Claude lévi strauss ou o novo festim de esopo octavio paz

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À condição do poeta dos mis criativos da literatura mexicana, Octavio Paz junta também a condição ensaísta dos mais penetrantes, com largo espectro de interesse que no entanto se abre a partir de um ponto vital e comum, que é o poético e o antropológico e o político. Daí o seu interesse pelo pensamento de Levis-Strauss, em conjunto com o qual busca fundamentalmente o lugar do homem no sistema da natureza e o papel do espírito como ponto de intersecção da subcultura animal e da cultura humana.

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OCTAVIO PAZ

CLAUDE LÉVI-STRAUSS

OU O NOVO FESTIM DE ESOPO

Editora Perspectiva1977

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Título do originalLévi-Strauss o el Nuevo Festín de Esopo

© Octavio PazDireitos em língua portuguesa reservados à EDITORA PERSPECTIVA S.A.Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401 – São Paulo – Brasil Telefone: 288-83881977

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SUMÁRIO

1. Uma Metáfora Geológica. Comércio Verbal e Comércio Sexual: Valores, Signos, Mulheres.

2. Símbolos, Metáforas e Equações. A Posição e o Significado. Ásia, América e Europa. Três Transparentes: O Arco-íris, o Veneno e a Doninha. O Espírito: Algo que é Nada.

3. Intermédio Discordante. Defesa de uma Cinderela e outras divagações. Um Triângulo Verbal: Mito, Épica e Poema

4. Qualidades e Conceitos: Pares e Parelhas, Elefantes e Tigres. A Reta e o Círculo. Os Remorsos do Progresso. Ingestão, Conversão, Expulsão. O Fim da Idade do Ouro e o Começo da Escritura.

5. As Práticas e os Símbolos. O Sim ou o Não e o Mais ou Menos. O Inconsciente do Homem, e o das Máquinas. Os Signos que se Destroem: Transfigurações. Taxila

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1. UMA METÁFORA GEOLÓGICA.

COMERCIO VERBAL E COMÉRCIO SEXUAL: VALORES, SIGNOS, MULHERES.

Há cerca de quinze anos um comentário de Georges Bataille sobre Les structures élémentaires de la parenté revelou-me a existência de Lévi-Strauss. Comprei o livro, e após várias e infrutíferas tentativas, abandonei sua leitura. Minha boa vontade de aficcionado da antropologia e meu interesse pelo tema (o tabu do incesto) se chocaram com o caráter técnico da obra. No ano passado um artigo em The Times Literary Supplement (Londres) voltou a despertar a minha curiosidade. Li apaixonadamente Tristes tropiques, e a seguir, com deslumbramento crescente, Anthropologie structurale, La pensée sauvage , Le totémisme aujourd'hui e Le cru et le cuit. Este último é um livro particularmente difícil: o leitor sofre uma espécie de vertigem intelectual ao seguir o autor em sua sinuosa peregrinação através da selva de mitos dos índios bororé e gê. Percorrer esse labirinto é penoso, mas fascinante: muitos trechos desse “concerto” do conhecimento me exaltaram, outros me iluminaram e alguns me irritaram. Embora leia por prazer e sem tomar notas, a leitura de Lévi-Strauss me revelou tantas coisas e despertou em mim tais interrogações que, quase sem perceber, fiz alguns apontamentos. Este texto é o resultado de minha leitura.

Resumo de minhas impressões e meditações, não tem qualquer pretensão crítica.

Os escritos de Lévi-Strauss têm uma importância tríplice: antropológica, filosófica e estética. Sobre o primeiro mal é necessário dizer que os especialistas consideram fundamentais seus trabalhos sobre o parentesco, os mitos e o pensamento selvagem. A etnografia e a etnologia americanas lhe devem estudos notáveis; além disso, em quase todas as suas obras há muitas observações dispersas sobre problemas da

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pré-história e da história do nosso continente: a antiguidade do homem no Novo Mundo, as relações entre a Ásia e a América, a arte, a cozinha, os mitos indo-americanos...

Lévi-Strauss desconfia da filosofia mas seus livros são um diálogo permanente, quase sempre crítico, com o pensamento filosófico e particularmente com a fenomenologia. Por outro lado, sua concepção da antropologia como parte de uma futura semiologia ou teoria geral dos signos e suas reflexões sobre o pensamento (selvagem e civilizado) são de certo modo uma filosofia: seu tema central é o lugar do homem no sistema da natureza. Em sentido mais reduzido, embora não menos estimulante, sua obra de “moralista” tem também um interesse filosófico: Lévi-Strauss continua a tradição de Rousseau e Diderot, Montaigne e Montesquieu. Sua meditação sobre as sociedades não-européias se resolve em uma crítica das instituições ocidentais, e esta reflexão culmina na última parte de Tristes tropiques por uma curiosa profissão de fé, desta vez francamente filosófica, em que oferece ao leitor uma espécie de síntese entre os deveres do antropólogo, do pensador marxista e a tradição budista. Entre as contribuições de Lévi-Strauss à estética citarei os estudos sobre a arte indo-americana – um sobre o dualismo representativo na Ásia e na América, outro em torno do tema da serpente com o corpo repleto de peixes – e suas idéias brilhantes, embora nem sempre convincentes, sobre a música, a pintura e a poesia. Pouco direi sobre o valor estético de sua obra. Sua prosa me faz pensar na de três autores que talvez não sejam de sua predileção: Bergson, Proust e Breton. Neles, como em Lévi-Strauss, o leitor se defronta com uma linguagem que oscila continuamente entre o concreto e o abstrato, a intuição direta do objeto e a análise: um pensamento que vê as idéias como formas sensíveis e as formas como signos intelectuais... A primeira coisa que surpreende é a variedade de uma obra que pretende ser apenas antropológica; a segunda, a unidade do pensamento. Esta unidade não é a da ciência, mas a da filosofia, embora se trate de uma filosofia antifilosófica.

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Lévi-Strauss aludiu em diversas ocasiões às influências que determinaram a direção de seu pensamento: a geologia, o marxismo e Freud. Uma paisagem se apresenta como um quebra-cabeças: colinas, rochedos, vales, árvores, barrancos. Essa desordem possui um sentido oculto; não é uma justaposição de formas diferentes, mas a reunião em um lugar de distintos tempos-espaços: as capas geológicas. Como a linguagem, a paisagem é diacrônica e sincrônica ao mesmo tempo: é a história condensada das idades terrestres e é também um entrelaçado de relações. Um corte vertical revela que o oculto, as capas invisíveis, e uma “estrutura” que determina e dá sentido às mais superficiais. À descoberta intuitiva da geologia se uniram, mais tarde, as lições do marxismo (uma geologia da sociedade) e da psicanálise (uma geologia psíquica). Esta tríplice lição pode ser resumida em uma frase: Marx, Freud e a geologia lhe ensinaram a explicar o visível pelo oculto. Isto é, a buscar a relação entre o sensível e o racional. Não uma dissolução da razão no inconsciente, mas uma busca da racionalidade do inconsciente: um super-racionalismo. Estas influências constituem, para continuar usando a mesma metáfora, a geologia do seu pensamento: são determinantes em um sentido geral. Não menos decisivas para a sua formação foram a obra sociológica de Marcel Mauss e a lingüística estrutural.

Já disse antes que os meus comentários não são de ordem estritamente científica; examino as idéias de Lévi-Strauss com a curiosidade, a paixão e a inquietude de um leitor que deseja compreendê-las porque sabe que, como todas as grandes hipóteses da ciência, estão destinadas a modificar nossa imagem do mundo e do homem. Assim, não me proponho a situar seu pensamento dentro das modernas tendências da antropologia, embora seja evidente que, por mais original que nos pareça, este pensamento faz parte de uma tradição científica. O próprio Lévi-Strauss, aliás, em sua Leçon inaugurale no Collège de France (janeiro de 1960), assinalou suas dívidas para com a antropologia anglo-americana e a sociologia francesa. Mais explícito ainda, em vários capítulos da Anthropologie structurale e em muitas passagens de Le totémisme aujourd’hui, revela e esclarece suas

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coincidências e discrepâncias com Boas, Malinowski e Radcliffe-Brown. Sobre isso vale a pena sublinhar que várias vezes recordou que os seus primeiros trabalhos foram concebidos e elaborados em estreita união com a antropologia anglo-americana. Não obstante, foram as idéias de Mauss que o preparam para receber a lição da lingüística estrutural e saltar de uma maneira mais total que os outros antropólogos do funcionalismo ao estruturalismo. Durkheim já afirmara que os fenômenos jurídicos, econômicos, artísticos ou religiosos eram “projeções da sociedade”: o todo explicava as partes. Mauss recolheu esta idéia, mas advertiu que cada fenômeno possui características próprias e que o “fato social total” de Durkheim era composto por uma série de planos superpostos: cada fenômeno, sem perder sua especificidade, alude aos outros fenômenos. Por tal razão, o que conta não é a explicação global mas a relação entre os fenômenos: a sociedade é uma totalidade porque é um sistema de relações. A totalidade social não é uma substância nem um conceito mas “consiste finalmente no circuito de relações entre todos os planos”.

Em seu famoso ensaio sobre a dádiva, Mauss adverte que o presente é recíproco e circular: as coisas que se intercambiam são também fatos totais; ou, dito de outro modo: as coisas (utensílios, produtos, riquezas) são veículos de relação. São valores e são signos. A instituição do potlach – ou qualquer outra análoga – é um sistema de relações: a dádiva recíproca assegura, ou melhor, realiza a relação. Portanto, a cultura de uma sociedade não e a soma de seus utensílios e objetos; a sociedade é um sistema total de relações que engloba tanto o aspecto material quanto o jurídico, o religioso e o artístico. Lévi-Strauss recolhe a lição de Mauss e servindo-se do exemplo da lingüística, concebe a sociedade como um conjunto de signos: uma estrutura. Passa assim da idéia da sociedade como uma totalidade de funções à de um sistema de comunicações. É revelador que Georges Bataille (La part maudite) tenha extraído conclusões diferentes do ensaio de Mauss. Para Bataille não se trata tanto de reciprocidade, circulação e comunicação, mas de choque e violência, poder sobre os outros e autodestruição: o potlach é uma atividade análoga ao erotismo e ao jogo, sua essência não é distinta

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da do sacrifício. Bataille pretende desentranhar o conteúdo histórico e psicológico do potlach; Lévi-Strauss considera-o como uma estrutura atemporal, independentemente de seu conteúdo. Sua posição o defronta com o funcionalismo da antropologia saxônica, o historicismo e a fenomenologia.

Mais adiante tratarei mais detidamente o tema da relação polêmica entre o pensamento de Lévi-Strauss e o historicismo e a fenomenologia. Todavia, é oportuno esboçar desde já suas afinidades e diferenças com os pontos de vista de Malinowski e de Radcliffe-Brown. Para o primeiro, “os fatos sociais não se reduzem a fragmentos dispersos; o homem vive-os, realiza-os, e esta consciência subjetiva, tanto como suas condições objetivas, é uma forma de sua realidade”. Malinowski teve o grande mérito de mostrar experimentalmente que as idéias que uma sociedade tem de si mesma são parte inseparável da própria sociedade e desta maneira revalorizou a noção de significado no fato social; mas reduziu a significação dos fenômenos sociais à categoria de função. A idéia de relação, capital em Mauss, resolve-se na função: as coisas e as instituições são signos por ser funções. Por sua vez, Radcliffe-Brown introduziu a noção de estrutura no campo da antropologia. Só que o grande sábio inglês pensava que “a estrutura é da ordem dos fatos: algo dado na observação de cada sociedade particular...” A originalidade de Lévi-Strauss reside em ver a estrutura não só como um fenômeno resultante da associação dos homens mas como “um sistema regido por uma coesão interna – e esta coesão, inacessível para o observador de um sistema isolado, revela-se no estudo das transformações, graças às quais se redescobrem propriedades similares em sistemas diferentes na aparência” (Leçon inaugurale). Cada sistema – formas de parentesco, mitologias, classificações etc. – é como uma linguagem que pode ser traduzida à linguagem de outro sistema. Para Radcliffe-Brown a estrutura “é a maneira durável que os grupos e os indivíduos têm de se constituir e de se associar no interior de uma sociedade”; portanto, cada estrutura é particular e intraduzível às outras. Lévi-Strauss pensa que a estrutura é um sistema e que cada sistema é regido por um código que permite, caso o antropólogo consiga

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decifrá-lo, sua tradução a outro sistema. Por último, diversamente de Malinowski e de Radcliffe-Brown, para Lévi-Strauss as categorias inconscientes, longe de serem irracionais ou simplesmente funcionais, possuem uma racionalidade imanente, por assim dizê-lo. O código é inconsciente – e racional. Nada mais natural, em conseqüência, que visse no sistema fonológico da lingüística estrutural o modelo mais acabado, transparente e universal dessa razão inconsciente subjacente em todos os fenômenos sociais, trata-se de relações de parentesco ou de fabulações míticas. Certo, não foi o primeiro a pensar que a lingüística era o modelo da investigação antropológica. Só que, enquanto os antropólogos anglo-americanos a consideraram como um ramo da antropologia, Lévi-Strauss afirma que a antropologia é (ou será) um ramo da lingüística. Ou seja: parte de uma futura ciência geral dos signos.

Arriscando-me a repetir o que outros disseram muitas vezes (e melhor do que eu), devo deter-me e esclarecer um pouco a relação particular que une o pensamento de Lévi-Strauss com a lingüística.1

Como se sabe, o trânsito do funcionalismo ao estruturalismo se opera, na lingüística. A idéia de que “cada item da linguagem – oração, palavra, morfema, fonema, etc. – existe somente para encher uma função, geralmente de comunicação” se superpõe outra: “nenhum

1 Uma das conseqüências mais grotescas do obscurantismo stalinista foi a introdução do adjetivo pejorativo “formalista” nas discussões artísticas e literárias. Durante anos os críticos pseudomarxistas marcaram com o selo infamante desse vocábulo muitos poemas, quadros, novelas e obras musicais. Esta acusação resultava ainda mais insensata em países como o nosso, em que ninguém sabia o que significava realmente a palavra “formalismo”. Algo assim como se o Arcebispo de México, hipnotizado por um brâmane de Benares, condenasse os nossos protestantes não por heresia cristã mas por incorrer nos erros de Buda. Entre os formalistas russos se encontram dois dos fundadores da lingüística estrutural: Nicolai S. Trubetzskói e Roman Jakobson. Ambos abandonaram a União Soviética na década de vinte e participaram decisivamente nos trabalhos da escola lingüística de Praga. O primeiro morreu em 1939, vítima indireta dos nazistas; o segundo, também perseguido pelos camisas pardas, se refugiou nos Estados Unidos e é hoje professor de Harvard. A história do formalismo russo está intimamente ligada à do futurismo. Maiakóvski, Khliébnikov, Burliuk e outros poetas e pintores do grupo participaram das discussões lingüísticas dos formalistas. O amigo íntimo de Maiakóvski, o crítico Ossip Brik, foi um dos animadores da Sociedade de Estudos da Linguagem Poética (Opoiaz). Maiakóvski estava presente na noite em que Jakobson leu seu ensaio sobre Khliébnikov e, segundo uma testemunha, “escutou intensamente os abstrusos raciocínios do jovem lingüista, nos quais examinava a prosódia dos futuristas à luz dos conceitos derivados de Edmund Husserl e Ferdinand de Saussure, (VICTOR ERLICH, Russian Formalism, 1965.

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elemento da linguagem pode ser valorizado se não é considerado em relação com os outros elementos”.2 A noção de relação se converte no fundamento da teoria: a linguagem é um sistema de relações. Por sua vez Ferdinand de Saussure já realizara uma distinção capital: o caráter dual do signo, composto de um significante e de um significado, som e sentido. Esta relação – ainda não inteiramente explicada – define o campo próprio da lingüística: cada um dos elementos da linguagem, inclusive os menores, “possuem dois aspectos: um, o significante, e outro, o significado”. A análise deve levar em conta esta dualidade e proceder do texto à frase e desta à palavra e ao morfema, a unidade mínima dotada de significado. A investigação não se detêm neste último porque a fundação da fonologia permitiu um passo decisivo: a análise dos fonemas, unidades que, “apesar de não possuir significado próprio, participam da significação”. A função significativa do fonema consiste em que designa uma relação de alteridade ou oposição em relação aos outros fonemas; embora o fonema careça de significado, sua posição no interior do vocábulo e sua relação com os outros fonemas tornam possível a significação. Todo o edifício da linguagem repousa sobre esta oposição binária. Os fonemas podem decompor-se em elementos menores, que Jakobson chama de “feixe ou conjunto de partículas diferenciais”.3 Como os átomos e suas partículas, o fonema é um “campo de relações”: uma estrutura. Isso não é tudo: a fonologia revela que os fenômenos lingüísticos obedecem a uma estrutura inconsciente: falamos sem saber que, cada vez que o fazemos, pomos em movimento uma estrutura fonológica. Portanto, a fala é uma operação mental e fisiológica que repousa sobre leis estritas e que, não obstante, escapam ao domínio da consciência clara.

Saltam à vista as analogias -da lingüística, por um lado, com a física, a genética e a teoria da informação; por outro, com a “psicologia da forma”. Lévi-Strauss se propôs aplicar o método estrutural da lingüística à antropologia. Nada mais legítimo – a linguagem não só é um fenômeno social como constitui, simultaneamente, o fundamento de

2 JOSEF VACKEK, The Linguistìc School of Praga, 1966.3 ROMAN JAKOBSON, Essais de Linguistique Générale, Paris, 1963.

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toda sociedade e a expressão social mais perfeita do homem. A posição privilegiada da linguagem converte-a em um modelo de investigação antropológica: “como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação; corno eles, não adquirem esta significação a não ser com a condição de participar de um sistema; como os sistemas fonológicos, os sistemas de parentesco são elaborações do espírito ao nível do pensamento inconsciente; por fim, a repetição de formas de parentesco e regras de matrimônio, em regiões distanciadas e entre povos profundamente diferentes, nos faz pensar que, como no caso da fonologia, os fenômenos visíveis são o produto do jogo de leis gerais embora ocultas... Em uma ordem distinta de realidades, os fenômenos de parentesco são fenômenos do mesmo tipo dos lingüísticos”.4 Não se trata, é claro, de transpor a análise lingüística à antropologia, mas de traduzi-la em termos antropológicos. Entre as formas da tradução há uma que Jakobson chama “transmutação”: interpretação de signos lingüísticos por meio de um sistema de signos não-lingüísticos. Neste caso a operação consiste, ao contrário, na interpretação de um sistema de signos não-lingüísticos (por exemplo: as regras de parentesco) por meio de signos lingüísticos. Não me estenderei na descrição das formas, sempre rigorosas e às vezes extremamente engenhosas, que assume a interpretação de Lévi-Strauss.

Assinalo apenas que o seu método se funda mais em uma analogia do que em uma identidade. Além disso, adianto uma observação: se a linguagem – e com ele a sociedade inteira: ritos, arte, economia, religião – é um sistema de signos, que significam os signos? Um autor muito citado por Jakobson, o filósofo Charles Peirce, diz: “O sentido de um símbolo é sua tradução em outro símbolo”. Ao contrário de Husserl, o filósofo anglo-americano reduz o sentido a uma operação: um signo nos remete a outro signo. Resposta circular e que se destrói a si mesma: se a linguagem é um sistema de signos, um signo de signos, que significa este signo de signos? Os lingüistas coincidem com a lógica matemática, embora por motivos opostos, no horror à semântica. Jakobson tem consciência desta carência: “Depois de haver anexado os sons da 4 CLAUDE LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale.

