Claire delacroix - as jóias de kinfarlie 02 - a rosa de gelo

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The Rose Red Bride

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Sinopse: Vivienne, uma jovem sonhadora e amante de contos de fadas, é forçada a se casar

por dinheiro com um desconhecido cavalheiro, Erik de Blackleith, que precisa de uma esposa para lhe dar um herdeiro nobre para recuperar os seus direitos à herança familiar. Vivienne, condenada ao papel de mãe, decide lutar com toda sua força para abrir o coração gelado de Erik e realizar seus sonhos de amor.

Comentário da revisora:

Aventura, romance, fantasia... Uma fada se misturando ao mundo dos mortais. Ora recompensando quem a salva, ora vingando-se de quem a ofende... Um mocinho marcado com cicatrizes no corpo e na alma. Um servo fiel e uma mocinha que não abandona o mocinho e se junta a ele em perigos, dando-lhe seu amor e sua colaboração apesar de sua descrença, mas por fim conseguindo seu amor e uma rosa vermelha de gelo!

Um livro ao qual não faltam emoções. Gostei muito.

Disponibilização: PRT Revisão Inicial: Edith Suli

Revisão Final: Daniela Rocha Visto Final: Drikka

Formatação: Livia/Dyllan Logo / Arte: Iara

Projeto Revisoras Traduções

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Esta trilogia é dedicada as minhas leitoras, com meu mais sincero agradecimento

por sua lealdade e seu apoio. Espero que desfrutem ao ler sobre as Jóias de Kinfairlie tanto como eu desfrutei ao relatar suas lendas.

Claire Delacroix

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Capítulo Um Kinfairlie, costa oriental da Escócia, agosto de 1421 Alexander se felicitava por um assunto bem resolvido. Embora o matrimônio de

Madeline, sua irmã mais velha, não tivesse começado debaixo de bons auspícios, a solução que ele tinha procurado demonstrava ser boa. Tal como havia predito, Madeline estava casada e feliz, ainda mais contente pelo bebê que já lhe arredondava o ventre. Embora Alexander não tivesse localizado Rhys FitzHenry mediante os métodos convencionais para formar casais, o homem que comprou em leilão para a mão de sua irmã tinha resultado ser um marido excelente.

Tudo terminava bem e Alexander se outorgava o mérito por este fato tão feliz. Tinha que tomar fôlego como melhor pudesse. Em Kinfairlie eram poucos os méritos que ele podia atribuir-se; freqüentemente se sentia afligido pela carga dessa propriedade hereditária. Diante da janela, cravou a vista nos campos da propriedade, carrancudo ao ver o pouco viço de seu verdor. A colheita era algo melhor do que seu alcaide tinha previsto, mas não o suficiente. Embora Madeline já estivesse casada e seus dois irmãos em treinamento (Malcolm no Ravensmuir e Ross no Inverfyre), havia ainda quatro irmãs solteiras sob a responsabilidade de Alexander. O alcaide 1se mostrava firme ao advertir que deviam reduzir o número de bocas à mesa antes que chegasse o inverno. Os campos lhe ofereciam um revelador aviso. Ainda teria que casar a Vivienne, a segunda depois de Madeline, antes que chegassem as nevascas.

Por desgraça Vivienne estava sendo tão difícil de casar como sua irmã mais velha.

Estava bem disposta a tomar marido, mas desejava sentir afeto por ele antes que celebrassem as núpcias. De fato, queria estar apaixonada. Alexander tinha a impressão de que ambos tinham visitado todos os homens da Cristandade sem proveito algum. E se ela voltasse para buscar seu olhar para fazer esse imperceptível gesto negativo com a cabeça, ele poderia perfeitamente explodir em um rugido.

Embora tivesse preferido que Vivienne fosse feliz, agosto já vinha em cima. Logo se veria obrigado a intervir no assunto. 1 Alcaide — administrador.

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Com um suspiro, Alexander sepultou a cabeça nas contas do imóvel, com a esperança de descobrir que as coisas estavam um pouco melhor do que ele pensava. Antes que chegasse a aborrecer-se de comprovar os ganhos, alguém bateu na porta de madeira. Anthony, o velho alcaide de Kinfairlie, entrou na sala e, como o amo demorasse a responder, pigarreou.

— Um cavalheiro deseja vê-lo, milord. Solicita que o receba em privado assim que seja possível.

Alexander se sentiu intrigado, pois era estranho que chegasse alguém a Kinfairlie sem ser convidado, mais ainda que requeresse privacidade.

— Deu seu nome?

— Nicholas Sinclair, milord. — Anthony lançou um pequeno grunhido ao ver que seu

senhor dava um pulo, surpreso por aquele sobrenome familiar. — Desconfio desta pessoa, milord. Os homens decentes não sussurram ao dizer seu nome nem escondem o rosto sob a sombra do capuz.

Alexander ficou atônito.

— Mas se Nicholas Sinclair é o mesmo que cortejava Vivienne faz alguns anos!

Anthony ergueu as costas em sinal de desaprovação.

— Isso acredito, senhor, embora os Sinclair sejam todos igualmente safados. Diz-se que vêm de uma estirpe viking, milorde, do qual é de pouco ajuda quanto a isso.

— Ao parecer, detectou o interesse que despertava no jovem essa aparição, — tornou

a pigarrear. — Não obstante, devo admitir que é só minha própria opinião. Disseram-me que

há quem encontra certo atrativo nesses Sinclair; mulheres, no geral. O que tinha falhado entre Nicholas e Vivienne? Alexander não recordava. Na

realidade, não tenha sabido nunca. Não tinha prestado muita atenção ao fato de que sua irmã tivesse perdido a esse pretendente, pois naqueles tempos esses assuntos não lhe incumbiam.

— Será um prazer receber ao Nicholas Sinclair — disse. Sorriu ao ver que sua firmeza

desconcertava Anthony, pois desfrutava surpreender a seu carretíssimo alcaide. Traga ele imediatamente, por favor. E também um pouco de cerveja.

— Cerveja, senhor? — As sobrancelhas do ancião se arquearam muito altas. — Está

seguro de que é prudente receber a um Sinclair com tanta cordialidade?

— Cerveja, já disse Anthony — repetiu Alexander, com a firmeza que tinha aprendido a

empregar frente a seu teimoso alcaide. — Um hóspede é um hóspede, qualquer que seja seu nome.

Anthony lançou uma olhada aos papéis estendidos na mesa, frente a seu senhor, e apertou os lábios um pouco mais.

— Talvez conviesse não exibir desta maneira seus assuntos, milord. Os Sinclair têm fama de cobiçar o que não lhes pertence.

— De qualquer maneira já estou cansado de tanta conta — manifestou o jovem. E enquanto o alcaide se retirava, ele começou a recolher os registros. Depois de enrolar apertadamente os pergaminhos, voltou a atá-los com suas fitas e os guardou com cuidado em um baú. Quando a mesa já estava limpa entrou no escritório um homem alto, coberto

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com um capote. Coxeava da perna esquerda, mas mesmo assim andava com vigor. Tal como Anthony tinha comentado, mantinha o capuz posto e o rosto em sombras.

Alexander se voltou com intensa curiosidade. — Nicholas Sinclair? O homem assentiu secamente. — Tenha bom dia. Agradeço esta cortesia. E estendeu a mão. Alexander a estreitou. Era uma mão grande, bronzeada e calejada:

a mão de um homem muito familiarizado com o peso da espada. Sua pressão foi tão firme como esperava. Sua atitude era decidida, sem vacilações; o jovem não pôde senão pensar que um homem assim, tão deste mundo, podia ser bom companheiro para sua irmã, sempre encantada pelas lendas fantásticas. Voltou a sentar-se e indicou o banco em frente.

— Confesso que sua chegada desperta alguma curiosidade. O outro jogou o capuz atrás para tomar assento. Alexander teve que fazer um esforço

para dissimular sua impressão, mas logo voltou a olhá-lo diretamente nos olhos. Nicholas Sinclair o observava com astúcia. O jovem compreendeu que seu

desconcerto não tinha passado inadvertido. — Não era minha intenção sobressaltá-lo — disse. Alexander suspeitou que isso não fosse de todo certo. Ninguém podia deixar de

impressionar-se diante dessa cicatriz que cruzava a face esquerda de Nicholas, da têmpora até o queixo. Era uma marca vermelha e franzida, tão veemente que Alexander teve a certeza de não havê-la visto nunca; de outra maneira a teria recordado. Pelo intenso de sua cor, suspeitou que fosse algo recente. Para falar a verdade, não recordava bem a Nicholas, embora o homem parecesse vagamente conhecido, além da cicatriz.

Era muito mais alto que ele e mais largo de ombros. Seu aspecto insinuava, de fato, que algo de sangue viking havia em suas veias, pois o cabelo, muito loiro, teria caído até os ombros, bem liso, se não estivesse amarrado atrás com uma fita de couro. Seus olhos eram de um tom azul claro e chamativo. Era bronzeado e musculoso; sem dúvida, antes dessa cicatriz devia ter sido bastante bonito para cativar o olhar de qualquer donzela.

— Tem que me desculpar por este hábito de falar sem rodeios — disse Nicholas. — Vim pedir a mão de Vivienne.

Alexander custava acreditar que fosse possível uma chegada tão oportuna. Ao combinar o casamento de Madeline tinha aprendido a ser mais cauteloso; por outra parte, a voz de Nicholas encerrava uma dureza que teria feito vacilar a qualquer um.

— Pensei que seu cortejo à Vivienne cessara há anos. Nicholas desviou o olhar. — Por minha culpa, unicamente.

— Se isso é o que pensa, por que não retornou antes? — Porque não tinha um lar para oferecer a uma noiva. —Ao revelar este detalhe o

homem pareceu ainda mais carrancudo. — Agora recordo o assunto. —Alexander agitou um dedo diante de seu hóspede, pois

ia recuperando as lembranças. Seu pai tinha discutido acaloradamente com a moça sobre a loucura de casar-se com um homem que não tinha possibilidades de herdar. Embora

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ninguém mencionasse o nome de Nicholas, pelo vigor com que Vivienne tinha desafiado seu pai era evidente que aquilo era muito importante para ela. E se a memória do jovem não falhava, o ardente Nicholas tinha desaparecido de Kinfairlie pouco depois daquilo. Fez um gesto afirmativo a seu hóspede.

— Tinham um irmão maior que devia herdar antes de você, não é assim? Chamava-se

Erik. Uma sombra tocou as feições do homem. — Erik Sinclair foi deserdado. As terras dos Sinclair de Blackleith são agora de

Nicholas. Não faltava amargura no tom do visitante. A Alexander pareceu que tinha expressado

de modo estranho essa referência a si mesmo; mesmo assim, a cadência das Terras Altas era inconfundível em sua voz.

Possivelmente o homem estava habituado a falar mais gaélico que inglês; talvez em

gaélico essa afirmação tivesse passado despercebida. O olhar do jovem foi involuntariamente para a cicatriz; perguntou-se o que teria passado entre os irmãos para que o deserdassem, para deixar tanto rancor. Não havia uma maneira cortês de formular pergunta tão delicada. E o que importava, na verdade, se era possível ver Vivienne casada com o homem que ela queria e levando uma vida confortável?

Se a corte se interrompeu porque Nicholas não tinha possibilidades de herdar, sem dúvida estaria encantada de casar-se com ele agora que era dono de uma propriedade. Por certo, bem era possível que tivesse um perdurável afeto por esse homem, o que a impedia de achar atraentes a outros candidatos. Madeline tinha um motivo similar para achar defeitos em todos os candidatos; agora Alexander se esforçava por aprender todo o necessário para entender e agradar a suas irmãs.

Ao fim e ao cabo, depois de Vivienne ainda ficariam três por casar. Nicholas continuou muito decidido:

— É hora de que tome esposa. E escolhi a Vivienne. Alexander sentiu que suas reservas cediam. Esse homem enfrentara obstáculos

formidáveis (isso era claro) e ainda estava ferido por aquilo que tinha esmigalhado sua família. Podia compreender perfeitamente que nunca tivesse esquecido Vivienne: embora fosse sua irmã, ele tinha plena consciência de seu abundante encanto. Sua atitude alegre, seu otimismo, bem que podiam ser o bálsamo que este homem necessitava.

Talvez seu apego à Vivienne fosse a única esperança que o havia sustentado frente a tais provas.

Quanto mais Alexander analisava essa aliança, mais gostava da perspectiva. Para cumprir com sua responsabilidade perguntou pelos ganhos de Blackleith e sua localização, embora esses detalhes tivessem menos importância que a felicidade de sua irmã. Tranqüilizou-o comprovar que Nicholas parecia conhecer a fundo os detalhes de sua propriedade, o número de arrendatários e a quantidade de terra, os dízimos anuais e o que precisava fazer ali. Era um barão responsável, sem dúvida.

— Que não lhes caibam dúvidas sobre o peso de minha bolsa — concluiu Nicholas,

que punha sobre a mesa um saco tilintante. Empurrou-o para Alexander através da

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extensão de madeira. — E estou disposto a compensá-lo por aceitar meu pedido sem tardança. O jovem cravou a vista na bolsa de moedas, calculando que continha a salvação de Kinfairlie. Recolheu-a, como se o conteúdo não lhe interessasse tanto, e jogou uma olhada dentro. O coração lhe deu um salto ao ver tal quantidade de moedas de prata, mas manteve as feições impassíveis. Isso cobriria os gastos de todo o inverno e permitiria levar mais tempo para casar às três irmãs menores.

— Diria-se que têm pressa — comentou, apontando o único detalhe que o afligia. "Os

homens honestos não precisam precipitar-se", costumava dizer seu pai. A urgência do Nicholas lhe parecia suspeita.

— Quem não tem pressa quando se trata de satisfazer as ânsias do coração? —O visitante sorriu, embora seus lábios parecessem tão desacostumados a essa curva que, antes, parecia uma careta. Os anos passam. Já perdi muito tempo com este assunto e quero vê-lo resolvido. É preciso aproveitar o momento em que os fatos nos favorecem.

— Têm um plano. —Alexander não se permitia ainda fechar a mão sobre o dinheiro. — Não quero me entreter com bandos e compromissos.

— O que deseja, então?

Nicholas enrugou as sobreancelhas; depois se inclinou para frente para apoiar os cotovelos na mesa. Seus olhos brilharam com um azul veemente que revelou ao dono da casa o vigor de sua intenção.

— Quero capturar a minha noiva de noite, consumar a união e desposá-la pela manhã.

Alexander plantou com força a bolsa na mesa e a empurrou novamente para o outro.

Deslizou pela madeira lustrada até que Nicholas a apanhou. — Raptar à noiva é algo vulgar! Em Kinfairlie não se faz, embora outros contemplem

o seqüestro e a violação como recurso! — Neste caso é necessário. — Nenhum homem de honra se nega a cortejar a sua futura esposa. Nicholas se inclinou para trás, tocando a ferida de seu rosto com a ponta de um

dedo, e não disse mais.

— Os Lammergeier se casam — insistiu Alexander, temeroso de que seu interlocutor

não oferecesse matrimônio, mas um rito pagão. Pronunciamos nossos votos honestamente e diante de testemunhas.

— Tenho toda a intenção de desposar Vivienne como propõem. Só queria celebrar a noite nupcial antes de pronunciar esses votos. O jovem compreendeu: esse homem temia que sua cicatriz provocasse rechaço em sua prometida. Mas aquilo o preocupava. Sabia de acordos como esse, embora habitualmente a donzela era seduzida porque seu pai se negava à aliança.

— Por que tanta pressa? Os lábios de Nicholas se apertaram em uma linha dura.

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— Meu primo tem intenções de questionar minha soberania sobre Blackleith sobre a

base de que não tenho esposa. Necessito de mulher e filho varão; necessito-os muito em breve. E escolho a Vivienne. — Olhou Alexander nos olhos. — Não tenho tempo a perder, pois um pirralho não se faz da noite para o dia. Desejo me casar com Vivienne e quero me assegurar que ela não recuse minha proposta por causa de minha ferida.

Voltou a impulsionar a bolsa com moedas para o outro lado da mesa e Alexander a

apanhou. Nesta oportunidade deixou que seus dedos se fechassem sobre as duras moedas. Embora não gostasse dos meios, não achava defeitos no resultado final. E sem dúvida, se ele se negava ao plano, Nicholas abandonaria Kinfairlie em busca de outra esposa. Ele não podia desencantar Vivienne. Tinha a certeza de que, se existia uma mulher capaz de olhar o coração de um homem, sem parar em seu rosto, essa era sua irmã. Também supunha que, se não se decidisse por nenhum outro candidato, era porque desejava casar-se com esse homem.

— É quinta-feira — observou pensativo. — Não seria correto celebrar as bodas

sexta-feira, por muita pressa que tenha, pois é dia de guardar. Que seu encontro com Vivienne se realize amanhã à noite; assim poderão pronunciar seus votos nupciais imediatamente depois, no sábado pela manhã.

Além de tudo, as núpcias sabatinas são um bom presságio para a felicidade futura. Eu cuidarei de que Vivienne durma sozinha no quarto mais alto da torre.

— Como? Alexander sorriu; sabia exatamente que lenda contar para levar sua irmã a fazer o

que ele desejava por vontade própria. — Deixem isso por minha conta. Ela estará lá. Só exijo que a tratem com toda a

cortesia que se deve a uma dama. Seu visitante inclinou a cabeça em sinal de acordo.

— O muro de sua torre dá ao mar e no mais alto há janelas.

— Três grandes janelas, e todas dão a esse quarto. Terá que escalar o muro, com

certeza; foi construído sem saliências com a deliberada intenção de evitar justamente essa façanha — observou o jovem. — É tamanho seu desejo para que triunfe nesta prova de valor?

Nicholas entreabriu os olhos ao analisar o plano. De repente parecia perigoso e

indigno; era um homem a quem não afligia a perspectiva de escalar uma parede para seduzir sua noiva.

Claro que Vivienne adorava as lendas antigas. Adoraria que seu verdadeiro amor fizesse tal esforço para obter sua mão. Para Alexander foi tranqüilizador que Nicholas a conhecesse tão bem.

— E os sentinelas? —perguntou seu visitante com resolução enquanto começava a levantar-se.

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O jovem refletiu por um momento até decidir o que devia fazer. — Posso me ocupar de que olhem para outra parte, embora a falta de atenção não

durará muito. Quando os sinos da igreja da aldeia tocarem a meia-noite, aja depressa. Nicholas fez um gesto afirmativo e voltou a cobrir a cabeça com o capuz. Depois

sacudiu vigorosamente a mão de Alexander. — Agradeço sua ajuda. Não pode imaginar quão importante é isto para mim. — Advirto-o que se não tratar honradamente a minha irmã pagará com sua pele. Os homens trocaram um olhar de aço. Depois Nicholas virou-se fazendo ondular a

capa a suas costas. Quando Anthony retornou com duas jarras de cerveja, o hóspede já tinha desaparecido.

*****

Desde que havia retornado da morada do Madeline em Caerwyn, Vivienne estava

possuída por um novo desassossego. Não se tratava só dos rigores padecidos na aventura de perseguir a sua irmã e a Rhys através da Inglaterra, com vários de seus irmãos. Não era só porque sentisse falta de Madeline, embora as duas compartilhassem mais segredos entre si que com as outras irmãs.

A insatisfação de Vivienne aninhava no sorriso que Madeline tinha adquirido durante a viagem. Era um sorriso estranho, ao mesmo tempo satisfeito e provocador; obsequiava-a a seu marido nos momentos mais inesperados; reclamava-lhe os lábios cada vez que sua mão deslizava pela curva de seu ventre, tornava-se misteriosa quando lhe perguntava sobre o que acontecia no leito.

Esse sorriso continuava perseguindo Vivienne mesmo quando sua irmã já não estava presente. Madeline sabia algo que ela ignorava e bem podia imaginar a que se referia. Isso criava um novo abismo entre as irmãs, mais amplo que a distância que as separava. Para Vivienne nunca tinham assentado bem os mistérios nem os assuntos que se deixavam sem discutir. Não era capaz de manter um segredo e, em geral, não conseguia surpreender seus irmãos, pois era impossível conter-se para não revelar antes do tempo os detalhes de um plano ou de qualquer presente. E nunca tinha tido a menor paciência.

Queria descobrir o que sabia Madeline. E queria saber imediatamente, se não antes. Vivienne sabia que Alexander queria casá-la também; de sua parte, estava bastante disposta a pronunciar seus votos diante do altar. Não obstante, queria entregar-se a um homem a quem amasse, tal como as donzelas e os cavalheiros amavam em suas lendas favoritas. Não eram tantas as mulheres que sorriam como fazia Madeline. Vivienne aspirava ser uma delas. Tinha assistido a todos os eventos sociais dos que tinha notícias; tinha implorado a Alexander que a acompanhasse a York, Edimburgo e Newcastle; encontrava-se com todos os bons partidos, cheia de otimismo.

De nada servia. Nenhum deles despertava ânsias de saber algo mais sobre ele. De fato, Vivienne não sentia mais que desespero. Sabia que a paciência de seu irmão mais velho não duraria eternamente (além de tudo, ela já tinha visto vinte e um verões). O tempo e o direito de escolher escapavam como a água entre os dedos. Era possível que ela, que tanto gostava das histórias felizes, estivesse destinada a passar seus dias sem

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felicidade? Vivienne tinha a certeza de que havia, na vida de cada pessoa, momentos críticos em

que uma decisão insignificante conduzia irrevogavelmente a um fato de grande importância. O momento em que seus pais tinham optado por embarcar em um navio determinado tinha sido uma decisão de enormes conseqüências. Uma vez que se lançaram ao mar, pouco ou nada puderam fazer para evitar o afundamento desse navio e a perda da vida.

O momento em que Madeline tinha decidido fugir do Rhys, seu prometido, tinha sido outra dessas escolhas, embora essa pôs em movimento uma seqüência de feitos mais felizes. Vivienne sabia que em sua própria vida devia haver um instante assim, mas, conforme passavam os dias sem que nenhum homem atraísse sua atenção, começava a temer que houvesse já perdido sua oportunidade.

E se a felicidade conjugal só fosse para mulheres como Madeline? Sua irmã mais velha sempre tinha sido um modelo impossível de igualar. Além de fazer tudo de uma vez, seu temperamento sempre tinha sido mais sereno que o de Vivienne. Suas decisões eram menos impulsivas e raramente tinha motivos para desculpar-se com outro membro da família.

Pior ainda: Madeline se mantinha impecavelmente polida. Seus cabelos não escapavam da trança, o véu nunca lhe escorria nem a barra rasgava. Vivienne vivia acossada por esses três enguiços; bastava a rebeldia de seu cabelo para arrancar suspiros de todas as criadas que se viam obrigadas a servi-la. Madeline nunca tinha perdido uma luva, um sapato, uma meia; ela, em troca, perdia tantos que freqüentemente formava novos pares com os que ficavam sem companheiro. Sua irmã mais velha era o eco da mãe, composta mesmo quando menina, enquanto que Vivienne parecia desalinhada por muito que se esmerasse.

Era possível que o amor estivesse reservado só às mulheres tão compostas como Madeline e Catherine, a mãe de ambas? E se os homens só achavam atraentes às belas? Essa perspectiva a aterrava. A esperança é um elixir potente, sobre tudo para quem, como ela, beberam gulosamente de sua taça. Mas até a esperança começava a vacilar naquele agosto, segundo os entardeceres adquiriam o frio do inverno. OH, se ao menos não tivesse perdido ainda a possibilidade de escolher!

Na sexta-feira à noite, como resultado de sua preocupação, Vivienne se sentou à mesa com tão pouco apetite que seu estado de ânimo não passou despercebido. Nem sequer a ausência de Ross e de Malcolm tinha diminuído as brincadeiras entre os irmãos que ainda ficavam em Kinfairlie. E ela estava convencida de que suas três irmãs menores tinham vista de falcão.

— Não quer o peixe? —inquiriu Isabela. Já era tão alta como Vivienne; em tempos recentes tinha começado a crescer com vigor e seu apetite demonstrava uma potência similar. — O molho está delicioso. Bem que comeria outra porção, se pensa em deixar a sua. Vivienne empurrou o prato para sua irmã.

— Faz como se fosse sua. Isabela atacou o peixe com tanto entusiasmo como se levasse uma semana em

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jejum. — Não gostou? —perguntou a calada Annelise, com evidente preocupação. Entre as

mulheres era a que seguia Vivienne em idade, com os dois varões ausentes entre elas. — Sugeri à cozinheira que pusesse alecrim ao molho, para variar. Não tinha intenção de desgostá-la.

— O molho está delicioso, tal como disse Isabela — assegurou com um sorriso. — Esta noite não tenho apetite; isso é tudo.

— Sente-se mau? —perguntou Elizabeth, a menor de todas.

Vivienne lutou contra sua frustração ao ver que todos os presentes voltavam para ela um olhar compassivo. Nessa casa nada passava sem comentários!

— Estou bem. — deu de ombros, consciente de que eles não afastariam a vista enquanto não oferecesse um motivo para esse humor. — É só que sinto falta de Madeline.

As irmãs suspiraram ao uníssono e desceram a vista a seus pratos. Até a Isabela deixou de comer por um momento.

— Talvez necessite de um conto — propôs Alexander, com tanta cordialidade que ela

desconfiou imediatamente. O mais velho dos irmãos, agora laird de Kinfairlie, tinha feito tantas travessuras no curso dos anos que qualquer gesto seu de boa vontade inspirava cautela.

— Contará a triste historia de uma donzela que se negava a casar-se por ordens de seu irmão — advertiu Elizabeth, sombria.

— Ao menos não estão aqui Malcolm e Ross para ajudá-lo em suas balbúrdias — disse Isabela. A donzela que todas compartilhavam estalou a língua, como se a mocinha tivesse falado com a boca cheia.

— Ross virá de Inverfyre pelo Natal — disse Alexander, com efusividade. — Sem dúvida trará saudações da morada de nosso tio.

— Malcolm é muito estudioso para fazer esse breve trajeto desde Ravensmuir, nem

sequer por nos visitar se queixou Elizabeth.

— Tio Tynan é um tutor exigente — esclareceu Alexander, em voz baixa. — Pode

acreditar: à noite seu irmão deve estar tão exausto que só poderá pensar em como satisfazer a seu senhor pela manhã.

Vivienne lhe lançou um olhar furtivo, pois ele raramente falava de suas experiências ao obter suas esporas sob a tutela do Tynan. Apanhou-lhe os olhos com um sorriso tão cativante que a moça piscou.

— Que deseja de mim, pois tanto busca meu favor? —perguntou abruptamente. Alexander se pôs a rir.

— Só desejo vê-la sorrir outra vez, Vivienne. Não sou o único que reparou em sua

tristeza nestas últimas semanas.

— Mas tem que ser, sem dúvida, o único que pensa que o assunto resolveria-se pondo um anel no dedo e um bebê no ventre — comentou Isabela.

As irmãs menores reviraram os olhos com essa idéia; diante dessa reação Vivienne se sentiu ainda mais sozinha.

— Contará-lhe a história de uma donzela a que a chegada de seu primeiro filho a fez

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muito feliz — insinuou Elizabeth. E as irmãs riram como meninas com tamanho absurdo. Vivienne não riu. Ao fim e ao cabo, só ela opinava que a idéia do Alexander tinha

algum mérito. — Já sabe quanto me agradam os contos — disse a seu irmão, com a sensação de

que talvez ambos tinham idênticos motivos. — Entretanto, não acredito que conheça algum que me seja desconhecido.

— Ah, pois assim é. E se trata de uma história referida na própria casa de Kinfairlie. — E como é que alguma vez nos contou isso? —exclamou Vivienne, fingindo-se

indignada. Alexander voltou a rir. — É que ouvi esta semana na aldeia; esperava o momento adequado para

compartilhá-la. — Limpou a garganta, enquanto afastava seu prato. Era um homem bem plantado, o irmão mais velho, e Vivienne já via em sua atitude os

efeitos de suas novas responsabilidades. Agora Alexander pensava antes de falar e se expressava com cautela, sopesando as palavras antes de lançá-las aos presentes. Tratava aos criados com justiça e sua autoridade inspirava respeito. Suas sentenças tinham fama de figurar entre as mais justas da zona e sua reputação já rivalizava com a de seu pai. O estava mais alto e mais homem do que era apenas um ano atrás, ao morrer seus pais. As irmãs menores, porém, não estavam tão apaixonadas por essa mudança. Em outros tempos Alexander tinha sido o companheiro de jogos preferido por todas; Vivienne sabia que Elizabeth, a menor, era a mais ressentida pelo novo papel do jovem, sobretudo por sua exigência de que todas se comportassem com decoro. Era uma mudança notável, pois ele tinha sido, dos oito irmãos, o menos interessado pelo bom comportamento.

Mas Vivienne sabia que o súbito falecimento dos pais tinha feito Alexander enfrentar um desafio nada fácil. Experimentou um orgulho súbito e apaixonado ao pensar nos lucros de seu irmão. Sem dúvida era muito que havia resolvido ou o que tinha encarado sem sequer compartilhar toda a verdade com os menores.

— Como bem sabem todas, no alto da torre de Kinfairlie há um quarto — começou ele, aceitando com desenvoltura que os olhares de todos os presentes se centrassem nele. — Entretanto, talvez ignorem o motivo pelo qual permanece deserto, com exceção das teias de aranha e do vento.

— A porta sempre esteve trancada — observou Vivienne. — Mamãe se negava a cruzar essa soleira.

— Foi papai quem fez colocar a tranca na porta — concordou ele. — Só tenho uma vaga lembrança de havê-la visto aberta quando era menino. A julgar pelos detalhes desta história, suponho que a trancou depois do nascimento de Madeline, quando eu tinha só dois verões. As irmãs se inclinaram para Alexander como uma só pessoa. A Elizabeth brilhavam os olhos, pois os contos lhe agradavam tanto como à Vivienne. Isabela, que já escondera a segunda porção de peixe, limpou os lábios e deixou o guardanapo a um lado. Annelise mantinha as mãos cruzadas no regaço, com sua quietude característica, mas seus olhos ávidos revelavam interesse. Até os criados rondavam o lugar entre sombras, atentos ao relato. Alexander apoiou os cotovelos na mesa e estudou a suas irmãs com um brilho

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alegre nos olhos. — Possivelmente não convenha lhes contar esta história. Refere-se a um perigo para

as donzelas inocentes...

— Tem que contá-la! —exclamou Isabela.

— Não nos provoque a curiosidade com uma parte! —protestou Vivienne. — Que perigo é esse, Alexander? —inquiriu Elizabeth. — Acredito que temos direito

a conhecê-lo. O jovem se fingiu preocupado e as olhou com cenho severo.

— Se me exigirem este relato, bem pode ser porque não são as donzelas inocentes que eu acredito.

— OH! —gritaram as moças ao uníssono.

E ele sorriu de orelha a orelha, com a malícia que elas conheciam tão bem. Annelise, que se sentava a um lado, pegou-lhe várias vezes em um braço. Do outro lado, Elizabeth o golpeou no ombro com tanta força que lhe arrancou uma careta. Isabela lhe arrojou uma parte de pão e lhe acertou na testa. Alexander pediu misericórdia, sem deixar de rir. Vivienne não pôde conter a risada.

— Deveria saber que não lhe convém nos caluniar assim! —admoestou, agitando um diante dele. —

Nem nos provocar com a promessa de um conto. — Rendo-me, rendo-me! —gritou o jovem. Depois de esticar o casaco e pentear-se

com os dedos, bebeu um gole de vinho para recobrar forças. — Demora muito em começar — o acusou Elizabeth.

— Meninas impacientes! —provocou-as Alexander. Depois começou: — Todas sabem

que, quando nossa bisavó era jovem, Kinfairlie foi arrasada por completo. —Beliscou a Elizabeth na face e ela se ruborizou até o carmesim. — Você leva o nome dessa intrépida antepassada, Mary Elise de Kinfairlie.

— E a propriedade foi devolvida pela coroa a Ysabela, casada com o Merlyn Lammergeier, laird do Ravensmuir — insistiu Vivienne, pois conhecia essa parte da história familiar. — Roland, nosso pai, era filho de Merlyn e Ysabela e o irmão mais novo de Tynan, quem agora manda em Ravensmuir, onde Malcolm se esforça por obter suas esporas. Nosso avô Merlyn reconstruiu Kinfairlie a partir de um nada, a fim de que Roland se convertesse em seu laird quando alcançasse a maioridade. —Depois revirou os olhos.

— Nos Conte algo que não saibamos homem! — E assim o selo de Kinfairlie passou às mãos de Alexander, filho mais velho de

Roland, quando este e sua esposa Catherine, nossa mãe, abandonaram este mundo — acrescentou Annelise, em voz baixa.

Os irmãos e os criados fizeram o sinal da cruz em silêncio; mais de um baixou o olhar ao chão, recordando essa dolorosa perda recente.

— Meu relato se refere a tempos mais felizes — disse Alexander, com forçada alegria.

— Pois ao que parece, quando Roland e Catherine vieram a Kinfairlie, recém casados, já circulavam rumores sobre esta propriedade e esse quarto.

— Que classe de rumores? —inquiriu Vivienne. Ele sorriu.

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— Diz-se faz tempo que Kinfairlie beija os lábios do reino das fadas. Elizabeth, estremecida de prazer, deu uma cotovelada em Vivienne.

— Tolices — murmurou Isabela. Mas as irmãs a sossegaram a cotoveladas.

Alexander continuou, sem lhes prestar atenção: — Embora Merlyn e Ysabela não passassem muito tempo aqui, havia entre os muros,

criados e um alcaide que se ocupava de administrar tudo na ausência deles. E aconteceu que o alcaide tinha uma filha, uma donzela encantadora, que era muito curiosa. Como no torreão só havia criados, posto que não fosse muito que podia lhe passar em um lugar tão novo e como, além disso, (preciso dizer-lo) ela não era isenta de encantos, que utilizava para fazer da suas (a diferença de certas donzelas que eu conheço)…

As irmãs rugiram seu protesto, mas o sorridente Alexander ergueu um dedo para pedir silêncio.

—… à rapariga tinha permissão de vagar por onde quisesse, dentro das muralhas. Assim, explorou o quarto do alto da torre. Segundo me disseram, esse quarto tem três janelas, e todas dão ao mar.

— Do posto de sentinelas que há embaixo se vêem três janelas — observou Vivienne. Seu irmão assentiu.

— O quarto tem boa vista, mas é terrivelmente frio, pois as aberturas se fizeram

muito grandes para os vidros e as persianas de madeira não opõem barreira ao vento, muito menos quando se desata uma tormenta. Por esse motivo ninguém passava muito tempo nesse quarto. Entretanto, esta donzela o fez. E assim notou que uma das janelas não oferecia a vista que correspondia. As nuvens que cruzavam o céu dessa janela nunca se viam emolduradas pelas outras. Nela se viam pássaros estranhos. O mar visto através dessa janela, nunca parecia o mesmo que se via pelas outras. A diferença era sutil; com um olhar pouco atento não descobria nenhuma discrepância, mas a donzela ficou convencida de que essa terceira janela era mágica. Perguntava-se se daria ao passado, ao futuro, ao reino das fadas ou a um lugar diferente por completo. Então resolveu descobrir a verdade.

— Era uma entrada ao reino das fadas! —adivinhou Elizabeth, entusiasmada. — Esse lugar não existe — protestou Isabela, revirando os olhos. — É só um conto, Isabela — repreendeu-a Annelise. — Não pode saboreá-lo como

tal? Vivienne se inclinou para frente no banco, enfeitiçada pelo relato e impaciente por

ouvir mais.

— O que aconteceu?

— Ninguém sabe com certeza. A donzela passou várias noites nesse quarto; quando perguntava o que tinha visto se limitava a sorrir. Assegurava não ter visto nada, mas seu sorriso, seu sorriso insinuava um milhar de mistérios. Aquilo cativou por completo a atenção de Vivienne, pois achava saber como tinha sorrido aquela jovem. Alexander continuou:

— Na manhã seguinte à terceira noite que ela passou nesse quarto, foi impossível achar à rapariga.

— O que diz? —estranhou Isabela.

— Não se apresentou à mesa. —Seu irmão deu de ombros. — A esposa do alcaide,

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segura de que sua filha se atrasava muito no leito, subiu a escada disposta a castigá-la. Encontrou fechada a porta do quarto; quando a abriu o vento era intensamente gelado. Temeu então que a menina tivesse pego muito frio, mas não a viu no quarto. A mãe se aproximou de cada uma das janelas para olhar para baixo, temendo que sua filha se matara ao cair dali, mas não havia sinais dela.

— Alguém a seqüestrou — opinou Isabela, sempre pragmática. Alexander negou com a cabeça. — Jamais voltou a vê-la. Mas aquela manhã, no parapeito de uma janela (acredito

saber qual), a esposa do alcaide achou uma única rosa. Parecia vermelha, vermelha como o sangue, mas assim que a pegou entre as mãos a flor começou a empalidecer. Quando chegou com ela ao salão a rosa era branca. E o alcaide mal teve tempo de vê-la antes que começasse a fundir-se. Era feita de gelo. E em poucos segundos se reduziu a um atoleiro de água no chão.

Alexander se levantou do assento para partir até o centro do salão. Ali indicou uma

mancha no chão, que Vivienne nunca antes tinha visto. Reverberava como se fosse feita de uma substância que ninguém teria podido identificar.

— Aqui caiu a água — indicou o jovem, com voz suave. — Uma anciã que trabalhava nas cozinhas, ao ver a marca e inteirar-se da história da rosa, lançou um grito de consternação. Ao que parece, existe uma antiga lenda de apaixonados feéricos que procuram noiva entre as mortais. E a porta entre seu mundo e o nosso se acharia no Kinfairlie. Os elfos podem espiar por esse portal, embora saibam bem que não deveriam fazê-lo, e algum poderia apaixonar-se pela donzela mortal a qual observa.

Alexander sorriu a suas irmãs.

— O preço que paga o feérico pretendente, quando se apodera de sua noiva, é uma

rosa muito vermelha, que na verdade não é uma flor, mas uma rosa feérica feita de gelo. —Esfregou o chão com a ponta do pé. — Embora sua forma não perdure, a marca de sua magia não se perde jamais.

Por um momento reinou o silêncio no salão; a luz das velas fazia com que a mancha do chão cobrasse mais brilho. Ele encolheu os ombros.

— Custa-me acreditar que nosso pai tenha prestado ouvidos a essa lenda, mas talvez, assim que teve uma filha, quis evitar que a trocassem por uma rosa de gelo.

— Alguém deveria averiguar a verdade — disse Isabela, decidida. — Isto deve ocultar alguma brincadeira de aldeãos.

Annelise estremeceu.

— Mas e se a lenda fosse verdade? Quem sabe aonde foi a donzela! Quem se

atreveria a correr o risco de segui-la? Vivienne cruzou as mãos com força, tratando de conter a língua. Ela sabia quem era

capaz de aceitar o risco. Sabia, com misteriosa certeza, que essa lenda tinha surgido à luz porque era uma mensagem para ela. Era o momento que esperava! Um marido feérico sentaria muito bem, sem dúvida, e também a aventura de viver em outro reino. Nenhuma pessoa sensata ignorava que as fadas eram gente rebelde e não muito bonita. Ela se

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adaptaria perfeitamente a esse mundo. Assim decidiu que essa noite dormiria no quarto da torre. Só devia achar a maneira

de fazê-lo sem despertar as suspeitas de seus irmãos.

Capítulo Dois A tarefa de Vivienne foi mais fácil do que pensava. Passou aquele serão com suas

irmãs, inclinada sobre seu bordado, embora devesse esforçar-se por dissimular sua impaciência. Trabalhavam em uma grande tapeçaria para o salão, da qual cada uma bordava um só painel. Uma vez terminada, a obra não seria tão boa como aqueles bordados que se traziam da França e Bélgica, mas teria o encanto de ter sido feita em família. O desenho era uma criação de Annelise, a mais hábil para desenhar com uma parte de carvão. Em toda a superfície pulavam seres míticos, cada um dos quais ia tomando forma lentamente, graças ao fio e a cor. Vivienne adorava o desenho e costumava desfrutar mais que de costume com esse trabalho, mas nessa noite a tarefa não lhe dava prazer algum. De fato, seus fios pareciam emaranhar-se e atar-se como por vontade própria.

O tempo passava com tanta lentidão que ela se sentia a ponto de gritar. Por uma vez

invejou Alexander, que devia retirar-se para repassar os registros contáveis de Kinfairlie. Os pés de Vivienne pareciam mover-se por conta própria, dando golpezinhos contra o chão.

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Escondeu-os sob as saias, com a esperança de que ninguém reparasse em seu desassossego.

— Está fazendo mais enredos que de costume, Vivienne — notou Isabela, que era tão ordenada como Madeline.

— Não tenho talento para o bordado, isso é claro — respondeu. Isabela retirou as lãs atadas de entre os dedos inquietos e se dedicou serenamente a

desenredá-los, fio por fio.

— O que não tem é paciência — disse, sem censura. — Não é o mesmo.

— Mesmo assim, habitualmente é mais hábil — comentou Annelise, enquanto observava Vivienne com certa preocupação. — Se sente mal?

A maneira de resposta, sua irmã bocejou e esfrego os olhos, como se estivesse muito esgotada para manter-se acordada; depois fingiu fazer um esforço por concentrar-se no trabalho.

— Parece cansada, Vivienne — apontou Isabela com o mesmo tom que teria empregado sua mãe.

— Você não costumava se cansar tão cedo — acrescentou Annelise. — Sempre é a última a deitar-se.

Vivienne deu de ombros. — Estou me sentido cansada durante todo o dia. — E ao jantar não comeu — recordou Elizabeth, sempre observadora.

— Talvez fosse melhor que se deitasse — aconselhou Isabela. — Pela manhã já estará bem.

Vivienne deixou seu trabalho com aparente relutância. — Reconheço que a idéia é atraente. — Anda, vá! —insistiu Isabela. — O trabalho sabe nos esperar com muita paciência. As outras irmãs riram e a maior não necessitou de mais insistência para separar-se

delas. Enquanto esteve à vista das outras subiu a escada com lentidão, com tanta lentidão

como se custasse levantar o peso de seus pés. Sorriu para si mesma ao ouvir que Isabela estalava a língua; logo cruzou o piso alto à carreira e foi em busca de uma vela. Como a lua era nova, nos quartos de cima não haveria luz. O torreão de Kinfairlie era, simplesmente, uma torre quadrada feita de pedra, tão alta que o pai de Vivienne a tinha comparado certa vez com um dedo apontando ao céu, tão alta que era visível de longe, até de Ravensmuir, o castelo de seu tio. Kinfairlie não tinha sido reconstruído exatamente com o desenho que tinha antes de ser arrasado. Agora se pensava que os muros de cortina eram muito difíceis de defender, por fim, as muralhas que rodeavam à fortaleza não tinham sido refeitas. Ainda ficavam restos antigos que delimitavam a propriedade, mas alguns lances cairam, outros estavam cobertos de espinheiros e certas partes tinham desaparecido por completo.

Apesar de tudo, bastavam alguns homens robustos para defender facilmente esse

torreão. A torre só tinha uma entrada, provida de restelo e uma ampla porta de madeira com tachas de ferro. Essa via de ingresso tinha sido desenhada com tanta habilidade que

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enganava a qualquer intruso, fazendo pensar que ia pelo corredor principal, quando em realidade esse corredor conduzia às masmorras. Uma vez ali, o intruso ficava apanhado e a mercê do senhor. Mais ainda: o corredor que na verdade conduzia ao salão dava muitas oportunidades para atacar a quem tivesse conseguido franquear esse vigiado portal. Além dessa entrada a torre era simples. O interior se caracterizava por uma escada que virava para cima, cobrindo uma quarta parte do perímetro por cada piso sucessivo. Em total tinha quatro pisos; o mais alto se caracterizava pelo teto inclinado, definido pelo extremo do telhado. No pináculo ondulava o estandarte de Kinfairlie, adornado com um círculo cintilante.

Vivienne conhecia a torre e seus murmúrios como a palma de sua mão. Sabia (e

provavelmente também seus irmãos) que degraus chiavam que canto era o bastante escuro para permitir que alguém escutasse sem ser visto. Deteve-se no patamar do segundo piso, em cima do salão, com o ouvido alerta para detectar a presença de seu irmão. Passou a grandes passos junto ao único quarto vazio desse andar, o que em outros tempos tinham compartilhado seus irmãos varões; por um momento se perguntou como estariam desempenhando os dois moços menores em seus respectivos adestramentos, no Ravensmuir e no Inverfyre. Sentiriam saudades de suas irmãs tanto como ela sentia saudades? Passou sem deter-se em frente do grande quarto que compartilhava com suas irmãs e continuou subindo a escada.

O piso seguinte constituía os aposentos do laird, incluída um grande solário e um

quarto menor, onde Alexander guardava os registros contáveis do imóvel. Ambos podiam defender das escadas e do corredor adjacente. Dali o senhor podia contemplar suas terras em três direções. No solário do senhor não havia nem uma vela acesa, embora sob a porta do aposento menor se via um resplendor. Vivienne adivinhou que Alexander continuava trabalhando. Passou silenciosamente em frente dele e continuou subindo, sem ruído, para o último piso da torre. A escada terminava no centro desse andar, com um aposento de cada lado, sob a inclinação do telhado.

Uma escada conduzia ao pico do telhado, com uma porta armadilha que permitia o

acesso à bandeira. O portal da esquerda estava um pouco entreaberto; ela sabia que esse aposento estava cheio de coisas que em algum momento se guardaram, pois pareciam úteis, só para cair no esquecimento, abandonadas ao pó. O portal da direita estava fechado com tranca e chave. No momento em que Vivienne se inclinava para estudar a fechadura ouviu umas vozes de homem que provinham de trás. Apressou-se a apagar a vela e a escorrer-se para as sombras protetoras do segundo quarto. A luz de um lampião se fez visível no muro da escada, tão de súbito que ela temeu ter sido vista. Fazia cócegas o nariz pelo pó que tinha levantado; teve que conter o impulso de espirrar.

— Essa velha lenda me fez pensar neste quarto — disse Alexander, como se

explicasse a outra pessoa por que subia até ali. Ao aproximar-se sua sombra caiu contra a parede; Vivienne retrocedeu ao interior do quarto. — Não entendo por que não a

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utilizamos.

— Talvez porque têm a casa cheia de donzelas — insinuou Anthony, obviamente vexado por ter sido convocado há essas horas.

— É só uma lenda caprichosa! — zombou o jovem. Logo se deteve farejar audivelmente. — Não sente um cheiro como de vela apagada?

Anthony se pôs a farejar, enquanto Vivienne lutava por dominar o comichão do nariz. — Deve ter subido do salão. Faz anos que ninguém sobe até aqui. — Hum — murmurou Alexander. Vivienne conteve o fôlego, segura de que se ele

abrisse a porta do segundo quarto a descobriria ali. — Tem que ser como dizem — reconheceu logo.

E ela lançou um suspiro de alívio. — Nem sequer deveríamos estar aqui milord — disse o alcaide. — Que mal pode haver nisso? —inquiriu o moço. — Ao menos eu gostaria de ver

esse outro quarto. Talvez fosse um lugar mais alegre para estudar esses registros contáveis.

— Se me permitir a franqueza, milord, suspeito que passaria mais tempo

contemplando o mar, se essa distração estivesse disponível. — Possivelmente não me viria de todo mal ter algo que me distraísse desses

condenados registros. "Remeto: uma libra de manteiga, três libras de alho poró, duas galinhas (uma

poedeira), como pagamento do endividado Cornelius Smith pelo uso de sua parcela. Pago ante testemunhas". "Recebida: dois xelins de dívida do cervejeiro do Kinfairlie, por não ter coberto a quantidade correspondente na Festa da Anunciação; dívida por falta de efetivo antes do solstício do verão". —Vivienne percebeu a risada na voz de seu irmão. — Na verdade se poderia perder a cabeça com tanto verificar essas intermináveis entradas.

— Mas quem não dedique tempo e esforço a essa tarefa se expõe a que lhe roubem até a camisa — advertiu o alcaide, seco. À moça não teve dificuldade de imaginá-lo agitando um dedo diante de Alexander. — Seu pai dedicava todas as manhãs a esses registros, milord, e por onde quer tinha fama de ser um homem justo a quem não se podia enganar.

O jovem deixou escapar um suspiro. — Disse-me isso mil vezes, Anthony. Temo que jamais poderei igualar a imagem que

têm de meu pai. — Podemos tentar milord. Vivienne espiou; os dois homens estavam de costas a ela; Anthony segurava o abajur,

que iluminava a linha tensa e desaprovadora de seus lábios. Também carregava várias ferramentas. Alexander se inclinou para dar uma olhada à fechadura. Depois tirou um tilitante molho de chaves e tratou de introduzir uma.

O alcaide pigarreou. — Parece prudente, milord? O jovem lhe dedicou um sorriso. — Não sente curiosidade no fundo? Faz mais de vinte anos que este quarto

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permanece fechado com chave. Como está sob minha soberania, tenho o direito e o dever de explorá-lo.

Anthony suspirou. Alexander foi provando as chaves uma a uma; eram tantas as que não serviam que Vivienne começou a perder as esperanças. Sentia o contato das teias de aranha contra a face e não se atrevia afastá-las, se por acaso o movimento provocasse algum ruído. O pó parecia formar redemoinhos— se em torno dela; esfregou subrepticiamente o nariz, que ardia. Para deleite seu, a penúltima chave da argola fez virar audivelmente os tambores.

— Ah! —Alexander deu um passo atrás e estudou as vigas de madeira cravadas

contra a porta. Vivienne, que espiava através da ranhura entre a porta e o marco, viu-o agarrar uma pesada ferramenta das que segurava o alcaide.

— Poderíamos trazer amanhã um cavalariço para que a abrisse, milord. Não seria correto que lhe fizesse mal com semelhante tarefa.

O jovem riu. — Não sou tão velho nem tão fraco! —depois de arrancar o extremo de uma viga,

retirou as outras com celeridade e as jogou no canto oposto à escada; depois sorriu largamente. À luz do lampião parecia peralta e imprevisível, como em outros tempos. — O que pensa que acharemos ali dentro, Anthony?

O alcaide esticou ainda mais os lábios, embora parecesse impossível. — Não posso sequer imaginar, milord. — Pois então daremos uma olhada. Alexander desceu o trinco e empurrou a porta. Imediatamente um vento frio se

enroscou nos tornozelos de Vivienne; ela estremeceu, embora sem deixar de observar o que acontecia a escuridão daquele quarto. O desejo de espirrar se tornou ainda mais forte; teve que conter a respiração para dominá-lo. Seu irmão pegou o lampião e desapareceu nesse quarto, fazendo ressoar suas pegadas.

— É grande! —Sua voz soava cheia de ecos. — Estas janelas são enormes. Não sente

estranho o custo de envidraçá-las fosse tão elevado. Mas a vista é uma maravilha. Deve vê-la! O alcaide não se moveu.

— Esperarei a manhã, milord. Ressoou uma risada de Alexander. — Não é possível que tenha medo! São as donzelas inocentes que correm perigo de

sofrer as atenções de pretendentes feéricos. Anthony soprou. — Não é medo, milord, certamente. Só cautela. — Aqui não há nada, salvo um velho catre de palha. É possível que seja o que usou a

moça para dormir? — Não tenho nem idéia, milord. —Anthony se ergueu um pouco mais. — Por certo,

aconselho-lhe que não o toque, senhor; pode estar cheio de insetos. — Ah! Intrépido teria que ser o inseto que resolvesse subir até aqui e subsistir sem

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alimento algum. O alcaide continuou imóvel, obviamente convencido de que esses parasitas audazes

existiam e, de fato, ocupavam esse aposento. — Mas qual será a janela em questão? —perguntou-se Alexander. — Não é que eu

preste muito crédito à lenda, claro está. Este é só um quarto grande e desabitado. —Apareceu na soleira, radiante de prazer. — Amanhã a faremos limpar. Possivelmente pergunte a meu tio Tynan se o preço do vidro abaixou.

Anthony pigarreou.

— Me permita lhe recordar, milord, que o tesouro do Kinfairlie não é tão abundante

como deveria. — Pois agora melhorou — aduziu o jovem, misteriosamente. Vivienne viu apenas o

brilho de seu sorriso antes que ele se voltasse novamente para o quarto. — Por certo, isto é muito adequado.

Depois dedicou a seu alcaide aquele sorriso confiante que fazia às irmãs suspeitarem que tinha um plano entre mãos. Antes que Vivienne pudesse perguntar-se a que se devia, ele voltou a descer a escada, ordenando a seu acompanhante ancião que se apressasse.

Vivienne ficou sozinha em frente a aquele quarto, que continha um portal para outro

reino. Embora a tentação de entrar imediatamente fosse grande, desceu sigilosamente ao salão. Ali se queixou diante de suas irmãs de estar aflita por um forte resfriado; fingiu rapidamente um calafrio e deixou escapar o espirro. Suas três irmãs se apressaram a opinar que necessitava um ponche quente. Uma vez que Vivienne teve a xícara fumegante na mão, retornou ao dormitório das moças em busca de suas botas favoritas. Tinham sido um presente de sua tia Rosamunde; eram de pele-vermelha, generosamente decorada com bordados justo debaixo dos joelhos. Além disso, eram muito abrigadas, pois estavam forradas com peles de coelho. Não duvidou em escolher sua melhor camisa, de linho muito fino, pois desejava impressionar com seus ornamentos ao amante feérico.

Era muito ampla e se fechava ao redor do pescoço com um cordão, à maneira típica,

mas tinha um detalhe distintivo nas mangas, estreitas do cotovelo ao pulso e abotoadas por dúzias de diminutos botões de concha. Não foi pouca façanha vestir essa camisa sem a ajuda da criada ou de uma irmã, mas ela conseguiu. Depois pôs sua saia favorita, outro presente de Rosamunde, que era feita de seda tecida em dois tons de esmeralda. As mangas, abertas desde os ombros, deixavam descobertas a camisa e chegavam até o chão, enquanto que a prega se arrastava por ele. A barra, o decote e as bordas das mangas estavam decorados com um complexo bordado de ouro. Os homens da família diziam que era um objeto muito pouco prático, mas suas irmãs a cobiçavam abertamente. Depois Vivienne fez um volume sobre seu colchão, para que as moças acreditassem que se agasalhara entre os cobertores.

Para invocar a boa sorte pôs sobre os ombros o manto forrado de peles, o mesmo

que Madeline tinha pego para usar durante sua aventura. Como a viagem de sua irmã mais velha tinha terminado bem, gostava da idéia de que esse manto trazia boa fortuna a quem

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o usasse. Sempre acontece assim nas lendas antigas. Uma vez preparada, até onde podia estar, para a gestão no reino das fadas, subiu a escada com seu ponche e um lampião. A chave refulgia na fechadura do portal, onde Alexander a tinha deixado. Pesada, a porta se abriu ao primeiro toque de sua mão; as dobradiças nem sequer chiaram. Os gélidos dedos do vento a envolveram e o céu da noite se fez visível através das três grandes janelas, no muro oposto. Vivienne apagou de um sopro a chama de seu lampião, deixando que as estrelas lhe iluminassem o caminho. Trazia uma pederneira, pois preferia economizar o azeite se por acaso tivesse uma grande necessidade de luz. Ao retirar a chave da fechadura, sentiu-a mais fria que o frio de sua palma úmida.

Como se a mesma chave estivesse feita com o gelo feérico da rosa. Vivienne encheu

os pulmões de ar e atravessou a soleira. Depois de fechar a porta apoiou as costas contra ela. Percebia o ruído do mar e o aroma de seu sal no vento; era como estar sozinha diante de um precipício. Os ruídos e aromas familiares do torreão se perderam atrás dela, como se estivesse muito por cima dos interesses e transporte mortais. Era fácil acreditar que esse lugar se achava entre dois reinos, que esse quarto silencioso era a soleira da aventura.

Embora observasse longamente cada uma das três janelas, não pôde identificar qual

era diferente. Em realidade, parte do problema residia em que não podia aproximar-se de nenhuma delas. Não tinha tolerância às alturas; nunca tinha podido saltar do degrau do batente nem lançar-se ao mar com seus irmãos. Conhecia muito bem a altura dessa torre para arriscar-se sequer a lançar um olhar para baixo desde suas janelas. Vivienne se sentou no colchão para beber seu ponche a goles e estudou com mais atenção aquelas janelas, enquanto aplicava sua vontade a dominar o errático ritmo de seu coração.

*****

Era uma noite sem lua, perfeita para um ato nefando. A força do costume fez que o

homem escondido aliviasse o peso da perna ferida, a fim de que estivesse bastante descansada quando chegasse o momento de avançar, e se manteve calado e imóvel. Seu plano estava perfeitamente traçado. Apesar de sua resolução, enquanto esperava sentiu a pontada da culpa. O engano não era algo natural nele, como tampouco a vingança, embora as circunstâncias o obrigassem a ambas as coisas.

O que havia dito ao Alexander era a verdade, embora não tinha confessado tudo

absolutamente, pois a verdade não lhe pertencia por inteiro. De fato, nem tudo o que havia dito era verdade. Por exemplo, esse primo ambicioso não existia, embora seu irmão guardasse ambições suficientes para toda uma família. Tampouco tinha intenções de casar-se com Vivienne na manhã seguinte, frente a um sacerdote e com a presença de testemunhas.

Não obstante, tinha muita necessidade de um filho varão. Na aldeia de Kinfairlie

soaram os sinos da capela; logo deram a hora. Meia-noite. Ele se esticou para escutar,

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temendo que nem tudo saísse como Alexander tinha prometido. Mas assim foi. Do outro lado do torreão estalou uma gritaria e os sentinelas correram para ali. Sem perder um momento, ele saiu da escuridão para jogar para cima seu gancho de ferro de abordagem, com a desenvoltura da prática. Na primeira tentativa ficou bem agarrado no parapeito; o ruído de seus movimentos pelo teto se perdeu no alvoroço da distração originada por Alexander.

O homem inspirou fundo e se lançou ao ar; sua bota esquerda colidiu com o muro,

arrancando uma careta de dor. Apertou os dentes para ignorar a dor e continuou subindo, com o coração trepidante. Pois na verdade o mais difícil da tarefa estava ainda por vir. Nunca tinha seduzido a uma mulher, salvo a sua falecida esposa, que estava bem disposta. Possivelmente Vivienne não estivesse disposta. Ao fim e ao cabo, o homem que escalava a torre de Kinfairlie, invisível nessa noite sem lua, não era Nicholas Sinclair. E a mulher que ele planejava deflorar e raptar essa noite era a única habitante do Kinfairlie que conhecia a verdade.

Através da bruma dos sonhos, Vivienne ouviu que os sinos do Kinfairlie tocavam a

meia-noite. O ponche a tinha posto para dormir, fosse pelo calor ou pelos ingredientes. Sentia-se abrigada sob o manto e cômoda nesse colchão; dirigiu para as janelas só uma olhada sonolenta. E então apareceu ele. A jovem percebeu sua presença como um comichão ao longo da coluna. Soube que tinha chegado; soube com uma certeza que deveria alarmá-la por seu vigor. Virou-se, com os olhos abertos, e viu sua silhueta contra a janela. Envolvia-o a luz das estrelas; seu cabelo loiro refulgia com uma luz sobrenatural.

Tinha vindo por ela. Vivienne não se atrevia sequer a respirar. Ele se deteve por um

momento com o céu noturno recortando sua silhueta no peitoril da janela, contra a maior escuridão do quarto. Ela compreendeu que estava habituando seu olhar à sombra; compreendeu que procurava algum sinal de sua localização, possivelmente de sua presença. Era corpulento, mais que seus irmãos, mais que nenhum de quantos homens conhecia. Agradou-lhe que fosse tão alto. Ela também era alta e não se sentia cômoda junto a homens a quem ultrapassava em estatura. Era algo mesquinho, sem dúvida, pois ao homem o mede por seu espírito; mesmo assim se alegrou de comprovar que seu amante destinado era mais alto que ela. Agradou-lhe que tivesse ombros largos e quadris ágeis, que fora magro, mas musculoso. E gostou do brilho dourado de seu cabelo.

Nicholas também era loiro. Nicholas, que a tinha descartado de maneira tão cruel

quando ela se negou a entregar-se por inteiro em troca de uma nova promessa vazia. Talvez, se Nicholas lhe tinha parecido atraente, era porque sabia que seu amante destinado teria cabelos de linho. Talvez algum pressentimento de seu destino a havia posto muito perto de fazer o ridículo. Mas isso já não tinha importância. Um movimento involuntário fez ranger a palha do colchão. Ele se virou imediatamente, alerta, e a jovem sentiu o peso de seu olhar como se a houvesse tocado. Sem dúvida ele via claramente até o fundo de seu coração palpitante, pois as fadas, conforme se diz, têm a vista extremamente aguda. Isso

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não importava, pois Vivienne não tinha nada que ocultar. — Vivienne? —perguntou ele, com voz grave e pastosa. Estremeceu-a de prazer o

fato de que ele soubesse seu nome e tivesse previsto sua presença. Devia havê-la espiado através do portal entre ambos os reinos. Na pele lhe fazia cócegas uma percepção nova; seus outros sentidos despertavam na escuridão que lhe envolvia a vista. A noite era como veludo contra a pele; as peles que forravam seu manto, suaves contra o queixo.

— Esperava-o— sussurrou, com voz estranhamente rouca. Ao esticar

precipitadamente a mão para o lampião esteve a ponto de derrubar o azeite; depois lutou torpemente com a pederneira. Em um abrir e fechar de olhos ele esteve ali, lhe cobrindo uma mão com a tibieza da sua.

— Esta noite não acenda luz alguma — insistiu. Sua mão era forte, tão grande que quase devorava os dedos de Vivienne. Não obstante, a pressão foi suave. O calor daquele corpo se ergueu junto a ela; o aroma de sua pele lhe acelerou o pulso. Deslizou um polegar pelo dorso de sua mão, em uma carícia, e a moça soube que seu coração não podia palpitar com mais força.

— É pela pederneira e o toque — arriscou ela, embora mal podia raciocinar debaixo desse contato que a desarmava. Em todas as lendas que ela conhecia as fadas rechaçavam o metal. — Não suportam sua presença, claro está.

— É pela luz — murmurou ele. — Prefiro descobri-la com sentidos mais agudos que a mera visão.

Então a beijou; apoderou-se de seus lábios com uma exigência que a sobressaltou com seu vigor.

Vivienne abafou uma exclamação e sua mão revoou contra aquele peito. Teria ansiado por ela, é claro. Teria observado-a do outro lado da soleira, mais e mais potente sua paixão a cada olhar. Vivienne não devia lhe ser desconhecida, embora ele sim fosse para ela. Apesar de sua falta de experiência em tais atos, trêmula, abriu a boca sob a sua. E então mudou a atitude de seu visitante. Foi como se a vacilação da moça tivesse suavizado seu desejo, como se sua cautelosa resposta despertasse nele certa ternura. Procurava, por certo, que ela respondesse. Isso era perceptível em sua maneira de beijá-la, de esperar que ela se habituasse à pressão de seu corpo, que respondesse, antes de aprofundar novamente o beijo.

Vivienne ficou enfeitiçada. Só um verdadeiro amante podia dominar assim sua paixão para não assustar a sua dama. Ele enredou os dedos em seu cabelo, segurando sua nuca para fazer um festim em seus lábios,puxou-a para pô-la de pé e o manto, que lhe cobria apenas os ombros, caiu ao chão. Antes que Vivienne pudesse sentir o frio da noite, ele a estreitou contra si; o trovejar de seu coração soava muito perto do próprio.

Percorreu-a com a outra mão, tocando suas curvas com suavidade de pena. Vivienne sentiu o coração acelerado quando as pontas daqueles dedos percorreram seu pescoço; quando passaram sobre seu peito o mamilo se contraiu; quando se detiveram em sua cintura lhe retesou o ventre. Dentro dela despertava algo ardoroso e rebelde, que ela teve o tino de reconhecer como desejo.

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Estava úmida entre as coxas e em seu beijo havia fome. Sabia exatamente o que desejava dele.

Pouco importava fazer o amor antes ou depois das bodas, pois as duas coisas chegariam a seu tempo. Não podia ser de outra maneira, pois ambos queriam estar juntos. Quando ele interrompeu o abraço Vivienne estava sem fôlego, mas ainda desejava mais desse novo prazer. Acreditou ver um brilho em seus olhos e lhe sorriu, embora não sabia se lhe devolvia o gesto.

— Isso foi estupendo — disse. -mais do que ninguém tinha direito a esperar — confirmou ele. A moça não lhe compreendeu de tudo. O ato de amor seria mais potente entre os

amantes predestinados? O visitante tirou o manto e, com um movimento elegante, estendeu-o em um arco

sobre a tosca cama. Quando estendeu novamente os braços para ela, Vivienne se sentiu tomada de prazer. Só lhe era possível a aquiescência, pois essa era a grande paixão que desejava acima de qualquer outra coisa. Foi ela quem se estirou nas pontas dos pés para exigir mais dele, quem lhe encerrou a rosto entre as mãos para atraí-lo para si. Aquela mandíbula era suave como a dos mortais quando acabam de fazer as barbas. Vivienne sabia que as fadas são eternamente jovens. Talvez seus varões não tivessem sequer barba. Seus dedos, na busca, acharam o pulso no pescoço; surpreendeu-a descobrir que estava tão acelerado como o seu.

— É possível que lhe inspire medo? — perguntou ela. Ele fez uma pausa para observá-la, embora Vivienne não chegasse a distinguir seu

rosto na escuridão. — Como teria podido imaginar que seria tão bem recebido? Suas palavras eram tão roucas que Vivienne ficou sem fôlego. — Como teria podido não fazê-lo assim? —Vivienne o tocou nos lábios com os seus e

gozou com sua exclamação de surpresa. Depois deixou que suas mãos deslizassem por ele, imitando o que ele tinha feito, e notou que voltava a surpreendê-lo. Ele a abraçou estreitamente e a moça afundou as mãos na sedosa espessura de seu cabelo. Depois se arqueou contra ele, audaz em sua flamejante paixão, e o ouviu inspirar bruscamente.

Seu visitante sussurrou algo e a levantou entre seus braços. Por um momento embriagador a reteve cativa contra o peito; seu beijo a deixou enjoada e ardente. Logo ele se fincou sobre um joelho, com seu peso no regaço, e deslizou a mão sob as pregas da camisa e saia. Vivienne sufocou uma exclamação dentro de seu beijo quando aquela mão cálida posou em seu joelho. Sua língua dançava com a dela, lançando faíscas por suas veias, e a moça quase esqueceu o peso de sua mão.

Depois aqueles dedos deslizaram coxa acima contra a pele nua, embora o beijo não se interrompesse. Ela abafou um grito de assombro quando os sentiu mover-se nesse calor que ninguém, salvo ela mesma, nunca havia tocado; a sensação lhe arrancou um gemido. Mordiscou sua orelha, beijou-a no lóbulo e traçou um ardente caminho com os lábios pescoço abaixo. Vivienne já estava perdida. As sensações que a assaltavam eram mágicas; sem dúvida estavam além do que saboreavam os simples mortais; eram o dom que o fazia.

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Aceitou tudo e ansiou ainda mais. Os dedos se moviam tentadores, provocadores, fazendo com que ela se retorcesse

de desejo. Ele desatou com os dentes o laço da saia e o da camisa; depois afastou o tecido com o nariz e a língua. Seu cabelo caiu contra a pele de Vivienne como uma suave cortina, enquanto aqueles dedos a levavam a um calor mais intenso com cada carícia.

Beijou-lhe com suavidade o mamilo erguido e depois o lavou com a língua, rindo baixo diante do suave grito de Vivienne. A moça sorriu ao vê-lo tão encantado; imediatamente gemeu ao sentir que ele sugava. No mesmo instante os dedos se afundaram em seu calor; o polegar se movia com tanta segurança que ela se agarrou a seus ombros. Em seu interior se desatou um tumulto que foi crescendo em intensidade sob seu abraço. Vivienne cavalgou na crista do desejo, sem saber aonde a levava. E de repente um milhar de luzes se acendeu em sua mente; percorreu-a um calor prazenteiro que a fez vibrar das têmporas à ponta dos pés. Essa nova sensação lhe arrancou um grito de prazer que ele engoliu em um beijo.

Embora ela respirasse em arquejos, embora estivesse certa de que em sua carne brilhava a transpiração, seu amante não lhe deu pausa. Estendeu-a no colchão para tirar suavemente sua roupa, enquanto ela continha o fôlego; depois jogou em um lado sua própria camisa e as calças. Vivienne, gemendo, sepultou o rosto nas densas peles de seu capote, ao mesmo tempo em que ele se ajoelhava para saborear a inundação que tinha criado. O desejo se agitou outra vez ao acariciá-la com a língua. Vivienne se retorceu e tratou de virar-se, mas ele a segurou com força, sem permitir fugisse do prazer que estava decidido a lhe oferecer. Ela se moveu; desta vez o clímax chegou com mais rapidez. Agarrou com força o capote, pois seu amante estava fora de seu alcance.

Quando chegou o momento cravou os dentes nas peles para sufocar seu grito de alívio e o encerrou entre seus joelhos, tremendo como folha ao vento. Isto era o que fazia sorrir Madeline: agora o compreendia bem. Antes que o ritmo errático de seu coração se acalmasse, ele estava estendido ao seu lado. Vivienne o estreitou e deslizou as mãos sobre ele, com o mesmo gesto possessivo com que ele a havia tocado; embora exausta, desejava que ele compartilhasse o prazer que lhe tinha dado. Sentiu a flexão de seus músculos sob a pele suave e percebeu outra vez a força que ele mantinha sob controle.

— Minha senhora — murmurou ele, enquanto lhe deixava um beijo dentro da orelha. Vivienne estendeu uma mão para baixo, bem segura do que acharia, e a fechou em torno de sua ereção. Queria lhe devolver as carícias, mas a surpreendeu que ele abafasse uma exclamação diante dessa carícia audaz. Afrouxou a mão e a jovem moveu os dedos seguindo sua indicação; agradava-lhe provocar a mesma tensão de desejo que lhe tinha inspirado. Além disso, sua própria paixão se reavivava ao notar que a respiração de seu companheiro ia se alterando. Era algo potente, isso de poder lhe dar tanto prazer, e ela desfrutou de cada grito sufocado, de cada gemido de prazer.

Sentiu-o tremer, com os músculos tensos, e viu em seus olhos o brilho da intenção. Ao notar que acelerava sua respiração, apoiou uma face em seu peito para escutar o coração galopante. Tocava-o agora com maior segurança, aprendendo depressa o que mais lhe agradava, saboreando seu efeito sobre ele.

Seu companheiro murmurou algo e lhe pegou a cintura. A força de seus dedos a

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rodeava quase por completo, fazendo-a sentir-se pequena e feminina. Ele a estendeu de costas e ficou sobre ela, sustentando seu próprio peso nos cotovelos. O pêlo de seu peito fazia cócegas nos seios. Quando seu cabelo dourado lhe tocou a face, Vivienne inalou seu aroma, o aroma do vento impregnado em seus cabelos. Sentiu toda sua longitude contra ela, essa carne tão diferente da sua própria, e se esticou debaixo dele, arqueada contra seu calor. O visitante enlaçou os dedos com os seus e ela acreditou vê-lo sorrir antes que sua boca a reclamasse uma vez mais. O beijo foi terno, mas possessivo; beijava-a a fundo e com uma lânguida serenidade.

Vivienne experimentou uma ardência de lágrimas, pois nunca tinha imaginado tanta doçura entre ela e seu parceiro; não tão cedo, sem dúvida. Ele se instalou entre suas coxas sem deixar de beijá-la, apertando-a como calor de seu corpo. A jovem abriu as pernas, sabendo perfeitamente o que devia acontecer, e fechou os olhos com força. Na esperança de que não fosse tão doloroso como se murmurava, aplicou sua vontade a receber a seu amante destinado.

Ele a penetrou com cautela, como se tivesse ouvido os mesmos rumores. Vivienne conteve o fôlego ao perceber seu tamanho, mas se agarrou a seus ombros, enquanto se habituava a essa nova sensação. Mas a dor foi fugaz. Enquanto ele se movia a surpreendeu uma súbita percepção de que os dois eram só um. Aprendeu seu ritmo para igualá-lo com o seu, enquanto o ardor voltava a crescer dentro dela. Ele deslizou uma mão entre ambos para tocá-la uma vez mais e seus dedos a fizeram remover-se sob seu peso. O corpo de Vivienne respondeu a esse contato com tanta segurança como se se uniram mil vezes dessa maneira. E ela soube que era o sinal dos destinos entretecidos. Uma selvagem alegria se apropriou de seu coração, pois tinha conseguido o que desejava mais que nada na vida.

Mesmo enquanto se maravilhava desse dom, a paixão se ergueu entre ambos em um crescendo implacável. Ela apoiou a mão contra o peito de seu amante e sentiu o coração que troava ali, em um eco do dele. Dois corações que pulsavam como um só, duas bocas que se saboreavam profundamente, dois corpos que sentiam a faísca vital no mesmo instante, duas vozes que gritavam juntas, em enlevado alívio. E quando Vivienne ficou adormecida no quente abraço de seu amante destinado, sorria na verdade com o sorriso que tanto tinha ansiado.

*****

Despertou-o o canto de um galo na aldeia; subitamente alerta, sentiu-se cheia dê um

bem-estar tão pouco familiar que, por um momento, não soube onde estava. Ainda estava escuro, embora já se visse uma mancha rosada no horizonte de poente. Bastou essa luz para revelar as feições da mulher que dormia a seu lado, com os lábios carnudos curvados por um sorriso. Então recordou.

O cabelo avermelhado de Vivienne cobria a ambos como a rede de um pescador. Olhou-a fixamente, saboreando a oportunidade de estudá-la sem ser observado. Era alta e de curvas amplas, coisa que ele já tinha percebido na noite anterior. Tinha os lábios grandes, olhos de pestanas densas e cútis clara.

Distinguiu algumas sardas no nariz; repetiam-se na clavícula, o que lhe dava um

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aspecto juvenil e vulnerável. E o sangue de sua virgindade manchava a camisa de linho enrolada nos quadris. Uma vez mais experimentou uma pontada de culpa, embora não se atrevesse a permitir-la levantou-se abruptamente para pôr distância entre ambos; sabia que a verdade não faria muito por aliviar o que devia sobrevir. Na verdade era sua própria fraqueza que o assediava. Não fora feito para utilizar ao próximo em proveito próprio, por muito justificados que estivessem seus objetivos. Vestiu-se com movimentos breves, fixo o olhar na mulher que dormia aninhada no espaço quente deixado por seu corpo, e se obrigou a pensar no que devia fazer.

Não o surpreendeu muito descobrir que detestava aquilo no que se convertera, embora esperasse com toda sua alma que a recompensa bem valesse o preço. Suas filhas não mereciam menos que seu empenho completo.

Capítulo Três Vivienne despertou sentindo um pouco de frio e se aninhou mais profundamente no

forro de peles de seu manto. Estava muito contente, pois tinha descoberto o que significava o secreto sorriso de Madeline. Sorriu por sua vez, enquanto alongava uma mão em busca de seu grande amor, mais que disposta a desfrutar novamente de suas carícias. Seus dedos se fecharam no vazio; imediatamente abriu os olhos. Era possível que tivesse retornado a seu mágico reino sem lhe dizer uma palavra?

Só o primeiro toque da aurora iluminava o batente do quarto; nos cantos ainda espreitavam as sombras. Os muros de pedra emanavam o frio da noite. As formas se discerniam como sombras contra as sombras, incluída uma grande silhueta masculina diante da janela. Vivienne suspirou com alívio. Ele estava de braços cruzados, com os pés bem plantados contra o chão; o céu, as suas costas, era uma pérola rosácea luminescente. O capuz lhe cobria a cabeça e deixava suas feições em uma sombra mais intensa, embora Vivienne soubesse que a observava com avidez. Seu grande tamanho, sua imobilidade, poderiam tê-la intimidado, a não ser pela ternura com que ele a tinha introduzido aos

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deleites do leito marital. Mas ela sabia desse homem o suficiente para não experimentar medo algum.

Brindou-lhe um sorriso, embora não podia ver se ele respondia de igual maneira. Logo se endireitou, consciente de que seu cabelo teria escapado da trança, de que tinha a camisa enredada em torno da cintura, de que parecia uma moça plenamente saboreada e saciada. Por uma vez na vida não se importava de ser menos bela que Madeline.

— Não pensa em partir tão logo? —inquiriu. — Ainda está escuro. Acredito que pode retornar a meu lado por alguns minutos mais. —afastou-se para trás para lhe abrir espaço no colchão, mas ele não se moveu.

— Já é tarde — disse com voz seca, enquanto lançava um olhar muito breve à janela. Não suavizou o tom ao acrescentar: Vista-se. Partiremos imediatamente.

Vivienne fez um esforço por achar sentido a suas palavras e sua atitude. — Partir? Mas se só passamos uma noite no leito! — E isso basta para requerer que partamos imediatamente. —Ele cruzou o quarto

para recolher do chão a saia e, depois de sacudi-la com impaciência, ofereceu a ela. Vivienne afastou o cabelo da fronte. — Mas não é isso o que esperava — aduziu. — A lenda dizia claramente que haveria

três noites de corte, não uma só, e uma rosa vermelha como pagamento pela noiva antes das núpcias.

— O pagamento por você foi muito maior que uma simples rosa — replicou ele com

aspereza. E tratou de entregar novamente a saia. A jovem o olhava, atônita, atacada por uma aterradora sensação. Acaso tinha

confundido uma lenda com alguma outra verdade? O que teria feito Alexander? — Apresse-se. Não há tempo a perder. Ela se levantou relutante, e pegou o traje com a esperança de que seus temores

fossem infundados. Na transação tratou de lhe tocar a mão, mas ele afastou os dedos. Fosse por acaso ou com intenção, seu gesto fez que a confiança da moça vacilasse ainda mais.

— Não é possível que já tenha pago o preço pela noiva —alegou ela, com o coração quase na garganta— Suponho que conhece seu valor e sua intenção é pagá-lo daqui a dois dias.

— Está pago e, sem dúvida, já meio gasto. — Que preço pagou? —Como pensava que não lhe responderia, continuou em tom

firme: — Acredito que tenho direito a conhecer o mérito que me atribui. — Uma bolsa de moedas de prata, da qual seu irmão se apressou a apoderar-se. Vivienne fez uma careta de dor diante do duro de seu tom e tentou defender a seu

irmão. — Alexander não pode ter aceito dinheiro em troca de minha mão! — Pois o fez, por certo. —Seu amante indicou o chão com um gesto impaciente. —

Seu cinto está do outro lado da cama; suas botas, neste. Disse que devemos nos apressar. A jovem tratou de distinguir as feições ocultas sob o capuz. — Não é um pretendente feérico — disse, embora já soubesse a resposta. Diante disso ele se deteve, provavelmente para observá-la melhor.

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— Não, certamente. Por que lhe ocorreu essa fantasia? Fantasia. Muito tarde, a verdade ficava perfeitamente clara. Vivienne cravou a vista

na saia que tinha nas mãos e se sentiu incomparavelmente idiota. O relato do Alexander tinha sido só um estratagema para induzi-la a dormir na torre. Não era por coincidência que seu irmão tivesse deixado a porta sem tranca na noite anterior.

Seu irmão tinha feito uma brincadeira pesada, como tantas outras vezes. Ao enganá-la tinha roubado a possibilidade de escolher. Pior ainda: seu próprio temperamento impulsivo a tinha traído; agora sua virgindade estava perdida.

E para cúmulo do mau, perdida com um homem cujo nome não sabia, a quem tinha sido vendida.

— Alexander é um sem vergonha! —declarou, sem incomodar-se em dissimular sua cólera. Era melhor que revelar seu medo. — Como se atreveu a vender minha mão? Jurou a Rhys que não repetiria esse equívoco...

— Pois já se vê quanto vale sua palavra — apontou seu amante, seco. — Ao que parece em nosso país há uma praga de enganos.

