, p.499 e ss.

    39 Com a nica diferena que, no trabalho, o homem est submetido s necessidadesda natureza exterior e no s das prprias faculdades lgicas.

    40 Cf. E.L., 16-17; C. II, 153-154; C.S., 38.

    41 O nico termo capaz de exprimir adequadamente a intuio fundamental (de Si-mone Weil): a da vocao auto-aniquiladora dos seres humanos (Miklos Vet, Lamtaphysique religieuse de Simone Weil, ed. Vrin, 1971, p. 19).

    42 Desvencilhado dessa necessidade, o trabalho passaria a ser seja forado (por razesde manuteno de uma estrutura hierarquizada de determinada forma), seja puraatividade educativa aprendizagem da necessidade (agora, no sentido que lhe dSimone Weil). Mas, o que prprio da aprendizagem ela se encerrar ao atingir oobjetivo. Obrigar o homem a trabalhar alm ou independentemente do exigidopela reproduo da vida significaria sujeit-lo eternamente a uma funo sem neces-sidade vital, cuja finalidade seria erguer obstculos que fornecessem a oportunidadede vencer a si mesmo.

    Bibliografia

    Segue a lista das obras de Simone Weil citadas no texto com as suas respectivas abreviaes:

    O.L. Oppression et libert. Paris, Gallimard, 1995.

    E.L. crits de Londres et dernires lettres. Paris, Gallimard, 1957.

    E. LEnracimement. Paris, Gallimard, 1962.

    C.O. La condition ouvrire. Paris, Gallimard, 1964.

    E.H.P. crits historiques et politique. Paris, Gallimard, 1960.

    S. Sur la science. Paris, Gallimard, 1966.

    C., I. Cahiers. Paris, Plon; v. I, 1951.

    C2., I. Cahiers. 2 ed., v. I, Paris, Plon, 1979.

    C.S. La Connaissance surnaturelle. Paris, Gallimard, 1950.

    Robert Chenavier presidente da Association pour ltude de la pense de SimomeWeil, sediada em Paris.

    Palestra feita pelo autor em 6 de dezembro de 1986, rua Monticelli. Reproduzidaem Cahiers Simone Weil, X-3, set. 1987.

    Traduo de Jean Briant. O original em francs Civilisation du travail ou civilisationdu temps libre? (Actualit de la pense de Simone Weil) encontra-se disposio doleitor no IEA-USP para eventual consulta.