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palavra à lingüística e constituído a fonologia, devemos incorporar agora as significações lingüísticas à ciência da linguagem”. Assim seja. Enquanto isso, observo que esta concepção da linguagem termina em uma disjuntiva: se só tem sentido a linguagem, o universo não-lingüístico carece de sentido e inclusive de realidade; ou então, tudo é linguagem, desde os átomos e suas partículas até os astros. Nem Peirce nem a lingüística nos dão elementos para afirmar a primeira ou a segunda hipótese. Tríplice omissão: em um primeiro momento subtrai-se o problema do nexo entre som e sentido, que não é simplesmente o efeito de uma convenção arbitrária como pensava Ferdinand de Saussure; em seguida, exclui-se o tema da relação entre a realidade não-lingüística e o sentido, entre ser e significado; por último, omite-se a pergunta central: o sentido da significação. Advirto que esta crítica não é inteiramente aplicável a Lévi-Strauss. Correndo mais riscos que os lingüistas e os partidários da lógica simbólica, o tema constante de suas meditações é precisamente o das relações entre o universo do discurso e a realidade não-verbal, o pensamento e as coisas, a significação e a não-significação.

Em seus estudos sobre o parentesco, Lévi-Strauss procede de maneira contrária à maioria dos seus predecessores: não pretende explicar a proibição do incesto a partir das regras de matrimônio, mas serve-se da primeira para tornar mais inteligíveis as segundas. A universalidade da proibição, quaisquer que sejam as modalidades que adote neste ou naquele grupo humano, é análoga à universalidade da linguagem, quaisquer que sejam, também, as características e a diversidade dos idiomas e dialetos. Outra analogia: é uma proibição que não aparece entre os animais – pelo que se pode inferir que não tem uma origem biológica ou instintiva – e que, não obstante, é uma complexa estrutura inconsciente como a linguagem. Enfim, todas as sociedades a conhecem e a praticam, mas até agora – apesar de abundarem as interpretações míticas, religiosas e filosóficas – não temos uma teoria racional que explique sua origem e sua vigência. Lévi-Strauss rechaça, com razão, todas as hipóteses que pretenderam explicar o enigma do tabu do incesto, desde as teorias finalistas e eugenéticas até a de Freud. A propósito deste último assinala que atribuir a origem da proibição ao

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desejo pela mãe e ao assassinato do pai pelos filhos, é uma hipótese que revela as obsessões do homem moderno mas que não corresponde a nenhuma realidade histórica ou antropológica. É um “sonho simbólico”: não é a origem mas a conseqüência da proibição.

A regra não é puramente negativa; não tende a suprimir as uniões, mas a diferenciá-las: esta união não é lícita, mas aquela sim. A regra é composta de um sim e de um não, oposição binária semelhante à das estruturas lingüísticas elementares. É um crivo que orienta e distribui o fluir das gerações. Cumpre assim uma função de alteridade e mediação – diferenciar, selecionar e combinar – que converte as uniões sexuais em um sistema de significações. É um artifício “pelo qual e no qual se cumpre o trânsito da natureza à cultura”. A metamorfose do som bruto em fonema se reproduz na da sexualidade animal em sistema de matrimônio; em ambos os casos a mutação se deve a uma operação dual (isto não, aquilo sim) que seleciona e combina – signos verbais e mulheres. Do mesmo modo que os sons naturais reaparecem na linguagem articulada, mas já dotados de significação, a família biológica reaparece na sociedade humana, mas já transformada. O “átomo” ou elemento mínimo de parentesco não é o biológico ou natural – pai, mãe e filho – mas está composto por quatro termos: irmão e irmã, pai e filha. É impossível seguir Lévi-Strauss em toda a sua exploração e por isso me limito a citar uma de suas conclusões: “O caráter primitivo e irredutível do elemento de parentesco é uma conseqüência da proibição do incesto... na sociedade humana um homem só pode obter uma mulher de outro homem, que lhe entrega sua filha ou sua irmã”. A interdição não tem outro objeto fora o de permitir a circulação de mulheres, e neste sentido é a contrapartida da obrigação de doar, estudada por Mauss.

A proibição é recíproca e graças a ela se estabelece a comunicação entre os homens: “As regras de matrimônio e os sistemas de parentesco são uma espécie de linguagem” – um conjunto de operações que transmitem mensagens. A objeção de que as mulheres são valores e não signos e as palavras signos e não valores, Lévi-Strauss responde que, sem dúvida, as segundas eram também valores (hipótese que não me parece

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descabida, se pensarmos na energia que ainda irradiam certas palavras); no que diz respeito às mulheres: foram (e são) signos, elementos desse sistema de significações que é o sistema de parentesco... Não sou antropólogo e deveria calar-me. Aventuro, em todo caso, um tímido comentário: a hipótese explica com grande elegância e precisão as regras de parentesco e de matrimônio pela proibição universal do incesto, mas, como se explica a própria proibição, sua origem e sua universalidade? Confesso que me custa aceitar que uma norma tão inflexível e na qual não é infundado ver a fonte de toda a moral – foi o primeiro Não que o homem opôs à natureza – seja apenas uma regra de trânsito, um artifício destinado a facilitar o intercâmbio de mulheres. Além disso, noto a ausência da descrição do fenômeno; Lévi-Strauss nos descreve a operação das regras, não aquilo que regulam: a atração e a repulsão pelo sexo oposto, a visão do corpo como um entrelaçado de forças benéficas ou nocivas, as rivalidades e as amizades, as considerações econômicas e as religiosas, o terror e o apetite que desperta uma mulher ou um homem de outro grupo social ou de outra raça, a família e o amor, o jogo violento e complicado entre veneração e profanação, medo e desejo, agressão e transgressão – todo esse território magnético, magia e erotismo, que cobre a palavra incesto. Que significa este tabu que nada nem ninguém explica e que, embora pareça não ter justificação biológica nem razão de ser, é a raiz de toda proibição? Qual é o fundamento deste Não universal? É verdade que este Não contém um Sim: a proibição não apenas separa a sexualidade animal da sexualidade social mas, como na linguagem, este Sim funda o homem, constitui a sociedade. A proibição do incesto nos faz defrontar, noutro plano, com o próprio enigma da linguagem: se a linguagem nos funda, nos dá sentido, qual é o sentido deste sentido? A linguagem nos dá a possibilidade de dizer, mas que quer dizer dizer? A pergunta sobre o incesto é semelhante à do sentido da significação. A resposta de Lévi-Strauss é singular: estamos diante de uma operação inconsciente do espírito humano e que, em si mesma, carece de sentido ou fundamento, mas não de utilidade: graças a ela – e à linguagem, o trabalho e o mito – os homens são homens. A pergunta sobre o fundamento do tabu do incesto se resolve na pergunta sobre a significação do homem 'e esta na do espírito. Portanto temos que

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penetrar numa esfera em que o espírito opera com maior liberdade, pois que não se defronta nem com os processos econômicos nem com as realidades sexuais mas consigo mesmo.

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2. SÍMBOLOS, METÁFORAS E EQUAÇÕES.

A POSIÇÃO E O SIGNIFICADO. ÁSIA, AMÉRICA E EUROPA. TRÊS TRANSPARENTES: O ARCO-ÍRIS, O VENENO E A DONINHA. O ESPÍRITO: ALGO QUE É NADA.

Diante do mito, Lévi-Strauss adota uma posição francamente intelectualista e lamenta a preferência moderna pela vida afetiva, à qual atribui poderes que não tem: “É um erro acreditar que idéias claras podem nascer de emoções confusas”.5 Critica também a fenomenologia da religião que trata de reduzir a “sentimentos informes e inefáveis” fenômenos intelectuais só aparentemente distintos dos de nossa lógica. A pretensa oposição entre pensamento lógico e pensamento mítico revela apenas a nossa ignorância: sabemos ler um tratado de filosofia mas não sabemos como devem ser lidos os mitos. Certo, temos uma clave – as palavras de que estão feitos – mas seu significado se nos escapa porque a linguagem ocupa no mito um lugar semelhante ao do sistema fonológico dentro da própria linguagem. Lévi-Strauss inicia sua demonstração com esta idéia: a pluralidade de mitos, em todos os tempos e em todos os espaços, não é menos notável que a repetição em todos os relatos míticos de certos procedimentos. O mesmo sucede no universo do discurso: a pluralidade de textos resulta da combinação de um número muito reduzido de elementos lingüísticos permanentes. Portanto, a elaboração mítica não obedece a leis distintas das lingüísticas: seleção e combinação de signos verbais. A distinção entre língua e fala, proposta por Ferdinand de Saussure, também é aplicável aos mitos. A primeira é sincrônica e postula um tempo reversível; a segunda é diacrônica e seu tempo é irreversível. Ou, como dizemos em espanhol Io dicho, dicho está”. O mito é fala, seu tempo alude ao que passou e é um dizer irrepetível; ao mesmo tempo, é idioma: uma estrutura que se atualiza cada vez que voltamos a contar a história.

5 A. M. HOCART, citado por Lévi-Strauss em La structure des mythes.

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A comparação entre mito e linguagem conduz Lévi-Strauss a buscar os elementos constitutivos do primeiro. Esses elementos não podem ser os fonemas, os morfemas ou os “semantemas”, pois se assim fosse o mito seria um discurso como todos os outros. As unidades constitutivas do mito são frases ou orações mínimas que, por sua posição no contexto, descrevem uma relação importante entre os diversos aspectos, incidentes e personagens do relato. Lévi-Strauss propõe que chamemos a essas unidades de mitemas. Já que um mito é um conto contado com palavras, como distinguir os mitemas das outras unidades puramente lingüísticas? Os mitemas são “entrelaçados ou feixes de relações mínimas” e operam em um nível superior ao puramente lingüístico. No nível mais baixo, encontra-se a estrutura fonológica; no segundo, a sintática, comum a todo discurso mítico propriamente dito. A estrutura sintática está para a mítica como a fonológica está para a sintática. Se a investigação consegue isolar os mitemas como a fonologia o fez com os fonemas, poder-se-á dispor de um. feixe de relações que formem uma estrutura. As combinações dos mitemas devem produzir mitos com a mesma fatalidade e regularidade com que os fonemas produzem sílabas, morfemas, palavras e textos. Os mitemas são ao mesmo tempo significativos (dentro da narrativa) e pré-significativos (como elementos de um segundo discurso: o mito). Graças aos mitemas, os mitos são fala e idioma, tempo irreversível (narrativa) e reversível (estrutura), diacronia e sincronia. Novamente, com a ressalva de expor mais completamente meus pontos de vista no final deste trabalho, antecipo uma reflexão: se um mito é uma paralinguagem, sua relação com a linguagem é inversa à do sistema de parentesco. Este último é um sistema de significações que se serve de elementos não-lingüísticos; o mito opera com a linguagem como se esta fosse um sistema pré-significativo: o que diz o mito não é o que dizem as palavras do mito. O sistema de parentesco se decifra por meio de uma clave superior: a linguagem; qual seria a clave paralingüística para decifrar o sentido dos mitos? E essa clave seria traduzível a da linguagem? Em suma, os mitos nos defrontam outra vez com o problema do sentido da significação.

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Em seu ensaio La structure des mythes, prelúdio a outros trabalhos mais ambiciosos, Lévi-Strauss serve-se da história de Édipo como pedra-de-toque de suas idéias. Não lhe interessa o conteúdo do mito nem pretende oferecer uma nova interpretação, mas tenta, isto sim, decifrar a sua estrutura: o Sistema de relações que o determina e que, provavelmente, não é diverso do de todos os outros mitos. Busca uma lei geral, formal e combinatória.Não sem franzir o cenho o de mais de um antropólogo e muitos helenistas e psicólogos, recolheu o maior numero possível de versões; em seguida, isolou as unidades mínimas, os mitemas, que aparecem nessas variantes. Alguns criticaram este procedimento: como podem ser determinados objetivamente os mitemas? A objeção não tem valor se se recorda que uma das características dos mitos é a recorrência de certos temas e motivos. Inclusive desta maneira podem se reconstruir versões incompletas e ainda descobrir-se mitemas que, por esta ou aquela razão, não aparecem em nenhuma versão. Tal é o caso do defeito físico de Édipo, que não figura nas variantes conhecidas. Uma vez determinados os mitemas, Lévi-Strauss inscreveu-os em um cartão, dispostos em colunas horizontais e verticais. Cada mitema designava um feixe de relações, isto é, era a expressão concreta de uma função de relação. Reproduzo, muito simplificado, o quadro de Lévi-Strauss:

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1 2 3 4Édipo mata Laio, seu pai

Édipo se casa com sua mãe

Édipo imola a Esfinge Édipo: pés inchados

Etéocles mata o seu irmão

Antígona enterra o seu irmão

Se lemos da direita para a esquerda, contamos o mito; se de cima para baixo, penetramos em sua estrutura. A primeira coluna corresponde à idéia de relações de parentesco demasiado íntimas (entre Édipo e sua mãe, Antígona e seu irmão); a segunda descreve uma desvalorização dessas relações (Édipo assassina o seu pai, Eteócles o seu irmão) ; a terceira se refere à destruição dos monstros; a quarta a uma dificuldade para caminhar. A relação entre a primeira e a segunda coluna é óbvia: une-as um duplo e contrário descomedimento: exagerar ou minimizar as relações de parentesco. A relação entre Édipo e a Esfinge reproduz a de Cadmos e o dragão: para fundar Tebas o herói deve matar o monstro. É uma relação entre o homem e a terra que alude ao conflito entre a crença na origem terrestre de nossa espécie (autoctonia) e o fato de que cada um de nós é filho de um homem e de uma mulher. Em conseqüência, a terceira coluna é uma negação dessa relação e reproduz, noutro nível, o tema da segunda coluna. Muitos mitos representam os homens nascidos da terra como inválidos, coxos ou de andar vacilante. Embora o significado do nome de Édipo não seja claro, a análise confirma que, como os de seu pai e de seu avô (o primeiro, coxo, e o segundo, surdo), alude a um defeito físico”.6

Portanto, a quarta coluna afirma o que nega a terceira e, novamente em outro nível, repete o tema da primeira. Portanto, a relação entre a 6 O nome de Édipo significa “pé inchado” ou “aquele que conhece a resposta do enigma dos pés”? Como se sabe, a Esfinge pergunta: Qual é a criatura que tem quatro pés ao amanhecer, dois ao meio-dia e três ao crespúsculo? A resposta é: o homem. Parece-me que o enigma da Esfinge confirma a hipótese de Lévi-Strauss: o tema das colunas terceira e quarta é o da origem do homem.

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terceira coluna e a quarta é da mesma índole que a da primeira e da segunda. Estamos diante de uma dupla parelha de contradições: a primeira está para a segunda assim como a terceira está para a quarta. Esta fórmula pode variar: a primeira é homóloga da quarta, a segunda da terceira. Em termos morais: o parricídio se nega com o incesto; em termos cosmológicos: negar a autoctonia (ser um homem de fato e de direito) implica em matar o monstro da terra. O defeito se paga com o excesso. O mito oferece uma solução ao conflito por meio de um sistema de símbolos que operam à maneira dos sistemas da lógica e da matemática.

Ao encontrar a estrutura do mito de Édipo, Lévi-Strauss se torna apto para aplicar as mesmas leis combinatórias a mitos de outras civilizações. Boas assinalara que as adivinhações são um gênero quase completamente ausente entre os índios da América do Norte. Há duas exceções: os bufões ou palhaços cerimoniais dos pueblo – segundo os mitos nascidos de um comércio sexual incestuoso – que divertem os espectadores com adivinhanças; e certos mitos dos índios algonquines, relativos a corujas que proferem enigmas, os quais, sob pena de morte, o herói deve resolver.. A analogia com o mito de Édipo é dupla: por um lado, entre o incesto e adivinhação; por outro, entre a esfinge e as corujas. Portanto, há uma relação entre incesto e adivinhação: a resposta a um enigma une dois termos inconciliáveis e o incesto a duas pessoas também inconciliáveis. A operação mental em ambos os casos é idêntica: unir dois termos contraditórios. Esta relação se reproduz em outros mitos, só que de maneira inversa. Por exemplo, no mito do Grial. No de Édipo, um monstro postula uma pergunta sem resposta; no mito celta, há uma resposta sem pergunta. Com efeito, Perceval não se atreve a perguntar o que é e para que serve o recipiente mágico. Em um caso, o mito apresenta uma personagem que abusa do comércio sexual ilícito e que, ao mesmo tempo, possui tal sutileza de espírito que pode resolver a adivinhação da esfinge; no outro, há uma personagem casta e tímida que não ousa formular a pergunta que dissipará o encantamento. Comércio sexual ilícito = solução de um enigma que planteia a união de dois termos contraditórios; abstinência sexual = incapacidade para

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perguntar. O conflito entre a autoctonia e a origem real, sexual, dos homens, exige uma solução inversa. A existência da esfinge (autoctonia) implica a desvalorização dos laços consangüíneos (parricídio) ; o desaparecimento do monstro, o exagero dos mesmos laços (incesto). Embora Lévi-Strauss se abstenha de estudar os mitos das civilizações históricas (o mito de Édipo é antes uma ilustração de suas idéias do que um estudo de mitologia grega), observo que a mesma lógica se desenvolve no mito de Quetzalcoatl. Diversos investigadores dedicaram notáveis estudos ao tema e mal se faz necessário recordar, por exemplo, a brilhante interpretação de Laurette Sejourné. Não obstante, o método de Lévi-Strauss oferece a possibilidade de estudar o mito mais como uma operação mental que como uma projeção histórica. Os elementos históricos não desaparecem, mas ficam integrados nesse sistema de transformações que abarca desde os sistemas de parentesco e as instituições políticas até a mitologia e as práticas rituais. Advirto que o estruturalismo não pretende explicar a história: o acontecimento, o suceder, é um domínio que não toca; contudo, do ponto de vista da antropologia, tal como a concebe Lévi-Strauss, a história é apenas uma das variantes da estrutura. O mito de Quetzalcoatl é um produto histórico – seja ou não histórica a sua personagem central – na medida em que é uma criação religiosa de uma sociedade secreta; ao mesmo tempo, é uma operação mental sujeita à mesma lógica dos outros mitos – sem excluir os mitos modernos, como o da Revolução. Apenas limitar-me-ei aqui a assinalar certos traços e elementos significativos: Tezcatlipoca, deus coxo e senhor de magos e feiticeiros, intimamente associado ao mito dos sacrifícios humanos, tenta Quetzalcoatl e leva-o a cometer o duplo pecado de adultério e incesto (Quetzalcoatl se embebeda e deita-se com sua irmã). Ao inverso do que ocorre com Édipo, salvador de Tebas ao decifrar o enigma da esfinge, Quetzalcoatl é vítima do engano do feiticeiro, e assim perde o seu reino e ocasiona a perda de Tula. Os astecas, que se consideraram sempre os herdeiros da grandeza de Tula, representaram outra vez o mito de Quetzalcoatl (quero dizer: celebraram-no, viveram-no) no momento da conquista espanhola, só que ao inverso. Talvez o mito de Quetzalcoatl, caso se consiga decifrar a sua estrutura, possa nos dar a chave dos mistérios da história antiga do

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México: o fim das grandes teocracias e o princípio das culturas históricas (a oposição entre Teotihuacán e Tula, poderia dizer-se, para simplificar), e a atitude dos astecas diante de Cortés.