Mas a Vivienne não importava o que opinasse ele sobre seu irmão. Pensou em sua tia Rosamunde, que se negava a obedecer aos ditados dos homens, e ergueu o queixo em um gesto de desafio.

— Não cederei a este acordo por prazer a meu irmão nem tampouco a você — disse com firmeza. Seu amante voltou a ficar imóvel, alerta e cauteloso como um falcão em plena caçada. — Como não me informou de seus acertos, não aceitarei os termos que tenham acordado, quaisquer sejam.

— O que significa isto?

— Não irei com você. —Vivienne cravou um olhar fulminante no homem que tinha sido capaz de comprá-la. Não gostava que lhe ocultasse o rosto. Era na verdade um desconhecido? Ou acaso não desejava que ela o reconhecesse antes de abandonar-se ao seu amparo?

— Não têm opção — replicou ele. — Seu irmão a vendeu como uma bagatela. E como bagatela, não pode decidir quando ou aonde ir.

Bagatela? Não teria podido escolher uma palavra menos atraente!

— Teria que ser muito idiota para abandonar a morada familiar com um desconhecido

que não revela seu nome nem seu destino, que não mostra sequer seu rosto. Como ele continuasse sem mover-se, sem falar para acalmar suas dúvidas, passou a

formosa saia pela cabeça e atou os lados com gestos selvagens. — Qualquer que seja o preço que pagou, aconselho-o que abandone Kinfairlie antes

que convoque às sentinelas contra você. Ele cruzou a distância que os separava com um passo decidido e lhe segurou o

queixo. O gesto não foi violento, apesar da ira que parecia palpitar nele, e Vivienne experimentou um perigoso desfalecimento de sua vontade sob o contato. Era muito fácil recordar como a tinha acariciado, procurando provocar suas respostas, com quantos gestos a tinha levado a participar no ato de amor. Compreendeu que seu caráter só podia refletir-se nesse ato ou em suas palavras atuais, não em ambos. Não era possível que seu temperamento fosse, ao mesmo tempo, terno e duro.

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Mas qual era a verdadeira medida desse homem? Até sabendo que as mentiras se forjam mais facilmente com palavras que com fatos, essa era uma certeza muito fraca para jogar seu futuro.

— Quem a ajudará agora que seu irmão cobrou o seu? —inquiriu ele. Havia uma verdade nada atraente em suas palavras. — É minha, minha, pois ele aceitou meu dinheiro em troca.

Ela não era um objeto! — Não pertenço nem pertencerei jamais a homem algum. —Vivienne cravou um

olhar furioso nas sombras do capuz. — Não pode me obrigar a fazer sua vontade, posto que entre nós não há vínculo algum.

A mão desse homem se fechou em torno de seu braço, levantando-a um pouco do chão. Era impossível não ver quanto maior era. Sua confiança começou a fraquejar.

— Não posso? —murmurou ele, como se captasse sua incerteza. E começou a mover o polegar contra sua carne em círculos lentos. Até através da manga vincada da camisa, fazia despertar nela um desejo traiçoeiro.

Mas não se podia confiar só no desejo. — Não lhe facilitarei as coisas — assegurou. — Não espere docilidade de mim! — Não há necessidade de que a amarre como um cordeiro destinado ao sacrifício —

protestou ele, impaciente. — É claro que nossos caminhos estão unidos. Mais claro ainda que nosso caminho será mais fácil se aceitar esta verdade.

Vivienne largou seu braço e deu um passo atrás, desconfiando do poder de seu contato.

— Me mostre o rosto. Diga-me seu nome.

Então foi ele quem retrocedeu para que a jovem não pudesse lhe agarrar o capuz. Esse empenho em ocultar o rosto só conseguiu que Vivienne se obstinasse em vê-lo. Quando menos podia lhe conceder isso!

— É melhor que me acompanhe — assegurou ele, falando com mais suavidade. — Poderia estar gerando meu filho.

— Depois de uma só noite? Não me parece possível! —Embora se mostrasse desdenhosa, seu espírito vacilava.

O tom do homem voltou a endurecer-se.

— Têm sete irmãos, todos nascidos da mesma mulher, e sua irmã concebeu muito

logo depois das núpcias. Ouvi comentários na aldeia. Não seria tão estranho que seu ventre frutificasse tão cedo, menos ainda em uma família tão vigorosa como a sua.

Vivienne cruzou os braços contra o peito. — Pois prefiro aceitar essa perspectiva a partir com um desconhecido. O pior preço a

pagar seria a vergonha.

— Seu destino poderia ser pior que a mera vergonha, embora essa é mais difícil de

suportar do que se acredite —advertiu ele, com serena persistência. — Seu irmão não perdeu tempo em vendê-la em matrimônio; bem poderia fazê-lo outra vez. —inclinou-se para ela, com persuasivas palavras. — E que classe de marido conseguirá, agora que já não é virgem? O que pensará esse homem se seu ventre se avultar muito logo? O que fará quando lhe oferecerem o filho de outro?

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Para espanto de Vivienne, ele estava perigosamente certo. A jovem retornou a cama

para ajustar o cinto, atar as ligas e calçar as botas. Embora com a vista velada pelas lágrimas, não estava disposta a lhe deixar ver quanto a decepcionava com tão duras perguntas. Preferia a magia que ambos tinham criado a noite anterior. Acaso era um sonho, esse homem que lhe tinha unido no leito com tanto respeito e afeto? Deu uma olhada ao encapuzado, que continuava silencioso atrás dela; teria gostado de ter certeza de seu temperamento. Já completamente vestida, com o manto jogado sobre um ombro, virou-se para enfrentá-lo com um oferecimento impulsivo.

— Se tão nobres forem suas intenções, me despose. Assim não terei mais opção que a

de acompanhá-lo. Ele meneou a cabeça. — Não haverá núpcias entre nós. Para Vivienne foi uma impressão muito desagradável que a tratasse com tal desonra. — Não sou nenhuma cortesã nem quero sê-lo. — E eu não pisarei em nenhuma capela antes de ter recuperado tudo o que é meu —

replicou ele. A jovem não teve oportunidade de perguntar o que tinha perdido, pois ofereceu sua mão direita. — Darei a você a promessa de concubinato, à antiga, por um ano e um dia. Se nesse tempo algum dos dois encontrar falta no outro, ambos ficaremos em liberdade desse ponto em adiante.

— E se tiver um filho?

— Será na verdade meu filho. Criar-se-á em minha casa, com todas as vantagens que

eu possa lhe oferecer. Era um oferecimento muito magro comparado com o casamento, mas, ao ter perdido

sua virgindade, Vivienne temia ter muito pouco que negociar. Deu uma olhada à mão masculina; um raio de sol dourava sua força. Não era assim como tinha imaginado que uniria seu caminho ao de um homem e ainda não estava disposta a acreditar que essa fosse sua única opção.

Provou a pôr sua mão na dele e ficou novamente sobressaltada ao ver que esses dedos engoliram os seus. Quando ofereceu a mão esquerda, cruzando-a sobre a direita com a palma para cima, Vivienne fingiu agarrá-la, mas fez um rápido movimento para o capuz, tão veloz que ele mal alcançou lhe segurar o pulso.

— Quero ver seus olhos enquanto pronuncia seu voto — protestou ela. — Nenhum homem de valor temeria permiti-lo.

— Não me olhará. — Por quê? — Porque eu o proíbo — respondeu ele, em um tom que não admitia discussão. Mesmo assim Vivienne tratou de discutir. — Poderia ser um foragido ou alguém de quem conheço bem a reputação — aduziu.

— Poderia ser alguém que me atacou em outros tempos. Ou alguém que ganhou meu ódio.

— Asseguro que não sou nada disso. — Não me basta sua palavra. Não pode pretender tanto de mim em troca de tão

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pouco. —A jovem, ao perceber que ele vacilava, aproveitou para liberar sua mão e se apressou a lhe jogar o capuz para trás.

Ele a olhou fixamente, com expressão impassível e os olhos estranhamente azuis. Foi um alívio para Vivienne ver que era desconhecido; não se tratava de um desalmado cujas intenções ela tivesse rechaçado antes. Possivelmente não devia sentir-se aliviada, posto que seu nome continuava sendo um mistério, mas esse olhar sereno inspirava confiança. A cicatriz do rosto deveria causar o efeito contrário. O capuz pendia do pescoço como uma cogula, deixando as feições a descoberto. A luz do sol nascente mostrava a carne enrugada de uma ferida fechada. A linha começava na têmpora, empurrando o extremo da fronte para cima; passava muito perto da comissura do olho, cruzava a face, puxava a boca e terminava no meio do queixo, acentuando possivelmente uma covinha que sempre tinha existido.

Vivienne se sentiu acossada por uma vaga sensação de familiaridade, como se conhecesse alguém de sua família, mas até isso distava muito de ser claro. Permitiu-lhe investigar sua cicatriz sem sequer piscar. Parecia esperar que ela se afastasse, espantada. Depois de estudar aquela lesão sem pressa, em toda sua extensão, ela o olhou nos olhos sem vacilação, saboreando sua convicção de que essa reação sua o tinha pego de surpresa.

— Achava que o rejeitaria só por esta cicatriz — o acusou com suavidade. — Não tenho tão pouco miolo para pensar que o valor de um homem se mede por seu rosto.

Ele a olhou por um longo instante, entre a incredulidade e o cepticismo. Seus olhos cobraram um azul mais apaixonado. Vivienne se perguntou o que estaria pensando. Tinha consciência aguda daquela mão, protetoramente fechada em torno da sua, e engoliu em seco quando ele voltou a lhe segurar a outra. O polegar se moveu contra sua pele em uma carícia lenta, talvez deliberada, talvez não. O quarto da torre pareceu esquentar-se em torno dela. A mera presença desse homem alterava o ambiente; até o som de sua respiração fazia cócegas na carne. Afetava-a como nunca em sua vida a tinha afetado ninguém. Seu olhar sereno abrandava sua resistência de uma maneira muito preocupante.

— Como mede, pois, o valor de um homem? — Por seus feitos — respondeu ela, com suavidade. — Embora esta manhã os seus

revelam pouco mérito. Uma sombra tocou os olhos de seu amante; sua expressão se escureceu por um

momento. — Pois então este será um fato melhor. —Estreitou-lhe as mãos com suave decisão,

olhando-a nos olhos com tanta firmeza que ela não pôde afastar a vista. — Juro, Vivienne Lammergeier, que a tratarei com grande honra durante um ano e um dia; que cuidarei de a proteger e a honrar; que se me der um varão será reconhecido como meu filho; que passados esse ano e esse dia ambos teremos a oportunidade de decidir se queremos permanecer unidos ou não.

Soltou-lhe a mão direita e seus dedos buscaram sua face. Eram mornos; seu contato, leve como o de uma mariposa em uma flor. Vivienne se descobriu virando a rosto para lhe tocar a palma com os lábios, seduzida outra vez pela reverência desse contato. Aqueles dedos roçaram a curva de sua face e o lábio inferior; depois lhe encerraram o queixo. Ao olhá-lo aos olhos, qualquer rastro de desafio ficou dissolvido. O certo era que a noite

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anterior esse homem teria podido violá-la, mas a tinha tratado com ternura. Tinha cuidado de que ela encontrasse prazer em sua primeira experiência do ato amoroso. Até agora se preocupava com o futuro do filho que ela pudesse lhe dar. E na verdade Alexander poderia lhe consertar um matrimônio muito pior, pois já não era donzela.

Nesse momento ele se aproximou, com os olhos turvados pela intenção de beijá-la. E Vivienne era tão fraca que não desejava outra coisa. Era cauteloso, sem dúvida, pois não havia homem que, depois de ter recebido uma ferida tão violenta, não sentisse um pouco de medo diante de seus semelhantes. O talho tinha sido feito com uma arma branca, obviamente; ela estremeceu por dentro ao imaginar o que teria sofrido. Os lábios de seu amante se juntaram aos seus; ele a beijou com decisão, como se reclamasse o que lhe correspondia. Vivienne compreendeu que uma moça mais sensata teria rechaçado o abraço, teria se afastado dele enquanto não se revelassem todos os mistérios. Mas ela se descobriu recebendo o gesto de bom grado, lhe jogando os braços ao pescoço, desfrutando da maravilha de seu beijo. Ficou nas pontas dos pés, pois, embora fosse alta, ele era mais. O homem deslizou uma mão em seu cabelo, sob a nuca. As mãos de Vivienne se posaram em seus ombros; os seios se chocaram com seu peito. Fechou os olhos e não houve mais que seu beijo; nada, salvo ele e seu desejo de levá-la consigo.

Nada, salvo o desejo que despertava. O homem a estreitou mais e ela esqueceu quase tudo o que sabia que era certo. Mas não tudo. Vivienne separou bruscamente os lábios daquela boca e ele a soltou, sem deixar de olhá-la. Ela retrocedeu; seus pensamentos foram esclarecendo com cada passo que interpunha entre ambos. Afastou a vista, lutando por recuperar o bom senso.

Não bastava beijos e promessas, não se eram os de um homem que não lhe revelava sequer seu nome, que tinha tentado lhe ocultar o rosto. Agora lamentava ter visto a cicatriz. Conhecia muitas lendas de homens traídos que procuravam justiça, de rostos espantosos que mascaravam um coração de ouro. Conhecia muitos contos nos quais uma mulher audaz e seu amor eram a salvação de um homem que tinha perdido tudo.

Era muito fácil ver-se a si mesma em uma história dessas, esquecer quantas vezes se prejudicara por deixar-se levar por um impulso. No fim de contas, era uma lenda e sua fé nela o que a tinham conduzido a essas circunstâncias.

— Se apresse — disse ele, em voz baixa. — Devemos partir imediatamente. — Não. Não posso ir. —As palavras do Vivienne surgiram velozes, em seu empenho

de tomar uma decisão sensata. — Não posso partir com você. É muito cedo. Deve me dar mais motivos para confiar em você. É preciso que esta noite voltemos a nos encontrar aqui.

— Não tema, Vivienne — pediu ele. Bastava pronunciar seu nome para que sua convicção desaparecesse! Ela levantou

três dedos, zangada ao ver que lhe tremia a mão.

— Três noites, como dizia a lenda. Ele meneou a cabeça e se aproximou um passo mais. — Essa lenda, qualquer que fosse, não é verdadeira. Partiremos imediatamente. — Quero três noites de cortejo e uma rosa vermelha feita de gelo — insistiu

Vivienne, teimosa. Sabia que era uma exigência descabelada, mas precisava afastar-se dele por algum

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tempo para decidir um plano de ação. Queria falar com Alexander, averiguar por que tinha feito essa aposta; queria pensar sem ter fixa nela o compulsivo olhar azul de seu amante.

— Não há tempo — falou ele. — Deve haver. —A jovem partiu a passo rápido para a porta, com intenção de fugir.

Era a decisão correta? Não sabia; não podia raciocinar com o sabor desse homem nos lábios. Mas sem dúvida a prudência não seria mal recompensada, embora ela tivesse tão pouca experiência nesse aspecto que não podia ter certeza. Sabia, não obstante, que a impulsividade era má conselheira. Nesse momento cantou um galo na aldeia de Kinfairlie. Ela o ignorou, e também a maldição murmurada por seu companheiro. Não ouviu seus passos; não soube que se moveu até que lhe rodeou a cintura com um braço. Então gritou, mas ele a jogou ao ombro com perigosa facilidade.

— Ainda não! —Vivienne tentou resistir, mas não lhe dava oportunidade de escapar. — Dei-lhe palavra de compromisso, entregou-se a mim e seu irmão aceitou seu

preço. —O homem cruzou o quarto, sem deixar-se afligir por seus protestos. — A sorte está arremessada, para bem ou para mau, por um ano e um dia.

— Disse que ainda não! — E eu disse que não pode escolher — assegurou ele, enquanto se aproximava do

batente. — Já perdemos muito tempo. Ao ver o chão tão abaixo, Vivienne voltou a cair no pânico. — Não! — gritou, muito consciente do que ele pensava fazer. Sem intimidar-se, seu companheiro pegou a corda que ainda pendia da janela e se

desprendeu com ela para o ar do amanhecer, com uma audaz segurança que ela não podia imitar.

Escondeu o rosto no casaco de seu amante, agarrou-se a seu ombro e começou a rezar, embora o estômago se revolvia em protestos. Ele plantou firmemente os pés no muro.

— Segure-se com força, pois necessito as duas mãos para agarrar a corda — ordenou.

Não ficava outra opção se não quisesse cair para a morte. Agarrou-se a ele, sem que importasse lhe cravar os dedos como garras. Mas não guardou silêncio, embora sem dúvida era o que ele preferia.

— Socorro! —uivou. — Despertem sentinelas de Kinfairlie! Auxiliem-me!

— Cale-se! —grunhiu seu captor. Mas a jovem tinha tão pouca intenção de obedecer como ele de ceder a suas

exigências. Uivou com vigor. E teve o gozo de que outro grito lhe respondesse do caminho de ronda.

Uma sentinela lançou a voz de alto de seu posto. Junto a eles passou voando uma flecha que se cravou na parede. O amante de Vivienne lançou uma maldição e começou a descer mais depressa.

— Me socorram! —gritou ela. — Sou a irmã do laird este homem quer me raptar!

Seu captor deteve a descida o tempo necessário para trazê-la para frente e lhe colocar uma de suas luvas de couro na boca.

— Despertará toda a aldeia — disse. O aborrecimento fazia que em seus olhos

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saltassem chamas de safira. Vivienne protestou, mas a luva apagava suas palavras e ela não se atrevia a soltar

uma mão para tirá-la. Ele voltou a carregá-la ao ombro, com tão pouca dificuldade como se fosse um saco de cereais. Por sorte os sentinelas já a tinham visto e ela tinha podido informar sobre as circunstâncias. Seu raptor não chegaria longe. Não obstante, para surpresa dela, depois da primeira flecha não houve nenhuma outra. Ela reuniu coragem para olhar: três dos sentinelas de Kinfairlie conferenciavam em meio da neblina matinal. Embora estivessem apenas a quarenta passos de distância, não faziam nada por intervir.

Pelo contrário, apoiaram-se nos arcos para observá-los. O que significava isso? O seqüestrador chegou ao chão e a carregou nos braços, com os joelhos bem

rodeados e os cotovelos seguros nos lados. Sua expressão era de aborrecimento. Enquanto atravessava a aldeia, a passo longo e decidido, ela notou que coxeava. Mesmo assim avançava numa velocidade impressionante, sem que as resistências da moça conseguissem detê-lo. E os sentinelas continuavam sem fazer nada para auxiliá-la.

Ele baixou a vista; deve ter reparado na surpresa da moça e adivinhar o motivo, pois lhe informou, enquanto partia para uma das muralhas ruídas:

— Comprou-os. E assim seu destino está decidido. Seu irmão se encarregou de que eu pudesse escalar a torre sem ser visto e é claro que seus homens receberam ordens de não intervir. Não necessitam mais sinais de seu acordo.

Com essas palavras Vivienne deixou de resistir, além disso, não lhe ocorria outra explicação para o que estava acontecendo: Alexander devia ter indicado aos sentinelas que não impedissem seu rapto. O sombrio seqüestrador não dizia, porém, algo que também devia ser verdade: para ter aceito esse trato, era preciso que Alexander tivesse absoluta confiança no futuro que lhe esperava junto a esse homem. Se tinha aceitado um cortejo tão desacostumado devia ser porque tinha um bom conceito de seu captor. Era impossível imaginar que seu irmão queria casá-la com alguém capaz de lhe fazer mal; gostava das brincadeiras, mas não era cruel.

Quem era esse homem? No momento não se mostrava inclinado a revelar seus segredos. Cruzou-a na garupa

de um cavalo que estava oculto junto à muralha ruída. Vivienne mal conseguiu endireitar-se antes que ele montasse atrás. Depois a estreitou com força contra si e picou esporas. A moça não era tão idiota para lançar-se do lombo de um cavalo posto ao galope, mas seu captor a segurava de tal modo que não lhe deixava a menor possibilidade de fazê-lo.

Os frangos de Kinfairlie se espalharam ante eles; baliram duas cabras. Os sentinelas, apoiados nas espadas, presenciaram com ar indiferente a partida do cavalo.

— Tudo vai bem! —gritou um, enquanto os sinos da igreja tocavam a primeira hora.

Sem dúvida alguma, Vivienne teria opinado o contrário. Com súbito ardor, desejou saber o que seu irmão sabia. Mas duvidava que o homem montado atrás lhe revelasse algo.

*****

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Elizabeth, a menor dos irmãos de Kinfairlie, despertou cedo por causa de certo alvoroço no caminho de ronda. Como ouviu os sentinelas gritar que tudo estava bem, acomodou-se de novo na calidez de seu colchão. Mas embora tratasse desesperadamente de retomar o sono, fracassou. Elizabeth tinha sido amaldiçoada com a faculdade de ver as fadas. Em realidade, sentia-se amaldiçoada por ser capaz de ver uma fada em particular, uma spriggan chamada Darg, que tinha talento para formar casais e se afeiçoara a Elizabeth desde que a donzela salvou sua vida.

Nessa manhã, em especial, a mocinha não compartilhava seu afeto, pois era Darg quem a mantinha acordada. Algo a havia posto nervosa e teimava em dançar sobre o peito de Elizabeth. A garota começava a perguntar-se como lhe tinha ocorrido impedir que a spriggan se afogasse em um jarro de cerveja. Aquela manhã lhe parecia que teria sido preferível abandoná-la a sua sorte. O surpreendente é que o fato de ter estado tão perto de falecer não tinha diminuído na Darg a afeição à cerveja. O certo é que a spriggan tinha um pecaminoso apego a essa bebida, embora a afetasse ainda mais que aos mortais. Talvez essa fosse a raiz de sua predileção.

— Fez mal, ontem à noite, em acabar toda a cerveja reprovou a menina, triste. — Sempre fica inquieta. E assim não posso descansar nem um pingo.

Darg lançou uma gargalhada enquanto dançava sobre o peito de Elizabeth. — Grandes sucessos no Ravensmuir; hoje viajaremos para lá. — Não, hoje não iremos a Ravensmuir, por muito que o deseje. Darg gritou como se algo lhe doesse. A mocinha fez uma careta; não lhe era nada

grato ser a única e sua família que podia ver ou ouvir a spriggan. — Por colinas ou vales, rosaledas e espinheiros, hoje os ditosos procuram seu

caminho. Elizabeth afofou o travesseiro e se deitou para o outro lado, fechando os olhos para

eliminar o falatório de sua companheira. Depois de passar toda a noite dormindo a momentos, pouco lhe importava o que desejasse a pequena fada ou aonde queria ir. O céu estava apenas rosado. Ouvia-se o cacarejo das galinhas e o balir das cabras, que esperavam ser ordenhadas, mas era muito cedo para levantar-se. Com gesto decidido, cobriu a cabeça com os lençóis e tratou de voltar a dormir, sem prestar atenção às piruetas da spriggan. Darg dançou com mais vigor, cravando os diminutos calcanhares na carne da moça como se fossem pequenos martelos.

— Uma coisa é a fada, outra o mortal. Confundi-los, por certo, engano fatal — proclamou. — Carne, sangue, pele mortal: este homem casará com seu igual. Contra sua vontade, Elizabeth se sentiu intrigada. Tinha doze verões; desde que se vinha súbita e alarmantemente dotada de amplos seios, o tema dos homens lhe resultava mais atraente que antes. Pondo os olhos por cima dos cobertores, perguntou em sussurros, para não despertar a suas irmãs:

— Que homem? Darg lançou uma gargalhada triunfal. Em realidade não era muito atraente e seus motivos nem sempre eram bondosos. A garota a observava com sua habitual suspeita. Com um salto final, a fada se deixou cair sobre as flamejantes curvas de Elizabeth, com as pernas cruzadas, e murmurou, contente:

— Da lenda, uma parte era certa; pagou-se um preço e o quarto foi aberto. Não

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sabem dele nem mesmo como se chama; o que farão quando não houver nem rosa nem dama?

Logo a spriggan estalou a língua em sinal de desaprovação, como um pássaro agitado. Darg devia referir-se à lenda que Alexander tinha narrado na noite anterior! Alguma das irmãs se teria deixado enfeitiçar por seu relato e tudo devia ser uma travessura dele. À garota não a visitaria um amante feérico, tal como dizia o conto, mas um homem mortal.

Elizabeth se endireitou com tanta brusquidão que a fada rodou dando tombos da

donzela até o duro chão. Ao deter-se ali, cabeça para baixo na madeira nua, passou longo tempo jogando maldições, mas a menina não lhe prestou atenção. Ao percorrer o quarto com o olhar, foi um alívio ver ali as cabeleiras revoltas de Annelise e Isabela: uma vermelho-dourada, a outra muito vermelhas. Vivienne, em troca, embrulhou-se sob os cobertores e só se via o vulto de seu corpo.

Segura de que a insultaria por sua atitude, com a esperança de que Darg estivesse equivocada, Elizabeth deslizou até a cama de Vivienne e retirou abruptamente as mantas.

Imediatamente lançou uma exclamação de horror, pois o montículo da cama não era sua irmã, mas um capote velho, amontoado de maneira que parecesse um corpo. Girou para enfrentar a fada.

— Onde está Vivienne, Darg? O que lhe aconteceu?

A spriggan arqueou uma sobrancelha; depois alisou o vestido, em óbvia e complexa referência à arruda maneira em que tinha sido expulsa do leito. Antes de responder ajustou os punhos com grande esmero, consciente de que a menina ardia de impaciência.

— Fariam muito bem, mortais grosseiros, em dar trato digno aos mensageiros. —E se afastou de Elizabeth com o nariz no alto.

A menina correu atrás dela, pois sabia que só com abundantes lisonjas obteria resposta.

— Lamento tê-la afastado dessa maneira, Darg. É que temia por minha irmã. —Inclinou a cabeça com o gesto indignado da fada. — Reconheço que isso não é desculpa para mostrar-se grosseira com alguém tão sábio como você. Ofereço-lhe minhas mais sinceras desculpas.

A spriggan soprou, mas se deteve para pavonear-se um pouco. — Por favor, me explique o que aconteceu com Vivienne. Só sua grande inteligência

pode saber a verdade, enquanto que nós, os mortais, andamos experimentando na escuridão.

— O que ela desejava: nem menos nem mais. —A risada de Darg soou algo maligna. — Quem anseia não sabe o que vem atrás.

Estas notícias assustaram Elizabeth, mas sua discussão com Darg ficou interrompida pela chegada de Beira, a antiga criada que todas as manhãs despertava às irmãs. Depois de entrar ruidosamente, Beira deixou cair com barulho os baldes de água fumegante e passou uma grossa mão pela testa.

— Despertem minhas senhoras! Soam os sinos da igreja e o laird em pessoa quer que todas se apressem para acudir cedo à missa.

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Darg cuspiu no chão, expressando com toda clareza o que opinava de ouvir missa a essas horas; depois desapareceu por uma greta do muro. Elizabeth lançou um grunhido de aborrecimento; ao virar se achou com os olhos brilhantes de Beira, fixos nela.

— Outra vez falando com a fada, não, pequena? —A criada riu entre dentes diante de

tamanho capricho. Elizabeth sentiu que lhe ardiam as faces. Se alguma inclinação sentia por revelar a

ausência de Vivienne, a atitude cética da mulher a fez desaparecer. Talvez sua irmã tivesse um bom motivo para ter desaparecido a essa hora matinal. Talvez Darg se equivocasse. Possivelmente Vivienne tinha um encontro, ou um pretendente secreto, ou uma missão que desejava ocultar a outros. Além disso, parecia ter querido enganar a todos fingindo sua presença, o que só podia indicar que se ausentara por própria vontade.

— Despertem, encantadoras moças, que o laird não tem contemplações para quem devo nos ocupar de vesti-las. Não, não, o que vai. A alta a voz, ordena e espera que todo se faça exatamente como decretou.

— Agora Alexander é o laird, Beira — comentou Elizabeth. Seu comentário ganhou um olhar azedo da criada.

— Seja, mas isso não o converte em Rei!

Isabela se virou com um grunhido e sepultou o rosto no travesseiro. — Prefiro ir à missa amanhã — murmurou, pois nunca parecia bem a primeira hora. Nos olhos de Beira se acendeu um brilho que não pressagiava nada bom para a moça.

— Sua Senhoria insistiu — declarou, com ruidoso vigor. E cruzou o quarto para lhe arrancar as mantas com um gesto vitorioso.

Isabela, com um grito, agitou os lençóis. — Faz frio! Beira, sorridente, dançou para trás. — Para que se levantem não há outro recurso que as fazer passar frio, milady.

— Me devolva essas mantas! E que seja agora!

— O laird ordenou que ninguém se atrase hoje na cama, nem sequer você.

A moça estremeceu exageradamente. — É incrivelmente cruel, Beira. —Levantou-se para percorrer o quarto com o olhar,

com claro mau humor, os braços apertados ao corpo em um calafrio. — E Alexander é perverso até a medula.

A criada ria entre dentes. — E você, milady, uma preguiçosa, todas as manhãs. Se levante, se levante e corra a

missa, como corresponde a uma rapariga bem criada. Cada um tem seu defeito; este deve ser o seu. —Dirigiu para a Isabela um olhar travesso. — Se se levantarem e forem a missa poderão dizer a seu laird o que pensam de seus decretos.

Isabela soprou:

— Se eu fosse a senhora de Kinfairlie, proibiria celebrar ofícios religiosos antes do meio-dia.

Beira se afastou com os lençóis, triunfante. — Mas não é a senhora de Kinfairlie nem o será jamais. Não pode se casar com seu

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próprio irmão. —Sacudiu o indicador diante da moça; obviamente desfrutava desse jogo diário. — E o laird em pessoa exigiu sua presença. Será melhor que se apresse; é a que mais tempo necessita para arrumar o cabelo.

— Porque é muito vermelho! —gemeu Isabela, enquanto se deixava cair contra os travesseiros com fingido desespero. Cravou um olhar furioso no teto. — Não é de gente civilizada ordenar que vá a missa tão cedo. Alexander é um bárbaro.

— Não me parece coisa de bárbaros preocupar-se assim pelo bem de sua alma — interveio Annelise com doçura. Enquanto sua irmã protestava, ela tinha se lavado.

Isabela fez uma careta; depois assegurou sombria: — Ele não se interessa por nossas almas. — Desde que é o laird ficou impossível — acrescentou Elizabeth. — Pensar que antes

me era simpático, esse meu irmão mais velho! A outra assentiu: — Recordem o que lhes digo: atrás desta sua ordem há alguma má jogada. Alexander

tampouco é amigo de levantar-se cedo. As irmãs fizeram uma pausa para olhar-se, pois o que dizia Isabela era verdade. — Acham que nos faz levantar só para jogar sujo? —perguntou Annelise, com claro

cepticismo. — Ocorre outra coisa? —A ruiva ficou de pé com um gemido. — Teremos que pagar

com alguma má passada. E que seja das boas. — Não acredito que Alexander seja capaz de nos fazer uma travessura na igreja —

objetou Annelise, com muita sensatez. Já tinha posto as meias e agora estava prendendo o laço da camisa.

Esse comentário sossegou a todas. — Na igreja! —sussurrou Elizabeth. Seu olhar caiu sobre a cama vazia de Vivienne. —

Talvez ali seja onde foi ela, tão cedo. Acham que Alexander queira obrigá-la a casar-se? Beira cruzou o quarto a grandes passos para retirar as mantas do Vivienne, com um

rápido movimento de pulso. Todas olharam aquela cama com ar consternado, pois naturalmente tinham pensado que ela ainda dormia.

— O que sabe disto? —perguntou a criada a Elizabeth. — Nada, salvo que ela desapareceu. Annelise umedeceu os lábios.

— Os votos conjugais se trocam na igreja — apontou, com voz muito mais fraca. — De todas nós, Vivienne seria a única que teria a audácia de fugir, se lhe adivinhasse

a intenção — observou Isabela. As irmãs trocaram um olhar de espanto ao recordar, com horrorosa clareza, que o

irmão mais velho tinha decidido casar a todas. Beira tinha ficado como de pedra, sem dissimular seu medo. Isabela se jogou sobre

ela para sacudir a manga da saia.

— O que ouvi nas cozinhas, mulher?

— Nenhuma palavra, juro-lhes! Só se comenta que o laird parece muito satisfeito da vida esta manhã, e que exigiu que o almoço seja um verdadeiro festim.

— Uma comida de bodas — apontou Isabela, azeda, e deu um chute a sua cama.

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— Que velhaco! Nos olhos da criada se inchou uma lágrima. — Vá, não acredito que o laird acossasse à boa de Vivienne com um marido de mau

nome, como aconteceu com Madeline. Estou inteirada dessa loucura do leilão, embora ainda não trabalhasse aqui; falou-se muito disso em Kinfairlie.

— Em toda Escócia, provavelmente — disse Elizabeth. — Foi uma loucura inqualificável.

— Mas Alexander prometeu a Rhys que não leiloaria a mão de nenhuma de nós como o fez com Madeline — recordou Annelise.

Beira retorceu as mãos, tão aflita que não continuou com suas tarefas habituais. — Mas nunca convocou a todas à primeira missa —falou Isabela, em tom seco. — E com seus melhores ornamentos! — gemeu criada. Isso é o que ordenou. — Não é possível que queira nos casar hoje a todas — duvidou Isabela. — Até para o

Alexander, seria uma façanha.

— Sem dúvida só quer nos dar uma brincadeira pesada, como em outros tempos —

insinuou Annelise. — Já não sabe brincar — falou Elizabeth, carrancuda. — Agora só lhe interessa a

respeitabilidade. — Mas onde está Vivienne? —inquiriu Beira. E todas voltaram a olhar o colchão vazio. A menor começava a temer que Darg

houvesse dito a verdade.

— Só há uma maneira de saber com certeza — disse Isabela, decidida. — Devemos

nos comportar tal como Alexander espera e acudir alegremente à igreja. A pequena assentiu: — E se pretende casar a Vivienne contra sua vontade?

— Ou a qualquer de nós! —interpôs Annelise.

— Ou a qualquer de nós — continuou Elizabeth-, de algum jeito cuidaremos de que

esses votos não se pronunciem. Já é certamente hora de lhe fazer entender que nem tudo o que decrete tem que cumprir-se.

As irmãs assentiram com a decisão refulgindo nos seus olhos, e procuraram seus melhores vestidos para brilhar na igreja.

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Capítulo Quatro Em pouco tempo, a aldeia de Kinfairlie se esfumou atrás deles e o raptor tirou de

Vivienne a luva da boca. Uma vez retirada, ela cuspiu, pigarreou e não disse nada. Permanecia estoicamente sentada diante dele; as costas retas expressavam, melhor que as palavras, quão desgostada estava.

Ou que não queria tocá-lo mais do que o necessário. Ele também estava um pouco zangado, pois tinha perdido muito tempo tratando de persuadi-la, enquanto ela insistia com alguma tolice feminina. As três noites de cortejo que pretendia eram algo razoável, mas ele não esperava que exigisse uma rosa vermelha feita de gelo.

Em seu pragmático plano não havia margem para os caprichos de uma virgem decidida a ver romance por toda parte. Sua necessidade de gerar um filho varão de paternidade indisputável requeria que conseguisse uma donzela embora a paixão de Vivienne no leito tivesse sido uma surpresa. Sua doçura o fazia sentir-se muito vadio por não lhe oferecer segurança e um matrimônio verdadeiro. Mas não tinha segurança para lhe oferecer. Tinha pago por ela bom dinheiro. E se o irmão estava tão disposto a vendê-la, era idiota andar-se com reparos. Embora ela não tivesse feito o menor gesto de vacilação ao lhe ver a rosto.

— Não têm nada mais que dizer, pelo que parece —comentou, afetado pelo silêncio da moça.

— Não serviria de muito. Não sei seu nome, nem aonde vai, nem quais são suas intenções. E você não se mostra disposto a revelar nada disso. —Ela indicou com um gesto a costa limpa. — Aqui não há ninguém que possa me ouvir gritar, se é que não receberam já instruções de me abandonar a minha sorte, qualquer que seja.

— Não tinha outra opção — disse ele, resmungando. — Era hora de escapar. Ela lançou um grunido desdenhoso. — Não vejo nenhum motivo para essa pressa, pois ninguém tinha intenções de me

auxiliar. Diante isso não havia muito que responder. O que ele desejava era o anonimato da

escuridão, por costume e porque seu irmão achava que ele era outra pessoa. Mas não estava disposto ainda a discutir isso com a dama. Como ninguém os perseguia, deixou que o cavalo procurasse seu próprio passo. A manhã era clara; o céu se ia tornando lentamente em prata leitosa e o vento soprava seco e forte. O corcel que o conde de Sutherland lhe tinha emprestado estava bem descansado e se movia com graça característica.

Cobrou consciência de outro prazer, mais sensual: o cabelo de Vivienne era uma nuvem solta, pois essa manhã ela não o tinha trançado; uma maravilha de abundantes mechas castanhas avermelhadas dançava ao vento em torno dele. Embora esse cabelo

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suave lhe cobrisse o rosto e se frisava contra seu ombro, ele não protestou: seu ataque era descaradamente feminino, um suave luxo que ele levava anos sem provar, e devia admitir que desfrutava muito.

Quase podia esquecer o desconforto desse traje meridional, que tinha posto só para chamar menos a atenção. A restrição das calças lhe desgostava profundamente. E notou especialmente essa restrição no momento em que o assaltou o atrativo de Vivienne. Percebia o doce aroma de sua pele, a curva cremosa da face e o pescoço. Sentia contra si a curva amadurecida de suas nádegas e saboreava sua força longa. Gostava que fosse alta, que fosse magra, mas bastante curvilínea para oferecer tentação às mãos.

Era muito fácil pensar em levá-la ao leito outra vez. Ao fim e ao cabo, seria preciso mais de uma noite para assegurar-se de que ela concebesse um filho varão. E não havia tempo a perder. Decidiu então que saborearia cada noite entre os braços de Vivienne até que ela tivesse a certeza de estar gerando seu filho. Tão imerso estava na espera do que poderiam fazer juntos que o tom seco da moça o surpreendeu.

— Monta um cavalo de batalha, como os cavalheiros — observou. — Entretanto não usa cota de malha, mas colete de couro. Ele inclinou a cabeça, bastante intrigado por essa amostra de intelecto para permitir que ela extraísse suas próprias conclusões.

— O cavalo é seu ou o roubou?

— Não roubo mais que mulheres — replicou ele, surpreso ao perceber um fio de humor em seu tom.

Estava há muito tempo sem brincar, mas o suave ataque daquela cabeleira lhe aliviava o ânimo. — E até agora, só uma, obrigado pelas circunstâncias.

Ela virou o corpo para olhá-lo nos olhos, com as verdes pupilas acesas de curiosidade. Ele piscou, impressionado ao ver que ela não tinha medo absolutamente, atônito pela clareza daqueles olhos.

— Que circunstâncias poderiam exigir meu seqüestro? Ele franziu o sobrecenho. — É uma história muito longa. Um sorriso esticou as comissuras da boca feminina. — Já não esporeia a seu cavalo. Diria que temos tempo de sobra. Ele a observou, sem poder afastar o olhar dessa alegre jovem. Era notável que ela

não desse como certo que o relato o faria ficar mau. Pensava dele o melhor e não tinha tido medo de exigir mais. Para um homem freqüentemente condenado por seu rosto, a quem com a mesma freqüência negava o benefício da dúvida, isso era convincente. Mas em outras ocasiões os sentimentos ternos o tinham induzido a enganos. Não se atrevia a interessar— se por essa mulher, que cavalgava com ele só até que seu ventre demonstrasse ser fértil no caso de que o fosse. Sua expressão se tornou carrancuda.

— Necessito de um filho varão cuja paternidade seja indubitável. Para isso necessito uma mulher, uma que tenha sido donzela até o momento de compartilhar o leito comigo; uma mulher de família frutífera, que não tenha oportunidade de deitar-se com outro antes de me dar esse filho.

— O que precisa é uma esposa — disse ela, com um leve sorriso.

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— Tenho esposa — replicou ele, seco.

E viu desaparecer completamente o sorriso da jovem, como se nunca tivesse existido. Compreendeu que devia alegrar-se de ter introduzido uma cunha entre ambos, de que lhe voltasse as costas uma vez mais, liberando-o do feitiço desses olhos magníficos.

Em troca se sentiu como um velhaco e um traidor por ter apagado a faísca daquele sorriso. Ter interrompido as perguntas da dama lhe pareceu pouca vantagem.

— Mas Beatrice morreu — acrescentou em voz baixa. Vivienne não mudou de postura; tampouco sua curiosidade pareceu reavivada.

Enquanto continuavam a marcha, em penoso silêncio, lhe custou persuadir-se de que era melhor assim, embora o silêncio fosse o que ele tinha procurado.

*****

Elizabeth notou que o altar da capela, de Kinfairlie, trazia as melhores peças de prata;

mesmo Alexander vestia roupas tão régias como as de um príncipe. Trazia seu casaco favorito, de cor safira intensa com bordados de ouro, que destacava ainda mais o chamativo azul de seus olhos. Usava as botas bem lustradas e o cabo da espada cintilante. Face ao ingrato da hora, toda a aldeia parecia haver-se reunido ali, cheia de espera. Ao lançar uma olhada através da porta, a menina não achou nada consolador. Ela e suas irmãs retrocederam ao uníssono e intercambiaram um olhar carrancudo.

— É o que pensávamos — disse Isabela. — Sei muito bem. — Não pode sabê-lo até que as evidências demonstrem — disse Annelise, em atitude

razoável. — Diante do altar não há mais homem que Alexander. A pequena jogou uma olhada e fez uma careta. — Mas seus modos não anunciam nada bom, salvo para si mesmo.

— OH, minhas meninas — exclamou Beira, com voz trêmula. — Rezarei por todas

vocês, é claro que sim. — E lhes estreitou as mãos, uma a uma. — Mas recordem que, freqüentemente, os

bons matrimônios começam mal. O começo nem sempre faz o final. —A criada olhou às três donzelas, como se a desencantasse não ouvir de seus lábios uma palavra de confirmação. Depois de dar uma palmada na face da menor, virou para entrar na igreja.

— Jamais me casarei com um homem que seja tão idiota para pagar por minha mão — declarou Isabela, erguendo as costas, enquanto afastava os bordos do véu verde. — Se Alexander pretende me casar hoje mesmo, não lhe será nada fácil.

Dito isso abriu a porta, sem que sua atitude revelasse o aprumo habitual, e partiu a grandes passos pelo corredor da igreja. Annelise e Elizabeth viram que cravava um olhar severo no irmão mais velho.

Alexander, com maneiras deliciosas, inclinou-se sobre a mão da moça e oprimiu um casto beijo aos seus dedos. Embora ela o fulminasse com o olhar, o sorriso do jovem foi tão inocente como o de um anjo.

— Mas em ausência do Vivienne a maior sou eu — observou Annelise; o tremor de sua voz revelava medo.

— Se Alexander as tratar mal o odiarei toda a vida — assegurou Elizabeth, enquanto

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lhe estreitava a mão, lamentando não poder oferecer maior alento. Annelise endireitou os ombros e impôs a seus lábios um sorriso valente; depois entrou na igreja. Elizabeth a olhava contendo o fôlego, mas Alexander saudou a recém chegada com tanta cortesia como a anterior. Entretanto, a luz espectadora que brilhava em seus olhos quando os voltou para o portal não deixava lugar a dúvidas.

Embora Elizabeth soubesse que era a que menos perigo corria de que a casassem imediatamente, seu coração vacilou e lhe arderam as faces ao empurrar a porta de madeira; manteve o olhar encurvado com a inspeção de todos os presentes na capela. Sentiu-se tão aliviada ao comprovar que seu irmão, depois de lhe beijar os dedos, olhava novamente para a porta que lhe afrouxaram os joelhos.

Tocava a Vivienne, pois. As irmãs cruzaram com força as mãos, enquanto ele vigiava a entrada com uma mescla de impaciência e orgulho. Nenhuma outra sombra tocou a porta.

Passaram os segundos. Ninguém entrava. Alexander, com o sobrecenho enrugado, lançou uma olhada ao sacerdote, que encolheu de ombros. Aos olhos da Elizabeth não era um bom sinal.

— Se esperarmos a Vivienne, deveria saber que esta manhã não apareceu — sussurrou.

Alexander fez um gesto afirmativo, sem surpresa. A mocinha sentiu que dilatavam os olhos ao comprovar que seu irmão estava informado da ausência de Vivienne. Por fim, devia saber também aonde tinha ido. Alexander chamou por gestos a seu alcaide; o velho Anthony acudiu depressa. Os aldeãos mexiam os pés, obviamente estranhando esse atraso, e notaram com interesse que o alcaide se retirava a passo rápido.

Nos intermináveis minutos seguintes, o sacerdote acendeu os círios do altar. Justo quando Elizabeth achava não poder suportar mais, Anthony retornou e se deteve diante da porta, com um imperceptível gesto de negação.

— Não está no quarto? —exclamou Alexander. O alcaide voltou a sacudir a cabeça. — Nem no caminho de ronda? —A agitação do moço se tornou evidente com o novo

gesto negativo. — Nem na estalagem? O jovem laird percorreu a grandes passos o corredor da igreja. — Nem no caminho dos portões?

— Sinto muito, milord, mas não há rastro do casal.

— Esse patife! —Alexander virou sobre seus calcanhares e descarregou o punho contra a outra palma, lançando uma maldição que arrancou uma exclamação recriminatória do sacerdote. Mas a fúria do amo era tal que não prestou atenção.

Ergueu o punho em meio da capela, fazendo resplandecer o anel de prata que levava o selo de Kinfairlie, e sua voz ressonante chegou a todos os ouvidos.

— Nesta capela devia celebrar-se hoje um casamento, mas o sem vergonha que solicitou a mão de minha irmã faltou à palavra que me deu.

Os aldeãos sussurravam consternados, mas Elizabeth não podia afastar a vista da fúria de Alexander. Nunca antes o tinha visto tão parecido com seu pai.

— Por esta traição ponho preço a sua cabeça! Quem traz a Kinfairlie a certo homem chamado Nicholas Sinclair, vivo ou morto, receberá de mim quatro soberanos de ouro.

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Os presentes lançaram uma exclamação abafada ao ouvir a soma; imediatamente começaram os murmúrios. Annelise rezava em voz baixa, enquanto Isabela fulminava ao primogênito com o olhar. Nicholas Sinclair? Elizabeth o recordava bem, pois esse homem havia coberto de palavras doces a todas as mulheres da Cristandade. Nunca lhe tinha agradado; em anos passados, quando ele cortejava Vivienne, a pequena desfrutava enormemente chateando-o. Isso foi antes que descobrisse a atração dos homens. Nicholas precisou suportar dela muitas brincadeiras pesadas.

Não sabia sequer que ele tivesse retornado a Kinfairlie e lhe custava imaginar que tivesse pedido a mão de Vivienne com alguma sinceridade. Tampouco lhe parecia concebível que sua irmã o aceitasse. Mas Alexander revolveu dentro de sua bolsa e mostrou as moedas cintilantes à atônita audiência.

Os aldeãos esticaram o pescoço para vê-las; era mais dinheiro do que nenhum deles

veria na totalidade de seus dias e suas noites. — Milord, é indecoroso fazer um oferecimento assim na casa de Deus… — quis

protestar o sacerdote. Mas Alexander o sossegou com um olhar severo. — E quem me traga notícias de minha irmã Vivienne —continuou— receberá quatro

soberanos. – Os aldeãos inspiraram com a idéia de tanto dinheiro. — Oito, se a devolver a Kinfairlie sem que tenha sofrido dano.

Cravou os olhos fulminantes na audiência, como se quisesse fazer cair confissões desses lábios relutantes. Como não houve nenhuma, virou-se para seu alcaide.

— Anthony, se ocupe de que meu proclama seja difundido imediatamente por todas as regiões circundantes. Não podem ter fugido muito longe. O ancião respondeu com uma reverência. Dito isso, Alexander Lammergeier, laird do Kinfairlie, abandonou a capela, com o cenho sombrio como um trovão, sem participar da missa que tinha ordenado para hora tão matinal. As irmãs não precisavam olhar para saber que o primogênito temia pela sorte de Vivienne.

— O que fez? —sussurrou Isabela.

Mas ninguém lhe respondeu.

— Oremos pela senhora e por que retorne sã e salva! —exclamou o sacerdote.

E todas as vozes se elevaram para unir-se à sua. Elizabeth, por sua parte, orou por achar novamente ao Darg, pois a spriggan bem podia ser sua melhor possibilidade de ajudar a Vivienne.

*****

Vivienne também pensava na maneira de conseguir ajuda, quando não lutava contra

o desencanto. Cada detalhe revelado por seu raptor fazia que a situação parecesse mais horrorosa.

Ele a tinha escolhido só para que lhe desse um filho varão, embora na verdade esse desejo não fosse estranho entre os homens. E tinha tido outra esposa. Sua atitude seca indicava que o assunto lhe inspirava fortes sentimentos; sem dúvida seu coração pertencia

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à esposa a tal ponto que sua morte o tinha reduzido a uma sombra de seu ser anterior. Assim ocorria freqüentemente nas lendas; Vivienne sentiu certa compaixão por seu captor. Mas essas notícias pintavam um mau futuro para ela. Tinha atribuído sua insistência em lhe dar palavra de concubinato só ao fato de que ele proviesse das Terras Altas, onde os costumes antigos tinham maior peso, e pensava que era só o antecedente de uma união mais duradoura. Supunha que a paixão que ambos tinham experimentado no leito do primeiro momento era um motivo de otimismo com respeito ao futuro. Mas ele continuava apaixonado por sua esposa falecida.

Vivienne queria ao menos que a desejasse por algo mais que pelo filho que seu ventre pudesse lhe dar. Apesar de tudo, captava a presença desse homem atrás dela com uma intensidade dolorosa; sentia cada respiração dele, a força das mãos que seguravam as bridas. Achava ouvir o batimento de seu coração. E teria preferido não recordar o sabor de seus beijos. Podia ser tão tola?

Cavalgaram em silêncio até que o sol passou o zenite; então se aproximaram de uma edificação abandonada na costa. Os muros de pedra estavam desmoronando e o denso da vegetação revelava que muito poucos tinham passado por ali em tempos recentes. Vivienne deduziu que em outros tempos teria sido a cela de algum ermitão, pois estava longe das tentações cotidianas. Debaixo dela a costa era rochosa. O teto de madeira estava podre, embora uma parte parecesse ter sido reparada pouco antes.

Seu captor deu uma ordem ao cavalo, que se deteve e esperou, sacudindo as orelhas. Depois de ter desmontado e descido Vivienne, ele conduziu ao animal até uma parte de erva onde pudesse pastar.

Dedicou algum tempo a atendê-lo: tirou-lhe a sela e o escovou, obviamente seguro de que ela não escaparia. E na verdade não havia aonde fugir sem que ele a apanhasse em seguida. Já tinha podido apreciar a rapidez de seus movimentos, apesar da claudicação, e o fato de que ele era muito mais alto. Vivienne tinha à vista a torre alta de Ravensmuir, a fortaleza de seu tio, que ainda aparecia pelo norte, mas a essa distância nem sequer o vigia de vista mais aguda poderia vê-los do alto.

Acreditou ver os corvos que voavam em círculos sobre o torreão, meros pontos negros no céu estival, mas não se atreveu a olhar por muito tempo nessa direção, se por acaso seu interesse despertasse suspeitas. Com os braços cruzados contra o peito, observava a seu captor; notou que voltava a pôr o capuz, como se estivesse habituado a esconder suas feições deformadas. Talvez tentasse ocultar seus pensamentos!

E não porque suas expressões fossem fáceis de interpretar. Em geral se mostrava impassível, tanto mais quando se irritava. Vivienne mordeu os lábios; devia ter em conta esse detalhe. Ele vestia um traje negro nada chamativo; o tecido não era fino e não o embelezava nenhum símbolo, nenhum fio de bordado. As calças eram escuras; as botas, mais ainda; a camisa, tosca e sem tingir. Ao que parecia não lhe importavam a cor nem o estado de seus trajes, possivelmente porque não era vaidoso, possivelmente por simples pragmatismo. Não devia ser pobre, posto que tinha entregue a Alexander uma bolsa de moedas em troca dela.

Talvez não quisesse que o assaltassem durante a viagem. Vivienne não podia saber qual de todas essas possibilidades era a correta. A túnica de seu companheiro era de couro

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fervido; o escuro manto, de lã grosa e malha rústica. O traje era amplo e chegava aos joelhos. Do cinturão, largo e pesado, pendia uma espada a um lado e uma adaga ao outro, ambos embainhados e com os punhos polidamente brilhantes, embora fossem de desenho simples. O mesmo podia dizer-se dos arreios do cavalo, robustos, mas livres de adornos. Ele tinha metido as luvas de couro sob o cinturão.

Seu único ornamento era um broche de prata que segurava o manto ao pescoço; era tão grande como a palma de sua mão e tinha a forma de um cilindro de corda, mas Vivienne era muito prudente para observá-lo com mais atenção.

Perguntou-se como teria feito para achar com tanta facilidade esse refúgio. Durante a viagem não tinham visto ninguém mais. Era uma façanha, sem dúvida, pois essa região de Escócia abundava em monges, sacerdotes e aristocratas viajantes, camponeses e pastores; os páramos não ofereciam muito lugar onde esconder-se. Seu captor conhecia essa região, aparentemente; entretanto, ela se perguntou se a tinha descoberto pouco antes ou se era originário das vizinhanças. Não se dignou iniciar uma conversa para averiguar. Tinha decidido fugir na primeira oportunidade e, enquanto esperava o momento, devia induzi-lo à complacência.

Que buscasse outra donzela de ventre fértil. Ela não via futuro junto a um homem apaixonado por sua esposa falecida, alguém que só a necessitava por seu ventre e pensava abandoná-la depois de ficar com o fruto. Escaparia antes que sua família ficasse fora do alcance. Nesse momento lhe cravou um olhar penetrante. Vivienne se perguntou se acaso podia perceber seus pensamentos. Chegaria alguma vez a cair na complacência? Antes bem, não parecia confiar por completo em nenhum ser vivente.

Com exceção de seu cavalo. A besta pastava obviamente habituada a esses cuidados; sua pelagem castanha refulgia de tão saudável. Era um cavalo de batalha, como os que montavam os cavalheiros, com uma estrela branca na testa. Com relutante interesse, Vivienne viu que seu captor recuperava uma saca previamente escondida entre as sombras da edificação que ela achava abandonada. De maneira que tinha estado ali antes.

— Têm fome? —perguntou o homem.

Sem aguardar resposta, como se tivesse adivinhado que ela não tinha intenções de dar começou a dispor uma simples comida nas pedras planas que havia frente ao pequeno recinto. A moça teria preferido recusar algo que lhe oferecia, só por princípios, mas lhe grunhia o abdômen. Aproximou-se um pouco mais, atraída pelo penetrante aroma de um queijo amadurecido, e viu que também havia pão e maçãs.

— O pão se está endurecendo — disse ele, sem levantar a vista. — Mas como é pão moreno, tampouco era macio ao sair do forno. Suponho que nunca comeu algo assim.

Vivienne não resistiu à tentação de surpreendê-lo. — Pelo contrário, em Kinfairlie comemos pão moreno todos os dias, salvo no

domingo. Meu pai preferia vender a farinha fina; assegurava que não nos faria mal comer um pão mais tosco.

Seu captor ergueu a cabeça. — Ao que parece no Kinfairlie sempre tiveram escassez de dinheiro.

— O que quer dizer?

— São poucos os senhores que preferem o pão dos camponeses. Talvez não lhe

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surpreenda tanto que seu irmão estivesse tão disposto a aceitar minhas moedas.

— Talvez sim. Meu pai não era como a maioria dos senhores. E meu irmão segue seu exemplo. —

Vivienne decidiu que não tinha muito a perder se o provocasse. — Mas se Alexander aceitou seu oferecimento de boa vontade, possivelmente foi porque estava enganado quanto a suas intenções. –

E o olhou nos olhos enquanto mordia o pão, como se o desafiasse a desmenti-la. Ele a estudou em silencio por um longo instante; depois perdeu a vista no mar, sem dizer mais. Não se podia tomar como admissão de culpa, mas tampouco era um argumento contra a dedução da moça. Uma vez que afastou a vista a ignorou por completo, como se ela não estivesse presente. Talvez a noite passada não lhe tivesse parecido tão estupenda. Talvez sua amada esposa tivesse sido mais ardente.

Vivienne comeu atônita ao descobrir quão esfomeada estava e quão bem descia essa comida tão simples.

Quando acabou, ao notar que ele também tinha terminado, envolveu o resto do queijo em sua parte de pano. Ele, sem dizer nada, envolveu os restantes na parte de pano e os guardou na saca; depois lhe lançou um olhar brilhante.

— Viajaremos de noite, só de noite. Aconselho-a que durma. Sem esperar resposta ou assentimento da moça, ficou de pé e começou a passear por

aquele reduzido espaço. Observava o céu e o mar; depois estudou a paragem deserta entre eles e Kinfairlie.

Vivienne não tinha desejo algum de dormir, mas enquanto ele vigiasse desse modo seria impossível fazer nada. Refugiou-se na fresca sombra daquela maltratada moradia e, envolta no manto, sentou-se contra um muro, um pouco descontente. Bem longe estava aquilo de ser seu amor destinado! Cobriu-se com o capuz e entreabriu os olhos, com a esperança de parecer profundamente adormecida. Em realidade, sua intenção era aguardar que seu captor afrouxasse a vigilância. Então roubaria seu cavalo para fugir novamente a Kinfairlie e arrancaria a verdade de Alexander.

No final Vivienne adormeceu, pois o homem não dava sinais de permitir o repouso. Passeava, detinha-se para reclinar-se contra o muro, observava-a, contemplava o mar. Movia-se em silêncio, com a elegância do guerreiro, mas na realidade estava inquieto. A jovem sufocou o impulso de provocá-lo com uma brincadeira, como teria feito com qualquer de seus irmãos, comentando que parecia atormentado pelos remorsos. Bem podia ser certo. Ele se mantinha envolto no manto escuro e com o capuz posto, para ocultar seu rosto deformado até dos próprios pássaros.

Ao ascender o sol, Vivienne, esgotada pelos últimos acontecimentos, sentiu que lhe fechavam os olhos. O ruído das ondas a adormecia, embora conservasse certa consciência de quanto a rodeava.

Sobressaltou-a uma voz alegre, a pouca distância. — Né, moço! Estava aqui! Vivienne abriu imediatamente os olhos e viu que seu captor girava para a voz,

desembainhando a espada. Seus ombros perderam um pouco a tensão ao reconhecer a quem o chamava, embora ainda se mostrasse cauteloso. Ela deu uma olhada ao outro lado

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da parede. Aproximava-se um homem de certa idade, robusto, que trazia pela brida um palafrém pintalgado. O animal era mais baixo que os das cavalariças familiares e tinha o cabelo longo.

— Me alegro de vê-lo, moço! —gritou o homem, erguendo a mão a modo de

saudação. Sua expressão era tão alegre como sua voz. — Olhe que me faz isso difícil! — Ruari Macleod — disse o mais jovem, enquanto apoiava a ponta da espada contra

o chão, com as mãos no cabo. — Não esperava voltar a vê-lo. O recém-chegado sorriu de orelha a orelha. — Ah, filho, quando me encomendou uma missão ninguém pode me evadir.

Ordenou-me te buscar. E já vê, encontrei-o. E se inclinou em uma garbosa reverência. Vivienne temeu que o esforço lhe fizesse

saltar a fivela do cinturão. Sua atitude era tão encantadora que ela sentiu a tentação de sorrir. Seu captor, em troca, perguntou com voz fria:

— Como me achou? Ruari grunhiu: — Deixou um rastro quase luminoso, filho. Se quiser viajar sem ser visto terá que se

esmerar mais para que não lhe siga os passos. Acaso não aprendeu nada de mim? Parece que minhas lições caíram em saco roto, pelo que lhe serviram. Vivienne percebeu em sua voz a cadência das Terras Altas, mais pronunciada que na de seu captor. Era possível que tivesse seguido ao jovem até ali? Por quê?

Para surpresa dela, aquilo pareceu perturbar ao seqüestrador. — Fui cuidadoso — insistiu. — Não o suficiente — declarou Ruari, sacudindo o dedo. — As pessoas não são

cegas. E nestes dias basta uma moedinha para lhes arrancar da língua tudo o que tenham presenciado. Correm maus dias, filho, já pode acreditar, e bem lamento que estejamos obrigados a suportá-los.

Ruari alargou uma mão a maneira de saudação, mas o jovem a ignorou deliberadamente. O recém-chegado deu de ombros e enganchou o polegar em um espaço atrás do cinturão, enquanto observava ao outro com os olhos semicerrados.

— Não posso reprovar que me tenha um pouco de rancor.

— Se algum rancor tenho é muito mais que um pouco.

Ruari espiou sob as sombras daquele capuz.

— Tornou-se mais duro desde a última vez que nos vimos.

— Mais sábio, possivelmente. Vivienne, apoiada contra o muro de pedra, viu que seu captor se afastava do

visitante, embainhando novamente a espada; esse gesto e sua postura demonstravam que confiava no recém-chegado, apesar de suas ásperas palavras. A moça, intrigada, escutou a conversa sem envergonhar-se.

— Mais sábio? É isso o que o levou a esta situação? — Desta situação a culpa não é só minha.

— O que me diz de que na aldeia de Kinfairlie tenham posto preço a sua cabeça? É

devido aos fatos de outro? Com isso o jovem se voltou para olhá-lo por cima do ombro, mas não disse nada.

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Aquela notícia alegrou o coração de Vivienne: sua família não a tinha abandonado de todo! Mesmo que Alexander tivesse aceito algum tipo de acordo, a partida dessa manhã não formava parte dele. Ja! Ela nunca tinha duvidado de que Alexander procurasse seu bem-estar! Ruari agitou o dedo diante do jovem para repreendê-lo, embora ela não conhecesse ninguém menos capaz de aceitar uma repreensão.

— Quatro soberanos de ouro: isso é o que oferece o laird do Kinfairlie em pessoa por sua triste pele.

Vivienne mordeu o lábio. Poderia seu irmão pagar essa recompensa? Seu seqüestrador replicou, zombador: — E você me busca para cobrá-los? Ruari grunhiu com desdém. — Bem sabe que não, filho, embora não serei o único que venha atrás de você. —

Ergueu um dedo carnudo, como o pregador que está a ponto de pronunciar a moral de seu sermão. — Vivo ou morto, é o que disse o laird. Vivo ou morto! Quem tem dois dedos de testa saberá que é mais fácil morto. Estar aqui, tão perto, é provocar ao destino. Se tivesse a inteligência que seu pai te supunha, em vez de passear junto ao mar a estas horas estaria bem longe, a caminho da Irlanda.

O seqüestrador se virou uma vez mais para enfrentar a água; A barra de seu manto ondulava ao vento.

— Agradeço-lhe o conselho, Ruari. Que Deus o acompanhe. O visitante continuou, sem deixar-se intimidar por essa despedida. — E há quatro soberanos mais para quem devolve à irmã do laird — acrescentou em

voz baixa. — Oito, se retornar ilesa. O que sabe do desaparecimento dessa moça? — Nada que você deva saber. — Vivienne Lammergeier. Assim se chama: Vivienne Lammergeier de Kinfairlie. Não

acredito ser o único dos dois que já conhecesse esse nome. Diante disso a jovem aguçou o ouvido. Como era possível que esses dois soubessem

como se chamava, se ela não os conhecia?

— Suas lembranças não vêm ao caso, Ruari.

— Não? Não se obtém nada bom utilizando a uma donzela inocente como instrumento de vingança. Bem deveria saber!

— Ela já não é inocente, Ruari. O visitante lançou uma maldição e virou para afastar-se um pouco; logo se voltou

para encarar o outro uma vez mais. — E o que pensa fazer a respeito? Casou com essa moça? — Não, e não me casarei. A Vivienne caiu a alma aos pés ao ouvir seu tom de convicção. De maneira que ela

não era mais que uma amante! — É essa a causa da reclamação do laird — interpelou Ruari. — Cobrará este crime

com seu membro, já pode estar bem certo! Algum ardiloso o arrastará até ali para cobrar o preço por sua cabeça, não duvide, e a ferramenta que utilizou para sua façanha será o primeiro sacrifício que lhe exija.

— Nesse caso será melhor que não me deixe capturar. —O jovem lhe voltou

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novamente as costas. Pela primeira vez o recém-chegado parecia a ponto de perder os estribos. Inspirou

muito fundo, com o rosto avermelhado, e logo uivou: — Não o segui por capricho, filho, nem pela recompensa que oferecem o laird de

Kinfairlie e sua família! Não necessito de seus segredos nem de suas confidências, mas mesmo assim estou resolvido a acompanhá-lo daqui em diante.

— Não, não o fará. — Claro que sim, e lhe direi por que. Não, não discuta comigo. Não é porque tenha

enlameado a tal ponto o que resta de seus dias, embora bastasse essa razão. É porque seu pai, ao final, viu a luz e me ordenou ficar ao seu lado. Devo ajudá-lo, filho.

— Os dias em que você e meu pai teriam podido me ajudar Ficaram muito atrás. —O seqüestrador de Vivienne se ergueu em toda sua altura; seu tom revelava que não recebia de bom grado o oferecimento de Ruari.

— Alguma vez se arrependeu de uma decisão?

— Sim, é claro. — Pois também seu pai, e não tem direito a odiá-lo tanto. Não é possível mudar o

passado; só o futuro se pode forjar com outro desenho — disse Ruari, severo. — Isso é o que me ensinou seu pai. E sei que também ensinou isso a você.

— É uma grande pena que não instruísse assim a meu irmão. O visitante cuspiu ao chão. — É inegável que seu irmão soube alterar seu futuro para que lhe sentasse melhor

que o passado. Houve outras lições que não teve em conta, sem dúvida, mas dessa tirou bom proveito. Quando o jovem ia replicar, ele ergueu uma mão.

— Quanto ao caráter de Nicholas e o peso de seus crimes, filho, estou de acordo com você. Minha intenção não é menos forte pelo fato de que tenha demorado para ir em sua ajuda. —Estendeu-lhe a mão uma vez mais. — Estamos em paz, pois?

— Não necessito de sua ajuda. Vá, Ruari. — Necessita toda a ajuda de que possa dispor!

— Tenho a do conde de Sutherland. Isso me bastará.

— De verdade? —Ruari arqueou uma sobrancelha grossa. — Tão bem conhece conde de Sutherland para confiar em sua palavra? O que te exigirá ele em troca? Estes são tempos traiçoeiros para quem entrega sua confiança com muita facilidade. E nos dois sabemos que você pertence a essa classe.

— É pouco o que sei do conde e de suas intenções, mas não tenho outra opção. Ele, ao menos, ofereceu-me ajuda quando minha própria família me negava isso.

— E a que preço? O jovem, sem ceder terreno, cruzou os braços contra o peito. — Por que veio, Ruari? Pois não irá contar sua história, conta-a já; depois monte em

seu corcel e vá. O outro afastou a vista com expressão dolorida e deu alguns passos lentos. Depois

lançou um olhar atrás, com os olhos brilhantes, ao mesmo tempo que inspirava para acalmar-se.

— Servi muitos anos a um homem, com lealdade e fé. Servi-lhe de boa vontade, sem

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vacilar. Segui-o a todas as batalhas, ofereci-lhe meu melhor conselho, amei-o como ao pai que nunca tive. Ele me tratava bem, melhor do que podia esperar alguém de berço tão baixo como o meu, e nunca me pediu mais que minha lealdade e minha confiança. — Engoliu a saliva visivelmente. — Até faz um mês.

— Não — disse o seqüestrador. Sua voz tremia um pouco. Ruari inclinou a cabeça.

— Sim, filho. A todos chega o fim, cedo ou tarde. E assim chegou ao homem a quem eu tinha servido pela maior parte de minha vida. Enquanto agonizava, depois de confessar seus pecados e ajustar contas com sua consciência, compreendeu que em sua vida tinha cometido um único engano grave. E como restava pouco tempo, rogou-me que arrumasse o assunto em seu nome.

Ruari se virou para o seqüestrador, implorante. Vivienne escutava com gula, saboreando cada detalhe.

— Rogou-me que procurasse a seu primogênito, que pusesse remédio aos crimes cometidos contra esse filho... —Colocou a mão sob o capote e lhe ofereceu uma adaga embainhada na palma da mão. A grande safira engastada no pomo cintilou à luz do sol. Vivienne notou que seu captor olhava o aço como petrificado.

Ruari continuou, com serena decisão: — Encomendou-me entregar a seu filho este talismã, junto com sua mais sentida

desculpa. — Não! —gritou o jovem. E lhe voltou as costas para partir para a beira do penhasco.

— Não pode ser. Vivienne espremeu as mãos, ferida também pelas notícias que trazia esse homem.

Ela mesma tinha perdido a seus pais, fazia menos de um ano, e sabia que essa ferida não cicatriza com facilidade.

Experimentou uma súbita simpatia por seu seqüestrador, junto com o impulso de consolá-lo. Que horroroso, ter perdido a seu pai enquanto estava afastado dele, não ter estado presente no momento final. Era um abismo que jamais poderia ultrapassar.

— É assim — afirmou Ruari, em um tom que não deixava lugar para a dúvida. — Tão certo quanto estou de pé ante você: William Sinclair exalou seu último fôlego. E assim como lhe ofereço o legado que lhe corresponde, William Sinclair decretou que Blackleith deve voltar a ser teu por todos os dias e noites de sua vida. Assim como me chamo Ruari Macleod, seu pai me encomendou para ajudá-lo nesta missão e cuidar de que se corrigisse seu engano. O captor do Vivienne não se voltou.

— Agradeço-lhe o trabalho e a notícia, Ruari, mas não permanecerá comigo. Adeus. Que o Senhor o acompanhe.

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Capítulo Cinco Ruari soltou as rédeas e se afastou do corcel para dar um passo para o jovem.

— Seu pai compreendeu seu engano! Compreendeu que merecia mais do que havia

tocado a você. No final compreendeu que nunca deveria ter dado crédito ao que se disse contra você. Para ele teria sido um golpe mortal inteirar-se de que se tinha visto obrigado a suplicar favores do conde de Sutherland.

— Isso diz você. A sombra daqueles dias é longa e o testamento de um morto não me serve tanto como o de um homem vivo. —O seqüestrador se virou para o Ruari; Vivienne queria ver sua expressão. — Se na verdade meu pai se arrependeu de seu julgamento, bem poderia havê-lo feito antes. Agora seu perdão me serve de muito pouco.

— Tornou-se mais que duro filho: perdeu o coração!

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— Se algo perdi é porque me foi roubado. Adeus, Ruari. —O jovem se aproximou do

cavalo do visitante e pegou as rédeas para oferecê-las. Ruari apertou os lábios com gesto carrancudo. Depois de meter a adaga embainhada

sob o cinturão, aproximou-se do outro a grandes passos, com os olhos cintilantes. — Como ousa me falar assim! —gritou. — Passei um mês procurando esta mísera

pele sua moço! Estive em todos os tugúrios, em todas as posadas que há entre o Blackleith e York dormi em lugares onde os ratos eram tão grandes que poderia ter repartido-os. Passei dias inteiros sem uma comida decente e as noites brigando com pulgas do tamanho de meu punho. E por que, por que tudo isto?

Sua voz se converteu em um rugido: — Por amor ao seu pai, nem mais nem menos! Tenho-o feito porque não suportava

vê-lo tão aflito, porque não era decente que um homem de sua classe me suplicasse, a mim! Cuidar de que ele alcançasse a paz eterna.

O captor de Vivienne não respondeu. Sua postura não mudava. Sem deixar-se intimidar, Ruari partiu atrás dele e o pegou por um braço.

— Tenho-o feito porque seu pai não se conformou com minha palavra, com minha

promessa: exigiu-me que o jurasse pela salvação de minha própria alma, sobre a relíquia desta adaga; que cortasse um dedo e vertesse meu próprio sangue sobre o aço que encerra todos os juramentos feitos pelos homens de sua família. Esta adaga!

E estendeu novamente o aço embainhado para o jovem, que o aceitou com ar relutante. Em sua maneira de agarrá-lo se notava a reverência que lhe inspirava; Vivienne compreendeu que esse objeto não lhe era tão indiferente como pretendia.

— Fiz isso porque por suas veias corre sangue de reis, filho, e jurei que se estivesse muito abatido para lutar pelo que lhe corresponde, eu faria por você. E qual é a recompensa que recebo agora?

Ruari lhe arrancou energicamente as rédeas da mão. — Nenhuma palavra de gratidão, nem uma saudação, sequer. Nem sequer me

apertou a mão, como se faz entre homens. Ah, mal anda o mundo se dois homens não podem demonstrar-se sequer a devida cortesia.

O jovem ergueu a vista. — Muito bem dito, Ruari, mas não recordo que no Blackleith me demonstrasse muita

cortesia quando tudo se estragou. Ruari engoliu em seco. Depois meneou a cabeça em um lento gesto afirmativo. — É bem certo. Mas deve perdoar o passado, filho, para se liberar de sua carga. O captor cruzou a passo rápido a distância que os separava, com postura

ameaçadora. Depois, deliberadamente, jogou o capuz para trás. Sob o sol da tarde a cicatriz parecia ainda mais cruel e a dureza de sua expressão em nada suavizava seu efeito.

— Jamais poderei me liberar desta marca do passado. O outro fez uma careta e afastou a vista. Depois voltou a olhá-lo aos olhos, com claro

esforço. — Não sabia — disse em voz baixa. — Perdoarei o passado uma vez que tenha me vingado, Ruari. Não precisa ficar ao

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meu lado para saber que assim se fará. Essa lúgubre declaração animou as feições do servidor. — Pensa lutar, pois? Não se rendeu de todo? — Nunca pensei aceitar a injustiça. Mas feridas como esta devem cicatrizar. E não foi

a única que sofri. Agradeço que o conde de Sutherland me recebesse em sua própria morada; do contrário ainda estaria sangrando em uma sarjeta, sem ajuda alguma de minha própria família.

O seqüestrador se afastou, dando voltas à adaga entre as mãos. O visitante apertou os lábios ao reparar em sua claudicação. Vivienne custava acreditar no que tinha escutado. Seu seqüestrador tinha sido despojado do que lhe correspondia e sua família não tinha feito nada para ajudá-lo. Era uma traição escandalosa; justificava-se que estivesse furioso e cheio de rancor. Por certo, ela mesma estava disposta a defendê-lo diante desse tal Ruari, pois não era possível que alguém fosse tratado assim pelos seus. Mas um momento! O irmão de seu seqüestrador se chamava Nicholas. Vivienne fez uma pausa para analisar o que acabava de escutar. E o nome da propriedade em questão, Blackleith, soava-lhe conhecido. Por quê?

O pai de seu captor era William Sinclair. Vivienne abafou uma exclamação ao compreender, subitamente, por que esses dois conheciam seu nome. Nicholas Sinclair tinha um irmão mais velho, que devia herdar a propriedade familiar do Blackleith. Era possível que seu amante fora Erik Sinclair? Ele se deteve para dar uma olhada para a moradia em ruína, onde a supunha adormecida; talvez tivesse ouvido sua exclamação consternada. Vivienne tratou instintivamente de diminuir-se, mas Ruari devia tê-la visto.

— Há alguém ali — declarou. — É na verdade a irmã do laird? A jovem se aninhou dentro do manto, com a esperança de parecer adormecida.

Ouviu-se o rangido de umas botas que se aproximavam; como sabia quem caminhava a passo tão desigual, a ela acelerou o pulso. Mesmo assim se fingiu adormecida, com a vã esperança de que não a surpreendessem escutando o que não devia ouvir. Ouviu que ele se detinha diante dela; ao perceber o aroma de sua pele compreendeu que o tinha ao alcance da mão, mas manteve os olhos resolutamente fechados.

— Vivienne — disse seu captor, com um fio de humor nas palavras. — Com a respiração tão acelerada não pode enganar a ninguém. Ao abrir os olhos viu que lhe oferecia a mão enluvada. Não soube interpretar a expressão de seus olhos.

— Vivienne — sussurrou Ruari; observou-a com mais atenção. — Não é estranho que Nicholas se irritasse tanto quando ela o rejeitou. É uma beleza, por certo.

— É Erik Sinclair — disse ela a seu seqüestrador. Ele teve o bom senso de não negar essa conclusão. Limitou-se a inclinar a cabeça em

um gesto de aceitação, olhando-a com olhos brilhantes. — Por que a mim? Por que cruzar toda Escócia por mim? —perguntou ela, em tom

suave. — Entre Blackleith e estas paragens há, sem dúvida, abundantes donzelas. Para assombro dela, quem respondeu foi Ruari. — Mas você é a única que rechaçou Nicholas Sinclair — disse. — E quanto o zangou

isso! Embora deva dizer que, ao relatar seu fracasso, não fez justiça à beleza de suas feições.

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— Já foi muito estranho que admitisse ter sido rechaçado — observou Erik. Ruari grunhiu: — Não é o primeiro que admite mais do que é prudente depois de consumir muita

cerveja, e tampouco será o último. Sem dúvida teria preferido manter a história oculta, mas o álcool lhe soltou a língua. E como cometeu o engano de falar em um lugar público, a história circulou muito. —Sorriu à moça. — Foi alvo de muitas brincadeiras por não ter podido seduzi-la, já pode acreditar.

— Mesmo assim não compreendo... —Vivienne fez uma pausa para olhar a Erik com

novo horror. — Escolheu-me só para irritar ao seu irmão, para se apropriar do que ele não pôde possuir? Escolheu-me por vingança?

Na mandíbula do jovem se contraiu um músculo e sua expressão se tornou ainda mais sombria. Não obstante, enfrentou sem piscar a indignação da moça, sem mais que um gesto afirmativo:

— Essa seria a explicação mais simples. — E como é a verdade, não necessito outra mais complexa. —Voavam os

pensamentos de Vivienne. — Suponho que se apresentou a Alexander como se fosse Nicholas. Assim ele teria pensado que arrumava uma aliança muito de meu gosto.

Erik deu de ombros. — Eu só sabia que tinha rejeitado a corte de Nicholas. Quando soube que ainda

continuava solteira me pareceu provável que sua família olhasse essa aliança com mais favor que você.

— Nicholas não propôs uma aliança, mas uma relação — replicou ela. Erik voltou a dar de ombros. — Mas você fez o mesmo! E eu cometi a tolice de aceitar suas insinuações! Ele se limitava a observá-la e deixava que ela extraísse suas próprias conclusões. Essa

complacência enfureceu a jovem como nenhuma outra coisa teria podido fazê-lo. Erik a tinha escolhido, utilizaria-a e, uma vez que lhe tivesse dado um herdeiro, jogaria-a para o lado sem ter sequer a decência de envergonhar-se de seus atos. Não era fácil decidir qual dos dois irmãos era o menos honrado!

— Pois então é verdade que as boas ações sempre recebem castigo — continuou ela, sem incomodar-se em dissimular seu aborrecimento. — Não disse nada a minha família sobre a grosseria de Nicholas Sinclair, pois não via motivos para difamar a um homem que dificilmente retornaria. E que recompensa recebo por essa cortesia? Meu irmão, que não conhece os irmãos Sinclair nem sabe de suas turvas idéias, acreditou que Nicholas devia solicitar minha mão. Pior ainda, pensou que eu acolheria de bom grado essa proposta. Ruari estalou a língua em sinal de desaprovação e passou uma mão pela fronte. Depois se sentou pesadamente, como sobrecarregado pelo que tinha sabido.

Vivienne fulminou Erik com o olhar. — E que destino me espera em tudo isto? Já me desonrou e raptou. Uma vez que

tenha servido para seus fins, pensa me abandonar por morta em qualquer lugar esquecido da Cristandade? Quando lhe tiver dado um filho terei que ganhar a vida como prostituta em algum salão distante? Ou me devolverá a Kinfairlie para cobrar o resgate que oferece meu irmão? Ao fim e ao cabo, você mesmo disse que sou uma bagatela!

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— Já lhe expliquei isso — replicou ele, seco. — Quero ter um filho de você, um filho cuja paternidade não seja posta em dúvida, e tenho intenções de criá-lo em meu lar. O conde de Sutherland cuidará de seu bem-estar enquanto estiver gerando-o; assim o acordamos ele e eu. Recompensará-lhe melhor do que nunca tenha sido alguma cortesã. O que façam depois é seu assunto. Não conseguiu dizer mais, pois Vivienne o esbofeteou com todas suas forças.

— Miserável! —gritou. — Os homens honrados jamais tratam assim a uma mulher! Suas palavras, somadas ao golpe, impuseram o silêncio aos três. Por fim Ruari

assobiou entre dentes. — Não tem nada de dócil, esta donzela. — Não sou nenhuma donzela! —exclamou ela; depois plantou em Erik seu olhar mais

feroz. — Para ter um filho de mim terá que me amarrar, e me assassinar para arrancá-lo logo depois de meus braços. Não entregarei a alguém de sua estirpe, qualquer que seja o preço a pagar.

Os olhos de Erik tinham assumido um azul perigoso; pronunciou sua resposta com um suave tom de ameaça.

— Se for isso o que se requer, assim seja — disse. Depois virou sobre seus calcanhares e a deixou jogando faíscas. — Jamais poderá se impor a um Sinclair, moça. Disso pode estar segura —

aconselhou Ruari baixo. — Será melhor que façam tranqüilamente o gosto e acabem com o assunto.

— Pelo contrário, já uma vez impus a um Sinclair — replicou ela, virando-se para o servidor. — E o farei de novo, Ruari Macleod, disso sim pode estar seguro.

Erik contemplava o fluxo do mar, lutando contra o desejo de acalmar a Vivienne. Estava enfurecida, como teria estado qualquer mulher razoável. Era verdade que a tinha escolhido por ter rechaçado a Nicholas, embora não só em plano de vingança. Não conhecia outra pessoa que fosse imune ao encanto de seu irmão. Depois de tudo o que ele precisou suportar por instigação de Nicholas, isso era bom motivo para desejá-la para si.

Não obstante, a dama podia pensar outra coisa. Em sua opinião, quanto menos falasse menos alimentaria as chamas de sua fúria. Como Beatrice tinha sido muito hábil para voltar contra ele suas próprias palavras, tinha bem aprendido que, diante de uma mulher zangada, era melhor falar pouco que muito. Jogou um olhar de soslaio para Vivienne; sua postura revelava que ainda estava furiosa: de pé, com o queixo erguido e os braços cruzados contra o peito, olhava em direção a Kinfairlie. O sol poente dançava em sua cabeleira, nas mechas soltas que ondulavam ao levantar o vento.

— Agora compreendo por que não a desposou — disse Ruad, de uma súbita proximidade. — Não saberá se é capaz de lhe dar um herdeiro até que o faça.

— Nesse caso, se ela estiver disposta, desposarei-a, mas antes não. — E se não houver herdeiro?

— Terei que procurar a outra donzela para meu leito. Não tenho mais opção, Ruari,

pois o conde de Sutherland decretou que só me ajudará se houver uma sucessão clara para Blackleith.

— Não é o único que está cansado das guerras. —Ruari meneou a cabeça. — Mas é

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uma triste maneira de formar casal, sem dúvida. — Dei-lhe palavra de concubinato — esclareceu Erik, para que o leal servidor de seu

pai não pensasse tão mal dele. — De verdade? —Ruari fez um gesto de aprovação. — É melhor que nada. E dadas as

circunstâncias, uma medida prudente. Os dois se voltaram ao mesmo tempo para a dama, que continuava tão erguida como uma espada e parecia ignorá-los por completo.

— Mas nestes tempos são escassas as mulheres que se conformam com uma promessa de concubinato — reconheceu o ancião— Querem a bênção do sacerdote; suponho que esta também.

— Dentro de um ano, se tudo for bem, a terá. — Erik lançou outro olhar à Vivienne e tocou a face, que ainda ardia pela bofetada; perguntava-se como faria essa noite para deitar-se com ela. — Claro que, para fazer amor outra vez, requererá uma medida de encanto que não possuo.

Ruari riu entre dentes.

— Talvez tenha uma surpresa, filho. Se não o tivesse querido não teria se zangado

tanto. —Deu uma palmada ao jovem no ombro. — E há quem prefere às mulheres que sabem dizer o que pensam, mais ainda quando se empenham em exigir que tudo se faça segundo um elevado código moral. Esta poderia ser uma boa companheira para sua gestão.

Erik não estava seguro de que isso fosse verdade, mas se sentiu um pouco mais reconfortado. E como não havia a não ser uma maneira de criar um filho, até onde ele sabia, essa mesma noite teria que arrumar as coisas com Vivienne. Quando menos podia cuidar de que dispor de um intervalo sem público. Assinalou para o norte.

— Se cavalgar ao longo da costa, Ruari, antes que se ponha o sol achará um bosque. Breve me reunirei com você.

— O que significa isto? —acusou o homem, obviamente indignado ao ver que o

despachava assim. — Não será tão fácil se liberar de mim! Jurei a seu próprio pai... — Não pretendo me evadir de você, Ruari — esclareceu Erik, interrompendo o que

bem podia converter-se em uma longa diatribe. — E, além disso, duvido que possa. — Disse uma grande verdade, sem dúvida! Estou obrigado a ajudá-lo, filho... — Pois então me ajude agora se adiantando. —Erik pegou um cilindro de corda de

seu alforje e cravou em seu companheiro um olhar firme. — Tenho que fazer algo antes de reiniciar a marcha. E não quero testemunhas.

O outro franziu o sobrecenho. — Espero que não faça mal a essa moça. Talvez seja muito franca, mas não é má. E

no final de contas é bem pouco fez para machucá-lo. —Olhou-o com os olhos entreabertos. — Salvo dizer verdades que não agradam.

— Necessito de um herdeiro e ela mesma impôs as condições. Minha intenção é persuadi-la por meios menos horrorosos. Quando tiver caído a noite me reunirei com você nesse bosque.

— Com a dama, certamente. — É claro, queira ela ou não. Ruari, com expressão cética, jogou outro olhar a Vivienne. Sua postura não tinha

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afrouxado nem pingo. — Rezarei por você, filho, para que não sofra maior mal do que já padeceu. O jovem inclinou a cabeça. — Agradeço isso. Enquanto o servidor se afastava a grandes passos, ele virou-se e descobriu que

Vivienne o estava olhando. Observava-o com olhos desconfiados, como uma gazela a ponto de fugir, com o cabelo solto ao vento. Ele rezou para que ela não dificultasse as coisas; logo se obrigou a recordar que não devia se importar. Um filho varão, isso era tudo o que necessitava para resolver tudo.

E esse filho teria que nascer quanto antes. Ao ver que Erik partia para ela, Vivienne engoliu em seco. Sua expressão era

carrancuda e a corda que trazia não era bom presságio de suas intenções. Deu um passo atrás, mas percebeu que estava na beira do promontório; atrás dela não havia a não ser uma encosta rochosa para o mar. Ele se aproximava com passo implacável; assustou-a notar que seu companheiro se afastava.

A triste verdade era que Ruari tinha revelado vários detalhes intrigantes, fatos que a teriam disposto a aceitar melhor as atenções de Erik, se ele tivesse confessado alguma intenção nobre com respeito a ela.

Parecia-lhe difícil que lhe revelasse essa noite alguma verdade, tendo em conta a corda que trazia.

Erik se deteve três passos, com o peso apoiado na perna sã, tal como lhe tinha visto fazer anteriormente, e a observou.

— Ontem à noite me recebeu com entusiasmo — disse em voz baixa. — Está disposta

a fazer o mesmo desta vez?

— Ontem à noite pensava que era meu amante destinado — declarou ela. — Agora,

em troca, sei que é um homem decidido a vingar-se de seu irmão a qualquer preço. Teria jurado que via um lampejo nos olhos de seu companheiro. — Um amante destinado? Não, sem dúvida. Achava-a muito sensata para tais tolices. Vivienne sentiu o rosto em chamas, mas assentiu envergonhada de sua credulidade. — Foi pela lenda de Alexander, certamente. — Que lenda? — Não sabe o que disse para me convencer a dormir nesse quarto? Erik meneou a cabeça.

— Só prometeu que estaria lá. Não me disse como nem por que.

Por um momento guardaram silêncio. Logo ele afrouxou a postura.

— Me diga como teria encontrado ali seu amante destinado, segundo a lenda?

Vivienne deu uma olhada à corda e decidiu que relatar a história era a possibilidade menos inquietante para os próximos minutos.

— Me espiando através de um portal entre dois reinos.

— Que reino?

— O das fadas e o dos mortais. —Algo que podia passar por sorriso tocou os lábios do

homem; ela inspirou trêmula. — A lenda que Alexander relatou falava de uma donzela que, por três noites consecutivas, foi seduzida por um amante feérico, cativado por seus

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encantos, quem logo a raptou para fazê-la sua esposa por toda a eternidade. Supõe-se que uma das janelas desse quarto abre o reino das fadas, segundo esse relato de meu irmão. Uma vez que a donzela desapareceu por ali ninguém voltou a vê-la.

— Foi raptada, como você. — Foi cortejada por seu amante destinado — corrigiu ela, com firmeza. — E o preço

que pagou por ela foi uma rosa vermelha, uma rosa mágica que era feita de gelo. Ainda se vê no chão de nosso salão a marca que deixou ao fundir-se, embora estes fatos aconteceram faz anos.

— Ah, de maneira que dali surgiu sua exigência de três dias de cortejo e uma rosa vermelha.

A única resposta de Vivienne foi ruborizar intensamente. Erik a observou com uma diversão que abrandava suas feições de uma maneira muito sedutora. Vivienne teria preferido que voltasse a mostrar-se severo, pois desse modo era mais fácil desconfiar dele.

— E acreditou nessa lenda, com uma mancha no chão por única prova? — Era verdade. É verdade. Ainda acredito. —A jovem enfrentou seu olhar cético. —

Nestas paragens não é raro que os mortais encontrem o caminho do reino das fadas, nem tampouco que os levem a ele. É o que aconteceu ao Thomas de Erceldoune faz menos de cem anos, embora retornasse por algum tempo para relatar a história.

— Sem dúvida se ausentou do lar e a sua volta inventou um conto mais atraente que a

verdade. — Como demonstração de que tinha estado lá, predisse certos fatos futuros com

grande acerto – acrescentou ela. — As fadas podem ver o futuro; quando suas predições se cumpriram ficou provado que ele as tinha visitado.

— Mas se o reino das fadas não existe! Em toda a criação só há o que alguém pode ver e colher com a mão.

— Sei que isso não é de todo certo.

— Entretanto não se encontrou com um amante feérico, muito menos com seu amor destinado.

Contra isso Vivienne não achou argumento algum. Mesmo assim seus olhares se encontraram por um longo instante, um momento em que o vento pareceu cessar em torno deles e o ar se fez quente. Vivienne recordou seu desejo instintivo de acolher a esse homem, a magia que com tanta facilidade tinham criado juntos, no quarto da torre. Ao olhá-lo nos olhos recordou sua estranha sensação de que faziam o amor como se já o tivessem feito mil vezes. E se perguntou se inadvertidamente tinha expressado uma verdade. E se Erik era seu amante destinado, embora fosse mortal? Perguntou-se se acaso ele pensava o mesmo, pois seus olhos se obscureceram até um anil inquieto. Não era a primeira vez que ambos pareciam ter os mesmos pensamentos; sem dúvida era característico de quem estavam predestinados a viver juntos.

A perspectiva era embriagadora. E se lhe tivesse concedido a possibilidade de cumprir seu grande desejo? Erik pigarreou, carrancudo, e afastou o olhar dela. Sua mão se curvou sobre a corda, como se de repente cobrasse aguda consciência de seu peso e sua importância.

— E por isso se deitou nesse quarto, por procurar o mesmo destino que esse Thomas

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do Erceldoune ou a donzela da lenda de Alexander? — E você entrou pela janela e me seduziu com doçura — acrescentou ela, pois sabia

que não era tola, embora tivesse agido impulsivamente. — Por isso achei que a lenda da donzela perdida se fazia realidade para mim.

Erik a observou com os olhos semicerrados. — Minha realidade de mortal deve ser uma desilusão, por certo, se esperava um

príncipe das fadas.

— O que me desencanta é o futuro que planeja para mim. —Ao detectar a incerteza

em sua expressão. Vivienne se atreveu a pensar que ele se via obrigado a fazer algo contrário a seu

temperamento. Então se arriscou a enfrentá-lo, quase tocando as pontas dos pés, e lhe cravou um dedo no peito.

— O que pensaria seu pai disto no que insiste? Se alegraria de saber que se dispõe a

amarrar uma mulher para lhe fazer um filho? Cintilaram os olhos de Erik. — Meu pai e suas opiniões não têm nada haver com isto! Vivienne insistiu em sua atitude, pois suspeitava que não lhe faria mal. Precisava

saber qual era seu verdadeiro caráter. — Alegrar-se-ia seu pai de saber que escolheu a uma mulher só porque ela tinha

rechaçado ao seu irmão? — Provavelmente! Se existir em toda a Cristandade sequer uma pessoa que meu

irmão não tenha seduzido com seu encanto, é muito boa idéia me aliar com ela para recuperar o que ele me roubou.

Vivienne o observou, surpreendida. — Não me tinha dito isso. Ele se passou uma mão pelo cabelo e lhe voltou às costas, carrancudo.

— O porquê de minhas decisões não lhe interessa. — Como que não, se determina meu próprio destino? Cravou-lhe um olhar penetrante.

— Só uma coisa determina seu destino, e essa é sua capacidade de conceber a meu filho. —Levantou a corda. — Como se obtenha isso depende de você.

— Que finura de sentimentos! —replicou Vivienne, novamente ferida pelo fato de que ele encontrasse uma só vantagem em sua presença. Mas cada vez estava mais convencida de que ele não utilizaria essa corda. — Seu pai morreu; acaba de se inteirar e não chora. Na verdade só pensa em seu prazer.

O aborrecimento a levava a dizer mais do que deveria, mas duvidava que Erik fosse capaz de lhe fazer mal e pensava que não restava muito a perder.

— Meu pai morreu faz quase um ano e ainda choro cada minuto. Quando nos chegou a notícia solucei como uma criatura durante todo esse dia e essa noite. Que mérito haveria em gerar o filho de um homem que não lamenta a perda de quem o gerou? Possivelmente seja melhor para todos que o traidor clã dos Sinclair deixe de existir! Jogou a cabeleira para trás e o olhou para fulminá-lo, tratando de não deixar-se intimidar pela luz triste que lhe tinha enchido os olhos.

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— Faça comigo o que quiser — desafio-o. — Diz a verdade, sou sua cativa. Só uma bagatela. Fui comprada e vendida. Não tenho possibilidade de escolher meu destino. E cravou o dedo no peito para acrescentar:

— Mas posso acreditar no que quiser. E escolho acreditar que cada alma tem um destino, que cada um tem um amante destinado, que as injustiças serão corrigidas. E sei que quem não chora a morte de seu pai não tem mérito algum em nenhum reino. Custará me convencer do contrário. Obrigue-me a lhe dar um filho e terá que amamentar a essa víbora com seu próprio peito.

E se afastou de seu atônito seqüestrador, até sem acreditar que poderia chegar muito longe. Passou um longo momento antes que atrás dela ressoassem as pisadas de Erik; mais ainda antes que sua mão se fechasse sobre o cotovelo da moça. Agarrava-a com delicadeza; ela fechou os olhos para resistir a sua própria fraqueza, sabendo que, se ele tratava de seduzi-la com seu contato, sem dúvida triunfaria.

— Diz a verdade — reconheceu ele, com voz resmungona. — Embora ninguém pode saber o que sofre outro sem ter visto o fundo de seu coração.

Ela sabia que não devia virar-se nem olhá-lo nos olhos, mas o fez. Viu-o recortado contra o céu do anoitecer, tão imóvel, tão apaixonada sua atitude, que seu rebelde coração se deteve por um instante. O céu se manchava de rosa e laranja; umas poucas nuvens escuras nublavam a esplêndida cor. As estrelas já tinham aparecido, embora o sol ainda ardesse no horizonte. À luz daqueles raios moribundos o cabelo de Erik parecia mais avermelhado; sua cicatriz se iluminava claramente. Mas em seus olhos havia dor; ela soube que não era uma dor fingida.

— Por que um filho varão? —sussurrou. Ele perdeu a vista na água, com expressão sombria. Quando falou, suas palavras

foram suaves; sob cada uma espreitava um surdo padecer. — Porque minhas filhas estarão perdidas se não puder apresentar um varão que seja

meu, indiscutivelmente, para reclamar a propriedade de Blackleith. —Baixou a vista para ela. — E deve ser mais velho que qualquer varão gerado por meu irmão. São as condições que impôs o conde de Sutherland: que haja uma linha sucessória assegurada; então ele me ajudará a recuperar Blackleith.

— Têm filhas? —sussurrou Vivienne, enquanto seu aborrecimento se esfumava tanto como a luz do sol.

— Duas — admitiu ele, inclinando a cabeça com tanta dor que ela teria ansiado consolá-lo. — Faz um ano que não as vejo; não sei o que foi feito delas. Não me atrevo a pensar que Nicholas as tratará melhor que a minha esposa.

— Matou-a? Ele sacudiu a cabeça e afastou o rosto, afligido pelos fatos que lhe revelava. Uma

lágrima solitária descia por sua face bronzeada; embora não a enxugasse, sua expressão se tornou feroz. Essa única lágrima fez mais para mudar as conclusões de Vivienne que toda uma corrente. Era como se uma rocha se quebrasse ao fim sob alguma pressão, como se aparecesse uma fissura onde antes não havia. Por isso Erik tinha procurado seu ventre: porque a esposa falecida não tinha podido lhe dar o filho que salvaria às meninas. E porque essas duas vidas corriam perigo, ele não se atrevia a desposá-la se por acaso ela não

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pudesse conceber um filho, se por acaso se via obrigado a procurar a outra donzela para ter o herdeiro que tão desesperadamente necessitava.

Indubitavelmente, a decisão não teria sido fácil de tomar. Era evidente que o afligia

confessar o que tinha feito; ela compreendeu que o engano não tomava parte de seu temperamento. Já não podia resistir à atração de um homem que ia contra sua própria natureza pelo bem de suas filhas.

— Me deveria ter dito isso antes.

O olhar azul se fixou nela.

— Teria aceito assim minha proposta? Teria aceitado seu irmão a minhas condições? Acredito que não. A única maneira de alcançar meu objetivo era através do engano.

— Mas ao fazê-lo assim se arriscou a perder minha aliança. Ele meneou a cabeça. — Jogo muito mais que isso. Compreenda que não posso lhes pagar, qualquer que

seja o preço. Talvez tenha uma só oportunidade, mas a aproveitarei até meu último alento. Seja com você ou com outra donzela, tenho que ter um filho. A vida de minhas filhas depende disso. Escolhi a você, mas se me desdenhar escolherei a outra. Olhava-a de cima, vividamente azuis os olhos; suas palavras se suavizaram.

— Preferiria que não o fizesse, embora reconheça que é perigoso ter confessado a verdade.

Não haveria sentido obrigado a justificar-se a menos que tivesse algum afeto por ela; Vivienne sabia muito bem. Levada por um impulso levantou-se para pegar o seu rosto entre as mãos e roçou fugazmente os lábios com os seus, com a única intenção de consolá-lo. Ao perceber sua estupefação se afastou apenas. Descobriu que desejava ajudá-lo, ajudar a essas duas pequenas, até sabendo que não era correto fazê-lo sem o benefício dos votos nupciais.

— Como se chamam? — Mairi — grunhiu ele. — E Astrid. Mairi é morena e já viu seis verões, enquanto

que a loira Astrid tem só três. —Enquanto falava indicou com uma mão a altura de ambas; a aspereza de suas feições parecia fundir-se ao falar delas.

Foi seu afeto não dissimulado o que decidiu Vivienne. Além de tudo já não era

donzela e o dano já estava feito. Mas dessa perda podia surgir algo bom se não abandonava agora a Erik, se ainda se esforçava por conceber esse herdeiro. O impulso guiou sua língua; até enquanto falava se perguntou se era um engano, embora na verdade parecia não haver alternativa.

— Não sei se posso fazer o que deseja de mim — sussurrou, com o coração acelerado por sua própria audácia. — Não posso adivinhar o futuro. Mas se me tratar com honra tentarei lhe dar esse herdeiro, pelo bem de suas filhas.

Erik se virou para jogar a corda. Depois a olhou de frente; em seus olhos havia decisão, e algo mais que provocou um salto no coração da jovem.

— Pois então estamos realmente de acordo, minha senhora — disse. E reclamou seus lábios com um beijo possessivo.

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O gozo desse beijo revelou muito à Vivienne. Permitiu-lhe perceber seu alívio e seu

medo, sua dor e sua desesperada esperança. Enfrentou sem se acovardar a exigência de sua carícia, já certa de que se ofereceria inteira por ajudá-lo. Não sabia se sua decisão era a correta, se tudo se resolveria bem, mas de nada podia arrepender-se quando ele a beijava com essa lenta paixão. Sentia-se parte de uma grande lenda, da correção de uma enorme injustiça. Sem dúvida isso era recompensa suficiente.

Erik estava há tanto tempo sem que ninguém fizesse uma concessão que o oferecimento de Vivienne o deixou atônito. Não obstante, não pôde permitir o luxo de maravilhar-se, pois não se atrevia a lhe dar tempo para que mudasse de idéia. Não tinha intenções de permitir que ela retirasse sua oferta. Tampouco de lhe dar motivos para arrepender-se. Essa relação devia ser tão estupenda como a anterior. Estreitou-a novamente contra si, saboreando de novo a boa disposição com que ela o aceitava, sua pronta confiança. O fato de que outra pessoa confiasse nele era um elixir esquecido; Vivienne o brindava tão generosamente que Erik esteve a um triz de intoxicar-se.

O beijo da jovem foi ao mesmo tempo doce e selvagem, diferente de qualquer que ele tivesse saboreado até então, e despertou desejos inesperados. Deveria ser o último em desfrutar muito seus encantos; queria que o encontro entre ambos não tivesse sido obra de suas maquinações, mas sim do destino, e desejou que essa aventura fosse um êxito para ambos. Por essa noite afastou suas preocupações. Por essa noite queria perder-se em Vivienne e na encantadora lenda que ela narrava.

Beijou-a profundamente, encantado ao ver que ela não tinha um pingo de medo. Deslizou-lhe a mão pelo cabelo e a convenceu a aproximar-se mais, impaciente. Depois arqueou as costas e ficou nas pontas dos pés para lhe oferecer mais do festim de seu beijo. Ele tirou as luvas com um pouco de impaciência própria, seguro de que agir pela metade não seria útil, nessa noite, para nenhum dos dois. Queria-a nua, ansiava vê-la plenamente sob a última luz do sol, presenciar seu prazer.

Suas mãos caíram sobre os laços laterais da saia; desatou-os sem interromper o beijo. Vivienne abafou uma exclamação, talvez pelo frio do vento que atravessava a camisa, mas ele deslizou as mãos pelos lados do vestido para que suas mãos a esquentassem. Era tão esbelta que quase podia rodear sua cintura com os dedos.

Até com a barreira da roupa entre ambos, sentia o pulso de Vivienne sob as palmas; seu ritmo veloz lhe recordou que o ato de amor era novo para ela. Para não assustá-la deixou que suas mãos percorressem as costelas até capturar finalmente os seios. Quando lhe tocou aqueles mamilos erguidos ela interrompeu o beijo com uma exclamação. Erik a reteve contra si, com uma mão na parte baixa das costas, e a olhou no fundo dos olhos enquanto lhe acariciava novamente o mamilo.

Ela engoliu em seco e seus olhos se alongaram em lagos de esmeralda, mas não se afastou. Sem deixar de observá-la, ele deslizou o polegar sobre aquela ponta, que se esticava mais e mais, e notou que ela inalava ao sentir a beira calejada de seu dedo contra a carne tenra. Vivienne o enfeitiçou com um sorriso.

— Eu gosto disso — sussurrou. E ele não pôde menos que sorrir também. — Já notei. Ela se ruborizou com esse comentário, mas não lhe afastou a mão. Erik

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repetiu a carícia, saboreando a maneira em que lhe turvavam os olhos. — É bruxaria — sussurrou a jovem. Ele negou com a cabeça. — É uma força muito mais confiável que nenhuma bruxaria — disse. Vivienne riu. Era um som tão alegre que ele se sentiu aliviado do peso de sua carga.

Durante esses poucos momentos se esqueceria de suas responsabilidades. Curvou uma mão em torno daquele seio amadurecido e levantou a outra para o broche do manto. Desprendeu-o, deixando que a capa caísse amontoada ao redor dos tornozelos da jovem. Os finos trajes que vestia lhe eram pouco familiares; o tecido deslizava sob suas mãos em uma carícia de seda. Tirou-lhe a saia pela cabeça e a deixou cair a um lado com cautela; logo suas mãos voltaram para os seios. A camisa era de um linho tão tênue que se via a escuridão das auréolas através da trama e os mamilos formavam picos na malha.

Estreitou-a contra si para beijá-la outra vez, enquanto desatava o laço que rodeava o decote da camisa. Até enquanto acentuava o beijo lhe deslizava a mão pela pele, afastando-lhe o tecido do pescoço. Ao levantar a cabeça descobriu que ambos estavam sem fôlego e voltou a sentir a tentação de sorrir. Caiu na conta de que levava anos sem experimentar essa tentação, embora não fosse a primeira vez que lhe curvavam os lábios em presença de Vivienne. Ela era um bálsamo para sua desdita, um raio de sol que brilhava nos cantos mais escuros.

Baixou a vista ao tesouro que tinha em seus braços, devorando com o olhar o que a penumbra lhe tinha negado a noite anterior. Ela era uma beleza, na verdade, mais bela do que ele teria imaginado. Sua pele era muito suave, com a cor das pétalas da rosa branca. As encantadoras sardas do nariz tinham seu eco em um artístico toque de bolinhas mais claras na clavícula. Os seios eram bastante grandes para encher sua mão, bastante suaves para tentá-lo à carícia. Levantou um na palma; logo se inclinou para beijar seu mamilo, com não pouca reverência.

O aroma de sua pele converteu sua reverência em um desejo mais ardente. Descobriu-se fechando os lábios nela, cheio de urgência; sua língua tocou o mamilo; seus dentes roçaram o pico que tinha provocado recentemente com o polegar. Vivienne, com uma exclamação abafada, pegou-lhe um punhado de cabelo e ficou nas pontas dos pés para beijar sua orelha, o pescoço e o ombro, com um ardor que ele compreendia bem. Essa paixão acendeu a sua com assombrosa facilidade. Afastou-lhe a camisa, amaldiçoando aquelas dúzias de botões que rodeavam as mangas. Ela riu ao ver a impaciência com que a liberava do objeto. Depois Erik a levantou pelas nádegas contra seu corpo, para lhe fazer sentir o efeito que lhe causava. Ardia por ela como não o tinha feito nunca por outra mulher.

Vivienne moveu os quadris contra ele em silenciosa exigência. Nesse momento poderia tê-la possuído, mas temia apressar-se muito. Em troca a ergueu em seus braços, com intenção de seduzi-la mais lentamente dentro das ruínas. Ao ver para onde ia, ela meneou a cabeça com inesperada veemência.

— Ali não — disse, enrugando o nariz em um gesto encantador. — Aqui será melhor, com a última luz.— Deslizou-lhe a mão pelo lado do rosto; a ponta de seus dedos acariciou os lábios. — Esta noite quero vê-lo todo inteiro. Que não haja sombras entre nós.

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Erik se surpreendeu de que ambos tivessem desejos tão similares. Os últimos anos lhe tinham ensinado a ser cauteloso; freqüentemente as coisas que pareciam muito boas eram indignas de confiança. Perguntou-se fugazmente se seria uma estupidez tomar a sério esse inesperado compromisso da moça, se acaso ela o enganava deliberadamente por alguma misteriosa razão própria.

Então Vivienne o beijou, fazendo dançar a língua contra a sua, com tanta audácia que ele não pôde lhe negar nada; muito menos, algo que ele mesmo desejava com tanto ardor. E assim, uma vez mais, rendeu-se a seus encantos.

Capítulo Seis Em poucos momentos Erik criou um ninho com os dois mantos; em cima o que tinha

o forro de peles; a dama resplandecia como o marfim ao sentar-se nele. O jovem se ajoelhou para lhe soltar as ligas, mas Vivienne esperneou com ar

brincalhão. — Ainda está completamente vestido. Antes de continuar quero ver tanto de você

como você viu de mim. Erik se deteve; não queria sufocar o ardor da moça com a verdade de suas cicatrizes.

— Não há necessidade...

— Sim, há necessidade — argumentou ela, endireitando-se graciosamente sobre os joelhos. — E como é tímido, ajudarei-o.

Agarrou-lhe a fivela do cinto, com o olhar fixo no seu. Segurou-lhe as mãos para impedir, mas depois reparou no gesto decidido de seus lábios. Vivienne levantou o queixo, com um desafio brilhante no olhar. Obviamente sabia que ele não era tímido, sabia o que tratava de ocultar dela.

Erik compreendeu que ela não tinha medo de ver o que ele deixasse à vista, fosse o que fosse.

Certamente, não tinha se acovardado ao ver a cicatriz de seu rosto. Ele afastou as mãos e lhe permitiu continuar. Muito agradada por seu triunfo, desprendeu o cinto com um sorriso. Depositou as armas a um lado, com o esmero devido, e passou a desatar a túnica de couro fervido. Movia-se com pressa eficiente; ele se limitava a olhá-la, decidido a observar cada matiz de sua reação no momento que temia.

O casaco ficou a um lado; as botas se uniram. A camisa ondulou ao vento; os dedos

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da moça tremiam um pouco ao estender-se para o laço do pescoço. Enquanto retirava o cordão de cada casa sustentou seu olhar; quando ao fim a deixou livre, quando suas elegantes mãos seguraram a prega do traje para subi-lo até sua cabeça, ele a tirou com impaciência e lhe observou os olhos.

Tinha o flanco esquerdo do corpo mais desfigurado que o rosto; tinha escritas em sua própria carne as provas do ataque sofrido. Sabia que não era agradável vê-las, que alguns lugares estavam ainda com hematomas.

Não cabia esperar que Vivienne vacilasse. Não foi assim. Enquanto o percorria com um olhar atento, ergueu a ponta dos dedos até o pior nó de carne maltratada.

— Nicholas lhe fez isso? —perguntou em um sussurro. — Ele enviou quem o fez. A jovem observou as cicatrizes e seguiu a mais grave com a suave ponta de um dedo. — Queria matá-lo — disse. Não era uma pergunta. Erik não replicou. Cravou-lhe um

olhar brilhante como o de um pássaro. — Dói ainda? Ele fez um gesto negativo; com a garganta atada, detectou uma cintilação de lágrimas

nas pestanas; viu-as cair como jóias ao menear ela a cabeça, pensando no que tinha padecido.

— Deveria deixar que o sol lhe beijasse — disse a moça, em voz baixa. — Sua carícia cura muitas coisas.

Ele engoliu a saliva; depois, incrédulo, viu que ela se inclinava para lhe tocar a cicatriz com os lábios. Esse gesto o encheu de humildade. Tinha lhe dado muito pouco; oferecia-lhe até menos. Entretanto Vivienne lhe oferecia outro presente inapreciável. Duvidar dela era uma loucura, sem dúvida. Antes que pudesse dizer algo, ela o percorreu com as mãos, com desenvoltura de proprietária. Pareceu adivinhar que ele estava aflito, pois disse muito normal:

— Meus irmãos não têm as costas tão largas como você. E os menores tampouco têm tanto pêlo no peito.

Ele descobriu que seus lábios voltavam a formar essa curva desacostumada.

— Supõe-se que isso deve me inspirar?

Vivienne pôs-se a rir. — Acredito que sim, pois me é muito mais atraente que meus irmãos. Isso não é

bom? — A meu modo de ver, sim. — E não tem que ser pouca coisa que nos ponhamos de acordo com tanta facilidade

— acrescentou ela, enquanto deslizava os dedos até o bico do mamilo para incitá-lo a contrair-se, como o tinha feito ele.

Erik inspirou bruscamente, mas ela não deteve a carícia. — Verdade que posso, por minha vez, atormentá-lo com o prazer? —sussurrou.

Com os olhos cheios de malícia, beijou-lhe o bico do mamilo e moveu a língua contra esse pico sensível, tal como o tinha feito ele apenas uns momentos antes. Erik sussurrou seu nome e a estreitou com força. Enquanto a beijava com paixão sentiu a curva de seu sorriso sob a boca. Essa mulher era alegre como um raio de sol; mantinha-se tão impertérrita acima de tudo o que lhe acontecia que era impossível não regozijar-se em

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presença dela. E ele decidiu alegrar à dama. Estendeu-a nos mantos estendidos e lhe segurou os pés

entre as mãos, para que não pudesse escapulir. Depois se inclinou para lhe desatar as ligas com os dentes, enquanto a beijava na face interior dos joelhos.

— Faz-me cócegas! —queixou-se ela, rindo e retorcendo-se. Sem lhe dar trégua, tirou seus sapatos, as ligas e as meias com deliberada lentidão.

Moveu a língua atrás dos joelhos e beijou suas pernas, ao mesmo tempo em que baixava as meias com a ponta do nariz, detendo uma e outra vez para mordiscá-la e beijá-la provocativamente. Vivienne se retorcia tão vigorosamente sobre as peles que lhe enredava a cabeleira sob o corpo. Implorava misericórdia, mas ele não a deu. Ela riu até ficar sem fôlego, mas a alegre faísca de seus olhos o convidava a continuar. Erik roçou com os dentes a pele suave do tornozelo, beijou-lhe o arco do pé e deslizou a língua entre os dedos. Só se deteve quando lhe tirou as meias, e isso foi desfrutar ao vê-la tão ruborizada e descomposta.

Depois deixou um rastro de beijos na face interior das pernas, queimando um atalho até seu doce calor. Quando fechou ali os lábios ela se arqueou com um gemido; imediatamente abriu as coxas para recebê-lo. Ele saboreou essa reação as suas carícias, enquanto seu próprio desejo redobrava. Estreitou-a com força, levando-a a maiores alturas, mas se deteve justo antes que ela encontrasse o prazer e recomeçou. Vivienne gemia, retorcendo-se e atando as mãos em seu cabelo.

— Juntos — exclamou. E ele não pôde resistir mais. Depois de tirar as calças segurou seu próprio peso por

cima dela, totalmente cativado por aquele ávido abraço. Ela se agarrou a seus ombros enquanto ele penetrava em seu calor; depois o estreitou para abrigá-lo dentro de si. Erik se moveu dentro dela, com a sensação de que nenhum outro momento, nenhum outro lugar podiam importar. Vivienne abriu os olhos e lhe sorriu, com as faces coradas e os olhos faiscantes, acelerada a respiração. Sem lhe soltar os ombros, envolveu-o com as pernas para igualar seus movimentos aos dele. Erik viu sua própria maravilha refletida naqueles olhos fantásticos.

Compartilhou com ela o momento como nunca o tinha compartilhado com outra. Beatrice sempre tinha afastado a vista, até antes que o desfigurassem, como se mal pudesse tolerar sua obrigação conjugal. Vivienne, em troca, desfrutava da cópula e experimentava tanto desejo como ele; não se envergonhava de sua paixão. Esse franco abraço de prazer era muito prazenteiro; o fato de que gozasse do amor não fazia a não ser incrementar o próprio gozo. E se podia confiar em sua paixão, pois não era fingida.

Erik não teria podido expressar sua admiração, enquanto se movia dentro dela, rodeado por um feitiço mais potente que nenhuma poção. No mundo nada existia, salvo Vivienne. Observavam-se mutuamente, cada um desafiando ao outro a resistir por mais tempo. Ele temeu que sua própria carne explodisse em chamas, dado o ardor com que procuravam o pico mais elevado. Notou que se intensificava o rubor da moça, que seus quadris corcoveavam, que aquela sua tensa pérola puxava-o, mas aguardou até ouvir seu grito de êxtase.

Só então deixou que a paixão o apanhasse de todo. Só então rugiu seu próprio alívio.

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Momentos depois, quando apoiou a fronte no ombro de Vivienne, sobressaltado pela magia que ambos tinham forjado, só então lamentou a situação. Teria querido saber antes o que podiam compartilhar um homem e uma mulher, sabê-lo antes de tomar esposa. Lamentou que ele e Beatrice não tivessem conhecido nunca esses prazeres. Mais ainda desejava ter conhecido Vivienne livre de amarras, ter podido cortejá-la antes que sua vida se convertesse no que era.

Queria ter conhecido Vivienne quando seu coração era tão jovem e alegre como ela. Assim ela teria podido conhecer o melhor dele, não o pior. Esse prêmio tinha sido para Beatrice, embora nunca tinha regozijado tanto como Vivienne a magra oferenda que ele podia dar agora. Eram tantas as coisas que não se podiam desfazer! Erik tinha casado para satisfazer não suas próprias ambições mas as de seu pai. Tinha entregue o melhor de si a uma mulher que não se interessava por ele absolutamente. Só agora, quando possivelmente era muito tarde para corrigir as coisas, compreendia o alto preço que tinha pago.

Exausto até a medula, contente no abraço de Vivienne, permitiu que uma só palavra de dor lhe cruzasse os lábios, uma palavra que lhe sairia muito cara.

— Beatrice — murmurou. E suspirou ante a promessa vazia de seus votos nupciais. Logo ficou adormecido. Mas seu sonho estava condenado a durar muito pouco.

Beatrice! Vivienne abriu subitamente os olhos para cravá-los no homem que dormia

pesadamente, estendido pela metade sobre ela. Beatrice! Como tinha podido confundi-la com outra mulher depois do prazer que tinham conjurado juntos? Acaso pensava em Beatrice enquanto faziam amor?

Teria imaginado que ela era Beatrice? A mera possibilidade era incrivelmente repulsiva. Como se atrevia a isso? Erik dormia profundamente, com a testa apoiada em seu ombro, em nada aflito por seus atos. O cabelo lhe caía em leque sobre os ombros; o pêlo de seu peito lhe fazia cócegas nos seios. Ela sentia o peso de suas pernas sobre as suas e a ardência do pêlo também ali. Embora seu companheiro ainda suportasse a maior parte de seu próprio peso sobre os antebraços, Vivienne estav presa sob seu corpo.

Era, precisamente, onde não desejava estar. Em circunstâncias normais teria preferido deixar dormir, mas nesse momento não estava disposta a ter em conta os desejos do Erik. Apoiou as mãos contra seus ombros e empurrou. Não houve efeitos discerníveis. Ele nem sequer se moveu.

Empurrou com mais força. Erik, com um suspiro, deixou-se cair a um lado e murmurou uma desculpa. Ainda tinha uma perna cruzada sobre as suas, seu calor bem junto ao flanco, uma mão enredada em sua cabeleira. Em sua expressão havia uma estranha alegria. Vivienne se negou a deixar-se enganar. Provavelmente sonhava com sua bem-amada esposa! Arrebatou o cabelo de entre seus dedos e lhe afastou a perna. Esse movimento tão abrupto o fez piscar; por fim se mexeu como quem acorda de um sonho.

— Vadio! —exclamou ela, enquanto se levantava de um salto. — Traidor, canalha, miserável!

Erik piscou em aparente confusão.

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— Sabe muito bem o que fez— exclamou ela, sacudindo um dedo ante seu rosto. —

Não finja outra coisa. Não me deixarei comover por suas manhas. Recolheu sua camisa e a pôs depressa, pois já via um brilho de desejo nos olhos de

seu companheiro. As mangas desabotoadas ficaram pendendo, comicamente longas.

— Sonhe toda a noite com sua esposa, se assim o desejar, pois não voltará a me pôr um dedo em cima.

Voltou as costas a sua expressão surpreendida e continuou reunindo seus trajes dispersos. O céu noturno era agora da cor do anil; brilhavam as estrelas no firmamento e o vento se tornara frio. A cólera fazia tremer suas mãos a tal ponto que lhe custou atar as ligas. Essas condenadas mangas se interpunham; lástima que nenhuma de suas irmãs tivesse chegado a lhe roubar essa camisa. Não ajudava saber que Erik observava seus torpes intentos de vestir-se; ainda menos que parecesse confundido por sua atitude. Ao menos teria podido tentar protestos de inocência, dizia-se ela, rabiando em silêncio. Até sabendo que eram falsas, a teria calmo saber que seu aborrecimento o preocupava.

— Não gostou? —perguntou ele, por fim. Vivienne, furiosa, arrojou-lhe um sapato. — Quanto gostou você, para que invocasse a sua esposa? "Beatrice!" —imitou-o.

Depois se virou com um revôo de saias. — Que terno, saber que no leito não me distingue de sua esposa!

Erik se levantou com uma pressa nada habitual. — Não foi assim. Vivienne plantou as mãos nos quadris. — Claro que sim! Não cometa agora o engano de me acreditar surda. Sei o que ouvi

que seus lábios: foi o nome de sua esposa. Erik passou os dedos pelo cabelo, carrancudo. Logo se vestiu com gestos eficientes.

Ao que parecia não diria nada mais; a mera perspectiva punha a ferver o sangue de Vivienne. Fulminou-o com os olhos, enfurecida até o incrível, em nada disposta a deixar as coisas assim. Ele pareceu dedicar muita atenção a abotoar o cinto e dispor as armas segundo sua conveniência.

— Bonita recompensa oferece a quem prometeu lhe ajudar em sua gestão! —reprovou ela, quando já não pôde continuar guardando silêncio.

Dedicou-lhe um breve olhar. — Está tão atraente como uma valquiria — disse. — Na verdade é um premio o que

me oferece só com este espetáculo. —Uma faísca inesperada lhe acendeu os olhos e continuou ali preso à piscada de Vivienne. — Talvez valha a pena irritá-la no futuro.

— O que significa isso? — Que parece uma donzela guerreira decidida a reclamar o que lhe corresponde. —

Erik inclinou um pouco a cabeça e a meneou. — Embora o preço não seja pouco. Ela não sabia se devia se sentir insultada ou adulada. Observava-o com desconfiança,

percebendo a isca de uma história que não conhecia. — Não sei nada dessas valquirias — disse com tanta frieza como pôde.

— São as servidoras do Odín, o grande deus, quem as envia para guiar aos guerreiros a

sua eterna recompensa no Valhalla. —Erik a estudou por um momento. — Recolhem a

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alma dos homens, embora deva adverti-la que não estou disposto ainda a entregar a minha. Vivienne meneou a cabeça.

— Não quero sua alma. — Não? Pois eu achava que todas as mulheres desejavam apoderar-se da alma dos

homens. E você não parece disposta a se conformar com a metade. —Ele jogou o manto sobre o ombro, com esse gesto gracioso que ela tanto admirava. Ela se perguntou se queria desafiá-la ou adulá-la. — Sem dúvida deseja, quando menos, infectar seu pensamento, persuadi-lo a que reconheça as forças invisíveis, por exemplo, embora ele sabe que não existem.

E ofereceu a mão à moça, embora ela não a aceitasse. — E que classe de força era Beatrice? — Uma que não têm por que conhecer. —Erik deu uma olhada ao céu e a seu cavalo,

que já estava na expectativa; depois se voltou para Vivienne. — É hora de continuar a viagem.

Ela cruzou os braços contra o peito e não deu um só passo para a mão estendida. — Por que disse seu nome? Seu companheiro afastou a vista. — Não tem importância. — Eu acredito que sim. — Não obterá resposta de mim. — Pois então não viajarei com você. — Fizemos um trato — recordou ele, em tom um pouco mais enérgico. — Não têm

opção. Desta vez tinha o bom senso de não a tratar de bagatela, embora provavelmente o

pensasse.

— Sempre há uma opção — asseverou ela-, embora algumas são mais difíceis que outras. E sempre se rompe algum trato. Poderia provar-lhe isso assim como a existência do invisível reino de fadas, se quisesse lhe relatar a história de Thomas de Erceldoune.

— E quererá fazê-lo? Vivienne lhe cravou um olhar fulminante, pensando que não merecia resposta. Erik

observou as costas com ar carrancudo; logo a atravessou com um olhar brilhante.

— O que disse foi involuntário.

— Por que tenho que acreditar? — Porque eu juro isso. —Agora lhe sustentava o olhar com olhos seguros. Vivienne

descobriu que sua firmeza fraquejava. — E lhe peço desculpas, embora fizesse sem querer. — Não deve acontecer outra vez.

— Tenha a certeza de que não acontecerá. —Ele reduziu a voz à intimidade de um

sussurro; olhava-a como se para ele não existisse outra coisa no mundo. Em seus olhos resplandecia a decisão e algo mais, algo que fez saltar o traiçoeiro coração da moça.

— Venha comigo, Vivienne — insistiu Erik, como se seu nome fosse uma carícia na língua. — Venha comigo, me dê um herdeiro. E enquanto isso, me conte a história desse Thomas de Erceldoune.

A oportunidade de contar sua lenda favorita era um convite que não podia recusar.

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Ao menos isso ela disse a si mesma. A verdade era que Erik Sinclair, com uma súplica nos olhos, era irresistível.

Antes de ter estudado as alternativas pôs uma mão na de Erik. Seu coração se deteve por um momento ao sentir o calor de sua carne, a pressão possessiva de seus dedos. Beijou-lhe os dedos, em uma desculpa tão eloqüente como se podia desejar, e Vivienne soube-se impotente contra sua atração.

Era perigoso permitir que a convencesse de sua inocência; perigoso, viajar apertada contra sua força; perigoso, na verdade, ter se comprometido a lhe dar um herdeiro. Mas ela tinha pronunciado esse voto e o cumpriria. Um milhar de lendas tinham ensinado que, quaisquer que fossem as conseqüências de uma promessa, faltar a ela levava a resultados muito piores. Dessas lendas tinha extraído também muitas outras lições. E se atrevia a confiar em que Erik, por sua vez, poderia aceitar algumas das crenças que ela tanto entesourava.

Erik ainda estava assustado pelo preço que tinha estado a ponto de pagar por seu engano. Ao ver que ela se virava com os olhos chamejantes tinha tido a certeza de que o rechaçaria, de que lhe voltaria as costas para sempre. A perspectiva lhe infundiu terror até a medula dos ossos. Estava disposto a dizer algo, a fazer qualquer promessa para que ela aceitasse continuar a viagem. Não se atrevia a perguntar por que estava tão decidido a causar uma boa impressão a essa mulher, mas se obrigava a recordar, severo, que ainda não podia permitir-se nenhum sentimento terno por ela. Afeiçoar-se a Vivienne só lhe dificultaria a decisão que talvez se veria obrigado a tomar. Em vez de preocupar-se com seu próprio medo de perdê-la, Erik experimentou certa satisfação por havê-la persuadido de continuar a viagem. Junto com sua doce curva no regaço saboreava uma sensação de triunfo. Dizia-se que era só a possibilidade de que ela já tivesse concebido ao herdeiro o que o tinha impulsionado a pronunciar essas rápidas palavras.

Seu desejo de tranqüilizá-la não podia ter outro motivo sensato. Vivienne lhe jogou um olhar por cima do ombro; seus olhos já chispavam com a perspectiva de compartilhar sua lenda com ele. Erik voltou a maravilhar-se pela facilidade com que ela podia lhe mudar o humor. Embora lhe esperavam desafios formidáveis, fazia anos que não desfrutava de uma sensação tão promissora.

Nunca antes tinha pensado que sua gestão tivesse alguma possibilidade de êxito; era, simplesmente, um dever que não podia evadir-se. Pensava agora em ver novamente ao Mairi e ao Astrid, em ouvir novamente suas risadas, e o coração se enchia ante a perspectiva.

— Diz-se que esta história é verdadeira, que faz apenas cem anos existia certo Thomas de Erceldoune — disse Vivienne. — Ao que parece era laird do imóvel de Erceldoune, que então estava próxima à confluência dos rios Leader e Tweed. Nessas vizinhanças está também a abadia de Melrose.

— Ouvi falar dessa abadia — reconheceu ele.

Vivienne abotoou as mangas com esmero, com a cabeça inclinada. Ele teria querido lhe ver as feições, vigiar a curva de seus lábios enquanto relatava a lenda. No momento se conformou rodeando a mão ao contorno de sua cintura. Ela não pareceu reparar em seu gesto, como se sua mão tivesse pleno direito a estar ali, coisa que lhe assentou muito bem.

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— Também o chamavam "o Rimador" e "o Veraz", tanto por seus relatos rimados

como pelo acertado de suas profecias. Tinha visto o futuro enquanto estava no reino das fadas e, ao retornar ao mundo mortal, falava dele. Depois de sua segunda partida, com o correr do tempo, suas profecias resultaram acertadas. Acredito que esta é a prova de que as coisas invisíveis existem na realidade.

Uma sombra se separou da escuridão que imperava diante. Isso liberou Erik da necessidade de discutir essa asseveração. Não seria tão fácil deixar-se convencer por uma fantasia, mas tampouco desejava nublar a camaradagem entre ele e Vivienne.

Reconheceu em seguida a robusta silhueta de Ruari. — Não me afastei tanto como ordenou — disse o servidor, resmungão; a julgar por

sua maneira de retorcer as bridas, não estava de todo seguro da reação que provocaria sua desobediência. Como Erik não dizia nada, ele pigarreou. — Verá, pareceu-me que seria melhor virar para o oeste a partir daqui, em vez de passar em frente dessa alta torre que se vê para adiante. Preferi esperá-los aqui para não cansar o cavalo, em vez de continuar só para retroceder logo o trajeto.

Erik não se surpreendeu muito ao encontrá-lo tão perto. Até enquanto discutia com ele tinha previsto que não se livraria tão facilmente de sua presença. Seu pai elogiava freqüentemente sua firme confiabilidade.

— Seu conselho é bom, Ruari, como costuma acontecer — disse. E viu que o outro relaxava. — Nunca se sabe que olhos estão abertos.

— Muito menos em Ravensmuir — acrescentou Vivienne.

— Sim, em Ravensmuir — murmurou Ruari, enquanto dava uma olhada ao torreão

por cima do ombro. — Não traz boa sorte invocar o nome dessa fortaleça com tanta freqüência; muito menos, ficar em suas vizinhanças. Contaram-me que o laird de Ravensmuir é capaz de ouvir um passo de camundongo do outro extremo da Cristandade. E, além disso, fazer que um falcão peregrino lhe traga esse mesmo camundongo para o jantar, se quisesse.

— Tolices, sem dúvida — disse Erik, contendo um sorriso.

— Tolices, certamente — apoiou a moça. — Meu tio tem muito bom ouvido, embora nem tanto. E as aves que obedecem a suas ordens não são falcões originais, mas corvos. É meu outro tio, o laird do Inverfyre, que tem falcões a suas ordens.

O servo, que estava por montar a cavalo, deteve-se para olhá-la com espanto. — Ravensmuir e também Inverfyre! Não é possível que todos eles sejam seus

parentes! — Pois sim o são. — Mas se diz que são feiticeiros dotados de poderes malignos, capazes de convocar a

maré e invocar aos demônios para que façam sua vontade! Vivienne pôs-se a rir. — Quantas tolices! Ruari aproximou seu cavalo. — Erik, filho, pela tumba de seu pai, me sinto obrigado a lhe advertir que este

caminho só pode levá-lo a infortúnio. — Neste momento todos os caminhos me levam a infortúnio, Ruari — assegurou ele,

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com um tom leve que não concordava com suas palavras. — Só trato de escolher o destino menos horroroso.

— E o está fazendo muito mal, filho. Isso é evidente. — Agradeço-lhe o conselho. —As palavras do jovem eram tão pouco amistosas que

Ruari lançou um suspiro. — Está preparado para continuar viagem? Pegaremos a estrada do oeste, como aconselhou.

Ruari não parecia satisfeito, embora tivesse aceito sua proposta. Os cavalos igualaram o passo em um galope semelhante, mas o servidor meneava tristemente a cabeça.

— De Ravensmuir me contaram coisas que gelam o sangue e a medula dos ossos. Sim, ouvi falar dos corvos que soltam dessa torre; dizem que o laird os utiliza como espiões ou para que arranquem os olhos de seus inimigos.

— Que loucura! —assegurou Vivienne outra vez, com a voz transbordante de risada. — Até onde chegam meus conhecimentos, nenhum corvo arrancou nunca os olhos a um inimigo.

— E há bruxarias até maiores — declarou Ruari, com um dedo em alto. — Dizem que o laird fala com essas aves!

A moça riu entre dentes. — De que outra maneira receberia as notícias de longe?

— Mediante mensageiros e enviados, possivelmente, como qualquer senhor —

sugeriu Erik. Vivienne lhe dedicou um sorriso brilhante, mas suas seguintes palavras lhe

congelaram o coração: — É certo que a linguagem dos corvos é um conhecimento que passa de pai para

filho — explicou, sem que esse estranho detalhe parecesse inquietá-la. — E que o laird e as aves intercambiam segredos. –Olhou novamente a seu companheiro com olhos faiscantes. — Mas os homens que não acreditam no invisível dirão que isto é uma fábula e não se preocuparão absolutamente.

Um olhar à alta e nebulosa torre que se erguia atrás deles descobriu diminutas bolinhas contra o céu noturno. Bem podiam ser corvos que voavam em círculos por cima dela; sua mera presença era inquietante.

— Sem dúvida — disse Erik, com uma decisão que não chegava a sentir.

No olhar da moça cintilava uma alegria travessa. — Acredito que dá mais crédito a esta lenda do que está disposto a admitir. Provarei-

lhe isso. Ele lançou um grunhido desdenhoso. — Não pode. Vivienne arqueou uma sobrancelha avermelhada. Logo voltou a lhe dar as costas e,

para estupefação do cavalheiro, emitiu um grito penetrante e ergueu o punho para o firmamento.

— Em nome de Deus! O que é isto? —inquiriu Ruari, fazendo o sinal da cruz-se com vigor. — Com esse grito poderia paralisar a um coração, moça, asseguro-lhe. Acaso pretende alertar de nossa presença a todos os cristãos destas paragens?

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Vivienne o ignorou para observar avidamente o céu. Erik tinha certeza de que só queria brincar, mas de repente se ouviu um rumor de asas. Lá encima ressoou um grito a maneira de resposta, tão potente que quase lhes destroçou os tímpanos e espantou ao cavalo de Erik, quem precisou pôr toda sua atenção em tranqüilizar à besta. Acariciou o flanco do Fafnir e lhe falou com firmeza para acalmá-lo enquanto mantinha as rédeas bem tensas.

Uma sombra mais escura que o céu noturno desceu com assustadora graça; Vivienne gritou outra vez, com o que esteve a ponto de fazer que o cavalo acabasse de desenfrear-se. Erik lançou uma maldição em voz baixa e esticou as rédeas, mas ela ignorou o perigo que corriam. Com o rosto aceso de gozo, cobriu o braço com o manto e, contra tudo o que cabia esperar, estendeu-o em temerário convite.

— Mãe de Deus! —exclamou Ruari. O corvo posou com tanto peso que o braço da moça desceu marcadamente sob sua

carga. Fafnir, ao ouvir esse estranho sussurro de penas tão perto de sua cabeça, lançou um relincho de terror e partiu a todo galope, com as orelhas jogadas para trás. Erik rodeou com um braço a cintura de Vivienne, enquanto dedicava toda sua atenção a tranqüilizá-lo.

O cavalo não estava disposto a lhe prestar ouvido. Meia eternidade e várias depois, Fafnir voltou, mais ou menos, a seu passo anterior.

Ainda sacudia a cabeça e trotava de lado alguns metros, descontente por aquele agregado ao cortejo. Erik compreendeu o que significava esse passo nervoso: se a ave não permanecia quieta, o corcel voltaria a desenfrear-se.

A jovem deixou escapar uma trêmula respiração. — Este seu cavalo está adestrado, não? — Que loucura a sua, ter chamado a essa ave — replicou o cavalheiro. — Não vê que

nos pôs em perigo a todos com essa tolice? Ela fez expressão de leve culpa. — Não era essa minha intenção. Todos os cavalos que montei em minha vida

estavam habituados às aves. — Provavelmente porque se criaram em Ravensmuir e Inverfyre, onde lhes ensinava

a suportar essa aliança tão ímpia! —contribuiu Ruari, que se aproximava de trás, ao galope. Vivienne lhe deu um olhar desdenhoso.

— Todos os nobres da Cristandade caçam com falcões e o fazem a cavalo. Isso não

tem nada de estranho, muito menos de "aliança ímpia". — Pois a experiência do Fafnir está limitada aos meus próprios atos —esclareceu

Erik— Os proscritos não têm ocasião de caçar com galgos e falcões. Ao lançar uma olhada à ave ficou atônito com seu tamanho, pois era a primeira vez que via um corvo de tão perto. Sua penagem refulgia muito negra, salvo por uma mecha de penas brancas sobre o olho esquerdo, que lhe davam um ar lastimoso.

Mais inquietante ainda era sua atitude, pois nos olhos escuros resplandecia algo que bem podia ser intelecto. O corvo inclinou a cabeça para lhe cravar um olhar tão espectral como se soubesse tudo o que estava pensando. Nem sequer piscava; refulgiam os olhos que o observavam com firmeza.

— Loucura e tolice! —exclamou Ruari, assinalando a ave com um gesto. — Há

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homens que caçam com falcões, sim, mas um peregrino é uma coisa e outra muito diferente um corvo tão disposto a posar no punho de uma mulher. Acaso tem uma feiticeira por companheira de leito, filho? Que preço nos exigirá se é capaz de fazer que acuda uma ave selvagem? Sem dúvida saberá convocar o vento com um assobio ou fulminá-lo com um só olhar. Esta tua escolha acabará muito mal, já pode estar certo!

— Essas histórias de bruxas são pura tolice, Ruari — disse Erik, impondo a sua voz mais calma do que sentia.

Tinha imaginado ou na verdade a ave zombava dele? — Por certo, Erik está convencido de que só é verdade o que alguém pode sustentar

entre as mãos — recordou Vivienne, docemente. — Tem que ser pura coincidência que Medusa viesse a meu punho quando a chamei.

Talvez quisesse provocá-lo por ter pronunciado o nome de Beatrice. Ele preferiu não lhe deixar ver o efetivo de sua mutreta.

— O bom senso manda manter-se céticos sobre essas faculdades não vista nem

provadas.

— O bom senso! —grunhiu Ruari. — É loucura, nada mais! Na verdade, moço, suas

contas deixam fora a metade das forças da Cristandade. E isso vai em seu próprio detrimento. O que me diz dos milagres feitos pelos Santos e suas relíquias? E das maravilhas da mesma Missa? O pão e o vinho tão comuns, convertidos no corpo e o sangue de Cristo! Homem, se não houvesse neste mundo mais do que pode ver com seus próprios olhos, seria muito que ficaria sem explicação! Não acha?

Erik era muito consciente de que o corvo olhava a um e a outro como se escutasse a

conversa. Como se pudesse gravá-la na memória para repeti-la a outro; talvez ao tio da dama, o

laird de Ravensmuir. Mas isso era uma tolice! — Está muito certo, Ruari, de que existem essas forças das quais não tem evidências

— observou. O servidor fez um amplo gesto com a mão. — Que não tenho evidências? E seus próprios olhos? E a sorte que corre neste

momento? Pode acaso negar que é responsabilidade do Mal, uma força certamente invisível?

— Meu irmão dista muito de ser uma força invisível — disse Erik, não sem humor. Para evitar estender-se em detalhes de sua situação, indicou à ave e trocou deliberadamente de tema.

— Este seria, pois, um corvo de Ravensmuir? — É Medusa — esclareceu Vivienne. A ave pareceu arquear a testa branca em

silenciosa confirmação. — E o que diria a meu tio disto, na próxima vez que cruzar as altas janelas de

Ravensmuir? —perguntou à ave. O animal torceu a cabeça, como se analisasse a questão. — O que lhe perguntará do que viu esta noite?

— Bruxaria e loucura! —resmungou Ruari. — Leva o Mal sentado em sua própria sela, moço, e será em seu próprio detrimento. Não permita que envie uma missiva com a

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ave! — É só uma ave, Ruari. Não pode falar com os humanos.

— Tolo! É mais que isso! —O servidor aproximou seu cavalo e tratou de espantar ao

corvo, sem resultado algum. Vivienne se inclinou para sussurrar à ave:

— Tenho que te revelar Medusa, que nosso destino provável é Blackleith.

O corvo inclinou a cabeça como se absorvesse esse pequeno dado. Depois olhou a Erik como se esperasse sua confirmação.

Era acaso tão transparente? Erik não havia dito uma palavra de suas intenções; a facilidade com que ela as adivinhava o fazia sentir exposto. Imediatamente lhe gelou o sangue. Quem mais podia ter adivinhado seus planos? Nicholas ainda acreditava-o morto? Ou acaso alguém tinha revelado a verdade? E suas filhas teriam tido alguma desgraça em sua ausência, devido a sua própria estupidez?

— Não podem saber tanto! —protestou Ruari. — Como é possível que leiam o futuro com tanta facilidade? Digo-lhe, Erik, que esta jovem é na verdade bruxa.

— É lógico, simplesmente — replicou Vivienne, azeda. — Para recuperar a propriedade que alguém perdeu o que pode fazer, senão retornar a ela? De que outra maneira poderia recuperar suas filhas, a não ser voltando para o salão onde elas se encontram?

— Falou-lhe de suas filhas? —acusou Ruari, com óbvia incredulidade. — Que loucura tomou conta de você, moço, para que revele seus segredos a tudo o que se cruze em seu caminho? Quer acaso fracassar? Eu pensava que desejava triunfar! Mas se continua confiando em outros para teu detrimento fracassará outra vez!

Erik lançou então uma maldição cheia de vigor, enquanto impulsionava o punho enluvado para a ave. Medusa, com um grito de indignação, ergueu vôo, suas asas pesadas bateram o ar com energia. Fafhir relinchou, bastante indignado por sua vez. Erik teve apenas um segundo de aviso prévio antes que o animal, espantado, fugisse disparado para a direita, em direção oposta ao bater das asas do corvo.

Ele e Vivienne se viram despejados da sela para a esquerda, tão abrupto foi o movimento do cavalo. Ao cair Erik lançou um grito de aborrecimento, mas o cavalo não diminuiu o passo. Ele pegou à moça entre os braços e recebeu sobre si todo o impacto da queda. Ao aterrissar sobre o quadril ferido fez uma careta de dor, até antes que o pouco peso do Vivienne caísse sobre ele.

Medusa descreveu um círculo sobre o pequeno grupo, lançando um chiado de aviário desgosto, enquanto o ruído dos cascos do Fafhir se perdia na distância. Ruari deixou escapar um grito e correu atrás do cavalo, o que só fez que o assustado corcel se afastasse ainda mais antes de deter-se. Mesmo assim, de pouco serviria chamar o servidor, que dificilmente ouviria sua advertência.

Verdadeiramente, o barulho que estava fazendo arrancaria do leito a todos os monges e a todos os camponeses. Erik apoiou novamente a cabeça no duro chão do ermo e fechou os olhos com um suspiro. Palpitava-lhe o quadril; estava exausto. O que parecia a princípio um plano simples para assegurar a sobrevivência de suas filhas não estava resultando, no momento, nem efetivo nem simples.

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Capítulo Sete — Está ferido? —perguntou Vivienne. Erik sentiu que se inclinava para ele. Sua solicitude foi bem-vinda, fosse autêntica ou

não. Além disso, a pressão de seus seios contra o peito e o comichão de seu cabelo no rosto (somados à reação que ambos os contatos provocavam em seu corpo) convenceram-no de que não estava tão próximo à morte como poderia ter acreditado.

Abriu os olhos para olhá-la, estava desalinhada e pálida. Imediatamente se sentiu preocupado.

— E você? Ela meneou a cabeça, soltando sobre ele aquela nuvem de cabelo. — Claro que não, pois você recebeu todo o impacto da queda. — Mas...? — Mas isto me pegou de surpresa. Montei a cavalo toda minha vida e é a primeira

vez que alguém me joga da sela. — Levantou-se com uma careta para esfregar o joelho. — Não é muito grata esta nova experiência.

Erik compreendeu então até que ponto ela tinha levado uma existência privilegiada e protegida.

Não tinha conhecido o medo nem enfrentara perigo algum. Vivia rodeada de uma família numerosa e enriquecida, que cuidava de que ela não montasse nenhum cavalo que não fosse absolutamente dócil e que nenhum perigo tocasse sua vida. Ele queria com toda sua vontade dar o mesmo a suas filhas. Esse desejo fez que se endireitasse novamente vigorizado.

— Não me respondeu — observou ela, olhando-o com uma careta que podia originar-se na culpa, na solidariedade ou em ambas.

— Não estou pior que antes — assegurou ele, rezando para que fosse verdade. Ficou de pé, sob o olhar nervoso da moça, e provou sutilmente a perna, para ver se agüentava seu peso. — Foi a surpresa, nada mais.

— Não sabia que seu corcel desgostava as aves. — Eu tampouco, certamente.

— Sinto muito. —As faces de Vivienne brilhavam de uma cor muito tentadora. — Nunca tinha visto um cavalo que não estivesse familiarizado com as aves. Agora compreendo que fui muito idiota ao supor que a todos fosse indiferente sua presença.

Erik gostou que ela não temesse reconhecer sua culpa, que se desculpasse com tanta facilidade.

Embora ruborizada pelo embaraço, olhava-o nos olhos sem vacilar. Essa criação protegida tinha dado a ela uma confiança em si mesma que lhe seria muito útil em qualquer circunstância.

— Como teria podido prever o que não conhecia? —perguntou. Não estava disposto a condená-la por um cálculo errado, embora seu engano lhe provocasse clamores no

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quadril. — A morada de sua família não se parece absolutamente ao que era a minha, nem mesmo em seus melhores momentos.

Ela assentiu com a cabeça, tão contrita que ele se sentiu malvado por haver-se zangado com ela, sequer momentaneamente.

— Não me passou pela mente — reconheceu ela, em voz baixa. Depois suspirou. — E minha mãe dizia que eu era inteligente!

Diante disso não havia muito que responder. Vivienne se levantou para recolher o conteúdo de um alforje, que obviamente tinha ficado mal ligada. Era o que continha as provisões; não lhe aconselhou que deixasse o pão e o queijo no pó: bem podiam senti-lo bastante famintos para aproveitá-los mesmo assim. Perguntou-se se essa facilidade da moça para aceitar mudanças radicais de situação se estenderia a comer provisões decoradas com pó. Era de esperar que não tivessem ocasião de averiguá-lo. Aproveitou que ela não olhava para esticar a perna com cautela e fez uma careta com a vigorosa pontada de dor que sentiu.

— Sim que está machucado! —exclamou Vivienne, que tinha lançado um olhar por

cima do ombro no pior momento. — É só um hematoma. Tocou-lhe então com expressão de ceticismo; com um braço na cintura, observou-o

severamente. — Pois apostaria a que é bem grande. — Não achará contra quem apostar — murmurou ele. — Fez mal em tomar sobre você todo o impacto de nossa queda. Justo sobre esse

quadril! Fazia tempo que nenhuma mulher se interessava por Erik ao ponto de repreendê-lo;

ele se descobriu desfrutando do diálogo. — Por certo, não pensava fazê-lo, como tampouco pensava abandonar a montaria

desse modo — disse. Vivienne o recompensou com sua risada. — Não é brincadeira — acrescentou,

olhando-a com ar carrancudo. Ela se limitou a sorrir, sem deixar-se intimidar por sua expressão. — Não se incomode em pôr essa cara carrancuda — disse. — Não me ocultará seus

impulsos nobres, muito menos a galanteria que lhe obrigou a impedir que eu sofresse dano algum como resultado de minha própria estupidez. Nenhuma mulher sensata condena a um homem por seu cavalheirismo, embora possa lhe recordar que a resistência do corpo tem um limite. —Dito isso, continuou com sua tarefa de recolher os objetos espalhados.

Erik piscou. Fazia muito tempo que ninguém o qualificava de cavalheiresco; inclusive que não lhe atribuíam impulsos nobres. Observou-a, inquieto ao ver que ela entrevia quão segredos ele achava escondidos, mas também desconfiando de suas esperas. Felizmente, nesse momento se ouviu um ruído de cascos que se aproximavam, o qual lhe economizou a necessidade de seguir analisando o assunto. Ao virar-se viu que Fafnir vinha ao trote para ele. Seu corcel havia descrito um grande círculo e agora retornava do lado oposto, embora a passo muito mais lento. Deteve-se cinco ou seis passos de distância, olhando a seu amo com visível desconcerto; depois se aproximou um pouco mais, com a cabeça encurvada,

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como se pedisse desculpas. — Parece tão surpreso! —comentou Vivienne. — Como se não tivesse nada que ver com o fato de que já não estejamos na sela —

grunhiu ele. Fafnir farejou Erik, como se estranhasse não vê-lo já escancarado no chão.

Visivelmente tranqüilizado por ter achado a seu cavaleiro errante, mordiscou-lhe o cabelo e o focinhou o pescoço com desavergonhado entusiasmo, como se seu amo acostumasse guardar maçãs na camisa.

A moça, rindo, limpou uma das maçãs que tinha recolhido do chão e se aproximou para oferecê-la ao cavalo.

— Não merece recompensa por nos haver arrojado — observou Erik. Ela não fez caso de sua atitude mal-humorada. — Mas sim por ter retornado a nós. —Enquanto o animal devorava a fruta lhe

esfregou o focinho; depois voltou para seu amo aquele olhar faiscante. Antes que ela pudesse formular alguma pergunta, Erik falou.

— Era só um pássaro — disse ao cavalo, com afetuoso desgosto. Depois, por sua vez, esfregou-lhe o focinho. Enquanto isso flexionou a perna para avaliar os danos da queda.

Sentia o quadril rígido e dolorido; sem dúvida devia estar negro e azul, mas sobreviveria. Moveu o joelho uma ou duas vezes, aliviado ao notar que recuperava um pouco de agilidade.

— Deve pensar que não tenho mais miolos que uma criança — comentou ela. Embora seu companheiro não percebesse, observava-o com os olhos semicerrados.

— Penso que levou uma vida de privilégio — corrigiu ele. Não queria castigá-la, posto que ela mesma se julgasse com tanta dureza. — Também penso que sua mãe dizia a verdade: é uma mulher inteligente, embora isso não signifique saber tudo.

— Sinto muito. Não era minha intenção que ficasse ferido.

— Tampouco a minha. —Imediatamente Erik se sentiu contrito ao notá-la tão abatida.

Estendeu uma mão para lhe tocar a face com a ponta de um dedo, insistindo para olhá-lo aos olhos. — Se reconhecer que é capaz de convocar a presença de um corvo, embora essa faculdade desafie a razão, comprometerá-se a não fazê-lo de novo?

Então Vivienne esboçou um sorriso tão radiante como os primeiros raios da aurora. Ao vê-la, Erik sentiu calor até a ponta dos pés.

— Esse compromisso deveria ser selado com um beijo, não lhe parece? —propôs. E caminhou ao redor do cavalo para beijá-lo na boca. Esse abraço espontâneo era um estranho prazer. Na verdade nenhum homem

sensato podia recusar seu raciocínio. Portanto, Erik lhe devolveu o beijo. Vivienne se maravilhou de que os beijos de Erik se tornassem mais cativantes com a

familiaridade, em vez de perder interesse. Com as mãos apoiadas em seu peito, ficou nas pontas dos pés, sem mais desejo que beijá-lo a fundo. Além disso, um beijo parecia a melhor maneira de pedir desculpas pela tolice cometida. O que tinha começado como uma de tantas brincadeiras gastas a seus irmãos acabava em conseqüências que ela não esperava. Agora se sentia muito tola.

Tinha sido fácil deduzir de sua experiência que todos os cavalos estavam habituados

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às aves; agora caía na conta de que ela só tinha montado animais cuidadosamente adestrados. Em retrospectiva podia compreender e apreciar as muitas mãos que tinham cuidado de que ela e seus irmãos não sofressem dano algum. Nem todas as mulheres podiam dizer o mesmo; muito menos os homens. Vivienne compreendeu certamente que não tinha sido o caso do Erik. Como resultado, ele tinha uma maior capacidade para antecipar-se ao perigo, pois não dava por seguro tantas coisas como ela. Assim, ao provocar ela involuntariamente um perigo para ambos, ele tinha cuidado de que o preço a pagar não fosse maior; não só isso, mas também a perdoava. Uma vez superado a irritação não lhe tinha jogado no rosto seu engano. E Vivienne queria recompensá-lo por essa confiança.

Beijou-o com ardor e sorriu ao sentir sua resposta contra o ventre. Como ele a estreitasse com mais energia, saboreou a paixão daquele abraço, perguntando-se quando poderiam selar esse acordo com algo mais que um simples beijo. Nesse momento Ruari, a pouca distância, suspirou com claro desgosto. Erik murmurou uma maldição ao afastar os lábios dos do Vivienne. Ela dissimulou um sorriso.

O servidor os olhava com indignação, com os braços na cintura. — Estou aqui correndo por toda Escócia atrás de um corcel, um corcel que voltou

para você por sua própria vontade. E vocês, tão interessados na mútua companhia que não se incomodam sequer em me chamar para me fazer saber que o cavalo retornou?

— Sabia Ruari, que não estaria muito longe de Fafnir, posto que tenha tanto talento

para a perseguição — replicou seu amo, que ainda estreitava Vivienne contra o peito. Ela apoiou a testa nele e ocultou sua diversão sob o manto. Ruari emitiu uma mescla

de pigarro e grunhido. Em vez de desmontar se limitou a indicar o céu; depois, novamente ao casal abraçado.

— Planejam continuar a viagem esta noite? Ou tenho que me ausentar outra vez enquanto se esforçam por criar um herdeiro para Blackleith? Em sua voz se percebia claramente o aborrecimento, embora não oferecesse ao Erik oportunidade de protestar.

— Eu pensava que queria se apressar em chegar ao destino — grunhiu-, pois ninguém sabe o que pode estar ocorrendo sob a mão de Nicholas. Mas talvez interpretasse mal esse teu entusiasmo por fazer justiça.

— Seu conselho é extremamente sábio, Ruari, e na verdade penso continuar viagem

para o norte tão depressa como posso — assegurou o jovem, mansamente. O servidor franziu os lábios; parecia disposto a continuar discutindo, mas Erik,

decidido a partir de imediato, rodeou com as mãos a cintura da moça para içá-la até a sela de Fafnir. Ela notou que apoiava a perna sã ao montar e que seus movimentos eram rígidos. Talvez estivesse mais ferido do que deixava ver. Não obstante, ele insistiu como cavalo a retomar seu passo anterior, como se não tivesse nenhuma dificuldade.

Sua atitude era tão impassível que Vivienne adivinhou o contrário: já sabia que ele se mostrava tão mais imperturbável quanto menos favoráveis lhe eram as circunstâncias. Ela temia que o rodeio lhe danificasse ainda mais o quadril, mas não se atrevia a dizê-lo em presença de Ruari. Sentia o esforço que ele estava fazendo, as periódicas exclamações de dor que sufocava, e mordia os lábios, consternada: não só era responsável por sua lesão, mas também não podia fazer nada para que não piorasse.

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— Já era hora — grunhia Ruari, enquanto seu cavalo trotava junto ao Fafnir com elegante soltura. — Já é meia— noite e ainda temos Ravensmuir no horizonte. Teremos sorte se pudermos pôr suficiente distancia entre nós e a família da dama, antes que essa condenada ave desperte as suspeitas.

— Não há nada que temer, Ruari. Em realidade não sei falar com os corvos. Só queria lhes fazer uma brincadeira —se sentiu obrigada a reconhecer Vivienne.

Erik emitiu um ruído que podia ser de diversão, mas ela não se virou para ver a expressão de seu rosto.

— Uma brincadeira! —exclamou o criado. — O que tem que divertido em atar de terror as entranhas de um pobre velho? Achava-a encantadora, moça, mas seu coração parece bem lúgubre. —Agitou um dedo diante dela. — Se disser que não há vento mais frio que o coração de uma formosa donzela. Acaso quer demonstrar que é assim?

— Cometi um engano! —protestou Vivienne. — Não era minha intenção que nenhum de vocês sofresse dano. Você e eu estamos de acordo sobre o tema das coisas invisíveis: só queria desafiar as convicções de Erik.

— Não aconteceu nada de mau, Ruari — disse Erik, com firmeza. — Nada de mau! —protestou o servidor. — Acha-me cego? Já vi como montava.

Pode dissimular diante da dama, mas eu sei a verdade. Faria bem em se afastar desta má terra e retornar ao norte, onde amigos e inimigos nos são conhecidos e estão desprovidos de poderes malignos.

— Ouça, deixemos as coisas assim e continuemos viagem — ordenou Erik. — Continuar viagem, sim, é claro que sim. Eu digo que devemos ir diretamente para

Queensferry, já que tem tão alta opinião de meu conselho, e que não deveríamos parar até estar a bordo, com as velas desdobradas para nos afastar destas terras. Não nos deitemos a dormir antes de ter posto todo o fiorde de Forth entre nós e Ravensmuir: esse é meu conselho. Já descansaremos o corpo cansado quando estivermos em território mais conhecido e menos transitado; assim não teremos que despertar a cada ruído. Conformaria-me com o Fife, mas Aberdeenshire seria melhor.

— Queensferry está muito longe — aduziu Erik seu tom revelava que estava forçando a paciência. — Será muito esforço para os cavalos.

— São dois dias de viagem — concordou Vivienne, para acrescentar mais peso à

opinião de seu amante. — Mesmo que cavalgássemos sem nos deter, não chegaríamos até segunda-feira pela manhã.

Ruari meneou a cabeça, sem deixar-se persuadir.

— Os cavalos estão bastante frescos, se me permite dizê-lo, e são animais fortes, bem

capazes de cobrir uma distância longa quando as circunstâncias o requerem. E se alguma circunstância poderia requerê-lo, filho, é a desta noite. Sinto um calafrio na medula dos ossos, o mau presságio mais confiável que se possa ter. Senti-o aquela noite em que lhe encomendaram ajudar ao Thomas Gunn; voltei a senti-lo na noite em que seu pai exalou o último fôlego. Alguém deve escutar as advertências de seus ossos.

— Mas meus não anunciam nada — objetou Erik. Ruari meneou a cabeça. — Não é prudente ficar deste lado do fiorde por mais tempo do indispensável. Disso

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pode estar certo, filho. — Não cavalgaremos à luz do dia — disse o cavalheiro. Vivienne sentiu que mudava de posição na cadeira. Seu quadril não sairia nada

beneficiado se passasse tanto tempo a cavalo. — Amanhã haverá muita atividade na estrada ao Edimburgo, pelo mercado — disse,

embora não tivesse certeza de que fosse assim. — Entre tal multidão não poderemos avançar depressa.

— Maior razão para dar descanso aos cavalos — concluiu Erik. — Nenhum deles está habituado às estradas muito transitadas.

— É uma loucura, moço! —Ruari abriu os braços. — Como posso fazê-lo entender isso?

— Não pode — replicou o jovem com decisão, para grande desgosto do ancião. Logo se inclinou para Vivienne, para não dar a Ruari oportunidade de continuar queixando. Não quer relatar uma lenda? A nosso companheiro agradam segundo lembro, e a narração fará que o tempo passe mais depressa.

— É claro. —A moça notou que o servidor assumia um silêncio mal-humorado; sabia que seu conselho não seria escutado e isso não gostava nem pingo. Vivienne, que só desejava acabar com o desacordo, limpou a garganta e começou a cantar.

Thomas o Veraz, estendido na ribeira, Viu aparecer a uma fada; Forte e audaz esta senhora, Para a Árvore da Vida cavalgava. Sua saia era de seda verde erva, De ouro fino seus arreios E seu corcel levava entre as crinas Sessenta campainhas argentinas. — Ah, é um conto de fadas, pois? —perguntou Ruari, com a expressão iluminada

pelo interesse. — Eu gosto das lendas de mulheres belas, é claro que sim. —E dirigiu a Vivienne um olhar revelador. — Mas sem dúvida tem que ter o coração de gelo.