Na segunda parte de seu ensaio Léví-Strauss recorre a vários mitos dos índios pueblo para ampliar a sua demonstração. Neles também se manifesta uma oposição de termos inconciliáveis: autoctonia e nascimento biológico, mudança e permanência, vida e morte, agricultura e caça, paz e guerra. Estas oposições nem sempre são evidentes, porque às vezes os termos originais foram substituídos por outros. A permutação de um termo por outro tem por objeto encontrar termos de mediação entre as oposições. A forma de operação do pensamento mítico não é distinta da de nossa lógica; difere no emprego dos símbolos, porque em lugar de proposições, axiomas e signos abstratos serve-se de heróis, deuses, animais e outros elementos do mundo natural e cultural. É uma lógica concreta e não menos rigorosa que a dos matemáticos. A posição dos termos de mediação é privilegiada. Por exemplo, a mudança implica em morte para os índios pueblo; pela intervenção do mediador agricultura se transforma em crescimento vital. Guerra, sinônimo de morte, transforma-se em vida por obra de outra mediação: caça. A oposição entre animais carnívoros e herbívoros se resolve em outra mediação: a dos coiotes e auras que se alimentam de carne como os primeiros mas que, como os herbívoros, não são caçadores. A mesma operação de permutação rege a carreira dos deuses e dos heróis. A cada oposição corresponde um mediador, de modo que a função dos messias se esclarece: são encarnações de proposições lógicas que resolvem uma contradição. Algo semelhante ocorre com os gêmeos divinos, os deuses hermafroditas e uma estranha personagem, o palhaço mítico, que aparece em muitos mitos e ritos. A penetração psicológica, neste caso, não é menor que o rigor lógico: o riso, como se sabe, dissolve a contradição em uma unidade convulsiva que nega os dois termos da oposição. Entre esses palhaços míticos existe um, o Ash boy, que ocupa na mitologia dos pueblo um lugar semelhante ao da Cinderela no Ocidente: os dois são mediadores entre a obscuridade e luz, fealdade e beleza, riqueza e pobreza, o mundo de baixo e o de cima. A relação entre

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a Cinderela e o Ash boy adota a forma de inversão simétrica. Mais adiante encontraremos de novo esta relação entre alguns mitos e lendas européias e outros da América”.7

A ambigüidade do mediador se explica não tanto por motivos psicológicos como por sua posição no interior da fórmula: é um termo que permite dissolver ou transcender a oposição. Por tal razão um termo positivo (deus, herói, monstro, animal, planta, astro) pode transformar-se em um negativo: suas qualidades dependem de sua posição dentro do mito. Nenhum elemento possui significação própria; a significação brota do contexto: Édipo é “bom” ao imolar a Esfinge; é “mau”, ao casar com sua mãe; é “débil” ao andar com dificuldade; “forte”, quando mata o pai. Cada termo pode ser substituído por outro, contanto que haja entre eles uma relação necessária. Os mitos obedecem às mesmas leis da lógica simbólica; se se substitui os nomes próprios e os mitemas por signos 7 Valeria a pena analisar, desole esse ponto de vista, a mitologia do México antigo. As religiões mesoameri canas são um imenso balé cósmico de transformações, uma grandiosa dança de disfarces em que cada nome é uma data e. uma máscara, um feixe de atributos contraditórios. Por exemplo, Quetzalcoatl. E um Messias, um mediador típico. Ao nível histórico é um mediador entre as culturas da costa do Golfo do México e as do Altiplano, as grandes teocracias e os toltecas, o mundo náhuatl e o maia; ao cosmológico, entre a terra (serpente) e o céu (pássaro), o ar (a máscara bocal de bico de pato) e a água (caracol marinho) o mundo subterrâneo e o celeste (o planeta Vénus); ao nível mágico-moral entre o sacrifício e o auto-sacrifício, a penitência e o excesso, a continência e a luxúria, a embriaguez e a sobriedade. É um mito de emergência (a origem do homem) e um mito de trânsito; é a imagem do tempo, a encarnação do movimento, seu fim e sua transfiguração (a auto-imolação pelo fogo e sua metamorfose em planeta). Mito astronômico e herói cultural, é sobretudo uma cristalização da dualidade, a cifra dos enigmas das relações entre esta e a unidade. Seu nome quer dizer “gêmeo preciosos, e seu duplo é Xóolot”. Este último possui muitos nomes, figuras e atributos: cão, ser contrafeito (como Édipo), tigre, divindade sexual, animal anfíbio (axólotl). Naturalmente haveria que pôr entre parênteses todas estas relações, aproximar-se do mito com olhos mais inocentes e objetivos e, após recolher todas as variantes, inscrever em um quadro todos os mitemas pertinentes. Ademais, o sentido da figura de Quetzacoatl só resultaria inteligível o dia em que se a estude como parte de um sistema mítico mais vasto e que abarca não só a Mesoamérica como o norte do continente e provavelmente também a América do Sul. A pluralidade de sociedades que adotaram e modificaram o mito proíbe estudá-lo por meio do método histórico. o único adequado, assim, seria o de Lévi-Strauss. Aponto, por ora, algo evidente: a história de Quetzacoatl é na realidade um conjunto de histórias, uma família de mitos ou, mais exatamente, um sistema. Seu tema é a mediação A situação do templo de Quetzacoatl em Tenochtitlán, entre os consagrados a Tlaloc e a Huitzilopochtli, revela uma espécie de triângulo no qual a figura do primeiro, é um ponto de união entre duas constelações míticas, uma associada às plantas e á água e outra astronômica e guerreira. Esta dualidade, como observou Soustelle, corresponde também à estrutura da sociedade asteca e à situação peculiar deste povo no contexto das culturas do Altiplano: Huitzilopochtli era o deus tribal asteca enquanto que Tlaloc representa um culto muito mais antigo. Recordarei, por fim, que o Sumo Pontífice entre os astecas ostentava o nome de Quetzacoatl e que, diz Sahagún, “eram dois os sumo sacerdotes”.

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matemáticos, o mito e suas variantes, inclusive as mais contraditórios, podem se condensar em uma fórmula... Ao concluir seu estudo, Lévi-Strauss afirma que o mito “tem por objeto oferecer um modelo lógico para resolver uma contradição – algo irrealizável se a contradição é real”. Observo, em conseqüência, uma diferença entre o pensar mítico e o do homem moderno: no mito se desenvolve uma lógica que não se defronta com a realidade e sua coerência é meramente formal; na ciência, a teoria deve submeter-se à prova da experimentação; na filosofia, o pensamento é crítico. Aceito que o mito é uma lógica mas não vejo como possa ser um saber. Por último, o método de Lévi-Strauss proíbe uma análise do significado particular dos mitos: por um lado, pensa que esses significados são contraditórios, arbitrários e, de certo modo, insignificantes; por outro, afirma que o significado dos mitos se desenvolve numa região que está mais além da linguagem.

O sistema de simbolização se reproduz sem cessar. O mito engendra mitos: oposições, permutações, mediações e novas oposições, Cada solução é “ligeiramente distinta” da anterior, de modo que o mito “cresce como uma espiral”: a nova versão o modifica e, ao mesmo tempo, o repete. Por isso a interpretação de Freud, independentemente de seu valor psicológico, é mais uma versão do mito de Édipo. Poderia acrescentar-se que o estudo de Lévi-Strauss constitui outra versão, já não em termos psicológicos, mas lingüísticos e de lógica simbólica. Este é o tema, justamente, de Le cru et le cuit. Análise de cerca de duzentos mitos sul-americanos, opera como um aparelho de transformações que os engloba e os “traduz” em termos intelectuais. Esta tradução é uma transmutação e daí que, como diz o seu autor, seja “um mito dos mitos americanos”. Le cru et le cuit responde de certo modo a minha pergunta acerca do significado dos mitos: à maneira dos símbolos de Peirce, o sentido de um mito é outro mito. Cada mito desenvolve o seu sentido em outro que, por sua vez, alude a outro, e assim sucessivamente até que todas essas alusões e significados tecem um texto: um grupo ou família de mitos. Esse texto alude a outro e mais outro; os textos compõem um conjunto, não tanto um discurso mas um sistema em movimento e perpétua metamorfose: uma linguagem. A mitologia dos

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índios americanos é um sistema e esse sistema é um idioma. Outro tanto pode dizer-se da mitologia indo-européia e da mongólica: cada uma constitui um idioma. Por outro lado, o significado de um mito depende de sua posição no grupo e daí que, para decifrá-lo, seja necessário ter em conta o contexto em que aparece. O mito é uma frase de um discurso circular e que muda constantemente de significado: repetição e variação”.8

Esta maneira de pensar nos põe diante de conclusões vertiginosas. O grupo social que elabora o mito, ignora o seu significado; aquele que conta um mito não sabe o que diz, repete o fragmento de um discurso, recita uma estrofe de um poema cujo princípio, fim e tema desconhece. O mesmo ocorre com os seus ouvintes e com os ouvintes de outros mitos. Ninguém sabe que esse relato é parte de um imenso poema: os mitos se comunicam entre si por meio dos homens e sem que estes o saibam. Idéia não muito distanciada da dos românticos alemães e dos surrealistas: não é o poeta que se serve da linguagem e sim esta que fala através do poeta. Há uma diferença: o poeta tem consciência de ser um instrumento da linguagem e não estou certo de que o homem do mito saiba que o é de uma mitologia. (A discussão deste ponto e prematura: basta dizer, por enquanto, que para Lévi-Strauss a distinção é supérflua, pois pensa que a consciência é uma ilusão.) A situação descrita por Le cru et le cuit é 8 Ver os mitos como frases ou partes de um discurso que compreenderia todos os mitos de uma civilização é uma idéia desconcertante, mas tônica. Aplicada à literatura, por exemplo, nos revelaria uma imagem distinta e talvez mais exata do que chamamos tradição. Em lugar de ser uma sucessão de nomes, obras e tendências, a tradição se converteria em um sistema de relações significativas: uma linguagem. A poesia de Góngora não seria unicamente algo que está depois de Garcilaso e antes de Rubon Dario, mas um texto em relação dinâmica com outros textos; leríamos Góngora não como um texto isolado mas em seu contexto: aquelas obras que o determinam e aquelas que sua poesia determina. Se concebemos a poesia de língua espanhola mais como um sistema que como uma história, a significação das obras que a compõem não depende tanto da cronologia nem de nosso ponto de. vista como das relações dos textos entre si e do próprio movimento do sistema. A significação de Quevedo não se esgota em sua obra nem na do conceptismo do século XVII; o sentido de sua palavra, o encontrarmos mais plenamente em algum poema de Vallejo embora, naturalmente, o que poeta peruano diz não seja idêntico ao que quis dizer Quevedo. O sentido se transforma sem desaparecer: cada transmutação, ao mudá-lo, o prolonga. A relação entre uma obra e outra não é meramente cronológica ou, antes, essa relação é variável e altera sem cessar a cronologia: para ouvir o que dizem os poemas da última época de Juan Ramón Jiménez, é preciso ler uma canção do século XIV (por exemplo: Aquel árbol que mueve la hoja... do Almirante Hurtado de Mendonza). A idéia de Lévi-Strauss nos convida a ver a literatura espanhola não como um conjunto de obras mas como uma só obra. Essa obra é um sistema, uma linguagem em movimento e em relação com outros sistemas: as outras literaturas européias e sua descendência americana.

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análoga à dos executantes de uma sinfonia que estivessem incomunicados e separados pelo tempo e pelo espaço: cada um tocaria o seu fragmento como se fosse a obra completa. Nenhum deles poderia escutar o concerto porque para ouvi-lo teria que estar fora do círculo, longe da orquestra. No caso da mitologia americana esse concerto começou há milênios e hoje umas poucas comunidades dispersas e agonizantes repetem os últimos acordes. Os leitores de Le cru et le cuit são os primeiros que escutam essa sinfonia e os primeiros que sabem que a escutam. Mas, será que a ouvimos realmente? Escutamos uma tradução ou, mais exatamente, uma transmutação: não o mito, mas outro mito. Nisto consiste o paradoxo do livro de Lévi-Strauss e o paradoxo do mito. A razão é a seguinte: embora a linguagem do mito, diferentemente da poesia, seja facilmente traduzível a qualquer idioma, o verdadeiro discurso mítico é, como a música, intraduzível. No mito, conforme já disse, a linguagem articulada desempenha a mesma função que o sistema fonológico no discurso comum: o mito serve-se das palavras como nós, ao falarmos, nos servimos dos fonemas. Portanto, a linguagem do mito, a história contada com palavras, é uma estrutura inconsciente e pré-significativa sobre a qual se edifica o verdadeiro discurso mítico. Por isso Lévi-Strauss afirma que há uma relação de verdadeiro parentesco entre o mito e a música, e não entre aquele e a poesia. A diferença desta última, o mito pode ser traduzido sem que nada de apreciável se perca na tradução; à semelhança da primeira, o discurso mítico constitui uma linguagem própria e intraduzível. A meu ver esta analogia não é perfeita: se no mito há dois níveis, um propriamente lingüístico e outro paralingüístico, na música não encontramos o primeiro nível. Em troca, em seu primeiro nível mito e poema estão construídos de palavras e no segundo os dois são objetos verbais, um feito de mitemas e outro de metáforas e equivalências. Voltarei a isto e examinarei ponto por ponto as razões que movem Lévi-Strauss a sustentar a singular identidade entre música e mito.

Le cru et le cuit é apenas o começo de uma tarefa vastíssima: determinar a sintaxe da mitologia do continente americano. Lévi-Strauss rechaça o método da re construção histórica não só por razões

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de princípio – embora estas sejam fundamentais, como já se viu – mas porque é impossível determinar os empréstimos que se fizeram umas às outras as sociedades indo-americanas desde o fim do Pleistoceno até nossos dias: a América foi uma “Idade Média sem Roma”. Sua exploração repousa, em troca, sobre esta evidência: os povos que elaboraram esses mitos “utilizam os recursos de uma dialética de oposições e mediações dentro de uma comum concepção de mundo”. A análise estrutural confirma assim as presunções da etnografia, da arqueologia e da história sobre a unidade da civilização americana. Não é difícil inferir que esta investigação desembocará em uma empresa ainda mais ambiciosa: uma vez determinada a sintaxe do sistema mitológico americano, será preciso relacioná-la com a dos outros 'sistemas: o indo-europeu, o da Oceania, o da África e o dos povos mongolóides da Ásia. Aventuro desde já uma hipótese, nada gratuita, pois a obra de Lévi-Strauss nos oferece indícios suficientes para postulá-la: entre o sistema indo-europeu e o americano a relação há de ser de simetria inversa, tal como o mostra o Ash boy norte-americano e a Cinderela européia. Este exemplo não é o único: as constelações de Órion e do Corvo cumprem funções inversas embora simétricas entre os índios do Brasil e os gregos. O mesmo sucede com o costume do charivari (chocalhada) na Europa Ocidental e o ruído ritual com que os mesmos índios brasileiros enfrentam os eclipses: em ambos os casos se trata de uma resposta a uma desunião ou a uma união antinatural, sexual no Mediterrâneo e astronômica na América do Sul.

A figura do triângulo é central no pensamento de Lévi-Strauss. Por isto, embora seja temerário, não será ocioso perguntar-se se a velha oposição entre Oriente e Ocidente, o mundo indo-europeu e o mongólico, não se resolve em uma mediação americana anterior à chegada dos europeus à nosso continente. O sistema mitológico americano poderia ser o ponto de união, a mediação entre os dois sistemas míticos contraditórios. Salto sobre uma fácil objeção – “o mundo americano é parte da área mongolóide” – porque a antigüidade do homem na América permite considerar as culturas índias como criações originais, já que não autóctones. A relação entre a Índia e a América seria assim

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de simetria inversa, não só no espaço como no tempo: o subcontinente índio é o ponto de convergência real, histórico, entre a área mongolóide e a indo-européia, do mesmo modo que o continente americano seria o ponto de coincidência, não-histórico, entre ambas. Outra relação contraditória: o sistema mitológico indo-europeu predomina na índia, enquanto que a mitologia americana possui a mesma origem da mongolóide. A mediação indo-ária carrega o acento no indo-europeu; a americana, no mongolóide. No caso da América, as perspectivas desta suposição são portentosas, já que os indo-americanos ignoraram de todo os sistemas míticos das outras duas áreas. À maneira de Lévi-Strauss se poderia dizer que as civilizações se comunicam entre si sem que aqueles que as elaboram se dêem conta. A universalidade da razão – uma razão maior que a razão crítica – ficaria demonstrada pela ação de um pensamento que ainda há pouco chamamos de irracional ou pre-lógico.

Não sei se Lévi-Strauss aprovaria de todo esta interpretação de seu pensamento. Eu mesmo julgo-a apressa da. Em Tristes tropiques e noutras obras alude ao problema das relações entre Ásia e América e se inclina por uma idéia cada vez mais popular entre os estudiosos: a indubitáveis analogias entre certos traços da civilização americana, da China e do sudeste da Ásia, só podem ser conseqüência de imigrações e contatos culturais entre ambos os continentes. Lévi-Strauss vai mais longe e aventura a existência de um triântico subártico que uniria a Escandinávia e o Labrador com o norte da América e a este com a China e o sudeste asiático. Esta circunstância, diz, tornaria mais compreensível o estreito “parentesco do ciclo do Graal com a mitologia dos índios da América setentrional”: os celtas e a civilização escandinava subártica teriam sido os transmissores. É estranho que apele para a história a fim de explicar estas analogias: toda a sua tentativa se dirige antes a ver neste tipo de coincidência não a conseqüência da história mas de uma operação do espírito humano. Seja como for, não creio traí-lo se afirmo que a sua obra tenta resolver a heterogeneidade das histórias particulares em uma estrutura atemporal. Às pretensões da história universal, que inutilmente tenta reduzir a pluralidade das civilizações a uma só direção ideal – ontem encarnada na Providência e hoje

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desencarnada na idéia do progresso – opõe uma visão vivificante: não há povos marginais e a pluralidade das culturas é ilusória porque é uma pluralidade de metáforas que dizem a mesma coisa. Há um ponto em que se cruzam todos os caminhos; este ponto não é a civilização ocidental e sim o espírito humano que obedece, em todas as partes e em todos os tempos, às mesmas leis.

Le cru et le cuit parte do exame de um mito dos índios Bororo relativo à origem da tempestade e mostra sua conexão secreta com outros mitos dos mesmos índios. Depois descobre os nexos deste grupo de mitos com os das sociedades vizinhas até explorar um sistema imenso que se estende em um território não menos imenso. Reduz as relações de cada mito e de cada grupo de mitos a “esquemas de relações” que por sua vez revelam afinidades ou isomorfismos com outros esquemas e grupos de esquemas. Nasce assim “um corpo de múltiplas dimensões” que, sem cessar, se transforma e que torna interminável sua tradução e sua interpretação. Esta dificuldade não é demasiado grave: o propósito de Lévi-Strauss não é tanto estudar todos os mitos americanos quanto decifrar sua estrutura, isolar seus elementos e termos de relação, descobrir a forma de operação do pensamento mítico. Por outro lado, se o mito é um objeto em perpétua metamorfose, sua interpretação também obedece à mesma lei. O livro de Lévi-Strauss recolhe e repete, não sem mudá-los, temas de seus livros anteriores e adianta motivos e observações que seus livros futuros elaborarão – nunca exatamente, mas à maneira das variações de um poema. Sua tentativa me recorda, noutro nível, a de Mallarmé: tanto Un coup de dés como Le cru et le cuit são aparatos de significações. Esta coincidência não é fortuita: Mallarmé antecipa muitas tentativas modernas, tanto na esfera da poesia, da pintura e da música como na do pensamento. Mallarmé parte do pensamento poético (selvagem) até o lógico e Lévi-Strauss do lógico para o selvagem. A anexação da razão lógica pelos símbolos da poesia coincide em um momento com a reconquista da lógica sensível pela razão crítica.

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Ao mostrar a relação entre os mitos Bororo e Gê, o antropólogo francês descobre que todos eles têm como tema, nunca explícito, a oposição entre o cru e o cozido, a natureza e a cultura. Os mitos do jaguar e do porco selvagem, associados aos da origem da planta do tabaco, aludem à descoberta do fogo e à cozedura dos alimentos. Por meio do sistema de permutações que descrevi acima de forma sumária e grosseira, Lévi-Strauss passa em revista 187 mitos nos quais se repete esta dialética de oposição, mediação e transformação. Um após outro, em uma espécie de dança – poesia e matemática – se sucedem os símbolos contraditórios: o contínuo e o descontínuo, a vida breve e a imortalidade, a água e os ornamentos funerários, o fresco e o corrompido, a terra e o céu, o aberto e o fechado – as aberturas do corpo humano convertidas em um sistema simbólico da ingestão e da dejeção – a rocha e o lenho apodrecido, o canibalismo e o vegetarianismo, o incesto e o parricídio, a caça e a agricultura, a fumaça e o trovão... Os cinco sentidos se transformam em categorias lógicas e a esta chave da sensibilidade se superpõe uma astronômica que se transforma em outra construída da oposição entre ruído e silêncio, fala e canto. Todos esses mitos são metáforas culinárias, mas por sua vez a cozinha é um mito, uma metáfora da cultura.

Três símbolos me chamaram a atenção: o arco-íris, a doninha e o veneno para a pesca. Os três são mediadores entre a natureza e a cultura, o contínuo e o descontínuo, a vida e a morte, o cru e o podre. O arco-íris significa o fim da chuva e a origem da enfermidade; de ambas as maneiras é um mediador: no primeiro aspecto porque é um emblema da conjunção benéfica entre céu e terra e no segundo porque encarna a fatal transição entre a vida e a morte. O arco-íris é um homólogo da doninha, animal lascivo e pestilento: um atributo a liga com a vida e outro com a morte (putrefação). O timbó é um veneno que os índios usam para pescar e assim é uma substância natural utilizada em uma atividade cultural ambígua (pesca e caça são transformações da guerra). Nos três símbolos a ruptura ou descontinuidade essencial entre natureza e cultura, cujo exemplo máximo e central é a cozinha, se adelgaça e se atenua. Seu caráter equívoco não provém só do fato de serem

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depositários de propriedades contraditórias, mas de que são categorias lógicas difíceis de pensar: neles a dialética das oposições está a ponto de se desvanecer. Por sua própria transparência são, diria, elementos impensáveis – algo assim como o pensamento que se pensa. Para recriar a descontinuidade, o arco-íris se desagrega (origem do cromatismo, que é uma forma atenuada da continuidade natural); o veneno nega por sua função a sua natureza (é uma substância mortífera que dá vida); e a doninha se transforma, em certos mitos de exaltados e sinistros matizes sexuais, de homólogo da doença e da “mulher fatal” em nutriz e introdutora da agricultura. Não é estranho que em um momento de sua exposição Lévi-Strauss associe o cromatismo do Tristão wagneriano com o veneno e aos dois com infortúnio de Isolda, a doninha.

O verdadeiro tema de todos esses mitos é a oposição entre a cultura e a natureza tal como se expressa na criação humana por excelência: a cocção dos alimentos pelo fogo domesticado. Tema prometéico de múltiplas ressonâncias: cisão entre os deuses e os homens, a vida contínua do cosmo e a vida breve dos humanos, mas também mediação entre a vida e a morte, o céu e a água, as plantas e os animais. Seria ocioso enumerar todas as ramificações desta oposição, pois engloba todos os aspectos da vida humana. É um tema que nos conduz ao centro da meditação de Lévi-Strauss: o lugar do homem na natureza. A posição da cozinha como atividade que justamente separa e une o mundo natural e o humano não é menos central que a proibição universal do incesto. Ambas estão prefiguradas pela linguagem, que é o que nos separa da natureza e o que nos une a ela e a nossos semelhantes. A linguagem significa a distância entre o homem e as coisas tanto quanto a vontade de anulá-la. A cozinha e o tabu do incesto são homólogos da linguagem. A primeira é mediação entre o cru e o podre, o mundo animal e o vegetal; o segundo entre a endogamia e a exogamia, a promiscuidade dissoluta e o onanismo do uno. O modelo de ambos é a palavra, ponte entre o grito e o silêncio, a não significação da natureza e a insignificância dos homens. Os três são crivos que filtram o mundo natural anônimo e o transmutam em nomes, signos e qualidades. Transformam a torrente amorfa da vida em quantidade discriminada e

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em famílias de símbolos. Nos três o tecido da rede (crivo) é composto de uma substância impalpável: a morte. Lévi-Strauss quase não a cita. Talvez o proíba o seu orgulhoso materialismo. Ademais, de certo ponto de vista, a morte é apenas outra manifestação da imortal matéria vigente. Mas, como não ver nessa necessidade de diferenciar entre natureza e cultura para em seguida introduzir um termo de mediação entre ambas, o eco e a obsessão de nos sabermos mortais?

A morte é a verdadeira diferença, a raia divisória entre o homem e a corrente vital. O sentido último de todas essas metáforas é a morte. Cozinha, tabu do inces to e linguagem são operações do espírito, mas o espírito é uma operação da morte. Embora a necessidade de sobreviver pela alimentação e pela procriação seja comum a todos os seres vivos, os artifícios com que o homem enfrenta esta fatalidade o convertem em um ser à parte. Sentir-se e saber-se mortal é ser diferente: a morte nos condena à cultura. Sem ela não haveria nem artes nem ofícios: linguagem, cozinha e regras de parentesco são mediações entre a vida imortal da natureza e a brevidade da existência humana. Aqui Lévi-Strauss coincide com Freud e, noutro extremo, com Hegel e com Marx. Mais próximo dos dois últimos do que do primeiro, em um segundo movimento o seu pensamento procura dissolver a dicotomia entre cultura e natureza – não pelo trabalho, pela história ou pela revolução, mas pelo conhecimento das leis do espírito humano. O mediador entre a vida breve e a imortalidade natural é o espírito: um aparelho inconsciente e coletivo, imortal e anônimo como as células. Por isto me parece ser um homólogo do arco-íris, do veneno para pescar e da doninha. Como esses três elementos vivazes e fúnebres, por sua origem está do lado da natureza e por sua função e seus produtos do lado da cultura. Nele se apaga quase completamente a oposição entre morte e vida, a significação distinta do homem e a não significação infinita do cosmo. Diante da morte o espírito é vida e diante desta, morte. Desde o principio o entendimento humano esbarrou diante da impossibilidade lógica de explicar o nada pelo ser ou o ser pelo nada. Talvez o espírito seja o mediador. Na esfera da física se chega a conclusões semelhantes; o Professor John Wheeler, em uma recente reunião da Physical Society,

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afirma que é impossível localizar um acontecimento no tempo ou no espaço: antes e depois, aqui e ali são noções que carecem de sentido. Há um ponto no qual “something is nothing and nothing is something”... O tema do espírito e o do sentido da significação são gêmeos, mas antes de abordá-los devo examinar as relações entre o mito, a música e um hóspede não convidado a esse festim de Esopo que é a obra de Lévi-Strauss: a poesia.

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3. INTERMÉDIO DISCORDANTE.

DEFESA DE UMA CINDERELA E OUTRAS DIVAGAÇõES. UM TRIANGULO VERBAL: MITO, ÉPICA E POEMA.

Le cru e le cuit é um livro de antropologia que adota a forma de um concerto. Não é a primeira vez que uma obra literária se serve de termos e formas musicais, embora, de modo geral, tenham sido os poetas a se servirem da música e não os homens de ciência. Certo, desde Apollinaire e Picasso a relação entre poesia e pintura foi mais íntima do que a entre poesia e música. Creio que agora a relação está a ponto de mudar, tanto pela evolução da música contemporânea como pelo renascimento da poesia oral. Ambas, música e poesia, encontrarão nos novos meios de comunicação um terreno de união. Além disso, vários poetas modernos – Mallarmé, Eliot e, entre nós, José Gorostiza – deram às suas criações uma estrutura musical, enquanto outros – Valéry, Pellicer, Garcia Lorca – acentuaram a relação entre poesia e dança. Por sua vez os músicos e os dançarinos sempre viram nas formas poéticas um modelo ou arquétipo de suas criações. O parentesco entre poesia, música e dança é natural: as três são artes temporais. Lévi-Strauss justifica a forma de seu livro pela índole da matéria que estuda e pela própria natureza de seu método de interpretação: acredita que existe uma verdadeira analogia; não, como seria de esperar, entre a poesia e o mito, mas entre o mito e a música. E mais ainda: na esfera da análise dos mitos se apresentam “problemas de construção para os quais a música já inventou soluções”. Deixo de lado esta afirmação enigmática e me limitarei a discutir as razões que o levam a postular uma relação particular entre o pensamento mítico e o musical.

O fundamento de sua demonstração se condensa nesta frase: “Música e mito são linguagens que transcendem, cada um à sua maneira, o nível da linguagem articulada”. Esta afirmação provoca imediatamente duas observações. Em primeiro lugar, a música não transcende a linguagem articulada pela simples razão de que o seu

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código ou clave – a gama musical – não é lingüística. Em um sentido estrito a música não é linguagem, embora seja lícito chamá-la assim por metáfora ou por extensão do termo. Como as outras artes não verbais, a música é um sistema de comunicação análogo, e não idêntico, à linguagem. Para transcender algo há que passar por esse algo e ir mais além: a música não transcende a linguagem articulada porque não passa por ela. A segunda observação: “como o mito, embora em direção contrária, a poesia transcende a linguagem”.9 Graças à mobilidade dos signos lingüísticos, as palavras explicam as palavras: toda frase diz algo que pode ser dito por outra frase, todo significado é um querer dizer que pode ser dito de outra maneira. A “frase poética” – unidade rítmica mínima do poema, cristalização das propriedades físicas e semânticas da linguagem – nunca é um querer dizer: é um dizer irrevogável e final, em que o sentido e som se fundem. O poema é inexplicável, exceto por si mesmo. Por um lado, é uma totalidade indissociável e uma mudança mínima altera toda a composição; por outro lado, é intraduzível: além do poema há apenas ruído e silêncio, um sem-sentido ou uma sem-significação que as palavras não podem nomear. O poema aponta para uma região a que aludem também, com a mesma obstinação e a mesma impotência, os signos da música. Dialética entre som e silêncio, sentido e não-sentido, os ritmos musicais e poéticos dizem algo que só eles podem dizer, sem dizê-lo nunca de todo. Por isso, corno a música, o poema “é uma linguagem inteligível e intraduzível”. Sublinho que não só é intraduzível para as outras línguas como para o idioma em que está escrito. A tradução de um poema é sempre a criação de outro poema; não é uma reprodução mas uma metáfora equivalente do original.

Em suma, a poesia transcende a linguagem porque transmuta esse conjunto de signos móveis e intercambiáveis que é a linguagem em um dizer último. Tocada pela poesia, a linguagem é mais plenamente linguagem e, simultaneamente, cessa de ser linguagem: é poema. Objeto composto de palavras, o poema desemboca em uma região inacessível às palavras: o sentido se dissolve, ser e sentido são o mesmo... Lévi-Strauss

9 Em El arco y la lira (1956) ocupei-me longamente do tema, assim com, das relações entre mito e poema. Nesta passagem, e em outras, repetirei às vezes textualmente, o que disse nesse livro.

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reconhece em parte o que eu disse: “Na linguagem a primeira cifra não-significante (a fonológica) é meio e instrumento de significacão da segunda; a dualidade se restabelece na poesia, que recobra o valor virtual da significação da primeira para integrá-la na segunda...” Admite que a poesia muda a linguagem mas pensa que, longe de transcendê-la, se encerra assim mais totalmente em suas malhas: desce do sentido aos signos sensíveis, regressa da palavra ao fonema. Direi somente que me parece um perverso paradoxo definir desta maneira a atividade de Dante, Baudelaire ou Coleridge.

Música e mito “requerem uma dimensão temporal para manifestar-se”. Sua relação com o tempo é peculiar porque o afirmam só para negá-lo. São diacrônicos e siri crônicos: o mito conta uma história e, como o concerto, se desenvolve no tempo irreversível da audição; o mito se repete, se reengendra, é tempo que volve sobre si mesmo – o que passou está passando agora e voltará a passar – e a música “imobiliza o tempo que transcorre... de modo que ao escutá-la acedemos a uma espécie de imortalidade”. Numa obra anterior Lévi-Strauss já tinha sublinhado a dualidade do mito, que corresponde à distinção entre língua e fala, estrutura atemporal e tempo irreversível da elocução. A analogia entre música e mito é perfeita, só que pode estender-se à dança e, de novo, à poesia. As relações entre dança e música são tão estreitas que me poupam toda explicação. No caso da poesia se reproduz a dualidade sincrônica e diacrônica da linguagem, embora em um nível mais elevado, já que a segunda clave ou cifra, a significativa, dá condições para que o poeta construa um terceiro nível não sem semelhanças com o da música e, está claro, com o que Lévi-Strauss descreve em Le cru et le cuit. O tempo do poema é cronométrico e, do mesmo modo, é outro tempo que é a negação da sucessão. Na vida diária dizemos: o que passou, passou; mas no poema aquilo que passou regressa e encarna outra vez. O poeta, diz o centauro Ouiron a Fausto, não está encadeado no tempo: fora do tempo Aquiles encontrou Helena. Fora do tempo? Melhor dizer, no tempo original... Inclusive nos poemas épicos e nas novelas históricas o tempo da narrativa escapa à sucessão. O passado e o presente dos poetas não são os da história e os do

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periodismo; não são aquilo que foi nem aquilo que passa, mas o que está sendo, o que se está fazendo. Gesta, gestação: um tempo que se reencarna e se re-engendra. E reencarna de duas maneiras: no momento da criação e no da recriação, quando o leitor ou o ouvinte revive as imagens e ritmos do poema e convoca esse tempo flutuante que regressa... “Nem todos os mitos são poemas mas, neste sentido, todos os poemas são mitos”. (El arco y la lira, p. 64.) Poemas e mitos coincidem em transmutar o tempo em uma categoria temporal especial, um passado sempre futuro e sempre disposto a ser presente, a presentificar-se. Assim pois, as relações da música com o tempo não são essencialmente distintas das da poesia e da dança. A razão é clara: são três artes temporais que, para se realizar, devem negar a temporalidade.

As artes visuais repetem esta relação dual, não com o tempo mas com o espaço: um quadro é um espaço que nos remete a outro espaço. O espaço pictórico anula o espaço real do quadro; é uma construção que contém um espaço possuidor de propriedades análogas às do “tempo congelado” da música e da poesia. Um quadro é um espaço em que vemos outro espaço; um poema é um tempo que transparece outro tempo, fluido e imóvel juntamente. A arquitetura, mais poderosa do que a pintura e a escultura, altera ainda mais radicalmente o espaço físico: não só vemos um espaço que não é real como vivemos e morremos nesse segundo espaço. A estupa10 é uma metáfora do monte Meru, mas é uma metáfora encarnada ou, mais exatamente, petrificada: nós a tocamos e a vemos como um verdadeiro monte. O teatro, a dança e o cinema – artes temporais e espaciais, visuais e sonoras – combinam essa parelha de dualidades: o palco e a tela são um espaço que cria outro espaço sobre o qual desliza um tempo cromático que é reversível como o da poesia, da música e do mito.

A música e o mito “operam a partir de um duplo contínuo, externo e interno”. O primeiro consiste, no caso do mito, em “uma série teoricamente ilimitada de ocorrências históricas ou tidas por tais, dentre 10 Estupa ou Stupa, templo budístico indiano, construído de forma hemisférica, à semelhança de uma cúpula. Templos de caráter funerário, as estupas ergueram-se na índia até por volta do século XII. (N. do T.)

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as quais cada sociedade extrai um número pertinente de acontecimentos”; pelo que diz respeito à música, cada sistema musical escolhe uma gama entre a série de sons fisicamente realizáveis. quase desnecessário observar que o mesmo acontece com a dança: cada sistema seleciona, dentro dos movimentos do corpo humano e mesmo dos animais, alguns que constituem o seu vocabulário. A dança de Kerala (katakali) serve-se de uma gama mímica, enquanto que na européia há uma espécie de sintaxe do salto e da contorsão. Na poesia sânscrita se louva a graça elefantina das bailarinas e no Ocidente o cisne e outras aves são os modelos de comparação da dança. Na poesia o contínuo sonoro da fala se reduz a alguns metros e é sabido que cada língua prefere apenas um ou dois: o octossílabo e o hendecassílabo em espanhol, alexandrino e eneassílabo em francês. Não é apenas isto: cada sistema de versificação adota um método distinto para constituir o seu cânone métrico: versificação quantitativa na antigüidade greco-romana, silábica nas línguas românicas e acentuai nas germânicas. Como a clave sonora é também semântica, cada sistema é composto por uma série de regras estritas que operam no nível semântico como a versificação no sonoro. A arte de versificar é uma arte de dizer que não combina todos os elementos da linguagem, mas um grupo reduzido. Enfim, mitos e poemas se assemelham de tal modo que não só os primeiros empregam com freqüência as formas métricas e os procedimentos retóricos da poesia como a própria matéria dos mitos – “os acontecimentos” a que alude Lévi-Strauss – são também matéria de poesia. Aristóteles chama mitos aos argumentos ou histórias das tragédias. Ao escrever a Fábula de Polifemo y Galatea, Góngora não só nos presenteou com um poema que ocupa na poesia do século XVII o lugar que Un coup de dés ocupa na do século XX, como nos ofereceu uma nova versão do mito do cíclope.