Thomas o Veraz tirou o chapéu E lhe fez uma profunda reverência. "Salve Maria, rainha dos Céus! Nunca se viu como você na terra". "OH, não, Thomas, OH não — disse ela- Que meu nome não é esse. Sou a rainha do mundo das fadas E vim caçar com meus galgos". Thomas lhe falou então com audácia, Por sua grande formosura incentivado:

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"Meu coração, senhora, é seu. Deve descansar aqui, a meu lado". — Uma fada que dormiu com um mortal! —gargalhou Ruari, piscando o olho. — É

uma fonte de surpresas, menina, sem dúvida. Como Vivienne não sabia o que responder a isso, continuou cantando.

"Thomas, não sabe o que pede. Não te deixe levar pelo que anseias. Pois se com você me estendesse Bem pouco minha beleza duraria". "Se compadeça de mim, bela senhora, Que bem lhes servirei. Venha para mim, jaz comigo E passarei a vida a seus pés". — A tenacidade —murmurou Ruari— é a chave do êxito em qualquer empresa. Este

Thomas se nega a aceitar que ela rechace suas cantadas. Prevejo que sua insistência será recompensada.

— Que não lhe ocorra insistir com sua idéia de continuar viagem até Queensferry — advertiu Erik está resolvido e sua tenacidade não faria mais que me irritar.

— É jogar margaridas aos porcos — declarou o servidor, sem dirigir-se a ninguém em especial. Logo golpeou o peito com um punho. — Extraio um bom conselho de toda minha experiência acumulada, indico o caminho correto por pura bondade de coração e o faço só para que aqueles de quem dependo não se equivoquem por ignorância.

Fez o gesto de quem oferece riquezas aos pobres. — E mesmo assim, meu sábio conselho, cultivado em décadas de experiência entre

homens bons e maus — estendeu amplamente as mãos— é descartado como esterco de galinhas. —Lançou um suspiro de resignação, com os olhos voltados para cima, como se pedisse forças para suportar suas cargas terrestres. — Não me reprovem o que acontecer, milord William — clamou, dirigindo-se ao fantasma do pai de Erik. — Os mortais só podem nos esforçar por fazer que outros raciocinem.

— Bem poderia faltar à palavra que deu a meu pai e me abandonar às conseqüências de minha loucura — insinuou o jovem. Por atrever-se a provocar assim a seu companheiro recebeu um olhar triste.

— Jamais! —declarou Ruari. — Pois então embarcaremos na terça-feira. O outro rilhou os dentes. Vivienne continuou cantando. "Thomas, Thomas, não diga loucuras. Haverá um preço a pagar por este dia. Sua lascívia nos leva a mau destino,

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Mas já vejo que não aceita negativas". Desmontou a senhora. E segundo conta a lenda, Que algum crédito merece, Sob a mágica Árvore da Vida, Ela e Thomas gozaram sete vezes.

— Sete vezes! —Ruari riu entre dentes. Era claro que o relato o distraía do desencanto

que Erik tinha provocado —. Essa sim que era uma moça luxuriosa! Por certo, diz-se que as fadas têm apetites desmedidos. E Thomas! —lançou um assobio surdo. — Sete vezes, sete! Sem dúvida era homem de tenacidade e fortaleza nada comuns.

Vivienne se sentiu ruborizar. Tinha esquecido o caráter terrestre desses primeiros versos ou, talvez, até então não os tinha compreendido de todo. Era muito que tinha aprendido nessas duas noites últimas, para falar a verdade. Pior ainda, tinha curiosidade por saber se ela e Erik poderiam copular sete vezes em rápida sucessão. Ao perceber contra as nádegas certa pressão indicativa de que os pensamentos de seu companheiro seguiam um curso similar, seu coração se deteve por um instante, cheio de espera.

Depois recordou os versos seguintes; não estava segura de poder cantá-los diante desse público.

— Não há mais? —estranhou Erik. — Esse relato parece muito breve. E não há muita evidência de que Thomas visitasse na verdade o reino das fadas, tal como anunciou.

— Só estava tratando de recordar os versos — mentiu ela. Depois voltou a elevar a voz, tratando de preparar-se para a reação de Ruari, a quem essa estrofe, sem dúvida, faria rir alegremente.

Disse ela: "Já vejo, Thomas, Como lhe agrada este jogo. Que mulher poderia saciá-lo? Deixe-me já, rogo-lhe". Ruari bradou de risada. Riu até que lhe correram as lágrimas. Mas Vivienne

continuava cantando, sem lhe dar tempo para comentários grosseiros. Thomas olhou muito alegre, Para aquela dama feliz. Mas sua pele não tinha brilho, Seu cabelo era agora cinza. Gritou ele: "Ai de mim, ai! Que lamentável surpresa! Seu rosto, antes viçoso, Perdeu a beleza".

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Ergueu-se a dama, azedo o semblante. "Não lhe havia eu predito isso? Com minha formosura pago o preço De sua lascívia e seu capricho". — Verdade que costuma ser assim? —murmurou Ruari, meneando a cabeça diante

do triste assunto. — A donzela mais formosa já não o parece tanto depois da conquista: disso podem estar certos. Depois de possuir a donzela que nos cegava de luxúria, à manhã seguinte costumamos descobrir todos seus enguiços. Vivienne caiu no silêncio, impressionada pelas similitudes entre a lenda e sua própria história. Ela tinha acreditado que Erik vinha do reino das fadas; ele a tinha atraído ao leito, só para mostrar-se frio à manhã seguinte. Acaso se tinha desiludido ao vê-la? Reparava acaso em seus defeitos, agora que a brincadeira tinha acabado tão mal? Ela tinha razão ao lamentar-se de não ser tão composta como Madeline? Indubitavelmente havia uma coincidência entre o fato de que ela aceitasse acompanhá-lo por um ano e um dia e o acordo entre a Elizabeth e a rainha das fadas. Com algum desassossego, Vivienne continuou cantando.

Disse ela: "Terá que me acompanhar, Thomas Veraz; virá comigo. Tem que me servir sete anos, Para sua sorte ou seu castigo". Depois montou seu corcel branco E ele na garupa. O animal, a cada toque das bridas voava como o vendaval. Em uma noite muito escura Vadearam um rio de sangue, pois aos rios das fadas vai toda a que se derrame. Levou-o ela a uma bela horta que transbordava em doce fruta: peras, maçãs, tenros figos, tâmaras, rosas, gordas uvas. "Desmonta Meu Thomas. Apóia em meu joelho sua cabeça, e assim verá o mais precioso que homem algum jamais visse". Ruari soltou uma gargalhada. — Na verdade é um belo panorama o que se desfruta com a cabeça apoiada no

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joelho de uma mulher! Vivienne afogou uma exclamação, pois nunca tinha interpretado o relato dessa

maneira. A mão de Erik se curvou em torno de sua cintura para tranqüilizá-la. — Está contente — sussurrou ao seu ouvido. — É tudo o que eu esperava de sua

lenda. Não tome a peito seus comentários. Sem dúvida já notou que fala em excesso, pois tagarelar o faz feliz.

Vivienne se virou para lhe dedicar um sorriso e encontrou alento em seu olhar firme. Ele também sorria um pouco; com essa expressão parecia menos formidável.

— Deveria sorrir mais freqüentemente — disse ela. E se voltou para notar que a surpresa lhe devolvia à seriedade. Cantou com entusiasmo a fala da rainha das fadas, pois era a parte que mais lhe agradava.

"OH, vê aquele caminho estreito, cheio de espinheiros e de sarças? É o caminho que vai ao Bem, embora por ele muito poucos partem. E vê aquela estrada tão ampla que rodeia a colina? É o caminho que vai ao Mal, Mas há quem acredita que vai ao Céu". — Dá bons conselhos, essa rainha das fadas — declarou Ruari. — Pelo caminho do

bem não há perigo de achar multidões, sem dúvida alguma. "E vê aquele belo caminho que serpenteia entre as samambaias? Leva a corte das fadas. Ali você e eu esta noite iremos. Mais se cuide de revelar o que ali ouça e ali veja, Se uma palavra lhe escapa não voltará a ver sua terra. Se alguém te fizesse uma pergunta, me deixe a mim. Você só cala. Direi que a modo de pedágio retirei-te o dom da fala". Quando chegaram ao lugar Thomas olhou a sua companheira e comprovou que uma vez

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mais luzia em toda sua beleza. — Como é possível isso? —interpelou Ruari. — Foi o retorno a sua própria morada o

que lhe devolveu a formosura?

— O mesmo perguntei eu — explicou Vivienne. — Disse-me que há outra versão da

história. Segundo esse outro relato, a rainha era casada e seu marido lhe tinha posto um feitiço, por obra do qual toda infidelidade lhe custaria a beleza.

— Ah, desse modo ele podia saber a verdade com um simples olhar. —O servidor fez um gesto de aprovação. — Seria um feitiço muito útil para os mortais casados com mulheres formosas — acrescentou, sem mais explicações. Mas deu uma olhada a Erik, quem não disse nada.

Vivienne não compreendeu aquela insinuação. Se se referia a algum matrimônio anterior, pedir detalhes era uma falta de decoro. Por fim se limitou a continuar cantando:

Tocou sua corneta, ergueu as bridas e para o castelo cavalgaram. No salão a fada entrou, com Thomas mudo a seu lado. Ali soavam os violinos, harpas, salterios e timbales. Já os compassos do alaúde doces cantavam os histriões. — Isso me faz pensar em bodas — suspirou Ruari. — A tua, filho, foi na verdade uma

alegre celebração. Os histriões eram tão bons que dancei até furar as solas de meus sapatos. Uma vez mais Erik não disse nada, embora Vivienne sentisse que se erguia atrás dela.

E como não, se ainda chorava por sua esposa? Isso era claro para quem quer que preste atenção a sua atitude cada vez que a mencionava. Sem dúvida ele também recordava aquele feliz acontecimento e a tristeza posterior de perder a sua amada consorte. Além disso, era uma grande falta de tato que Ruari se referisse com tanta soltura a essas bodas.

Ao fim e ao cabo devia saber que ele sofria intensamente por aquela perda. Não era piedoso lhe recordar esses tempos ditosos. Mas era evidente que o servidor dizia sempre tudo o que vinha aos lábios. Embora não tivesse má intenção, distava de ser uma pessoa discreta. Para não lhe dar tempo a dizer mais, Vivienne continuou cantando.

Um dia a dama disse assim: "Thomas impõe-se a partida. Montemos já. Deixarei-o debaixo da Árvore da Vida". Respondeu Thomas, surpreso, "Por que, senhora, tanta pressa,

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se mal gozei aqui de sete noites com seus dias?". "Escuta homem, que na verdade já sete anos passaram! Tem que partir e retornar ao lugar que abandonou". Já sob a Árvore da Vida, por não lhe deixar que partisse, Thomas rogava ainda: "me dêem um objeto, bela dama". "Língua ou alaúde, Thomas: escolhe". — Língua ou alaúde? Que opções são essas? —inquiriu Ruari. — Como é que não sabe? —estranhou Erik, em tom inesperadamente zombador. —

Aficionado como é às lendas! — Pois não, não entendo! Um instrumento ou que coisa? Vivienne ria. — Pode escolher entre o dom de tocar música ou o de falar. Destacará naquilo que

escolha. — Ah, dedos mágicos ou um pico de ouro! Sim, é verdade que as fadas costumam

outorgar o dom de fazer música, embora nunca tivesse ouvido dizer que também oferecessem o de narrar contos. —O servidor fez um gesto de assentimento. — Parece-me que seus cativos revistam gozar já dessa faculdade em abundância, se acaso compreenderem o que quero dizer.

— Pois sim que compreendo — disse Erik. — É possível que as fadas tenham capturado a você também. Por isso agora acredita nas coisas invisíveis.

Ruari caiu na risada ante a idéia. Vivienne compreendeu então que nenhum dos dois dava nenhum crédito a seu relato. Mas continuou cantando com muita firmeza, segura de que as profecias do Thomas os fariam mudar de idéia.

"Língua ou alaúde, Thomas: escolhe. Será aquilo que desejar". E disse Thomas: "Seja a língua, que o instrumento é de histriões". "Pois a partir de hoje, quando falar jamais dirá uma mentira. Por onde vá, a verdade será o único que diga".

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"Olhem senhora, o que fazem! Que triste dom o seu! Já não poderei comprar, vender, nem com os naipes fazer jogo. Não me será possível falar a iguais nem a senhores. As belas damas não quererão me ceder já favores". Ruari riu de boa vontade com os protestos de Thomas. Vivienne continuava

cantando: Disse ela: "Fica em paz! Pois como hei dito tem que ser. Adeus, Thomas. Já comigo não pode permanecer". "Bela minha, espere um momento e me conte, se lhes prazer, um bom conto". — Ah, ali virão às profecias — adivinhou Erik, quando Vivienne fez uma pausa para

recuperar o fôlego. — Assim é, com efeito —confirmou —. Fez-lhe muitas referências ao destino de

Escócia e todas resultaram certas. Ia elevar novamente a voz, quando Erik a interrompeu lhe apoiando a ponta de um dedo no ombro.

— É um bom ponto para interromper o relato até a manhã — disse. E indicou o céu de levante.

Vivienne notou com surpresa que estava clareando. A pouco de começar a canção tinham passado frente a Haddington; agora se erguia na frente deles o escuro perfil de Edimburgo. Concentrada como estava na lenda, não tinha reparado na distância que lhes escapava.

— Ali, ao sul da estrada, há uma ravina bem oculta aos olhares curiosos —disse Erik. A ela voltou a lhe chamar a atenção que conhecesse tão bem a zona. — Preferiria que nos detivéssemos aqui e que continuasse esta noite com seu relato.

A perspectiva pareceu desgostar a Ruari. — Ao menos aceita meu conselho de não permanecer todos juntos. Assim seria

muito fácil nos agarrar despreparados e até nos encurralar. — Ninguém nos perseguirá, Ruari — assegurou o jovem, com firmeza. — Ao fim e ao

cabo o irmão desta dama e eu temos um trato. Seu companheiro lançou um grunhido desdenhoso. — Isso explica, certamente, que esse homem tenha posto preço a sua cabeça no

mercado de Kinfairlie. Não me convencem os méritos desse acordo, filho, e tampouco estou seguro de que a senhora não tenha posto a sua família atrás de nós. Mas obedecerei a suas ordens, posto que seja um criado abnegado. Ao menos poderia me deixar conduzir a

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marcha, para que não nos descubram com facilidade. Erik inclinou a cabeça em sinal de acordo. Ruari os conduziu então por um atalho

tortuoso, muito ao norte do bosque que Erik tinha encontrado. Fez que os cavalos cruzassem um arroio e saíssem várias vezes a uma e outra margem; depois seguiu por um bom trecho o curso da água antes de permitir que os animais subissem novamente a ribanceira. Vivienne compreendeu que tinha escolhido deliberadamente esse bordo rochoso. Mesmo assim o viu escovar o chão atrás deles com um molho de samambaias, embora não se visse rastro algum de seu passo. Por fim descreveram um círculo para retornar ao bosque; Ruari indicou três montões de feno que pareciam recém colhidos.

— Eu montarei guarda dali. —Sem sequer um olhar para trás, desmontou para afastar-se com seu cavalo.

— Está zangado com você, apesar de meu relato. — Preocupa-se muito — explicou o jovem, mansamente. Logo desmontou por sua

vez. — Mas não me cabem dúvidas de sua lealdade. Fez gesto de descer Vivienne, mas lhe afastou as mãos de sua cintura e deslizou da

sela ao chão. — Está mais dolorido do que admite — o repreendeu em voz baixa. Ali a erva crescia verde e densa; ouviu um barulho de água onde nascia o regato. As

árvores se juntavam em cachos em torno da água borbulhante. Ela supôs que nesse refugio penumbroso estariam bem ocultos.

Enquanto Erik conduzia os cavalos para as sombras, ela fez uma careta de pena ao reparar novamente em sua claudicação. Devia cuidar que ele passasse esse dia descansando de verdade, em vez de passear de um lado a outro, como tendia a fazer. De repente lhe ocorreu uma boa idéia para obtê-lo.

Correu atrás dele e lhe pegou uma manga com a ponta dos dedos. — Parece-lhe que pode ser verdade isso que disse Ruari? — A que detalhe de tudo o que falou Ruari se refere? Fala muito. —Enquanto falava

Erik retirou os alforjes; logo tirou a sela de Fafnir e a depositou em terra. Assim que jogou as rédeas ao pescoço, o animal começou a mordiscar aquela densa erva. Vivienne trouxe a escova que Erik usava com o cavalo e o entregou, aproveitando a ocasião para lhe fazer uma carícia.

— Que não é habitual isso de que um mortal copule sete vezes em rápida sucessão, é claro – respondeu embora ruborizada. — Ocorre-me que poderia ser um bom plano para gerar um filho quanto antes.

Notou com prazer uma faísca nos olhos azuis e um sorriso fugaz nos lábios de seu amante.

— Você pensa que sim, não é? Vivienne assentiu, com as faces cada vez mais ardentes. — Pois então só posso oferecer meu perseverante esforço. Ao fim e ao cabo,

nenhum homem que se aprecie deixa de saciar a curiosidade de uma dama. — Não é minha curiosidade o que deveria saciar — comentou ela, com ar maroto. Sua recompensa foi aquele sorriso enorme, embora breve. Depois Erik lhe cruzou os

lábios com um dedo.

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— Nunca o diria, embora bem possa ser verdade. Ela não teve tempo de responder, pois ele substituiu imediatamente o calor de seus

dedos com o de seu beijo. E, na verdade, a jovem não achou motivos para queixa.

Capítulo Oito

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Despertaram com os latidos de um cão. Não era, simplesmente, o cão de algum vizinho, pois eram muitos os que ladravam ao uníssono e com certo nervosismo. Eram galgos empregados em alguma caçada, disse-se Vivienne, ao perceber um trovejar de cascos de cavalos junto com o bulício dos cães. Quem estaria caçando tão perto de Edimburgo? Depois de dar uma olhada ao céu, que se ia obscurecendo, voltou a aninhar no abraço de Erik, pois não tinha nenhum desejo de mover-se. Para surpresa dela, seu companheiro se afastou com gestos bruscos.

— Se levante — ordenou. Vivienne ia protestar, mas ele a olhou com uma cintilação azul nos olhos. — Imediatamente!

Temerosa do que Erik previa, fosse o que fosse ela procurou suas botas. Mal tinha podido calçar uma quando os arbustos em redor, começou a ranger com vigor. Os galgos ladravam mais perto; no alto gritavam aves de falcoaria. Ela levantou a vista, atemorizada. Estavam rodeados por cães que mostravam os dentes e cavalos que davam pulos. Havia ali dez ou doze cavalheiros com as espadas nuas dirigidas para eles, com as viseiras fechadas.

Ela e Erik eram as presas que perseguiam. Aquelas armaduras, aquelas espadas reluzentes, revelavam que vinham preparados para o combate. O coração de Vivienne palpitava com tanta força que parecia a ponto de saltar do peito. Erik lhe pôs diante. Enquanto desembainhava a espada utilizou a outra mão para lhe deslizar algo frio no cinturão. Era a adaga de seu pai. Vivienne o reconheceu ao tocar a fresca gema do punho. Mas por quê?

Apesar de sua confusão, amarrou o manto para que a arma não ficasse à vista. Logo

se atreveu a calçar a outra bota. Talvez Erik esperasse que ela combatesse a seu lado? Conhecia acaso a esses homens? O que teria feito durante sua última passagem por ali?

— Deixem em paz à dama e não resistirei à captura — disse ele, com voz ressonante de autoridade. — Não há motivos para que lhe façam mal.

E se ergueu com orgulho diante da partida, o aço em alto, embora o superassem ampliamente em número. Vivienne ansiava ajudá-lo, mas compreendeu que devia manter a adaga oculta até que o fosse possível surpreender a seu atacante.

Os cavalos daqueles homens, que obviamente tinham vindo a todo galope, exalavam nuvens de vapor entre as sombras do entardecer. Uma espada resplandeceu ao aproximar-se seu portador, sem desmontar. Vivienne, aterrada, seguiu com a vista aquele aço reluzente até o homem que a brandía. Ele jogou a viseira para trás; apesar da dureza de sua expressão, suas feições eram familiares.

— Alexander! —O alívio foi tal que lhe afrouxaram os joelhos. O que Erik temia, fosse o que fosse, não tinha acontecido. Entretanto, seu irmão não deu amostras de compartilhar seu prazer nem respondeu a suas palavras. Erik tampouco relaxava sua pose. O ar quase crepitava entre ambos.

Foi então quando ela recordou que seu irmão tinha posto preço à cabeça de Erik. — Indubitavelmente já lhe fez mal! —replicou Alexander a Erik, com óbvia ira. —

Faltou à palavra que me deu, Nicholas Sinclair, e tenho que vingar a minha irmã. Vivienne

piscou, confundida, antes de recordar que Erik se fez passar por seu irmão Nicholas.

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Obviamente havia muitos mal-entendidos que resolver! Deu um passo adiante, com um dedo em alto, decidida a explicar a verdade a todos os envolvidos, sem dúvida era a melhor maneira de aliviar a tensão. Erik a empurrou para trás com tal vigor que ela quase tropeçou com sua prega.

— E para tomar sua irmã terão que me derrubar, a menos que me jurem que não sofrerá dano algum.

— Afaste sua espada — ordenou Alexander, carrancudo. — Conosco a dama estará a salvo. E não pode combater contra todos. Se entregue pacificamente e economizará os danos.

— Não há necessidade de ser tão hostis. Já verão que todo se arrumou — interveio Vivienne, alegremente. Mas os homens a ignoraram. — Posso explicar tudo, se dignarem-se embainhar de novo essas espadas. Em vez de fazê-lo, seu irmão desmontou para afastar a espada de Erik com a ponta de seu aço.

— É minha irmã — disse em voz baixa, antes que seu adversário pudesse protestar. — Minha intenção é defender sua honra. Por fim, pode estar bem certo de que correrá menos perigos comigo que com você. —Depois ofereceu uma mão a jovem, sem afastar o olhar do silencioso Erik. — Está ferida, Vivienne?

— Não, claro que não. Se alguma mudança houve na expressão de Alexander foi azedar-se ainda mais. Seus

dedos rodearam com força os dela. — E trocaram votos nupciais em uma capela, tal como Nicholas e eu combinamos? Vivienne olhou a aqueles dois homens, que continuavam observando-se, com os

rostos pétreos. — Não — admitiu-, mas nos demos palavra de concubinato.

— Os Lammergeier não aceitam concubinato! —rugiu Alexander, com um relâmpago

de fúria nos olhos. — Casamos-nos em uma capela, com a bênção de um sacerdote, para que nossos filhos sejam legítimos aos olhos de Deus e dos homens. —Agitou a espada em direção a Erik. — Acordamos que se casaria com minha irmã!

— É verdade — aceitou ele, suavemente. — Mas a senhora e eu escolhemos outro curso de ação.

O jovem laird se ergueu, embora fosse mais baixo que seu adversário, e replicou entre dentes:

— Concedi-lhe a oportunidade que me pediu. Outorguei-lhe a honra de minha confiança. E em troca nos traiu, a minha irmã e a mim, manchando minha hospitalidade e meu sobrenome, desonrando a minha irmã.

— Fiz o que achava correto — replicou Erik. — Isto não é correto. Deve uma compensação a Kinfairlie. Isso é o correto. Era claro que esses dois não poderiam resolver o assunto por si só. Vivienne se

interpôs entre ambos e ergueu as mãos. — Alexander, não consegue compreender. Já verá que quando lhe explicar tudo... — Compreendo tudo o que preciso compreender! —bradou seu irmão, enquanto a

puxava para aproximá-la dele. — Mas Alexander! —Vivienne continuava decidida a intervir. — Se cometer

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injustiças… Seu irmão lhe cravou um olhar frio. — Neste caso a injustiça se cometeu contra você. Ainda estava furioso; o fato de que o estivesse por ela não tranqüilizou a moça. Ele

inspirou fundo, trêmulo, enquanto a observava. — Não faço mais que pensar em seu futuro, Vivienne — disse mais sereno. Ela

assentiu, pois sabia que era verdade. O jovem baixou a voz. Esta é uma injustiça que não pode ficar sem castigo; não quero apoiar a caída de nosso país para um caos sem lei. —Sustentava-lhe o olhar. — A menos que, contra todas as probabilidades, continue sendo virgem.

Vivienne ruborizou até o carmesim e não achou uma só palavra em sua língua. Todos os presentes pareciam conter o fôlego, muito interessados em sua resposta. Apesar do tom baixo de Alexander, era claro que suas palavras tinham chegado a todos. Dez ou doze homens, conhecidos e desconhecidos, observavam-na sem dissimular sua fascinação. Ela virou para enfrentar-se com os vividos olhos de Erik. Ele, sem dizer nada, olhava-a sem piscar, sem julgá-la. O que desejava que respondesse? Ao sentir a adaga de seu pai apertado contra as costelas, Vivienne compreendeu que ele não confiava em seus parentes. E era razoável. A verdade condenaria a Erik aos olhos de seu irmão, quem provavelmente cobraria vingança sem esperar a que se esfriasse sua cólera.

— O que lhe fará? —perguntou, sem afastar os olhos do Erik. — Não quero poluir com os detalhes seus ouvidos de mulher — respondeu

Alexander, implacável. — Mas o homem que desonre a uma de minhas irmãs não poderá já deflorar a outra mulher.

Ela sentiu que perdia a cor, pois sabia que era capaz de cumprir com sua ameaça. Ganhou com justiça a reputação de juiz eficiente e firme defensor das leis; sem dúvida não vacilaria em aplicar as regras ao pé da letra.

E Erik tinha faltado à palavra dada. Mas a menos que ela já tivesse concebido coisa que parecia improvável, depois do

castigo de Alexander, Erik não poderia gerar o herdeiro necessário para recuperar as suas filhas e a propriedade de Blackleith. De maneira que o destino de seu amante estava em suas mãos. E ele se limitava a lhe sustentar o olhar, sem exigir nada, sem esperar nada deles. Ao fim e ao cabo, era o que tinha aprendido a esperar de quem o rodeava. A Vivienne oprimiu o coração ao pensar que ela, apesar de seu grande desejo de ajudá-lo, podia ser a que lhe condenasse ao fracasso, só por dizer a verdade.

Podia mentir. Não estava em seu temperamento dizer mentiras e sem dúvida o faria mal, mas não podia trair ao seu amante.

— Ainda sou virgem — declarou com vigor, erguida a cabeça, embora lhe ardiam as faces-, pois nestes últimos dias estive impura.

Outro homem jogou atrás a viseira. Ela reconheceu a seu tio Tynan.

— Se expresse com clareza, Vivienne, pois é muito o que há em jogo. Quer dizer que

começou sua regra? Vivienne assentiu. Pelo bem de Erik estava disposta a suportar o constrangimento de

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confessar semelhante coisa acima de todo um grupo de homens. — Jura? —exigiu Alexander. Ela engoliu em seco: — Juro que ainda sou donzela. Imediatamente os homens começaram a falar em sussurros. Erik entreabriu os olhos.

Vivienne afastou o rosto por não ver neles a censura: provavelmente lhe desgostavam os enganos.

Mas devia compreender que, em tais circunstâncias, uma pequena mentira seria menos cara que a verdade. Alexander não se deixou convencer tão facilmente como ela esperava. Sua dúvida era mais que evidente. Escrutinava-a com claro ceticismo; ela compreendeu que gostaria de pedir a suas irmãs que verificassem as datas de seu período menstrual. No temor de que ele exigisse ver o sangue imediatamente, apressou-se a acrescentar, sem lhe dar tempo a fazê-lo:

— É preciso ser um bárbaro para deitar-se com uma mulher nesse estado. Erik apertou os lábios até reduzi-los a uma linha fina e afastou o rosto. Vivienne rogou que estivesse exagerando seu desgosto.

— E você o que diz? —interrogou-o Alexander. — Gozou com ela? A julgar pelo prolongado do silêncio, Erik parecia haver-se convertido em pedra. Por

fim disse, com voz tensa: — Respaldo o dito pela senhora, certamente. Mesmo assim não desviou sequer um olhar para Vivienne. Talvez tivesse acreditado

na mentira e estava decepcionado por não ter gerado ainda esse filho. Ela ansiava lhe confessar a verdade, assegurar que não abandonaria a gestão, que não estava menstruando, que se considerava mais obrigada por sua promessa de o ajudar que pelo juramento feito a seu próprio irmão. Tinha a terrível sensação de que ele não acreditaria.

— Todo mundo sabe que nesses períodos a mulher só pode conceber monstros — reconheceu o jovem laird.

Sinclair lhe jogou um olhar desdenhoso. — E nem mesmo os bárbaros como eu queremos filhos disformes. Alexander estalou os dedos em um gesto decidido. — Agarrem, pois! —E pegou Vivienne por um cotovelo para conduzi-la para seu

corcel. — Partiremos imediatamente para Kinfairlie. — Mas homem! —Ela se debateu contra seus dedos; mas só conseguiu liberar-se

quando já estava presa entre o cavalo de seu irmão e o potro negro de Tynan. Seu tio a estudava com o olhar ávido de seus corvos. Ela reprimiu o impulso de

retorcer-se.

— Se este homem não tiver feito mal a Vivienne, não há motivos para insistir sobre o assunto — indicou com cautela.

— Faltou à palavra que me deu e deve pagar as conseqüências — insistiu seu sobrinho.

— A menos que ela prefira casar-se agora com ele — insinuou Tynan. — Como certo, assim impediríamos qualquer fofoca maliciosa que pudesse manchar sua reputação.

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Alexander lançou um suspiro. Depois voltou sua atenção para a moça.

— Se assim o quiser você, não oporei a essa aliança — disse. E o coração da jovem deu um salto.

Embora compreenda que aconselho o contrário. Merece algo melhor que se unir a um homem capaz de mentir com tanta facilidade, algo melhor que Nicholas Sinclair. Uma vez mais, todos os presentes fixaram sua atenção nela.

Era sua oportunidade de casar-se honradamente com Erik! Mas Vivienne não queria um matrimônio desprovido de amor. E lhe bastou lhe dar uma olhada para saber que ele continuava apaixonado por Beatrice, sua falecida esposa. Olhava-a com frieza; quase com certeza, duvidava de que ela fosse capaz de lhe dar um herdeiro. Era claro que ela não conseguia afrouxar o cabo que essa mulher tinha sobre seu coração, embora coubesse admitir que tampouco tinha tido muito tempo para fazê-lo. Talvez devesse alegrar-se de que ele tivesse conhecido um amor tão potente, dos que perduram para sempre, como todas as grandes lendas, mas reconheceu com vergonha que isso a decepcionava.

Afastou a rosto, lutando contra as lágrimas que lhe ardiam nos olhos. Mesmo assim não suportava a perspectiva de que sua decisão custasse ao Erik tudo o que ele apreciava. Seu desejo de limitar-se a um acordo de concubinato se apoiava em um senso comum tão firme que ela não queria nem podia obrigá-lo a ceder. Suas filhas mereciam mais que isso. Mas tampouco podia faltar a sua promessa de ajudá-lo. Tinha jurado tratar de lhe dar um herdeiro e estava decidida a cumprir com sua palavra. Se isso impedia que se casassem honradamente, parecia pouco preço a pagar pela segurança daquelas duas pequenas.

O que a deixava com várias tarefas que empreender. A primeira, assegurar-se de que ele seguisse inteiro e capaz de gerar um filho; além disso, fazer que ele estivesse livre para ocupar-se disso. Por muito que detestasse enganar a seu irmão e a seu tio, não podia condenar às filhas de Erik ao destino que Nicholas escolhesse para elas. A triste verdade era que Vivienne se veria obrigada a dizer outra falsidade a sua família. Sua mãe sempre havia dito que uma mentira requer outra: não era consolo descobrir que tinha toda a razão.

Mas na verdade, talvez resultasse muito útil que Alexander seguisse convencido de que Erik era Nicholas. Sem desviar sequer um olhar para Erik, para que seu irmão não pudesse lhe adivinhar as intenções, meneou a cabeça com um encolhimento de ombros:

— Não me fez mal nem tratou de cobrar o ouro que ofereceu a quem me devolvesse sã e salva.

Seus atos lhe outorgam mais crédito do que lhe concede, Alexander. O jovem corou. — Nesse aspecto diz a verdade — admitiu a contra gosto. — E você dista muito de ser inocente neste assunto — continuou ela. Isso mereceu

um gesto de acordo por parte de seu tio. — Parece-me prudente que Vivienne participe de qualquer discussão futura referida

a seu casamento insinuou. — Eu achava que o amava — sussurrou o sobrinho. — Quando se apresentou diante

de mim para manifestar seu ardor, supus que o motivo de que todos os candidatos lhe resultassem inaceitáveis era que ainda amava Nicholas Sinclair. Posto que agora era o dono de Blackleith, pareceu-me perfeito. Só queria assegurar sua felicidade.

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— Pois se equivocou Alexander — manifestou ela. Era um alívio poder dar essa resposta, que na verdade não era uma mentira. — Jamais poderia me apaixonar por Nicholas Sinclair, homem ardiloso e enganoso. Somente lamento não havê-lo denunciado para você quando interrompeu sua corte. —Olhou a seu irmão e a seu tio tratando de expressar firmeza. — Não me casarei com Nicholas Sinclair.

Alexander e Tynan manifestaram sua aprovação com um gesto. O jovem moveu um dedo para ordenar a seus homens que capturassem Erik.

— Retornaremos a Kinfairlie a toda pressa — repetiu. — Recomendo que passem esta noite em Ravensmuir — disse Tynan, com sua calma

habitual. — Os cavalos estão cansados. Além disso, minha casa está mais perto e melhor aprovisionada para dar de comer a esta partida.

— E eu continuarei minha viagem — disse Erik, com os olhos entreabertos e a expressão impassível. — Minha presença já não lhes será necessária, pois tudo se resolveu tão amigavelmente.

Vivienne reparou no peso que punha nessa última palavra e compreendeu que pensava procurar outra donzela para que lhe proporcionasse um herdeiro. E se ela já tivesse concebido? Demoraria ainda meses em saber com certeza, a menos que menstruasse. Sabia que Erik só estava disposto a abandoná-la porque ele também tinha acreditado em sua mentira. Ai, seu engano já lhe estava provocando problemas incomparáveis!

— Você também deveria descansar em Ravensmuir… — começou. Mas seu irmão a interrompeu. — Com respeito a você não há nada resolvido — disse secamente, enquanto

aproximava seu cavalo ao do Sinclair. — Faltou à palavra que me deu, mentiu com respeito a suas intenções e ainda deverá responder diante de meus tribunais por essas transgressões.

Erik o observou com ar carrancudo. — Conserva meu dinheiro. Isso deveria bastar para resolver a questão. Alexander ergueu as costas. Vivienne compreendeu que lhe desgostava ver-se

desafiado dessa maneira na frente de seus homens. — Em minha morada se faz minha vontade — disse, com serena autoridade. —

Esclareci que deverá apresentar-se diante de minha corte para responder aos cargos que lhes imputam.

— E eu, como homem livre, digo que não o farei.

— Tenho direito a persegui-lo e a obrigá-lo que enfrente à justiça de minha corte. Erik curvou os lábios. — E eu tenho direito a me negar ao capricho de um aristocrata capaz de vender a sua

irmã por um preço tão ínfimo. Alexander ergueu um dedo, furioso, mas Erik moveu a espada tão depressa que um

homem, a seu lado, foi ferido antes que o jovem laird pronunciasse um som. — Capturem! Assobiou o aço de Sinclair ao encarar a seus adversários e os homens de Alexander

fecharam filas em torno dele. Houve entrechocar de espadas; o aprazível claro estalou em

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uma batalha furiosa. Vivienne abafou um grito ao ver que não economizavam esforços para derrotar Erik.

— Resultará ferido sem motivos válidos! —exclamou. E se lançou para a refrega. Não chegou muito longe, pois seu tio a pegou pela cintura

para montá-la na sela, diante de si. — Devo ajudá-lo! —gritava ela, lutando. — Isto é muito injusto! — Não pode ajudar a quem se condena a si mesmo — disse Tynan, carrancudo. Depois pôs a seu corcel no caminho a Ravensmuir. — Uma noite na masmorra o

curará de sua loucura. De repente Vivienne se alegrou profundamente de que Erik lhe tivesse confiado a adaga de seu pai, embora a desalentasse a perspectiva de liberá-lo da morada de seu tio. Ravensmuir era uma fortaleza formidável, com uma muralha completa, portas múltiplas e um calabouço temível.

— Alexander fez o trato com ele —argumentou, com palavras infundidas de fúria— e recebeu um pagamento pelas condições. Este homem me tratou honradamente. E vocês o recompensam com brutalidade.

— Não atenderei a protestos. —Seu irmão a olhou nos olhos, pétreo. — A sorte nos sorriu; deveria estar agradecida por havê-la salvado. Deixa os detalhes de minha conta.

A jovem presenciou, indignada, como submetiam Erik pela força. Logo o ataram e o cruzaram indignamente sobre o lombo de um palafrém. Ao vê-lo maltratado e sangrando redobrou sua decisão de ajudá-lo, embora para isso fosse necessário desafiar a toda sua família. Teria sido melhor calar, mas não pôde conter um comentário:

— E assim faz amarrar a um inocente como se fosse um criminoso, sem mais razão que seu orgulho ferido — disse a Alexander, com o que lhe apagou imediatamente a expressão satisfeita. — Quem é o bárbaro, neste caso?

— É preciso aplicar justiça com mão firme — afirmou ele, embora avermelhava ao defender sua própria ordem. — Grande parte do que padece Escócia nestes dias se deve a que os homens não respeitam a palavra dada e a que quem tem a responsabilidade não defendem a justiça. Não estou disposto a me contar entre eles. Dito isso se virou.

— Deve compreendê-lo, Vivienne — murmurou Tynan. — A autoridade que seu irmão tem sobre quem o serve em Kinfairlie é bastante fraca. Consideram-no jovem e sabem que não foi provado no combate; alguns procuram a oportunidade de desafiá-lo. Ele não se atreveu a deixar em liberdade a seu captor, pois mais adiante poderia ver-se desafiado pelos homens de suas próprias filas. Teme que, se não resolver este assunto com decisão, arrisca a segurança de suas outras irmãs. Teve de escolher e escolheu reforçar sua autoridade nas cortes de Kinfairlie. Poderia ter aplicado justiça aqui mesmo, embora fosse a de um tipo menos respeitável.

Vivienne preferiu não responder, pois já havia dito muito. Aquelas notícias estranhou; ignorava que seu irmão tivesse problemas com os homens que empregava, embora o comentário do Tynan parecia lógico. Depois da súbita morte de seus pais, Alexander devia sofrer a mudança maior ao ver-se obrigado a converter-se imediatamente em laird do Kinfairlie. Mesmo assim ela não podia tolerar que fosse Erik quem padecesse as conseqüências de suas dificuldades. Malcolm, outro de seus irmãos, açulou a seu cavalo para trotar junto ao de Tynan. Não disse nada; ao que parecia, desde que estava sob a

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tutela de seu tio tinha imerso em parte sua atitude calada. Mostrava outra versão das cores de Ravensmuir, o qual o identificava como herdeiro do feudo, e montava um dos potros negros dessa propriedade. Parecia já muito mais velho e mais severo do que ela recordava.

Só quando o grupo se afastou do bosque notou Vivienne que Ruari não estava entre eles. Ou os galgos não o tinham achado ou Alexander não percebeu que esse homem solitário viajava com ela e Erik. Sua decisão de dormir separado do casal tinha sido acertada. E também, sem dúvida, o teria sido seu conselho de continuar viagem para Queensferry sem demora. Vivienne se arrependeu de não ter respaldado seu plano.

Em seus temores pela saúde de Erik lhe tinha parecido melhor deter-se para descansar durante o dia, mas só tinha conseguido que ele estivesse agora ainda mais ferido. Ao pensar no olhar glacial que lhe tinha lançado um pouco antes, rogou com ardor que ele pudesse perdoar os atos de sua família. Também desejava que Ruari fosse bastante intrépido para seguir à partida até Ravensmuir, pois necessitaria de toda a ajuda possível para liberar Erik.

*****

Ruari Macleod estava convencido de que as mulheres não traziam mais que

problemas; pior ainda, as mulheres formosas traziam problemas incríveis. A princípio tinha pensado que o plano de Erik para levar Vivienne estava fadado a fracassar, mas quando achou ao moço a coisa já parecia.

Também achava que era uma loucura não ter em conta os talentos de qualquer mulher que estivesse aparentada com Ravensmuir, em especial a faculdade de falar com os corvos dessa fortaleza. Não lhe surpreendia nem um pingo descobrir que suas suspeitas eram acertadas em todos os aspectos.

Tampouco lhe agradavam os resultados. Observou a grande partida que retornava para esse condenado torreão, alegre agora que tinham capturado a sua presa. Aproximou-se subrepticiamente para escutar com atenção. Tudo o que chegava a seus ouvidos desgostava. O moço tinha tratado honradamente a essa donzela e ela o recompensava com uma traição.

O único favor que tinha feito a Erik era assegurar que mantinha sua virgindade intacta. Ruari não duvidava de que o fazia só em benefício próprio, pois se ninguém soubesse que já estava deflorada ainda poderia casar-se bem, mas seu juramento assegurava além que Erik não fosse emasculado.

Entretanto, era claro que seria maltratado. Talvez o irmão da jovem não acabasse de acreditar no que ela dizia. Pouco importava. Ruari partia depois da partida, cujos membros, triunfantes, não se esforçavam absolutamente por não fazer ruído. Um par de aves escuras voava em círculos diante do grupo, ali onde iam a moça e seu tio; não resultava difícil adivinhar que tipo de aves era. Ele mantinha o capuz levantado e mantinha tanta distância que bem teria podido perdê-los se não tivesse sabido aonde iam.

Ravensmuir. O medo lhe subia à garganta como bílis negra, mas não podia faltar ao juramento que tinha feito a William Sinclair. O moço estava sob sua responsabilidade e ele não se atrevia a lhe falhar. O sol ficava como um pálido olho carmim sobre as terras altas, o

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céu estava coberto de densas nuvens, que se obscureciam muito enquanto eles avançavam para o este. A escuridão ia envolvendo os últimos raios de sol para extingui-lo. Um vento frio castigava o rosto de Ruari; o fato de que proviesse do mar não era, certamente, bom presságio. Avizinhavam-se problemas e, além disso, mau tempo, duas coisas que não gostava nada; perguntou-se por que não se conformara, em sua juventude, pastorear as cabras durante o dia e permanecer junto à lareira de sua mãe pelas noites. Ainda estaria lá, satisfeito e algo roliço, talvez com uma esposa que soubesse fazer um barril de cerveja de vez em quando. Não teria sido má vida.

Depois pensava em William Sinclair, um grande homem, muito por cima dos que teria podido conhecer em sua pequena aldeia; um grande homem que lhe tinha ensinado muito. E então sabia por que partira. Muito cedo apareceu Ravensmuir, uma sombra volumosa sobre o torvelinho do mar e o céu. Ruari, estremecido ao vê-la, reprimiu ao seu cavalo. Foi um alívio que essas aves desaparecessem atrás da alta muralha e não voltassem ao firmamento.

Em Ravensmuir não havia aldeia alguma: só páramos desertos em oitocentos metros ao redor das portas. Estas se abriram para permitir a passagem da partida e a tragaram tal como um demônio devora aos homens entre suas mandíbulas gulosas. Ruari se deteve refletir depois da última sebe espinhosa que oferecia uma magra sombra. Em redor começaram a cair as primeiras gotas de chuva. Envolveu-se no manto e endireitou seu casaco entreabrindo os olhos para estudar a face sombria de Ravensmuir. Tremia ao pensar no que deveria fazer para cumprir com a palavra empenhada.

Mas conhecia bem a William Sinclair; seu defunto senhor não tinha sido dos que aceitam desculpas. William nunca se acovardava com uma tarefa necessária, por muito desagradável que fosse. Ruari não era tão audaz para imaginar qual seria seu destino quando abandonasse a terra: se o céu ou o inferno; mas sabia que, qualquer que fosse, ali o estaria esperando William Sinclair, e não esqueceria, em toda a eternidade, qualquer omissão que ele tivesse cometido no cumprimento de sua última exigência.

Com o capuz posto e os ombros bem erguidos, pôs-se a andar para as portas de Ravensmuir. Talvez morresse na tentativa de ajudar ao moço, mas não há honra para quem volta as costas a um juramento. Manteve a cabeça no alto, embora temesse estar metendo-se diretamente em uma loucura. Talvez se reunisse com William antes do que ambos tinham pensado. No fim de contas, Ruari não sabia cantar nem fazer malabarismo. Mas o laird de Ravensmuir não parecia necessitar mercenários e, com toda uma horda de aves espiões as suas ordens tampouco estariam desejoso de receber informação sobre seus vizinhos. Na verdade Ruari não as tinha, mas bem teria podido inventar algumas, se esse curso de ação tivesse dado alguma perspectiva de êxito. Podia, porém, relatar uma história, embora só conhecesse uma, que não tinha pingo de fantasia. Só cabia esperar que bastasse isso.

Com cada passo que dava para essas portas lúgubres o assaltavam as dúvidas, como se lhe caísse sobre o coração uma sombra cada vez mais longa. Rogou com súbito vigor que Medusa tivesse omitido mencionar sua presença ao revelar ao laird onde podia achar ao Vivienne e ao Erik.

De outra maneira, sua chegada e sua intenção já teriam sido previstas. Engoliu em

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seco, mas não diminuiu o passo, nem sequer com essa intimidante perspectiva. Talvez partisse para uma armadilha (bem cabia esperar o dos feiticeiros de Ravensmuir), mas quem fazia um juramento no leito de morte não tinha, na verdade, alternativa. Ruari rogou que esse ato seu não fosse o último. E também que William Sinclair lhe reconhecesse o mérito de ter tratado de cumprir com sua promessa, embora fracassasse no esforço.

*****

Ao retornar a partida, Tynan ordenou que se servisse cerveja no salão de

Ravensmuir. Era claro que a chegada estava prevista, possivelmente por alguma ordem que ele mesmo tinha dado mais cedo, pois as mesas de cavalete estavam já preparadas e das cozinhas chegava um tentador aroma a carne assada. Vivienne não estava de humor para elogiar Alexander, embora ele estivesse visivelmente orgulhoso de sua façanha. O jovem lhe pegou uma mão, para levantá-la em um gesto triunfal, com o plauso de todos os habitantes da casa.

— Vivienne retornou sã e intacta! —anunciou. E todos os presentes o aclamaram. Ela sorriu, embora em seus pensamentos se revolvesse o problema que tinha diante

de si. Como conseguiria libertar Erik? Cada porta que se fechava atrás deles parecia tornar a empresa ainda mais impossível. E se na verdade fosse impossível? E se não pudesse ajudar Erik?

Malcolm, que em outros tempos tinha sido seu aliado em mais de uma travessura, agora rondava tão perto de Tynan, imitava tão bem sua atitude carrancuda, que não era possível duvidar de sua fidelidade ao tio, dele não receberia ajuda para Erik.

— Permite que atenda ao prisioneiro — disse a seu irmão, deixando-se levar por um impulso. — Seus homens o feriram. E é responsabilidade de um bom laird cuidar de que seus prisioneiros recebam atenção.

— Pois então tio Tynan se encarregará de que alguém o faça, já pode estar tranqüila — disse o jovem, sem dar importância à coisa. — Venha a mesa, para que todos vejam que está bem.

— Oferecerei-me para atendê-lo. —Vivienne pensava que dessa maneira teria uma possibilidade de ver seu amante, mas Alexander negou com a cabeça.

— Não necessita mais responsabilidades, a não ser um banho, uma comida quente e uma boa noite de descanso — disse com afeto.

— Mas... — Não o fará, Vivienne — manifestou ele, resoluto. — Eu a proíbo. A jovem cravou um olhar flamejante em seu irmão, que nunca antes lhe tinha falado

em um tom tão duro, mas ele a segurou, obviamente sem o menor remorso. Tynan se interpôs: — É comum que quem passou uma prova difícil sinta algum afeto pela pessoa

responsável por essa prova. — Isso não tem sentido — replicou seu sobrinho. — Entretanto é verdade. —Elizabeth observava à moça com olhos sábios. Ela voltou a

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perguntar-se até que ponto lia suas inclinações. Seu tio meneou a cabeça; logo a pegou suavemente por um cotovelo. Mostrava-se tão sereno, tão seguro de si, que resultou fácil deixar-se conduzir por ele. — Vêem a mesa, Vivienne, e se reanime com carne e cerveja. Pela manhã terá esquecido todas estas experiências.

A atitude que lhe provocava fez que Vivienne se perguntasse se havia um pingo de verdade nos rumores: estaria Ruari certo ao dizer que seu tio era bruxo? Seria capaz de fazer esquecer a Erik com alguma erva introduzida em sua cerveja? Não poderia haver engano maior, a seu modo de ver, pois ela entesourava a lembrança do tempo que tinha passado com seu amante. E queria fabricar mais lembranças como essas.

— Realmente não tenho fome — protestou. — Nem sede. Alexander pôs-se a rir. — Com certeza despertará um apetite incrível assim que ponha um bocado sobre sua

língua. A comida de Ravensmuir é muito boa. E parece pálida por falta de alimento, Vivienne.

— Mesmo assim não quero comer.

— O que comeu hoje? —perguntou seu irmão. Ela baixou o olhar. — Um pouco de pão e queijo. Uma ou duas maçãs. Coisas simples, mas foi suficiente. Alexander soprou. — Deve se sentar à mesa por um momento — insistiu Tynan, discreto-, para que

todos vejam que está bem. Sem dúvida passou maus momentos. A diversão melhorará o ânimo.

Ao que parecia os desejos da moça não se cumpririam. Seguiu a seus parentes até a mesa e ergueu uma taça com os presentes com falsa alegria, esperando contra toda esperança poder escapar logo dali. Foi o ver sua irmã menor o que a aliviou. Elizabeth abria passagem por entre a multidão, com os olhos faiscantes de prazer.

— Vivienne! —exclamou a menina, ao chegar à mesa elevada. Ela desceu correndo do estrado, sem que importasse a opinião de seu irmão mais velho.

Elizabeth a estreitou em um forte abraço e virou com ela, contente. Esse recebimento era mais do agrado do Vivienne.

— Estávamos muito preocupados com você! Encontra-se bem? — Bem, sim. —A maior percebeu a influência de Erik em sua breve resposta, mas não

tinha ânimos para dizer mais. — Possivelmente necessita mais a companhia de uma irmã que uma comida à mesa –

insinuou Alexander a seu tio, que sorria com afeto às duas. Como sempre, Elizabeth demonstrava talento para abrandar a atitude do irmão, às vezes sem sequer tentá-lo. Por esta vez a Vivienne não incomodou que assim fosse. A menina se afastou para estudá-la.

— Não tem tão bom aspecto. — Estou cansada, nada mais. —Vivienne se obrigou a sorrir. — Onde estão Annelise

e Isabela? Não vieram com você? Elizabeth fez uma careta; logo reduziu sua voz a um sussurro. — Proibiu-lhes de nos acompanhar. Permitiu-me chegar até aqui só por causa do

Darg.

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— Darg? — Essa pequena fada nos ajudou na busca — explicou Alexander, enquanto revolvia

o cabelo a sua irmã menor; ela esquivou o peso de sua mão e revirou os olhos. — Enredará-me a cabeleira! — E você preferiria tentar a um pretendente? —brincou ele. A menina, ruborizada, cruzou os braços no peito, embora fracassasse por inteiro em

seu esforço de dissimular o volume de seus seios. Essas novas curvas a sobressaltavam desde sua repentina e recente aparição, mas mais ainda a desconcertava a atenção que agora lhe dedicavam os homens. Lançou por cima do ombro um olhar precavido para os presentes, homens em sua maioria, e logo se voltou para Vivienne.

— Darg disse que a achariam esta noite. Por certo, disse-me uns versos especificamente dirigidos ao Alexander: "Cavalga para o poente sem parada; esta noite ela será salva. Entre o rio e o mar, a doze passados do castanho, junto ao vale do Elphinhstone, acharão-a sem dano".

— E, certamente, ali estava! —confirmou Alexander, erguendo seu cálice. Enquanto os presentes lhe aclamavam, Elizabeth desceu a voz para que só sua irmã

pudesse ouvi-la. — Não diga o resto, pois Alexander se haveria posto furioso. Não confie a Malcom

nada que deseje manter em segredo — aconselhou, lançando uma olhada depreciativa ao outro irmão. — Desde que vive aqui é a mão esquerda de Tynan. Podia-se aduzir que Malcolm obtinha uma boa vantagem com sua decisão, pois se servia bem ao tio e se deixava adestrar por ele herdaria Ravensmuir. Era dois anos mais novo que Vivienne e o bastante sagaz para saber que tinha recebido uma estranha oportunidade. Sem dúvida se absteria de fazer algo que a pusesse em risco.

Vivienne ia comentar com Elizabeth, mas as irmãs não puderam continuar falando, pois os presentes iniciaram um grande bulício ao ver que faziam entrar o prisioneiro. Ao passo do Erik houve uivos, cuspidas e golpes de pés contra o chão. Vivienne afastou a rosto, pois não podia vê-lo assim, tão maltratado e golpeado. Ainda estava inconsciente; ela se sentiu culpada das muitas lesões que tinha sofrido.

— Esse é Nicholas Sinclair? —sussurrou Elizabeth, impressionada. — Tão bonito como era! Olhe essa cicatriz que tem no rosto! —E cravou em sua irmã um olhar penetrante. — Acaso seu encanto diminuiu tanto como sua atitude? —Enrugou o nariz. — Nunca gostei dele, embora talvez fosse só porque a distraía de nossos jogos. Sempre me pareceu que tinha muito encanto, que confiava muito em seu próprio mérito.

Erik foi levado à masmorra e os homens se dedicaram à comida, satisfeitos. Estavam entusiasmados pela triunfal captura do suposto vilão e desejosos de compartilhar relatos. Alguém começou a cantar, até antes que o tivessem tirado dali, e Tynan voltou a pedir cerveja. Vivienne não queria perder mais tempo nessa companhia.

— Não podemos comer juntas no solário, como antes? —perguntou, lançando um olhar a seu irmão. — Eu adoraria ter a oportunidade de conversar com você sem que Alexander escutasse tudo que diga.

— Eu não escuto o que diz! —protestou ele. — Pois tenta — replicou Elizabeth. — E desde que te converteu em laird é muito

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menos divertido — acrescentou, com a sinceridade dos jovens— Em outros tempos brincava conosco e foi um companheiro cordial; agora exige isto e aquilo com mais severidade do que nunca empregou papai. Não estranho que Vivienne não sentisse falta de você.

Sua irmã viu a impressão que causavam em Alexander essas palavras pronunciadas ao descuido, mas a menina pareceu ignorá-lo. Voltou um sorriso para Tynan, obviamente segura de que podia pregá-lo a sua vontade.

— Tio Tynan, depois do que Vivienne suportou não pode obrigá-la a permanecer aqui,

rodeada de homens. Eu me ocuparei de seu bem-estar, já pode estar tranqüilo. — Vão, pois —disse o cavalheiro, de bom humor. E apoiou uma mão no ombro de

seu sobrinho— Deus nos julgue com mais benignidade que estas audazes donzelas, especialmente quando deixarmos de ser divertidos.

Alexander sorriu com o comentário de seu tio, mas Vivienne não viu alegria alguma em seus olhos.

Então se sentiu presa de um conflito, pois compreendia que seu irmão o passava pior do que ela tinha suspeitado com a carga de Kinfaeirlie. Entre ambos tinha existido sempre certa camaradagem. Agora lhe doía que não lhe tivesse confiado a verdade e teria querido pedir que a compartilhasse com ela. Por outra parte, ele não se dignava sequer escutar sua opinião, coisa que resultava decepcionante, por certo. Era claro que os vínculos anteriores se quebraram, embora isso parecesse entristecê-la só a ela.

Pouco importava, pois tinha intenções de cumprir a promessa que tinha feito a Erik. Portanto seguiu a Elizabeth fora do salão, escutando só pela metade o alegre falatório de sua irmã. Como escaparia dessa poderosa fortaleza sem ser detectada? O fato de que Madeline o tivesse conseguido devia ser alentador, mas Vivienne sabia que não podia comparar seu mérito com o de sua irmã mais velha. Mesmo assim teria que tentar.

Capítulo Nove Elizabeth puxou a mão de sua irmã para conduzi-la para a escada. — Posso lhe oferecer algo melhor que este salão ruidoso, sem dúvida. A esposa do

alcaide me tem simpatia, pois lhe agrada ouvir os versos de Darg, que se afeiçoou com ela. Com semelhante influencia eu poderia ser a senhora de Ravensmuir!

— Esse posto não está reservado ainda a tia Rosamunde?

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A jovenzinha sacudiu a cabeça com veemência; logo se voltou para jogar um olhar de

consternação a seu tio. — Não pronuncie sequer seu nome — aconselhou em sussurros. — Tio Tynan se

zanga muito em apenas mencioná-la. — Por que, se foi ele quem a afastou daqui? —Nesse momento Vivienne não estava

disposta a mostrar— se compreensiva para com seu irmão e seu tio. — Depois de ouvir as coisas cruéis que lhe disse, não posso culpá-la por partir.

Elizabeth fez uma careta. — Acredito que ele ainda a ama. E Darg diz que suas fitas estão entrelaçadas, ao

menos no momento. A maior recordou então aquele estranho assunto das fitas. Enquanto Rhys cortejava a

Madeline, a spriggan tinha mostrado à menina as fitas que se desdobravam a partir de cada uma das pessoas presentes no salão. Conforme assegurava Elizabeth, as fitas daqueles destinados a amar-se e viver juntos estavam entrelaçadas. Sempre segundo a mocinha, Darg podia provocar muitos males com apenas atar as fitas ou as reduzir a farrapos, fato que criava obstáculos para os amantes em questão.

Elizabeth contava que a fada tinha atacado com sanha as de Tynan e Rosamunde, pois sentia uma grande raiva pela senhora. Além disso, esse casal de mortais tinha discutido mais gravemente do que ninguém esperava.

— Isso parecia detestável — julgou Vivienne. Sua irmã assentiu. — Eu não gosto da maneira que Darg diz. Ainda guarda rancor a Rosamunde; disso

tenho certeza. A mais velha não pôde dissimular seu ceticismo.

— Talvez a fada minta. Elizabeth deu de ombros. — Acredito que desta vez não. Está desejosa de vingar-se de tia Rosamunde; espera

seu retorno com tanta ânsia que não suporto lhe ouvir falar disso. Estar em Ravensmuir a entusiasma, asseguro, e seus gracejos não me deixam dormir. —Bocejou largamente. — Embora na verdade era o medo por sua sorte o que me mantinha acordada.

— Pois eu estava muito bem. A menina lhe cravou um longo olhar, mas não disse mais sobre o assunto. — Darg está completamente persuadida de que Rosamunde chegará a Ravensmuir a

qualquer momento, embora disse que nossa tia jurou não retornar nunca mais. Discutimos tanto o tema que já me dói a cabeça, mas ela ainda insiste.

Vivienne deixou que sua irmã a precedesse até os quartos que estavam em cima do salão; escutando seu falatório só pela metade.

— Sabe o que queria fazer Darg ontem à noite, à hora mais escura? — disse de repente a mocinha.

Sua irmã meneou a cabeça, não muito interessada. A outra abriu os braços. — Queria descer às cavernas que há debaixo de Ravensmuir! Ocorre-lhe loucura

maior? Alexander me degolaria.

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Vivienne se deteve em meio de um passo, fulminada pela inspiração. — Darg conhece essas cavernas — murmurou. Aquilo era muito importante. Ela tinha

esquecido esse labirinto que serpenteava sob o castelo. Poderia-se sair das masmorras às cavernas? E dali para onde? Vivienne não sabia, mas disse a si mesma que o averiguaria muito em breve.

— Claro que as conhece! —assegurou sua irmã, com serena confiança. — Até é possível que as conheça melhor que tio Tynan e nossos irmãos, que tanto brincaram ali quando éramos crianças. –Elizabeth estremeceu. — Eu não gosto, eu não gosto nem um pingo. Neguei-me a acompanhá-la. Mas temo que vá sem mim, pois está muito decidida.

— Onde está agora?

— Sentada em seu ombro esquerdo. Meneia a cabeça com seu regozijo habitual e

repete o resto de seus versos. A maior tinha esquecido, momentaneamente, que ainda faltava uma parte. — Qual era o resto?

— "Cavalga para o Poente sem parada; esta noite ela será salva. Entre o rio e o mar, a

doze passados do castanho, junto ao vale do Elphinhstone, acharão-a sem dano". — Essa é a parte que disse ao Alexander. — É claro. —Elizabeth sorriu. — Hei aqui a parte que lhe ocultei: "Mas já não será

quão mesma antes era, embora poucos deverão notar. Embora a separem do pretendente, a donzela mudou para sempre".

Vivienne entreabriu os lábios ao ouvir tamanha verdade. — E o que diz Darg sobre as fitas? — Pouco importa o que ela diga, pois vejo a suas com meus próprios olhos. —A

menina olhava fixamente por cima do ombro de sua irmã. — É de prateada e fogareira como se estivesse feita com pó de opalas.

— E há alguma outra? — Sim. Está puída e é de um azul tão escuro como o céu de meia-noite. —Fez uma

careta. — Está manchada e seu aspecto é deplorável, mas o azul tem um matiz fantasticamente vivido. Foi uma fita encantadora, embora tenha perdido parte de seu atrativo. —Sorriu a Vivienne, quem adivinhava que essa fita azul também seria agora mais forte que antes. — É a do Nicholas, verdade?

Sua irmã preferiu não responder, pois o fato de que sua família ignorasse a verdadeira identidade do Erik podia ainda ser útil.

— Estão entrelaçadas? — Estiveram-no, mas a azul está rasgada. Fica apenas um fio e nãoconsigo ver se há

mais ou não. — Elizabeth enrugou o sobrecenho. — Que estranho. Eu gostaria de saber o que

significa isso. Vivienne achava sabê-lo: significava que Erik estava em perigo, já de sofrer a justiça

de Alexander, já simplesmente por suas lesões. Teria que auxiliá-lo essa mesma noite. Quanto teria gostado de ver pessoalmente ao Darg! A ajuda da fada seria muito

valiosa em todo aquilo. Lançou um olhar a seu ombro, mas não viu nada fora do comum. — Agora está ali — esclareceu Elizabeth, assinalando as vigas. — Gosta de expulsar a

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qualquer pássaro que cometa a tolice de posar ali. Vivienne estudou cada uma das vigas que passavam pelo lugar falado por sua irmã,

mas não via spriggan alguma. Elizabeth se deixou cair nas almofadas amontoadas no canto do quarto, ao final da escada. Logo apontou para sua irmã o olhar faiscante.

— Pois bem, agora que estamos sozinhas deve me contar tudo. Gozou na verdade com o Nicholas? Foi estupendo? Doeu tanto como Beira assegurava? Acredito que ela o dizia só para que não sentíssemos muita curiosidade. Talvez o ordenasse Alexander, pois se existir um homem que tenha perdido sua capacidade de divertir-se, esse é Alexander deste último ano.

— Ainda sou donzela — mentiu Vivienne outra vez. — Como tenho a regra desde sexta-feira, estive impura todos estes dias e suas noites.

Elizabeth fez um gesto amargo; logo suspirou. — Que lamentável. Esperava que me contasse como é, se já sabia, pois nunca teve

medo de dizer a verdade. —Vivienne tratou de não sentir-se culpada pela certeza de sua irmãzinha. Logo a menina enrugou o sobrecenho. — Mas ouça, não sangrou faz um par de semanas?

Ela negou com a cabeça. — Deve me confundir com Annelise. — Não, lembro claramente que se queixava. Annelise nunca se queixa. Verdade que

é anormal? E faz que as demais pareçam descontentes. Vivienne se sentou com um sorriso.

— Talvez você esteja descontente.

— Sem dúvida — reconheceu a mocinha, alegremente. — Mas tem que ter algum detalhe que confessar. Esse Nicholas sabe contar lendas? Tem que ter algum mérito. Você não se apaixonaria por um homem que não compartilhasse sua afeição pelos contos.

— Não é muito o que fala — admitiu Vivienne. Caiu na conta de que, embora Erik não era narrador de contos, sua gestão era toda uma lenda. Especialmente se triunfasse, com ajuda dela. Recordou-o dizendo como se chamavam suas filhas, que altura tinham, e os olhos lhe nublaram de lágrimas.

Tinha que haver uma maneira de sair dessas masmorras! — Não recordava que Nicholas fosse calado — murmurou Elizabeth. — Sua única

afeição parecia ser a de roubar beijos e enumerar seus próprios méritos a quanto cristão cometesse a estupidez de escutá-lo. Vivienne não disse nada.

— OH, mas deve ter fome! —a menina se levantou subitamente para correr para a

porta. Movia-se com a mesma segurança que sua falecida mãe. A inesperada similitude entre a Elizabeth e Catherine fez que à Vivienne lhe atasse a garganta. De repente via de quem tinha herdado a pequena suas curvas tão amadurecidas, pois tinha a mesma estatura, as mesmas formas e a mesma cor de cabeleira que sua mãe.

As outras irmãs eram mais esbeltas, possivelmente como as mulheres do ramo paterno da família.

Embora a dor de ter perdido a seus pais nunca estava longe, ultimamente a assaltava nos momentos mais estranhos. Pensou então em Erik e se perguntou se ele sentiria o mesmo pelo falecimento de seu pai.

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Teria apostado que sim, tão segura estava de que ambos deviam estar de acordo em temas tão fundamentais, embora soubesse que essa convicção sua se apoiava em pouco mais que a intuição.

— Depois de tudo, prometi a tio Tynan que me ocuparia de te alimentar — continuou Elizabeth. — Retornarei em um momento. Não tema, que a esposa do alcaide cuidará de que possamos comer esplendidamente aqui mesmo. Dito isso a menina desapareceu e o quarto ficou em silêncio.

Vivienne se deixou cair em um montão de almofadas; enquanto refletia seus dedos maltratavam o fino tecido. O desafio com o que se enfrentava parecia na verdade infranqueável. Sem a ajuda do Darg, embora ela conseguisse liberar a Erik e levá-lo a labirinto, provavelmente não poderia achar a saída antes que tio Tynan os descobrisse. Isso significava que Elizabeth deveria ajudá-la na fuga de Erik. Mordiscou os lábios, pois assim as iras de Alexander incluiriam à pequena. Não queria provocar distúrbios entre seus irmãos e teria preferido deixar à menina na inocência e a ignorância.

Como se fazia para achar uma fada? Vivienne levantou o queixo para estudar atentamente as vigas do teto, cada rincão

dos muros. — Darg? —perguntou. Logo repetiu em voz mais alta: — Darg? Está aqui? Pode

escolher a que mortais se mostrar? Se for assim, rogo-lhe isso: escolha-me. Não houve resposta discernível. Vivienne aguardava, alerta, com a esperança de ver algum brilho da presença da fada, mas não percebia nada fora do normal. Até onde podia assegurar, estava sozinha.

Chamou-a outra vez, enquanto passeava pelo perímetro do quarto, mas não serviu de nada. Só ouvia a ruidosa algazarra dos homens no salão, suas risadas estrondosas, suas canções de taverna.

Ou Darg não estava ali ou Vivienne não podia vê-la. Sentou-se a esperar a volta de sua irmã, decidida a lhe dizer simplesmente a verdade, toda a verdade, com a esperança de que a menina estivesse disposta a ajudá-la. Não havia muito mais que pudesse fazer.

Enquanto esperava extraiu do cinturão a adaga que Ruari havia trazido para Erik, do leito de morte de seu pai. A folha não era longa, mas a bainha estava ricamente ornamentada e a arma era uma complexa peça de ourivesaria. O punho estava retorcido, como fios de uma corda, e no topo se via uma pedra azul de tamanho considerável: quatro pinças em forma de garras a mantinham cativa, embora a gema refletisse a luz de uma maneira muito estranha.

Ao aproximar-se mais para o lampião, Vivienne reparou em uma palavra e uma imagem esculpidas dentro da pedra, que era um retângulo tão largo como as duas primeiras falanges de seu indicador.

"ABRAXAS" era a palavra inscrita na gema, até onde ela podia lê-la. Não conhecia esse vocábulo; perguntou-se se acaso a tinha lido mal. Possivelmente se tratasse de iniciante ou de uma palavra estrangeira. Por cima das letras se via uma silhueta diminuta que parecia de homem, mas ao olhar melhor Vivienne notou que tinha cabeça de pássaro e pernas com estranha forma de espiral. Seriam enganos do entalhador ou tinha isso algum significado? Ela não sabia. Por pura curiosidade retirou o aço de sua bainha e viu com

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prazer que o metal brilhava, apesar da escassa luz desse quarto. Tinham-na afiado muitas vezes e apresentava umas quantas meladuras, mas o fio era

muito agudo. Essa adaga tinha sido muito apreciada, sem dúvida; perguntou-se se seria muito antiga, que poderes lhe atribuíam. Depois, franzido o sobrecenho, deixou aquela arma. Devia achar a maneira de conseguir a ajuda de sua irmã. Tinha diante de si enigmas mais importantes que qualquer lenda vinculada à adaga hereditária dos Sinclair.

***** Erik despertou em uma cela escura e úmida; não era difícil adivinhar em que fortaleza

se achava. No chão, no canto mais afastado, tinham deixado um lampião cuja luz piscava; a selvagem dança da chama criava sombras ominosas. Já não tinha nem a espada nem a adaga, embora não cabia surpreender-se disso; depois apertou os dentes ao recordar que, por própria vontade, tinha entregue a adaga de seu pai à Vivienne.

Indubitavelmente, nenhuma boa ação fica sem castigo, tal como havia dito ela; no momento Erik não achava falha alguma nessa maneira de pensar. Provavelmente deveria alegrar-se de que nenhum desses rudes mercenários tivesse podido apoderar-se de sua arma hereditária, mas era escasso consolo saber que estava em posse da mulher que o tinha enganado.

Pois Vivienne o tinha enganado, sim, e com tanta habilidade que ele nunca suspeitou de seus motivos. Ao aceitar ela um compromisso de concobunitado em vez do casamento, parecia convencida por seus raciocínios. Ele chegou a acreditar que na verdade se interessava por ele e que estava de acordo com seu plano de descansar durante a noite. Na verdade a moça não fazia a não ser assegurar-se de que não se afastassem muito, para que sua família pudesse resgatá-la.

Certamente só tinha fingido perdoá-lo. Conseguiu que se detivessem bastante perto do Ravensmuir para ser descobertos por seus parentes. E sobre seus motivos não cabiam dúvidas, pois ante a oportunidade de casar-se com ele se negou.

Sua promessa de ajudá-lo era uma mentira, assim como o desejo que aparentava. Erik Sinclair e seus magros encantos não eram, pelo visto, suficientes para uma dama como Vivienne Lammergeier. O que só queria dizer que, novamente, ele tinha cometido a tolice de outorgar confiança a quem não a merecia.

Com a vista azedamente cravada no lampião, reconheceu que, indubitavelmente, ela não tinha proposto aquelas sete cópulas porque o desejasse, a não ser para fazê-lo dormir como um tronco. Sua família lhes caiu em cima sem que ele, exausto de tanto fazer amor, tivesse podido sequer ouvi-los chegar. Pior ainda, tinha cometido a estupidez de acreditar que uma bela rapariga, criada na abundância, poderia achá-lo atraente ou interessar-se por sua gestão. Junto a Beatrice teria devido compreender que atraente lhe achava esse tipo de mulheres, mas não, era muito idiota para aproveitar a experiência.

Seu pai lhe teria recordado que ele sempre via nos outros a parte boa antes de reconhecer a má, e que esse era um hábito perigoso. Isso o levou a recordar que seu pai tinha morrido, que no salão do Blackleith não voltaria a ouvir-se sua voz irônica. E essa era uma verdade com a qual ele não podia enfrentar no momento. Apressou-se a sentar-se

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para afugentar essas idéias, mas o quarto virou em redor ante o brusco do movimento. Palpitava-lhe a cabeça e sentia a têmpora úmida; ao tocar-lhe seus dedos se mancharam de vermelho. Mais ainda, esse leve movimento lhe tinha posto a cabeça a pulsar tão vigorosamente que quase podia esquecer a dor do quadril.

Ignorou-os a ambos para ficar de pé e cruzar a cela, com intenção de examinar o

lampião. No recipiente só ficava um vestígio de azeite, sem dúvida para que ele não pudesse utilizá-lo para alguma balbúrdia. Se a chama dançava tanto era porque logo se apagaria. Erik aproveitou a luz que ainda tinha para observar sua prisão. Era de forma quadrada e teto tão baixo que mal podia estar de pé; os muros estavam construídos com pedras calçadas; chão era de terra calcada. Havia um buraco de deságüe pelo que aparecia o focinho de um rato.

O roedor parecia olhá-lo como se o avaliasse. Erik se perguntou se lhe dariam alguma

sujeira para comer ou se o abandonariam na iminente escuridão, para que servisse de festim a esse rato e a seus camaradas. Nenhuma das perspectivas lhe pareceu promissora. Voltou as costas a besta para passear, mas se deteve provar a sólida porta de madeira. Não cedeu; tampouco o esperava.

A partir desse momento era claro o que devia acontecer. Cedo ou tarde Erik deveria enfrentar o laird por ter faltado a sua palavra. Não havia outro veredicto possível que o de "culpado", posto que não se casara com Vivienne. E agora que a dama o tinha rechaçado frente a todos, não se poderia negociar nenhuma saída feliz. Jogou outra olhada ao rato; irritava-o que novamente se jogasse sobre ele uma acusação similar, igualmente injusta. Por que as mulheres punham em dúvida sua potência sexual? Com toda segurança, quase todos os homens que acompanhavam ao Alexander se teriam alegrado de saciar seus apetites com Vivienne, embora ela estivesse menstruando. Nesse momento deviam estar brincando no salão sobre a impotência do homem encerrado sob seus pés.

E, além disso, dali se ouviam as celebrações. Aquilo não teria bom fim, sem dúvida

alguma. Erik não esperava que Vivienne o defendesse; muito menos que revelasse a tempo que ele não era seu irmão Nicholas. Analisou seu futuro com um gesto carrancudo. O castigo podia variar. Talvez o desfigurassem para marcá-lo como proscrito pelo resto de sua vida, mediante a perda de um olho, a ponta do nariz ou uma das orelhas. Depois de tudo o que tinha suportado, isso não lhe preocupava muito, embora seria doloroso.

Estirou a perna, dizendo-se que já havia muito dor em sua existência. Podiam

condená-lo a perder uma parte mais importante de sua anatomia; especificamente, a que estava na raiz de todo este assunto. Não era uma perspectiva reconfortante. Se sobrevivesse a essa dura prova não poderia rasgar outra virgem nem gerar o herdeiro que o conde do Sutherland requeria para ajudá-lo.

Certamente, era possível que o executassem, simples e sinceramente. Alexander estava tão ofendido que bem podia exigir o castigo mais duro. Essa perspectiva não teria devido afligi-lo tanto, posto que já se achava morto, mas foi essa possibilidade a que lhe fez

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esmurrar a porta de madeira, cheio de frustração. Ainda não estava disposto a morrer. Suas filhas o necessitavam.

Erik golpeou a madeira com os punhos e gritou, até sabendo que de nada serviria.

Golpeou com mais força e uivou reclamando justiça. Não houve resposta. Se acaso o ruído das festividades pareceu aumentar. Por fim se deteve e apoiou a testa contra a porta. Notou que o rato o observava com certo interesse, como se tivesse curiosidade por saber se já começava a debilitar-se.

— É pelas meninas —lhe explicou ele, pois não havia ninguém ali com quem falar. —

Quando eu voltar para o pó não haverá quem as defenda. —Olhou a porta com uma careta e lhe deu um último chute— Embora, na verdade, até agora tenho feito bem pouco para as defender. Haveria-se dito que o rato achava lógica nesse argumento, pois pareceu assentir várias vezes, sopesando o mérito de suas palavras. Logo virou para desaparecer pelo buraco. Ouviu-se uma leve correria de patas; depois o silêncio voltou a apertar-se contra os ouvidos do Erik.

Ruari devia estar muito feliz, pois suas predições eram acertadas. Não quereria, na verdade, carregar com a tarefa de ajudá-lo; agora estava em liberdade de tomar

outras decisões. Ao menos o desaparecimento de Erik teria essa vantagem. Em realidade havia muitas outras. Nicholas reteria Blackleith sem que ninguém o disputasse; as meninas esqueceriam a seu legítimo pai; Vivienne já devia ter conseguido dois ou três pretendentes; Alexander ficaria com seu dinheiro e o conde do Sutherland não teria que enfrentar uma batalha que não lhe entusiasmava. Na verdade, se pela manhã o laird do Kinfairlie se mostrava muito vingativo, não haveria ninguém que chorasse pelo Erik Sinclair.

Observou aquela prisão, enquanto abria e fechava os punhos, frustrado. Não se

renderia. Lutaria por suas filhas até o último fôlego. E lutaria com mais ferocidade ainda quando esse último fôlego estivesse perto. Não havia maneira de sair dessa cela, como não era essa única porta, bem fechada com chave. O desaguadero, não mais largo que seu pulso, não oferecia nenhuma opção de escapamento. Passeou de um lado a outro, tratando de minguar suas dores à força de vontade. Essa bem podia ser a pior das circunstâncias em que nunca se achou, mas não renunciaria à esperança.

Em algum momento alguém abriria essa porta. Erik não tinha armas nem ferramentas. Nesse momento o lampião piscou até apagar-se. Agora tampouco tinha luz. Não tinha a não ser seu engenho, que estava demonstrando ser bastante magro, e suas mãos nuas. Mas também tinha a ira e a firmeza. Quando algum pobre tolo abrisse essa porta, quem o fizesse descobriria o que valiam esses poucos bens. Talvez a intento estivesse condenada a acabar mau, mas ele não aceitaria mansamente seu destino. Escondeu-se frente à porta, com as costas apoiada contra o muro e a bota contra o desaguadero; dessa maneira o rato não poderia passar e demoraria um momento em roer suas grosas solas. Essas botas sulinas tinham ao menos a vantagem da solidez.

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Nessa postura descansou quanto pôde enquanto aguardava uma oportunidade. Para assombro dele, seus pensamentos não foram por volta de tudo o que tinha perdido no curso dos anos, mas para a mulher que acabava de traí-lo. Descobriu-se desejando uma última oportunidade de explicar-se ante Vivienne, uma última oportunidade de acender luzes naqueles olhos maravilhosos, de lhe plantar um filho no ventre. E isso devia demonstrar que não podia contar com seu próprio engenho.

*****

Elizabeth esteve a ponto de tropeçar com a barra de sua saia, em suas ânsias por

retornar junto à Vivienne. Trazia um par de tigelas com fumegante cozido de vitela, uma fogaça de pão ainda quente e uma jarra de cerveja. No cinturão, uma taça de louça que compartilhariam ambas e um par de colheres de madeira; a taça se afrouxava a cada passo, mas não tinha mão livre com que assegurá-la e a esposa do alcaide estava muito atarefada para lhe prestar mais ajuda.

Cruzou precipitadamente o salão, esquivando com destreza dos tapas de vários homens que tomaram por uma criada. Condenados seios! Se algum homem voltava a olhá-la aos olhos em vez de cravar a vista mais abaixo, ela seria capaz de tomá-lo imediatamente por marido. Sempre que, além disso, fosse bonito, rico e aventureiro, certamente. Chutou a um homem que tentava segurá-la; ele, rindo, tratou de sentá-la no regaço. Se a comida que levava tivesse sido só para ela, Elizabeth a teria abandonado para golpeá-lo, mas sabia que Vivienne estaria esfomeada. Por fim, evitou aquela perna estendida e se contentou lançando um olhar fulminante em sua direção antes de continuar seu caminho.