O “contínuo interno” reside no tempo psicofisiológico do ouvinte. A longitude da narrativa, a recorrência dos temas, as surpresas, paralelismos, associações e ruptu ras provocam no auditório reações de ordem psíquica e fisiológica, respostas mentais e corporais: o interesse do mito é “palpitante”. A música afeta de maneira ainda mais acentuada nosso sistema visceral: carreira, salto, imobilidade, encontro,

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desencontro, queda no vazio, subida ao cimo. Não sei se Lévi-Strauss notou que todas estas sensações podem se reduzir a esta dualidade: movimento e imobilidade. Estas duas palavras evocam a dança, que é a verdadeira parelha da música. A dança nos convida a nos transformarmos em música: pede-nos que a acompanhemos; e a música nos convida a dançar: pede-nos que a encarnemos. O feitiço da música provém de que o compositor “retira aquilo que o ouvinte espera ou lhe dá algo que não esperava”. A palavra surpresa diz de maneira muito imperfeita este sentimento de “espera enganada ou recompensada mais além do previsto”. A mesma dialética entre o esperado e o inesperado se desenvolve na poesia. É uma característica comum a todas as artes temporais e que faz parte inclusive da oratória: um jogo entre o antes, o agora e o depois. Ao nível sonoro os ouvintes esperam uma rima ou uma série de sons e se assombram de que o poeta resolva a seqüência de forma imprevista. Nada me fez mais viva esta sensação do que escutar uma recitação de poemas em urdu, uma língua que desconheço: o auditório escutava com avidez e aprovava ou se desconcertava quando o poeta lhe oferecia algo distinto do que aguardava. Etiemble diz que a poesia é um exercício respiratório e muscular em que intervém tanto a atividade dos pulmões como a da língua, dos dentes e dos lábios. Claudel e Whitman insistiram sobre o ritmo de inspiração e expiração do poema. Todas estas sensações as reproduz o ouvinte e o leitor. Ora, como em poesia “the sound must seem an echo of the sense”, esses exercícios fisiológicos possuem um significado; repetição e variação, ruptura e união são procedimentos que geram reações ao mesmo tempo psíquicas e físicas. A dialética da surpresa, diz Jakobson, foi definida pelo poeta Edgar Allan Poe, “o primeiro que valorizou, do ponto de vista métrico e psicológico o prazer que gera o inesperado ao surgir do esperado, um e outro impensáveis sem o seu contrário”.

Na música e nos mitos há “uma inversão de relação entre emissor e receptor, 'pois o segundo se descobre significado pela mensagem do primeiro: a música vive em mim, eu me escuto através dela... O mito e a obra musical são como um diretor de orquestra cujos ouvintes fossem os silenciosos executantes”. Outra vez: poeta e leitor são momentos de uma

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mesma operação; depois de escrito o poema, o poeta fica só e são os outros, os leitores, os que se recriam a si mesmos ao recriar o poema. A experiência da criação se reproduz em sentido inverso: agora o poema se abre diante do leitor. Ao penetrar nessas galerias transparentes, desprende-se de si mesmo e se interna no “outro ele mesmo”, até então desconhecido. O poema nos abre ao mesmo tempo as portas da estranheza e do reconhecimento: eu sou esse, eu estive aqui, esse mar me conhece, eu te conheço, em teus pensamentos vejo a minha imagem repetida mil vezes até a incandescência... O poema é um mecanismo verbal que produz significados só e graças a um leitor ou um ouvinte que o coloca em movimento. O significado do poema não está no que quis dizer o poeta mas no que diz o leitor por meio do poema. O leitor é este “silencioso executante” de que fala Lévi-Strauss. É um fenômeno comum a todas as artes: o homem se comunica consigo mesmo, se descobre e se inventa, por meio da obra de arte.

Se os mitos “não têm autor e existem apenas encarnados em uma tradição”, o problema que a música apresenta é mais grave: tem um autor mas ignoramos como se escrevem as obras musicais. “Não sabemos nada das condições mentais da criação musical”: por que só alguns secretam música e são inumeráveis os que a amam? Esta circunstância e o fato de que “entre todas as linguagens só a musical seja inteligível e intraduzível”, convertem o compositor “em um ser semelhante aos deuses e a própria música no mistério supremo das ciências humanas – um mistério que resiste às mesmas e que guarda as chaves de seu progresso”. Lévi-Strauss chama os aficcionados da pintura de “fanáticos”; este parágrafo é um exemplo de como o fanatismo, agora musical, ajudado pela fatal tendência à eloqüência das línguas latinas, pode extraviar os espíritos mais altos. O mistério da criação musical não é mais recôndido nem mais tenebroso do que o mistério da criação pictórica, poética ou matemática. Ainda não sabemos porque alguns homens são Newton e outros Ticiano. O próprio Freud disse que pouco ou nada sabia do processo psicológico da criação artística. A diferença numérica entre os criadores de obras musicais e os aficcionados da música se repete em todas as artes e ciências: nem todos

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são Whitman, Darwin ou Velázquez, mas muitos compreendem e amam as suas obras. Tampouco é exato que a música seja a única linguagem “inteligível e intraduzível”. Já disse que o mesmo sucede com a poesia e a dança. Acrescento agora os exemplos da pintura e da escultura: como traduzir a arte negra, a da antigüidade Greco-romana ou a japonesa? Cada “tradução” é uma criação ou transmutação que se chama cubismo, arte renascentista, impressionismo. Nenhuma obra de arte é traduzível e todas são inteligíveis – se possuímos a chave.

Lévi-Strauss não faz uma distinção, a meu ver capital, entre clave (código ou cifra) e obra. A clave da música é mais ampla do que a da poesia, mas é menos do que a da pintura. O sistema musical europeu repousa na gama de notas e é mais extenso do que o sistema poético francês, baseado na estrutura fonológica dessa língua; contudo, basta passar de fronteira musical e viver na China ou na índia para que a música ocidental dixe de ser inteligível. A linguagem das artes visuais e mais extensa – não mais universal – porque sua clave, como diz Lévi-Strauss, se “organiza no seio da experiência sensível”. A clave da pintura – cores, linhas, volumes -- é mais sensível do que intelectual e, portanto, é acessível a maior número de homens, independentemente de sua língua e de sua civilização. À medida que aumenta a perfeição e a complexidade da clave, sua popularidade decresce. A clave das matemáticas é menos extensa e mais perfeita do que a fala corrente. A clave lingüística, pela mesma razão de perfeição e de complexidade, é menos extensa do que a musical e assim sucessivamente até chegar à dança, à pintura e à escultura. Dir-se-á que a música usa uma linguagem própria “e que não é suscetível de nenhum uso geral”, enquanto que as palavras do poeta não são distintas das do comerciante, do clérigo ou do revolucionário. Repetimos: a música não é linguagem articulada, característica que a une à pintura e às outras artes não-verbais. Neste sentido, a linguagem das cores e das formas também é um domínio exclusivo da pintura, embora sua clave seja menos elaborada e perfeita que a da música. Portanto, a primeira distinção que se deve fazer é entre estruturas verbais e estruturas não-verbais. Por ser a linguagem o mais perfeito dos sistemas de comunicação, as estruturas verbais são o

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modelo das não-verbais. No universo propriamente lingüístico a poesia e a matemática se encontram em situação de oposição simétrica: na primeira, os significados são múltiplos e os signos inamovíveis; na segunda, es signos são movíveis e o significado unívoco. É claro que a música e as outras artes não-verbais participam desta característica da poesia. A ambigüidade é o signo distintivo da poesia e esta propriedade poética converte em artes a música, a pintura e a escultura.

Se das claves se passa às obras, o juízo de Lévi-Strauss torna-se ainda mais injusto. A universalidade de uma obra não depende de sua clave mas de sua mensagem. Explico-me. Aceitarei por um momento essa infundada pretensão que vê na linguagem musical um sistema de comunicação mais perfeito que o lingüístico: Debussy é mais perfeito e universal do que Shakespeare, Goya ou os relevos de Baharut que, com tanta razão, o sábio francês admira? Com uma clave “sensível” El Greto cria uma obra espiritual e Mondrian uma pintura intelectual que se limita com a geometria e a teoria binária da cibernética. Com uma clave que, segundo Lévi-Strauss, deve pouco aos sons naturais, Stravinski escreve a Sagração da Primavera, poema das forças e dos ritmos naturais. A universalidade e o caráter das obras não depende da clave e sim desse imponderável, verdadeiro mistério, a que chamamos de arte ou criação. A confusão entre clave e obra talvez explique os desdenhosos juízos de Lévi-Strauss sobre a pintura abstrata, a música serial e a concreta. Sobre esta última seria preciso dizer que, como a eletrônica, é parte da busca de uma estrutura sonora inconsciente, ou seja, de unidades concretas naturais. Essa tentativa recorda a “lógica concreta das qualidades sensíveis” de La pensée sauvage . Aliás, em um dos livros mais poéticos e estimulantes que li nos últimos anos (Silence) diz John Cage: “A forma da música nova é diversa da antiga, mas possui uma relação com as grandes formas do passado, a fuga e a sonata, do mesmo modo que há uma relação entre estas duas últimas”. Em arte toda ruptura é transmutação.

Páginas adiante, guiado pelo demônio da analogia, Lévi-Strauss adverte na música as seis funções que os lingüistas atribuem às

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mensagens verbais. Essas seis funções, repetimos, aparecem também na dança e, está claro, nas outras artes. Embora música e dança não sejam linguagem articulada, são sistemas de comunicação muito semelhantes à linguagem e daí que sua mensagem seja o equivalente de uma das funções lingüísticas: a função poética. Segundo Jakobson, esta função não está centralizada no emissor, no receptor, no contato entre ambos, no contexto da mensagem ou na clave, mas sobre a própria mensagem. Assim, a função poética distingue os afrescos de Ajanta dos quadrinhos dominicais: são arte não porque nos contam as vidas anteriores do Buda – tarefa que os jatakas cumprem de sobra – mas porque são pintura. Nessa mensagem visual aparecem outras funções – a emotiva, a denotativa etc. – mas a mensagem é sobretudo pictórica e pede-nos que a recebamos como tal. Ora, o predomínio da função poética na poesia não implica que em um poema não apareçam as outras funções; do mesmo modo, uma mensagem verbal pode utilizar os recursos da função poética sem que isto signifique que seja um poema. Exemplos: os anúncios comerciais e, no outro extremo, os mitos. O mesmo livro de Lévi-Strauss revela que os mitos são parte da função poética: os mitos são objetos verbais que utilizam, portanto, uma clave lingüística; esta primeira clave (que implica dois níveis: o fonológico e o significativo ou semântico) serve ao pensamento mítica para elaborar uma segunda clave; por sua vez, Le cru et le cuit oferece uma terceira clave que permite traduzir a “lógica concreta” do mito em um sistema de símbolos e proposições lógicas. Esta tradução é uma transmutação e tem mais de uma semelhança com a tradução poética, tal como Valéry a definiu: com meios diferentes produzir efeitos ou resultados semelhantes. Talvez se pudesse replicar que a minha analogia esquece uma diferença: enquanto a tradução poética se faz de uma clave lingüística a outra, a tradução de Lévi-Strauss implica na passagem de um sistema para outro sistema, da narrativa mítica aos símbolos das matemáticas e às proposições da ciência. Não creio: em ambos os casos a tradução é transmutação e em ambos não abandonamos a esfera da linguagem – algo que não ocorre com a música. Mitos e equações se traduzem como os poemas: cada tradução é uma transformação. A transformação é possível porque

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mitos, poemas e símbolos matemáticos e lógicos operam como sistemas de equivalências.

A função poética (cito outra vez Jakobson) translada o princípio da equivalência do eixo da seleção ao da combinação. A formulação de toda mensagem verbal compreende duas operações: a seleção e a combinação. Pela primeira, escolhemos a palavra mais adequada entre um grupo de palavras: “Seja menino o tema da mensagem; o locutor seleciona entre garoto, pequeno, rapazinho etc.; depois repete a operação com o complemento: dorme, sonha, repousa, está quieto; em seguida combina as duas seleções: o menino dorme. A seleção se realiza sobre a base de semelhança ou dessemelhança, sinonímia ou antonímia, enquanto que a combinação, a construção da seqüência, repousa sobre a contigüidade”. A poesia transtorna essa ordem e “promove a equivalência ao nível de procedimento constitutivo da seqüência”. A equivalência opera em todos os níveis do poema: o sonoro (rima, metro, acentos, aliterações etc.) e o semântico (metáforas e metonímias). A metalinguagem também utiliza “seqüências de unidades equivalentes e combina expressões sinônimas em frases-equações: A igual a A. Mas entre poesia e metalinguagem há uma oposição diametral: na metalinguagem utiliza-se a seqüência para construir uma equação; na poesia, a equação serve para se construir uma seqüência”.11 O livro de Lévi-Strauss é uma metalinguagem e, ao mesmo tempo, um mito de mitos; pela primeira, serve-se dos mitemas para construir proposições que são, de certo modo, equações; pela segunda, participa da função poética, pois se serve das equações para elaborar seqüências. No caso dos mitos que Lévi-Strauss examina a ordem se inverte: secundariamente são uma metalinguagem e primordialmente se inscrevem dentro da função poética. Os mitos participam da poesia e da filosofia, sem ser nem um nem outro.

A noção de função poética permite estabelecer a conexão íntima entre mito e poema. Se se observa a estrutura de um e de outro adverte-se imediatamente uma nova semelhança. Lévi-Strauss fez uma

11 ROMAN JAKOBSON, “Linguistic and Poetics”, In Style and Language, edição de T. Sebeok, 1960.

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contribuição fundamental ao descobrir que as unidades mínimas de um mito são maiores que as do discurso: frases ou orações que cristalizam feixes de relações. No poema se encontra um equivalente dos mitemas: o que chamei, a falta de melhor expressão, “frase poética”. A diferença da prosa, a unidade desta frase, o que a constitui como tal e a converte em imagem, não é (unicamente) o sentido, mas o ritmo. Ou seja: o poema é composto de frases ou unidades mínimas nas quais o som e o sentido são uma e mesma coisa. São frases que se resolvem em outras frases em virtude do princípio de equivalência a que Jakobson alude e que convertem o poema em um universo de ecos e de analogias. Poemas e mitos nos abrem as portas do bosque das semelhanças.

Procurarei agora assinalar a diferença entre mito e poema. Em relação com os signos verbais o mito se acha em uma posição eqüidistante da poesia e da matemática: como na primeira, seu significado é plural; como na segunda, seus signos são mais facilmente intercambiáveis que na poesia. Dentro da função poética, o poema lírico se encontra em um extremo, e no oposto, o mito. Entre o poema lírico e o mito há. um termo intermédio: a poesia épica. É sabido que a poesia épica serve-se do mito como matéria-prima ou argumento e a decadência do gênero épico (ou melhor: sua metamorfose em romance) se deve ao relativo ocaso dos mitos no Ocidente. Digo relativo porque nossos mitos mudaram de forma e se chamam utopias políticas, tecnológicas, eróticas. Esses mitos são a substância de nossos romances e dramas – desde Don Juan, Fausto e Rastignac até Swan, Kyo, Nadja e Tim Finnegan. Os empréstimos entre mito e épica são inumeráveis e quase todos os recursos do primeiro são usados pela segunda e vice-versa. Em suma, o mito se situa nas fronteiras da função poética, um pouco mais além do romance, do poema épico, do conto, das lendas e de outras formas mistas.

O mito não é poema, nem ciência, nem filosofia, embora coincida com o primeiro por seus processos (função poética), com a segunda por sua lógica e com a última por sua ambição de nos oferecer uma idéia do universo. Assim pois, do mesmo modo que a épica traduz o mito a

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equivalências fixas (metro e metáforas), a filosofia o traduz a conceitos e a ciência a seqüências de proposições. O livro de Lévi-Stratíss é, por tal razão, “um mito dos mitos americanos”, um poema, e, simultaneamente, um livro de ciência... Confesso que não posso entender sua impaciência diante da poesia e dos poetas. Certa vez ouvi José Caos dizer que a soberba do filósofo é uma paixão contraditória, já que é conseqüência de sua . visão total do universo e do exclusivismo dessa visão. Certo: a visão do filósofo é um todo em que faltam muitas coisas. Lévi-Strauss se curou dessa soberba com o antídoto da humildade do homem de ciência, mas ainda lhe resta certo mal humor filosófico, diante desse ser estranho que é a poesia. De minha parte dou-me conta de que dediquei demasiadas páginas a este tema e reconheço, tardiamente, que também incorri no pecado de fanatismo. Não obstante, direi algo mais: ao escrever essas linhas escuto as primeiras notas de uma “raga” do norte da índia: não, em nenhum momento Le cru et le cuit me fez pensar na música. O prazer que me deu esse livro me evoca outras experiências: a leitura de Ulysses e a das Soledades, a de Un coup de dés e a de A la recherche du temps perdu.

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4. QUALIDADES E CONCEITOS:

PARES E PARELHAS, ELEFANTES E TIGRES. A RETA E O CÍRCULO. OS REMORSOS DO PROGRESSO. INGESTÃO, CONVERSÃO, EXPULSÃO. O FIM DA IDADE DE OURO E O COMEÇO DA ESCRITURA.

A obra de Lévi-Strauss estende um arco que urre duas paisagens contrárias: a natureza e a cultura. Dentro da segunda se repete a oposição: La pensée sauvage descreve o pensamento das sociedades primitivas e o compara com o das históricas. Esclareço que o primeiro não é o pensar dos selvagens mas uma conduta mental presente em todas as sociedades e que nas nossas se manifesta principalmente nas atividades artísticas. Portanto, o adjetivo histórico não quer dizer que os primitivos não tenham história; do mesmo modo que em nosso mundo o pensamento selvagem ocupa um lugar marginal e quase subterrâneo, a noção de história não ocupa, entre os primitivos, a hierarquia suprema que lhe outorgamos. Esta repugnância em relação ao pensar histórico não elimina o rigor, o realismo e a coerência do pensamento selvagem. Mais uma vez, sua lógica não difere da nossa no que diz respeito à sua forma de operação, embora o seja pelos objetos e fins a que se aplicam os seus raciocínios. Por exemplo, entre os primitivos os sistemas de classificação compreendidos dentro do rótulo geral de taxionomia não são mais exatos do que os de nossas ciências naturais e são mais ricos. Um e outro, o herbolário australiano e o botânico europeu, introduzem uma ordem na natureza, mas enquanto o primeiro tem em conta antes de tudo as qualidades sensíveis da planta – odor, cor, forma, sabor – e estabelece uma relação de analogia entre essas qualidades e a de outros elementos naturais e humanos, o homem de ciência mede e busca relações de ordem morfológica e quantitativa entre os exemplares, as famílias, os gêneros e as espécies. O primeiro tende a elaborar sistemas totais e o segundo especializados. Tanto num como noutro caso trata-se de relações que se expressam por esta fórmula: isto é como aquilo ou isto

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não é como aquilo. Já foi dito muitas vezes que o pensamento selvagem é irracional, global e qualitativo enquanto que o da ciência é exato, conceituai e quantitativo. Esta oposição, tema constante das querelas antropológicas no princípio do século, revelou-se ilusória. A química moderna “reduz a variedade dos perfumes e sabores à combinação, em proporções diferentes, de cinco elementos: carbono, hidrogênio, oxigênio, enxofre e, azoto”. Surge assim um domínio até agora inacessível à experimentação e investigação: esse mundo de características oscilantes que só são perceptíveis e definíveis por meio do conceito de revelação. O homem de ciência do passado media, observava e classificava; o primitivo sente, classifica e combina; a ciência contemporânea penetra, como o primitivo, no mundo das qualidades sensíveis graças à noção de combinação, simetria e oposição. As taxionomias dos primitivos não são místicas nem irracionais. Ao contrário, seu método não difere do dos computers: são quadros de relações

A magia é um sistema completo e não menos coerente consigo mesmo que a ciência. A distinção entre ambas reside “na natureza dos fenômenos a que uma e outra se aplicam”. Por sua vez, esta diferença é resultado de outra: “as condições objetivas em que aparecem o conhecimento mágico e o científico”. Este último explica que a ciência obtenha melhores resultados que a magia. Se esta observação é exata (e creio que é) a diferença entre magia e ciência seria, em primeiro lugar, a precisão, a exatidão e a finura, não de nossos sentidos nem de nossa razão, mas de nossos instrumentos, e em segundo lugar, as finalidades distintas da magia e da ciência. No que diz respeito ao primeiro item, já se verá que não é tão grande como se acredita a inferioridade técnica e operatória do pensamento selvagem e que, suas conquistas não foram menos importantes que as da ciência. A segunda observação nos coloca diante de um problema de outra índole: a orientação contraditória das sociedades. Mais adiante tratarei deste tema capital; aqui direi somente que a magia coloca problemas que a ciência ignora ou que, por enquanto, prefere não tocar. Neste sentido pode parecer impaciente, e o

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é, mas não o serão também, e com tão escassas esperanças de êxito como ela, as religiões e as filosofias das sociedades históricas?

Magia e ciência procedem por operações mentais análogas. Em diversos capítulos brilhantes e árduos Lévi-Strauss analisa o sistema do totemismo – cuja existência autônoma lhe parece um erro de perspectiva de seus predecessores – para pôr em relevo as características essenciais desta “lógica concreta das qualidades sensíveis”. Em uma forma que não é essencialmente distinta da nossa o primitivo estabelece uma relação entre o sensível e o inteligível. O primeiro nos remete à categoria de significante e o segundo à de significado: as qualidades são signos que se integram em sistemas significativos por meio de relações de oposição e semelhança. Longe de estar submergido em um mundo obscuro de forças irracionais, o primitivo vive em um universo de signos e mensagens. Desse ponto de vista está mais próximo da cibernética que da teologia medieval. Não obstante, há algo que nos separa deste mundo: a afetividade. O selvagem se sente parte da natureza e afirma sua fraternidade com as espécies animais. Em troca, após nos termos acreditado filhos de deuses quiméricos, afirmamos a singularidade e a exclusividade da espécie humana por ser a única que possui uma história e que o sabe. Mais sóbrios e mais sábios, os primitivos desconfiam da história porque vêem nela o princípio da separação, o começo do exílio do homem errante no cosmos.

O pensamento selvagem parte da observação minuciosa das coisas e classifica todas as qualidades que lhe parecem pertinentes; em seguida, integra essas “categorias concretas” em um sistema de relações. O modo de integração, já se sabe, é a oposição binária. O processo pode reduzir-se a essas etapas: observar, distinguir e relacionar por pares. Estes grupos de pares formam uma clave que depois se pode aplicar a outros grupos de fenômenos. O princípio não é distinto do que inspira a operação das máquinas pensantes da ciência contemporânea. Por exemplo, o sistema de classificação totêmico é uma clave que pode servir para tornar inteligível o sistema de proibições alimentícias das castas. Como se sabe, o regime de castas se apresentou sempre como uma

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instituição radicalmente distinta do totemismo; Lévi-Strauss coloca em operação o sistema de transformações e mostra a conexão formal entre um e outro regime, embora o primeiro seja característico da Índia e o outro da Austrália. Esta conexão, mais uma vez, não é histórica: o chamado totemismo e as castas são operações de uma estrutura mental coletiva e inconsciente que procede por um método combinatório de oposições e semelhanças. Castas e totemismo são expressões de um modus operandi universal, embora as primeiras sejam parte de uma sociedade histórica extraordinariamente complexa como é a hindu e o segundo seja primitivo. O eixo desta lógica é a relação entre o sensível e o inteligível, o particular e o universal, o concreto e o abstrato. Os primitivos não “participam”, como acreditava Lévy-Bruhl; os primitivos classificam e relacionam. Seu pensamento é analógico, traço que os une não só aos poetas e artistas das sociedades históricas como também à grande tradição dos herméticos da Antiguidade e da Idade Média – ou seja: aos precursores da ciência moderna. A analogia é sistemática e se apresenta “sob um duplo aspecto: sua corência e sua capacidade de extensão, praticamente ilimitada”. Pela primeira, resiste à crítica do grupo; pela segunda, o sistema pode englobar todos os fenômenos. É uma lógica concreta porque para ela o sensível é significativo; é uma lógica simbólica porque as categorias sensíveis estão em relação de oposição ou de isomorfismo com outras categorias e assim podem construir um sistema de equivalências formais entre os signos.

Sem negar sua exatidão, parece-me que divisão entre sociedades que escolheram definir-se pela história e sociedades que preferiram fazê-lo pelos sistemas de classificação, esquece um grupo intermediário. A idéia de um tempo cíclico não é exclusiva dos primitivos pois surge em muitas civilizações que chamamos históricas. Inclusive poderia dizer-se que só o Ocidente moderno se identificou plena e freneticamente com a história, com evidente ignorância e desdém das idéias que as outras civilizações se fizeram de si mesmas e da espécie humana. A visão do tempo cíclico engloba o acontecer histórico como uma estrofe subordinada do poema circular que é o cosmos. É um compromisso entre o sistema atemporal dos primitivos e a concepção de uma história

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sucessiva e irrepetível. A China combinou sempre o sistema atemporal, o tempo cíclico e a historicidade. O modelo era um passado arquetípieo, o tempo místico dos quatro imperadores; a realidade histórica era a anedota de cada período, com seus sábios, seus soberanos, suas guerras, seus poetas, seus santos e suas cortesãs Entre esses dois pólos, a extrema imobilidade e a extrema mobilidade, a mediação era o movimento circular da dualidade: yin e yang. Um pensamento emblemático, como o chama Marcel Granet, que acentua a realidade das forças impessoais ao particularizá-las e dissolve a da história em mil anedotas coloridas e transitórias. Na verdade, a China não conheceu a história, mas só os anais. É uma civilização rica em narrativas históricas, mas os seus historiadores não formularam nunca o que se chama uma filosofia da história. Não a necessitavam, pois tinham uma filosofia da natureza. A história chinesa é uma ilustração das leis cósmicas e portanto carece de exemplaridade por si mesma. O modelo era atemporal: o princípio do princípio. A civilização centreo-americana negou mais totalmente a história. Do atiplano do México às terras tropicais da América Central durante mais de dois mil anos, se sucederam várias culturas e impérios e nenhum deles teve consciência histórica. A América Central não teve história mas mitos e, sobretudo, ritos. A queda de Tula, a penetração tolteca em Yucatán, o desaparecimento das grandes teocracias e as guerras e peregrinações dos astecas foram acontecimentos transformados em ritos e vividos como ritos. Não se entenderá a conquista do México pelos espanhóis se não se a contempla como a viram e viveram os astecas: como um grandioso rito final.

A atitude da Índia diante da história é ainda mais assombrosa. Presumo que foi uma resposta ao fato que determinou a vida dos homens e das instituições no sub continente desde há mais de cinco mil anos: a necessidade de coexistir com outros grupos humanos distintos em um espaço não franqueável e que, embora pareça imenso, era e é fatalmente limitado. A Índia é uma gigantesca caldeira e aquele que cai dentro dela não sai nunca. Tenha sido esta a causa ou seja outra a razão da aversão pela história, o certo é que nenhuma outra civilização sofreu mais suas intrusões e nenhuma o negou com tal obstinação. Desde o

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princípio a Índia se propôs abolir a história pela crítica do tempo, e a pluralidade de sociedades e comunidades históricas pelo regime de castas. A infinita mobilidade da história real se transforma em uma fantasmagoria cintilante e vertiginosa na qual os homens e os deuses giram até fundir-se em uma espécie de nebulosa atemporal; o mundo matizado do acontecer desemboca ou, dizendo melhor, regressa a uma região neutra e vazia, na qual o ser e o nada se reabsorvem. Budismo e brahamanismo negam a história. Para os dois a mudança, longe de ser uma manifestação positiva da energia, e o reino ilusório da impermanência. Diante da heterogeneidade dos grupos étnicos – cada um com uma língua, uma tradição, um sistema de parentesco e um culto particulares – a civilização indiana adota uma solução contrária: não a dissolução mas o reconhecimento de cada particularidade e sua integração em um sistema mais amplo. A crítica do tempo e o regime de castas são os dois pólos complementares e antagônicos do sistema indiano. Por meio de ambos a Índia se propõe a abolição da história.

O modelo do regime de castas não é histórico nem está fundado unicamente na idéia da supremacia de um grupo sobre outro, embora esta tenha sido uma de suas origens e a mais importante de suas conseqüências. Seu modelo é a natureza: a diversidade das espécies animais e vegetais e sua coexistência. Ao ver uma manada de elefantes selvagens – o macho, as fêmeas e suas crias – em um desses wild life sanctuaries que abundam neste país, disse-me o guia: “Os animais vegetarianos como o elefante são polígamos e os não-vegetarianos” (por nada nesse mundo teria dito: carnívoros) “como o tigre, são monógamos”. Esta crença na conexão entre o regime alimentar e o sistema de parentesco dos animais lança mais luz sobre a teoria das castas do que a leitura de um tratado. Tem razão Lévi-Strauss: a casta não é um homólogo do totemismo, mas poderia dizer-se que é uma mediação entre este último e a história. É uma maneira de integrar a vida fluida em uma estrutura não temporal... A unidade mínima do sistema social da Índia não é, como nas sociedades modernas, o indivíduo, mas o grupo. Esta característica indica outra vez que seu modelo não é a sociedade histórica, mas a sociedade natural, com as

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suas ordens, espécies, famílias e raças. Os indivíduos são prisioneiros de sua casta; prisioneiros e usufrutuários. Vida fetal, pois nada se parece mais com a casta do que um ventre maternal. Talvez isto explique o narcisismo hindu,* o amor de sua arte pelas curvas e de sua literatura pelos labirintos, a feminilidade de seus deuses e a masculinidade de suas deusas, sua concepção do templo como uma matriz e o que chamaria Freud a perversidade infantil polimórfica dos jogos eróticos de suas divindades e ainda de sua música. Pergunto-me se a noção psicológica conhecida como “complexo de Édipo” é inteiramente aplicável à Índia; não é o desejo de regressar à mãe mas a impossibilidade de sair dela o que, a meu ver, caracterizou o hindu. Foi sempre assim ou esta situação e o resultado da agressão exterior que obrigou a civilização indiana a dobrar-se sobre si mesma? Por desdém ou por medo, abstraído ou contraído, o hindu tem sido insensível, à sedução dos países estranhos: não buscou o desconhecido lá fora mas em si mesmo. Entre certas castas, a proibição de viajar por mar era explícita e terminante. Não obstante, no passado os hindus foram grandes marítimos e os monumentos mais belos do período Pallava – um dos grandes presentes da arte indiana à escultura mundial – encontram-se precisamente em um porto, Mallapuram, que hoje é uma aldeia de pescadores.

O indivíduo não pode sair de sua casta mas as castas podem mudar de posição, ascender ou descer.12 A mobilidade social se realiza por um canal duplo. Um, individual e ao alcance de todos, é a renúncia ao mundo, a vida vagabunda de um monge budista e do sanayasi hindu outro, coletivo, é o lento e imperceptível movimento das castas, em torno e em direção a esse centro vazio que e o coração do hinduísmo: a vida contemplativa. Converter a sociedade histórica em urna sociedade natural e a natureza em um jogo filosófico, em uma meditação do uno sobre a irrealidade da pluralidade, é uma tentativa grandiosa – talvez o sonho mais ambicioso e coerente que o homem tenha sonhado. Mas a história, como se se tratasse de uma vingança, encarniçou-se contra a

* O autor usa, com freqüência, hindu, ao invés de indiano, embora o último seja o gentílico da Índia. Mantém-se, contudo, o original. (N. do T.)12 J. H. HUTTON. Caste in India, Londres, 1963.

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Índia. Várias vezes foi invadida por povos que militavam sob a bandeira do movimento e da transformação: primeiro os persas, os gregos, os citas, os kuchanes e os hunos brancos; mais tarde, os muçulmanos com o seu Deus único e sua fraternidade de crentes; e por fim os europeus com o seu progresso menos universal e sectário que a religião do Profeta. Erosão da abstração intemporal pela mudança, queda do ser imóvel na corrente reputada ilusória do tempo. Na esfera social as invasões não modificaram o sistema de castas, mas o tornaram mais rígido. Para defender-se melhor a civilização indiana recorreu à contração. Dois universalismos – distintos mas igualmente exclusivos: o Islã e o Cristianismo protestante – rodearam e desnaturalizaram um particularismo universal. A experiência indiana, ademais, teria fracassado mesmo sem as invasões: a história em sua forma mais crua, isto é, a demografia, degenerou o sistema de coexistência em um dos regimes mais injustos e inúteis da era moderna.

Este fracasso me faz refletir sobre a sorte de outra experiência, diametralmente oposta à indiana, mas que trata de resolver o mesmo problema. Refiro-me aos Esta dos Unidos. Esse país foi fundado por um universalismo exclusivista: o puritanismo e sua conseqüência político-ideológica, a democracia anglo-saxônica. Uma vez purificado o território de elementos estranhos – pelo extermínio e pela segregação da povoação indígena -, os Estados Unidos se propuseram criar uma sociedade na qual as particularidades nacionais européias, com exclusão das outras, se fundissem em um melting-pot. O todo seria animado pela história em sua expressão mais direta e agressiva: o progresso. Ou seja, ao contrário da Índia, o projeto anglo-americano consiste em uma desvalorização dos particularismos sociais e raciais (europeu) e em uma supervalorização da mudança. Mas os particularismos não-europeus, o negro especialmente, cresceram de tal modo (fora do melting-pot e dentro da sociedade) que hoje tornam impossível toda tardia tentativa de fusão. Portanto, o melting-pot deixou de ser o modelo histórico dos Estados Unidos e esse país está condenado à cisão ou à coexistência. Por sua vez a valorização excessiva do progresso engendrou o seu descrédito diante de um grupo numeroso, composto sobretudo por jovens e adolescentes.

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Este último fato é decisivo. A revolta contra a abundância – em oposição simétrica à dos países subdesenvolvidos, que é uma revolta contra a pobreza – é uma rebelião contra a idéia de progresso. Não é acidental a inclinação da juventude anglo-americana pelas drogas. O país da ação e bebidas fortes descobre de repente a sedução da contemplação e da imobilidade. O bêbado não é contemplativo nem passivo, mas discursivo e agressivo; o que ingere drogas escolhe a imoralidade e a introspecção. A bebedeira culmina no grito; a alucinação no silêncio. As drogas são uma crítica da conversação, da ação e da mudança, dos grandes valores do Ocidente e de seus herdeiros anglo-americanos. É prodigioso que a crise dos fundamentos da sociedade anglo-americana coincida com a sua máxima expressão imperial. É um gigante que caminha cada vez mais depressa sobre um fio cada vez mais delgado.13

A pluralidade de sociedades e civilizações provoca perplexidade. Diante dela há duas atitudes contraditórias: o relativismo (esta sociedade vale tanto quanto aquela) ou o exclusivismo (só há uma sociedade valiosa – geralmente a nossa). A primeira logo nos paralisa intelectual e moralmente: se o relativismo nos ajuda a compreender os outros, também nos impede de os valorizarmos e nos proíbe de transformá-los – a eles e à nossa própria sociedade. A segunda atitude não é menos falsa: como julgar os outros e onde está o critério universal

13 Já escrito este livro, chegou às minhas mãos o excelente estudo que dedicou às castas da índia o Senhor Louis Dumont (Homo hierarchicus, Paris, 1966). o antropólogo francês rechaça a explicação historicista que aponto mas em compensação coincide comigo, até certo ponto, ao ver como uma espécie de oposição simétrica entre o sistema social hindu e o do Ocidente moderno: no primeiro, o elemento – se é que se pode falar de elemento – não é o indivíduo mas as castas e a sociedade concebida como relação, é hierárquica; no segundo, o elemento é o indivíduo e a sociedade é igualitária. Dediquei um longo comentário às idéias do Senhor Dumont em Corriente alterna (1967). No mesmo livro trato com maior amplitude o tema da oposição entre comunicação e meditação, bebedeira e drogas. Direi aqui apenas que as duas imagens mais significativas de nossa tradição são o Banquete platônico e a última Ceia de Cristo. Ambos são símbolos da comu nicação e ainda da comunhão; nas duas, o vinho ocupa um lugar central. O Oriente, pelo contrário, exaltou sobretudo o ermitão: o recluso Gautama, o iogue à sombra do banianes ou na solidão de uma gruta. Pois bem, o alcoolismo é um exagero da comunicação; a ingestão de drogas, sua negação. O primeiro se insere na tradição do Banquete (o diálogo filosófico) e da comunhão (o mistério da eucaristia); as últimas, na tradição da contemplação solitária. Nos países do Ocidente, as autoridades se preocupavam até pouco tempo com os perigos sociais do alcoolismo; hoje começam a se alarmar com o uso, cada vez mais difundido, das substâncias alucinógenas. No primeiro caso, se trata de um abuso; no das drogas, de uma dissidência. Não é este um sintoma de uma mudança de valores no Ocidente, especialmente na nação mais adiantada e próspera: os Estados Unidos?

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e eterno que poderia nos autorizar a decretar que esta sociedade é boa e aquela é má? Descendente de Montaigne e Rousseau, de Sahagún e de Las Casas, a solução de Lévi-Strauss é a boa: respeitar os outros e transformar os seus, compreender o estranho e criticar ó próprio. Esta crítica culmina na idéia central que inspira nossa sociedade: o progresso. A etnografia nasceu quase ao mesmo tempo que a idéia de historia concebida como progresso ininterrompido; não é estranho que seja ao mesmo tempo a conseqüência do progresso e a crítica do progresso. É claro, Lévi-Strauss não o nega: situa em seu contexto histórico o mundo do Ocidente moderno e assinala que não é uma lei histórica universal nem um critério de valor aplicável a todas as sociedades.

Em geral o progresso se mede pelo domínio sobre a natureza, isto é, pela quantidade de energia de que dispomos. Se a ciência e a tecnologia fossem o critério decisivo, uma civilização como a mesoamericana, que não ultrapassou o Neolítico no que toca aos utensílios, não mereceria sequer o nome de civilização. Não obstante, os mesoamericanos não só nos deixaram uma arte, uma poesia e uma cosmologia complexas e refinadas como realizaram proezas notáveis no domínio da técnica, sobretudo na agricultura. No da ciência descobriram o conceito do zero e elaboraram um calendário mais perfeito, exato e racional que o dos europeus. Se da técnica passamos à moral, a comparação seria ainda mais desvantajosa para nós: somos mais sensíveis, mais honrados ou mais inteligentes que os selvagens? Nossas artes são melhores que as dos egípcios ou dos chineses e nossos filósofos são superiores a Platão ou a Nagarjuna? Vivemos mais anos que um primitivo mas nossas guerras causam mais vítimas que as pestes medievais. Embora a mortalidade infantil tenha diminuído, aumenta dia a dia o número de indigentes – não nos países industriais mas nos que chamamos por eufemismo subdesenvolvidos e que constituem a terça parte da humanidade. Dir-se-á que tudo isto são lugares-comuns. São. Também a idéia de progresso se tornou um lugar-comum.

O melhor e o pior que se pode dizer do progresso é que transformou o mundo. A frase se pode inverter: o melhor e o pior que se

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pode dizer das sociedades primitivas é que quase não mudaram o mundo. Ambas as variantes necessitam de uma emenda: nem nós o modificamos tanto quanto acreditamos, nem os primitivos o modificaram tão pouco. As modificações foram internas e externas. No interior, a aceleração técnica produziu transtornos, revoluções e guerras; hoje ameaça a integridade psíquica e biológica da população. No exterior, a sociedade progressista destruiu inumeráveis sociedades e escravizou, humilhou e mutilou as sobreviventes. Certo, as mudanças que introduziu são imensas, muitas vezes benéficas e sobretudo inegáveis. Também são inegáveis os seus desequilíbrios e os seus crimes. Dizê-lo não implica nostalgia alguma pelo passado: toda sociedade é contraditória e não há nenhuma que escape à crítica. Se a sociedade progressista não é melhor que as outras sociedades, tampouco tem o monopólio do mal. Os astecas, os assírios e os grandes impérios nômades da Ásia Central não foram menos cruéis, orgulhosos e brutais do que nós. No museu dos monstros nosso lugar, destacado, não é o primeiro.