Ao chegar ao pé da escada estava já sem fôlego pelo esforço; subiu com lentidão, para não tropeçar com sua própria saia. De repente houve um golpear de tigelas contra a mesa para concentrar a atenção dos homens em algum anúncio. Elizabeth se deteve para olhar para trás. O homem que lhe tinha tendido a rasteira a observava com ar lascivo, mas não lhe prestou atenção. Alexander ficou de pé e pigarreou mais pomposo que nunca. A menina apertou os dentes ao apreciar a mudança sofrida por seu irmão maior, que antes de morrer seus pais era tão divertido. Converteu-se em um velho tedioso, obcecado pela honra e a justiça; se ela não o tivesse visto com seus próprios olhos não teria podido acreditar.

A seu modo de ver, já era sobradamente hora de que uma das irmãs lhe fizesse uma sacanagem das que ele lhes tinha feito em outros tempos. Quando fazia da sua ficava incrivelmente ufano, coisa que irritava a Elizabeth até o inexprimível.

— Hei aqui uma noite que requer um bom relato, posto que nenhum de nós tem pressa por deitar-se, e hei aqui um narrador que requer uma grande jarra de cerveja. Dou a bem-vinda a Ruari Macleod, um narrador que chegou muito oportunamente a nossas portas, no momento em que mais necessitamos de seu talento.

De pé diante da mesa principal, onde obviamente tinha devotado um relato em troca de uma comida, via-se um homem robusto, com um alforje de bom tamanho aos pés. Estava já entrado em anos; seu cabelo era um rebelde arbusto avermelhado; vestia objetos toscos e seu rosto avermelhava mais e mais. Visivelmente nervoso, percorreu o salão com o

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olhar; não parecia tão habituado a concentrar a atenção geral como cabia esperar de um narrador.

Como pigarreou dez ou doze vezes, uma das servidoras lhe encheu a jarra de cerveja, pensando que era isso o que requeria. O saudou com uma reverência agradecida, mas o fez com tanta estupidez que derrubou a bebida. Os presentes riram convencidos de que era uma brincadeira, mas o homem corou até mais intensamente. Sua incerteza se fazia mais visível conforme se prolongava o silêncio espectador. Ele permanecia mudo, olhando ao público e passando o peso do corpo de um pé ao outro.

Elizabeth correu escada acima. Vivienne, que se estava passeando de uma maneira muito estranha, virou-se e deve ter percebdio — que a taça estava a ponto de cair, pois se apressou a agarrar as duas tigelas. A menina retirou a taça do cinturão justo no momento em que já se desatava.

— Muito a tempo! —exclamou, triunfal. Sua irmã não compartilhou seu sorriso. — Darg está aqui? — É claro. Prefere os aposentos pequenos ao salão. Enquanto eu descia ficou aqui

para dançar nas vigas. Escuta minha advertência, se não nos apressarmos a beber, ela se lançará sobre a cerveja.

Ao servir a bebida Elizabeth ouviu o grito encantado da spriggan. — Não a ouve? —perguntou. Vivienne meneou a cabeça; sua desilusão era perceptível. A mocinha indicou ao Darg,

que se desprendia das vigas em uma grossa teia de aranha, sem deixar de gritar. A fada saltou no momento exato para aterrissar na asa da jarra.

— Algo para vocês, para mim todo o resto; não há no mundo nada que me agrade como isto — disse, lambendo-se. E se inclinou para aproximar a boca à cerveja, com intenção de beber como os cães até acabá-la toda.

Elizabeth lhe deu um tapa e esteve em um triz de derrubar a bebida. Darg se esquivou do golpe e, depois de brincar de correr pelo bordo da jarra, ajoelhou-se em equilíbrio.

— Que lata! —protestou a menina, enquanto a empurrava para um lado. Darg subiu de um salto a seu ombro, entre estalos e queixa, enquanto ela se

propunha para encher a taça que compartilharia com Vivienne. Quando a ofereceu a sua irmã, ela a olhou com ar confuso. Logo disse, sorridente: — Quero pensar que não se tornou louca, mas sim tratou de manter a essa sua fada

fora da jarra. — Ao Darg gosta muito de cerveja dos mortais. E quando bebe um pouco se converte

em uma verdadeira praga. —Para burlá-la, Elizabeth atou um lenço à boca da jarra. A spriggan engatinhou pelo tecido, espiando por entre os fios da trama; ao fim choramingou.

Vivienne não parecia mais alegre que a fada. Parecia preocupada com algo; talvez era o desencanto de não poder ver a spriggan. Embora devesse estar faminta, Elizabeth notou que se limitava a bicar o cozido.

— Não comeu nada. A estas horas deveria ter deixado essa tigela limpa — brincou a menina. Mas só obteve um débil sorriso.

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— Não tenho muita fome — disse sua irmã, enquanto afastava o prato. Tinha os olhos inegavelmente sombrios, mas não parecia disposta a falar do que lhe

afligia. Vivienne era alegre por natureza e de língua impulsiva. O fato de que essa noite se inclinasse pelo silêncio era algo a respeitar por sua raridade. Mas haveria tempo demasiado para compartilhar relatos, pois a Elizabeth parecia difícil que a casassem logo. Em realidade, a sua idade já podia ser impossível.

-chegou um narrador — comentou, com a esperança de alegrá-la, pois Vivienne adorava as lendas. — Não é muito bom, ao menos até agora, pois se diria que lhe custa muito achar o começo. E com tantos anos como tem, já teve tempo de dominar o medo ao público. Talvez não seja, no fim de contas, um autêntico narrador. —deu de ombros e comeu parte do cozido. — Poderíamos nos sentar na escada, onde ninguém nos veja, para escutar seu conto.

Vivienne ergueu as costas, com os olhos brilhantes. — Diz que é velho? Elizabeth fez um cálculo, sem deixar de mastigar. — Bem pode ter cinqüenta verões. Ou possivelmente quarenta muito duros. Não sei.

Mas é velho, sem dúvida. Não pôde especular mais, pois Vivienne se lançou escada abaixo. A menina foi atrás

dela com sua tigela; achou-a espiando da esquina, com o rosto iluminado. — Conhece esse homem — adivinhou. — Chama-se Ruari Macleod — informou sua irmã, sem vacilar.

— Sabe por onde começar, velho? —gritou um dos presentes. — Até agora seu conto

foi muito desanimado! Os homens rugiram; cresciam os murmúrios de descontentamento. — Havia uma vez! —gritou Vivienne. Elizabeth notou que o homem parecia aliviado ante esse gesto de fôlego. Agitou um

grosso dedo para a escada. — Sim, assim deveria começar a história. Havia uma vez um homem e uma mulher. — Essa já a conhecemos, velho — disse um homem. Por todo o salão ressoou uma

gargalhada grosseira. Ruari se virou para o homem, vexado, e lhe apontou com um dedo. — Não a conhece. Não pode conhecê-la, pois vim lhes contar. Isso é minha história e

meu presente, embora tenha sido outro homem quem a viveu. — Pois então começa de uma vez — exclamou o incorrigível. O tal Ruad endireitou os ombros. Sua voz se fez tão potente que encheu todo o salão. — Havia uma vez um homem que entregou seu coração a uma mulher de linhagem

nórdica, de cabeleira de linho e olhos azuis como o mar. Não era tão formosa para que explodissem guerras por seus favores, nem tão majestosa que tomasse pela rainha das fadas. Era simplesmente uma mulher, uma mulher bonita e de bom coração, de mente clara e membros vigorosos, capaz de lhe dar filhos e de corresponder ao fervente amor que lhe dava.

— Uma como essa é o que eu preciso — brincou outro. Mas seus companheiros o

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sossegaram com um par de cotoveladas não muito suaves. — Pois bem, este homem confessou à dama sua admiração e lhe pediu que lhe

entregasse sua mão. Ela aceitou, embora o homem não possuísse quase nada, além de sua espada e sua honra. Era o menor de cinco filhos varões, filho de uma antiga família das Terras Altas, que só podia lhe dar sua bênção. Mas a dama o amava ao ponto de aceitá-lo. E se casaram. Elizabeth, que se tinha deixado cair no degrau, escutava em silêncio enquanto comia. E observava a sua irmã, que seguia com inesperado interesse o relato desse tal Ruari.

— Com o tempo e graças a seus esforços, chegaram a construir sua casa, embora muito mais humilde que aquelas em que se criaram. E ao seu devido tempo a mulher deu a seu marido um herdeiro: um menino tão loiro como sua mãe. Posto que se parecia tanto à família materna, deram-lhe um audaz nome nórdico: Erik, que significa "governante eterno" e invoca ao grande campeão Erik o Vermelho. Elizabeth viu que Vivienne se inclinava para diante, sem pensar já na comida. Conheceria alguém chamado Erik? Por sua parte não recordava que ninguém tivesse esse nome. Onde o teria conhecido sua irmã?

Enquanto isso o narrador continuou: — E daí, passado algum tempo, Deus deu um segundo filho a este casal: outro varão,

tão dourado e saudável como o primeiro. Mas o Senhor dá com uma mão e estorva com a outra, a mulher morreu ao iluminar a esse segundo menino. Seu marido, que não sabia como criá-los em ausência de sua esposa, temia que necessitassem um amparo maior do que ele podia lhes brindar. Por isso batizou ao menino com o nome de Nicholas, em honra do santo que tanto quer aos meninos, e pediu a este bendito que concedesse sua graças a ambos.

Um momento, Elizabeth enrugou o sobrecenho. Alexander tinha concedido a mão de Vivienne a Nicholas Sinclair, quem tinha um irmão maior chamado Erik. Os Sinclair eram uma antiga família das Terras Altas. E Nicholas se estava esfriando na masmorra, capturado por ter faltado à palavra dada ao Alexander. O mais intrigante era que Vivienne tinha passado dois dias e suas noites em companhia desse Nicholas, sem ninguém mais. A menina observou a sua irmã. Não estava absolutamente convencida de que Vivienne não sentisse nenhum afeto pelo homem encerrado nos calabouços do Ravensmuir. Tampouco achava que estivesse menstruando, como assegurava.

Não era Annelise quem tinha tido a regra um par de semanas atrás; ela tinha certeza. Era possível que a chegada desse narrador, a quem Vivienne parecia conhecer contra

o que cabia esperar, fosse pura coincidência? A menina não achava. Escutou com mais atenção o que dizia o narrador.

— Embora o pai criasse a seus filhos o melhor que pôde, ambos costumavam a ter sensação de que só esperava o momento de ir reunir se com sua esposa. Haveria-se dito que eles, ao crescer, ganhavam vitalidade a custa do vigor paterno. Quando ambos chegaram a ser homens altos e fortes, triunfadores no combate, ele já não podia abandonar o leito. O filho maior, temeroso de que seu pai sentisse falta da abundância de sua juventude (pois ambos tinham ouvido mencionar muitas vezes os humildes começos do casal), começou a expandir a simples morada. Lutava contra os vizinhos avaros a direita e esquerda, reafirmou as fronteiras, construiu uma fortaleza de pedra. E todo o fez em nome

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de seu pai, sem reclamar crédito para si; sempre jurava que de seu pai eram o plano, os ensinos e a inspiração que lhe davam fortaleza e lhe permitiam conjurar bem-estar de um nada. Era valoroso no combate, confiável nos tratados e homem de honra.

Enquanto isso, o filho menor não se interessava pelo trabalho. Preferia saborear o que obtinha do próximo à força de encanto ou mediante enganos, pois considerava que só o idiota se esforça, sua e derrama sangue. Era bom de ver e utilizava esta vantagem para satisfazer seus desejos. Isso concordava com o que Elizabeth recordava de Nicholas Sinclair. Desviou um olhar para Vivienne, a tempo para lhe ver fazer um gesto de carrancudo assentimento. Então a tocou no ombro.

— Se for assim, como é possível que se interesse por Nicholas? —sussurrou.

Sua irmã deu um pulo de surpresa. — Não me interessa absolutamente. — Mas se está na masmorra e é claro que isso a aflige... Vivienne negou com a cabeça. Depois deixou escapar um suspiro. — Quem está na masmorra é Erik Sinclair — confessou em voz baixa. — Erik é quem

me seqüestrou. Esta revelação deixou a Elizabeth boquiaberta. Sua irmã voltou a concentrar-se no

narrador. A menina mal respirava, pois agora sabia que estava escutando um relato no que participava Vivienne. Afastou a comida; nem sequer prestou atenção ao chapinho de Darg, que saltava gozosamente ao jarro de cerveja, já meio vazio.

Ruari continuou:

— Os irmãos discutiam ocasionalmente, como costuma acontecer entre duas pessoas

tão diferentes, mas ocultavam suas rixas ao pai. O menor, porque não queria oferecer uma má imagem a seus olhos; o maior, por não minguar as forças do ancião. Talvez o pai não reconhecesse o verdadeiro caráter de Nicholas até que já era muito tarde. Ou talvez não quisesse saber. Só posso explicar o que aconteceu.

Elizabeth ficou enfeitiçada pela injustiça do engano cometido pelo pai. Darg lançou um arroto e se desprendeu da tigela vazia para dirigir-se para a jarra, algo cambaleante. Balançou-se na asa até aterrissar no lenço que a cobria e começou a roer o pano para lhe fazer um buraco.

A menina, concentrada no relato, não lhe prestou atenção.

— O primogênito se casou com uma bela moça da zona, chamada Beatrice, e esse feliz vínculo amoroso selou uma aliança. Beatrice teve duas meninas, das quais Erik estava tão orgulhoso como um pai pode estar. Tudo parecia estar bem, embora o menor invejasse ferozmente a seu irmão.

— Este conto vai de mal em pior — sussurrou Elizabeth. Vivienne só pôde fazer um gesto afirmativo, pois toda sua atenção estava fixa na voz do ancião.

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Capítulo Dez — E assim, um mau dia, Erik foi convocado sem prévio aviso por um aliado, Thomas

Gunn, que assegurou necessitar de sua ajuda. Ele se separou de sua esposa e suas filhas, deixando o lar bem defendido. Mas acontece que não previa uma traição em seu próprio seio. Ao chegar à morada de Thomas, Erik achou essa propriedade em paz e se inteirou de que seu vizinho nunca tinha mandado chamá-lo.

— Nicholas o enganou! —vaiou um dos presentes. Elizabeth teve a certeza de que esse homem tinha renomado corretamente o

culpado. — Efetivamente, assim foi, embora então ninguém se atreveu a formular acusação

tão audaz. Assim que Erik esteve fora da casa, ele se estabeleceu como laird, embora todos pensaram que a situação seria temporária.

— Que vadio! —gritou alguém. — Apostaria que tinha pensado algum plano para que fosse definitivo!

Ruari ergueu uma mão. — Quem poderia assegurá-lo, salvo o mesmo Nicholas? Não obstante, direi-lhes que

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Erik foi atacado na estrada, enquanto retornava a seu lar. Caíram sobre ele quando menos o esperava, pois, como recordarão, nada sabia das mudanças acontecidas em sua casa. Só pensava que a mensagem recebida de Thomas Gunn tinha sido um engano.

Assim se viu pego por surpresa em seu próprio caminho, desacordado a golpes e jogado em uma ravina. Como não retornou a Blackleith, acreditou-se perdido definitivamente para o mundo; rezou-se por ele uma missa de funerais e se chorou sua morte durante toda uma quinzena. Comentou-se que seu cavalo havia retornado sem cavaleiro e Nicholas fez saber que o tinha procurado sem êxito.

— E era ele mesmo quem o tinha feito desaparecer — murmurou um homem. Todos no salão assentiram.

— Isso explica suas cicatrizes — observou Elizabeth em voz baixa. Sua irmã não respondeu. Como Ruari fez uma pausa, a menina se aproximou da beira

da escada, desejosa de escutar a continuação do relato. Notou que Vivienne escutava com a mesma atenção, embora não parecia tão

horrorizada pela história. Acaso já a conhecia? — Mas não pode ter morrido! —rugiu alguém, para respirar ao narrador. — Se fosse

assim já se teria acabado o conto. Ruari meneou a cabeça. — Erik esteve às portas da morte, certamente, mas ao fim lhe sorriu a fortuna. Um

vizinho poderoso achou Erik durante uma caçada, poucos dias depois de ter assistido a seus funerais. Ao reconhecê-lo pensou lhe brindar um enterro digno. Imaginem sua surpresa quando o suposto cadáver começou a falar!

Os presentes riram, mas Vivienne não. Elizabeth viu que pregava repetidamente o tecido de sua saia, sem ter consciência desse gesto nervoso, e compreendeu que sua irmã tinha entregue o coração ao pobre Erik.

— Através desse vizinho, Erik soube o que acontecia em sua morada, que achava assaltado por bandidos na estrada, que se tinha celebrado uma missa de funerais em sua honra. Mesmo assim lhe custava acreditar que seu irmão tivesse organizado tal engano. Por fim o vizinho, que era o conde de Sutherland, prometeu lhe demonstrar a verdade de quanto dizia, ofereceu fazer uma visita a sua casa e levá-lo secretamente consigo, a fim de que pudesse ver tudo com seus próprios olhos.

Elizabeth ficou de pé e estreitou a mão de Vivienne. Sua irmã tinha os dedos gelados, mas lhe devolveu o gesto, embora sem olhá-la.

— Assim se fez, embora Erik estivesse seguro de que o conde devia estar equivocado. Depois de tudo, sempre se havia dito que Sutherland era muito suspeito. Não obstante pôde comprovar que, tal como o conde afirmava, Nicholas se fazia chamar laird do Blackleith. Tampouco se contentava tendo roubado a autoridade ao primogênito, também insistia em que as filhas de seu irmão eram de sua própria semente.

— Não! — bramou alguém. — Sim! — assegurou Ruari. — Nicholas dizia haver-se visto obrigado a cumprir os

deveres maritais em seu lugar, pois Erik era incapaz de fazê-lo. Ninguém teria acreditado que era por falta de desejo de unir-se a Beatrice, pois a dama era de uma beleza incomparável.

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— E o que disse ela? —perguntou um homem. O narrador deu de ombros. — Ninguém sabe, pois da bela e leal esposa do Erik não havia sinais. O conde opinava

que a tinham matado por tratar de defender a seu marido. No fim de contas, Nicholas afirmava havê-la seduzido em lugar de seu legítimo marido, coisa que devia ser um constrangimento para ela. Desta vez Erik deu crédito às suspeitas de Sutherland, embora na verdade chorasse por sua leal esposa.

— Uma traição como essa não pode ficar sem castigo! —gritou outro. O público, completamente de parte de Erik, começava a grunhir, descontente. — Mas o pai deve ter protestado — replicou um. Ruari meneou a cabeça, entristecido. — Enfeitiçado pelo pico de ouro de Nicholas, o pai renegou Erik. Disse que seu

primogênito envergonhava o ventre que o tinha gerado. E se retirou ao leito, trêmulo, deixando Nicholas como senhor indiscutido do Blackleith.

— Requererá-se uma verdadeira façanha para dar um final feliz a este conto — sussurrou Elizabeth.

— Com efeito — concordou sua irmã. — Mas o que passou então? —impacientava-se já um dos homens. Ruari levantou a cabeça; com as mãos estendidas, prosseguiu seu relato com voz

audaz. — As feridas de Erik demoraram muito tempo em curar; apostaria a que algumas não

cicatrizaram nunca: ficou coxo e desfigurado. Uma vez reposto estudou suas possibilidades. Podia abandonar sua pátria para sempre e ganhar a vida como mercenário em algum país longínquo, mas o medo por suas filhas fez que preferisse manter-se perto. Entretanto, era pouco o que podia fazer por si só e não tinha homens aos que pudesse convocar. Seu irmão tinha fortificado Blackleith. Entre quem teria podido ajudar ao Erik, muito poucos sabiam que ainda vivia.

Quando já me desesperava para ter algum êxito, a caprichosa Fortuna voltou a lhe sorrir, como costuma acontecer. O conde de Sutherland, que não gostava de intervir nas rixas entre seus vizinhos, também detestava deixar uma injustiça sem castigo, por isso lhe ofereceu um trato. Desde a visita a Blackleith estava quase tão aflito como o mesmo Erik, pois se interessava muito pela estabilidade e heranças claras. Freqüentemente assegurava que as filhas causam grandes pesares; acredito que lhe preocupava que a origem dos Sinclair se reduzisse a duas meninas. Previa distúrbios e queria evitá-los, ao mesmo tempo em que resolvia o problema atual. Portanto, o conde de Sutherland prometeu a Erik Sinclair que, se podia gerar um filho varão sobre cuja paternidade não coubesse dúvidas, ele não se limitaria a defender a esse herdeiro, mas sim reuniria um exército para arrebatar a fortaleza de Blackleith das mãos de Nicholas.

— E Erik aceitou — sussurrou Elizabeth.

— O que outra coisa podia fazer? —murmurou sua irmã. As duas mantinham as mãos entrelaçadas com tanto vigor que tinham os nódulos brancos.

— E assim Erik procurou à única donzela de toda a Cristandade que tinha sabido reconhecer a seu irmão pela víbora que era, a única que tinha visto o negro fundo de seu

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coração ao primeiro olhar, a única que poderia não só lhe dar o herdeiro necessitado, mas também brindar a esse filho a inteligência que necessitaria para sobreviver e triunfar.

Elizabeth olhou a Vivienne. Bem sabia quem era essa mulher.

— O que fará? — perguntou-lhe.

Sua irmã meneou a cabeça. — É preciso que escape esta mesma noite, antes que Alexander o condene. —

Lançou uma breve olhada à menina. — Rogo que não me traia. A mera idéia fez que Elizabeth revirasse os olhos. — Certamente que não! Mas o que fará? Vivienne a olhou nos olhos. — Pensei que nossa única oportunidade é escapar pelas cavernas. — Pensa ir com ele. — Prometi-lhe esse filho. Jurei fazer o possível para conceber. Fizemos um trato de

concubinato por um ano e um dia. Meu lugar é ao seu lado. Elizabeth se apressou a abraçá-la, pois percebia nessas poucas palavras todos os

matizes não expressos. Esse gesto podia acabar mal, pois as possibilidades estavam contra Erik Sinclair. Assustava-a imaginar a sua irmã no meio de tudo aquilo, mas achava capaz de mudar o resultado final. E ela queria fazer sua parte.

— Convencerei a Darg de que nos guie através das cavernas. Com sua ajuda obteremos que escapem.

— Faria por mim? — É claro! — Mas Alexander se zangará com você, sem dúvida. Elizabeth descartou essa preocupação com um gesto. — Ultimamente Alexander faz sempre das suas. Eu adorarei aproveitar a

oportunidade para lhe arruinar sequer um plano. Darg lançou um grito ao cair através do buraco que havia roído no lenço e se afundou

na cerveja com um chapinhar. Ao ouvir seu gorgogeio, Elizabeth lançou uma maldição e afundou a mão pelo buraco para segurá-la pelas calças. Depois lhe deu uma boa sacudida. Darg tossiu com entusiasmo. Depois deixou escapar um arroto perfumado de cerveja.

— A imortalidade não melhorou seu miolo — asseverou a menina, enquanto lhe dava nas costas umas palmadas mais enérgicas do que era estritamente necessário. — Esta noite precisaremos de sua ajuda. Deveria se manter bastante sóbria para nos dar isso.

A spriggan abriu astutamente um olho; logo, em vez de fazer comentários, endireitou-se farejando o ar, faminta como um galgo em caçada, e seu sorriso se tornou malicioso.

— Quem roubou retoma com uma tormenta, gasta por uma luxúria avarenta. —E começou a estalar a língua como se não pudesse conter seu regozijo; entre gargalhadas, rodou de costas, esperneando no ar.

Elizabeth, que não achava sentido a seu bate-papo, perdeu a paciência. Era claro que a spriggan se embriagara no pior momento.

— Basta já de Rosamunde — disse, desgostada. — Disse-lhe mil vezes que não retornará. Só lhe peço que nos guie esta noite pelas cavernas.

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Darg olhou a um lado e a outro, murmurando para si mesma, sem dar resposta. A menina olhou a Vivienne, que a observava com cautela.

— Sinto muito, mas é impossível saber o que Darg fará esta noite. — Pois então terá que fazer o que possa replicou sua irmã, com estranha decisão. —

Não teremos nenhuma oportunidade melhor que esta e não me atrevo a sacrificá-la. Embora isso significasse sacrificar-se ela mesma, a isso equivalia, exatamente, a decisão de Vivienne.

"Isso é amor", disse-se Elizabeth. E ficou emocionada ao descobrir. Era justo que essa noite obtivessem triunfo.

Vivienne se adiantou pouco a pouco para espiar da borda da parede, ao pé da escada. Viu que Ruari dava de ombros e começava a passear lentamente pelo salão, como se estivesse imerso em profundos pensamentos. Todos guardavam silêncio, esperando a continuação do relato.

— Conta, conta! — gritou um homem audaz, entre a multidão. — Conte-nos como recuperou tudo o que tinha perdido!

Os homens fizeram soar suas jarras contra a mesa, entre rugidos de entusiasmo; muitos golpeavam o chão com os pés. Alexander e Tynan intercambiaram um sorriso; era claro que o jovem estava muito agradado com sua idéia de contratar por essa noite o narrador. Sua complacência não duraria muito. Ruari se ergueu com um suspiro e deixou que seu olhar percorresse aos presentes, como se o que fosse dizer lhe inspirasse medo.

— Tomara pudesse contar isso, mas o atrevido plano do conde ficou em um nada. A donzela escolhida traiu Erik, como o tinham feito todos ao longo de sua vida. E ele morreu anônimo, esquecido e sem vingança, em uma miserável masmorra. Quanto ao destino que correram suas filhas, não me atrevo a imaginar.

Quem estava no salão olhou para o narrador, incrédulos, durante um longo silencio. Vivienne ficou de pé; sabia que o conto tinha sido destinado aos seus ouvidos, que só ela tinha a faculdade de lhe mudar o final. Erik necessitava dela.

— Não! — gritou um homem. — Isso não é justo! — Não, não! — somou outro. — Não pode ter morrido sem completar sua missão! Alexander ficou de pé e ergueu as mãos, com intenção de acalmar aos presentes.

— Sugiro-lhe, ancião — disse-, que procure um final melhor para seu conto.

Mas Ruari se ergueu com orgulho. — Relatei a história tal como aconteceu — disse. — É o único final que conheço,

posto que essa é a verdade. — Isso não é um conto! — bradou um homem. E arrojou vigorosamente sua jarra contra Ruari. Ele agachou a cabeça e o recipiente

se espatifou contra a mesa principal; imediatamente lhe seguiu outro. No salão explodiu uma tempestade. A louça se fazia em pedacinhos contra o chão. Uma onda de homens descontentes e rugindo se lançou para o impenitente narrador. Tynan pedia ordem a vozes, sem resultado algum; Alexander gritava, consternado. Vivienne soube imediatamente o que devia fazer.

— Agora! — indicou a sua irmã. E as duas jovens se jogaram no caos que era o salão de Ravensmuir. Vivienne

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desembainhou a adaga de Erik, enquanto rezava por não ter que utilizá-la contra seus próprios familiares.

— Traz Darg! — ordenou a Elizabeth.

— Corre diante de nós, usando cabeças e ombros como se fossem as pedras de um vau — respondeu a menina. Terei que esquivar a baixela que voava pelo ar e pôr cuidado para não escorregar com a cerveja derrubada no chão de pedra. Ao lançar-se para a porta que conduzia às masmorras, Vivienne chocou violentamente com um homem.

Era Ruari, com um volumoso costal carregado ao ombro. Ele a olhou com severidade. Depois disse, com um suspiro: — Não há por tento mais temível que as atenções de uma mulher bela; isso é algo

que todo homem oportuno sabe certamente. — Quero auxiliá-lo – assegurou ela, pensando que o servidor se referia ao Beatrice.

— Minha irmã ajudará a escapar. Ele pôs expressão de ceticismo e afastou o olhar. Logo a empurrou rudemente para

afastar a da trajetória dos dois homens travados em combate. Imediatamente lhe pediu desculpas e estendeu a mão para receber a adaga de Erik.

— Já provocou suficientes dificuldades, menina. Permita-me ao menos que salve a vida desse moço.

— Você não pode lhe dar um herdeiro. — Nem convencer ao guardião para que lhes entregue a chave — interpôs Elizabeth.

— Necessita de nós. Ruari entreabriu os olhos e moveu os lábios em um estranho silêncio. — Esta minha irmã, Elizabeth, tem o dom de ver as fadas, incluída a que nos tirará do

Ravensmuir por um passadiço oculto. —Vivienne desejava de todo coração que assim fosse. O ancião refletiu por um breve instante, aflita a expressão. — Feiticeiros! —murmurou. — Toda uma família de feiticeiros. —Depois de jogar um

olhar para trás, onde a desordem continuava, abriu repentinamente a porta de madeira e lhes fez uma reverência, com elegância de cortesão. — Depois de vocês, minhas senhoras — disse, como se tivesse sido idéia sua, desde o princípio, que as jovens lhe unissem.

Vivienne desceu precipitadamente os degraus, com as saias recolhidas. Quando o homem encarregado de custodiar ao Erik levantou a vista de seu posto, ela se fingiu encantada.

— Hamish! Que alegria, achá-lo aqui! — Milady Vivienne! Milady Elizabeth! O que acontece no salão? —Hamish era um

veterano de muitas batalhas, magro e musculoso, de cabelo prateado e rosto sulcado pelas rugas da experiência. Apesar de seus anos, seria um adversário formidável. Estava impaciente para participar da trifulca. — Parece que estamos sitiados.

— Com efeito! —exclamou a menina. — O combate é terrível! Ao carcereiro lhe brilharam os olhos com a perspectiva.

— Tio Tynan necessita de todos seus homens para defender Ravensmuir —

acrescentou Vivienne. — Sim, já ouço o alvoroço, mas não posso abandonar meu posto. —O soldado deu

um olhar lúgubre à porta da cela. — O homem que ataca a uma dama da família de meu

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laird não pode escapar da justiça. — Amém, amém — grunhiu Ruari. — Eu vigiarei o prisioneiro por você. — Por certo! —afirmou Vivienne. — Ali acima, Hamish, necessitam de sua espada! O homem deu um olhar suspeito ao forasteiro. — E este quem é?

— OH, mas se já conhece Ruari. —Elizabeth indicou a Ruari com um gesto indiferente. Vivienne notou, com prazer, que sua irmã era mais hábil que ela para as mentiras. — Faz ao menos duas semanas que está a serviço de Alexander. —E a mocinha se inclinou para Hamish para lhe sussurrar: — Claro que a sua idade não se pode exigir muita audácia, embora sim tenacidade, compreende?

O veterano assentiu, sem afastar o olhar daquele desconhecido. Vivienne completou a história:

— Alexander lhe encomendou me custodiar. É leal. Pode lhe confiar a chave da masmorra. Não haverá ser vivente que a arranque da mão. Hamish jogou um olhar ofegante para a escada, mas logo meneou a cabeça.

— Deveria aguardar a ordem de meu senhor. Ruari lançou uma risada breve. — Até eu, velho como sou, posso cuidar de que um prisioneiro não escape de uma

fortaleza tão formidável como esta. —Deu uma olhada para cima. — E o laird não poderá vir lhe dar suas ordens, meu amigo. Necessita de todos seus aliados!

Acima soou um uivo ao que seguiu um estrondo ressonante. Em perfeita sincronização, Tynan rugiu para pedir ordem.

Hamish se apressou a desatar a chave de seu cinturão e a estendeu para o forasteiro. — Cuida de não se deixar enganar. O outro assentiu: — Estou habituado ao bico de ouro do Nicholas Sinclair e às maldades que pode

desatar. Vá tranqüilo, que não me deixarei burlar. O soldado correu escada acima, mas se

deteve o chegar à porta. — Jure também que defenderá a Lady Vivienne e a Lady Elizabeth. Ruad fez um gesto decidido: — Nunca uma mulher confiada a minha custódia sofreu dano algum. —E

desembainhou seu próprio aço, para demonstrar que estava preparado. — Comigo as senhoras estão a salvo. E correm menos perigo aqui que no salão. Vá, homem, vá em auxílio do laird!

Por um momento os homens se sustentaram o olhar. Logo Hamish irrompeu no salão, lançando um grito de batalha. A grosa porta se fechou atrás dele, em tão acima entrincheiravam as espadas.

— Por fim! —Vivienne ia agarrar a chave para correr em ajuda do Erik, mas o ancião sacudiu a cabeça.

— Deixem que eu abra. Talvez as coisas não sejam como esperam. Ela deixou cair a mão, temerosa. — Está Darg conosco? —sussurrou.

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Elizabeth ergueu o olhar a um rincão e fez um gesto afirmativo. Ruari embainhou silenciosamente sua espada; depois, com os olhos semicerrados,

introduziu a chave de bronze em sua fechadura. Do outro lado da porta não se ouvia ruído algum; era mau presságio, por certo. Talvez tivessem golpeado ao Erik até deixá-lo inconsciente.

Talvez tivesse morrido. Vivienne cruzou com força as mãos e orou silenciosamente. Elizabeth se aproximou um pouco mais, com os olhos muito abertos. Girou a chave. Ruari lhe jogou um olhar solene. Como Vivienne tinha indicado com um gesto que estava preparada para o pior, o ancião começou a abrir aquela pesada porta. As dobradiças chiaram seu protesto. De repente a porta voou vigorosamente para trás e Ruari caiu de costas, lançando um grito. Erik saltou do interior. Em um abrir e fechar de olhos o criado estava estendido no chão, com seu senhor em cima e suas mãos lhe rodeando o pescoço.

— Não! —gritou Vivienne, esquecendo por um momento que podiam ouvi-la de cima.

— Não! —somou-se Elizabeth. Como se estivesse surdo às vozes das irmãs, o prisioneiro apertou mais. Ruari ficou

vermenlho, meio estrangulado. — Idiota! —Vivienne puxou um forte chute à perna de seu amante. — Está matando

ao Ruari! Viemos ajudá-lo! Erik piscou repetidamente, em um esforço por adaptar a vista à súbita luz. Ao jogar-

se da cela mal tinha podido ver algo mais que uma silhueta no vão da porta. Estava disposto a lutar para sair de Ravensmuir. Como tinha a certeza de que essa porta só se abriria para dar passagem a alguém encarregado de conduzi-lo a um destino horroroso, preparou-se para matar a esse mensageiro.

O que não esperava era ouvir os gritos de uma mulher, muito menos que ela o chutasse com força selvagem. Ela lhe montou nas costas para agarrá-lo pelo pescoço. O osso de seu antebraço lhe apertava a garganta, impedindo a passagem do ar.

Ele aplicou mais força aos dedos, decidido a completar o que tinha começado enquanto o fosse possível. O aposento se escurecia em redor e a cabeça lhe palpitava cada vez mais. De repente ouviu o nome de Ruari, pronunciado a gritos junto a seu ouvido. Certamente, esse rosto que avermelhava entre suas mãos lhe era familiar. Erik não tinha imaginado que alguém pudesse ajudá-lo a escapar. Não esperava, na verdade, que Ruari tentasse sequer entrar em Ravensmuir, muito menos que procurasse a oportunidade de liberá-lo tão oportunamente. As possibilidades pareciam estar contra intervenção tão fortuita. Não obstante, ali estava Ruari, boqueando em busca de ar.

— Ruari! —Abriu as mãos e o ancião inspirou uma baforada, trêmulo. Erik o ajudou a endireitar-se e lhe deu tapinhas nas costas, enquanto o servidor recuperava trabalhosamente a respiração. Tossiu e cuspiu, engasgado, esfregando o pescoço. Logo dirigiu a Erik um olhar carrancudo, que por certo estava bem justificado. Quem se afastava nesse momento de suas costas era Vivienne, contra todo prognóstico. Vivienne, que lhe tinha impedido de cometer um engano lamentável.

O olhar que lhe jogou era se acaso, ainda mais carrancuda que de Ruari. Parecia incrível que ela tivesse assegurado sua fuga; não obstante, seus chutes tinham deixado uma

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forte dor na tíbia, prova de que ela não era um produto de sua imaginação. E seu corpo respondeu imediatamente a essa presença. Os olhos da moça cintilavam

e o cabelo estava despenteando; assim, com as faces coradas, parecia muito apetecível. Que feitiçaria era a sua, capaz de despertar tal lascívia com sua mera proximidade? Ele não teria querido outra coisa que carregá-la ao ombro e levá-la para possuí-la uma e outra vez, para saborear cem vezes cada porção de sua carne. Mas por que vinha agora em seu auxílio? Erik jogou em redor um olhar suspicaz, pensando que ela devia descarregar mais penas sobre sua cabeça.

Na sala de espera da masmorra havia só quatro pessoas. A quarta era uma mocinha de cabelo escuro, bastante parecida com Vivienne para ser parente dela. Não parecia representar uma ameaça contra sua vida, mas isso nunca se sabe. Desviou um olhar cauteloso para Vivienne; seu coração deu um salto ao comprovar que ela o olhava fixamente. Seus lábios carnudos estavam apertados em um gesto de desaprovação; inspirou profundamente, com o que a curva de seus seios esticou a blusa.

— Que estupidez é esta de atacar quem vem lhe resgatar? —acusou ela, depreciativa. Mas lhe tremia a voz. Sem dúvida tinha temido que ele obtivesse seu propósito. Na verdade, Erik tinha estado muito perto de ferir seu único companheiro confiável.

— Como se atreve a estrangular a este homem tão leal, que vem em seu socorro? —continuou ela. — Terá que ser muito idiota para evitar que o salve!

Para isso não havia réplica possível. Erik não disse nada. Certamente, o vigor com que seu corpo respondia à presença de Vivienne era quase entristecedor. Deu um passo atrás para afastar-se dela e lhe voltou às costas. Continuava muito consciente de sua presença, mas essa atitude bem podia insultá-la.

— Agradeço o recebimento — disse Ruari, resmungão. — Se esta é a bem-vinda que me dá quando se alegra de ver-me, será melhor que nunca o deixe ofendido, filho.

— Sinto muito. Pensei que entrava para me conduzir à morte. — Já sei o que pensou filho, mas poderia ter olhado melhor antes de saltar. —Ruari

estremeceu e voltou a tossir, exagerando o espetáculo de sua recuperação mais do que se justificava.

A outra donzela deu uns tapinhas solidários nas costas. Era bastante bonita, jovem e abundante em curvas. Ruari, esse velho malandro, quase florescia ao receber seus cuidados.

— Ah, têm o coração mais terno com que possa contar um cristão — arrulhou. — Poderia me esfregar um pouco as costas, menina? Ninguém lhe disse que têm mão de curadora? Bem sei eu, que descendo de uma longa e excelsa estirpe de curadores. E lhe digo que em seu contato se percebe o dom...

— Um sábio me ensinou que o tempo é muito importante quando quer agarrar por surpresa a uma pessoa — murmurou Erik, certo de que Ruari reconheceria o conselho de William Sinclair.

O criado o ignorou. — Ali, menina. Um pouco mais à esquerda, neste ombro. Ah, sim, não cabe a menor

duvida. Têm dedos de anjo. —E sorriu à donzela, que lhe esfregava as costas com

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redobrado vigor. — Um verdadeiro anjo — suspirou, satisfeito. — De nada servem as desculpas se não se aceitam — observou Vivienne. Erik sentiu que lhe ardia a nuca; sem dúvida o ancião o atormentava

deliberadamente. — Cessei em meu ataque assim que te reconheci Ruari. Repito-lhe: sinto muito. O outro soprou. — É jovem ainda para ter tão má vista, filho. Deveria haver me reconhecido antes. — Deveria recompensar Ruari pelos esforços que tem feito para resgatá-lo –

continuou Vivienne. — Foi muito valente. O ancião parecia pavonear-se com seus louvores. — Já lhe agradeci — replicou Erik, seco-, embora rechace as honras que quereria lhe

outorgar. Já haverá tempo para discutir o assunto, uma vez que estejamos fora de Ravensmuir.

— Isso é muito certo. —Por fim Ruari ficou de pé. — Esta pequena vantagem não durará muito tempo.

Os dois homens apertaram a mão, com um olhar que resolvia tudo.

— O que acontece acima, no salão? —perguntou o cavalheiro. — Parece haver briga. Acaso o laird perdeu a ordem?

Seu criado fez um gesto afirmativo, mas foi Vivienne quem falou a primeira. Aproximou-se de Erik para lhe apoiar uma mão no braço; seu contato lhe disparou um estremecimento traiçoeiro. Cabia esperar que ela o tocasse que tratasse de atrair seus olhares. Sem dúvida conhecia a força de sua carícia, o poder que exercia sobre ele. Na verdade, por suas veias dançava uma chama, a partir daquela porção de pele onde descansavam os dedos da jovem. Ele apenas se atrevia a respirar. Não ousava lhe falar diretamente; não ousava sequer olhá-la, pelo volátil de seu desejo.

— É uma briga, sim — confirmou ela. — Ruari a provocou ao contar sua história. Sua história? Ruari tinha contado sua história? O pânico bateu as asas dentro dele:

um terror que não minguou com a expressão aflita por seu servidor.

— O que significa isto? — Não tinha outra opção, filho. —Então foi Ruari quem se mostrou contrito. Por

única vez na vida, compreendeu que tinha falado em demasia. — Necessitava um conto para que o laird me admitisse em seu salão. Contei o único que conhecia.

— Mas não tinha nenhum direito! —disse Erik em voz baixa. O ancião, ao reconhecer o que pressagiava esse tom, removeu-se com ar inquieto.

— Sei filho, sei, mas foi para bem.

— Que bem tem feito ao despir a alma de um homem diante de um montão de forasteiros e mercenários?

— Foi um relato estupendo — ponderou Elizabeth, como se a fúria de Erik a deixasse indiferente. — Falou de você, de Nicholas e Beatrice, do engano de seu irmão, de suas filhas e...

O cavalheiro não precisou saber mais. — Em nome de Deus! O que fez? — bradou quase arrependido de não ter

completado seu assalto anterior. — Poderia ter contado qualquer lenda! Não tinha por que

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escolher minha história! Não pode ventilar minhas coisas com qualquer um! — Mas... — Não tem direito a contar minha história. E sabe tão bem como eu — continuou

Erik. — É meu assunto! Ruad o olhou com firmeza. — É teu assunto, é verdade, mas ao contá-lo libertei-o da prisão e o salvei da morte

ou a mutilação— grunhiu. O jovem compreendeu que seu companheiro se sentia insultado, mas se sentia tão

nu como se tivessem arrancado as vestimentas. Sua história era só sua; só ele podia compartilhá-la ou não, conforme quisesse. E agora lhe tinham roubado a possibilidade de escolher. Agora Vivienne e toda sua família sabiam que não tinha propriedade alguma, que o tinham tachado de cornudo e privado de sua herança, que seu nome nada valia. Agora não só era um coxo desfigurado: Vivienne sabia também que seu pai o tinha deserdado que tinham surrupiado a suas filhas, que até sua faculdade de gerar vida estava posta em dúvida. Uma coisa era que ela o enfeitiçasse com seus encantos; outra muito distinta, perder diante de seus olhos toda a dignidade.

Mas agora compreendia por que acudia ela em sua ajuda, depois de havê-lo traído. Era por compaixão, só por isso. E Erik não queria essa ajuda; se devia à compaixão, não.

Enquanto o jovem se enfurecia, Ruari alisou ostentosamente o casaco enrugado. — Pareceu-me muito adequado utilizar essa história, é certo. Mas se não estar de

acordo podemos encerrá-lo novamente nesta cela e cuidar de que esta chave não apareça nunca mais. —Agitou a peça de bronze sob o nariz de Erik. — É isso o que prefere milord? —perguntou, em tom meloso. — Certamente, não quereria frustrá-lo em seu desejo de morrer pelo capricho de arriscar minha própria vida para salvá-lo.

Erik ergueu uma mão, mas não teve oportunidade de falar. Seu companheiro continuou com seu palavrório, sem mais pausa que a necessária para respirar.

— Não permita Deus que eu, um simples servidor, adote-me a faculdade de supor que preferiria a vida à morte. Que eu, simples escolta, obrigado a auxiliá-lo pela promessa feita a um homem que me jurou vingar-se por toda a eternidade se eu falhasse, não permita Deus...

Sua voz ia aumentando em volume. Vivienne se interpôs entre ambos; em seus olhos fervia algo muito preocupante.

— Antes que Hamish retorne a seu posto, atraído por suas vozes — interrompeu-o, seca.

Como os homens se viraram para olhá-la, ela meneou a cabeça na atitude de quem repreende dois meninos travessos.

— Se provocarem uma distração com o propósito de escapar sem ser vistos, deveriam

ter o bom senso de aproveitar essa distração. O oportuno e razoável de seu argumento apagou o aborrecimento do Erik. — Bem dito, sim senhor — reconheceu Ruari, ficando vermelho outra vez, enquanto

ajustava o cinturão. A jovem se aproximou de um banco que devia servir ao guardião e estendeu a mão

para uma espada que lhe era conhecida.

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— E aqui está seu aço — disse. Erik ficou estupefato ao ver que o entregava. Agora voltava a estar armado. Até

enquanto recebia o peso familiar da espada na mão, ele se perguntou quais eram as intenções da moça. Depois do que tinha feito isso não tinha sentido. Talvez o libertasse para divertir-se. Contavam-se lendas sobre as maldades com que se entretinham os nobres do sul; na verdade essas terras eram estranhas em muitíssimos aspectos. Talvez se avizinhasse um desafio ainda maior e nem à própria Vivienne parecia justo que ele o enfrentasse desarmado. Embora Erik não desse muito crédito a esses rumores, a perspectiva o intranqüilizou profundamente.

Era claro que as irmãs não compartilhavam seus temores; isso não era bom sinal. A mais jovem fez um gesto afirmativo e observou em tom seco:

— Devemos entrar nas cavernas antes que descubram nosso desaparecimento. — Que cavernas? —perguntaram os homens, ao uníssono.

— O labirinto que se estende sob a fortaleza do Ravensmuir — explicou Vivienne. —

Tem muitas entradas ocultas e muitas portas ao longo da costa. É a melhor possibilidade de escapar sem ser vistos.

— Não incumbe às mulheres traçar esse tipo de planos — resmungou Ruari. Obviamente compartilhava o desassossego de seu amo, pois ele também olhou por

cima do ombro. Depois ergueu a vista para o barulho que ainda lhes chegava do salão. Ambos trocaram um olhar de incerteza. Vivienne lhe cravou um olhar zombador.

— E qual seria seu plano para a fuga? Não acredito que possamos cruzar o salão sem que nos descubram, pois Erik é muito alto e já foi exibido como prisioneiro de meu tio.

O ancião se ruborizou; por uma vez não teve nada que dizer. — Mas como nos orientaremos ali, se na verdade é um labirinto? —perguntou Erik,

sem incomodar-se em dissimular seu ceticismo.

— Seguiremos a spriggan, naturalmente — disse Elizabeth.

— O que é isso? —interpelou Ruari, quase gritando. Depois fez o sinal da cruz vigorosamente.

— As spriggans são fadas — explicou Vivienne. — Bem sei o que são as spriggans — replicou o homem, acalorado-, embora delas

não se pode esperar nada bom. — aproximou-se um pouco mais de seu amo. — As spriggans são mais travessas que a maioria das fadas, e já é muito dizer. Diz-se que podem trocar de forma a vontade; podem tornar-se grandes como uma casa e terroríficas como uma tempestade em alto mar. — Baixou a voz. — Se requer um feiticeiro muito temível para dominar um ser tão maligno.

E fez o sinal da cruz dê novo. Vivienne descartou sua advertência. — Esta spriggan, que se chama Darg, não é tão temível como dizem. Por desgraça

Elizabeth é a única que pode vê-la, mas aceitou nos ajudar. — Esta menina domina a spriggan? —estranhou Ruari, sem dissimular seu assombro.

E contemplou à irmã menor com renovada desconfiança. — Você mesmo disse que tem mão de curadora — recordou Erik. O ancião empalideceu. O cavalheiro, por sua parte, não dava nenhum crédito à

existência dessa fada. Apertou com mais força o punho de sua espada, plenamente

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convencido de que o conduziam para uma armadilha. Não lhe importava. Agora que estava fora da cela e novamente armado, era capaz de lutar contra qualquer um. Se triunfasse nesse desafio se veria fora de Ravensmuir, isso era evidente. O engano dos Lammergeier era não compreender o muito que ele necessitava desse triunfo.

Capítulo Onze As irmãs pareciam ignorar as preocupações dos homens. Ambas viraram ao mesmo

tempo para retirar do caminho tochas da parede, tão à vontade entre fadas e labirintos que Erik acabou de convencer-se de que tudo era uma mentira.

— Por aqui — disse Elizabeth, apoiando uma mão na pedra lavrada do muro oposto. A tocha que ela tinha retirado deixava ver uma sombra que se inclinou sob seu contato. Na pedra se abriu uma abertura, em que as irmãs colocaram a mão para forçar a abertura de uma porta.

Vivienne jogou um olhar a Erik, com os olhos acesos pela firmeza e alguma outra emoção que provocou saltos desmandados no coração do jovem. Ele se disse que essa reação de seu corpo era natural, pois a moça era formosa e ele já conhecia a profundidade de sua paixão. Mesmo assim, rogou que o preço dessa fuga não fosse um triunfo sobre essa beleza em particular. A luz das chamas dourava sua cabeleira de cor castanha avermelhada e lhe acariciava a face, dando-lhe um aspecto majestoso e superior a tudo o que Erik podia aspirar. Ao apreciar sua vitalidade sentia um nó na garganta; o brilho audaz de seus olhos lhe provocava desejo de levá-la novamente ao leito.

Por um momento perigoso, ao encontrar os olhares de ambos, não lhe importou que essa mulher descendesse de ladrões e traficantes de relíquias. Nem sequer que o tivesse condenado ao cativeiro e a tortura. Só viu que pisava sem temor a soleira de uma escuridão aterradora. Sua bravura não nascia da estupidez, pois em seu olhar era visível a inteligência, coisa que o induzia a admirar ainda mais sua audácia.

E por esse momento poderoso, enquanto o tempo se mantinha detido, Erik Sinclair só soube que desejava estar novamente com Vivienne, portanto ou tão pouco tempo como fosse possível, pois todo instante passado em sua companhia bem valeria qualquer preço que devesse pagar.

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Tal era, sem dúvida, a verdadeira ameaça de Vivienne, essa descendente de feiticeiros, de pecaminoso atrativo. Embora o tivesse traído, sem que mediasse uma só palavra de explicação ou de desculpa, ele estava disposto a esquecer o que sabia e a confiar novamente nela ou, quando menos, a lhe fazer outra vez amor. Seu corpo agia contra seu próprio bom senso e o desejo o induziria a enganos.

Ele bem sabia que não devia deixar-se seduzir com tanta facilidade. Obrigou-se a adotar uma expressão carrancuda para resistir à Vivienne. Depois de agarrar uma tocha, passou a seu lado como se não lhe estivesse esperando, como se não houvesse espera alguma em seus olhos, como se o aroma de sua carne não lhe espremesse as entranhas. Ao ver que por seu rosto passava a sombra do desencanto, reprimiu a sensação de ser um vadio.

Não confiava em Vivienne; não se atrevia a isso. Ela o tinha resgatado só para conduzi-lo a um perigo ainda maior. Ao final o abandonaria em um labirinto, para que vagasse por ele até morrer de fome e sede. Não podia esperar a salvação de uma fada que só era visível para uma das irmãs.

— Bem poderia ser uma armadilha, filho, mas suponho que não temos outra opção — murmurou Ruari, sem saber que expressava os pensamentos de Erik. Um súbito estrondo no salão, ali acima, fez-lhe inclinar a cabeça a um lado. — Não podíamos cruzar esse salão sem que nos vissem.

O jovem ergueu a espada com um gesto de assentimento. — Só cabe escolher o caminho que pareça menos horrendo e confiar em que o

resultado seja o melhor — replicou, enquanto cruzava a soleira de pedra. Para surpresa sua, havia ali degraus cortados na rocha; conduziam para baixo. Uma

baforada de ar marinho lhe acariciou as narinas; então sentiu crescer a esperança de que, na verdade, poderia escapar de Ravensmuir. Bastou isso para que entrasse na escuridão a grandes passos, depois da flama dançarina que era a tocha da Elizabeth.

Igual a sua irmã mais nova, Vivienne teria preferido manter-se fora dessas cavernas. A diferença dela, não confiava muito em que a spriggan Darg as conduzisse à saída do labirinto. Não se atrevia a expressar seus temores, pois tanto Ruari como Erik se mostravam tão céticos, mas ao entrar nesse lugar gelado seu coração deu um salto de medo. O lugar era muito escuro. As tochas piscantes não chegavam a arrojar luz em seu interminável negrume nem o calor das chamas bastava para dispersar o frio que emanava da rocha.

Vivienne sabia que esse caminho tinha um milhar de ramais, um milhar de corredores falsos, mais de mil becos sem saída. A rede tinha sido esculpida em parte pela natureza, em parte expandida por homens que procuravam lugares onde esconder-se. Era como uma colméia; a moça tinha a convicção de que havia depósitos de ossos, restos de quem nunca tinha podido achar a saída das cavernas. Era de esperar que eles não se adicionassem a este grupo.

— Deveriam fechar a porta — disse Elizabeth em tom autoritário, assinalando a abertura, que tinha ficado de par em par. Como Ruari era o último em cruzar a soleira, fez o sinal da cruz e murmurando visivelmente uma oração, estendeu uma mão para obedecer a ordem. A grande pedra voltou audívelmente a seu lugar e a masmorra desapareceu atrás dela.

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Vivienne engoliu em seco, pois as sombras se tornavam ainda mais intensas e o ar parecia mais frio que um momento antes. As tochas piscaram ao uníssono ao mover o ar; logo voltaram a afirmar-se. Ela ouviu o assobio do vento e o estrondo do mar. Recordou então que se avizinhava uma tormenta, embora ali se sentisse mais a sua mercê que entre os altos muros de Ravensmuir.

— Há corrente de ar — observou Erik. Suas palavras despertaram ecos em redor. — Cheira a mar.

Na verdade, as chamas de todas as tochas pareciam desviar-se agora para a masmorra. Vivienne inalou profundamente, aliviada por essa prova de que em algum lugar, ali abaixo, havia uma abertura. Bastava achá-la.

— Por aqui! —disse Elizabeth, com uma confiança que Vivienne não compartilhava. E se lançou para baixo, pelos largos degraus de pedra lavrada. Desapareceu logo, pois a encosta se curvava de maneira tortuosa, embora a luz de sua tocha continuava servindo de guia aos outros. Não havia corrimão; Só se podia apoiar-se na parede de rocha. E os degraus não estavam nivelados nem tinham a mesma altura. De vez em quando, um fio de água descia pelo muro e caía em algum atoleiro invisível, muito mais abaixo. As sombras se tornavam mais ominosas a cada passo; a luz das tochas mal conseguia manter a distância seus segredos. Cada vez que a um lado ou outro do caminho se via uma abertura, Vivienne se perguntava que ameaças espreitariam atrás.

Teria sido fácil tropeçar, mas ela não pediu ajuda a nenhum dos homens. Talvez, eles estavam até mais preocupados. Ruari repetia o padre-nosso em murmúrios; o som resultava mais tranqüilizador do que Vivienne teria querido reconhecer. Erik se mantinha tenso como um arco preparado para disparar, mas não dizia nada. Continuavam descendo sempre, envoltos pelo frio da terra. Erik segurava a espada tão em alto como a tocha; os homens se detinham ante cada abertura antes de passar. Ambos vigiavam os arredores, como se também eles esperassem alguma surpresa desagradável. Vivienne percebia a desconfiança de Erik, mas não desejava discutir com ele diante dos outros.

Além disso, sabia que um só ato seria mais efetivo que qualquer juramento para recuperar sua confiança. Se o ajudasse a sair do Ravensmuir lhe seria mais fácil lhe explicar sua inocência.

— Em nome de Deus, para que quer alguém ter semelhante toca debaixo de sua fortaleza? –inquiriu Ruari, por fim.

— Por muitos anos minha família se dedicou ao tráfico de relíquias religiosas — explicou Vivienne, muito consciente de que não eram antecedentes recomendáveis. — Quem iniciou nesse comércio foi meu bisavô, que construiu Ravensmuir. Dizem que escolheu este lugar pelas cavernas naturais que existiam e logo as ampliou até as transformar em um labirinto.

— Escolheu-o ou o roubou? — Foi a suave pergunta do Erik. Vivienne se ruborizou com seu tom condenatório. Provavelmente não havia homem

honrado que encontrasse mérito algum na história de sua família e nas origens de sua riqueza.

— Roubou-o, sem dúvida — assegurou Ruari. — Sempre se falou dos Lammergeier e

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suas vergonhosas atividades. Este tipo de cavernas seriam muito úteis para uma família que precisasse esconder seu butim e dissimular atos tenebrosos. —Soprou. — Um homem honesto não as necessitaria.

— Consideram-no desonesto? —Perguntou Vivienne, muito consciente de quão turva era a história de sua família, mas mesmo assim desejosa de proteger seu sobrenome. — É claro que esta noite têm necessidade delas.

Os homens intercambiaram um olhar, mas não responderam. Ela continuou com seu relato, pois ansiava encher esse silêncio opressivo.

— Meu avô, que não tinha desejo algum de continuar com esse tráfico, utilizava seu navio para comercializar com tecidos. Trazia da Arábia seda e panos de ouro, e também gema que todos desejavam nas cortes de reis e barões.

— Isso explica a estranha riqueza de sua família — murmurou o ancião. — Embora no fundo não deixa de haver conseguido de má maneira.

— Por alguns anos, o irmão de meu avô continuou traficando secretamente com relíquias, antes de abandonar a atividade —prosseguiu Vivienne, sem prestar atenção a esses comentários.

— Como pôde fazê-lo em segredo? —perguntou Ruari. Então já tinham alcançado Elizabeth, quem vacilava entre as duas opções que lhe

oferecia uma bifurcação do caminho. Ao fim fez um gesto afirmativo e partiu para a direita, novamente para baixo; a barra de sua saia voava atrás dela.

— No labirinto havia muitas curvas e Gawain os conhecia todos — disse Vivienne, enquanto rogava que sua irmã tivesse escolhido o rumo correto. — Entrava aqui sem que seu irmão soubesse e pegava dos depósitos tudo que desejava. Até depois de que ele abandonasse o tráfico Ficaram muitas relíquias, tantas que as últimas se leiloaram apenas este ano.

Foi Elizabeth quem continuou com o relato: — Foram leiloadas porque nosso tio Tynan, que agora é o laird de Ravensmuir,

decidiu desfazer-se finalmente delas, pois eram motivo de disputa entre ele e alguém de sua família.

— Que tipo de disputas? —perguntou Ruari, quem obviamente estava tão desejoso de prolongar a conversa como Vivienne.

— Suponho que seu parente quereria ficar com as relíquias, posto que ainda na atualidade têm muito valor —arriscou Erik, carrancudo.

— Com efeito, isso era o que sua prima queria — confirmou a moça. — Sua prima? —repetiram os homens, ao uníssono. — Nossa tia Rosamunde continuou com os negócios familiares, pois Gawain, seu pai

adotivo, a tinha ensinado muito bem. Ruari assobiou entre dentes. — Uma mulher, traficante de relíquias religiosas. Deve ter sido intrépida. — É. —Vivienne franziu o sobrecenho. — Sempre a chamamos "tia", embora na

verdade não tem vínculos de sangue com nenhum de nós. Abandonaram-na quando era bebê e Gawain, o irmão de meu avô, adotou-a. Ele e sua esposa a criaram como se fora sua própria filha.

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— O mesmo irmão que continuava com o tráfico de relíquias? —perguntou Ruari.

Ela assentiu, embora sentisse o peso do silêncio desaprovador de Erik. Sabia que sua família não tinha uma história respeitável. Como contraste sentia o peso da adaga hereditária dos Sinclair, ainda escondida sob seu cinturão; sem dúvida eles teriam um passado mais ilustre e valente.

— O mesmo.

— E Rosamunde é a pessoa a quem Darg odeia mais que a ninguém — contribuiu Elizabeth. Ao ver que Ruari fazia expressão de confusão esclareceu – a spriggan. Darg chegou a pensar que esse depósito de relíquias abandonadas era seu próprio tesouro; cada vez que Rosamunde vinha levar algo, a fada se considerava assaltada. Está decidida a vingar-se, embora lhe dissesse cem vezes que nossa tia não retornará jamais a Ravensmuir.

— Devido a essa disputa com o laird. —O ancião assentiu lúgubremente. — Ao leiloar as relíquias ele acabou com os roubos de sua prima. Verdadeiramente concordo com seu tio; que homem pode tolerar tanta infâmia em sua própria casa?

Vivienne mordeu a língua. Embora a história não terminasse ali, continuar seria uma indiscrição; além disso, se falava das prolongadas relações íntimas de Tynan e Rosamunde, não melhoraria a opinião que Erik tinha sobre a moral de sua família. Em troca perguntou a Elizabeth:

— Não deveríamos estar já subindo? Vamos aos estábulos, não é verdade? Não é possível continuar descendo sem chegar à caverna grande que sai ao mar.

— Ou ao mar em si — acrescentou Ruari, sombrio. — É o que disse à Darg — disse a menina. Logo voltou a levantar a vista e inalou

profundamente. — Que depressa anda esta noite! Ficaremos sem fôlego antes de chegar ao destino.

— Isto não tem sentido — disse Erik, detendo-se. — Se continuamos descendo acabaremos no mar.

— Ou apanhados em qualquer lugar quando subir a maré — murmurou seu criado, ao

mesmo tempo em que se detinha junto a ele. Vivienne os olhou com alarme. — Não tinha pensado nisso. — Acredito que sua irmã não conhece o caminho — advertiu Erik, com os olhos

carregados de acusação. — Não — admitiu ela-, mas a fada conhece bem o labirinto. Ele arqueou uma sobrancelha.

— Se é que essa fada existe. —Era claro que não acreditava. Fez uma pausa para olhar

em redor, observando os cinco ou seis portais que se abriam ao corredor naquele setor. — Sugiro que nos dividamos em grupos para procurar um atalho que vá para cima.

— Boa idéia! —aprovou Ruari. — Mas se nos separamos nos perderemos — replicou Vivienne, repetindo o que lhe

tinha ensinado toda a vida. Na verdade a aterrorizava a idéia de vagar sozinha por esse labirinto. — Como voltaremos a nos encontrar?

— Darg! —gritou Elizabeth. E sem prestar atenção às aflições de sua irmã, correu escada abaixo, em visível perseguição da spriggan.

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— Ruari e eu procuraremos por nossa conta, enquanto vocês seguem à fada — disse Erik.

Vivienne se esforçava por reprimir o impulso de correr atrás de Elizabeth. — Devemos permanecer unidos — replicou, embora Ruari já ia a uma abertura da

esquerda. — É preciso! — Esta vai — comentou o ancião, e fez um gesto a seu amo. — Qualquer seja a saída

estaremos melhor que antes. Ao fim e ao cabo qualquer lugar será melhor que aquele. —E entrou no corredor, com um chiar de botas contra a pedra. Sua tocha fazia brilhar a rocha.

— Não, Ruari! —exclamou Vivienne. — Devemos nos manter unidos. — Não, já não é necessário — a contradisse Erik, em voz baixa. Seu tom fez que ela o olhasse; ante o pétreo de sua expressão sentiu que lhe partia o

coração. — Querem me abandonar aqui — o acusou. Ao ver que ele não o negava ficou

consternada. — Mas fizemos um trato! E prometi que trataria de lhe dar um herdeiro. — E eu estou cansado de seus enganos. Não só fez que nos seguissem, também

conseguiu que nos achassem ao propor, ontem à noite, que nos detívessemos cedo. — Não foi assim. Estava ferido! Continuar a viagem teria agravado suas feridas. — Diga, pois, como foi que seus parentes nos acharam? — Foi Darg, a fada, quem lhes deu informação. Erik se passou uma mão pelos olhos e afastou a vista. — Não existe tal fada, Vivienne. Possivelmente não procuraram que nos achassem

possivelmente não me mentiu de todo. É possível que sua família nos rastreasse com os cães. Pouco importa. Agora nos separaremos, antes que nos caia em cima a traição que nos preparou sua família, qualquer que seja.

— Que traição? Se acabo de ajudá-los a escapar! — Com que fim? Ela abafou uma exclamação ao ver seu gesto condenatório. — Acaso imaginam que os ajudei a escapar só para jogá-los em um perigo maior?

Crêem por ventura que os traí? Cravou-lhe um olhar frio. — Não é assim? Quando nos rodearam fui capturado e golpeado, tudo porque negou

ter nenhum vínculo comigo. — Não! Menti para que Alexander não o deixasse impossibilitado de gerar outro filho

– explicou Vivienne. Em sua pressa por fazer-se entender, as palavras surgiam atropeladamente. Pela frieza com que ele a olhava era evidente que não se convencia de sua inocência. — Alexander estava tão furioso que o teria emasculado no ato.

— É vingativo, esse seu irmão. — É protetor. —A jovem inspirou para acalmar-se. — Temo que o aflija carregar com

a responsabilidade de quatro virgens.

— Se não me falha a memória, só é responsável por três virgens, embora sua conta parece diferir da minha —indicou ele, em tom duro-, pois jurou a seu irmão que ainda é donzela.

— O que outra coisa podia fazer? Teria preferido que lhe permitisse fazer o pior?

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Erik a observou como se perguntasse se aquilo era verdade. — Diz que cuida de mim, mas não quis casar-se comigo. Aos lábios de Vivienne ascendeu a verdadeira razão de sua negativa, mas nesse

momento não queria falar de amor, posto que ele parecia não lhe ter sequer simpatia. — Porque você preferia um acordo de concubinato — disse em troca, obrigando-se a

falar com calma, como se tivesse deixado persuadir pela simples lógica. Na verdade pensava na bela Beatrice, em como mal sairia da comparação com esse

modelo feminino que tinha defendido os direitos de seu marido até sua própria morte. Como ele não replicou, continuou:

— Seus motivos para preferir o acordo de concubinato são razoáveis, pois se sua

semente não frutifica em meu ventre necessitará de outra donzela. Não quero convocar ao fracasso por lhe exigir que ceda às pretensões de minha família. Não estou disposta a arriscar a suas filhas.

— E o que ganha você em tudo isto? — A possibilidade de ajudar a duas garotinhas. Erik, carrancudo, voltou-lhe abruptamente as costas. Vivienne pensou que a

abandonaria, mas ele se limitou a jogar uma olhada à passagem pelo que Ruari tinha desaparecido. Como se algo o tivesse tranqüilizado, voltou-se a olhá-la com olhos brilhantes. Falou então com mais lentidão; sua atitude condenatória parecia ter perdido vigor.

— Sem dúvida pela manhã teria devido me enfrentar, não já com o simples abuso, a

não ser com um destino mais horroroso, cortesia de sua família.

— Talvez, se eu não o tivesse ajudado a escapar.

Erik a observava com tanta atenção como se tratasse de lhe ler os pensamentos. Vivienne lhe sustentou o olhar sem vacilar, com a esperança de que ele apreciasse a honestidade de suas intenções.

— Talvez esta façanha esteja destinada a proporcionar certa diversão a sua família —

insinuou ele, com voz suave. — Ao fim e ao cabo, neste salão há muito interesse pelos falcões, cavalos e galgos. Pode ser que voltem a me perseguir. —Deu um passo atrás. — Talvez não faça a não ser saltar da frigideira ao fogo.

— Minha família não seria capaz de algo tão horroroso! —exclamou ela. — Como pode estar tão certo de que lhe deseje algum mal?

— Como poderia confiar em você, depois de tudo o que aconteceu? —inquiriu ele por sua vez, erguendo a voz. — Desde que cheguei ao Kinfairlie todo se estragou.

— Estragou-se muito antes. Erik continuou com decisão: — Este plano devia mudar tudo, mas não foi assim. É claro que me equivoquei outra

vez. Posto que a fortuna me ofereça uma possibilidade de sobreviver, tenho intenções de aproveitá-la. Não irei atrás de você e sua irmã. Seria uma loucura sacrificar a escassa vantagem que tenho neste momento. Olharam-se em silêncio, à luz vacilante. Vivienne não sabia o que dizer, mas não podia permitir que ele a abandonasse. Estava segura de que poderia lhe ser útil, que ela era a chave para seu êxito final, pois tinha a sensação de que a associação entre ambos não era simples coincidência. Mas não sabia como convencer a

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esse homem, que tanto duvidava do invisível. — Venha, moço! —rugiu Ruari de certa distância. — Aqui avanço com facilidade e

logo não poderei voltar sobre meus passos para me reunir com você. Já sinto aroma de estábulos, bem pode acreditar!

Erik sustentou o olhar de Vivienne, sem ter alterado sua postura. — Enquanto tenha um hálito de vida, o que compartilhamos seguirá sendo um

segredo entre nós — prometeu, com tanto paixão que lhe acreditou. — Não tema que haja repercussões por algum deslize de minha língua. —Ergueu uma mão antes que ela pudesse dizer algo. — E cuidarei de que Ruari também guarde silêncio. Case bem e confie em que ninguém revelará que já não é donzela.

Adeus, Vivienne. Ela o olhou com fixidez, petrificada de pés a cabeça ao ver que na verdade a

abandonava, consternada até a incredulidade ao escutar o clamor de seu coração. Via-o tão resoluto, tão seguro de poder triunfar só, tão nobre que sabia capaz de morrer na tentativa de salvar a suas filhas.

Compreendeu que, contra toda lógica, tinha entregue seu coração a Erik Sinclair. Embora nunca pudesse conquistar seu afeto, tampouco podia permitir que ele se fosse. O amor (Vivienne Lammergeier sabia) era algo muito estranho e precioso para descartar assim.

E era o amor o que daria, ao fim, a vitória ao Erik. Mas não se atrevia a dizê-lo. Ainda não. Limitou-se a menear a cabeça, dizendo: — Não pode agir assim, Erik. Se separar-se de nós e da Darg não obterão senão se

extraviar. Põe-se em perigo, e a suas filhas com você. Juro que não tenho má intenção

nenhuma. Juro que nada sabia da perseguição de minha família. Só trato de arrumar as coisas.

— Vivienne... — Acompanharia-o, Erik. Trataria ainda de lhe dar um herdeiro. Cumpriria com todas

as promessas que lhe tenho feito. — Mas por quê? Ela não se atreveu a dizer a verdade, tão fresca e frágil. Por isso lhe ofereceu

impulsivamente outra explicação, mais terrestre. Cobriu a distância que os separava com um passo veloz e se esticou para tocá-lo nos

lábios com os seus. Ele não se moveu. Manteve-se tão imóvel que ela temeu ser novamente rechaçada. Sem intimidar-se, deslizou-lhe a mão pela nuca e inclinou a boca contra a dele para beijá-lo com suave ardor, procurando uma resposta.

Erik se deixou beijar sem fazer o menor movimento. Vivienne poderia ter pensado que seus esforços eram inúteis, a não ser porque, ao deslizar a mão por seu pescoço, sentiu o trovejar do pulso sob a palma. Soube então que ele não era tão imune a sua carícia como tentava lhe fazer acreditar. Ele percebia também o vínculo que os unia, embora ainda negasse sua potência.

Tranqüilizada, Vivienne deixou cair sua tocha para lhe encerrar o rosto entre as mãos. Beijou-o uma e outra vez, insistindo-a a unir-se a ela. Ouviu-lhe afogar um gemido e

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percebeu sua ereção. Em vez de cessar com seus beijos, deslizou-lhe a língua entre os lábios e foi recompensada com uma exclamação sufocada.

Então a resistência do homem se desmoronou com assombrosa celeridade. Rodeou-lhe a cintura com um braço para elevá-la contra seu peito; um beijo lhe saqueou a boca com inconfundível ardor, como se quisesse devorá-la inteira. Vivienne respondeu contente, segura de que lhe tinha feito mudar a decisão, de que podia conquistar seu amor. Abruptamente Erik interrompeu o beijo para pôr distância entre ambos e a olhou com os olhos semicerrados.

— A feitiçaria que domina é de um tipo mais comum — disse-, mas mesmo assim não há homem sensato que confie nela. Retorne a tudo o que conhece. Adeus, Vivienne.

Dito isso se virou para ir atrás de seu companheiro, chamando-o. — Ruari! Dê-me indicações para que possa me reunir com você. — Não! —exclamou ela. E se jogou atrás de seu amante. Inspirou profundamente.

Sabia que uma confissão não melhoraria a opinião que Erik tinha dela, mas era a única maneira de impedir que a abandonasse. — Sobre minha regra era mentira — admitiu.

Ele ficou de pedra. Logo se voltou a olhá-la por cima do ombro, com os olhos entrecerrados.

— O que significa isso?

— Menti para deter Alexander. Ainda não é meu turno. Faz mais de duas semanas que não sangro. Não pode me abandonar. Neste momento sua semente poderia estar arraigando em meu ventre.

Erik lançou uma maldição e seu cenho se obscureceu. Vivienne conteve o fôlego, pois era claro que ele não acreditava de todo, embora a possibilidade o tentasse. Antes que pudesse responder se ouviu um grito da Elizabeth, muito mais abaixo.

— Darg! —ouviram-na gritar logo, com aparente angustia. — Não, Darg, não! Houve um ruído de chapinhar ressonante. Vivienne ficou congelada pelo terror.

Gritou uma mulher. — Elizabeth! —exclamou ela. Não houve resposta. Apenas um segundo depois se ouviu uma terminante maldição de Ruari. Sua

exclamação ressoou por todo o passadiço que tinha seguido. Houve um estrondo, como se alguém tivesse caído, e um ruído de pedras que caíam. O vento que subia aquela escada cobrou uma força súbita e apagou a tocha de Erik, com tanta facilidade como se alguém tivesse apagado uma vela com um sopro.

Vivienne ficou envolta na escuridão, sem saber onde estava, muito menos onde podia achar a seus companheiros.

— Erik? —sussurrou, com a boca seca de medo. Ouvia-o respirar, mas ele não respondia. E isso não pressagiava nada de bom.

***** Essa mulher nublava seu cérebro. Erik não se atreveu a ficar muito tempo junto a

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Vivienne, pois era capaz de persuadi-lo do que quisesse com extrema facilidade. Estava decidido a abandoná-la até que ela admitiu ter mentido sobre sua regra. Já não sabia qual era a verdade: se menstruava ou não, se mentia a ele ou tinha mentido a seu irmão. Mas não se atrevia a deixá-la se havia uma possibilidade de que estivesse gerando a seu filho.

Ao menos isso foi o que ele se disse. A verdade era que não podia voltar as costas a essa mulher. Mesmo que pensasse o pior dela, seus beijos lhe queimavam a alma. Quando ela o beijava com um abandono tão embriagador ele já não sabia distinguir a verdade da fábula. Possivelmente mentia só para obter que lhe obedecesse. Erik percebia agudamente a presença da dama, ali atrás; mais ainda quando ela sussurrou seu nome. Um tremor de medo, nada habitual em sua voz, fez que ele se girasse para lhe estender a mão. Ao vê-la tão audaz, tão resoluta, suspeitou que nela havia um profundo temor a deixar entrever sua debilidade.

— Vivienne? —respondeu, estendendo a mão para onde devia estar ela. Ouviu que dava um passo para ele; ouviu sua inspiração trêmula; logo os dedos da jovem se chocaram contra os seus.

— Detesto estas cavernas — disse Vivienne, tratando de dissimular seu medo com uma risada que só serviu para fazê-lo mais evidente. Sua bravata fez que Erik entrecruzasse protetoramente os dedos aos seus e a atraísse ao seu lado.

-Às escuras ou à luz, dá no mesmo— disse. — Seguimos estando em uma caverna por debaixo da fortaleza.

— Parece muito pior — disse ela. Inesperadamente apoiou a face contra seu peito. — Por favor, Erik não me deixe sozinha nesta escuridão.

Rodeou-lhe a cintura com um braço sem deter-se para analisar a prudência desse impulso. Nessa escuridão lúgubre seus outros sentidos se aguçaram. Percebia o aroma doce de sua pele e o sabor azedo de seu terror. A cabeleira lhe curvava contra o braço e enredava aos dedos como seda fina; a curva de um seio se apertava contra seu peito. Sentiu seu alento contra o pescoço e soube que ela tinha jogado a cabeça para trás; devia ter os lábios entreabertos. E soube que não rechaçaria seu beijo. Mas esse era um caminho infestado de tentações. Certamente, teria sido um momento perfeito para executar algum plano contra ele. Até tinha baixado a espada e já não prestava atenção aos ruídos circundantes.

— Não — disse com decisão, afastando-a um pouco de seu lado. — Isto não muda nada.

— Mas... — Ruari! —bradou, antes que ela pudesse argumentar. Não houve mais resposta que um grunhido apagado. Acaso alguém tinha atacado ao

ancião? Teria caído? — Não vi um degrau, filho — gritou Ruari, com voz trêmula. — E ao rodar deixei cair

essa condenada tocha. É como se estivesse cego: pior ainda, cego e coxo. Erik suspirou de alívio. — Já vou, Ruari — gritou. Logo acrescentou algumas palavras para fazê-lo sorrir: —

Já pode acreditar.

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A brusca risada do servidor ressoou no corredor de rocha. — Adeus — disse Erik, embora não podia distinguir a silhueta da dama. Só ouvia sua respiração, embora ela não voltou a aproximar-se e outra emoção tingia

o ar, porém: algo que não era medo; talvez aborrecimento. Contra sua própria vontade, não pôde deixar as coisas assim.

— Já não se opõe que me parta — observou. — Significa isso que está de acordo com minha decisão?

— Não — replicou ela, com aspereza. — Significa que não esbanjarei o fôlego tratando de fazê-lo entender a verdade. Minha mãe nos aconselhava não suplicar nunca a um homem pelo que nos era devido. Teria perdido já o desejo dele, com tanta facilidade? Erik ficou estupefato com a perspectiva e, na verdade, um pouco desencantado. Para maior surpresa sua Vivienne exalou algo que parecia risada.

— Não lhe ocorra pensar que se livrou de mim, Erik Sinclair — disse, com estranha firmeza. — Embora me abandone aqui, seguirei-o. Ao fim e ao cabo sei aonde vão e qual é seu objetivo. Erik teria querido vê-la; sem dúvida tinha o queixo erguido e os olhos acesos pela decisão. Haveria rubor em suas faces e uma careta em seus lábios que o desafiaria a discutir e, ao mesmo tempo, exigiria um beijo. Ele a tinha classificado bem: era uma verdadeira valquiria; talvez cometesse uma loucura ao opor-se com tanta veemência a que ela se apropriasse de sua alma. Ou possivelmente o vigor dessa moça era um elemento mais de seu inelutável enfeitiço. Mais abaixo soou outro grito; a isso seguiu um chapinhar que dissimulou a palavra murmurada por Erik.

— Já vou, Elizabeth — gritou Vivienne, embora ele percebeu que sua voz tremia. Ouviu-lhe roçar com as mãos o muro de pedra e soube que pensava procurar o caminho experimentando. Quaisquer que fossem suas convicções com respeito aos objetivos da dama, não podia permitir que essa mulher, com seu temor à escuridão, procurasse sozinha a sua irmã. Disse-se que não fazia a não ser lhe devolver o favor: ajudaria-a a reunir-se com a Elizabeth tal como ela o tinha ajudado a escapar da masmorra. Tinha sentido, embora ele mesmo soubesse que não era a totalidade de seus motivos. Simplesmente, não queria separar-se ainda de Vivienne.

— Logo virei por ti, Ruari — gritou. Primeiro procuraria a menina, para deixar Vivienne em companhia de sua irmã e essa suposta fada guia. Depois localizaria a Ruari e, depois de atender suas lesões, ambos continuariam a marcha. Erik estendeu uma mão para agarrar a de Vivienne, com a esperança de não cair presa de algum plano que ela tivesse armado com sua família.

— Apalpem o muro da direita, que eu o farei com o da esquerda — pediu a jovem, silenciosa e provavelmente estupefata. — Juntos procuraremos cada degrau. Não se apresse, para que possamos descer sem incidentes.

O plano, como tantos dos seus, parecia oferecer um êxito fácil. Isso e a presença do Vivienne teriam devido lhe advertir que não faltariam complicações. Vivienne ouviu um chapinhar na distante profundidade, em frente; o som ressonou nas cavernas com atordoante rapidez. Detrás dele se ouviam sussurros que bem podiam ser vozes.

— Elizabeth? —chamou. Sua própria voz levantou ecos selvagens. Não houve resposta; só se repetiu esse grito abafado.

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Vivienne jamais poderia perdoar-se se a menina sofresse alguma fatalidade, muito menos depois de havê-la persuadido para que a ajudasse. Apressou-se a apertar o passo tanto como pôde. Para seu alívio, Erik parecia experimentar a mesma urgência. Em poucos segundos ela teve que se apressar para manter-se ao mesmo tempo daquelas passadas. Ele descia cada lance de escadas de um só passo, enquanto que ela necessitava dois ou três; partia na escuridão com uma segurança que a moça não compartilhava. Quando chegaram a uma confluência de passadiços, ele não vacilou ao escolher.

Haver-se-ia dito que estavam sós no labirinto, pois só se ouvia o eco de suas pegadas e esse longínquo gotejar de água. Vivienne percebia vagamente o bater do mar. Embora soubesse que o som era enganoso nas cavernas, que também sua irmã e Ruari estavam no labirinto, o silêncio de ambos os era tal que aferrou com mais força a mão de Erik. Felizmente, essa pressão nervosa não pareceu incomodar a seu companheiro. Movia-se com uma segurança invejável, como se estivesse bem habituado a perder-se em lugares escuros. Chegaram a uma segunda intercessão; por uma das aberturas chegava uma brisa que cheirava a salitre. Vivienne percebeu também o aroma de uma tocha apagada, embora não chegava a distinguir sua origem.

— Por aqui — disse Erik sem vacilar, incentivando-a para continuar audazmente para diante.

— Como sabe? E se estiver equivocado? —perguntou ela, consciente de que, por sua parte, teria esbanjado momentos preciosos sopesando cada possibilidade.

— Em cada cruzamento há uma só via para baixo — explicou ele. — Sua irmã escolhia sempre o caminho descendente.

— Seguia a Darg — corrigiu Vivienne. E ouviu o grunhido incrédulo de Sinclair.

— Seu cheiro vem também dali, como o aroma da tocha apagada — acrescentou ele, em tom paciente.

— Não o sente? — Que cheiro tem ela? Percebeu que ele dava de ombros. — Não posso defini-lo. Um aroma quente, de pessoa, diferente do da rocha e a água

que nos rodeiam. Vivienne se perguntou que classe de cheiro teria ela. Acharia-o Erik tão atraente

como o era para ela o aroma de sua pele? Não se atreveu a perguntá-lo, posto que ele mantinha uma atitude tão carrancuda.

— Sabe, pois, como perseguir a alguém embora não deixe rastros de seu passo.

— Todos os homens e todas as mulheres deixam algum rastro a seu passo, mesmo

que se esforcem em não fazê-lo — assegurou Erik. — Ruari me ensinou a distingui-lo. — E utilizou essa habilidade para o achar. Erik lhe apertou subitamente a mão para detê-la abruptamente. Não precisava lhe

recomendar silencio. Vivienne permaneceu imóvel, perguntando-se o que teria percebido, pois o sentia

quase arrepiado em uma atitude vigilante. Ela não via nada. Não ouvia nada.

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Tentava farejar a sua irmã, mas fracassou. O que sim cheirava era o perfume de Rosamunde. Nunca tinha conhecido uma

essência tão tentadora, salvo em presença de sua tia: era exótica e estranha. Notou que Erik dava um pulo de surpresa ao captar uma baforada. Vivienne aguçou o ouvido; imediatamente distinguiu o leve grunhido de uns homens que trabalhavam, carregados, e um ruído surdo de botas contra a pedra.

Ouviu-se outro grito, mais furioso que assustado, e ela adivinhou quem o tinha emitido.

Nesse momento compreendeu tudo à perfeição: os sons que chegavam de baixo e a insistência do Darg em descer ainda mais.

— Tia Rosamunde! —sussurrou a Erik, emocionada. — É seu perfume. Parece ter retornado a Ravensmuir, depois de tudo.

— Possivelmente não seja sua tia — observou ele, em voz baixa.

— Tem que ser ela. São muito poucos os que conhecem o labirinto e ainda menos os que ousam visitá-lo.

— Disso não podemos estar certos. Se o labirinto tiver ficado fora de uso, qualquer curioso poderia havê-lo explorado.

— Mas por quê? — Já seria suficiente motivo o de achar a maneira de entrar em um torreão onde se

guardam riquezas. — Erik falava com tom sombrio. — Sua irmã poderia ter sido capturada a fim de pedir resgate ao laird.

O medo paralisou por um instante o coração de Vivienne; logo soube que ele estava equivocado.

— Mas e esse perfume? —Tratou de atirar do Erik para diante. — É Rosamunde, simplesmente.

Devemos estar perto da caverna grande, onde se guardavam tantas relíquias. Em uma oportunidade a visitei com tio Tynan. Dali, por um passadiço facilmente transitável, chega-se a uma gruta aberta ao mar. É bastante grande para esconder um bote pequeno, a fim de transladar mercadorias da caverna a um navio.

Erik se manteve em seu lugar, teimoso. — Para que retornaria essa tal Rosamunde a Ravensmuir? Não só jurou não fazê-lo,

mas também as relíquias que cobiça já não estão ali. Isso desconcertou a Vivienne. Em outros tempos teria insinuado que sua tia retornava por amor a Tynan, mas, a

partir do rechaço de seu amante, já não. Sua impressão era que Rosamunde tinha retornado, não para franquear o abismo que os separava, mas para cobrar vingança. Entretanto, não quis pôr voz a um pensamento tão lúgubre. No fim de contas, ele já sabia muito sobre os impulsos ignóbeis de sua família. Era melhor lhe deixar acreditar que a tinha persuadido de que não era sua tia.

— Possivelmente tenha razão — disse vacilante. — Mesmo assim, devemos procurar a Elizabeth — replicou ele. E ergueu a espada para continuar avançando, embora com maior sigilo. Vivienne o

seguia, sempre para baixo, e obedecia a suas instruções, rogando, contra toda esperança, que sua família não lhe proporcionasse outro crédito para o escândalo. Não obstante, algo

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lhe dizia que seus rogos seriam inúteis.

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Capítulo Doze Com Vivienne junto a seus calcanhares, Erik continuou deslizando caminho abaixo.

Ao virar em uma curva apareceu uma luz que lhes facilitou a marcha. Também os sons de atividade se tornaram mais audíveis: o roçar das botas contra a pedra, o rumor grave de vozes masculinas, faziam-se mais claros a cada passo. Ainda se ouvia periodicamente um grito de mulher, o qual era muito preocupante. Erik virou em uma esquina e viu abrir-se ante ele um portal iluminado. Empurrou ao Vivienne contra a parede, atrás de si, e aguçou o ouvido.

Não havia ruídos de perseguição. Jogou um olhar a sua companheira com intenção

de lhe indicar que esperasse, mas lhe bastou ver sua expressão decidida para saber que seria impossível convencê-la. Então desembainhou a espada sem o menor ruído, com um dedo em alto para sossegar o protesto da jovem, e se aproximou um pouco mais para espiar ao outro lado da curva.

Fosse o que fosse aquilo que esperava ver, não era isso. A partir desse portal se abria uma grande caverna, com tantas tochas acesas em suas

paredes que parecia iluminada pelo sol de meio-dia. Pelo chão serpenteava um abismo, cujas bordas trincadas lhe davam o aspecto de uma falha recente. Dentro desse vazio se viam escuros reflexos de água.

Alguém chapinhava e se debatia lá embaixo. — Não sei nadar! —rugiu essa pessoa. Sua voz revelou o sexo, era a mulher que tinha

gritado tantas vezes. A irmã de Vivienne executava uma estranha dança na beira da greta; ora se estirava para auxiliar à mulher, ora parecia rechaçar a um atacante invisível.

— Não, Darg! —exclamou. Obviamente não podia alcançar à mulher que estava na água, por muito que o tentasse.

A mulher caída dentro do abismo se agarrou na beira de pedra e saltou para cima. Com um grunhido, afirmou as mãos na rocha e conseguiu içar-se mais. Já tinha tirado os quadris da água, ensopada até os ossos, quando lançou um súbito grito de dor e afastou a mão esquerda da borda. Assim voltou a cair na água com um sonoro mergulho de cabeça.

— Mordeu-me! —uivou ao aparecer novamente na superfície. Depois lançou uma maldição tão vigorosa que Erik arregalou os olhos. Elizabeth deu um chute a algo que era invisível para ele. Teria pensado que a menina estava louca, a não ser porque ao seu pontapé seguiu outro pequeno chapinhar dentro do abismo, um pouco mais à frente.

— Rosamunde! —gritou Vivienne. E se agachou para passar por debaixo do braço do Erik. Sem que parecesse afligi-la aquela cena estranha, cruzou correndo aquela cova e caiu de joelhos junto a sua irmã. — Você cuida de que Darg não se aproxime e eu socorrerei a tia Rosamunde.

— Já não vejo Darg — se queixou Elizabeth. Erik se absteve de apontar que ninguém

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via essa suposta spriggan. — Ainda deve estar inundada. —Enrugou o sobrecenho, com uma preocupação que ninguém mais compartilhava. — Espero que não se afogue.

— Bem que eu gostaria de afogá-la com minhas próprias mãos — murmurou sua tia, furiosa como um gato molhado, enquanto saía do abismo com ajuda de Vivienne. Erik notou com assombro que vestia roupas masculinas: calças, botas altas e uma camisa que anteriormente teria sido muito mais branca.

O casaco era bastante mais longo que o que usavam tipicamente os homens: chegava-lhe quase aos joelhos. Seu traje tinha aspecto de ter sido fino, pois abundavam os bordados de ouro nas voltas e era feito de pano muito negro. Nesse momento ia deixando grandes atoleiros na pedra do chão e a barra pendia torcida. As botas chiavam ao caminhar, embora o corte e o couro pareciam de boa qualidade. Trazia a cabeleira longa e solta, também molhada e escura.

Com os olhos cintilantes de fúria, virou-se para os homens que trabalhavam com

diligencia atrás dela. Erik viu então que havia várias gavetas de madeira empilhadas no perímetro da câmara: eram velhas, pois a madeira estava manchada e os cantos maltratados, como se não tivessem nenhum valor. Mesmo assim era claro que os estavam retirando dali. Erik se perguntou qual seria seu conteúdo, mas preferiu não fazer perguntas.

A terceira parte daquela habitação estava já completamente vazia. Vários homens cruzavam o portal iluminado do lado oposto carregando gavetas, mas retornavam com as mãos vazias. Por suas roupas pareciam gente de pouca valia, tinham emplastros nos joelhos e o tecido estava puído. Todos tinham os ombros e o cabelo molhados. Isto revelou a Erik que já tinha começado a chover torrencialmente e que esses homens, de algum modo, saíam ao exterior. O coração lhe deu um salto ao compreender que a saída do labirinto estava muito perto. Quem parecia dirigir os esforços era um homem corpulento, que tinha uma argola de ouro pendente de uma orelha, pois observava aos homens com atenção e repreendia aos que diminuíam o passo. A ele se dirigiu Rosamunde, gritando:

— Poderia ter prestado ajuda, Padraig, em vez de se divertir olhando! O homem sorriu.

— Tem muita boa sorte para morrer afogada, Rosamunde. —O sorriso se alargou até converter-se em um gesto maroto. — E não me viria tão mal me liberar de seu comando.

— Para tomar conta de meu navio, sem dúvida — murmurou ela, enquanto escorria seu casaco com óbvia agitação. — Todos os homens são iguais, já se vê, pois não pensam mais que em sua própria vantagem.

Depois olhou para Vivienne, que se mantinha firme, mas que obviamente reunia coragem para responder a suas perguntas.

— E o que faz você nestas cavernas? Não deveria estar sã e salva em sua cama em Kinfairlie?

— Lançou um olhar severo a Elizabeth. — Teria preferido que você tampouco estivesse aqui, se com isso me tivesse economizado a presença desse demônio.

A menina caiu de joelhos, com o olhar fixo na superfície da água. — Isto me preocupa. Darg não reapareceu. Rosamunde grunhiu:

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— Tanto melhor. —Com os braços na cintura, cravou no Vivienne um olhar de aço. —

E bem? — Estamos facilitando a fuga de um prisioneiro — começou a moça. A tia olhou intencionalmente em redor e arqueou uma sobrancelha. — Vejo que o fez muito bem, pois não há sinais dele. Antes que a moça pudesse

chamá-lo, Erik saiu de entre as sombras. Rosamunde o avaliou com um descaramento nada habitual entre mulheres. Mas ele não teve tempo de apresentar-se, pois nesse momento Elizabeth decidiu que não podia esperar mais.

— Darg deve estar em perigo — disse, enquanto tirava o manto e os sapatos. — Acredito que não sabe nadar.

— Darg é imortal! —protestou Vivienne. — Estará-se muito melhor no mundo com uma spriggan vingativa menos nele —

assegurou sua tia,azeda. — Em uma ocasião esteve a ponto de afogar-se em uma jarra de cerveja! —exclamou

a menina, consternada. E saltou ao abismo de água. Rosamunde lançou outra maldição. Depois gritou. Padraig cruzou a cova à carreira,

mas Erik chegou primeiro ao lugar de onde Elizabeth tinha saltado. A menina não ressurgia. Ele deixou cair a espada e o manto; depois saltou atrás dela.

A água estava incrivelmente fria e escura. Erik estremeceu; depois se obrigou a abrir os olhos e viu a menina muito mais abaixo. Saiu à superfície para encher os pulmões de água e mergulhou para ela. Viu então uma longa mecha de algas marinhas que tinha penetrado no abismo. Os movimentos dessa pena escura e da água mesma indicavam que ali se sentia o efeito das marés. Isso significava que o mar estava na verdade perto.

Em um primeiro momento Erik pensou que Elizabeth se enredou nas algas, mas lhe fez gestos agitados. Quando o teve a seu lado guiou as mãos até um nó das fibras. Atônito, Erik apalpou um pequeno membro apanhado em seus cachos. Embora não via mais que o cacho de algas, seus dedos não mentiam. Devia ser Darg. A spriggan parecia estar apanhada.

O fato de que a fada existisse lhe foi tão assombroso que demorou um momento em notá-lo: as resistências da criatura se foram debilitando. Elizabeth puxava, mas a planta era forte e resistia seus esforços. Erik colocou os dedos no cacho e tratou de arrancá-la, sem resultado algum.

Mas a menina levava já muito tempo sob a água. Preocupado acima de tudo por ela, Sinclair a empurrou enfaticamente para a superfície. Ela resistia e lhe impulsionava as mãos para a alga enredada. Ele assentiu com vigor; depois a empurrou novamente para cima.

A mocinha subiu com óbvia relutância; sem dúvida retornaria. Ele mesmo estava ficando sem fôlego e a fibra que rodeava Darg estava terrivelmente presa. Ainda enquanto ele tratava de desprender a alga, a spriggan ficou mole. Ele compreendeu que era preciso libertá-la imediatamente. Sem a ajuda da Elizabeth não poderia achar novamente esse cacho. E queria que a menina ficasse na superfície. Puxou a alga, mas a planta pareceu aferrar a spriggan com um desafio ainda maior, como se ambas liberassem um combate próprio. Ele lutou, lamentando não ter uma faca. O peito lhe estufava dolorosamente. Em um último esforço, antes de ver-se obrigado a emergir, envolveu o punho com as fibras e

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puxou com todas suas forças. Quebrou-se algo mais abaixo. Erik, sem preocupar-se com os detalhes, impulsionou-se para cima com a fada na palma da mão e irrompeu na superfície, ofegante.

Viu com alívio que Elizabeth estava de pé na borda do abismo, molhada e tremendo. Rosamunde a segurava com firmeza; ele adivinhou que lhe tinha proibido voltar a mergulhar. Descobriu que gostava dessa tia que na verdade não era tia, essa mulher que levava uma vida de homem mais protegia a essas moças com a ferocidade de uma galinha. Rosamunde tinha envolvido os ombros de sua sobrinha com um manto e a olhava com expressão severa.

— É uma loucura arriscar a vida por uma criatura tão ingrata — disse. Mas Elizabeth estava surda à censura de sua tia.

— Resgatou-a? —Caiu de joelhos. Quando Erik entregou a spriggan lhe iluminou o rosto.

Sua poderosa aflição fez que ele recordasse o carinho de sua filha maior por um cordeiro que tinha nascido muito pequeno, lá em Blackleith. Mairi estava decidida a salvá-lo, embora sua vontade não pudesse medir-se com a força da natureza. Sem dúvida a menina teria entregado sua própria vida para salvar a do cordeiro. E o teria feito sem pensar duas vezes, tal como Elizabeth pela spriggan. Desde a morte daquele animal tinham passado quatro primaveras; mesmo assim Erik sentia um nó na garganta ao recordar.

— Talvez seja muito tarde — observou. A menina cavou as mãos para embalar a

invisível revoltosa; logo retirou com cuidado as algas. Ao bombear a ela com a ponta de um dedo, na pedra apareceu uma baforada de água negra. Ouviu-se uma tosse diminuta, apenas perceptível, e apareceu outro pouco de água.

Elizabeth sorriu com alívio. — Bem? —inquiriu Rosamunde. — Está viva! —exclamou sua sobrinha. Depois voltou para o Erik os olhos cintilantes.

— Graças a sua ajuda. Agradeço-lhe de todo coração! — Que grande sorte, que essa peste tenha sobrevivido para voltar a me atacar

qualquer outro dia! — Comentou a senhora, seca. Depois fez a Erik uma reverência carregada de sarcasmo. — Eu também lhe agradeço a cortesia que teve. Enquanto isso, Padraig estendeu uma carnuda mão para ajudá-lo a sair do abismo. A expressão de Erik devia ser muito reveladora, pois o marinheiro lhe murmurou:

— Não é o mais estranho que vi na proximidade desta família. Se tiver intenções de freqüentar sua companhia, faria bem em estar preparado para mais coisas como esta. Erik afirmou as mãos na beira e saiu da água sem ajuda, pois não estava seguro de poder confiar nessa gente. Padraig lhe voltou às costas com um grunhido, já porque se sentisse insultado, já porque isso não o surpreendesse. De qualquer modo não lhe importou, pois nesse momento apareceu Vivienne junto a seu cotovelo; brilhava-lhe nos olhos uma mescla de assombro e preocupação.

— Está ferido? — Só molhado — respondeu ele, resmungão, muito consciente do olhar

condenatório do Rosamunde. — E isso não me matará. — A todos faz bem nos banhar sequer uma vez ao ano — comentou Padraig.

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— Obrigado por auxiliar a Darg — acrescentou Elizabeth, radiante; seu gozo fez que

Erik recordasse novamente a sua filha. Angustiava-o, certamente, compreender o muito que tinha perdido. Durante sua

ausência do Blackleith, quantas vezes Mairi se teria enchido de contentamento por algum detalhe ao qual ele não reconhecia importância? Quantos momentos como esse tinha perdido? E Astrid, que mal começava a falar quando ele partiu em auxílio de seu vizinho, agora já saberia conversar e correr; provavelmente tratava de superar a sua irmã mais velha com cada pequena façanha.

— Embora não compartilho o prazer da Elizabeth a esse respeito — disse Rosamunde-, agradeço-lhe que ajudasse a minha sobrinha. Se ela sofresse algum dano estando sob meu cuidado me veria obrigada a dar muitas explicações.

— Não tem importância — assegurou Erik. E lhe voltou as costas, novamente preocupado pelo que a cobiça de seu irmão o tinha feito perder. — Agora que as irmãs estão em boas mãos devo ir em busca de meu companheiro.

A senhora o deteve lhe apoiando um dedo no braço. — Suponho que não foi bem recebido em Ravensmuir, pois minhas mãos pareçam

boas. — Este cavalheiro é Erik Sinclair — interveio Vivienne. — Alexander lhe concedeu

minha mão, mas depois mudou de idéia e o encarcerou. Não obstante, Erik e eu nos demos palavra de concubinato e eu me comprometi a ajudá-lo a recuperar a propriedade que perdeu.

— Ah — disse sua tia, carregando de insinuações esse breve som. Sua expressão se endureceu. — Portanto, devo pensar que ele, a diferença de outros homens que conheço, é merecedor de receber assistência também de mim.

— Não necessito sua assistência — replicou ele imediatamente. — Limitarei-me a me reunir com meu companheiro e continuarei meu caminho.

Rosamunde pareceu receber essa afirmação com ceticismo. — Aonde vão? — A Blackleith, a morada de minha família. — Da qual se apropriou seu hipócrita irmão — acrescentou Vivienne. — Devemos

recuperá-la e assegurar o bem-estar das filhas de Erik. — Como na lenda! —comentou Elizabeth, com os olhos dilatados pelo assombro.

Depois espirrou. Sua irmã lhe rodeou o manto aos ombros. Rosamunde franziu os lábios, sem deixar-se impressionar por esses créditos. — E qual é o porto mais próximo? — Não necessito porto — disse Erik-, pois tenho intenção de viajar a cavalo. A senhora sorriu. — Vejo que não têm cavalo algum. — Subiremos aos estábulos. — Necessitarão de muita sorte para achá-los. E mais ainda para escapar sem ser

vistos — disse Rosamunde, com um braço na cintura. — A última vez que estive na casa, o laird custodiava com estranho esmero seus cavalos de batalha. Empregava para isso a não

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menos de vinte cavalariços e a metade deles devia velar enquanto os outros dormiam. Erik franziu o sobrecenho com esse desagradável detalhe. A mulher continuou: — Não obstante, eu poderia me oferecer a levá-los a bordo de meu navio até seu

destino. — Por quê? O sorriso de Rosamunde foi irônico. — Brindaria-me certa satisfação, sem dúvida, burlar os planos de Alexander, cuja

veneração por Elizabeth é excessiva para meu gosto. — E o laird de Ravensmuir é seu inimigo jurado? —perguntou o cavalheiro, jogando

um olhar significativo às gavetas que ainda estavam retirando das cavernas. Ela riu. — Poderia dizer que ele tem uma dívida para comigo. Ao menos eu acredito assim.

Diga-me qual é seu ponto do destino, posto que a tempestade aumenta. Erik não estava seguro de poder confiar nesse oferecimento. Mas o olhar da mulher

era sereno; além disso, era claro que não era aliada do laird de Ravensmuir, posto que lhe estivesse roubando.

— Sutherland — começou. Antes que dissesse mais, Elizabeth voltou a espirrar. — Sutherland! —Rosamunde lançou uma maldição em voz baixa. — Com o outono

tão perto e essa tormenta em cima, pretende que navegue até Sutherland? Todos os capitães razoáveis se dirigem para o sul; vão ao Roterdam, quando menos, se não a Rochelle ou ao mesmo Mediterrâneo.

— A Sicilia — interpôs Padraig. — Voto pela Sicilia. — Você não tem direito a voto — informou Rosamunde. O sorriso travesso do homem revelou que ele sabia. — Só anseio ter alguma influência — asseverou o marinheiro, com uma mão no

coração. Rosamunde riu, surpreendida. — Pois terá que esperar bastante — disse. Depois tocou repetidamente com um

dedo o ombro de Vivienne. — É uma sorte que seja minha sobrinha favorita — acrescentou com afeto.

— E eu não? —acusou Elizabeth, antes de espirrar outra vez. — Você foi minha sobrinha favorita até que recolheu a esse duende maligno. — Darg é uma spriggan — insistiu a menina, embora com sua dignidade um pouco

comprometida pelos espirros repetidos. — Segundo sua visão das coisas você é uma ladra e ela quer vingar-se.

— Que tolice! —Imediatamente Rosamunde lançou um grito e deu um salto atrás, levando uma mão ao rosto. — Alguém mordeu!

Na verdade, na ponta de seu nariz começava a aparecer, com alarmante rapidez, um machucado vermelho.

— Darg — informou a menina. E acompanhou a informação com um ressonante espirro.

— Diga a essa Darg que me deixe em paz — exigiu sua tia. — Tenho tanto direito

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como ela sobre o tesouro do Ravensmuir. — Ela tem outra visão das coisas. Rosamunde começou a dançar como enlouquecida; parecia estar em meio de um

enxame de abelhas furiosas. — Colocou-se debaixo de minha camisa! —gritou. — Veja se consegue dominar sua

spriggan, Elizabeth! A menina inclinou a cabeça para escutar algo, fez umas quantas perguntas e

finalmente assentiu. Rosamunde se tranqüilizou; embora era claro que o ataque tinha passado, olhou ao

redor com desconfiança.

— Onde está? — Em seu ombro — informou sua sobrinha. — Quer fazer um trato com você.

— OH, não! —protestou a senhora. — Não posso devolver o tesouro. O que levei já

está vendido. E a maior parte do dinheiro obtido já foi gasto. — Fará um trato por uma só jóia, sua favorita. Rosamunde entreabriu os olhos. — Qual?

— O anel de prata que traz na mão esquerda.

Ela levantou a mão. Erik viu que tinha um grande anel no indicador. Embora fosse de prata, era claro que seu valor não se reduzia ao de seu material. As duas irmãs assumiram um ar solene; Padraig ficou de pedra. Era evidente que todos estavam consternados. Essa peça devia ter para o Rosamunde um valor sentimental muito maior que seu considerável preço.

As feições da mulher adoçaram ao contemplar a jóia. — Isto nunca fez parte do tesouro — assegurou. — Não haverá trato, pois sua

spriggan não pode estar afeiçoada com este anel. Elizabeth falou em voz baixa; depois de um novo espirro, meneou a cabeça. — Deseja-o porquê é precioso para você. Parece-lhe adequado exigir algo que você

valoriza em troca do que era valioso para ela. Rosamunde se pôs a rir, embora seu regozijo soasse forçado. — Quem disse que eu aprecio esta bagatela! — assegurou. Entretanto não o tirou do

dedo. As duas irmãs a observavam com simpatia. Ela as olhou a ambas, mas logo mudou de

assunto. Erik se disse que isso não era casual. — Farei essa viagem de loucos a Sutherland, embora não sei quanto demoraremos

em achar ventos favoráveis. Suponho que prefeririam desembarcar no Wick, verdade? —Perguntou a Erik.

Ele deu de ombros. — Conviria-me mais Helmsdale. Embora seja menor, também está mais ao sul. — Prefiro os portos pequenos. —Rosamunde se voltou para Padraig, que tinha

voltado para sua tarefa de fiscalizar aos portadores. Enquanto eles dialogavam a caverna tinha ficado virtualmente vazia.

— Padraig, leva Erik e Vivienne à nau, por favor, e me espere ali.

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— Mas... — protestou a moça. — Devo ir por meu companheiro — aduziu ele —. Serviu-me com lealdade. Não

posso abandoná-lo. — Homem de honra — suspirou Rosamunde, com ar zombador. O jovem não

respondeu, pois não sabia se ela zombava dele ou de si mesma. — É uma pena que não tenha trinta anos mais, Erik Sinclair.

Sem lhe dar tempo de replicar, pôs-se a andar para o passadiço por onde tinha chegado o casal. Como Elizabeth espirrou de novo, a tia a pegou pelo braço e a obrigou a acompanhar seu passo veloz.

— Venha, menina. Necessita de um banho quente. Enquanto esteja sob minha responsabilidade não pegara sequer um resfriado.

— Mas Darg... — Em toda negociação é costume dar tempo a ambas as partes para refletir sobre a

decisão a tomar — assegurou Rosamunde, seca. — Eu demorarei menos que qualquer de vocês em achar ao companheiro de Erik. Como se chama?

— Ruari Macleod. Leva-me facilmente trinta anos — começou o cavalheiro. Mas não pôde dizer mais, pois ela lançou uma forte gargalhada. — Isso já é muito interessante. Veremo-nos breve. Padraig disponha tudo para partir

e cuida de que minha sobrinha não sofra dano algum. Depois pegou uma tocha e partiu com Elizabeth pelo passadiço, embora a moça

voltasse a espirrar vigorosamente. As irmãs ergueram a voz para despedir-se. Depois Padraig deu um tapinha no cotovelo de Erik e indicou o corredor por onde se foram seus homens. Os três partiram para o navio. Vivienne lançou um olhar triunfal a seu amante, como se o incitasse a confiar novamente nela.

— Desta maneira chegaremos a Blackleith em menos tempo — comentou. — Foi uma grande sorte achar Rosamunde aqui, esta noite.

— Não é a boa sorte, a não ser a lua nova o que a trouxe para este porto — corrigiu o marinheiro. — E a perspectiva de apoderar-se de um bom tesouro.

— A lua era nova há quatro noites — objetou Erik. O outro lhe cravou um olhar brilhante. — Ainda é bastante nova. O vento nem sempre faz o que desejamos. Não era só o vento o que podia confundir alguém. Erik lançou um olhar cauteloso a

sua companheira e recordou sua afirmação de que não estava menstruando. Se não mentia, se na verdade estava gerando um filho dele e ele a abandonasse, sua situação mudaria para pior. Consciente de que não podia confiar nos impulsos que despertava, resolveu permanecer a seu lado só até que voltasse a menstruar.

Isso provaria seu verdadeiro estado. Bastava esperar honradamente que a natureza mostrasse o que tinha feito. Ele se faria responsável pelo que já tivesse feito, mas não voltaria a tocar a essa moça. Limitaria-se a esperar e a observar. Ao tomar essa decisão nem sequer a olhou, pois era preferível que ela o acreditasse zangado. Se tinha sangrado duas semanas atrás, passaria outra quinzena antes que voltasse a fazê-lo, a menos que estivesse grávida. Com sorte, se o mar continuasse agitado, demorariam esse tempo em chegar a Sutherland. Então, se ela não estava gerando um filho dele, ele poderia deixá-la sob a

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protetora custódia de sua tia, sem remorso algum. Ou ao menos com tão poucos remorsos que Vivienne não teria por que saber deles. O que esse terceto não sabia, enquanto avançavam pelas cavernas para o bote, era

que não partiam sós. No capuz do Vivienne ia encarapitada uma spriggan; além disso, essa spriggan ia murmurando maldições contra certa mulher. Olhou tristemente em redor, trêmula, enquanto os levavam a remo para o navio que esperava, às escuras. Apressou-se a brincar de correr pela coberta, desceu à adega e, entre risinhos zombeteiros, escondeu-se no único camarote que pôde achar.

Enquanto se aninhava em um capuz forrado de peles, lançou um estalo triunfal. Sabia muito bem quem devia ocupar essa única cabine luxuosa. Agora esperaria a Rosamunde para vingar-se a seu desejo. Darg sabia que, antes que tudo aquilo acabasse, também esse anel de prata seria seu. Quando Rosamunde retornou das cavernas fazia já momento que toda a carga estava a bordo. O bote a levou para a nave por um mar enfurecido. Ela ergueu a mão em um gesto de triunfo e indicou ao Ruari, a quem obviamente tinha achado na caverna.

O criado, pálido como uma terrina de leite, subiu pelo flanco do navio; não obstante, o vento levou qualquer comentário que ele pôde fazer. Agarrava-se a seu saco como se ali carregasse sua salvação.

Erik o ajudou a cruzar a coberta, pois o ancião coxeava pela lesão do tornozelo. Ao que parecia, nenhum dos dois necessitava dos cuidados de Vivienne. Por ordens

de Rosamunde, os três foram enviados à adega, pois acima se estavam formando redemoinhos as nuvens. Até antes que chegassem a esse refúgio, a chuva açoitou a coberta com súbita fúria e as ondas levantaram a nave como se fosse um simples brinquedo.

Vivienne não achava ser a única em temer que a tempestade os despedaçassem contra a costa rochosa. Ao olhar atrás viu Ravensmuir recortado contra as nuvens, uma sombra escura contra o céu detestável. Logo Rosamunde começou a dar ordens gritando. Embora o vento aumentasse, a nave começou a afastar-se da costa. As velas foram içadas depressa e voltas para o vento, com notável esforço. O navio entrou no mar, afastando-se das rochas, embora aos olhos do Vivienne parecesse ir para um perigo maior. Em realidade, o mar e o vento ameaçavam fazer em migalhas e jogar seus ocupantes ao fundo daquelas águas negras e insondáveis.

A jovem se perguntou se seus pais teriam suportado uma tempestade assim antes de

naufragar. Certamente, deviam ter experimentado tanto medo como ela nesse momento. Mas

essa noite não tinha com quem compartilhar seus temores, e muito menos alguém que lhe oferecesse consolo. Erik se envolveu em seu manto para dormir, como se ignorasse até a presença de Vivienne. Ruari ficou em cócoras junto a seu amo, também envolto em seu capote. Pela atenção que esses dois lhe prestavam, pelo interesse que despertava o clima, haveria-se dito que estavam sós em alguma estalagem. Enquanto isso, ela permanecia acordada, atento o ouvido, e se sentia mais só que nunca em todos os dias e noites de sua vida. Passou muito tempo antes que Rosamunde se retirasse à adega, pois o leme requeria essa noite de uma mão firme. E mais tempo ainda antes que alguém notasse que o anel de

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prata ambicionado por Darg já não adornava o dedo da senhora.

***** Já era tarde quando o laird de Ravensmuir subiu a seu quarto. Tynan não gostava da

guerra; menos ainda que a guerra se aproximasse de seus jovens parentes. Desagradava-lhe que houvesse mercenários em seu salão, embora fossem os que empregava seu sobrinho em Kinfairlie. Tampouco gostava que esses mercenários armassem confusão em sua casa, embora só fosse para manifestar seu desagrado por um conto.

Ao menos o narrador tinha tido o bom senso de esfumar-se; em sua ausência o salão se tranqüilizou pouco a pouco. Tynan não se permitiu descansar até que o último dos mercenários ficou adormecido. Permaneceu no salão sorvendo vinho do último tonel dos que havia trazido de Bordeus. E descobriu que lamentava a perda de Rosamunde. Não era consolo algum a tempestade que se avizinhava, a que agora castigava os muros de pedra. Durante as tormentas, ele e Rosamunde costumavam fazer amor com mais paixão que nunca; como resultado, agora subia a escada com uma mescla de esgotamento e nostalgia, escutando o vento que agitava seu estandarte sobre as altas torres de Ravensmuir, escutando o mar que açoitava a costa.

Tão potente era essa noite a presença de Rosamunde que quase parecia vê-la. Não lhe custava visualizar à mulher que se apropriara de seu coração, a da cabeleira vermelho dourado e o sorriso audaz, a dos olhos desafiantes. Uma mulher que não veria nunca mais. Em sua mente a viu beijá-la ponta dos dedos em calada saudação, como se lhe dissesse adeus para sempre, e lhe voltar às costas para fugir, com o pano escuro de seu manto ondulando atrás dela. Tynan entrou em seu quarto com o coração pesaroso. Aproximou uma parte de isca a seu lampião e depois à lenha acumulada no braseiro.

Foi então, enquanto a lenha vaiava e cuspia, quando percebeu o exótico perfume especial de Rosamunde. Deu um pulo e farejou. Esse aroma não era um conjuro de sua memória: era real.

Entretanto era noite fechada. Dentro do torreão não se ouvia ruído algum, salvo o do vento que assobiava entre as pedras. Seu quarto estava frio, raramente esfriava. O coração lhe palpitava como se tivesse percebido a presença de um intruso entre esses muros. Sentiu uma corrente de ar frio.

O aroma vinha cavalgando essa corrente glacial. Não era um perfume vulgar, senão o que assolava seus sonhos. Sua chamada fez que Tynan cruzasse a habitação com o lampião em alto.

Do outro lado do quarto, a porta que conduzia ao labirinto estava aberta. Tynan se deteve olhar, pois estava seguro de havê-la deixado bem fechada. Aquela entrada secreta bocejava ampla e escura, trazendo o aroma do mar entre suas sombras. Uns rastros de pés molhados manchavam o chão. Até enquanto secavam ele reconheceu o tamanho e a forma daquelas impressões de botas.

Rosamunde tinha estado ali. Aquela provocadora verdade o deixou sem fôlego, embora sem dúvida ela já partira. Ao permanecer abaixo tanto tempo, Tynan tinha perdido sua visita. Mas precisava assegurar-se. Não teria podido dizer se a presença da mulher ali

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lhe inspirava regozijo ou irritação. Quando menos se encetariam em uma boa disputa nas cavernas, debaixo de Ravensmuir.

Tinha lhe cedido seis potros de seus próprios estábulos para que não voltasse a cruzar sua soleira.

E apesar de tudo Rosamunde tinha retornado. Nos cantos secretos de seu coração, o laird de Ravensmuir se alegrava. Agarrou

bruscamente o lampião para entrar na escuridão. No degrau do batente estremeceu, como sempre, mas logo desceu decididamente às cavernas. Sob sua propriedade ancestral havia um verdadeiro labirinto, que em outros tempos tinha contido um enorme tesouro de jóias e relíquias religiosas. As mais preciosas tinham sido leiloadas, pois ele não desejava continuar com o que tinha sido a empresa de sua família; quanto ao resto, não achava que merecesse sua atenção. Logo foi evidente que Rosamunde não pensava o mesmo. Tynan se deteve e ergueu seu lampião a fim de examinar uma das câmaras pequenas. Estava vazia, embora ele tinha certeza de que, em sua última passagem por ali, tinha visto ao menos uma vetusta gaveta.

Desceu precipitadamente a escada; suas pegadas se foram acelerando conforme descobria mais recintos vazios. As cavernas abertas sob seu torreão tinham sido saqueadas enquanto ele olhava para outro lado. Ao chegar à caverna maior se deteve, horrorizado. Ali havia antes várias gavetas de conteúdo ignorado e intacto. Seu aspecto não tentava um segundo olhar, pois estavam velhas e quebradas, com a madeira manchada pela água e musgo. Tinha-lhe sido fácil dar crédito à afirmação do Rosamunde, segundo a qual estavam vazias ou pouco menos, e não valia a pena desfazer-se delas.

Talvez devesse pôr mais empenho em fazê-los revistar para verificar que não continham nada valioso. Mas Rosamunde, que conhecia esses recintos melhor que ele, tinha descartado seu conteúdo como lixo sem valor. Ele tinha acreditado nela. Deixou-se enganar. Deixou-se roubar.

Era um idiota. Tynan lançou uma maldição e deu um chute a uma pedra. A ira substituiu à nostalgia. A pedra repicou contra o muro e logo caiu por uma abertura. Ele a ouviu cair por outra escada; depois, um chapinhar. Se tiver existido ali algo de valor, ele teria podido utilizá-lo para assegurar o destino de Ravensmuir naqueles tempos sombrios. Mas já não havia nada.

Voltou a amaldiçoar. Desde a morte de George, condes de March, acontecida no ano anterior, elevaram-se muitas espadas contra a autoridade regional do Archibald Douglas. A morte do Roland, seu meio airmão, foi também inoportuna, pois deixou ao inexperiente Alexander à frente de Kinfairlie, precisamente quando as terras da família enfrentavam o maior dos desafios. Tynan aplicava muito dinheiro e esforço em impedir que a guerra chegasse às portas de Ravensmuir e Kinfairlie, com a esperança de que as duas casas pudessem resistir a tormenta até que a estabilidade se impusesse de novo. Mas a estabilidade demonstrava ser fugidia. O exército que ele empregava para manter longe de suas portas as forças de Douglas, Dunbar e Abernethy custava muito dinheiro.

Tynan, envergonhado, descobriu que sentia falta dos ganhos que proporcionavam aquelas relíquias, até as de procedência duvidosa. Seu tesouro estava quase esgotado e Rosamunde levou a última oportunidade de enchê-lo novamente. Mesmo se ela tivesse

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sabido que a própria Ravensmuir se cambaleava, provavelmente não lhe teria importado. Sempre zombava do afeto que Tynan sentia por isso que ela denominava "montão de pedras velhas"; para o final o tinha acusado de querer mais a Ravensmuir que a ela. Mas essa propriedade era sua responsabilidade e a herança de sua família. Ele tinha sacrificado tudo a essa responsabilidade. E de nada servia. O tratado que ainda tinha sem assinar em seu tesouro, o que o fazia ferver o sangue, convertia seu sacrifício em uma brincadeira. Custaria-lhe o resto do que tanto apreciava.

Muitas vezes Tynan tinha sido um espinho cravado no flanco de Archibald Douglas para que ele quisesse lhe oferecer condições aceitáveis. Segundo os termos do tratado Ravensmuir ficaria em pé, mas Tynan, como laird, perdia toda autoridade. Quando ele protestou contra essas condições, Douglas as piorou. Tynan só poderia reter sua autoridade se tivesse um filho com a esposa que Douglas lhe escolhesse. Mas Tynan tinha renomado herdeiro a seu sobrinho Malcolm, a fim de assegurar a sucessão de Ravensmuir. Pela propriedade estava disposto a casar-se com uma das Douglas, mas de maneira nenhuma privaria a seu sobrinho do legado. Tinha renunciado a Rosamunde sem ganhar nada em troca.

Enquanto amaldiçoava sua própria estupidez, virou-se para retornar a seu quarto. Qualquer soma de dinheiro lhe teria servido para mitigar as condições do trato, mas graças ao Rosamunde já não tinha nada. Nas cavernas reinava o silêncio; a fonte desse perfume feiticeiro se ia apagando a cada segundo. Tynan subiu a escada para seu quarto e fechou a porta secreta. Logo recostou as costas contra ela, com a vista fixa no fogo do braseiro, na comodidade de seu quarto. Foi então que viu o que antes lhe tinha passado despercebido. Dentro do santuário que era seu leito de dossel se via o brilho de um objeto. Parecia uma estrela que girasse cativa nas sombras da cama, mas não podia ser uma estrela.

Carregado de suspeitas, Tynan se aproximou um pouco mais, com o lampião no alto. O objeto chispou para incitá-lo a continuar. Era de prata e redondo; refulgia contra a seda anil.

Era um anel. Mas não um anel qualquer, a não ser o que tinha dado à Rosamunde, que seu pai tinha posto no dedo de sua mãe, que Merlyn tinha entregue a Ysabela como sinal de seu amparo.

Não podia existir outro como esse: de prata, bastante grande para cobrir o nódulo de uma mão de mulher; adornavam-no três estrelas e três nomes, os nomes dos três reis que tinham visitado menino Jesus no Presépio.

Rosamunde sempre o tinha posto no indicador da mão esquerda. Era o único presente que Tynan lhe tinha dado. Não era muito, certamente, o que se podia oferecer a uma dama que percorria os mares e se apropriava das coisas mais elegantes. Mas lhe tinha dado isso, convencido de que ela compreendia o valor de seu gesto. Talvez o compreendesse, sim, pois se tinha arriscado grandemente para devolvê-lo para lhe demonstrar desse modo seu desdém.

Tynan engoliu em seco e recolheu a jóia, deixando que seu considerável peso descansasse na palma de sua mão. Pareceu-lhe que ainda estava morno, embora isso fosse impossível. Só ao sustentá-lo descobriu que pendia suspenso de um longo cabelo vermelho dourado. Sentiu a dor de uma queimadura no coração. Rosamunde lhe devolvia o único

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presente que lhe fizera, em troca do tesouro das cavernas, que lhe tinha proibido tocar. E ao fazê-lo decretava o fim de Ravensmuir.

Como ousava fazer algo assim? E o que outra coisa teria feito? Tynan apertou o anel no punho; em um arrebatamento de fúria, arrancou aquele

cabelo de sua atadura. Depois desceu tempestuosamente à masmorra, levado por uma suspeita. Seu temor resultou acertado, seu prisioneiro, Erik Sinclair, tinha desaparecido. Tynan tinha certeza de que não acharia tampouco a sua sobrinha Vivienne, pois Rosamunde não teria perdido sua capacidade de causar problemas. Rilhou os dentes, cheio de frustração. Isso ia além das represálias; não era uma simples vingança contra ele por suas palavras duras. Era uma provocação que não se podia permitir.

Tynan voltou a pôr o anel no mindinho esquerdo, onde o tinha brilhante durante muitos anos antes de dar de presente à Rosamunde. Fazia várias semanas que não sentia tanta vitalidade.

Porque nem tudo estava resolvido entre eles. Enquanto Rosamunde tivesse as relíquias em seu poder ele teria a possibilidade de recuperá-las. Virtualmente chocou contra Elizabeth, uma presença totalmente inesperada na escada. A mocinha se deteve ao vê-lo, ruborizada, virou-se para correr aos aposentos das mulheres.

— Alto! —rugiu seu tio, em um tom que não permitia desobediência. Ela se deteve, precavida. Tynan a chamou fazendo um gesto com o dedo. — Diga o que aconteceu esta noite no labirinto. Ela abriu a boca para protestar, mas Tynan meneou a cabeça. — Não finja não saber. Se está em pé estas horas não pode ignorar a visita de

Rosamunde. Nos olhos de sua sobrinha favorita se acendeu um desafio muito familiar. — Darg desapareceu. Primeiro devo achá-la. — A spriggan pode cuidar-se sozinha, como tem feito por tantos séculos. —Tynan

fulminou com os olhos Elizabeth, pois conhecia o poder de seu olhar. — Mas você virá imediatamente comigo e me dirá quanto saiba.

Girou para partir para a habitação que utilizava para atender os assuntos do Ravensmuir, certo de que a menina o seguiria. Ouviu atrás de si um suspiro de aborrecimento. Logo se deteve, pois Elizabeth o chamava.

— Não lhe direi sobre Rosamunde — disse. Tynan se virou de repente. Sua sobrinha punha ar de teimosia. — Por quê? — Porque foi cruel com ela. E ela sempre foi bondosa — replicou a mocinha, com

essa atitude direta que começava a ser sua característica. — Ela o ama e você, em sua cólera, excedeu-se. Não posso criticá-la que o tenha burlado. Deve-lhe uma desculpa.

Dito isso, virou com uma ondulação de cabeleira e, depois de meter-se nos aposentos das mulheres, fechou energicamente a porta. Era a primeira vez que desafiava a autoridade de seu tio.

Tynan ficou plantado na porta, abobalhado, enquanto um ferrolho impedia o caminho em sua própria casa, corrido por uma donzela que apenas tinha doze verões. Pior

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ainda, ele sabia que Elizabeth tinha razão.

Capítulo Treze

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Vivienne ainda estava acordada quando Rosamunde desceu à adega, fato que a senhora detectou imediatamente. Chamou por gestos a sua sobrinha para que a seguisse à coberta. Para surpresa de Vivienne, já tinha amanhecido. No porão às escuras tinha perdido a noção do tempo. O céu ainda estava coberto, embora as nuvens tivessem a pátina suave de uma bandeja de estanho e o vento era suave. Havia promessa de chuvaradas, mas no momento não chovia. O mar ainda estava agitado e não se via a silhueta da terra para nenhum lado.

Rosamunde percebeu a inquietação que isso lhe causava. — Durante uma tormenta é preferível manter-se longe das rochas e baixo da costa,

se não se está familiarizado com ela — disse em tom consolador. Logo sorriu com ar melancólico. A jovem notou que tinha olheiras; não cabia surpreender-se, depois de uma noite como a que acabavam de passar, mas a impressionaram as ligeiras linhas de envelhecimento que revelava essa luz no rosto de sua tia. Rosamunde sempre tinha brilhado muito jovem e vital, mas agora Vivienne caía na conta de que devia ter uns trinta verões mais que ela. Os anos pareciam haver posado de súbito em suas feições. A senhora sorriu com tristeza.

— Na verdade, não achava que o vento nos afastasse tanto mar dentro.

— Onde estamos?

— Não sei com certeza — respondeu Rosamunde, com mais despreocupação do que Vivienne achava possível. — O Mar do Norte é vasto. Esta noite, quando virmos as estrelas, poderemos planejar o curso.

A moça ergueu o olhar às nuvens. — E se estiverem cobertas? — Então esperaremos até que apareçam à vista. —A tia lhe dirigiu um olhar

penetrante. — Compreende que é melhor estar longe da costa, não é? — Suponho que tem sentido, sim. Rodeou-lhe os ombros com um braço.

— Ontem à noite deve ter pensado muito em seus pais e em seu lamentável desaparecimento. Deve recordar que conheço os mares melhor que a maioria de quem os navega. Sobrevivi a um milhar de tempestades; algumas, muito piores que as de ontem à noite. E sobreviverei a outro milhar.

O fulgor decidido de seus olhos convenceu Vivienne como nenhuma outra coisa teria podido fazê-lo. Permaneceu no corrimão junto a sua tia, tranqüilizada em seu pesar pelo ritmo das ondulações marinha. Estava exausta, possivelmente mais que Rosamunde.

— Esperava achá-la deitada com o prisioneiro de Tynan — comentou sua tia, ao fim. Ela deu de ombros.

— Talvez eu também esperasse. —Erik a tinha rechaçado e ela não sabia exatamente

por que. Suspeitava uma causa mais profunda que o esgotamento: suspeitava que ainda não

tivesse confiança nela, e se pudesse escolher, a teria deixado em Ravensmuir. Tanto a abatia essa possibilidade que se perguntava se sua empreitada estava

condenada ao fracasso. Já tinha feito a Erik todas as promessas possíveis e lhe havia dito a

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verdade, aparentemente sem resultado algum. Esse homem tinha muitos segredos para que ela pudesse ter certeza de algo.

Seguindo um impulso, tirou a adaga dos Sinclair do cinturão e o ofereceu a sua tia.

— O que pode me dizer da gema que vê aqui? Tem uma inscrição. Rosamunde pegou

a adaga e a fez virar entre as mãos para estudar o punho com atenção; depois a tirou de sua bainha. A pedra parecia concentrar grande parte de seu interesse; fez ela virar à luz, com visível fascinação.

— É sua? —perguntou, embora seu tom indicasse que já tinha chegado a essa conclusão.

— Legado de família. — É claro. —Assinalou a gema. — É uma safira antiga, pois foi esculpida com um

engenho notável, que em nossos tempos não se pode copiar. Viu a inscrição? — ABRAXAS?

— Diz-se que é o nome de Deus, embora haja muitos; o mais conhecido é JHVH, que

significa Jehová. Esta é uma palavra grega; muitos asseguram que é um encantamento protetor. —

Levantou a vista. — As letras gregas que compõem a palavra ABRAXAS somam trezentos e sessenta e cinco; diz-se que isso indica a potência da palavra.

— É o número de dias que há em um ano — observou a sobrinha, pensando em seu trato de concubinato.

Rosamunde voltou a assentir. — E também a quantidade de eons da Divina Criação, de anjos e de ossos que

compõem o corpo humano, conforme se acredita. —Sorriu. — Diz-se que é um número forte; aparece uma e outra vez no mundo que criaram as mãos de Deus. —deu de ombros. — Mas talvez seja simplesmente um número. —Tocou novamente a pedra. — Esta gema foi esculpida faz mil anos, no mínimo, e seu valor tem feito que a engaste uma e outra vez.

— Diz que é mais antiga que a adaga? — Naturalmente. Essa família deve ter tido um pouco de fortuna, posto que pôde

pagar uma gema assim e conservá-la até agora. —Rosamunde sorriu ao observar a refração da luz na pedra. — Além disso, comenta-se que as safiras são gemas nobres, adequadas para reis e rainhas, capazes de romper os grilhões mais resistentes.

Seu sorriso se ampliou ao notar que Vivienne não dizia nada. — É uma pena que ele não a levasse consigo quando o encerraram na masmorra do

Ravensmuir, pois assim não teria necessitado de sua ajuda. A jovem não sorriu. Rosamunde devolveu sua atenção à adaga.

— Também se diz que a safira presenteia grandes gozos a quem a olhe, embora

apostaria que o maior gozo é para quem o possui. —Levantou a vista com expressão avaliadora. — Poderia oferecer um bom preço por esta arma.

Vivienne se mostrou horrorizada. — Não! Não posso vendê-la, pois não me pertence! — Entretanto está em suas mãos. — Erik me entregou isso em custódia, mas mesmo assim é sua, um legado de seu pai. — Ah… — A tia a observou perceptivamente. — Acredita estar apaixonada por esse

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homem – disse visivelmente divertida. A jovem se arrepiou completamente. — Em todo caso, não lhe vejo a graça. Rosamunde meneou a cabeça. Por um momento contemplou o mar, mas logo se

virou para Vivienne e lhe devolveu a adaga. — É muito jovem para estar segura de algo assim. Mas talvez esteja segura

justamente porque é jovem.

— O que quer dizer com isso?

Em vez de responder lhe cravou um olhar penetrante.

— O que deve resolver Vivienne, é se ama a lenda do homem ou sua verdade. Uma pessoa não se reduz a sua história. E nós duas sabemos muito bem que lhe agradam muito as lendas.

— Mas sei diferenciar entre lenda e verdade — assegurou a moça, com certo orgulho. Sua tia não parecia de todo convencida, mas isso não a incomodava. — De qualquer maneira, pouco importa.

— Por quê? — Porque ele está apaixonado por outra. Nesse momento começou a cair uma lenta garoa que envolveu às duas mulheres e à

nave em uma bruma prateada. Fazia frio. Vivienne estremeceu apenas, mas não estava disposta a separar-se ainda de sua tia. Escolheu as palavras com cautela, pois se havia alguém que tivesse a solução para seus males, essa era Rosamunde.

— Conhece algum meio para fazer que um homem ame a uma mulher, Rosamunde? Não há uma maneira de incitá-lo a ver a verdade que tem diante de seus olhos? A mera idéia fez rir a Rosamunde.

— Não há nenhum filtro que obrigue a um homem a amá-la, Vivienne; ao menos não conheço nenhum. Não vê em redor as evidências de minha ignorância? —Abrangeu a nave e sua carga com um gesto de impotência.

— Não ama a vida do mar? — Mais ainda amava a um homem. Como prova desse amor renunciei a tudo o que

era e a tudo o que desejava. —Enquanto falava, a tia ficou muito séria. — Mas meu afeto não foi correspondido. Ele se sentiu obrigado a escolher entre sua propriedade e eu. Para ele foi simples preferir um montão de pedras a qualquer mérito que eu pudesse possuir. Para qualquer um essa mulher seria uma lição de humildade, mas para mim foi mais dura. —Pareceu reparar no desencanto de sua sobrinha, pois lhe pôs uma mão consoladora no ombro. — Não obstante, se quiser que um homem a deseje, isso se consegue com facilidade.

— Como? —Vivienne experimentou uma súbita esperança. Sem dúvida Erik a quereria mais se lhe dava um filho. — Existe uma poção para isso?

Rosamunde sorriu com ar triste. — Não há feitiçarias, Vivienne. Para obter que um homem a deseje só tem que

desejá-lo você. — Deu de ombros. — Que isso a conforme; se o que na verdade deseja é seu amor, isso já é outra questão.

A moça ficou consternada ao ver tão desventurada a sua vibrante tia.

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— Diz Elizabeth que tio Tynan se enfurece quando se menciona seu nome. Ela suspeita que a ama.

O sorriso do Rosamunde se tornou irônico. — Pois então bem estranha é sua maneira de demonstrá-lo. —Depois se virou com

atitude resoluta. — Pode usar minha cabine durante todo este dia e esta noite; eu não poderei me

deitar até ter fixado o curso. Ponha chave na porta e faça o que quiser. —Arrojou-lhe um penetrante olhar por cima do ombro. — Pode ter certeza de que, com Alexander, fingirei ignorar o que tiver feito. Tem idade e inteligência suficientes para decidir por si mesma, posto que seja você quem deve suportar as conseqüências.

Vivienne, sem parar a mente na advertência, limitou-se a lhe agradecer. Estava

segura de que, se desse um filho ao Erik, talvez ganhasse seu afeto. E só havia uma maneira de criar esse filho.

Encontrou Erik com Ruari, que estava vomitando até as entranhas por cima da amurada. O vento se tornou mais frio e a chuva aumentava. O ancião tinha má cara, certamente. Ainda segurava seu saco, embora Vivienne supôs que devia conter apenas um resto de seus pertences. Deteve-se diante deles justo quando o ancião voltava a inclinar-se para o corrimão. Erik apenas lhe dedicou um olhar.

— Sente-se muito mal? —perguntou ela, vendo que deveria ser ela quem iniciasse

qualquer discussão.

— Tanto que ficou em silêncio —respondeu ele, com azedo humor. E deixou que seu

olhar posasse nela, que sorria apenas.

— Sente-se melhor ou pior, Ruari? —perguntou a jovem, preocupada. — A

tempestade amaina e o mar se calma pouco a pouco. — Por muito calmo que esteja é muito para mim — gemeu o criado, agarrado à

amurada. Estava pálido e com a respiração agitada, mas já não parecia tão mal. — Embaixo há queijo, pão e um pouco de cerveja — recordou ela. — Uma parte de

pão poderia melhorar seu estado. A mera perspectiva o fez gemer e tossir de novo, embora fosse muito pouco o que

conseguiu conjurar. — Ultimamente não comeu tanto — observou Erik. — A estas horas já deve estar

vazio. — Agradeço-lhe a brincadeira — replicou Ruari. — Explique a minha barriga, se

puder.

— Seria melhor descer ao porão — propôs o amo. — Agora lhe bastará um balde. E

assim correrá menos perigo de sentir frio e adoecer. — Prefiro estar aqui — disse o ancião, teimoso. — Mas eu não. E não me atrevo a deixá-lo só. Desçamos Ruari. Prometo lhe buscar

um balde que lhe convenha. O outro lhe lançou um olhar sombrio. — Zomba dos males de um pobre velho. — Não, nada disso. Não faço mais que cuidar de você o melhor que posso. Pensa ao

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menos na senhorita. Ela também quererá ficar ao seu lado. Ruari jogou a jovem um olhar enfermo. — Não há necessidade de que estejam aqui — assegurou. Ela sorriu. — Preocupa-me seu bem-estar — disse, com toda franqueza. Notou com prazer que

ao ancião iluminavam as feições. — Nesse caso talvez resolva descer — disse, jogando um último olhar à amurada.

Depois agitou um dedo para o Erik. — O balde tem que ser bem grande. Não quero ser mau hóspede, nem sequer a bordo de um navio.

— Ah, de maneira que Rosamunde o deslumbrou — brincou Erik, para surpresa de Vivienne. — Já dizia eu que uma mulher bem audaz poderia apropriar-se de seu afeto por toda a vida!

Ruari se endireitou com olhos chamejantes. Sem dúvida era o que o cavalheiro procurava.

— Só sinto por Rosamunde um profundo respeito, que merece toda pessoa tão intrépida para enfrentar este clima para ajudar a outra.

— Suspeito que haja mais que isso — insinuou Erik, mansamente. — É um anjo, nada menos! —grunhiu o criado. E se lançou em uma argumentação,

como se estivesse totalmente recomposto. — Veio por mim quando só lhes cuidavam de seus assuntos. Arriscou sua vida e sua integridade física para que eu sobrevivesse. E não sou tão miserável para lhe devolver tanta generosidade me desgraçando no porão de seu navio. Homem, que esta nave está cheia de objetos muito finos! Ouro, seda, relíquias incríveis. Só um vadio mancharia tanta beleza, além de pôr em perigo sua empreitada. —Se já estiver em condições de exortar, bem pode descer — replicou Erik, e o pegou por um cotovelo para cruzar a escorregadia coberta. Vivienne o pegou pelo outro braço. Ruari caminhava com certa instabilidade e em uma ocasião escorregou. Mas a firme mão de Erik sob o cotovelo o impediu de cair. Mesmo assim não dissimulou seu alívio ao agarrar a borda do porão. De repente levantou para Erik os olhos brilhantes, através da chuva.

— Contra tudo o que esperava, paga-me a dívida de seu pai. — Que tolices diz? —perguntou o jovem, amavelmente. — Por mais de quarenta anos lhe servi bem, servi-lhe sem queixa. Mas em seu leito

de morte William Sinclair comentou que nunca tinha tido oportunidade de me pagar essa dívida. Comentou que eu nunca tinha adoecido nem ficado ferido, e assim ele não teve jamais a oportunidade de me oferecer uma cortesia.

Com um suspiro, lançou um olhar melancólico em redor. — Suponho que essa oportunidade se teria apresentado se tivéssemos viajado em

algum navio. Mas ele sempre se manteve perto de Blackleith. —Depois olhou Erik, quase sorridente. — Agradeço filho, que se mostrasse bondoso quando outros me voltaram as costas. É um filho muito digno de seu pai, sem dúvida alguma.

Desceu a escada com lentidão, com passo inseguro. Havia despenteado o cabelo de Vivianne e o vento lhe castigava o rosto. Ao olhar a Erik notou que as palavras do servidor o tinham comovido. Quando lhe indicou por gestos que descesse também, apoiou-lhe uma mão no braço e se inclinou para ele para lhe sussurrar.

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— Rosamunde nos oferece sua cabine para que procuremos criar esse herdeiro. Ele pareceu escandalizar-se. — Contou-lhe isso? Ela ergueu as costas. — Minha tia sabe o que significa reconhecer o mérito de um objetivo alheio. E

concede muita importância à palavra empenhada. Ele afastou a vista; logo voltou a olhá-la. A chuva dava a seu cabelo um matiz loiro

mais escuro. O azul de seus olhos parecia mais vibrante. Ela voltou a perceber sua vitalidade. Estava certa de que sua proposta o tentava, mas não entendia por que vacilava em aceitá-la.

— Não deseja esse filho? — Só lhe peço que reflita no que vai fazer. — Já prometi dedicar um ano e um dia a esse objetivo. Ele continuava observando-a, sem deixar-se persuadir. — Por que me trouxe com você, se não queria vir a meu leito? — Porque talvez seu ventre já tenha um fruto. E enquanto não tenhamos certeza

está sob minha responsabilidade. Não era um sentimento que reconfortasse o coração. Mesmo assim Vivienne não se deixou intimidar, pois aquele olhar tão vivido revelava que ele não se mantinha tão indiferente como aparentava.

Estendeu uma mão para apoiá-la no braço; imediatamente sentiu que ele ficava tenso. Sustentou-lhe o olhar, enquanto riscava com a ponta dos dedos um círculo sobre sua carne. Embora não sabia como seduzir, tentou demonstrar seu entusiasmo com a lenta carícia que ele estava acostumado a empregar para despertar a paixão. Erik engoliu em seco; ela acreditou lhe ouvir rilhar os dentes.

— Não há necessidade disto — disse. — Podemos deixar as coisas tal como estão. Se tiver um filho, farei-me encarregado dele; se não, pode permanecer com sua tia.

— Eu não confiaria só no que já temos feito. —Ela se aproximou mais, até lhe roçar o antebraço com um seio. Ainda tinha a saia molhada e a pele tão fria que lhe tinham contraído os mamilos. Deslizou-lhe os seios pelos fortes músculos do braço, com um movimento que provocou uma ardência de desejo em sua própria pele. Ele abafou uma exclamação.

— Venha a meu leito, Erik Sinclair — sussurrou. E viu que algo ardia em seu olhar. — Não devo. — Sou sua melhor oportunidade de criar um filho sem perda de tempo — murmurou

ela, enquanto lhe passava um dedo pelos lábios, sem afastar os olhos dos seus. Ao perceber o tremor que o percorria estremeceu também ela, com sua própria audácia. Depois virou para descer pela escada, com a louca esperança de que ele aceitasse seu oferecimento.

Rosamunde levantou a vista de seu lugar, no porão, e fez uma única inclinação com a cabeça.

Vivienne compreendeu que a senhora retornaria à coberta para observar o céu e o mar. Enquanto isso Ruari esfregava o cabelo molhado com um pano, sem se afastar do balde que tinha a seu lado. Um braseiro profundo enchia o porão de calor, embora a fumaça que despedia irritava os olhos. Muitos dos marinheiros dormiam ou esculpiam

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madeira no porão, aproveitando a ocasião para descansar. Padraig, que estava em cócoras junto ao braseiro, levantou-se para oferecer a Ruari uma taça fumegante. O ancião a farejou com desconfiança, mas logo aceitou a bebida com um sorriso de agradecimento. Vivienne esperava ao pé da escada, temerosa do que Erik decidisse fazer. Rechaçaria-a, depois de ter sido ela tão audaz? Ele desceu também e, depois de jogar uma breve olhada aos outros homens, deteve o olhar no Ruari. O ancião agitou uma mão para tranqüilizá-lo.

O fato de que Erik não corresse a reunir-se com ele já era bastante alentador para Vivienne.

— Desejo-lhe — sussurrou. E viu acender o fogo em seus olhos, tal como Rosamunde havia predito. Agarrou-o

pela mão, sorrindo com a disparidade de tamanhos, puxou-o para o quarto de Rosamunde. Comprovou com prazer que ele a seguia; seus olhos eram tão azuis que quase

chispavam. Erik estava novamente enfeitiçado e não se importava. Vivienne tinha o cabelo

escurecido pela chuva; a água cintilava em suas faces como gotas de orvalho nas pétalas de uma flor. Ela fechou a porta do quarto atrás de si e se apoiou contra a madeira, olhando-o através das pestanas. Era fascinante que pudesse mostrar-se ao mesmo tempo tão tímida e audaz, tão inocente e provocadora, mas ela o fazia com facilidade.

Embora Erik tivesse acreditado ser bastante forte para deixá-la em paz durante a viagem, era-lhe impossível negar-se ao desejo dela, embora fosse fingido. Resistir a seus encantos era inútil, posto que seu corpo já apoiasse os argumentos de Vivienne. Além disso, devia recordar que o dano já acontecera. Ela tinha perdido a virgindade. Nada se perderia se ele aceitava seu convite e podia obter a recompensa desse herdeiro. Ao menos isso foi o que ele se disse.

O quarto do Rosamunde era de estrutura simples: uma simples cabine isolada do resto do porão. Os amparos eram curvos, feitos de madeira (como toda a nave) e o aposento inteiro se balançava de uma maneira sedativa. No outro lado havia um par de lampiões amurado, com as chamas bem separadas da parede e um receptáculo de azeite muito pequeno, para reduzir o perigo de incêndio se caisse. Erik ouviu o tamborilar incessante da chuva na coberta de cima; não fazia senão aumentar a sensação de refúgio acolhedor.

Não havia muito ali, além da cama, que formasse parte da estrutura da nave. Tinha um rebordo amplo, para que seu ocupante não saísse disparado no mar groso, e era bastante grande para dar capacidade a duas pessoas, embora Erik, com sua estatura, teria que encolher-se um pouco.

O colchão era grosso e obviamente estava cheio de penas, capricho que revelava a afeição de Rosamunde pelos luxos. Sobre o leito havia dezenas de peles sedosas, em um maravilhoso matagal de matizes. Erik não pôde identificar a que animais em outros tempos as teriam, pois não havia lobos nem esquilos que tivessem bandas e manchas como essas.

Em um extremo se viam lençóis de seda e veludo bem pregado; havia cortinas de lã bem tecida que, uma vez corridas, constituíam outra barreira contra o porão, e travesseiros de diversas formas e tamanhos, que caíam da cama ao chão. Ambos permaneceram em silêncio, contemplando aquele leito maravilhoso, enquanto Erik imaginava o que podiam

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fazer ali. Certamente, o ar mesmo parecia fumegar pelo calor de seu desejo. Mas aguardaria a que a dama voltasse a convidá-lo a visitar suas coxas. O fato de que ela vacilasse um momento depois de seu audaz convite o fazia duvidar de que na verdade o desejasse. E ele não queria que mais adiante o acusasse de havê-la possuído contra sua vontade.

Aguardaria, embora lhe custasse pouco menos que a vida. Um golpe na porta os fez saltar a ambos. Vivienne abriu o ferrolho. Ali estava Rosamunde, com um sapiente sorriso nos lábios. Ofereceu-lhes um balde de água fumegante e uma bola dourada, grande e de forma irregular, que parecia porosa.

— Uma esponja — disse, ao reparar no desconcerto de Erik. — E água para se banharem. Na gaveta, sob a cama, há água de rosas, se por acaso desejam perfumes, e mel, se por acaso necessitam incentivos.

Mel? Erik pegou o balde e olhou para o fundo da água fumegante, enquanto refletia sobre o que se podia fazer com mel. Vivienne afundou a esponja na água e logo a espremeu, deixando cair uma cascata. Então, rindo, repetiu o ato; obviamente estava tão pouco familiarizada com essa maravilha como ele.

Rosamunde sorriu; em seus olhos faiscava a malícia. — Incomodarei-os só para lhes trazer a comida — disse. Depois piscou o olho e

voltou a fechar a porta. Vivienne inspirou uma grande baforada de ar que lhe avultou os seios e ergueu a

vista para Erik. Em seus olhos dançava um eco da malícia de sua tia.

— Mel — repetiu, com um sorriso malicioso. — Mas eu gostaria de me banhar antes

de incentivos como esse. Depois correu o ferrolho para travar a porta. Erik colocou o balde em uma braçadeira

que tinha visto no chão; depois a encarou uma vez mais. Vivienne o olhou com um sorriso que o esquentou até a ponta dos pés; antes que ele pudesse falar, ergueu a mão até o broche que segurava seu manto.

— Sempre me guiou para a paixão — sussurrou. — Agora serei eu quem o incite. E deixou cair o manto, sem afastar o olhar. Erik não necessitava que o incitasse, pois

seu corpo já estava plenamente disposto, mas deixou que ela marcasse o passo. A moça lhe plantou um dedo no meio do peito.

— Não tem mais que estar quieto e olhar. Eu farei o resto. Ele compreendeu então que tinha intenções de despir-se diante de seus olhos. Secou-lhe a boca. Não tinha nenhuma necessidade de mel, bastava o fulgor daqueles

olhos, o sorriso convidativo que curvava aqueles lábios. Fez um esforço por manter-se quieto e a contemplou enquanto ela tirava a roupa, com uma lentidão atormentadora. Ela desatou o laço que segurava um lado de sua saia e demorou uma eternidade em afrouxá-lo. Depois de lhe obsequiar com um sorriso, desatou o lado oposto e retirou o cordão de cada casa com provocadora deliberação. Uma vez solta a saia, recolheu o bordo inferior com muita lentidão, deixando entrever a sombra de seus tornozelos através da camisa; depois, suas panturrilhas bem curvadas.

Essa mulher era feita para a tentação, sem dúvida alguma. Erik apertou os punhos e

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continuou olhando. Depois de recolher o traje para cima com frustrante morosidade, Vivienne a tirou finalmente pela cabeça e a jogou em um lado. Erik entreviu os mamilos rosados através do tênue linho da camisa, assim como as pontas audazes e a sombra avermelhada do pêlo no alto das coxas. Através do tecido suas curvas eram só sombras tentadoras.

Erik ia desatar a túnica, mas Vivienne lhe segurou as mãos para impedir.

— Me permita — sussurrou, com os olhos turvos de um desejo que afrouxou os joelhos de seu amante.

Beijou-lhe os dedos um a um, esbanjando sobre eles a atenção de seus suaves lábios. Logo lhe plantou um beijo em cada palma; inesperadamente lhe tocou a pele com a ponta da língua.

— Vivienne — murmurou ele, quase grunhindo. Mas ela não se apressou. Pelo contrário, colocou a ponta da língua entre seus dedos.

Ele ficou sem fôlego com o vigor de sua reação. Talvez fosse verdade que essa mulher provinha de uma linhagem de feiticeiros, pois seu desejo parecia insaciável. Além disso, crescia em potência cada vez que compartilhavam o leito, fortalecia-se com cada ocasião de prová-la. Vivienne, sorridente, afastou-se um passo e desatou o laço de sua camisa com a mesma falta de pressa.

Erik engoliu a saliva, paralisado, enquanto foram aparecendo pequenas partes de suave pele. Ela desabotoou com penosa lentidão a miríade de botões de suas mangas. Por fim a camisa caiu também ao chão, amontoada em torno de seus tornozelos como uma nuvem sob os pés de um anjo.

Ela saiu graciosamente de entre suas dobras e a sacudiu para pendurar a de um gancho, com mais cuidado do que a tarefa merecia, em opinião de seu companheiro. Para alcançar o cabide teve que esticar-se, estendendo uma perna para trás, com o pé em ponta. Ele admirou a curva de suas nádegas e a graciosa linha de suas costas. Por um momento pensou em segurá-la pela estreita cintura para pôr fim a essa tortura, mas lhe lançou um sorriso tal que lhe tirou a idéia.

A moça estava saboreando aquela sedução. E ele não era tão vadio para lhe negar esse prazer.

Vivienne recolheu a saia e o manto para pendurá-los também, com o que lhe ofereceu uma vista de suas nádegas tão prolongada que ele se perguntou se sentiria o peso de seu olhar. Enquanto admirava a suave força de suas pernas, o desejo alcançou uma intensidade de febre. Com um sorriso coquete, ela começou a soltar o cabelo. De pé na frente dele, sem mais roupa que as meias, as ligas e as botas, desatou o laço que segurava o extremo de sua trança. Como de costume, só um terço de sua cabeleira permanecia cativo, pois o resto tinha escapado das fitas para frisar-se em torno do rosto.

Ele não pôde menos que admirá-la, sem fazer esforço algum por dissimular o respeito sobressaltado que lhe inspirava sua beleza. O sorriso de Vivienne se alargou. Por uma vez a Erik não importou que seus pensamentos fossem tão fáceis de ler por outra pessoa. Ela inclinou a cabeça para trás e sacudiu o cabelo com os olhos fechados. Ele a observava, faminto. Inclinou-se para diante para lhe plantar um beijo no pescoço. Logo lhe reclamou a boca em um beijo possessivo, curvando a mão ao redor da parte posterior de sua cintura.

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Quando ergueu uma mão para lhe rodear o rosto sentiu sob a mão o bater do pulso, de uma maneira muito tentadora. Então a soltou para retroceder, satisfeito de lhe haver posto esse rubor nas faces e essa faísca nos olhos. Além disso, essas meias estranhas tinham uma notória desvantagem com respeito a seu traje de costume. Nelas havia pouco espaço para a reação entusiasta que lhe provocava Vivienne; novamente sentiu falta da comodidade de sua camisa solta e do tartan seguro pelo cinturão. Vivienne pegou então o laço de sua túnica e o olhou através das pestanas com um sorriso provocador, embora estivesse mais ruborizada do que teria querido. Entretanto, aos olhos de Erik o contraste era muito atraente.

Ela foi retirando o cordão, casa por casa; logo o jogou em um lado e deslizou as mãos sob a concha de couro fervido; com os dedos abertos em leque, passou-lhe as mãos pelo peito. Ele abaixou a cabeça, incapaz de resistir a essa oportunidade de beijá-la, mas ela se evadiu para beijá-lo no pescoço. À túnica seguiu a camisa, que foi desatada com torturante parcimônia. Depois o empurrou com jocosidade para o leito e o montou escarranchado em uma perna para lhe tirar a bota, com as nádegas em sua coxa, lhe tentando as mãos com a curva amadurecida de seus quadris. Ele a pegou pela cintura para sentar-lhe no regaço e lhe roubar outro beijo profundo, antes que ela voltasse a escapar de seu abraço. Já sem fôlego, Vivienne lhe deu um tapinha no nariz.

— Hoje deve se prestar à sedução em vez de seduzir — repreendeu-o, cintilantes os olhos.

— Mas se já me seduziu! —replicou Erik. — Sua missão está completa. — Está apenas no começo — replicou Vivienne, e se retorceu em seu regaço. O sinal

de entusiasmo masculino não pôde lhe passar despercebido. Não obstante, levantou-se outra vez e plantou as mãos na segunda bota.

Uma vez mais Erik não obedeceu as instruções e a pegou pela cintura, agradado ao

ver que suas mãos a abrangiam quase por completo. O vaivém da nave o favoreceu, a jovem caiu em seu regaço. Segurou-lhe a nuca com uma mão, enquanto lhe rodeava o talhe com o outro braço, para beijá-la a fundo. Vivienne se arqueou contra ele, fazendo dançar a língua contra a de Erik, lhe afundando os dedos no cabelo, enquanto rodavam juntos pela cama. Encantou-lhe que não fosse tímida, que não lhe ocultasse sua paixão, que respondesse a suas carícias com tanto ardor, que desfrutasse do ato amoroso tanto como ele. Quando Vivienne interrompeu o beijo seus olhos faiscavam de risada. Escancarada sobre Erik, com as mãos apoiadas em seus ombros, murmurou:

— Que leito tão brando. Aqui dormiremos bem. — Acredito que não dormiremos nada — replicou ele. E rodou para pô-la debaixo. A

beijou uma vez mais e ela respondeu a sua carícia com celeridade. Quando ele levantou a cabeça a viu corada e sorridente, embora lhe olhasse agitando um dedo.

— Não devia fazer nada — protestou. Erik lhe tirou uma das botas; depois lhe rodeou a perna com uma mão e se inclinou

para desatar as ligas com os dentes. Logo moveu o polegar em um lento círculo contra o osso do tornozelo; ela gemeu de prazer ao receber seus beijos na face posterior dos joelhos. Requereu-se algum tempo para desfazer-se de ligas e meias, mas a dama não se

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queixou. Erik teve apenas um segundo de advertência, uma só faísca da malícia que dançava nos olhos de sua companheira, antes que ela se inclinasse para lhe desatar as calças com os dentes. Ele temeu então rasgar o tecido; temeu que as calças do conde do Sutherland não pudessem contê-lo, pois Vivienne o acariciava através do tecido, provocando-o com a ponta dos dedos, e isso o enlouquecia de desejo.

Virou-se, com os dentes apertados, para lhe deixar fazer sua vontade; já a surpreenderia quando tivesse acabado. Ela o atormentava, imitando seu gesto de beijá-lo detrás dos joelhos enquanto tirava suas calças. O traje mal tinha chegado ao chão quando Erik estendeu a mão para sua amante. Mas ela já estava de pé. Abriu a gaveta que havia debaixo da cama e investigou seu conteúdo, mordiscando o lábio em um encantador gesto de concentração. A etiqueta do primeiro frasco que pegou a fez enrugar o nariz; devolveu-o a seu lugar e pegou outro. Ao retirar a tampa o ambiente se encheu de aroma de rosas em flor. Vivienne derrubou uma generosa quantidade de perfume na água fumegante.

— Quer que cheire como se tivesse estado em um bordel? — Quem sentirá seu aroma, salvo eu? — Ruari, para começar. — Ele saberá melhor que ninguém que não pode ter estado em um bordel. —A

jovem afundou a esponja na água e a espremeu, brindando a seu companheiro outra boa visão daquelas nádegas. — E sabe melhor que ninguém que necessita de um herdeiro. Não acha que o perfume de rosas lhe parecerá pouco preço a pagar? —Olhava-o com um braço na cintura; a luz dos lampiões dava a sua carne o matiz da aurora. — Ao fim e ao cabo, isto cheira melhor que você ou eu.

— Isso é bem certo. — E se importa, na verdade, o que Ruari pense de seus atos de hoje? Erik se viu obrigado a admitir que não se importava. Na realidade não precisou dizê-

lo, pois agora que estava sem calças seus pensamentos não eram tão secretos. Vivienne, com os olhos brilhantes de decisão, voltou a ajoelhar-se na cama e lhe

passou a esponja pelo corpo, criando um gotejante caminho de água quente; depois lhe acariciou com ela a ereção. A esponja era suave e provocava um ligeiro comichão; os dedos da moça eram quentes; seu contato, decidido. Erik se afastou, temendo verter sua semente antes do tempo.

— Não quer que o lave? —perguntou ela. — Posso fazê-lo eu mesmo em menos tempo — assegurou ele. Em sua voz era perceptível a tensão. Ela fechou a mão em torno dele, ainda com a

esponja, e a moveu para cima e para baixo. Erik tinha certeza de que não suportaria muito mais seus cuidados.

Depois Vivienne se inclinou sobre ele, rodeando-o com sua cabeleira, e lhe beijou a mandíbula. Tocava-o cada vez com mais segurança; por fim lhe beijou o lóbulo da orelha.

— Você me deu prazer aí com a língua — lhe sussurrou ao ouvido. — Esta vez serei eu quem lhe devolva esse deleite. Antes que ele pudesse protestar, deslizou-se por seu peito para baixo e aplicou os lábios à ereção. Erik caiu para trás na cama com um forte grunhido, compreendendo que não podia deter aquele assalto amoroso. Foi então quando

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ela começou a atormentá-lo à força de prazer, sem que ele se decidisse a obrigá-la a cessar. Fazia isso com um louco abandono que era novo nela, entregando-se à paixão com renovado vigor. Erik estava enfeitiçado, encantado, perdido em sua atração. Sucumbiu ao momento, sem poder agir de outro modo.