O progresso é nosso destino histórico; nada mais natural que nossa crítica seja uma crítica do progresso. Estamos condenados a criticar o progresso do mesmo modo que Platão e Aristófanes deviam criticar a democracia ateniense, o budismo o ser imóvel do brahamanismo e Lao-tsé a virtude e a sabedoria confucianas. A crítica do progresso se chama etnologia. Os estudos etnográficos nasceram no momento da expansão do Ocidente e assumiram imediatamente uma forma polêmica: defesa da humanidade dos indígenas, obstinadamente negada por seus “descobridores” e espoliadores, e crítica dos processos “civilizadores” dos europeus. Não é um acaso que os espanhóis e portugueses, aos quais corresponde a duvidosa glória de ter iniciado a conquista das novas terras, tenham direito a uma glória mais certa: ser os fundadores da etnografia. As descrições que os portugueses fizeram do sistema de castas em Travancore e outras regiões do sul da Índia, as dos jesuítas das civilizações da China e do Japão, e os textos dos espanhóis sobre as instituições e costumes dos índios americanos, são os primeiros estudos de etnografia e antropologia do mundo moderno. Em muitos casos, como no de Sahagún, esse método foi tão rigoroso e objetivo como o dos

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modernos antropólogos que hoje percorrem o mundo providos de magnetofones e outros aparelhos.

Lévi-Strauss diz que a etnografia é a expressão dos “remorsos” do Ocidente. Não sei se observou a origem cristã deste sentimento. A crítica dos excessos do progresso é uma crítica do poder e dos poderosos. O cristianismo foi o primeiro que se atreveu a criticar o poder e exaltar os humildes. Nietzsche diz que o cristianismo, justamente por ser uma moral do ressentimento, afinou nossa psicologia e inventou o exame de consciência, essa operação que serve ao homem para julgar-se e condenar-se. A introspecção é uma invenção cristã e termina sempre com um juízo moral, não sobre os outros mas sobre si mesmo.O exame de consciência consiste em pôr-se no lugar dos outros, ver-se na situação do humilhado ou do vencido: o outro. É uma tentativa para nos reconhecermos no outro e, assim, recuperarmos a nós mesmos. O cristianismo descobriu o outro e ainda mais: descobriu que o eu só vive em função do tu. A dialética cristã do exame de consciência é repetida pela etnografia não na esfera individual, mas na social; reconhecer no outro um ser humano e reconhecemos a nós mesmos não na semelhança mas na diferença. Ademais, sem o cristianismo a idéia retilínea do tempo (a história) não haveria nascido. Devemos a essa religião do progresso seus excessos e seus remorsos: a técnica, o imperialismo e a etnografia.

Há um aspecto central da dominação hispano-portuguesa que me interessa destacar. A política ibérica no Novo Mundo reproduz ponto por ponto a dos muçulmanos na Ásia Menor, Índia, no Norte da África e na própria Espanha: a conversão, seja por bem, seja a sangue e fogo. Embora pareça estranho, a evangelização da América foi uma empresa de estilo e inspiração maometanos. O furor destruidor dos espanhóis tem a mesma origem teológica que o dos muçulmanos. Ao contemplar no norte da Índia as estátuas desfiguradas pelo Islã, recordei imediatamente as queimas de códices no México. A paixão construtora de uns e outros não foi menos intensa que a sua raiva destruidora e obedeceu à mesma razão religiosa. Os monumentos deixados pelos muçulmanos na Índia não se parecem com os que foram levantados na

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América pelos espanhóis e portugueses, mas a sua significação é análoga: primeiro o templo-fortaleza (igreja ou mesquita) e depois as grandes obras civis e religiosas. A arquitetura obedece ao ritmo histórico: ocupação, conversão e organização. Não se esqueça, que as invasões dos muçulmanos no subcontinente indiano e a conquista da América foram empresas que libertaram uma parte da povoação indígena, oprimida pela outra: párias da Índia e, na América, povos submetidos ao Inca e aos cruéis astecas. Conquista e liberação são parte de um mesmo processo de conversão. Digo conversão porque os muçulmanos e seus discípulos portugueses e espanhóis não se propuseram recuperar o outro respeitando a sua outridade, como o antropólogo: queriam convertê-lo, modificá-lo. A humanização consistia em transformar o indígena infiel em irmão na fé. Os súditos de Babur e os de seu contemporâneo Carlos V, qualquer que fosse a sua situação social, pertenciam a uma mesma comunidade se a sua fé era a dos seus senhores. Mesquita e igreja eram, sobre a terra, a prefiguração do mais além: o lugar em que se anulam as diferenças de raça e hierarquia, o lugar em que se suprime a alteridade. Os muçulmanos e os ibéricos enfrentaram o problema da outridade* por meio da conversão; os europeus cristãos, pelo extermínio ou pela exclusão. Exemplos: a aniquilação dos aborígenes nos Estados Unidos e na Austrália. Na Índia, onde era impossível fisicamente a eliminação dos nativos, tampouco houve evangelização e a população cristã não chega hoje a dez milhões, enquanto que são mais de cinqüenta os muçulmanos.14 Comparando-se esses procedimentos com os dos astecas adverte-se uma diferença: nem a conversão à maneira muçulmana e hispano-portuguesa, nem exclusão ou extermínio à maneira moderna, mas divinização. Sangüinários e filosóficos ao mesmo tempo, os astecas resolveram o problema da outridade pelo sacrifício dos prisioneiros de guerra. A destruição física

* O autor utiliza-se, alternativamente, do neologismo otredad e do termo consagrado alteridad. Manteve-se a distinção. (N. do T.).14 A matança dos índios na Argentina, Uruguai e Chile foi conseqüência de uma deliberada e irracional imitação dos procedimentos anglo-americanos: identificou-se o progresso com o extermínio da população indígena e com a imigração européia. O teórico principal desta doutrina foi Domingo Faustino Sarmiento, um dos homens de bem oficiais da América Latina. O lema “governar é povoar” despovoou esses três países.

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era também uma transfiguração: a vítima alcançava a imortalidade solar. , Conversão, exclusão, extermínio, ingestão ...

Para um chinês ou para um aborígene australiano a função crítica não oferecia a dificuldade teórica que apresenta para nós: o juízo brotava da comparação entre o presente e o modelo atemporal, fosse este o passado místico do Imperador Amarelo ou a série de antepassados animais divinizados. O mesmo pode dizer-se de todas as outras civilizações: a idade de ouro era um termo de referência e não importava que estivesse situada antes, depois ou fora da história. Era um modelo imutável. Em ma sociedade que sem cessar se transforma, a idade de ouro, o sistema ideal de referência, também muda. Por tal razão, nossa crítica é também pensamento utópico, busca de uma idade de ouro que sem cessar se transforma. Nossa sociedade ideal muda continuamente e não tem um lugar fixo nem no tempo nem no espaço; filha da crítica, se cria, se destrói e se recria como o próprio progresso. Um permanente voltar a começar: não um modelo mas um processo. Talvez por isto as utopias modernas tendem a apresentar-se como um regresso àquilo que não muda: a natureza. A sedução do marxismo consiste em ser uma filosofia da mudança que nos promete uma futura idade de ouro que já o passado remoto, “o comunismo primitivo”,, ,continha em gérmen. Combina assim o prestígio da modernidade com o do arcaísmo. Condenadas à mudança, nossas utopias oscilam entre os paraísos anteriores à história e as metrópoles de ferro e vidro da técnica, entre a vida pré-natal do feto e um éden de robôs. E de ambas maneiras os nossos paraísos são infernais: uns se resolvem' no tédio da natureza incestuosa e outros no pesadelo das máquinas.

Talvez a verdadeira idade de ouro não esteja na natureza nem na história, mas entre elas: nesse instante em, que, os homens fundam o seu agrupamento com um pacto que, simultaneamente, os une entre si e une o grupo com o mundo natural. O pensamento de Rousseau é uma fonte e Lévi-Strauss assinala que muitos dos descobrimentos da antropologia contemporânea confirmam suas intuições. No entanto a imagem que o filósofo genebrino se fazia da primeira idade não corresponde à

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realidade pré-histórica: os caçadores do Paleolítico deixaram uma arte extraordinária, mas aquela sociedade não é certamente um modelo ideal. Em compensação, Lévi-Strauss acredita que o período Neolítico – precisamente antes da invenção da escritura, da metalurgia e do nascimento da civilização urbana com as suas massas envilecidas e seus monarcas e sacerdotes sangrentos – é o que mais se aproxima da nossa idéia de uma idade de ouro. Os homens do Neolítico – segundo Gordon Childe: provavelmente as mulheres – inventaram as artes e ofícios que são o fundamento de toda vida civilizada: a cerâmica, os tecidos, a agricultura e a domesticação dos animais. Estas descobertas são decisivas e talvez sejam superiores às realizadas nos últimos seis mil anos de história. Confirma-se assim aquilo que apontei mais acima: o pensamento selvagem não resulta inferior ao nosso nem pela finura de seus métodos nem pela importância de suas descobertas. Outro ponto a favor do Neolítico: nenhuma de suas invenções é nociva. Não se pode dizer o mesmo das sociedades históricas. Sem pensar no ininterrupto progresso na arte de matar, já se refletiu sobre a função ambivalente da escritura? Sua invenção coincide com o aparecimento dos grandes impérios e com a construção de obras monumentais. Em uma passagem impressionante Lévi-Strauss demonstra que a escritura foi propriedade de uma minoria e que não serviu tanto para comunicar o saber como para dominar e escravizar os homens. Não foi a letra, mas imprensa que libertou os homens. Liberou-os da superstição da palavra escrita. Acrescentarei que, na realidade, não foi a imprensa a libertadora, mas a burguesia, que se serviu desta invenção para romper o monopólio do saber sagrado e divulgar um pensamento crítico. A idéia de Marshall McLuhan, que atribui à imprensa a transformação do Ocidente, é infantil: não são as técnicas, mas a conjugação de homens e instrumentos que transformam uma sociedade.

Em outro ensaio ocupei-me da expressão escrita em relação com a verbal: a escritura desnaturaliza o diálogo entre os homens.15 Embora o leitor possa concordar ou discordar, falta-lhe o direito de interrogar o

15 Los signos en rotación, Buenos Aires, 1965, (Trad. bras.: Signos em Rotação, São Paulo, Perspectiva, 1972.)

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autor e de ser escutado por este, Poesia, filosofia e política – as três atividades nas quais a fala desenvolve todos os seus poderes – sofrem uma espécie de mutilação. Se é verdade que graças à escritura dispomos de uma memória objetiva universal, também o é que ela acentuou a passividade dos cidadãos. A escritura foi o saber sagrado de todas as burocracias e hoje mesmo é comunicação unilateral: estimula nossa capacidade receptiva e ao mesmo tempo neutraliza nossas reações, paralisa nossa crítica, Interpõe entre nós e o que escreve – seja um filósofo ou um déspota – uma distância, Contudo, não creio que os nossos meios de comunicação oral, nos quais depositam tantas esperanças McLuhan e outros, consigam reintroduzir o verdadeiro diálogo entre os homens. A despeito de terem devolvido à palavra o seu dinamismo verbal – algo que a poesia e a literatura contemporâneas não aproveitaram ainda de todo – rádio e televisão aumentam a distância entre o que fala e o que ouve: convertem o primeiro em uma presença todo poderosa e o segundo em uma sombra, São, como a escritura, instrumentos de domínio. Se há um grão de verdade na visão do Neolítico como uma idade feliz, essa verdade consiste não na justiça de suas instituições, sobre as quais sabemos pouquíssimo, mas no caráter pacífico de suas descobertas e, sobretudo, em que essas comunidades não conheceram outra forma de relação que a pessoal de homem a homem, O verdadeiro fundamento de toda democracia e socialismo autêntico é, ou deveria ser, a conversação: os homens frente a frente, Sobre isto devemos a Lévi-Strauss páginas inesquecíveis, como naquelas em que descobre o bem fundado da adivinhação de Rousseau: a origem da autoridade, nas sociedades mais simples, não é a coerção dos poderosos mas o mútuo consentimento, Impulsionado pelo seu entusiasmo, Lévi-Strauss chega a dizer que a “idade de ouro está em nós”, Frase maravilhosa, mas ambígua, Refere-se a um estado interior e pessoal ou à possibilidade de regressar com os novos meios técnicos a uma espécie de idade de ouro da era industrial? Temo que, no segundo sentido, esta idéia seja utópica: nunca estivemos mais longe da comunicação entre pessoa e pessoa, A alienação, se é que ainda guarda sentido essa palavra manuseada, não é unicamente conseqüência dos sistemas sociais, sejam capitalistas ou socialistas, mas da índole mesma da técnica: os novos meios de

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comunicação acentuam, fortalecem a incomunicação. Deformam os interlocutores: magnificam a autoridade, a tornam inacessível – uma divindade que fala mas não escuta – e assim nos roubam o direito e o prazer da réplica, Suprimem o diálogo.

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5. AS PRÁTICAS E OS SÍMBOLOS.

O SIM OU O NÃO E O MAIS OU MENOS. O INCONSCIENTE DO HOMEM E O DAS MAQUINAS. OS SIGNOS OUE SE DESTROEM: TRANSFIGURAÇÕES. TAXILA.

Lévi-Strauss declarou sempre que é um discípulo de Marx (discípulo, não repetidor). Materialista e determinista, pensa que as instituições e as idéias que a sociedade se faz de si mesma são o produto de uma estrutura inferior inconsciente. Tampouco é insensível ao programa histórico de Marx e, se não me equivoco, acredita que o socialismo é (ou pode ser?) a próxima etapa da história do Ocidente e talvez do mundo inteiro. Se concebe a sociedade como um sistema de comunicações, é natural que a propriedade privada lhe pareça um obstáculo à comunicação: “na linguagem”, diz Jakobson, “não há propriedade privada: tudo está socializado”... Dito isto, não vejo como se lhe poderia chamar de marxista sem forçar o termo. Por exemplo, não estou certo de que compartilhe a teoria que vê na cultura um simples reflexo das relações materiais. Certo, diz aceitar sem dificuldade a primazia da estrutura econômica sobre as outras e em La pensée sauvage afirma que estas últimas são realmente superestruturas; acrescenta inclusive que os seus estudos poderiam chamar-se “teoria geral das superestruturas”. Não obstante, limita a validez do determinismo econômico às sociedades históricas; quanto às não históricas, assegura que os laços consangüíneos desempenham nelas a função decisiva do modo de produção econômica nas históricas. Apóia a sua afirmação em algumas opiniões de Engels em carta a Marx. Não pretendo pugnar em um ponto difícil e, de todos os modos, marginal, mas contes-so que a sua idéia das relações entre a práxis e o pensamento me parece muito distanciada da concepção marxista.

Em La pensée sauvage distingue entre “práticas” e práxis; o estudo das primeiras, distintivas dos gêneros de vidas e formas de civilização, é o domínio da etnologia e o da segunda, da história. As

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práticas seriam superestruturas. Entre a práxis e as “práticas” há um mediador: “o esquema conceituai, pelo qual uma matéria e uma forma se realizam como estruturas ao mesmo tempo empíricas e inteligíveis”. A meu modo de ver esta idéia elimina a noção de práxis ou, pelo menos, lhe dá um sentido distinto daquele do marxismo. A relação imediata e ativa do homem com as coisas e com os outros homens é indistinguível, segundo Marx, do pensamento: “as controvérsias sobre a realidade e a não realidade do pensamento, separado da prática, pertencem ao domínio da escolástica”. (Teses sobre Feuerbach). Práxis e pensamento não são entidades distintas e ambos são inseparáveis das leis objetivas da realidade social: o modo de produção. Marx se opõe ao antigo materialismo. diz Kostas Papaioannou, porque este ignora a história. Para Marx a natureza é histórica, de modo que o seu materialismo é uma concepção histórica da matéria. O antigo materialismo “afirmava a prioridade da natureza exterior, mas uma natureza objetiva, independente do sujeito, não existe”. O mundo sensível não é um mundo de objetos: é o mundo da práxis, isto é, da matéria modelada e transformada pela atividade humana. A função da práxis é “modificar historicamente a natureza”.

Se o marxismo é uma concepção histórica da natureza, também é uma concepção materialista da história: a práxis, “o processo vital real”, é o ser do homem, e sua consciência é simplesmente o reflexo dessa matéria que a práxis tornou histórica. A consciência e o pensamento humano são produtos não da natureza mas da natureza histórica ou seja, da sociedade e seu modo de produção. Nem a natureza nem o pensamento isolado definem o homem, mas sim a atividade prática, o trabalho: a história. Lévi-Strauss diz, no fim de La pensée sauvage, que a práxis só pode conceber-se com a condição de que exista antes o pensamento, sob a “forma de uma estrutura objetiva do psiquismo e do cérebro”. O espírito é algo dado e constituído desde o princípio. É uma realidade insensível à ação da história e dos modos de produção porque é um objeto físico-químico, um aparelho que combina as chamadas e respostas das células cerebrais diante dos estímulos exteriores. Na práxis o espírito repete a mesma operação que no momento de elaborar

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as práticas: separa, combina e emite. O espírito transforma o sensível em signos. Na concepção de Marx advirto a primazia do histórico: modo de produção social; na de Lévi-Strauss, a do químico-biológico: modo de operação natural. Para Marx a consciência muda com a história; para Lévi-Strauss o espírito humano não muda: seu reino não é o da história, mas o da natureza.

Dessa perspectiva pode entender-se melhor sua polêmica com Sartre e o equívoco que os une e separa. Para Sartre a oposição entre razão analítica e razão dialética é real porque é histórica; quero dizer: cada uma delas corresponde a uma história e a um modo de produção distinto ou, mais exatamente, a etapas distintas de uma mesma história. A razão dialética nega a razão analítica e assim a engloba e a transcende. Não é a razão em movimento, como pretende Lévi-Strauss, mas o movimento da razão. Esse movimento a transforma e a converte efetivamente em outra razão: aquilo que diz a razão analítica o entende a dialética enquanto que esta última fala em uma linguagem incompreensível para aquela. A razão dialética situa a analítica dentro do seu contexto histórico e, ao relativizá-la, integra-a em seu movimento. Em troca, a razão analítica é incompetente para julgar a dialética... O defeito da posição de Sartre é o de toda dialética logo que cessa de repousar sobre um fundamento. É certo que a razão dialética pode compreender e julgar a analítica e que esta é incompetente para compreendê-la e julgá-la mas, a razão dialética se compreende e se pode julgar a si mesma? A razão dialética é uma ilustração do paradoxo do movimento: a terra se move em torno de um sol que parece imóvel e que, para os fins do movimento terrestre, efetivamente o está. Sendo assim, falta à dialética, desde Hegel, um sol: se a dialética é o movimento do espírito, há um ponto de referência graças ao qual o movimento é movimento. O fundamento da dialética é não-dialético pois de outro modo não haveria movimento, não haveria dialética. Marx nunca explicou com clareza as relações entre o seu método e a dialética de Hegel, embora o tenha prometido em várias páginas. Portanto, nos falta o ponto de referência entre a dialética e a matéria. Engels quis remediar esta omissão, com as suas investigações sobre a dialética da natureza,

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hoje inaceitáveis para a ciência, como já o demonstrou, entre outros, o próprio Sartre.16 A dialética materialista carece de fundamento e não possui um sistema de referência que permita compreendê-la e, literalmente, medi-la. A ciência contemporânea admite que o observador altera o fenômeno mas sabe que o altera e pode calcular essa alteração. Se não fosse assim, não haveria observação nem determinação do fenômeno. Em verdade, desapareceria a própria noção de fenômeno objetivo. Poderia replicar-se que o ponto de referência do marxismo é o salto dialético: graças à negação podemos compreender a afirmação. Seria uma operação “progressivo-regressiva”, para empregar o vocabulário de Sartre: a razão dialética compreende a analítica e assim a salva. Observo que a salva só para dissolvê-la, do mesmo modo que a negação ilumina a afirmação só para apagá-la melhor. Se a dialética pretende encontrar seu fundamento não antes mas depois do salto, tropeça com esta dificuldade: esse depois se transforma imediatamente em um antes. A dialética nos parecia um movimento e agora se converte em um frenesi imóvel. Em suma, a crítica de Sartre é uma arma de dois gumes: resolve a contradição entre matéria e dialética em benefício da segunda. O materialismo cessa de ser um materialismo e a dialética se converte em uma alma penada em busca de seu corpo, em busca de seu fundamento.