Passou muito tempo antes que ficassem profundamente adormecidos, saciados, com os membros entrelaçados. Erik sentia uma tremenda frouxidão; os olhos lhe fecharam como por vontade própria. Puxou as peles para jogá-las sobre ambos; o suave calor do Vivienne contra seu flanco lhe era bem-vindo. Ela se aninhou mais perto e apoiou os lábios contra sua orelha. Erik pensou que ia o beijar e sorriu involuntariamente ante a perspectiva. Em troca ela murmurou:

— Amo-o. Estava tão sonolenta que talvez não teve consciência das palavras que tinham

cruzado seus lábios. Mas Erik abriu imediatamente os olhos. A partir desse momento dormir foi impossível. Olhava-a, incrédulo, mas ela já tinha caído no sono. Ele cravou o olhar carrancudo nos amparos da cabine, escutando a chuva e o eco daquelas duas palavras em seus pensamentos. Mentia ela para enredá-lo ainda mais? Ou possivelmente ele devia a essa dama muito mais do que lhe tinha dado até o momento? Não podia ter certeza, embora a questão o importunasse durante toda aquela noite.

Com duas palavras murmuradas, Vivienne tinha mudado tudo.

Capítulo Quatorze Algo ia mal. Vivienne não sabia o que era, mas na manhã seguinte despertou sozinha

nesse quarto. Quando subiu à coberta em busca de Erik o navio estava rodeado por uma densa bruma branca. As velas pendiam dos mastros, úmidas e frouxas, e o mar se mantinha imóvel como um espelho. Um marinheiro fazia soar um sino a intervalos regulares, obviamente por ordens do Rosamunde, mas não havia sequer um sopro de vento nem rastros de outra pessoa.

Era como se tivessem franqueado o limite do mundo. Pior ainda, Erik parecia

decidido a evitá-la. Cada vez que ela se aproximava, o homem se retirava depressa, quase

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sem olhá-la. Parecia tomar muito trabalho para evitar a Vivienne, e em um navio desse tamanho não era pouca façanha. Ela se sentia desolada sem seu contato, sem o menor sinal de afeto de sua parte, e se perguntava o que significaria essa atitude. O que ela tinha feito?

Temia que essa mudança no comportamento de Erik não tivesse que ver com ela, senão com a perspectiva de retornar ao lar. Sem dúvida a lembrança de Beatrice se fazia mais forte. Talvez ele a rejeitava por manchar o amor que tinha jurado à mãe de suas duas amadas filhas. Não era assim como se recompensava aos amantes fiéis em todas as lendas que Vivienne conhecia! Ambos tinham feito a promessa de concubinato. E ela, quando menos, não tinha intenções de esquecê-lo.

Rosamunde suportava aquele clima dando de ombros e os marinheiros pareciam tomar-lhe com calma. Mas por volta do segundo dia vários dos homens começaram a murmurar; ao terceiro já corriam claros sussurros de inconformidade. O ar não se movia. Erik passeou pelo convés, indubitavelmente ansioso por resolver as coisas em Blackleith. Pior ainda, Rosamunde não podia achar sua pedra ímã, embora assegurasse que a punha sempre no mesmo lugar. Nenhum dos homens do bordo confessava havê-la tocado. Enquanto a buscava por toda parte, o mau humor da senhora ia aumentando.

Ao quinto dia apareceu por fim, justamente onde deveria ter estado desde o princípio. Mas a pedra ímã era inútil. Parecia enfeitiçada. Quando Rosamunde a segurou em alto, Vivienne notou assombrada, que girava em círculos, sem deter-se, como se a pedra fora incapaz de achar o norte. Os marinheiros começaram a murmurar que aquilo era bruxaria; Ruari, por uma vez, manteve o bico fechado. Erik passeava agora com maior energia; seus passos desiguais ressoavam na coberta até bem entrada a noite.

Assim que apareceu a pedra ímã, Rosamunde disse que não podia achar seu livro de bitácora.

Como não queria confiar nas observações de outros marinheiros, tinha recolhido ali sua considerável experiência, apontando a direção dos ventos e esboçando o contorno da terra em determinadas zonas. Posto que viajava freqüentemente entre o Ravensmuir e Sicilia, esse livro de bitácora continha a soma de todas suas observações, a fim de orientar-se melhor depois de uma tempestade como a que acabavam de experimentar. Mas esse registro não aparecia. Novamente, ninguém entre a tripulação admitia havê-lo tocado, muito menos havê-lo retirado do lugar onde ela o guardava, em sua cabine. Ruari a ajudou a procurar por toda a nave, com teimada persistência, mas de nada serviu.

Ao oitavo dia o livro apareceu justamente no lugar onde deveria estar desde o começo. Não obstante, todas as notas referidas ao Mar do Norte se esfumaram. A fúria que esse descobrimento provocou em Rosamunde superava a todas as tempestades. Até o Padraig, sempre audaz em presença dela, evitou-a visivelmente durante todo esse dia. Rosamunde inspecionou a fundo todos os rincões do navio; fez retirar o conteúdo das gavetas e derrubar os tonéis; esvaziou as gavetas de seu camarote e afirmou que tinha direito a examinar os pertences de todos. Interrogou a todos os cristãos do bordo. Tudo foi inútil.

Vivienne começava a temer que não pisariam em terra firme nunca mais. Naturalmente, os interrogatórios do Rosamunde tinham passado por cima a um pequeno indivíduo élfico. A spriggan Darg sabia onde estavam as páginas do registro, pois as tinha

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escondido ela mesma. Também era ela quem tinha enfeitiçado a pedra ímã. E agora ria a todo pulmão pelo

êxito de suas aventuras. Foi Erik quem ouviu o vago eco de sua risada, Erik, que não acreditava nas coisas invisíveis e agora não conseguia imaginar quem tinha a audácia de lançar esses risinhos zombeteiros a custa de Rosamunde. Ouviu o eco desse regozijo em meio da noite, enquanto todos dormiam profundamente e só ele passeava pela coberta.

Temeu ter perdido o juizo, a única coisa que sobrava de seus magros bens. Na décima manhã a aflita Rosamunde os reuniu a todos em seu quarto. Erik cuidou de manter distância entre ele e Vivienne. Ela o olhava com ar confundido, sem saber o que pensar dessa atitude reservada.

Erik não desejava dar explicações. A proximidade de Vivienne lhe alvoroçaria os pensamentos, faria que sua lascívia dizimasse sua capacidade de analisar razoavelmente tudo o que sabia. Não ousava arriscar— se nem ao contato mais fugaz. Lamentou que não houvesse algum meio de averiguar imediatamente se sua semente tinha enraizado dentro dela, pois desse modo teria em claro suas obrigações embora não a verdade.

Vivienne tinha mudado de roupa, provavelmente graças a um presente de Rosamunde, e Erik não duvidou de que a intenção era tentá-lo. Quase o conseguia. A saia ocre estava entalhada para acentuar suas consideráveis curvas e as exibir possivelmente com mais audácia que a anterior. Tinha as voltas e os punhos cheios de bordados em diferentes matizes de azul e verde; a camisa nova parecia ser de cor amarela açafrão. Penteou-se com o cabelo jogado sobre os ombros; os cachos de cor castanha avermelhada brilhavam à luz da cabine. O desejo acendeu uma chama no ventre de Erik, obrigando-o a afastar a vista. Voltava a ouvir a sonolenta declaração de amor da moça e lhe revolviam as entranhas.

— Não sei o que fazer — confessou Rosamunde ao pequeno grupo reunido em seu quarto. — Sem o livro de bitácora não sei com exatidão onde estamos. Se não souber onde estamos não posso traçar uma rota. Não podemos permanecer eternamente à deriva e não me atrevo a ancorar em costas que nos sejam hostis.

— São tantos os portos hostis? —perguntou Erik, com o que ganhou um olhar duro. — Por várias décadas pratiquei um comércio perigoso — explicou a senhora, seca. —

Os portos hostis são mais que os amigos, ao menos para mim. —E começou a passear pela cabine, agitada. — Nunca tinha passado nada como isto — murmurou, muito visivelmente contrariada. — Algum louco me está jogando uma má jogada. E esse louco pagará muito caro sua audácia.

— É possível que um de seus inimigos esteja escondido neste navio — insinuou Erik.

— Onde? —Rosamunde abriu os braços. — Mas se não há onde esconder-se! Erik, que sabia muito de traições, não estava tão seguro disso. — É possível que um de seus homens tenha sido comprado, com dinheiro ou com

alguma outra recompensa? A senhora refletiu. — É possível, embora pouco provável. Sabe-se que Padraig e eu recompensamos

bem os nossos homens e nos asseguramos de nos cobrar todas as dívidas pendentes. — É claro que sim — disse Padraig, carrancudo. — Atualmente são poucos os que se

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atreveriam a nos enganar. Ambos trocaram um olhar. Erik adivinhou que em outros tempos teriam executado

mais de uma vingança. Por sua parte ele não os teria desafiado. Além disso, preferia não pedir detalhes e conformar-se com o que diziam. Vivienne mordeu o lábio, como se soubesse que seu comentário seria mal recebido.

— Talvez a spriggan Darg nos acompanhasse. É a única que lhe guarda rancor. — E muito injusto, além disso! —disse Rosamunde, cujos olhos cintilaram. — Pedi a

Elizabeth que dominasse a sua fada. Não posso devolver o tesouro a Ravensmuir. Já não. Por fim não posso fazer nenhum trato.

— Mas o que tem seu anel? —perguntou Erik, assinalando o dedo nu da senhora. — Esse anel de prata que a spriggan lhes exigia. Acredito que, se o tivesse entregue, esta fada já não teria motivos de queixa, não é verdade? Rosamunde entreabriu os olhos, mas antes que pudesse responder, sua sobrinha se voltou para o Erik, atônita.

— Reconhece a existência da spriggan? Ele a havia tocado quando estava enredada nas algas marinhas. E estava quase

seguro da origem dessas risadas maliciosas que tinha ouvido depois. Não obstante, como não estava disposto a admiti-lo abertamente, ignorou a pergunta de Vivienne. Para surpresa dela, a tia se ruborizou como uma donzela e baixou o olhar.

— Esse anel já não conta. Já não o tenho em meu poder. — Mas se o entregou a spriggan já não deveria haver motivos de queixa— observou

ele, cauteloso. Ruari grunhiu: — As fadas são gente caprichosa. Não há maneira de saber se essa Darg cumpriria

com sua parte do trato, embora o aceitasse imediatamente; menos ainda, vários dias depois.

Mas Erik estava intrigado pela atitude sobressaltada de Rosamunde. — Não podia entregar-lhe pois não era meu —reconheceu ela, mal-humorada e com

os olhos fugidios, como se não pudesse enfrentar o olhar dos outros. — O devolvi a seu legítimo proprietário; agora está fora do alcance, tanto para mim como para essa spriggan.

Erik ouviu um pequeno grito, ao parecer forjado de frustração, e compreendeu que Darg se considerava legítima proprietária daquela jóia.

— Isso significa —deduziu— que não há maneira de acalmar a fada, posto que não se possa satisfazer suas condições. Nesse momento sentiu que um pequeno peso aterrissava em seu ombro; junto a seu ouvido soou um estalo. Ao parecer a spriggan se declarava de acordo, embora ele não chegasse a distinguir suas palavras. Talvez falasse um idioma diferente dos que ele conhecia.

— O anel está em Ravensmuir —admitiu Rosamunde. — É uma jóia de Ravensmuir e

ali deve estar. — Por que a deixou lá? —acusou Padraig. — Sem esse anel para negociar

poderíamos passar a vida perdidos no mar! A senhora tinha as faces vermelhas; Erik adivinhou que só contava a metade da

história. — Supus que essa spriggan ficaria com o anel e que assim nos veríamos livres dela.

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Seu sócio meneou a cabeça e esfregou a testa. — E em troca estamos condenados, perdidos no mar, pois não podemos conformar a

essa duende. — Lançou um olhar severo a Rosamunde. — A menos que possa lhe oferecer algum outro negócio que lhe agrade.

Ela franziu os lábios e continuou passeando-se, carrancuda e com os braços cruzados contra o peito. Depois percorreu o quarto com olhos atentos; obviamente procurava algum sinal de que a fada estivesse entre eles. Erik sentiu que esse leve peso plantado em seu ombro lhe aproximava mais ao pescoço. Não se atreveu a mover-se, pois não sabia quais eram as intenções dessa criatura. Uma garra diminuta lhe aferrou o lóbulo; logo ressoaram algumas palavras em seu ouvido. Não as transmitia nada tão mortal como o fôlego, mas mesmo assim as ouviu.

— Tem que pagar a dívida pendente. Recorda que a fada não é nada paciente. Desejo esse anel de reis humanos e tenho que recuperá-lo, não importa em que mãos estejam. Rosamunde, já morta ou em vida, tem que me retornar a jóia exigida.

— O que! Agora fala em verso, filho? —inquiriu Ruari, com óbvia surpresa. — Que loucura é essa? Você não necessita desse anel.

Erik sentiu que lhe ardia a nuca. — É a spriggan. Ouço-a. Estas palavras são suas. Não fiz mais que as repetir. Vivienne entreabriu os lábios, sobressaltada. — Pode ouvi-la, na verdade? — É evidente. —Não era pouco o embaraço de Erik ao ver demonstrado seu engano

diante de todos. Aquela pequena garra puxou o lóbulo; depois voltou a soar o sussurro. — As dívidas se saldam de muitas maneiras, embora o preço suba quanto mais se

espera. Diga-lhe, pois, que me faça uma nova proposta. Talvez a me escutá-la achará disposta.

Erik repetiu também isso e os presentes intercambiaram um olhar. Rosamunde, com um suspiro, desceu a vista a suas botas. Ao cabo de um longo instante disse:

— Se retorno a Ravensmuir, embora para isso deva faltar a meu próprio juramento de

não pisar nessa soleira nunca mais... — Juramento que já quebrou por sua própria vontade — interpôs Padraig. Isso lhe

valeu um olhar sombrio. Rosamunde cruzou os braços, muito descontente com o que ia dizer.

— Se o fizer, e se prometer que tentarei recuperar esse anel enquanto esteja ali, quererá a spriggan nos ajudar? —inquiriu. Sua atitude expressava qual era sua própria opinião dessa proposta. — Enquanto estejamos em alto mar não haverá maneira de recuperar o anel.

Todos olharam a Erik, espectadores, mas ele não percebeu sussurro algum. A pressão tinha desaparecido de sua orelha e também, ao que parecia, o peso de seu ombro. Olhou em redor, procurando alguma prova de que a spriggan ainda estava entre eles, mas não viu o Darg nem ouviu som algum dela. Não obstante, notou que o livro de bitácora tinha engrossado novamente.

— Não recuperou suas observações?

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Rosamunde virou de repente; depois, com uma exclamação abafada, lançou-se para o livro. Suas feições se iluminaram ao voltar as páginas.

— Está tudo novamente aqui! — exclamou, assombrada. — E em ordem, como se nunca tivesse faltado nada.

Na coberta o sino ressoou com mais vigor e os marinheiros lançaram um grito. — A bruma está limpando! —anunciou alguém. — Está se afastando com estranha

celeridade! Devem ver! Padraig saiu precipitadamente do quarto e a escada rangeu ao subir a coberta. — Ja! —exclamou, antes de ter saído de tudo pela escotilha. — É verdade! Já vejo o

azul do céu. Rosamunde, rindo francamente, levantou o livro de bitácora entre as mãos. — Vamos a Escócia! —anunciou, com evidente prazer. — Hoje mesmo, primeiro ao

Helmsdale, logo a Ravensmuir. Padraig colocou novamente a cabeça no porão para jogar a sua sócia um olhar

sombrio. Logo procurou os olhos de Erik. — Já pode dizer a sua fada que cuidarei de que este trato se cumpra. — Você? — estranhou ela, com um sorriso. — Sua palavra vale bem pouco. — É certo que eu gosto do mar, mas não tanto para viver perdido nele — replicou

Padraig. — Na verdade perdi a afeição a esse tipo de aventuras. Completarei esta viagem com você, Rosamunde, pois o acordamos, e isso apesar do pouco que vale minha palavra. Mas logo quero o sol da Sicilia, não voltarei a zarpar dessa ilha.

E saiu à coberta, deixando ao Rosamunde atônita. Um momento depois corria atrás dele. Ruari voltou um olhar alegre para o Erik. Vivienne se aproximou um pouco mais, com os olhos faiscantes de risada.

— De maneira que a spriggan te escolheu — disse o servidor, em tom muito divertido.

— Darg se pôs de nosso lado para convencê-lo de que o invisível existe — acrescentou a moça.

— Só foram um par de versos — grunhiu ele, como se desse muita importância a uma ninharia. E os outros riram com sua atitude. Ruari agitou um dedo para ele. — Não pode resistir à verdade, filho, isso é seguro. Se negar o que é evidente para

todos, fará-se evidente para você, de um modo ou outro. — E tampouco é possível enganar as fadas — acrescentou Vivienne. — Até

Rosamunde precisou comprová-lo. — É provável que este homem visse a fada desde o princípio — brincou Ruari,

dirigindo ao jovem um olhar de cumplicidade. — Só queria compartilhar seu leito por tantas noites como pudesse. Depois de tudo estavam decidida a lhe demonstrar o poder do invisível.

Vivienne abriu a boca, mas voltou a fechá-la e desviou para Erik, uma vez mais, aqueles maravilhosos olhos cheios de sombras. Talvez Ruari ignorava que eles já não compartilhavam o leito. Erik não se importou. Com esse comentário, com o desencanto da dama, o momento tinha perdido para ele todo ar de camaradagem.

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— Terei que ser muito vadio para chatear assim a tanta gente por um pouco de prazer

— disse. E voltou as costas a Vivienne. Tinha que ser muito vadio para deflorar a uma donzela e não desposá-la logo honradamente. Ao que parecia Erik não ouvia só a voz da spriggan, mas também a de seu pai. Possivelmente não era tão estranho que a fada e seu pai se manifestassem de acordo com tanta veemência.

Darg parecia exercer uma influência notável sobre o tempo. Assim que Rosamunde fechou seu trato com ela, os ventos mudaram e o navio navegou virtualmente por si mesmo para a costa de Escócia. Aproximaram-se de terra perto do fiorde do Forth; toda a tripulação lançou um grito de alegria. A nave virou para o norte, com muitas mãos aplicando força ao leme. Navegavam a uma velocidade nada comum; Vivienne compreendeu que Erik não demoraria em ver novamente seu lar. Ele permanecia de pé ante a amaruda e assinalava a Ruari os pontos salientes da paisagem, com entusiasmo tangível.

Para ela não havia nenhum olhar, embora mais de uma vez, ao despertar de noite no porão, Vivienne sentiu o calor de seu corpo. Não a acariciava, nem sequer a tocava, mas o vento era frio e ela se alegrava de contar com seu calor. Tinha a esperança de obter algo mais dele, com o tempo. E rezava por estar já gerando a seu filho. Mas a comprovação, quando chegou, não foi a que ela desejava. Uma noite, quando a lua mal começava a minguar e estava ainda alta no céu claro, despertou a sensação de que algo úmido lhe corria pelas coxas. Afastou os cobertores para que o claro lunar caísse sobre sua carne. O vermelho sangue que viu ali fez que a alma caísse aos pés. Já não cabiam dúvidas. Não tinha podido conceber um filho do Erik.

Com esse fracasso rodaram suas lágrimas: tão segura tinha estado de que seus esforços resolveriam esse assunto com rapidez!Apressou-se a limpar-se e a segurar ali uma parte de linho com uma atadura; logo se ateu o manto. Erik ainda respirava com profunda regularidade e ela não queria despertá-lo com tão má notícia. Aproximou-se um pouco mais dele, pois o desencanto o fazia sentir mais intensamente o frio. Logo aplicou sua vontade a conciliar novamente o sono, decidida a lhe dizer a verdade pela manhã.

Na escuridão foi crescendo nela certa decisão. Não estava absolutamente disposta a abandonar a gestão. Do acordo de concubinato restavam ainda doze luas; isso equivalia a doze oportunidades mais de conceber um filho. Erik havia sentido que Vivienne se movia na noite e ouviu sua exclamação surpreendida. Quando ela descobriu o sangue em sua coxa, ele a estava observando através das pestanas. Sabia o que significava esse sangue e o decepcionou que já não ficasse vínculo algum entre ambos. A consternação da jovem era comovedora. Não sabia que ele a estava observando; sua reação pareceu surgida do fundo de seu coração. Ele compreendeu então que na verdade queria lhe dar um filho, que lamentava seu fracasso tanto como ele, que tinha sido um velhaco ao duvidar dela.

Quando a moça voltou a acomodar-se a seu lado sentiu as lágrimas que lhe tocavam o ombro. Vivienne não tinha mentido: essa verdade era irrefutável. Tinha mentido a sua família, contra tudo o que cabia esperar, só por ajudá-lo em sua gestão. Em troca Erik tinha pego tudo o que ela oferecia sem lhe dar nada. Mas não tinha nada que dar enquanto não recuperasse sua propriedade de Blackleith. Nenhum homem honrado podia pedir em matrimônio a uma mulher se não tinha propriedades, se não tinha meios para mantê-la e

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manter aos filhos que lhe desse. Ao desconfiar tinha sido injusto com Vivienne, mas lhe fazer agora uma promessa vácua, lhe dar uma palavra que talvez não pudesse cumprir, não seria senão agravar seu engano.

Nesse momento teria querido consolá-la, lhe enxugar as lágrimas, incitá-la a sorrir outra vez. Teria querido devolver a faísca a seus olhos. Mas não se atrevia a lhe revelar que estava acordado.

Necessitou de toda sua vontade para não estreitá-la entre seus braços. Virou-se, como se estivesse adormecido, e lhe tocou a têmpora com os lábios; ela escondeu a rosto contra seu peito. Sua cabeleira os cobria a ambos, junto com os mantos, e a suavidade de sua pele o tocava em um milhar de lugares. Erik compreendeu então que estavam ligados por muito mais que isso. Amava a Vivienne; amava seu temperamento impulsivo e confiante. Gostava que ela não se acovardasse diante de nenhum perigo, que estivesse disposta a pagar qualquer preço por alcançar um objetivo justo. Gostava que se abrisse como uma flor sob suas carícias, que cada um parecesse forjado para o outro. Nenhuma mulher lhe chegaria jamais ao coração como ela. Gostava que ela se desse sem mesquinharias, plenamente segura de que quanto desse lhe seria devolvido em maior abundância.

E queria ser quem lhe devolvesse todo o devido. Amava-a, mas não tinha direito a dizer-lhe. Ainda não. Só lhe confessaria seu amor

quando triunfasse. Temia que ela o aceitasse só por amor, embora ele continuasse sendo um fracassado.

Pois ela merecia mais que mero amor. Merecia riquezas e segurança, uma casa e um lar, um marido e um futuro promissor. Erik não podia lhe oferecer o final de conto que ela merecia. Essa manhã, não. E se jamais podia oferecer-lhe Vivienne jamais saberia de seu amor. Não obstante, soube que em todos seus dias e suas noites sentiria desejo dela. Queria cumprir seus sonhos virginais, queria lhe oferecer essas três noites de cortejo e essa vermelha rosa feita de gelo. Talvez resultasse impossível, mas queria ter a oportunidade de tentar. Uma vez que ela ficou profundamente adormecida, Erik se afastou suavemente de seu lado. Era uma sorte que Ruari não se separou nunca desse saco, pois continha a peça de tela, a camisa amarela e as fortes botas de couro com os que Erik se sentia mais a gosto. Tirou as roupas sulinas que lhe tinha dado o conde de Sutherland e vestiu aquele traje familiar. De entre as roupas de Vivienne pegou logo a adaga de seu pai, pois suspeitava que lhe faria falta, e o pôs na cintura. Logo desceu a vista para ela para gravar-se na memória o jogo do clarão da lua em sua face. Jamais esqueceria Vivienne Lammergeier; agradecia aquela intuição que o tinha impulsionado a procurar a única mulher que tinha rechaçado o seu irmão.

Embora tivesse muito pouco que lhe oferecer nesse momento, não a abandonaria sem lhe deixar algum objeto. Erik pegou o alfinete de prata que tinha sido a posse mais apreciada por sua mãe; agora adornava seu próprio manto e mais de uma vez tinha atraído os olhares de Vivienne. Pô-lo junto à mão de sua dama. Ela estendeu os dedos sobre o objeto de prata e os fechou em torno dele.

Depois suspirou em sonhos e se virou sobre o flanco, apertando o alfinete contra seu peito dentro do punho fechado. Erik interpretou esse pequeno gesto como bom presságio.

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Estendeu um dedo para tocá-la na face por última vez, com o coração dolorido ao ver que ela sorria e apoiava os lábios contra sua palma, com um leve bater de as asas de pestanas. Uma mecha de cabelo lhe enredou nos dedos, como se quisesse segurá-lo junto a ela para sempre.

Vivienne suspirou com a leveza de uma brisa estival; ainda tinha nas faces a umidade das lágrimas.

Erik jurou retornar a ela com honra ou morrer no esforço. Essa dama não merecia menos. Erik despertou silenciosamente Ruari, sem permitir um só olhar para trás. Seu companheiro pareceu perceber sua intenção, pois se vestiu imediatamente e saiu depressa à coberta, atrás dele. Ruari não perguntou por Vivienne. A curta distância a costa se erguia para o oeste, escarpada, e a bruma se formava redemoinhos em emplastros sobre o mar prateado. Uma gorda lua se afundava para o horizonte; pelo Oriente, as escassas nuvens tinham já um toque de luz perolada. Para alívio de Erik era Padraig quem montava guarda. Tal como ele esperava, o marinheiro se deixou subornar com facilidade e o trato se fechou em seguida, discretamente.

Erik e Ruari remaram para a costa no bote que tomaram emprestado, com o Padraig acocorado entre eles. Ninguém falava; mal intercambiaram uma saudação com a cabeça quando os passageiros abandonaram o bote, nos baixios. O marinheiro retornou então à nave com poderosos golpes de remo. Erik vadeou para a costa, desfrutando da liberdade de movimentos que lhe permitia o tartan. Suas velhas botas tinham perfurações para não reter a água. Antes que pudesse percorrer um par de quilômetros já se teriam secado; o traje do sul, em troca, mantinha-o a um empapado durante todo o dia e até ao seguinte. Gostava de sentir a rocha debaixo das solas, ver a reverberação das urzes em flor nas colinas. Diante de si tinha o rio Helmsdale, cada meandro, cada salto, eram-lhe tão familiares como a palma de sua própria mão. Sabia onde jogar a isca para pescar salmões, onde procurar diminutas pérolas marinhas, onde montava guarda cada uma daquelas pedras antigas. Depois de inspirar profundamente o ar seco e fresco sentiu assentar-se em suas veias certa paz, certo contentamento. Estava em seu lar.

Experimentava um pouco de esperança, uma nova perspectiva de êxito. A última vez que se aproximou tanto de Blackleith só esperava um fracasso definitivo e inevitável. Vivienne lhe tinha ensinado a ver uma promessa onde ele não percebia nenhuma. Tinha-lhe ensinado a acreditar que tudo era possível. E agora que seus tendões estavam curados, agora que estava tão são como jamais voltaria a estar se descobria esperando com ansiedade o encontro com seu irmão, qualquer que fosse o final. Também estava menos convencido de estar aproximando-se de seu próprio fim. Talvez fosse uma loucura, mas essa esperança lhe permitia abandonar com mais facilidade a nave de Rosamunde e a dama que ocuparia seu coração por toda a eternidade; assim lhe era mais fácil voltar o rosto para o Blackleith, uma vez mais.

— Pensa ir daqui ao castelo do conde do Sutherland? —perguntou Ruari. Mas ele negou com a cabeça. — Iremos a Blackleith. O conde não me dará ajuda se não tiver o herdeiro que ele

impôs como condição. Seu companheiro vacilou.

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— O conde tem sua parte boa e sua parte má, sem dúvida, mas talvez se mostre

acessível a um pedido de auxílio. Não se apresse tanto a descartar um possível aliado, moço, pois na verdade é difícil achar um homem disposto a te respaldar.

Erik repetiu seu gesto negativo. — Esta batalha só corresponde a mim. — Nicholas poderia ter muitos homens em seu salão. Qualquer idiota pode contratar

a mercenários. — Confrontarei-o a sós e ganhará o melhor. —O jovem lançou um olhar a seu

acompanhante. — Tem que decidir se me acompanha ou não, Ruari, pois não lhe imporei uma missão condenada ao fracasso. Seria injusto exigir tanto de você depois de servir a meu pai com tanta lealdade.

Ruari, visivelmente arrepiado, fulminou ao jovem com o olhar. — Não confrontará sem mim essa injustiça, filho, já pode acreditá-lo. Jurei pela pedra

da adaga dos Sinclair, e bem sei que não se pode faltar a um juramento assim sem repercussões terríveis. Ganhe ou perca, ajustarei meus passos aos seus, sem dúvida alguma. —O ancião apertou os lábios em um gesto sombrio e atou o cinturão. — É o menos que devo a seu pai. Por muito que Erik lhe agradecesse o sentimento, não era o melhor presságio de êxito. Depois de trocar um olhar, os dois homens se encaminharam para o bosque em lúgubre silêncio.

Ao despertar, Vivienne se achou sozinha, com algo frio na mão. Viu imediatamente que Erik tinha desaparecido. Ruari também. E o saco que o criado carregava. Ao abrir a mão viu, com uma exclamação abafada, que segurava o alfinete de prata que Erik costumava usar no manto. Compreendeu então que ele a tinha abandonado e que essa bonita bagatela era seu presente.

Mas tinham um trato de concubinato! Vivienne se vestiu depressa e saiu à coberta. Era cedo, tão cedo que a luz matinal mal tocava o céu.

Ao que parecia faria bom tempo; os marinheiros já começavam a despertar. Falavam de içar as velas, de virar para o sul, de que logo chegariam ao porto. Mas Vivienne, agarrada à amurada, tinha a vista fixa em duas silhuetas que avançavam pelos baixios. Conhecia muito bem essas duas silhuetas masculinas, assim como reconhecia ao homem que retornava no bote para o navio. Esperou ao Padraig junto à escala, certa do que de via fazer.

— Padraig, rogo-lhe —, me leve também à costa. O homem se deteve na escala, com o cabo do bote na mão. No rosto tinha uma

pátina de transpiração por ter remado contra as ondas; sua expressão não era alentadora. — Como pode me pedir isso? —resmungou, enquanto subia à coberta. — Se a

deixasse sozinha em uma costa deserta, Rosamunde me faria engolir meu próprio fígado. — Não estaria sozinha — insistiu ela, segurando-o por uma manga antes que pudesse

passar a seu lado. — Por favor, Padraig, meu caminho é o do Erik. Necessito de sua ajuda. O homem meneou pesadamente a cabeça. — Não podem me pedir que se ponha em perigo, Vivienne. Isso seria faltar a todas as

obrigações que tenho com sua família. — Mas Erik e eu temos um trato de concubinato.

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— Esses entendimentos não me interessam. —Cravou-lhe um olhar penetrante; logo seu tom se abrandou. — Ele a deixou aqui, Vivienne. Não compreendem o que isso significa? E lhe voltou às costas, com óbvia intenção de afastar-se.

A jovem ergueu o queixo. O que isso significava era que Erik tinha intenções de apresentar-se só a reclamar a propriedade do Blackleith; ela sabia bem; também sabia que ele necessitava de sua colaboração para triunfar. Não sabia com certeza o que poderia fazer por ele, mas sim que ambos estavam destinados a permanecer unidos. Embora ela devesse ajudar ao destino.

— Se não me ajudar, convencerei ao Rosamunde para que o faça — disse,

absolutamente segura de poder obtê-lo. — Ela me levará ao Blackleith. E talvez isso irrite à fada, posto que se atrasará a volta a Ravensmuir.

Padraig lhe jogou um olhar lúgubre por cima do ombro. — Não a convencerá — assegurou-, posto que a fada e eu defenderemos a posição

contrária, —Meneou a cabeça e sua voz voltou a suavizar-se. A circunstância que enfrentam não é fácil, Vivienne, embora toda mulher de senso comum deveria aceitar a verdade evidente.

Uma vez mais lhe voltou as costas para partir para o centro da nave. Ela não estava disposta a aceitar as circunstâncias. Inspirou fundo e desceu a vista para o brilho de prata que tinha na mão.

— Lhe pagarei — exclamou com súbito vigor. Padraig se deteve e se virou apenas, com um sorriso divertido nos lábios. Sua atitude,

algo zombadora, não fez senão irritar Vivienne. — Com o que, se não tem dinheiro com que me tentar?

— Tenho algo melhor que dinheiro. —Vivienne inspirou profundamente e estendeu a mão para lhe oferecer o alfinete de prata que Erik lhe tinha deixado.

Era claro que Padraig reconhecia esse broche. Seus olhos entrecerrados foram dele

ao Vivienne. Por fim engoliu a saliva e deu um passo atrás, meneando a cabeça. — Não pode me entregar isso. É o único presente que recebeu dele, tenho certeza.

Há objetos, Vivienne, cujo valor supera seu preço de mercado. Não pode me dar isso.

— Lhe darei — insistiu ela, embora as palavras lhe entupissem na garganta — É só uma bagatela, comparado com a necessidade de estar com ele. Devo segui-lo, Padraig. Isto é pouco preço.

O marinheiro lançou uma maldição e cuspiu à coberta. Logo cravou no Vivienne um olhar flamejante. Quando falou foi quase em um grunhido:

— Guarde seu tesouro — murmurou. Ela não se moveu. Temia que ele continuasse negando-se, mas o homem se adiantou

abruptamente e a pegou por um cotovelo.

— Será melhor que recolha tudo o que lhe faça falta, pois devemos partir imediatamente. Não quero que Rosamunde me veja fazer isso.

— Obrigada, Padraig! —exclamou Vivienne, jubilosa. E se esticou para lhe dar um beijo na face curtida. — Tudo sairá bem. Já o verá.

— Tudo sairá como deve sair; isso é a única coisa que podemos assegurar. —Ele

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limpou a face. Logo a ajudou a passar pela amurada. — Não perca tempo com agradecimentos — disse, posto que ela voltava a lhe agradecer.

Mas o brilho de seus olhos revelou que apreciava sua gratidão. Ela se sentou no bote, aplicando sua vontade em manter-se tão quieta como lhe era possível. Depois de segurar o alfinete a seu manto, dedicou-se a observar a costa enquanto Padraig se aproximava remando.

Ao ver os dois homens que subiam pelas rochas o coração lhe deu um salto. — Ali! — disse. E o marinheiro lançou um grunhido de assentimento.

Capítulo Quinze — Parece que logo teremos hóspedes — disse Ruari. Erik olhou sobre o ombro, surpreso. Mas seu companheiro tinha razão, Padraig

remava uma vez mais para a costa, com uma silhueta familiar no bote. A cintilação da alvorada nesse matagal de cabelos de cor castanha avermelhada não fez senão confirmar a identidade da mulher que se aproximava. Vivienne devia estar observando-o, pois agitou animosamente uma mão assim que o olhar de Erik posou sobre ela.

Como se ele devesse alegrar-se de vê-la. Como se deixá-la a bordo tivesse sido só uma pequena distração. Erik lançou uma estranha e vigorosa maldição. Ruari se pôs a rir, o que não era grande consolo, por certo.

— Não há distúrbio tão temível como uma mulher formosa — disse. — Salvo uma mulher formosa e teimosa, é claro.

Para isso Erik não tinha resposta. Estava muito enfurecido com Vivienne por persegui-lo. Desceu de novo à água, decidido a fazer que Padraig a levasse novamente ao navio e a sua família, onde estaria relativamente segura. Mas ela pareceu antecipar-se a sua intenção, pois desembarcou antes que ele chegasse. Com a água nos joelhos, empurrou a Padraig e o bote para águas mais profundas, com uma força assombrosa.

— Espere! —gritou Erik. Vivienne lhe lançou um olhar desafiante; depois entrou um pouco no mar para

aplicar ao bote um tranco mais enérgico. Erik desceu a saltos a última encosta pedregosa e se lançou aos baixios.

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— Não pode deixá-la aqui! —rugiu a esse condenado marinheiro. — Reme Padraig, reme! —gritou ela, obviamente disposta a empurrar ainda mais a

embarcação, se fosse necessário. Padraig, com um enorme sorriso, afundou os remos na água. Cintilou a argola

dourada que pendia de sua orelha, lhe dando na verdade o aspecto de um verdadeiro safado.

— Desejo-lhes sorte, pois a esta dama sobra decisão — gritou ao Erik. Depois começou a remar.

— Que tenham sorte em Ravensmuir, Padraig! — desejou-lhe Vivienne, agitando a mão. O marinheiro, sem dizer nada, limitou-se a lutar contra as ondas.

— Não! —uivou Erik. — Volta por ela, condenado! — Não voltará — declarou Vivienne, com temível certeza. Ele compreendeu que era verdade. E agora o que faria? Não podia abandoná-la só na

costa. Não podia nadar até o navio de Rosamunde carregando-a nas costas; muito menos, se ela não desejava retornar. Com um brilho perigoso nos olhos, Vivienne recolheu as saias para caminhar para ele. Erik compreendeu que essa mulher só aceitaria uma solução ao dilema. O alfinete de prata de sua mãe, aceso em seu manto, brilhava como não tinha brilhado nunca quando o usava ele.

— Temos um trato de concubinato — começou ela, acalorada. — E ainda não passou

sequer um mês. Dentro de um ano poderá me devolver a Kinfairlie, se decidimos nos separar.

— Se sobrevivermos até então — replicou ele. — A achava mais razoável! Que

loucura foi esta de me seguir? — Precisam de mim — disse ela, simplesmente. Logo se deteve vários passos de

distância. As saias lhe formavam redemoinhos, subiam e baixavam com as ondas. O bordado da barra refulgia sob a água. Seu cabelo voava em mechas sobre os ombros e contra o rosto; haveria-se dito que suas sardas tinham aumentado nesses últimos dias. Mantinha o olhar luminoso e claro; as costas, retas como o aço bem afiado; havia decisão em cada linha de seu ser. Era valente, assombrosa, uma valquiria que vinha pela alma de Erik. E ele não tinha muito desejo de resistir a sua conquista.

— Não necessito a nenhuma mulher a meu lado quando vou enfrentar um perigo como este — manifestou ele, sentindo-se obrigado a protestar contra sua presença.

Vivienne lhe lançou um olhar fulminante, com os braços na cintura. — Quereria me repetir, por favor, os motivos pelos quais pediu minha mão? Deve

haver um milhar de donzelas entre este lugar e Kinfairlie, mas fez essa viagem só por mim. Devo supor o que teriam uma boa razão para isso.

Erik sentiu que lhe ardia a nuca, pois adivinhava para onde se dirigia essa argumentação.

— Sabe muito bem qual era.

— Recorde-me, exigiu ela. — Foi a única pessoa, além de mim, que não se deixou enganar por Nicholas —

admitiu ele, muito consciente de que sua causa estava já perdida— Mas deveria ter permanecido junto a sua tia. Apesar da perceptiva que é não quero vê-la em perigo.

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O súbito sorriso de Vivienne foi tão radiante que Erik piscou e seu coração se deteve por um segundo.

— Na verdade é muito galante. — Nem tanto — começou ele. Mas a dama voltou a interrompê-lo. — Não, na verdade. —de repente seu olhar pareceu tornar-se mais intenso, tão

perceptivo que ele temeu que lhe adivinhasse até o último pensamento. — Se preocupa com meu bem-estar porque me ama. Erik a olhou fixamente. Sabia que era preciso protestar contra essa afirmação, fingir que não era assim, até que pudesse confessar seu desejo com um honrado pedido de matrimônio. Mas as palavras não subiam a seus lábios. Sem deixar-se intimidar, Vivienne sorriu e pôs uma mão sobre o alfinete que lhe tinha entregado

— Freqüentemente os fatos dizem mais que as palavras — murmurou. — Me ama tanto como eu o amo. Por fim nossos destinos estão entrelaçados para sempre. Embora não tenha vindo do reino das fadas, subiu até a janela encantada de Kinfairlie para conquistar meu coração.

Erik ficou emudecido de assombro ao comprovar que ela o entendia com tanta facilidade. Essa audaz declaração deveria afligi-lo mais, mas sabia que o que ela havia dito era a verdade. Não replicou, pois se alegrava de não separar-se dela, sequer durante as poucas semanas que demoraria para reclamar a propriedade de Blackleith. Embora sua presença complicasse as coisas, ao mesmo tempo sua faísca lhe infundia alento.

— Manter-se-á fora de todas as batalhas — decretou, sem prestar atenção a sua risada triunfal. Sem dúvida ela adivinhava a que se devia a mudança de assunto. — E não discutirá cada vez que eu diga algo; fará o que lhe mandar.

O sorriso de Vivienne não fez mais que alongar-se. — Farei o que seja necessário — disse, cheia de convicção. Logo jogou um olhar

travesso para Ruari e fez uma boa imitação de suas maneiras. — Já podem acreditar. Erik sorriu a seu pesar. Ela se aproximou um passo, majestosa e muito convencida do

mérito de seu argumento. — Diga o que me dizem seus olhos — insistiu. — Diga-me que o alegra minha

presença, que não poderia imaginar os dias e as noites sem mim a seu lado. —Apoiou-lhe uma mão no braço e ergueu o rosto para ele, com os olhos brilhantes, os lábios plenos curvados em um sorriso audaz. — Diga-me que na verdade teria sentido minha falta.

Erik não teve necessidade de responder. Vivienne ia aproximar-se mais, mas escorregou em algo, lançou um grito e seus pés subitamente saíram disparados. Ele a segurou um momento antes que chegasse à água. Com ela apertada contra o peito, virou para a costa.

— Sim, é muito grato resgatar a uma rapariga de sua própria loucura — murmurou. Vivienne riu, esperneando; aparentemente sua atitude resmungona não a perturbava absolutamente.

— Desmentido, senhor — brincou. E Erik não pôde conter um sorriso.

— Talvez sua presença não me seja tão indesejável — reconheceu. E sem poder

resistir à tentação, inclinou-se para beijar aquele sorriso.

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Só pensava lhe dar um breve abraço para assegurar seu silêncio, mas a paixão de Vivienne, como sempre, foi feiticeira. Devolveu-lhe o beijo com estranho ardor, com o mesmo apetite que ele sentia, e lhe fez cobrar aguda consciência do tempo que levava sem suas carícias. Esse calor familiar se desdobrou dentro dele, obrigando-o a estreitá-la com força; seu corpo traidor estava mais que disposto a devolver as carícias da dama, embora fosse impossível fazer uma proposta honrada. Ao estreitá-la entre seus braços reparou no bem forjada que estava essa mulher, no vulnerável que podia ser. Recordou o destino ocorrido a Beatrice, seu temor por suas filhas, e temeu até mais por Vivienne. Beijou-a mais a fundo, até sabendo que ela perceberia sua preocupação; não se importava nem um pingo.

— Ah, pois olhe para que viajarmos tanto — gritou Ruari. — Para que possa estar metido no mar, moço, e pegar alguma enfermidade incurável. Seria um grande favor o que faria a seu irmão, se morresse de pneumonia antes de chegar a suas portas. Vai, vai! Para isso atravessamos toda Escócia, para que se amem no mar?

Com certa relutância, Erik pôs fim a seu abraço e partiu para a costa. Ali deixou Vivienne de pé em terra e se dedicou a discutir com Ruari a melhor maneira de continuar. A moça retorceu suas saias para escorrê-las, como se estivesse decidida a não atrasar a marcha para Blackleith. Uma vez mais subiram pelas rochas; quando o sol já coroava o horizonte iniciaram a viagem terra adentro. Erik foi o único que voltou um olhar ao mar. No navio do Rosamunde estavam desdobrando as velas; o vento, ao enchê-las, impulsionava já ao navio para o sul. Já não havia maneira de voltar atrás nem de pedir ajuda a ninguém mais. Tudo ficava entre o Erik e seu irmão, mais aqueles que Nicholas tivesse convocado em ausência do primogênito.

A tarde se tornou escura; grandes nuvens cinza cruzaram o céu e se foram reunindo ali, ominosamente. O vento vinha em rajadas caprichosas, mais frias que horas antes. Erik teve a sensação de que retornava voluntariamente a um pesadelo. A cicatriz parecia arder no rosto, como se sua carne recordasse o lugar onde a tinha trinchado assim; sua claudicação parecia mais pronunciada. Ao cruzar os limites das terras de Blackleith o percorreu um calafrio; Erik rogou que essa sua reação tivesse passado despercebida aos outros.

Não passou muito tempo antes que se elevasse, a ambos os lados da estrada, um escuro matagal que ocultou até o céu enfurecido. Suas sombras eram lúgubres e intensas; as lembranças que Erik guardava desse lugar não eram menos tenebrosas. Deteve-se em um extremo das sebes que rodeavam essa porção do caminho, esse verdadeiro túnel forjado de trepadeiras e espinhos. Engoliu em seco.

— Foi aqui, pois? —perguntou Ruari em voz baixa, a seu lado. Em realidade não era uma pergunta.

Erik inspirou fundo; por um momento temeu não poder cruzar esse lugar. Recordou a Vivienne de pé na soleira do labirinto, com os olhos brilhantes de decisão. Ao lhe dar uma olhada descobriu que ela o observava tão intensamente como um pardal a uma migalha. A moça ficou ao seu lado, embora apenas lhe tocasse fugazmente o braço.

— Este lance do caminho é horroroso — murmurou, olhando para as sombras em frente. — É como se o próprio lugar guardasse lembranças de uma injustiça cometida aqui.

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Erik compreendeu que tinha adivinhado a história desse lugar e o motivo pelo qual o afligia tanto. Baixou novamente viu à estrada e tratou de vê-la com os olhos dela, sem suas lembranças. De algum modo as sombras pareceram reduzir-se.

— É só um lance do caminho — replicou em tom seco, embora ele mesmo não achasse de tudo. — Não pode guardar lembranças de nenhuma traição. Ela inclinou a cabeça para observá-lo; sua firmeza admirou a Erik. Estava convencido de que essa jovem jamais se acovardaria, que partiria confiante para qualquer situação, por mais horrenda que parecesse. Essa era a confiança que ele ansiava dar a suas filhas.

— Pois então passemos — disse ela, com tanta suavidade como se falassem de cruzar uma pradaria. — De um simples lance de estrada não há nada que temer, embora esteja sombreado pela espessura.

Tinha razão. Erik entrou na escuridão que consumia essa parte do caminho, com Ruari a um lado e Vivienne do outro. O ancião desembainhou sua espada; ele fez o mesmo.

Em três passos as penumbras os engoliram e se apertaram contra eles; as trepadeiras

pareciam sussurrar insinuações. O trecho parecia mais longo do que Erik o recordava; cada passo lhe devolvia a memória de algum golpe recebido. Assediavam-no, certamente, lembranças vividas, pois desde o ataque sofrido não havia tornado a passar por ali. Este era o lugar em que tinha caído seu cavalo; aqui a adaga lhe tocou a face; aqui se arrastou para procurar o abraço protetor do bosque. Aqui tinha ficado sangrando-se durante um tempo que pareceu eterno.

Aqui tinha perdido por completo a consciência, certo de que já não voltaria a despertar. Nesse lance de estrada reviveu o pior de seus pesadelos, embora sempre muito consciente da presença de Vivienne. Ela cheirava a flores e a sol; era um farol de luz nessa traiçoeira passagem, que lhe recordava seu passado. Caminhava sem vacilar, sem ficar atrás. Quando chegaram ao outro extremo havia já uma pátina de suor na carne de Erik; o súbito fulgor do sol o fez piscar. Olhou para trás, estremecido até a ponta dos pés, e só viu um trecho de caminho em penumbra.

— Um simples lance de estrada — disse Vivienne. Mas sabia que não era assim; via nos seus olhos.

Levado por um impulso, Erik levou a mão da moça aos lábios e lhe beijou os dedos, consciente de que sua fortaleza o tinha auxiliado nessa escuridão. Só cabia esperar que fosse possível retê-la a seu lado por toda a eternidade.

Caía a tarde do segundo dia no bosque quando Vivienne viu Blackleith pela primeira vez. Faltavam dez ou doze passos para chegar ao limite do bosque; o arbusto lhes chegava à cintura e as árvores formavam acima um dossel tão maravilhoso como o de qualquer catedral. Umas nuvens ameaçadoras se amontoavam contra o sol, que já tinha iniciado sua descida, mas seus raios lá no alto tocavam as folhas, lhes dando um esplêndido matiz dourado.

O torreão de Blackleith era uma estranha combinação de construção normanda, tradições locais e um pouco de engenho. Não era tão soberbo como as fortalezas do sul nem tão grande como Ravensmuir; tampouco tinha o artístico desenho de Kinfairlie, mas era sólido e de bom tamanho.

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Tinha sido construído sobre uma base quadrada. A parte inferior dos muros estava feita com pedras esculpidas e tão bem ajustadas que o vento não teria podido, provavelmente, assobiar entre elas. As paredes eram grosas, para conservar o calor dentro do edifício. Só se via uma porta perto do chão; por debaixo do segundo andar não havia nenhuma janela.

As pedras continuavam até alcançar duas vezes a altura de um homem. Por cima era feita de pedras menores e arredondadas, empilhadas segundo sua forma e seu tamanho e depois seladas com barro e palha. —As pedras grandes foram cortadas mais ao sul — informou Ruari-, nas terras do conde do Sutherland. Trouxeram-nas pelo rio quando as águas estavam baixas, em barcaças puxadas por homens das ribeirinhas.

— Mas a pedra muda-observou ela. — As outras são pedras recolhidas nesta zona. E se necessitou muito tempo, na

verdade, para as compilar! —O ancião assentiu com ar de sabedoria, como se as tivesse recolhido ele mesmo.

— Teria sido melhor construir tudo com a mesma pedra — comentou Erik-, mas era

muito custo para mim. — Isto você fez construir? —perguntou ela, antes de recordar esse detalhe do relato

do Ruari. — Sim; não é grande coisa. Vivienne percebeu uma advertência em seu tom, como se Erik quisesse lhe avisar que

não era um homem endinheirado. Para ela não tinha importância, mas não se dignaria explicar-lhe se ele não podia entender. Começava a pensar que a decisão de reunir-se com ele não tinha sido um acerto. Embora não lhe tinha soltado a mão enquanto cruzavam o lugar onde foi assaltado, embora tivesse beijado a mão com algo que parecia gratidão, logo a soltou como se seu contato lhe queimasse a carne. Vivienne não achava sentido em sua atitude embora se perguntasse novamente se a proximidade de Blackleith lhe faria recordar o grande amor que tinha compartilhado com sua esposa Beatrice.

Sem prestar atenção a seu comentário, ela contemplou a propriedade que Erik ansiava recuperar. O salão tinha uma grosa coberta de palha; as janelas, persianas de madeira maciça, que se podiam fechar quando aumentava o vento. Ruari parecia ter assumido o papel de guia, pois lhe enumerou com entusiasmo os méritos de Blackleith. Vivienne percebia a presença de seu amante as suas costas, sentia seu olhar fixo nela, mas já era hora de que esse homem lhe dasse algum alento.

O ancião indicou a estrutura de pedra. — Dentro do torreão, o andar principal se utiliza como salão grande e alojamento

para hóspedes. Erik, quando vivia aqui, reservava sempre o andar superior para ele e sua família. Ao segundo piso se chega mediante uma escada, mas é bastante ampla para dividi-la em quartos, está claro. E a lareira atravessa o chão por um lado. Dessa maneira o calor do fogo se distribui por toda a estrutura.

— Muito inteligente — ponderou ela. Ruari assentiu. — Além disso, no teto há um só buraco por onde sai a fumaça. E Blackleith foi a

primeira moradia de toda Sutherland a que se rodeou de um fosso, tão profundo que nele

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suas águas se mantêm sempre escuras e frias. Ao próprio conde lhe pareceu tão boa idéia que, depois de ver este torreão, falou de acrescentar um a Dunrobin.

Vivienne notou que não havia nenhum estandarte no alto da torre; nos torreões de sua família sempre havia insígnias que ondulavam ao vento.

— Essa é a aldeia de Blackleith? —perguntou, assinalando um punhado de cabanas. — Sim. E ali há também uma pequena capela — apontou Ruari. — Vê essa morada, a

da porta escura? É a casa do ferreiro, um homem tão hábil que até o conde lhe envia suas armas

favoritas quando deve repará-las. Também há um moinho; o moleiro divide seus lucros com o laird.

Além da aldeia pastavam algumas ovelhas, brancas frente às urzes purpúreas; umas quantas galinhas bicavam a terra. Para o oeste, passando a ribanceira setentrional do rio, estendiam-se os campos de semeadura, mas estavam para arar. Blackleith tinha todo o aspecto de uma propriedade que tivesse conhecido tempos mais prósperos.

Uns meninos jogavam na borda das sementeiras. Vivienne se virou para Erik. — Vê suas filhas entre eles? Ele meneou a cabeça, pois obviamente já tinha procurado suas silhuetas familiares.

Sua expressão era sombria. A moça se obrigou a utilizar um tom alegre. — Certamente, seria estranho que brincassem com os filhos dos camponeses. Devem

estar dentro do salão. Viu que o olhar do Erik deslizava para a capela. Ao seguir sua direção notou que ao

lado havia um pequeno cemitério. Acaso pensava que Nicholas tinha matado a essas pequenas inocentes?

— Nicholas é muito liberal quando se trata de gastar dinheiro alheio, sem dúvida — se queixou Ruari, enquanto apontava seu grosso indicador para uma estrutura edificada atrás do torreão, que tinha aspecto de ser nova. — Nunca é tão fácil gastar como quando não deve prestar contas, podem acreditar. Bá! Uma vez me contaram que um homem a mando do conde tinha viajado até Londres para comprar três pregos de aroma, a fim de fazer um melhor vinho especial para o senhor, e depois exigiu que Sutherland lhe pagasse todos os gastos: o alojamento de seu cavalo e o seu, toda a comida que tinha passado por seus lábios e a cerveja com que se encheu a barriga. Isso é audácia, na verdade!

— É um estábulo. E é novo — comentou Erik. — Mas para que necessita Nicholas de um estábulo, se em Blackleith só temos esse velho ruço que puxa o arado? E está bem habituado ao abrigo que o ferreiro tem atrás de sua cabana.

Todos olharam para a moradia mencionada; ali não havia nenhum ruço. — Mas onde está esse animal? —inquiriu Ruari, indignado. — O que fez seu irmão

com ele? Como farão os camponeses para lavrar os campos se não tiverem cavalo? — Não parece que lavrem nada — murmurou Erik. Uma inspeção mais detalhada revelou à Vivienne que ele estava certo, esses campos

não pareciam ter sido arados, sequer. O que crescia neles não era, certamente, um cultivo conhecido.

— Tampouco há tantas ovelhas como se deveria esperar. Apenas a metade do que

tínhamos em outros anos — observou Erik, com evidente desgosto. — E vejo que os

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meninos estão fracos. A esposa do ferreiro saiu de sua cabana para chamar as crianças. Ruari amaldiçoou. — Essa mulher está reduzida à metade do que era — disse. A preocupação lhe

reduziu os lábios a uma linha tensa. Vivienne adivinhou sem dificuldade o que tinha acontecido com as riquezas de

Blackleith, pois recordava a afeição de Nicholas pelas roupas finas. Nesse momento saiu do salão um trio de cavalheiros. Os casacos de seda refulgiam sob o sol e os via roliços. Rindo alto, os três partiram para o estábulo novo. A esposa do ferreiro os contemplou sem dissimular sua hostilidade, com os braços cruzados contra o peito, depois de congregar seus filhos junto a ela. Os pequenos entraram correndo na cabana, como se esses jovens orgulhosos lhes inspirassem temor.

— Cavalheiros? —estranhou Ruari, enrugando o nariz. — Para que quer cavalheiros o laird de Blackleith? Aqui não se organizam torneios, podem acreditar. Sem dúvida tem histriões que atuam cada noite em seu salão, e poetas que se sentam a sua mesa! Até é possível que se faça costurar fileiras de pérolas nas calças e que jogue gemas moídas na cerveja! —abriu ampliamente as mãos. — Enquanto isso, a gente que trabalha a suas ordens passa fome por falta de um cavalo de tiro. Sem dúvida vendeu aquela velha égua por um pedaço de pão duro! Seu pai deve estar revolvendo-se na tumba.

— Cale-se, Ruari, que o ouvirão. O criado lançou um grunhido. Apesar da advertência de Erik poderia dizer algo mais,

mas nesse mesmo instante os cavalheiros saíram do estábulo guiando três esplêndidos corcéis. Depois de uma exclamação de assombro e exasperação, Ruari murmurou uma maldição e passou a mão pelo cabelo.

— Não estranho que a mulher do ferreiro esteja tão desgostada. Sempre foi boa pessoa, mas abusos como estes tiram a doçura até da melhor maçã.

Vivienne viu que tinham vários falcões encapuzados nos punhos enluvados e suntuosas selas.

Os corcéis arquearam orgulhosamente o pescoço; estavam tão bem alimentados que lhes refulgia a pelagem. Eram animais muito finos, sem dúvida, mas era evidente de onde saíam os recursos com que Nicholas os mantinha. A esposa do moleiro saiu de sua cabana; depois de trocar um olhar com sua vizinha observou com desdém os cavalos.

— Deveríamos exigir que o laird nos dê um desses animais —disse à outra, erguendo a voz. Os cavalheiros fingiram não reparar nela, mas não havia dúvidas de que tinham ouvido suas palavras. —

Para que nossos filhos não passem fome neste inverno. — Não sei que espera que comamos respondeu a esposa do ferreiro. — Os cordeiros

vão parar a sua própria mesa. E ninguém pode tocar sequer um esquilo do bosque, sob pena de que lhe cortem uma mão. Os meninos não se farão grandes e fortes comendo só cebolas, isso é certo.

— Dizem que a carne de cavalo é bom alimento — acrescentou a primeira. — Embora na verdade, para a fome não há pão duro.

Os cavalheiros as olharam com fúria, mas não se dignaram a responder. — Por um delito assim os massacraria a todos — murmurou Ruari. Erik não o pôs em

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dúvida. — É claro que aprecia a esses corcéis mais que a nada no mundo. Soou uma fanfarra e um histrião saiu pelo portal do torreão, fazendo soar seu corno.

Ele também vestia trajes de fina seda de cores intensas. Ao voltar-se novamente para o interior se inclinou profundamente. As mulheres fizeram um gesto zombador, mas adotaram uma expressão impassível assim que quatro aristocratas cruzaram o vão da porta. Vivienne compreendeu que não estavam dispostas a provocar absolutamente as iras do laird.

Pois quem cruzava a ponte do fosso era Nicholas Sinclair em pessoa, ricamente enfeitado dos pés a cabeça. Seu cabelo refulgia ao sol, cintilavam as pedras preciosas que lhe adornavam os dedos. Festejou com risadas algum comentário feito pelo homem que partia a seu lado. O bonito grupo avançou para os cavalos já selados. As mulheres vestiam roupas tão ornamentadas que pareciam valer o resgate de um rei, veste muito rodeadas e debruadas de arminho, mangas que pendiam até o chão, saias e barras carregadas de bordados de ouro e gemas. As duas usavam luvas de couro colorido e prendiam o cabelo debaixo de complexos chapéus adornados com grandes penas. Atrás do grupo brincavam de correr duas donzelas, lançando risinhos e fazendo caretas de asco ao pisar no barro.

Vivienne se virou para seus companheiros, com intenção de fazer algum comentário sobre as ricas vestimentas dessas mulheres, mas lhes viu uma expressão tão abobalhada que esqueceu quanto pensava dizer. Erik parecia não poder afastar a vista da mulher que ia agarrada ao braço de seu irmão.

— O que acontece? —perguntou. — Não acredito que os assombre ver a Nicholas aqui.

Erik engoliu em seco e inclinou a cabeça. Ruari a olhou com os olhos carregados de compaixão.

— A mulher que acompanha a Nicholas... — Mostra-se como uma rainha e parece muito agradada consigo mesma —

reconheceu ela sem compreender tanta consternação. — Sem dúvida viram em suas viagens roupas igualmente finas. É certo que os camponeses tiveram que contribuir com o dinheiro. Escandaloso, sem dúvida, mas...

— É Beatrice — disse o criado, carrancudo. Vivienne os olhou a ambos, consternada, mas as feições do Erik pareciam esculpidas

em pedra. — Beatrice, a esposa de Erik? Não pode ser. Morreu. Ruari meneou a cabeça. — Parece muito saudável, entretanto. Ela compreendeu então, em toda sua dimensão, o obstáculo ao qual se enfrentava.

Era compreensível que Erik parecesse convertido em pedra! Sua amada esposa ainda vivia! Voltou-se para observá-la, com os olhos empanados pelas lágrimas. Tinha cometido um enorme engano, não se tratava só de que ele ainda amasse sua consorte, mas sim ela ainda vivia. E isso significava que Vivienne jamais poderia conquistar seu amor. O impulso a tinha guiado mal.

Beatrice vivia! Erik não dava crédito a seus olhos. Não obstante começava a achar horrendo sentido a algumas coisas que sempre o tinham confundido. Por que não tinha

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visto rastro algum de sua presença ao retornar a Blackleith em companhia do conde?Por que Sutherland não tinha encontrado a ninguém disposto a lhe dizer francamente que sorte tinha deslocado ela? Provavelmente Nicholas sabia que o conde não se apressaria a autorizar um casamento imediato com a viúva de seu irmão.

Mas o fato de que Beatrice estivesse viva tinha conseqüências terríveis. Erik tinha cometido adultério com Vivienne, embora sem saber. Tinha pecado e seria difícil que sua ignorância lhe valesse a clemência de nenhum juiz. Ao fim e ao cabo, quanta diligência tinha posto em procurar a sua esposa? Por fim tinha manchado a Vivienne duas vezes, ao despojá-la de sua virgindade e ao cometer adultério. Não podia pensar em voltar a tocá-la, ao menos enquanto não soubesse como resolveriam essas questões.

Erik incitou a seus companheiros a esconder-se entre as sombras, enquanto analisava o melhor curso de ação. Enquanto isso o quarteto de Blackleith tinha montado a cavalo e recebia nos punhos os falcões de caça. Com os três cavalheiros a lombos de três bons palafrens, foram nove os corcéis que se afastaram sem pressa para o bosque distante.

— Parece que o laird arrojará esmolas de seu salão, se se compadecer? —perguntou a esposa do ferreiro.

Sua vizinha encolheu os ombros. — Ele comerá tudo. Jogará comida a seus cães antes que dá-lo por caridade a quem

dele dependem; pode acreditar mulher. —Pois sim, diz a verdade. As duas trocaram um olhar de resignação e cada uma retornou a sua cabana, com os ombros cansados.

Erik mal olhou para Vivienne. — Permanecerá escondida aqui — disse com voz seca, decidido a não arriscá-la. Já

tinha posto em perigo sua alma por induzi-la ao pecado. Sentia-se tão culpado que não podia olhá-la aos olhos. — E não quero ouvir nenhum protesto.

— É claro — disse Vivienne, tão obediente que parecia outra pessoa. Então Erik a olhou. Ficou impressionado por sua palidez; estava abatida como nunca,

opaca a alegre faísca de seus olhos. Ela se sentou com um suspiro, como se sua carga de paciência fosse tal que não sentisse o menor impulso de fazer nada. Ele sentiu uma punhalada de culpa. Obviamente lhe curvava tanto como a consciência do pecado que tinham cometido juntos. Erik não sabia o que dizer. Ao mesmo tempo não podia partir sem lhe dizer uma palavra de consolo, pois nem sequer tinha certeza de poder retornar, aproximou um passo, mas ela evitou o rosto; mesmo assim ele viu o brilho das lágrimas não derramadas.

— Sinto muito — disse em voz baixa. — Eu ignorava isto.

— Sei — sussurrou Vivienne. Caiu a primeira de suas lágrimas. — Sei. E também sei que toda a culpa é minha, por ser tola e confiante.

— Seja o que for Vivienne Lammergeier, não é nenhuma idiota.

Ela ergueu a vista entre lágrimas e esboçou um sorriso trêmulo. — Agradeço-lhes a cortesia, embora tema que me atribuísse mais méritos do que na

verdade possuo. — Impossível — assegurou ele. Durante um momento intenso se olharam nos olhos. Ele viu sua esperança, adivinhou

o que desejava dele e sentiu a forte tentação de brindar-lhe, mas não lhe declararia seu

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amor enquanto não pudesse fazê-lo honradamente. Não o faria só para evitar seu pranto. Inclinou a cabeça em uma saudação silenciosa e, depois de lhe voltar as costas, convocou a Ruari com um estalo dos dedos.

— Agarraremos os cavalos das donzelas, que não parecem amazonas eficientes — resolveu. — Logo perseguirei o Nicholas, fuja aonde fugir. O criado assentiu com um grunhido e desviou para Vivienne um olhar paternal. Logo se aproximou para lhe apoiar uma mão no ombro. Erik lhe ouviu dizer, resmungão:

— Este assunto não terminou menina, pode acreditar. Sabe tão bem como eu que a pior loucura é perder as esperanças quando o êxito está ao alcance da mão, embora não se veja. Quando tudo parece mais espantoso é quando as coisas estão por dar um giro em nosso favor, assim como a noite se torna mais escura justo antes do amanhecer.

— Agradeço-lhe, Ruari, tão sábio conselho — disse ela. O ancião se pavoneou com orgulho. — Vá! É um milagre que alguém conceda algum mérito a minha opinião, é claro que

sim – disse com forçada alegria. Depois passou junto a Erik com exagerada impaciência, como se tivesse estado esperando-o, e até estalou os dedos. — Vá, filho, que a caçada não começa enquanto perdemos tempo conversando.

Os dois jovens trocaram um olhar que reconfortou o coração de Erik. Virou-se para seu criado e ambos puseram-se a correr pela margem da pradaria, sem abandonar as sombras protetoras do bosque.

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Capítulo Dezesseis Não era habitual que Rosamunde sentisse medo, mas desta vez o sentia até nos

próprios ossos ao ver Ravensmuir ali acima, no penhasco, por cima de seu navio. Aproximavam-se da costa ao cair da tarde, coisa que raramente tinha feito anteriormente. Nesta oportunidade não achava motivos para andar com subterfúgios. Na verdade ansiava que Tynan lhe saísse ao encontro. De qualquer maneira teria que buscá-lo, pois necessitava do anel que lhe havia devolvido para saciar a essa spriggan vingativa.

Os marinheiros estavam calados. Costumavam ser supersticiosos, como Rosamunde bem sabia, e sua relutância em servir a uma mulher só podia haver-se incrementado com a notícia de que ela estava ameaçada por uma fada maliciosa. Padraig, de pé ao seu lado, parecia um tutor decidido a cuidar de que seu tutelado completasse uma tarefa desagradável. Desde que ela se inteirara de que Padraig tinha colaborado na partida de Vivienne a relação entre ambos era tensa. Quando despertou, a nave estava já várias milhas mais ao sul e não havia possibilidades de ir atrás do casal. Agora, já esfriada a cólera, Rosamunde devia admitir que as intenções de seu sócio eram boas.

Mas isso não impedia que estivesse louca de preocupação por sua sobrinha. Nesse dia as nuvens brincavam de correr pelo céu, que já estava tingido de rosa, e o torreão se recortava contra o firmamento pintado. Era preciso reconhecer que Ravensmuir, esse montão de pedras vetustas, tinha certa dignidade que provocava admiração.

— Não sabemos sequer se a spriggan está ainda conosco — se queixou, tão irritada por isso como por ver-se obrigada a cumprir a vontade de outro. Padraig grunhiu:

— Duvido de que a abandone justamente agora. Essa criatura parece duvidar de suas intenções. Na verdade não me explico por que. Rosamunde passou por cima desse comentário. Pelo que a ela concernia, Padraig podia dar o gosto de acabar seus dias na Sicilia, pois ultimamente se tornara excessivamente triste e franco. Mas também era certo que ela tinha perdido parte de seu habitual encanto ao romper com Tynan. Sobre a nave caiu a sombra dos penhascos que se erguiam no alto. Rosamunde estremeceu.

— Entrarei sozinha nas cavernas — disse abruptamente. — Não sei o que acontecerá

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e não quero pôr a ninguém em perigo. — Acompanharei-a — ofereceu Padraig em voz baixa, preocupado. — Não, desta vez não. Rosamunde se voltou para esse homem, que por mais tempo tinha navegado com

ela. Agora tinha prata nas têmporas e rugas na pele bronzeada. Seus olhos se estreitaram, embora mantivessem seu matiz vibrante, e ria menos que em outros tempos. De repente Rosamunde o visualizou navegando para o sul nesse mesmo navio, sem ela ao leme. Esse tipo de visões a visitava freqüentemente e tinha aprendido a não desconfiar delas.

Apoiou-lhe uma mão no curtido antebraço, segura de que essa era sua última despedida e um pouco assustada pelo que tinha diante de si. —Leve o navio — disse, com voz rouca. — Deixe-me na costa e ponha proa ao sul, rumo à Sicilia.

Padraig franziu o sobrecenho. — Mas o que farei com a carga? — Vende-a. Vende tudo onde lhe paguem um preço justo, e fica com o dinheiro que

obtenha. —Rosamunde não podia olhá-lo. Não estava habituada a fazer presentes tão generosos e temia que seu companheiro o rechaçasse por orgulho, embora o tivesse ganho.

— Mas... — É o menos que te devo por tantos anos de serviço leal. — Mas e a nave? — Vende-a também ou conserva-a para você. Não me importa Padraig. —Com um

suspiro, levantou uma vez mais os olhos para o sombrio Ravensmuir. — Fui rica e fui amada. É melhor ser amada. —obrigou-se a lhe sorrir, pois obviamente ele pensava que tinha perdido o juízo. Piscou para conter as lágrimas. — Irá bastante bem — acrescentou, resmungona. — O vi. E já sabemos que o que vejo se faz realidade.

Padraig inspirou também, trêmulo, enquanto percorria com o olhar os penhascos que tinham diante.

— O que vê para você mesma?

Rosamunde meneou a cabeça. Foi ele, então, quem afastou a vista, com um sulco na testa.

— Sempre hei dito que via mais longe que ninguém, mas estava cega ao que tinha

diante de seu nariz — comentou; sua atitude era ao mesmo tempo robusta e afetuosa. — Seja prudente, Rosamunde, embora isso não esteja em seu caráter. Essa fada quer lhe fazer mal; embora lhe entregue o anel é provável que sua sede de vingança não fique saciada. —Baixou a voz. — E embora a fada te perdoe, é possível que o laird de Ravensmuir não o faça.

— Não importa — repetiu ela, até sabendo que isso era verdade. — Meu destino está aqui, como sempre, e a única maneira de continuar é cruzar essas cavernas de Ravensmuir. —voltou-se para lhe estreitar a mão, por não fazer a despedida mais difícil do indispensável. — Adeus, Padraig. Que o vento encha sempre suas velas quando o necessitar.

Ele a surpreendeu encerrando-a em um forte abraço; logo a soltou abruptamente e desceu a vista à coberta; por um momento seus lábios se moveram em silêncio, procurando

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as palavras necessárias. As que ao fim achou tomaram à mulher de surpresa, coisa que raramente acontecia.

— Cem vezes combatemos costas contra costas, Rosamunde, e sempre será minha amiga. —Olhava-a com expressão feroz, como se a desafiasse a discutir. — Foi minha única amiga, mas uma amiga tal que não necessitei de nenhum outro.

— Ninguém teve nunca um amigo tão leal como o que eu encontrei em você — disse ela.

— Sim, eu. Então ambos afastaram a vista: Padraig, para o mar; Rosamunde, para o escuro

portal da caverna. Nunca se haviam dito palavras tão sinceras. Ela compreendeu que desta vez o faziam

porque ambos temiam que essa despedida fosse a última. — Aguardarei a maré — disse Padraig, com voz rouca. — Ainda demorará um

momento em mudar. Se me necessitar, se necessitar deste navio, não tem mais que me chamar.

Rosamunde tinha certeza de que não o chamaria, sem que importasse o que lhe esperasse nas cavernas. Também tinha certeza de que ele não aceitaria essa simples verdade. Ali dentro a aguardava seu destino, qualquer que fosse, e ela sabia até no fundo de suas entranhas. Tinha medo, o medo que toda pessoa com bom senso sente quando enfrenta à conta final.

Mas é impossível fugir do destino. Estaria-a esperando, obrigaria-a a voltar os passos

para Ravensmuir uma e outra vez, até que enfrentasse o que devia. Era melhor enfrentá-lo agora.

Rosamunde e Padraig se separaram então em apressado silêncio, pois não ficava nada por dizer. Ela desceu pela escada de cordas, sob o olhar vigilante dos marinheiros contratados; depois pegou os remos do pequeno bote amarrado ao navio e remou com vigor para a escura boca da caverna, desfrutando de sua própria força e das salpicaduras da água contra a pele. O mar a erguia e parecia impulsioná-la para diante; o sol fazia com que a superfície parecesse embelezada com gemas.

Rosamunde se sentia viva e capaz de apreciar os abundantes dons recebidos. Sempre tinha gozado de boa saúde; tinha conhecido um amor fervoroso e uma sorte nada comum. Dez ou doze vezes pôde burlar a morte, arrancar uma e outra vez melhores condições à fortuna. E nunca tinha perdido a um homem no mar. Só quando a envolveu o frio da sombra se perguntou se acaso tinha completado já toda sua porção de boa sorte, se a partir desse momento já não ficava mais. Foi então que, pela primeira vez, acreditou ouvir a risada da spriggan.

Não era uma risada alegre, sem dúvida. Rosamunde amarrou o bote, sem voltar um só olhar a seu navio, e partiu a grandes passos para o interior da caverna. Agora corria uma falha entre o lago e a cova maior, um abismo que tinha água escura no fundo. Ela recordava bem suas garras espectrais, que tinha sofrido durante sua última visita ao lugar. Acendeu uma tocha com a pederneira que levava sempre e, com a tocha no alto, entrou no labirinto.

Não tinha certeza de que a spriggan a acompanhasse nem havia maneira de saber.

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Não podia vê-la. Talvez partisse compassando seus passos aos dela, mas em todo caso já não ria.

Rosamunde avançava com decidida presteza, seguindo o caminho que conhecia como a palma de sua mão. Subiria ao quarto de Tynan, decidiu, pois ali era onde tinha deixado o anel e onde seria mais provável que pudesse encará-lo a sós. Se ele não estivesse ali, se não achasse o anel, teria que decidir outro curso de ação.

O labirinto nunca a tinha intimidado, embora pusesse a muitos nervosos. Para ela se tratava de corredores, úteis corredores lojas de comestíveis de miçangas bonitas e de surpresas intrigantes. Nesse dia, não obstante, percebia ali um aroma diferente. Nesse dia era como se os muros emanassem algo ameaçador. Talvez fosse porque o labirinto estava agora vazio. Talvez porque as relíquias que continham as gavetas antes amontoadas ali proporcionavam certo amparo místico, que agora já não existia. Caminhou mais depressa, virando em várias curvas com uma falta de cautela que não era o habitual nela.

Assim entrou sem vacilar na caverna maior da qual partiam quase todos os caminhos. Deteve-se tão de repente que esteve a ponto de tropeçar. Outra tocha derrubava um atoleiro de luz no chão de rocha esculpida, ao outro lado do recinto. O homem que a segurava esperava com as botas bem plantadas no chão. Nem sequer se movia, embora ela sentisse o peso de seu olhar. Contra sua vontade, seu coração se acelerou de uma maneira muito rebelde. Pois o homem que a esperava ali era Tynan Lammergeier, laird do Ravensmuir, o amor de sua vida.

Dez vezes Vivienne se deixou guiar por uma decisão equivocada e impetuosa, mas nunca antes tinha errado tão a fundo. Sentou-se no bosque de Blackleith, abatida, sem que lhe importassem as gordas gotas de chuva que começavam a cair. Depois de cobrir a cabeça com o capuz, plantou o queixo no punho, com um suspiro. Erik e Ruari entraram no bosque à carreira e já não os via. Nicholas e seu grupo de caçadores também tinham desaparecido no distante borrão que era a selva.

As duas esposas descontentes estavam já no interior de suas cabanas, com os meninos. Até as galinhas tinham desaparecido. E ela se sentia mais só que nunca em sua vida. Mas esse destino era só culpa dela. Na verdade as coisas estavam enlodadas. Madeline, em seu lugar, faria com que tudo acabasse perfeitamente, mas Vivienne não possuía sua capacidade para reparar nos detalhes que se alinhavam contra si. Freqüentemente subestimava os desafios aos quais enfrentava. E neste caso sua decisão de ir atrás de Erik só afetaria a ela.

Alexander já não poderia lhe conseguir casamento. Isso era certo. Na verdade lhe importava pouco, pois o único marido que desejava era um homem que, obviamente, já estava casado.

Não obstante, desejava com ardor que sua audaz decisão não prejudicasse a imagem (e as possibilidades conjugais) de suas irmãs ainda solteiras.

As donzelas eram tão ineptas como Erik previa. Ele e Ruari não acharam dificuldades para aproximar-se subrepticiamente por detrás, pois elas não reparavam no que as rodeava. Só na localização de sua ama. As duas criticavam sua maneira de vestir e suas maneiras com um gozo selvagem, mas cuidando de não ser ouvidas. Estavam ali, no perímetro do bosque, rindo-se das sedas escolhidas por sua senhora, enquanto os cavalos

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pastavam. — Esse tom dourado lhe dá aspecto de morta — gargalhava uma. — E o bordado deveria estar em uma tapeçaria, não nas voltas de uma senhora —

acrescentou a outra. — Mas Lorde Henry continua lhe pagando todos os caprichos. Está cego, acaso, ou

talvez embevecido? A segunda donzela pôs-se a rir. — Não lhe importa o preço, enquanto possa mantê-la cega.

— O que significa isso?

— Já saberá qualquer noite destas, quando achá-lo sozinho na despensa. — Está-me dizendo que se deita com você? —assombrou-se a primeira. Obviamente, a outra não estava disposta a revelar todos seus segredos, pois

murmurou: — Esta condenada chuva, Parece que tenho que estar sempre indo urinar. E desmontou, deixando a sua companheira com um milhar de perguntas, para entrar

no bosque. Por sorte, no saco estava ainda aquela parte de corda que Erik tinha utilizado para

escalar os muros de Kinfairlie. Agora lhe seria de muita utilidade, certamente. Extraiu-a da bolsa e se aproximou sigilosamente da criada, que estava recolhendo a camisa, sem suspeitar ameaça alguma. Erik saltou sobre ela.

Em um abrir e fechar de olhos a teve em terra, atada, com os olhos dilatados pela estupefação. Ela mal teve tempo de emitir uma exclamação de protesto antes que lhe colocasse um trapo na boca.

Bastou esse som para despertar a curiosidade da outra criada. — Adele? —perguntou. Erik ouviu que desmontava também. — Adele escorregou? Não pôde perguntar mais, pois o cavalheiro lhe aplicou o mesmo tratamento que a

sua companheira. As duas mulheres ficaram juntas em terra, debatendo-se inutilmente. — Necessito de seus cavalos — explicou Erik. — Quando tudo isto se resolver as

porei em liberdade. Essa promessa não pareceu tranqüilizá-las, mas não havia tempo para aplacá-las. Ele e Ruari montaram para ir em perseguição de Nicholas.

Vivienne não tinha noção do tempo que estava sentada ali, abatida; aumentava a chuva quando aqueles seis cavalos se aproximaram rapidamente estendido através da pradaria. Ao ver o passo que traziam ficou de pé, convencida de que eram sinal de más notícias. Mas Nicholas não estava entre eles. Eram as duas senhoras e o aristocrata do grupo de caçadores, seguidos pelos três cavalheiros. Todos eles vinham empapados até os ossos, opacos os finos trajes sob a chuva.

Beatrice jogou sem cuidado seu falcão a um cavalheiro e entrou no salão. Vivienne se irritou em ver que se tratava tão mal a uma besta que, com os braceletes e o capuz postos, achava-se indefesa. Os peregrinos eram caçadores nobres, dignos de respeito tanto por seu caráter como pelo que custava adquiri-los e adestrá-los. Como descendia de uma família que se dedicava a criar e vender essas aves, ela não pôde menos que indignar-se.

Era bem possível que soltasse a essa ave, embora só fosse para que não tivesse que padecer mais semelhante trato. Seria uma pequena revanche contra essa mulher cuja mera

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existência lhe tinha destruído os sonhos; talvez fosse uma mesquinharia, mas ao menos beneficiaria ao falcão, que não podia defender-se por si só. Vivienne se aproximou um pouco mais do limite do bosque. O outro casal permanecia montado, embora a mulher se queixasse amargamente do mau tempo. Os cavalheiros se retiraram precipitadamente com os falcões, rumo ao estábulo. Seus palafrens ficaram ali, com a cabeça encurvada; não os fazia nada felizes que os deixassem assim, sob a chuva.

Dois dos moços entraram no salão, mas no trajeto se detiveram para trocar umas breves palavras com o homem, enquanto o terceiro, depois de jogar um muito breve olhar ao salão, montava a cavalo e picava o palafrém. Partiu em galope pelo mesmo caminho pelo que tinham chegado, com tanta precipitação como se temesse que o apanhassem. A partida desse cavalheiro fez pensar a Vivienne que estava acontecendo algo estranho. Se esse grupo tinha saído do bosque com tanta celeridade devia ser porque tinham visto Erik; não obstante, era difícil imaginar que plano tinham. Decidiu escutar; talvez se inteirasse de algum detalhe que fosse útil ao Erik.

Avançou para o ponto em que o bosque se aproximava mais ao estábulo novo, cautelosamente junto às sombras, embora graças à chuva seria mais difícil que a vissem.

— Olhe — disse a senhora. Sua voz alta chegou com facilidade aos ouvidos do Vivienne. — O damasco mais fino de Paris, o melhor pano de ouro de Constantinopla, tudo arruinado! Quem que esteja em seu são juízo pode viver em um clima tão horrível? Quando não chove, choveu faz apenas um minuto ou falta um minuto para que volte a chover. —estremeceu exageradamente. — E para comer assim não valia a pena fazer esta viagem. Asseguro-lhe, Henry, se me vejo obrigada a ingerir outra lebre gritarei de fúria; muito mais se ainda tiver todos seus ossos postos e estiver flutuando em sabe Deus que molho de mostarda aguada.

— Iremos bem logo, meu amor — assegurou o homem, com calma. Era claro que estava habituado à atitude de sua mulher, embora dirigisse ao céu um olhar carrancudo. Depois perguntou queixoso: — É necessário que partamos esta mesma noite? Talvez pela manhã tenha tempo limpo.

— Se quer conhecer minha opinião, quanto antes partamos melhor será. Mas é uma grosseria, a de Beatrice, isto de nos obrigar a abandonar a casa em uma noite como esta. Sempre soube que debaixo essa roupa tão fina era uma mulher vulgar. Ouça, por que perder mais tempo? Por que devemos esperar Beatrice e essas meninas malcriadas?

Diante dessas palavras Vivienne abriu as orelhas; escorreu-se em torno do estábulo, aguçando o ouvido para escutar mais.

— Porque prometi que as protegeríamos querida minha. Sua esposa se virou para ele, irritada. — Mas por quê? Do que pode nos servir um par de garotinhas? Se fossem varões os

poderia treinar para que o sirvam, mas meninas! Terá que casá-las; terá que vesti-las, e é quase certo que são tão vaidosas como sua mãe, com o que lhe custarão muito dinheiro, no fim de contas. E tudo para que? Não se pode dizer que sejam de nobre berço. E duvido que serão bastante bonitas para casar-se bem por méritos próprios. Ao fim e ao cabo as meninas são insuportáveis. Basta ver quão inúteis resultaram essas donzelas! Não são capazes de manter-se sobre a sela. Pouco me importa que tarde toda uma semana em

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chegar caminhando ao salão; Beatrice pode ficar com elas e aproveitar suas habilidades.

— Sacudiu a cabeça. — Não sei no que estava pensando quando aceitou esse trato. — As filhas de Beatrice serão uma boa doação para o convento local, certamente —

observou ele, com voz suave. Sua esposa lhe cravou um olhar silencioso, sobressaltada. A impressão de Vivienne

foi tão grande que precisou sufocar uma exclamação. Não podiam fazer isso com as filhas de Erik! Uma coisa era entregar um filho próprio à vida contemplativa, mas ninguém tinha direito a fazer isso com um filho alheio. Como se atreviam esses dois a planejar tais coisas? Mas obviamente não tinha ouvido mal, pois a mulher sorriu.

— Ah, Henry, que ardiloso é. Assim faremos uma contribuição sem esvaziar nosso tesouro. Mas não nos exigirão uma doação para mantê-las?

— Confia em mim, querida. De algum jeito obterei um bom trato por elas. —Henry lançou uma risada breve. — Em definitivo, se o convento não as aceitar sem mais, podemos vendê-las como servas.

Jamais! Vivienne se esqueceu dos falcões, decidida agora a ajudar às filhas de Erik. A mulher gargalhou.

— Já obteremos alguma vantagem da visita a esta horrenda morada. Gosto de seus planos, Henry. —

Nesse momento sorriu, pois Beatrice saía do salão de Blackleith, trazendo aos puxões as duas garotinhas. — E ali vêm esses anjinhos encantadores! —anunciou em tom melífluo.

As duas meninas não se comportavam como anjos, certamente. Para Vivienne foi claro que não acompanhavam a sua mãe de bom grado, como se adivinhassem o destino que as esperava. A menor arrastava os pés, em sombrio descontentamento; por fim Beatrice murmurou algo e a ergueu sem esforço, pela cintura.

— Vamos, minha querida Astrid — disse, como se a menina fosse só um pouco lenta. Uma criada que aparentava uns quinze verões apareceu da porta para olhar a cena

com os olhos entrecerrados. Não fazia nada por ajudar a Beatrice; mantinha-se de braços cruzados, sem mover-se dali.

— Diria-se que não querem separar-se de você, querida Beatrice — disse a aristocrata, com muita doçura na voz.

— É que estavam dormindo — assegurou a aludida. — As crianças não costumam estar de muito bom humor quando os obriga a levantar-se de súbito. —Apertou um beijo na têmpora de Astrid, mas a menina lhe grunhiu sem dissimulações. Sua mãe fingiu uma risada. — Vá com Deus! Habituada como está a sua babá, quando me vê meio adormecida não me reconhece.

A garotinha acentuou esse comentário com um enérgico chute à perna de sua mãe. Beatrice fez uma careta e a trocou de posição, com os cotovelos e os joelhos bem seguros contra seu peito. Astrid começou então a espernear vigorosamente. A mulher partia para o casal com um brilho decidido nos olhos.

— Venha, Erin. Poderia me prestar ajuda — disse Beatrice à moça no portal. A criada negou com a cabeça e não se moveu. — Farei-a açoitar por desobediente — assegurou sua ama, sem soltar à menina que

esperneava.

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Erin sorriu. — Antes terá que me apanhar — disse. E virou para fugir pelo bosque. Os três aristocratas a seguiram com a vista, horrorizados por sua desobediência. — Já vêem, nestas terras não se pode conseguir uma babá decente — murmurou

Beatrice, apertando os dentes. — Imaginem as dificuldades a que enfrento. Tenho a certeza de que as meninas se beneficiarão com uma viagem ao sul. Não se arrependerão deste pequeno favor que me fazem. Em geral estas pequenas são incomparavelmente doces.

Mairi, a maior, seguia a sua mãe com ar carrancudo; obviamente não tinha nenhum desejo de mostrar-se doce.

— Depressa! —replicou-lhe sua mãe. E virou para sorrir como um sol a suas hóspedes.

A expressão da menina revelou que se avizinhava um motim. Vivienne, que tinha irmãos menores e um lar onde nem sempre reinava a calma, reconheceu o brilho que lhe acendia os olhos e se preparou para o tipo de distúrbios que pode montar uma criatura pequena e iracunda. Mairi se moveu com estranha celeridade, saltou vigorosamente para diante para pisar nas saias de sua mãe, afundando no lodo aqueles finos bordados, em uma atitude tão vingativa que pôs em claro a falta total de afeto entre ela e sua progenitora.

Essas saias eram tão longas e complexas que Beatrice conseguiu dar cinco ou seis passos sem inteirar-se do que sua filha maior fazia, concentrada como estava em lutar com a pequena. De repente o tecido ficou tenso contra seus joelhos. A dama só teve tempo de lançar um grito e adivinhar a verdade antes de enredar-se nas dobras e cair no barro. Astrid aproveitou a ocasião para escapar de entre seus braços. Vivienne viu a luz de maliciosa satisfação que acendia o rosto de Mairi ao rasgar-se audivelmente a saia de Beatrice.

Ela virou com assombrosa celeridade e lhe cruzou a rosto com uma bofetada. A pequena caiu sentada com um chapinhar e rompeu em um pranto de protesto. Sua mãe retirou energicamente suas saias da lama e, depois de levantar bruscamente Astrid, plantou-a no regaço da aristocrata.

A outra se afastou, enojada. — Não posso levá-la nos braços! —exclamou, erguendo as mãos como se o mero

contato a espantasse. E olhou em redor, consternada. — Deve haver uma criada, uma babá, alguém que as acompanhe. Que está sujando minha saia! Henry!

Astrid lançou uma só olhada a seu rosto e rompeu a chorar gritando. Beatrice tratou de arrastar Mairi até ali, mas a menina já estava bastante cheia para que fosse difícil movê-la contra sua vontade. Enquanto isso os cavalheiros tinham saído do salão com vários sacos bem cheios e os estavam carregando nos palafrens que ainda esperavam sob a chuva.

— Deve ir com o Henry e Arabela —disse Beatrice à rebelde Mairi. — Darão de presente coisas bonitas, vestirá bem e comerá pratos tão deliciosos que acreditará estar no paraíso. A menina a fulminou com o olhar.

— Virá você também? —inquiriu, com suspeita. Ela sorriu para benefício de suas hóspedes.

— Sei que sentirá falta de mim, Mairi, mas por agora devo ficar aqui. Veremo-nos

dentro de pouco. —E se inclinou para lhe beijar na face.

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Mairi a empurrou para um lado, lhe deixando uma impressão lamacenta no rosto. Depois se levantou do barro para partir até o estribo de Herry e lhe estendeu os braços, ordenando:

— Levanta. Henry parecia não saber o que fazer.

Vivienne adivinhou que esse casal compreendia subitamente os méritos das duas donzelas que tinham abandonado no bosque. E isso lhe inspirou uma idéia. Começou por ater-se melhor o manto, para ocultar melhor sua fina saia. Como seu manto estava sujo, não despertaria suspeitas.

Transladou apressadamente o alfinete do Erik, para escondê-lo sob o manto, e deu

um passo para sair de entre as sombras, com o capuz lhe cobrindo a cabeleira. — Poderia lhes oferecer minha ajuda — disse. Todos os do grupo, abobalhados, viraram-se para observá-la. — Quem é? —quis saber Beatrice.

— Sou uma trabalhadora livre e procuro uma família nobre que me empregue a seu serviço. Na morada do conde do Sutherland me disseram que mais ao norte havia uma casa grande onde possivelmente se necessitasse alguém de meu ofício. Por isso vim até aqui.

— Qual é seu ofício? —interpelou Arabela. — Fui ama de leite — mentiu Vivienne. — E tive a meninas a meu cargo. Posso

ensiná-las a bordar e inculcar-lhes as normas de etiqueta. — Mas o que a traz tão longe? —insistiu Beatrice. — Por que abandonou seu

emprego anterior? Vivienne gostaria de conjurar um rubor. — Por medo — começou, enquanto se esforçava por idear algum detalhe acreditável.

Henry a percorreu com um olhar apreciativo, que lhe provocou o rubor desejado e lhe deu uma idéia. — Por medo a acabar outra vez como ama de leite — disse.

As duas mulheres assentiram ao uníssono. Arabela açulou a Henry com a ponta de um dedo.

— Felizmente, em nossa casa não passará esses temores, não é, Henry? — Certamente que não, querida minha — confirmou o homem, um pouco

perturbado. — Mas tem certeza de que necessitamos a esta mulher? Ao fim e ao cabo será outra boca que alimentar.

— Levanta! —exigiu Mairi. Astrid pegou uma das pérolas costuradas à saia de Arabela,

com tanto vigor que a arrancou do pano. A pérola caiu ao chão e se afastou rodando. Vivienne se apressou a recolhê-la e a devolveu à senhora.

— Deve ter viajado muito — comentou Arabela, com um olhar calculador, enquanto aceitava a gema.

— A lascívia de meu senhor era na verdade muito grande — explicou ela, com as faces manchadas de um tom ainda mais intenso com essa confissão.

A mulher a avaliou abertamente; logo fez um gesto afirmativo.

— Se tentar assim a outro nobre em minha morada a farei açoitar.

— Fica entendido milady. —Vivienne inclinou a cabeça, como o faziam os criados no Kinfairlie. — Me empenharei em lhes agradar, milady.

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Para acentuar suas palavras, retirou a Astrid do regaço da senhora e a estreitou

contra si. A pequena a observou com suspeita, mas para alívio seu não chiou. — Baldwin, monta com Algernon e cede o outro palafrén à criada — ordenou Henry a

seus cavalheiros. — Venham. Se partirmos imediatamente, antes da meia-noite poderemos contar com a hospitalidade do conde.

Foi Mairi quem esteve em um tris de arruinar o plano do Vivienne, pois uma vez em seu regaço deslizou sob seu manto. Ela supôs que as meninas tinham frio e lhes permitiu aproximar-se, mas Mairi ergueu a mão para o alfinete de prata e fechou os dedos em torno dele. Deteve-se o coração de Vivianne. A pressão daqueles dedos, a súbita quietude da menina, fizeram-lhe temer que a criatura tivesse reconhecido a jóia.

— Chist —lhe sussurrou, tratando de não chamar a atenção do aristocrático casal que cavalgava diante— Não há por que chorar. Logo estaremos em uma cama abrigada, com uma boa comida na barriga.

Mairi continuava tocando o alfinete; em seus olhos brilhantes, cujo azul vivido recordava o do Erik, havia mais cumplicidade do que correspondia a sua idade. Sustentava o olhar de Vivienne com tanta solenidade, sem soltar o alfinete, que a jovem se perguntou o que recordaria de seu pai e de seu pretendido falecimento.

— Vi a nau — disse Tynan, pigarreando. Nesse momento parecia sentir-se tão incômodo como Rosamunde.

Ela não disse nada. — Ao vê-la compreendi que retornava. Tinha a esperança de que viesse sozinha. — Por quê? —perguntou Rosamunde, sem atrever-se a esperar bondade alguma nele

depois de lhe haver ouvido tão duras palavras ao separar-se. Tynan inclinou a cabeça; parecia inexplicavelmente fascinado pela ponteira de suas

botas. — Porque lhe devo uma desculpa e me falta elegância para essas coisas. Ela sentiu que sua resistência se abrandava, pois sabia que as desculpas eram tão

estranhas aos lábios desse homem orgulhoso como aos dela. — Não lhe falta elegância para nada. Um sorriso fugaz curvou a boca do cavalheiro, aliviando por um instante a tensão de

seu rosto, antes de desaparecer sob outro gesto carrancudo. — Agradeço-lhe isso, mas acredito que é muito amável. — Aproximou-se alguns

passos mais. Rosamunde viu que tinha novas rugas de tensão em torno dos olhos. Talvez esse

intervalo tivesse sido igualmente difícil para os dois. Era uma possibilidade tentadora. Tynan engoliu a saliva visivelmente.

— Quando respaldou as pretensões de Rhys FitzHenry à mão de Madeline pensei de você o pior, em vez de lhe perguntar o que sabia dele. —Referia-se à sonora batalha que ambos tinham sustentado pelo destino de sua sobrinha; embora tivessem passado vários meses, a lembrança ainda enfurecia a Rosamunde. — Pois o acusava de traição, dava por sentado que devia sê-lo, mas você sabia que as acusações elevadas contra ele eram falsas.

— Sabia, sim.

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— Peço-lhe perdão por ter acreditado que colocava Madeline em perigo sem causa alguma. Em minha perturbação não soube compreender que você não faria algo assim, pois sempre protegeu aos seus.

Rosamunde inclinou a cabeça em sinal de reconhecimento. — Não lhe faltava justificativa ao supor que eu alternava com safados. Não teria sido

a primeira vez. — Fui injusto. Tynan pigarreou outra vez e deu um passo mais. Agora ela percebia o brilho de seus

olhos, e seu fôlego acelerado. Era possível que sentisse tanto medo como ela? — E lhe peço perdão — continuou ele-, pois estava certo ao me acusar de tratá-la

mau. Quando decidimos leiloar as relíquias você supôs que pensava me casar com você. E eu, sabendo que achava isso, não te esclareci minhas verdadeiras intenções. Quando voltamos a compartilhar o leito sabia que para você era o começo de nosso futuro, mas não me atrevi a lhe confessar a verdade nem a me separar de você sem que fizéssemos amor pela última vez. Também me equivoquei ao te negar qualquer legado de Ravensmuir.

Rosamunde pigarreou por sua vez e se aproximou um passo mais. — Eu não deveria tê-las roubado — reconheceu. Sua recompensa foi o breve

relâmpago de um sorriso. — Provoquei você. — Estava furiosa. Ele inclinou a cabeça. — Fui muito tolo. Ela esteve a ponto de tocá-lo, mas caiu na conta de que Tynan não lhe prometia

outra coisa. Enquanto aguardava, o observou com atenção. Ele levantou a mão esquerda. Ali brilhava o anel de prata que antes usava ela, no mindinho, embora lhe cobrisse até o nódulo.

Quando ergueu a vista descobriu que Tynan a observava.

— Se case comigo, Rosamunde — sussurrou com voz rouca. — Se pode me perdoar.

— Mas o que será de Ravensmuir? Ele afastou a vista com um suspiro, carrancudo.

— Temo que esteja perdida.

Dentro de Rosamunde se acendeu a ira. Levanto o queixo. — Reconcilia-se comigo porque não fica nada que proteger? Não sou prêmio de

consolação para ninguém! Tynan ergueu uma mão para interromper sua argumentação e meneou a cabeça. — Archibald Douglas quereria um trato comigo, mas quanto mais demoro em aceitar

mais onerosas se tornam suas condições. Cada dia me pressiona um pouco mais. Eu estava disposto a desposar a uma mulher de sua família, se com isso fechássemos trato e salvava a Ravensmuir, mas não estou disposto a deserdar ao meu sobrinho Malcolm.

— Só deixarão em pé a Ravensmuir se tiver um herdeiro com uma deles — adivinhou Rosamunde.

Ele assentiu. — E Malcolm ficará sem nada, embora jurei nomeá-lo herdeiro. —Tynan ergueu um

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punho; a fúria lhe relampejava nos olhos. — Toda promessa feita deve ser cumprida; cada um deveria respeitar os votos feitos pelo homem com quem trata. Mas Douglas não reconhece peso algum às promessas que não servem a sua ambição. Não tolerarei mais exigências suas, embora dessa maneira já não possa mantê-lo longe de minhas portas.

— Ravensmuir será sitiado por seus vizinhos — advertiu ela em voz baixa. — Nos atacará, sem dúvida alguma. —Tynan se encolheu de ombros, com os olhos

cintilantes. — Possivelmente o teriam feito, de qualquer maneira. Possivelmente a noiva que me

destinavam lhes teria levantado o restelo. Não sei. Tampouco me importa. —Elevou a voz. — Pressionou-me em excesso e já não tolerarei mais. —tirou-se o anel do dedo para oferecer-lhe. Havia paixão em seu olhar. — Se Case comigo, Rosamunde, pois na verdade a amo.

Mas ela vacilava. Isso era tudo o que tinha acreditado desejar; não obstante, um horrível portento lhe detinha os passos. Estremeceu-se ao olhar aquele anel que antes tinha usado; encerrava um presságio tenebroso. Então temeu que o amor do Tynan por Ravensmuir se interpusesse uma vez mais entre ambos.

— Devo me casar com você porque já não lhe importa o que seus vizinhos pensem de sua esposa? — brincou.

Ele se pôs a rir. — Essa gente só procura enganar e fazer a guerra. Ninguém que tenha bom senso

pode preocupar-se com o que eles pensam. —Seguiu a curva de sua face com a ponta de um dedo, com os olhos resplandecentes. Sua voz soou sensual. — Sentia sua falta, Rosamunde. Aceita meu anel e volta para meu leito.

— Não disse que eu não servia para ser a senhora de Ravensmuir? — Só por minha estupidez. Equivocava-me. — Equivocava-se, sim — confirmou ela. — Sorte a tua, que eu seja dada a perdoar. — Não é. Por isso seu perdão seria um dom inapreciável. —Tynan arqueou uma

sobrancelha. Era uma idiota ao sentir medo de aceitar o que tanto tinha ansiado, agora que o tinha

a seu alcance. Não havia sombra alguma em frente, só a perspectiva desconhecida de viver ligada a outro ser humano. Rosamunde, sorridente, deu um passo adiante para franquear a última distância que os separava.

— Acredito que nossas mútuas desculpas estão aceitas — disse. E ergueu a mão. Tynan segurava o círculo de prata entre o índice e o polegar. Ela

sorriu ao sentir que o deslizava, uma vez mais, pelo dedo. Refulgiu a prata enquanto corria por seu dedo. Imediatamente, um alarido maligno encheu a caverna.

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Capítulo Dezessete Erik e Ruari seguiram à partida de caça, embora do céu começassem a cair gordas

gotas de chuva. — Isto nos favorece — proclamou Ruari, agradado. — As mulheres quererão voltar

para o salão, sem dúvida. E quando a partida retorne a alcançaremos sem dificuldade. Esporearam a seus palafrens; as bestas continuaram ao galope pelo atalho aberto entre as ervas do bosque. Em frente apareceu um ponto luminoso e, de repente, os cavalos saíram a uma clareira. A mudança foi notável, sobre tudo porque repentinamente lhes caiu em cima um dilúvio.

Erik soprou e sacudiu a cabeça para tirar o cabelo dos olhos. O cavalo tinha diminuído o passo. O porquê estava à vista. Do outro lado da clareira, um grupo de cavaleiros saía do bosque. Os cavalos se saudaram com um relincho suave. Antes que Erik tivesse tempo de cobrir-se com o capuz, Nicholas lançou uma sonora maldição. Beatrice açoitou sua montaria com um grito e uma palmada na garupa; o animal passou junto a Erik pela esquerda. Os cavalos do casal aristocrático fugiram atrás dela; seus cavaleiros estavam molhados e confundidos nas selas.

Nicholas os teria seguido, mas Erik lançou um rugido e açulou a seu cavalo com um grito para perseguir a seu traiçoeiro irmão. Ruari se apressou a ficar a sua esquerda e entre os dois o impediram de fugir para o torreão. Então Nicholas voltou a garupa abruptamente para galopar na direção oposta e procurar o amparo do bosque. Erik adivinhou imediatamente para onde se dirigia e esporeou a seu cavalo. Nesse ponto o chão se curvava para cima por uma colina erma que ele conhecia muito bem. Dali se via todo o panorama para baixo, até o Mar do Norte. Os irmãos Sinclair tinham brincado ali freqüentemente, pois havia um grupo de grandes pedras antigas que oferecia muitos lugares onde esconder-se.

A chuva começou a cair em lâminas frias, mas Erik não se importou. Com o pulso acelerado, incitou ao palafrém a galopar a maior velocidade, embora dessa maneira deixou a Ruari muito atrás. Irrompeu no topo, nu salvo pelas abundantes urzes em flor, que cresciam até a altura do joelho Nicholas fez virar bruscamente a seu cavalo dentro do círculo de pedras. A besta se ergueu.

Nesse momento um relâmpago rasgou o céu. — Chegou a hora do julgamento, Nicholas —gritou Erik. Seu irmão pôs-se a rir. — Não acredito que você seja quem me julgue. Já não confia em mim, irmão meu? — Há tempo me ensinou que isso era uma loucura. —O mais velho reprimiu ao seu

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cavalo dentro do círculo para confrontar ao outro sob a chuva. O casaco de Nicholas, empapado como estava, já não parecia tão magnífico; também o ouro de seu cabelo parecia mais opaco. Posto que nunca tinha gostado que o vissem salvo com seu melhor aspecto, cravou em Erik um olhar carrancudo, como se ele tivesse convocado à chuva.

Depois esboçou um sorriso zombador. — Demorou tanto tempo em aprender essa lição que cheguei a pensar que não a

entenderia nunca. — É menos malvado pensar bem de sua própria família que pensar mal — observou

Erik, enquanto levantava a espada em desafio. Nicholas lhe lançou uma cutilada com súbita fúria; as folhas ressoaram ao chocar. O

movimento defensivo de Erik foi tão veloz que desviou o aço de seu irmão.

— Sempre foi mais rápido que um demônio — disse Nicholas. E atacou outra vez. Mas nessa oportunidade feriu o cavalo de Erik. Seu irmão xingou baixo e fez o possível por lhe desviar a espada, mas estava além de seu alcance. O cavalo, alcançado no pescoço, lançou um relincho de medo, que Nicholas celebrou com uma risada.

Embora a ferida fosse leve, o animal estava assustado e os olhos de seu atacante revelavam uma intenção mortífera. Erik se lançou ao chão da sela; bastou-lhe tocar os flancos do palafrém para que a besta fugisse. Alargou-se o sorriso de seu irmão.

— Agora estamos mais ao mesmo tempo — disse. E atacou novamente. Os aços ressonaram e se travaram uma e outra vez. O cavalo de batalha bailava de

lado, soprando, obrigado por seu cavaleiro a mover-se em círculos em torno de Erik. Nicholas impulsionou a espada para baixo, por detrás de seu irmão, e lhe cruzou com um talho a face posterior dos ombros.

Erik virou e quase desmontou a seu irmão com autêntica força. Isso lhe deu uma idéia. Não se atrevia a descarregar toda sua potência para não ferir o cavalo, mas aguardou a que Nicholas lançasse outra cutilada para mover o aço para cima, com súbito vigor.

Seu irmão lançou um grito de dor, alcançado no lado interior do braço. Em seus olhos houve um brilho colérico; imediatamente lançou uma estocada para baixo, com perigosa força. Erik se agachou para passar sob o enorme corcel e empurrou para cima o pé de seu irmão pelo lado oposto, ao mesmo tempo em que o arrancava do estribo. Bastou isso, somado ao impulso do próprio Nicholas, para que o cavaleiro caísse a terra.

Rodou ao cair, lançando uma maldição, e se levantou com os olhos semicerrados. Seu cavalo de batalha fugiu colina abaixo, fazendo ondular as bridas para trás. Erik cometeu o engano de olhar à besta. Nesse único segundo em que afastou a vista, Nicholas lhe deu uma estocada. Seu irmão viu o brilho do aço na periferia de seu campo visual e deu um salto para trás. O aço lhe fez no braço uma ferida limpa e profunda. Embora sangrasse com fúria, ele não prestou atenção à dor e levantou novamente a espada.

— Poderia combater honradamente sequer por uma vez — disse. Seu irmão sorriu. — Até agora minhas táticas me foram muito úteis — disse, arqueando uma

sobrancelha — Nestas paragens ninguém sentirá falta de você, Erik; isso é certo. Sua esposa é mais feliz em meu leito; suas filhas me chamam pai e Blackleith nunca foi tão próspero. Nosso próprio pai sabia a verdade quando disse que foi a vergonha do ventre de nossa mãe. —Sepultou-o com honras? Ou talvez não quis ter esse trabalho?

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As espadas se encontraram com um ressonar de aços. Os irmãos retrocederam, cada um movendo-se em círculos cautelosos em torno do outro. Nicholas riu entre dentes.

— Os mortos não falam Erik, e eu não quebrarei esse silêncio. O velho se foi e ao final

ficou ao meu lado. Ao menos consegui convencê-lo finalmente de meus méritos. — De verdade? — Imagina quanto me chateava que me comparasse sempre com você? Com você!

Com você, que não foi capaz de pôr uma mentira em seus lábios, muito menos uma frase aduladora; com você, que não sabia seduzir a uma mulher embora já estivesse deslumbrada por ti; com você, que nunca se preocupou por seu aspecto. Entretanto, nosso pai sempre me recordava seus méritos, além de apontar minhas deficiências. Era tedioso, no melhor dos casos. —Nicholas sorriu. — Foi um grande prazer vê-lo o final escravizado a mim, obrigado a me suplicar para receber uma comida três vezes ao dia.

— Não pode tê-lo humilhado assim! Ele se limitou a sorrir. E imediatamente abafou uma exclamação horrorizada ante o vigor com que Erik o

atacava. Seu irmão aplicou à espada toda sua potência, obrigando-o a retroceder contra uma rocha. Depois lhe aproximou limpamente a espada por debaixo do queixo. Nicholas conteve o fôlego, enquanto uma fina destilação de sangue, misturado com a chuva, corria pelo aço.

— Por esta traição apodrecerá no inferno — rugiu Erik. — Arderá ali. E será justiça, por ter desonrado assim ao homem que lhe deu a vida. Nicholas endureceu o olhar e franziu os lábios. Depois cuspiu nos olhos.

Erik piscou. Era a oportunidade que seu irmão necessitava para escapulir-se por debaixo de sua espada. Ambos se perseguiram mutuamente em torno das pedras, fazendo chocar as espadas e escorregando no lodo. De repente Erik perdeu de vista a seu irmão. Girou com lentidão, precavido e alerta. Não ouvia a não ser o bater da chuva; não via mais que as urzes inclinadas sob o ataque da água.

— Já! —exclamou Nicholas, a sua direita. Erik virou, mas muito tarde: a espada de seu irmão tinha enganchado a sua por

debaixo do punho. Sua mão, molhada pela chuva, não pôde segurar a arma com bastante firmeza; Nicholas conseguiu arrancar— lhe e o aço caiu a terra.

— É uma pena que não saiba combater honestamente, como corresponde a um homem de mérito — murmurou ele.

— Ganho, como quero que seja — replicou o menor. — Ganha com armadilhas, pois não conhece outra maneira. —Erik o olhou nos olhos.

— É o que disse Vivienne Lammergeier; obviamente, ela o conhece muito melhor que eu. Nicholas ficou de pedra.

— Vivienne? Conhece Vivienne? Erik assentiu, enquanto desembainhava a adaga. — Conheço-a, sim. E o que dizia é verdade, essa dama é uma maravilha. Seu irmão se deteve, espantado. — Não deitou com ela, não é verdade?

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Ele se limitou a sorrir. Nicholas investiu. Espada e adaga se acharam com fúria, perigosamente perto do rosto de Erik. Ele se defendia, entre grunhidos de esforço, e conseguiu tocá-lo na face.

O outro deu um salto atrás e levou a mão ao rosto, gritando: — Não me desfigure! — É o mínimo que merece — interveio Ruari, aparecendo de súbito por detrás de

uma pedra. Nicholas virou de repente para apontar sua espada para ele. Mas a arma era grande e

pesada; Erik aproveitou o momento para saltar sobre ele e ferir-lhe a mão. A espada caiu na terra; o sangue correu atrás dela. Nicholas retrocedeu contra uma rocha; seu olhar voava de Ruari a Erik.

— De maneira que este será o final, não? Matará a seu próprio irmão como a um cão? Deixará-me sem duelo nesta colina?

Erik vacilou. — Você quis fazer o mesmo com seu próprio irmão — recordou Ruari. — E não tinha

motivos. — Basta de blablabla! —replicou-lhe Nicholas. Depois lançou uma olhada dissimulada

ao espaço aberto mais à frente do círculo de pedras.

— Seu escudeiro morreu — informou Ruari com tom indiferente. — Lhe teria

perdoado a vida, mas ele estava decidido a provocar meu fim. Não me ficou mais remédio que assegurar o seu. Como é possível que tenha ensinado a um rapaz tão jovem a combater até a morte, mesmo que estivesse em desvantagem?

O outro apertou os lábios, mas em vez de responder cravou em Erik um olhar intenso.

— Matará-me na verdade, irmão meu? Poderíamos nos reconciliar e administrar Blackleith de comum acordo. Beatrice voltaria para você com prazer, ao menos se eu o ordenasse, sem dúvida.

Ruari grunhiu. Erik preferia não matar ao último de seus parentes, a menos que tivesse certeza de

suas más intenções. A chuva os castigava; retumbavam os trovões. Nicholas umedeceu os lábios; o medo lhe acelerava o fôlego. Isso agitou as lembranças. Uma horrorosa verdade encheu os pensamentos de Erik: uma convicção que não lhe permitia desculpar a seu irmão. Levado por uma nova firmeza fez um gesto impaciente para que Ruari se retirasse.

O criado obedeceu com óbvia relutância. Sob o olhar ávido de seu irmão, Erik passou a adaga à mão esquerda, logo virou lentamente a palma para cima, abriu os dedos e arrojou a arma a um lado. Nicholas, sem perder um só instante, jogou-se para ele com os dedos estendidos. Mas ele estava preparado. À velocidade do relâmpago, levou a mão para trás e extraiu a adaga de seu pai, que tinha metido sob o cinturão, nas costas. Enquanto seu irmão travava os dedos em torno de seu pescoço, ele levantou o aço e o desceu entre as omoplatas de Nicholas. Viu dilatar aqueles olhos enquanto a adaga se afundava. Os dedos de Nicholas se afrouxaram dentro do mortífero abraço; seus olhos se tornaram frágeis de dor.

— Chove hoje — sussurrou Erik-, tal como chovia quando recebi estas cicatrizes.

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Seu irmão o olhava com fixidez. Era impossível saber se compreendia suas palavras ou não.

Mesmo assim devia pronunciá-las. — Em momentos de perigo os sentidos se tornam mais agudos. Lembro como soava

o fôlego de meu último atacante; lembro o ruído de suas botas na estrada, o ritmo de seu passo. E seu cheiro. –Erik tirou do pescoço os dedos lassos de seu irmão; por um momento segurou o peso de seu corpo. —

Hoje volto a percebê-lo. Acaso pensava que esqueceria? — Não devia saber — sussurrou Nicholas. — Não devia viver para recordar. Erik deixou que seu irmão caísse a terra. Deixou-o morrer inundado e só. Passou por

cima dele e, depois de lhe arrancar das costas a adaga de seu pai, saiu daquele círculo de pedras. Até com o convencimento de ter feito o correto, Erik não experimentava orgulho algum. Limpou nas urzes a antiga arma dos Sinclair, para tirar do aço o sangue de um Sinclair. As lágrimas lhe corriam pelo rosto, mesclando-se com a chuva. Sabia que Ruari estava ali, ao seu lado. Jamais voltaria a subir essa colina, pois jamais poderia esquecer o sangue que a manchava.

Seu companheiro lhe apoiou uma mão no ombro e deixou escapar um suspiro.

— Meritório é o homem que pode completar uma tarefa desagradável, mas que deve

ser cumprida. Seu pai estaria orgulhoso de você, Erik Sinclair, já pode acreditar. — Meu pai choraria hoje comigo, Ruari — replicou ele, suavemente. E pôs a adaga

dos Sinclair em suas mãos, pois no momento não podia olhá-la — Disso não me cabem dúvidas.

Nesse mesmo instante Rosamunde e Tynan, nas cavernas de Ravensmuir, viam-se assaltados por um agudo alarido.

— Procurem outra jóia para esse namorico selar com promessas! Esse anel é meu! No centro da caverna brotou um selvagem redemoinho alaranjado, de um matiz tão

feroz que Rosamunde pensou que provinha das tochas. Mas não era uma chama, mas uma nuvem furiosa.

— O que é isso, em nome de Deus? —exclamou Tynan.

— Temo que seja a spriggan. —Ela mal teve tempo de dizê-lo antes que a nuvem

explodisse para cima. No alto arco do teto se quebrou a pedra; várias partes caíram a terra, em torno deles.

— Falta a seus votos, ladra traidora! Quero esse anel! E o quero AGORA! Mas não havia tempo de responder às exigências da fada. Tynan, lançando uma

maldição, empurrou o anel até a base do dedo do Rosamunde, que não sabia se o fazia por instinto ou por vontade. Logo virou e extraiu sua espada. Ela o imitou, embora sabia que, contra esse inimigo, seria um gesto inútil. Enquanto isso Darg lançou um ensurdecedor alarido de fúria. A nuvem que parecia ser sua manifestação duplicou seu tamanho; parecia ferver contra os muros de pedra. Para consternação de Rosamunde, das paredes do túnel começaram a desprender-se grandes pedras que se estrelavam em torno deles e caíam dentro do abismo. Ergueu-se um véu de pó, mas a nuvem não deixou de crescer.

A rocha começava a grunhir, como se não pudesse conter a fúria da Darg. Apareceram gretas que se foram estendendo rapidamente pela superfície da pedra, mais e

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mais longas com cada grito da spriggan. — As cavernas vão derrubar se! —gritou Tynan, por cima do estrondo. E pegou a

Rosamunde pela mão para correr com ela para o corredor que conduzia para cima, para o solário de Ravensmuir.

A nuvem lançou um uivo mais agudo; na rocha, por cima da porta, apareceu uma longa greta.

Rosamunde compreendeu que não a alcançariam a tempo, mas tanto ela como seu companheiro correram mais depressa. Uma enorme parte de rocha se desprendeu e caiu no corredor, justo diante de seus pés, bloqueando a passagem; envolveu-os uma nuvem de pó. Tynan, sem vacilar, virou para outro portal, que conduzia aos estábulos. Sobre a cabeça de ambos pareceu cintilar um relâmpago que serpenteou no ar carregado de pó, até impactar na rocha. Os muros de pedra rugiram vibrantes; outra enorme pedra bruta foi bloquear lhes a passagem.

— Ficaremos presos! —disse Rosamunde. E virou-se. Continuavam caindo pedras frente aos outros portais. Um estalo feroz ressonou em todo o recinto, obrigando-a a levantar a vista. Até o chão se sacudiu nesse rumor. Ela temeu o pior. Vamos, na abóbada de pedra, abriu-se uma fissura que foi alongando-se com alarmante rapidez.

Tynan, ao seguir a direção de seu olhar, deixou ouvir uma maldição. Vamos, na distância, ouvia-se um rangido de pedras e de muros que cediam. Rosamunde compreendeu que não era só o labirinto o que se estava derrubando, toda Ravensmuir se desmoronava em torno deles; enquanto os túneis se fechavam, a poderosa fortaleza caía de joelhos. E ninguém, absolutamente ninguém sabia que ela e Tynan estavam presos sob a rocha.

— Estamos perdidos! —sussurrou ele, tratando de atrai-la em um abraço. Ela não estava disposta a render-se dessa maneira. Sabia o que desejava a spriggan

dela. A fada tinha liberado sua nave da bruma. Terei que pagar a dívida. Tirou do dedo o anel que Tynan acabava de lhe pôr e o jogou para a furiosa nuvem alaranjada que os estava atacando.

— Que loucura é essa? —exclamou Tynan, enquanto se jogava para o anel de prata. — Esse anel era de minha mãe!

— Deixa-o! —gritou Rosamunde, por cima do ranger da rocha. Mas não lhe prestou atenção. Viu-o cair de joelhos e procurar desesperadamente a

jóia entre as pedras. Ela deu uma olhada à rocha que se desmoronava ali acima. Depois olhou em redor.

— Ali, Tynan! —exclamou, com súbito alívio. — Ali há um portal que não tínhamos visto!

Com efeito, assim era. Refulgia com uma estranha luz dourada, como se os convocasse a aproximar-se.

Tynan levantou a vista. — Não conheço essa passagem. — Mas está ali. — Não sabe aonde conduz. — Pouco importa isso agora!

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— Eu não gosto — insistiu ele. — Pois eu não gosto disso! Rosamunde assinalava o teto da gruta, que começava a mover-se. Sobre eles caiu

uma chuva de pedregulho. Na têmpora do Tynan apareceu uma destilação de sangue. — Corre Tynan! —gritou ela. E se jogou para o portal luminoso, na hipótese de que ele a seguiria. Mal chegou a

cruzá-lo; mal teve tempo de reparar nessa estranha luz dourada que refulgia ali diante. Houve outro ruído de rocha quebrada. Um rugido ensurdecedor encheu a caverna que ela acabava de abandonar; as pedras caíam violentamente. Meio sufocada pelo pó, viu que estava sozinha. Conseguiu ver o corpo quebrado de Tynan ao outro lado do portal, um momento antes que o sepultassem as pedras. Então soube o que tinha temido descobrir ali. Uma vez mais, Tynan tinha preferido a Ravensmuir.

Rosamunde virou-se; suas lágrimas surgiam com estranho vigor. Outro tumulto de rocha desmoronou nas cavernas, com tanta violência como se uma deidade vingadora estivesse selando o labirinto por toda a eternidade. Ela se jogou para a estranha luz dourada. De repente, uma parte de pedra a golpeou na testa. Rosamunde Lammergeier não soube mais.

Vivienne não sabia com certeza como faria para escapar com as filhas de Erik. As

meninas eram muito pequenas para correr ou brigar; além de organizar a fuga, ela teria que as defender e defender-se. Não tinha certeza de que confiassem nela (como podiam confiar, na verdade?), nem de que a obedecessem. Tampouco sabia como as manteria a salvo uma vez que abandonassem o grupo. Talvez pudesse esperar a que passassem perto de Ravensmuir ou de Kinfairlie; então seqüestraria a meninas para fugir para o seio de sua família. Certamente, isso dependia de que Henry e Arabela chegassem até Kinfairlie.

Ao que parecia, uma vez mais tinha acreditado ter mais habilidades do que tinha. Contra todas suas aspirações, Arabela e Henry deram em discutir as vantagens de passar essa noite na morada do conde de Sutherland. Como o conde era a única pessoa que podia reconhecer às filhas de Erik (embora na verdade era possível que não tivesse prestado nenhuma atenção a essas garotinhas, interessado como estava em assegurar a sucessão) o assunto era de grande interesse para Vivienne.

Enquanto escutava desavergonhadamente a conversa do casal, tratou de arquitetar uma maneira de influir sobre a decisão final. Astrid dormitava contra seu peito, com o polegar metido na boca; Mairi se tinha sentado atrás dela, também de rosto a Vivienne. Parecia dormitar também, mas seus dedos ainda acariciavam as suaves linhas do alfinete de prata.

— Não vejo nenhum mérito em nos deter ali a estas horas — repetiu Henry, quando menos pela sexta vez. — Não é decoroso despertar ao dono de casa tão tarde para pedir hospitalidade.

— Acaso imagina que continuarei viagem com este tempo, sem sequer uma comida quente, um bom banho e um leito macio? —replicou Arabela. — A hora pouco importa. Como cobriremos a distância entre uma casa e a outra? Se não tivesse insistido em que levássemos estas meninas, a estas horas já teríamos percorrido várias milhas.

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— Se você não tivesse insistido em visitar Beatrice de Blackleith, não estaríamos

sequer nestas frias terras. — E o que podia eu fazer? Abundavam os rumores sobre ela e seus ricos domínios do

norte; a julgar pelos comentários parecia um verdadeiro paraíso. Não tinha mais opção que vir, sobre tudo depois de perder essa aposta com a condessa. Acredite-me, Harry, que me teria encantado ganhá-la. Teria desfrutado muito de imaginá-la a ela neste mísero país, em meu lugar. Não duvido de que ela se divertirá a minha custa. Deve cuidar que ela só ouça coisas boas desta viagem. Possivelmente deveríamos lhe dizer que as riquezas do Beatrice são indescritíveis. —Arabela riu entre dentes diante da perspectiva. — Assim sentirá o impulso de vir vê-las com seus próprios olhos.

— Lhe diga o que achar necessário, querida minha. Basta com que me faça saber o

que devo dizer eu. — É muito galante, Henry — disse Arabela, tamborilando com os dedos contra o

braço de seu marido. Depois reduziu a voz a um gorjeio sensual. — Acredito que deveríamos nos deter na

morada do conde e exigir a melhor cama para nosso prazer. Os cavalheiros reviraram os olhos, enquanto continham um sorriso.

— Se isso lhe agradar, milady, acredito que seria benéfico para as meninas que

fizéssemos alto por esta noite — se atreveu Vivienne.

— Seu caráter não pode ser pior — comentou Arabela, cheia de altivez; logo moveu despectivamente a mão. — Eu não gosto de seus caprichos. Será você, moça, quem se fará encarregada delas enquanto eu não as necessite. As crianças devem ser ignoradas enquanto não sejam úteis.

Henry observou por cima do ombro, com os olhos semicerrados, ao pequeno grupo de gente molhada. Seu olhar se deteve muito tempo em Vivienne. Ela se disse que dava muita importância a sua expressão, mas só até que ele falou.

— Acredito que a criada tem razão, Arabela — murmurou, embora seu interesse não parecia centrar-se justamente nas meninas. — Esta noite me sentaria bem uma cama bem macia.

E piscou audazmente um olho a Vivienne, enquanto sua esposa se pavoneava, sem prestar atenção à direção de seu olhar. Os dois cavalheiros trocaram uma cotovelada e olharam lascivamente para Vivienne. Ela compreendeu então que na verdade tinha subestimado os perigos de sua situação.

Vivienne já não estava em seu esconderijo. Isso preocupou a Erik. Não havia sinais dela, como se nunca tivesse estado em Blackleith. Sua ausência tinha posto nervoso também a Ruari. Os cavalos tinham retornado ao estábulo da colina e estavam ali, tremendo sob a chuva. Erik deixou a seu companheiro diante do torreão de Blackleith. Na aldeia tudo estava muito tranqüilo; assustava-lhe pensar no que acharia dentro do salão. Ruari, que montava guarda diante das portas, fez-lhe uma inclinação com a cabeça ao ver que entrava subrepticiamente nas sombras defumadas do interior.

No salão grande não ardia uma só tocha, mas ficavam brasas acesas na lareira. Tudo estava muito silencioso, como se não houvesse ninguém dentro dessas muralhas. Não se ouviam soluços nem risadas de crianças, nem sequer o fôlego de alguma pessoa

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adormecida. Com o coração preso do medo, Erik se perguntou o que teria feito Beatrice com suas filhas. Teria escapado com elas ao sul, aonde não pudesse as achar alguma vez mais?

— Suspeitava que pudesse estar ainda com vida — disse ela, tão inesperadamente que Erik deu um pulo.

Então a viu, sentada no salão, pelo resto deserto, com um cálice sagrado diante de si, na mesa. Continuava sendo tão formosa como antes, embora seus lábios tivessem agora uma careta azeda e seus olhos pareciam mais ardilosos. Talvez antes ele não tivesse sabido ver o que tinha ante seus olhos. Beatrice sorriu, como se entre eles não houvesse muito tempo e muita traição; depois bebeu um gole da taça.

— O conde de Sutherland não é homem sutil, no melhor dos casos, e ultimamente tem feito algumas perguntas intencionaiss.

— Onde estão Mairi e Astrid? Alargou-se o sorriso de Beatrice.

— Surpreende-me que se interesse por elas. Não são filhos varões o que deseja todo homem?

— São minhas filhas e não tem nenhum direito a... —começou Erik. Mas ela o interrompeu. — Só resta isto do vinho. —levantou-se para aproximar-se dele, com o cálice sagrado

na mão, e o ofereceu. — Quer um gole? — Recebe-me com muita solicitude, pelo que vejo. Ela fez uma careta. — Suspeitava que tivesse sobrevivido. Ao ver a Ruari temi que tivesse retornado. Era

inevitável que combatesse com Nicholas por Blackleith. E igualmente inevitável que triunfasse. —Observava-o sem que ele pudesse adivinhar seus pensamentos. — Sempre teve esse condenado talento para sobreviver. E Nicholas, apesar de seus muitos dons, não é tão bom espadachim como deveria. —Riu sem regozijo. — Ao menos com a espada que elevaria contra ti. —Levantou o cálice sagrado em uma saudação ao Erik e bebeu longamente de seu conteúdo, sem deixar de observá-lo por sobre o bordo. — Teria sido muito mais interessante que combatesse por mim.

Erik soprou. — Que sentido teria combater pelas atenções de uma mulher que só cuida de si

mesma? Relampejaram seus olhos. Parecia a ponto de golpeá-lo, mas em troca o olhou e fez

uma careta. — Com o que ficou de seu rosto aterrorizaria a qualquer donzela. Não permita Deus

que volte jamais para meu leito. —Seu sorriso se tornou amargo. — Claro que, graças a você, tampouco terei ali a Nicholas. Suponho que o matou, não é verdade?

— É claro. Ela desviou então o rosto. Erik se perguntou se acaso tinha sentimentos por alguém,

depois de tudo.

— Onde estão Mairi e Astrid? — Foram-se. — Aonde? —Como Beatrice não respondia, ele a pegou por um braço para obrigá-la

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a olhá-lo. A mulher riu entre dentes. — Não sei, e isso é o melhor do assunto. Como não sei não posso dizer. Embora se

enfureça comigo e por certo, já me tirou tudo o que eu apreciava. Mas eu lhe tirei tudo o que você apreciava.

— Não pode lhes haver feito mal! Beatrice se limitou a sorrir. Sorria com tanta segurança que ele teria querido sacudi-

la até que lhe repicassem os ossos.

— O que pode lhe importar? Na verdade duvido que sejam de sua semente.

Erik a observou, abobalhado. — Eu achava que isso era só um rumor. — Um rumor com raízes verdadeiras. Acaso imaginava que podia me saciar, torpe

como é no leito e incapaz de pronunciar elogios doces? Eu era uma beleza, com cem pretendentes as minhas portas!

Buscaram-me barões e príncipes fui cortejada por homens que vinham de muitas léguas ao redor. — Deu um passo atrás para olhá-lo com desdém. — Mas me casei com o Erik Sinclair, herdeiro de uma propriedade modesta, incapaz de elogiar a uma mulher com palavras poéticas nem para salvar a vida. Alguma vez se perguntou por quê?

— Cada dia me assombrou que minha boa sorte – reconheceu ele, precavido. Beatrice riu com aspereza. — Eis aqui o presente que lhe faço marido meu. Quando fui ao seu leito, em nossa

noite nupcial, não era donzela. Na verdade temia estar carregando o fruto de outro homem e não era tão idiota para irritar ao meu pai com essa notícia. Teria me açoitardo até que sangrasse. E a carne rasgada não aprova nenhum homem. Tinha que procurar marido e me casar depressa. Nesse momento apareceu ante as portas de meu pai, procurando aliança. Foi útil, Erik Sinclair; isso foi tudo.

— E quando soube que não esperava um filho? —perguntou ele, pois queria saber toda a verdade, por mais cruel que fosse. Ela não podia referir-se a Mairi, pois a menina tinha nascido depois de um ano de matrimônio.

Beatrice se aproximou de novo à mesa principal para servir-se outro pouco de vinho. — Não o incomoda que me sirva eu mesma, não é? Neste condenado salão faltam

criados, mas entendo que assim foi sempre em Blackleith. —Lançou-lhe um olhar ladino enquanto bebia. —

Quando ficou comprovado que não esperava um filho voltei a receber a meu amante entre as coxas. Não dizem acaso que só uma mulher em toda a Cristandade rechaçou a Nicholas Sinclair? Posto que vivíamos na mesma casa, me reunir com ele era muito simples.

Erik afastou o rosto com essa desagradável informação, brindada com tanto gozo. — Copulava com ele, pois. — Freqüentemente — assegurou Beatrice, estalando os lábios com prazer, tanto pelo

vinho como pela lembrança. — É encantador que esteja tão seguro da paternidade das meninas, considerando que eu mesma não estou.

Erik não disse nada, pois lhe surpreendia ser tão pouco sensível ao que ela fazia por feri-lo. Beatrice deu de ombros.

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— Chegou um momento em que já não gostava de seguir compartilhando leito com os dois irmãos.

Ele levantou a vista. — Foi você quem forjou o plano — murmurou. Agora compreendia quem tinha

ajudado a Nicholas a planejar a conspiração. Beatrice sorriu. — Você trouxe a missiva que supostamente enviava Thomas Gunn. E insistiu comigo para auxiliar ao meu vizinho.

Ela ria. — Foi muito idiota para perceber que o enganava. —Ao acabar seu vinho arrojou o

cálice sagrado de estanho para a mesa e abriu os braços, com as palmas para cima. — Pois bem, agora recuperou o que mais desejava — provocou. — Sua despensa está desprovida; seu tesouro, vazio; seus camponeses, famintos. Ninguém cultiva suas terras e não tem sementes para a primavera. Todos seus parentes morreram, sua esposa o despreza e perdeste definitivamente a suas filhas. Como sente este retorno triunfal a Blackleith, marido meu?

Erik embainhou sua espada e lhe voltou às costas. — Não esperava nada diferente — respondeu em voz baixa. — Já no começo de meu

matrimônio descobri que não podia esperar nada bom de minha esposa. Equivocou-se ao me dar essas filhas, Beatrice, pois elas são o ouro de minhas arcas.

— Não me ouviu? É provável que não sejam de seu sangue! — Não importa. Aos olhos da lei são minhas. E são minhas porque eu assim acredito. — Mas já não as tem! — Não podem estar muito longe. Procurarei até as achar. E as educarei com honra ou

morrerei no esforço. Beatrice se jogou sobre ele e o pegou por um ombro para obrigá-lo a olhá-la. — Esperava que me matasse. Erik meneou a cabeça. — Não tenho nenhum desejo de sujar as mãos com seu sangue. — Não me despreza? Ao observá-la ele se perguntou como era possível que não tivesse visto antes seu

egoísmo. Então meneou a cabeça e lhe afastou a mão de seu ombro. — Não. Compadeço-me de você. Adeus, Beatrice. Dito isso, virou-se para sair novamente de Blackleith, sem pensar mais em sua

esposa. As meninas deviam estar com esse casal aristocrático que tinha acompanhado Nicholas na caçada. Sem dúvida cavalgariam rumo ao sul, para a morada do conde de Sutherland; até era possível que se detiveram ali. No porto não havia nenhum navio, embora também fosse possível que partissem em direção ao norte, para a grande casa que o parente do conde tinha no Girnigoe.

Somando seus próprios talentos aos de Ruari poderia determinar o rumo. Acelerou o passo, com firmeza e segurança, para recuperar suas filhas antes que fosse muito tarde.

— Canalha! —uivou Beatrice, a suas costas. O cálice sagrado de estanho golpeou a parede junto à cabeça de Erik. Ele deu um

salto com o impacto; depois lançou um olhar atrás. Beatrice, com o rosto contraído de fúria, jogou-se contra ele, com uma adaga no alto.

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Estava muito perto, a maldita. Erik compreendeu que mal teria tempo de desembainhar sua própria arma. Mas então ouviu um assobio junto à orelha. Uma adaga passou virando a seu lado e a ponta se cravou no peito de Beatrice. Ela lançou um grito abafado e deu um passo atrás. Sua mão caiu para o sangue que emanava da ferida.

Erik viu que era a adaga dos Sinclair; a safira do punho cintilava como se piscasse o olho.

Beatrice tocou o cabo do aço fundo em sua carne e tossiu. Logo meneou a cabeça. — William sempre me odiou — disse. Depois voltou a tossir. Meio caída contra a

parede, lançou a seu marido um olhar de luto. — Não podia ser outro o que causasse minha morte.

— Não foi William quem jogou a adaga — disse Ruari, com ar de desaprovação-, embora sem dúvida seu espírito o guiou até o alvo. Não tenho tão boa pontaria, podem acreditar. —E inclinou a cabeça para Erik. — Com essa arma seu pai podia fender um cabelo a quarenta passos, certamente, e deixava atônitos aos céticos com sua destreza. —Beatrice caiu ao chão, com os olhos fechados; agora sua tosse era mais fraca. — Eu nunca soube jogar tão bem. Mas tenho que reconhecer que Beatrice tampouco me agradava nem um pingo.

Erik ia aproximar-se para pôr a sua esposa em uma posição mais cômoda, para facilitar seus últimos momentos, mas Ruari o tocou para lhe deter.

— Não se aproxime dessa víbora — aconselhou, assinalando com a cabeça a adaga que ela ainda tinha na mão. — Para uma moribunda segura esse cabo com muita força. Deixa-a, que quando retornarmos terá morrido de verdade. Ante isso Beatrice entreabriu os olhos e cuspiu ao chão, com o que demonstrou sem palavras o acertado do conselho. Logo deixou cair a cabeça sobre o ombro.

Erik soube que já não existia. Mesmo assim lhe voltou as costas, pois sua batalha não tinha concluído. Tinha que achar a suas filhas. Era de esperar que não fosse ainda muito tarde.

Pois o que tinha dito Beatrice era verdade. Ela tinha tratado de lhe roubar todo o prazer de recuperar Blackleith, deixava-o privado de meios, de família e de suas filhas. Mas Erik, depois de ter apreciado a fé de Vivienne, não voltaria a ser o mesmo. Embora suas perspectivas parecessem sombrias nesse momento, tinha certeza de achar a suas filhas.

E acharia também Vivienne, qualquer que tivesse sido sua sorte. Seguiria-a até o fim do mundo, se fosse necessário, embora tivesse muito pouco para oferecer, além de seu próprio ser. Só cabia esperar que com isso bastasse.

Capítulo Dezoito

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Para consternação de Vivienne, as portas do conde de Sutherland estavam fechadas e o porteiro não se mostrava disposto a despertar ao laird em plena noite, só por prazer a um grupo de viajantes em trânsito. Quando Henry protestou com eloqüência por essa falta de caridade cristã, o homem lhe indicou um celeiro abandonado.

Tinha um buraco no teto e uma pletora de pássaros nas vigas. De vez em quando arrojavam algum projétil que aterrissava no chão de terra calcada, com um ruído úmido. Arabela teria querido discutir, mas Vivienne, que estava muito cansada, levou às meninas ao canto menos marcado pelas ejeções das aves e, depois de estender seu manto para as três, ficou adormecida. Despertou com a mão de um homem no peito e um aço afiado que lhe beijava o pescoço. Calculou que tinham passado várias horas, pois havia mais clareza e a chuva era menos intensa. Já não se ouviam trovões no alto.

E Henry estava de cócoras ao seu lado, com as calças desatadas e o pênis livre, pálido contra a escuridão e movendo-se, cheia de espera.

— Levante as saias e não diga nada — insistiu ele, em um sussurro.

Vivienne franziu o sobrecenho, com a esperança de dissuadi-lo se se mostrava severo.

— Diante das meninas, não — protestou em tom indignado, sem incomodar-se em descer a voz.

O aço se tornou mais insistente contra seu pescoço. Ela conteve a respiração. — Guarda silêncio — insistiu Henry-, ou me encarregarei de que cale para sempre. — Mas as meninas... — Ponha-as a um lado. Não se inteirarão de nada. E se se inteiram estarão bem

preparadas para o futuro que as espera. Vivienne conteve a respiração, pelo intenso desagrado que lhe inspirava esse

homem. Alegrava-se muito de ter acompanhado às filhas de Erik, pois assim poderia de algum modo, liberá-las de sua influência. Afastou Astrid de seu regaço; a menina choramingou um pouco ao sentir-se movida, mas Vivienne a sossegou e a agasalhou melhor com seu manto forrado de peles. Depois levantou Mairi, que era muito mais pesada. Henry lhe deu suficiente liberdade de movimentos para cobrir bem às meninas com seu manto. Vivienne viu um brilho nos olhos de Mairi, que se entreabriam. Pô-lhe uma mão na frente para fechá-los outra vez; para alívio seu, a menina obedeceu.

— Que bonito alfinete! —comentou Henry. — Algum laird deve ter ficado muito agradado com você para lhe fazer um presente tão valioso.

— Um grande homem me deu isso como lembrança — disse ela. Ele riu entre dentes. — A uma moça apetitosa como você? Sem dúvida lhe deu muito mais que isso. — Sim, por certo. Doou-me seu amor e as lembranças que dele guardo. São

presentes inapreciáveis. Henry esboçou um sorriso zombador, pois esses detalhes não lhe interessavam. — Sim, e a julgar pelos trajes que veste também roubou a sua antiga ama. Recolha as saias, moça. Faça-me gozar, se não quiser que minha esposa lance mão

dessa sua miçanga e talvez de algo mais. Gosta das jóias. E eu gosto de dar. Cintilou seu sorriso. — Dessa maneira faz menos perguntas.

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— Tirará-me a vida antes que este alfinete — respondeu Vivienne, com a voz grave

por sua carga de paixão. Então Henry a golpeou em pleno rosto. Logo lhe jogou seu peso em cima. Vivienne

lançou uma exclamação, mas lhe colocou uma mão entre os dentes. Tinha sabor de suor e seu peso quase a esmagava. Ao sentir que seu pênis procurava porto entre suas coxas ela lutou, embora inutilmente, pois a enfurecia sofrer semelhante abuso. De repente Henry lançou um vigoroso grito, apesar de suas próprias ordens de guardar silêncio. Mairi, que tinha deslocado em auxílio de sua babá, pegou-o pelo cabelo e voltou a lhe morder a orelha.

— Esta menina é uma besta! —exclamou ele. Ia golpeá-la, mas bastou seu movimento para que Vivienne pudesse livrar-se de seu peso. Enquanto ele levantava o punho contra Mairi, ela o esbofeteou com tanta força, por sua tentativa de castigar à menina, que ele precisou dar um passo atrás, cambaleante.

A pequena Astrid, que estava imediatamente atrás, lançou-se deliberadamente contra o lado posterior de seus joelhos e o fez cair para trás, escancarado. Henry aterrissou de costas. Seu pênis exposto ficou dançando à brisa da manhã. As meninas lançaram um risinho. A própria Vivienne não pôde conter um sorriso.

— Agradeço-lhes a ajuda — disse. E elas se apertaram a seu lado, como valentes defensoras que eram.

Henry se levantou sobre os cotovelos, com os olhos coléricos, mas Arabela o interrompeu antes que pudesse falar.

— Henry? Henry! O que faz fora de nossa cama? —Saiu de entre as sombras de frente, com o penteado torcido e a camisa enrugada. — E o que significa tanto bulício a estas horas? Não sabe o muito que preciso dormir bem? Com o som de sua voz, o pênis do Henry perdeu todo seu entusiasmo. Arabela se deteve a seu lado com óbvia indignação.

— Henry! Ele se levantou e passou uma mão pela fronte, enquanto lançava um olhar

fulminante à babá e suas duas pupilas. Depois ajustou as calças, sob o frio olhar de sua esposa. Ao ver que agitava um dedo, Vivienne não lhe deu oportunidade de ameaçá-la.

— Seu marido acaba de me atacar em plena noite, milady, coisa bem evidente para

quem tem um pingo de inteligência — manifestou certa de que nenhuma criada se atrevera nunca a dizer a verdade nas barbas de Arabela.

Não obstante era claro que a dama conhecia as aventuras de seu marido, pois apertou os lábios, muito pálida, e o olhou com altivez.

— Compreenderão —acrescentou a moça— que não posso permanecer em uma casa onde me ataca desta maneira.

— Mas não pode deixar o serviço até que eu esteja disposta a me desfazer de você — replicou Arabela, habituada a fazer sempre o que queria.

— Sim posso — replicou ela. — Seu marido não tem direito a me atacar durante a noite. Mais ainda, levarei estas duas meninas em custódia, pois não há nenhuma segurança de que em sua casa não sofram um abuso similar.

— Mas foram postas sob nossa custódia! —protestou a senhora, pensando nas vantagens dessa doação ao convento, pois Henry tinha pecados que purgar.

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— E eu tenho olhos para ver que não as querem. —Vivienne as pegou pela mão. Elas a olharam com um otimismo tão precavido que lhe rompeu o coração, pois era claro que ultimamente não tinham sido bem tratadas. Dedicou um sorriso a cada uma e lhes estreitou a mão; era alentador comprovar que lhe devolviam o gesto. — Espero poder devolvê-las a seu legítimo pai.

— Mas se ele morreu! Não é verdade, Henry? Beatrice disse que seu primeiro marido tinha morrido.

Tenho certeza. — Pois então lhes mentiu. Até ontem, ao menos, estava com vida.

— O alfinete — apontou Mairi, com um fulgor na voz. E ficou nas pontas dos pés.

Vivienne se agachou para que a pequena pudesse roçar o broche com a gema dos dedos. — Recordo esse alfinete.

— Sim. Seu pai deu-me isso. Se a sorte nos sorrir, logo o veremos novamente em suas mãos.

— Mas não podem fazer isto! —argumentou Arabela. — Você não tem autoridade para decidir. É uma simples criada e muito recentemente que está ao meu serviço. Tem que me obedecer!

Vivienne se ergueu. — Sou uma mulher de alto berço, com tantos direitos como você. Meu nome é

Vivienne Lammergeier. Se tiverem motivos de queixa contra mim, podem apresentar sua demanda na corte de meu irmão, o laird de Kinfairlie. Não obstante, advirto-lhes que ele cuidará de que se faça justiça.

Dito isso, Vivienne recolheu seu manto e saiu com as filhas do Erik à primeira luz da manhã.

Encaminhou seus passos para Blackleith, sem que lhe importasse a distância que devessem percorrer. Para que o tempo passasse com mais celeridade, começou a narrar às meninas a lenda de Thomas, o Rimador. Thomas mal chegou a achar-se com a rainha das fadas antes que se ouvisse um tamborilar de cascos na estrada, às costas delas. Vivienne se deteve insegura; nesse momento se ouviu também um galope de cavalos que vinha a sua frente.

Ela ficou de pé no meio da estrada, com o cabelo solto, as botas molhadas, o alfinete de Erik no manto e suas filhas seguras pela mão. Distinguiu a característica pelagem negra dos cavalos de Ravensmuir até antes de reconhecer as cores de seu irmão Alexander, antes de ver Malcolm junto a seu flanco. Elizabeth montava outro cavalo; seguiam-nos três leais cavalheiros de Ravensmuir. Os potros negros pareciam exalar fogo em seu galope; sua pelagem resplandecia sob o sol da manhã. Ao vê-los Vivienne piscou para conter as lágrimas de alegria.

— É meu irmão, que deve cuidar de mim — disse às meninas. — Não têm nada que temer. Logo virou e soube que havia dito uma grande verdade, Erik Sinclair vinha para ela em um castanho de batalha. Ruari Macleod o seguia de perto, mas ela só tinha olhos para seu amante.

Erik desmontou de um salto para correr para ela. Mairi, ao reconhecê-lo, lançou um grito; ele a ergueu pelos ares e virou com ela, que ria. Astrid se mostrava mais cautelosa,

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pois sua memória era mais breve; não obstante estendeu uma mão para lhe puxar o cabelo. Com suas filhas junto aos joelhos e os olhos brilhantes como safiras, ele anunciou:

— Recuperei a soberania de Blackleith. —Obviamente sabia que Alexander não afastava o olhar dele. — E Beatrice, minha esposa, morreu. Tenho pouco que oferecer, Vivienne, pois minha casa é mais humilde que aquelas onde viveu, mas a amo com todas as forças de meu coração. —E estendeu as mãos para ela, que se sentiu elevada às nuvens. — Aceita se casar legalmente comigo, Vivienne Lammergeier?

Ela tinha tal nó na garganta que não pôde responder. Meneou o rosto, maravilhada, e o movimento fez rolar as lágrimas. Ao ver a consternação de Erik respondeu com voz rouca:

— Aceito. Aceito com prazer. E ele, rindo, estreitou-a entre seus braços para beijá-la com tanto ardor que não lhe

importou quem presenciasse esse abraço. Pois contra todas as possibilidades, contra o que ela mesma previa sua gestão a tinha conduzido exatamente aonde ela tanto desejava. Soube-se depois que Alexander e Malcolm haviam partido de Ravensmuir em busca de Erik e Vivienne, na manhã seguinte à fuga daqueles três. Tynan não quis acompanhá-los, pois achava chegada a hora de que Malcolm assumisse essas responsabilidades. Elizabeth vinha por Darg, pois era a única que podia ver a fada; para ela foi uma decepção descobrir que a spriggan não os acompanhava. Erik já imaginava.

O grupo de Kinfairlie se deteve por um tempo na morada do conde de Sutherland, no convencimento de que Vivienne e Erik passariam por ali cedo ou tarde. Alexander havia devolvido os corcéis que o conde tinha emprestado a Erik e a Ruari, coisa que foi um grande alívio para o Sinclair. Uma vez reunidos todos voltaram ali.

O retorno de Erik agradou muito ao conde, que estava preocupado pela administração de Blackleith. Escreveu uma carta com ordens de desatar às donzelas e trazer os cadáveres do Nicholas e Beatrice, a fim de lhes dar cristã sepultura. As duas mulheres, encantadas por haver-se liberado de Henry e Arabela, apressaram-se a oferecer seus serviços em Blackleith. E para alegria de todos (especialmente de Alexander, laird de Kinfairlie), o conde do Sutherland quis que Erik e Vivienne se casassem em sua própria capela. O sacerdote declarou que não era necessário fazer as proclamas. Erik ouviu que o conde insinuava à noiva a conveniência de acrescentar um filho varão à família.

Na manhã seguinte à celebração de suas segundas núpcias Erik Sinclair se levantou cedo. Sentado no leito, observou por um momento a face de Vivienne acariciada pelo primeiro raio de sol e sorriu ao ver o profundo de seu sono. Depois abandonou o quarto, muito satisfeito, para ver como estavam suas filhas. Ambas dormiam juntas, aninhadas; Astrid ainda chupava o polegar. Mairi abriu os olhos e lhe estendeu os braços, como costumava fazer quando era muito pequena. Erik a ergueu como se não pesasse nada e a apoiou em seu quadril. Pôs-lhe a cabeça no ombro, tão confiante como se ele nunca tivesse desaparecido; Erik sentiu que lhe partia o coração ao perceber seu doce aroma.

Tomou o café da manhã na mesa do conde, com Mairi sentada nos joelhos. A essa hora matinal havia pouca gente acordada; quem compartilhava a mesa não disse quase nada. Ele aceitou algumas felicitações tardias e estreitou algumas mãos, conhecidas ou desconhecidas. Mairi se apressou a lhe roubar a parte de mel, com uma expressão travessa

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lhe dançando nos olhos, e ele a deixou fazer das suas. Quando abandonou a mesa se aproximou a cozinheira do conde.

— Sua Senhoria me ordenou lhes oferecer algumas provisões, senhor, tanto para a viagem de volta a Blackleith como para o inverno.

Erik aceitou de bom grado. — Agradeço-lhes muito o oferecimento, pois não tenho idéia do inventário que

acharemos lá. A gordinha cozinheira, com um sorriso luminoso, levantou com um dedo o queixo de

Mairi. — Já temos o inverno às portas, senhor, e as meninas necessitarão uma comida

quente todo dia. — Posso lhe ajudar — ofereceu ele. A mulher meneou a cabeça. — Farei que tragam tudo, senhor. Mas terão que procurar a maneira de levá-lo, pois

não tenho um só saco disponível nesta casa. — Meus sacos não contêm nada que sirva. Esvaziarei-os. A cozinheira fez um gesto afirmativo e partiu depressa. Depois de recolher seus

sacos, Erik se sentou no canto do salão, com o Mairi de cócoras a seu lado, pronta para examinar cada coisa que ele tirava e esperar logo a seguinte.

O saco que Ruari tinha levado a bordo continha pouca coisa, mas o outro, que tinha vindo junto com o Fafhir, ainda estava pesado. Continha várias maçãs murchas e uma parte de pão tão duro que teria podido servir de arma. O gancho de ferro para abordagem ainda estava ali; no futuro poderia servir para algo. A cerveja da bota não tinha um aroma muito apetitoso.

— O que é isto? —inquiriu a menina, enrugando o nariz. Dava voltas entre as

mãozinhas a um pacote, com ar impaciente, pois estava convencida de que Erik devia lhe haver trazido algum tesouro.

Ele teria querido lhe dar algo, mas não tinha nada que pudesse lhe prazer. Imitou sua expressão, com a esperança de fazê-la sorrir.

— Um queijo muito velho. Talvez mais velho que você. — Cheira fatal. — É claro que sim. Acho que nem os cães do conde quererão comê-lo. A menina, rindo, desembrulhou o pacote enquanto cruzava o salão e ofereceu a

parte de queijo a um dos cães. O animal o farejou uma só vez e afastou o olhar, desdenhoso.

Mairi, sem deixar-se intimidar, devolveu o alimento a seu pai, que o aceitou sem nenhum desejo.

— Não gostou — assegurou. Depois afundou o braço no saco e tirou a segunda das duas camisas que o conde lhe

tinha cedido. Ao sacudir o objeto os dois enrugaram o nariz ao mesmo tempo. — Jamais poderemos tirar o aroma de queijo! —exclamou Erik. A menina a pôs a um lado. — De quem é?

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— Minha. O conde me emprestou. — Quer que a devolva? — Acho que não. —Ambos compartilharam um sorriso. — Deixemos-lhe acreditar

que se perdeu.

— Será um segredo entre nós dois — informou-lhe solenemente sua filha maior, sem

suspeitar como era precioso um segredo assim para seu pai. Logo devolveu sua atenção ao saco, mas não achou ali nada interessante. Na verdade todo o conteúdo cheirava a queijo rançoso. Erik o deixou aberto, com a

esperança de que o aroma diminuísse antes que a cozinheira lhe trouxesse as provisões. — E isto o que é? — perguntou Mairi, que se tinha dedicado ao primeiro saco. — Aí não fica nada — assegurou ele, enquanto sacudia com otimismo a lapela do

saco fedorento. Isso não pareceu servir muito. — Claro que sim — insistiu a menina, alongando a mão. — O que é isto? Em sua palma brilhava algo suave e vermelho. Sua semelhança com uma gota de

sangue fez que a Erik lhe encolhesse o coração de medo. Mas não era sangue. Era uma gota resplandecente, sem dúvida, e tão vermelha como o sangue fresco. Mas era duro como uma pedra preciosa e fria como o gelo.

— O que é? —insistiu Mairi, enquanto seu pai a fazia virar entre os dedos.

— Parece uma gema. Mas é a primeira vez que a vejo.

— Talvez lhe desse de presente isso quando não olhava — insinuou Mairi, com os

olhos acesos. — Alguém a escondeu no saco para que a desse de presente. —E sorriu seduzida pela ocorrência.

Erik teve então uma idéia do que era o que sua filha tinha encontrado. A pedra era fria, certamente, e muito vermelha. Enquanto pensava fechou a mão; quando voltou a abri-la para observá-la outra vez descobriu que a gota tinha crescido. Agora parecia o casulo de uma flor. Ele sorriu: a spriggan Darg devia lhe haver dado uma recompensa por lhe haver salvado a vida na caverna, pois só dela podia provir a rosa de gelo que necessitava para cumprir até o último desejo de sua flamejante esposa.

— O que é? Acredito que sabe — acusou Mairi, com infantil convicção. Erik sorriu. — Acredito que sim. —E ergueu a sua filha nos braços, com a feérica gema apertada

no punho. — Vamos pegar Astrid. Logo nos reuniremos com Vivienne e ela nos contará uma lenda.

— A lenda de Thomas o Rimador? Ele voltou a sorrir, pois suas filhas importunavam a Vivienne para que repetisse o

conto uma e outra vez. — Não, não é essa. — É sobre a gota vermelha? — Sobre isso e muito mais. —Deu uma batidinha com a ponta do dedo no nariz da

menina. — Se se comportar bem e escutar com muita atenção, é muito possível que esta pedra mágica, pois disso se trata, mostre-nos algo muito especial.

— Como presente para mim? — Como presente para todos nós. E como aviso de que existem muitas coisas que

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não podemos ver nem explicar. Em poucos minutos estavam todos no quarto que ele compartilhava com sua esposa;

as meninas, aninhadas sob o manto de Vivienne, mantinham uma expressão de expectativa. Erik depositou a gema no chão, ante elas, e abrangeu as três em um abraço. A jovem apoiou a cabeça em seu ombro; seu sorriso revelava que ela também adivinhava o significado dessa pedra.

— Havia uma vez, muito longe, uma fortaleza que se chamava Kinfairlie — começou. — O torreão caiu até os alicerces, mas foi reconstruído pelo laird de Ravensmuir, um cavalheiro alto e bonito, cuja esposa era a única sobrevivente dos Kinfairlie. Diz-se que ele reconstruiu a herança de sua mulher só para vê-la sorrir.

— Que boa pessoa — comentou Mairi, aninhando-se melhor sob o manto. — Um homem bondoso, certamente — concordou Vivienne, enquanto

compartilhava um sorriso com Erik. Ele contemplava a suas filhas, consciente de que Vivienne já as tinha cativado com

seus relatos e que não demorariam para considerá-la sua verdadeira mãe. Recostou-se para trás, sem afastar a vista da gema vermelha, a qual já começava a crescer uma segunda pétala.

— Em Kinfairlie havia um alcaide encarregado de cuidar de seus salões e seus depósitos em ausência dos proprietários. Este homem tinha as chaves de todas as portas do torreão — continuou Vivienne— E este alcaide vivia ali com sua esposa e uma filha, uma moça muito formosa a que adorava brincar no castelo. Permitia-lhe visitar todos seus aposentos, posto que fosse de construção recente e ela não podia achar nenhum perigo entre suas muralhas e também, justo quer dizer o, porque a menina sabia cativar com sua simpatia.

A gema vermelha se parecia cada vez mais a um casulo, embora ainda pequeno. Erik, vendo que as meninas entrecerravam os olhos e que Vivienne estava muito concentrada na narração, saboreava por antecipado a surpresa que teriam. A pedra engrossava como um casulo antes de abrir-se.

— O que o alcaide e sua esposa ignoravam era que sobre Kinfairlie circulava uma antiga lenda; dizia-se que era um portal entre o reino dos homens e o das fadas —disse Vivienne. Ao ouvir isso as duas meninas abriram os olhos para olhá-la com muito interesse. — Mais ainda, sabia-se que, às vezes, um elfo espiava a alguma donzela mortal através dessa porta e se apaixonava perdidamente dela à primeira vista. Comentava-se na aldeia que esses elfos cortejavam as noivas humanas durante três noites; depois as levavam para sempre, deixando como pagamento uma rosa muito vermelha, feita de gelo.

Assim passou boa parte da manhã; os raios do sol brincavam com o cabelo da esposa de Erik e suas filhas. O relato os mantinham envolvidos em um mítico ninho. Quando a última palavra da lenda cruzou os lábios de Vivienne, Erik indicou a gema com um só gesto e saboreou a maravilha de suas três companheiras, cativadas como estavam pelo conto, nenhuma delas tinha reparado na transformação. A pedra se convertera em uma rosa muito vermelha, tão fria que bem se teria podido acreditar que era feita de gelo. E quando Vivienne a recolheu na mão, assombrada, Erik viu que deixava no chão um atoleiro

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reverberante.

— Trouxe-me isto — murmurou ela. Seu sorriso era o melhor agradecimento que ele podia desejar.

— O preço da noiva — disse, com voz raramente enrouquecida. — Embora não seja elfo e eu gostaria de lhe oferecer algo mais que três noites de corte.

Vivienne pôs-se a rir. — Mesmo assim a rosa não mente. Somos amantes predestinados... — E nossos caminhos se unem para sempre — concordou ele. Depois reclamou os lábios de sua esposa com um beijo. Pois era, verdadeiramente, um bom milagre.

Fim

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

CLAIRE DELACROIX

Desde a publicação de sua primeira novela, The Romace of the Rose, em 1993, ganhou numerosos prêmios. E com a publicação do The Beauty em 2001, alcançou pela primeira vez a lista de livros mais vendidos do New York Times. Suas novelas foram ganhadoras de vários reconhecidos prêmios. Delacroix tem perto de dois milhões de livros impressos, tanto históricos e contemporâneos

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como paranormais, os que escreve como Claire Cross. Em seu tempo livre, Claire, que vive com seu marido no Canada, desfruta tecendo e viajando. Confessa-se como uma romântica sonhadora, sempre tecendo contos em sua mente.