Lévi-Strauss assinala que Sartre converte a história em um refúgio da transcendência e que, portanto, é culpável do delito de idealismo. Talvez esteja certo, mas com uma ressalva: seria uma transcendência que se destrói a si mesma porque cada vez que se transcende, se anula. Por sua vez Sartre está certo quando diz que a dialética transcende a razão analítica. O que ocorre é que, ao transcendê-la, ela própria se anula como razão. Para restaurar sua dignidade racional, a dialética deveria realizar uma operação incompatível com a sua natureza: comparecer diante do juízo da razão analítica. Algo impossível porque, como se viu, a razão analítica não compreende a linguagem da dialética: carece de dimensão histórica tal como a dialética carece de fundamento. 16 Veja-se a nota de Maximilien Rubel ao posfácio de Marx à segunda edição alemã de O capital (Oeuvres de Karl Marx, primeiro volume, coleção de La Pléiade). Também o ensaio de Kostas Papaioannou: “Le mythe de la dialectique” (Contrat social, número de set-out. 1963).

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Ademais, a pergunta sobre o fundamento ou razão suficiente também alcança a razão de Lévi-Strauss: qual é a razão das operações físico-químicas do cérebro? Esta interrogação repete em outro nível a pergunta do começo: qual é o significado de significar? Em um e outro extremo do sistema de Lévi-Strauss surge o fantasma da filosofia. Pretendendo ainda voltar a isto, direi que o equívoco entre Lévi-Strauss e Sartre consiste em que ambos alteram a noção marxista de práxis: o primeiro em benefício de uma natureza exterior à história e o segundo no de uma dialética puramente histórica. Para Lévi-Strauss a história é uma categoria da razão; para Sartre a razão é uma categoria histórica. Sartre é um historicista puro e sua concepção recorda o racio-vitalismo de Ortega y Gasset, com a diferença de que não são as gerações mas as classes que encarnam o movimento histórico. Lévi-Strauss é também um materialista puro e seu pensamento prolonga o materialismo do século XVIII, com a ,diferença de que para ele a matéria não é uma substância mas uma relação. Este traço o converte não em um pensador da primeira metade do nosso século, como Sartre, mas da segunda: a que agora começa.

Mais pertinente que a crítica marxista é a do antropólogo inglês Edmund Leach.17 Aqui descemos da escolástica à terra firme do senso comum. Leach começa por assinalar que a importância da obra de Lévi-Strauss reside em que se propõe a explicar “o conteúdo não-verbal da cultura como um sistema de comunicações; portanto, aplica à sociedade humana os princípios de uma teoria geral da comunicação”. Ou seja: a estrutura binária da fonologia e dos cérebros eletrônicos que compõe mensagens pela combinação de pulsações negativas e positivas. A distinção binária é um “instrumento analítico de primeira ordem mas apresenta certas desvantagens. Uma delas é que tende a subestimar arbitrariamente os problemas relativos aos valores”. Estes últimos podem ser abordados com maior probabilidade de êxito pelos analogical computers. Enquanto- que estes mecanismos respondem às perguntas em termos de mais e menos, as máquinas que usam o sistema binário respondem unicamente com um sim ou um não. Leach ilustra a sua 17 Telsar and lhe aborígines or La pensée sauvage (1964).

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observação com o sistema de classificação totêmica tal como foi definido por Lévi-Strauss. Segundo o antropólogo francês, os aborígines não escolhem esta ou aquela espécie animal como totem pela sua utilidade, mas por suas qualidades e peculiaridades, isto é, por serem mais facilmente definíveis – por sua aptidão para formar parelhas conceptuais. Os funcionalistas britânicos afirmam que as espécies se convertem em totem por sua utilidade por exemplo: por serem comestíveis. Lévi-Strauss sustenta que são categorias de classificação: se convertem em totem por serem pensáveis e não por serem comestíveis. Embora a sua solução seja mais universal e simples que a primeira – sobretudo se se aceita que o totemismo não é uma instituição isolada mas um aspecto de um sistema geral de coordenação do universo e da sociedade – oferece um inconveniente. A teoria britânica é crua e ingênua: o animal é sagrado por sua função benéfica ou nociva; a de Lévi-Strauss nos mostra a razão formal das classificações totêmicas mas não toca em algo essencial: por que são sagradas, as espécies totêmicas? A mesma observação pode se aplicar ao tabu alimentício ou ao sexual. Não basta dizer que os europeus não comem carne de cachorro e os muçulmanos de porco; o primeiro tabu é implícito e o segundo é explícito. Esta diferença, segundo Leach, não pode ser explicada pelo método binário. Em suma, Lévi-Strauss “nos mostra a lógica das categorias religiosas e ao mesmo tempo ignora precisamente aqueles aspectos do fenômeno que são especificamente religiosos”. Creio que Leach tem razão mas assinalo que a sua aguda crítica evoca, sem propô-lo, um interlocutor que ele e Lévi-Strauss expulsaram do simpósio antropológico: a fenomenologia da religião.

Leach não toca os fundamentos do método de Lévi-Strauss: simplesmente propõe substituir em certos casos a analogia binária por outra mais refinada. Por minha par te, pergunto-me se é válido o princípio básico: é um modelo universal a teoria geral da comunicação? A primeira vista a resposta deve ser afirmativa, ao menos na esfera da matéria viva, tal como mostrou a genética contemporânea. Não obstante, é legítimo presumir que, como ocorreu sempre na história da ciência, cedo ou tarde aparecerá uma diferença que torne inoperante o

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modelo. Tenho outra dúvida: as máquinas pensam mas não sabem que pensam; no dia em que cheguem a sabê-lo, continuarão sendo máquinas? Dir-me-ão que todos os homens, pelo único fato de falar, pensam, e, não obstante, só muito poucos e em ocasiões contadas se dão conta de que realizam uma operação mental cada vez que pronunciam uma palavra. Replico que basta que um só homem se dê conta de que pensa para que tudo mude: o que distingue o pensamento de toda outra operação mental é a sua capacidade de saber-se pensamento. Mal escrevo esta frase advirto nela certa inconsistência; minha idéia pressupõe algo que não provei e que não é fácil provar: um eu, uma consciência. Se o pensamento é o que se dá conta de que pensa – e não poderia ser de outro modo – estamos diante de uma propriedade geral do pensamento; portanto, se as máquinas pensam, um dia saberão que pensam. A consciência é ilusória e consiste em uma simples operação.18 Reflito e arrisco outro comentário: a razão das máquinas é inflexível, infalível e irrebatível enquanto a nossa está sujeita a fraquezas, extravios e delírios. Como dizia Zamiatine: o homem é um enfermo e sua enfermidade se chama fantasia: “cada volta de um êmbolo é um imaculado silogismo, mas quem já viu uma roldana revirar-se na cama

18 A concepção de Lévi-Strauss recorda, por um lado, Hume; por outro, Buda. A semelhança com o budismo é extraordinária: “In Budism there is not percipient apart from perception, no conscious subject behind consciousness... The term subject must be understood no mean not the selfsame permanent conscious subject but merely a transitory state of consciousness. The object of Abhidhamma is to show that there is not soul or ego apart from the states of counsciousness; but that each seemingly simple state is in reality a highly complex compound, constantly changing and giving rise to new combinations” (S. Z. Aung em sua Introdução a Abhidhammattha-Sangha, Pali Text Society. 1963). Apesar da semelhança entre o pensamento budista e o de Lévi-Strauss, este último não aceita nem a renúncia ascética (parece-lhe egoísta) nem muito menos essa realidade indizível e indefinível, exceto em termos negativos, que chamamos Nirvana. Deve sentir-se mais longe ainda, suponho, dos pontos de vista do budismo Mahayana. Certo, a idéia de que todos os elementos (dharmas) são interdependentes não é distinta de sua concepção e tampouco o é ver neles simples nomes vazios de substância; em compensação, deduzir desse relativismo um absoluto de certo modo inefável, deve provocar-lhe certa repugnância intelectual. O paradoxo do budismo não consiste em ser uma filosofia religiosa mas em ser uma religião filosófica: reduz a realidade a um fluir de signos e nomes mas afirma que a sabedoria e a santidade (uma só e mesma coisa) reside no desaparecimento dos signos. “Os signos do Tathagatta”, diz o sutra Vagrakkhedika, “são os não-signos”. Direi, por último, que não é acidental a semelhança entre o budismo e o pensamento de Lévi-Strauss: é mais uma prova de que o Ocidente, por seus próprios meios e pela própria lógica de sua história, chega agora a conclusões fundamentalmente idênticas às que haviam chegado Buda e seus discípulos. O pensamento humano é uno e devemos a Lévi-Strauss – entre outras muitas coisas – haver demonstrado que a razão do primitivo ou a do oriental não é menos rigorosa do que a nossa.

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noites inteiras ou cismar durante as horas de repouso?” Atribuo esta diferença ao fato de que temos inconscientes distintos: falta algo às máquinas ou sobra algo em nós. Ou isto também é uma ilusão?

Lévi-Strauss introduz uma distinção singular entre o consciente e o inconsciente. Este último é um depósito de imagens e recordações, “um aspecto da memória” – algo assim como um arquivo imenso, desordenado e repleto. O consciente, ao contrário, “sempre está vazio”; recebe as “pulsões”, emoções, representações e outros estímulos exteriores e os organiza e transforma “como o estômago aos alimentos que o atravessam”. Embora Freud pensasse que um dia os progressos da química tornariam desnecessário o longo tratamento psicanalítico, sua concepção do inconsciente se opõe totalmente a de Lévi-Strauss: os processos químicos, inconscientes e subconscientes, possuem para Freud uma finalidade. Esta finalidade recebe vários nomes: desejo, princípio de prazer, Eros, Tânato, etc. Muitos sublinharam o parentesco deste inconsciente psicológico com as estruturas econômicas de Marx, também inconscientes e, portanto, tendo uma direção. O inconsciente e a história são forças em marcha e que caminham independemente da vontade dos homens. Longe de ser mecanismos vazios que transformam em signos aquilo que recebem do exterior, são realidades plenas que sem cessar mudam o homem e se transformam a si mesmas. A matéria viva de Freud aspira ao nirvana da matéria inerte; quer repousar na unidade mas está condenada a mover-se e a dividir-se, a desejar e a odiar as formas que engendra. O homem histórico de Hegel e Marx quer suprimir sua alteridade, ser uno outra vez com os outros e com a natureza, mas está condenado a transformar-se continuamente e transformar o mundo. Em um livro brilhante (Eros e Tânato), Norman O. Brown revelou que a energia da história pode chamar-se também Eros reprimido e sublimado. A dialética histórica, seja a de Hegel ou a de Marx, se reproduz na teoria de Freud: afirmação e negação são conceitos que correspondem aos de libido e repressão, prazer e morte, atividade e nirvana.

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O materialismo de Freud e o de Marx não suprimem a idéia de finalidade: situam-na em um nível mais profundo que o da consciência e assim a fortificam. Alheia à consciência, esta finalidade é efetivamente uma força irrebatível. Ao mesmo tempo, Marx e Freud oferecem uma solução: mal o homem se dá conta das forças que o movem, está apto, senão a ser livre, pelo menos para estabelecer uma certa harmonia entre o que é realmente e o que pensa ser. Esta consciência é um saber ativo: para Marx, prometéico e heróico, é a atividade social, a práxis consciente de si mesma, que transformam o homem e o mundo; para o pessimista Freud é o equilíbrio, continuamente rompido, entre desejo e repressão. Assim pois a diferença entre estas duas concepções do inconsciente e a de Lévi-Strauss reside em que, no primeiro caso, o homem acede ao conhecimento de um inconsciente ativo e senhor de uma finalidade, enquanto que, no segundo, contempla um mecanismo que não conhece outra atividade senão a repetição e que carece de finalidade. É um saber do vazio.

Em seu comentário a Les structures élémentaires de la parente, citado no princípio destas páginas, Georges Bataille lamentava que Lévi-Strauss mal tocasse no tema da relação entre o intercâmbio de mulheres e o erotismo. A dualidade proibição e doação aparece também neste último: é uma espécie de oscilação entre horror e atração que se resolve sempre em violência, seja interior (renúncia) ou exterior (agressão). O jogo passional constitui o específico do fenômeno embora outras circunstâncias – econômicas, religiosas, políticas, mágicas – concorram também para determiná-lo. Em outras palavras, Bataille pedia que o tabu do incesto e sua contrapartida, as regras do parentesco e do matrimônio, se explicassem não só como uma forma de doação, uma expressão particular da teoria da circulação de bens e signos, mas por aquilo que os distingue dos outros sistemas de comunicação. Direi mais: o erotismo é comunicação mas os seus elementos específicos, à parte o fato de que o isolam e o opõem às outras formas de intercâmbio, anulam a própria noção de comunicação. Por exemplo, dizer que o matrimônio é uma relação entre signos que designam nomes (classes e linhagens) e valores (prestações, filhos, etc.), é omitir aquilo que o

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caracteriza: ser uma mediação entre renúncia e promiscuidade e, assim, criar um âmbito fechado e legítimo em que se pode desenvolver o jogo erótico. Pois bem, se as mulheres são signos portadores de nomes e bens, deve acrescentar-se que são signos passionais. A dialética própria do prazer – dom e possessão, desejo e gasto vital – confere a esses signos um sentido contraditório: são a família, a ordem, a continuidade e são também o único, o extravio, o instante erótico que rompe a continuidade. Os signos eróticos destroem a significação – queimam-na e transfiguram-na: o sentido regressa ao ser. E do mesmo modo o abraço carnal, ao realizar a comunicação, a anula. Como na poesia e na música, os signos já não significam: são. O erotismo transcende a comunicação.

Bataille assinala que a proibição do incesto também está ligada a outras duas negações pelas quais o homem se opõe à sua animalidade original: o trabalho e a cons ciência da morte. Ambas nos colocam diante de um mundo que Lévi-Strauss prefere ignorar: a história. O homem faz e ao fazer se desfaz, morre – e o sabe. Pergunto-me: o homem é uma operação ou uma paixão, um signo ou uma história? Esta pergunta pode repetir-se, segundo se viu, diante dos outros estudos de Lévi-Strauss sobre os mitos e o pensamento selvagem. Com extraordinária penetração descobriu a lógica que os rege e revelou que, longe de ser confusas aberrações psíquicas ou manifestações de ilusórios arquétipos, são sistemas coerentes e não menos rigorosos que os da ciência. Em compensação, omite a descrição do conteúdo concreto e específico. Tampouco se interessa pelo significado particular desses mitos e símbolos dentro do grupo que os elabora. Convertido em uma simples combinação, o fenômeno se evapora e a história se reduz a um discurso incoerente e a uma gesta fantasmal. Não faltará quem me diga: um homem de ciência não tem porque extraviar-se nos labirintos da fenomenologia e da história. Penso o contrário. A obra de Lévi-Strauss nos apaixona porque interrompe o duplo e interminável monólogo da fenomenologia e da história. Essa interrupção é, ao mesmo tempo, histórica e filosófica: a negação da história é uma resposta à história e a filosofia reaparece como crítica do sentido – como crítica da razão.

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Ricoeur encontrou uma surpreendente semelhança entre o sistema de Kant e o de Lévi-Strauss: ao modo do primeiro, este postula um entendimento universal regido por leis e categorias invariáveis.19 A diferença seria que o do antropólogo francês é um entendimento sem sujeito transcendental. Lévi-Strauss aceita o bem fundado da comparação e, sem negá-la, assinala os seus limites: o etnólogo não parte da hipótese de uma razão universal mas da observação de sociedades particulares e pouco a pouco, pela classificação e comparação de cada elemento distintivo, desenha as linhas de “uma estrutura anatômica geral”. O resultado é uma imagem da forma da razão e uma descrição de seu funcionamento. A semelhança que Ricoeur assinala não nos deve fazer esquecer uma diferença não menos decisiva: Kant se propôs descobrir os limites do entendimento; Lévi-Strauss dissolve o entendimento na natureza. Para Kant há um sujeito e um objeto; Lévi-Strauss apaga esta distinção. Em lugar do sujeito postula um “nós” feito de 'particularidades que se opõe e combinam. O sujeito se via a si mesmo e os juízos do entendimento universal eram os seus. O “nós” não pode ser visto: não tem um si mesmo, sua intimidade é exterioridade. Seus juízos não são seus: é o veículo de um juízo. É a estranheza em pessoa. Nem sequer pode saber-se uma coisa entre as coisas: é uma transparência através da qual uma coisa, o espírito, contempla as outras coisas e se deixa contemplar por elas. Ao abolir o sujeito, Lévi-Strauss destrói o diálogo da consciência consigo mesma e o diálogo do sujeito com o objeto.

A história do pensamento do Ocidente foi a das relações entre o ser e o sentido, o sujeito e o objeto, o homem e a natureza. Desde Descartes o diálogo se alterou por uma espécie de exageração do sujeito. Esta exageração culminou na fenomenologia de Husserl e na lógica de Wittgenstein. O diálogo da filosofia com o mundo se converteu no monólogo interminável do sujeito. O mundo emudeceu. O crescimento do

19 Observo, de passagem, que Martin Heidegger, em O ser e o tempo se propôs algo semelhante, só que não na esfera do entendimento mas na da temporalidade. Por isso se opôs, com razão, a que se confunda o seu pensamento com o existencialismo. O formalismo de Lévi-Strauss proíbe-me de comparar suas concepções com as de Heidegger; mas não com o antigo nominalismo: em seu sistema o universo se resolve em signos, nomes. Valeria a pena explorar mais estas afinidades.

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sujeito às expensas do mundo não se limita à corrente idealista: a natureza histórica de Marx e a natureza “domesticada” da ciência experimental e da tecnologia também ostentam a marca da subjetividade. Lévi-Strauss rompe brutalmente com esta situação e inverte os termos: agora é a natureza que fala consigo mesma, através do homem e sem que este se dê conta. Não é o homem mas o mundo que não- pode sair de si mesmo. Se não fosse forçar demais a linguagem, diria que o entendimento universal de Lévi-Strauss é um objeto transcendental. O “homem em si” nem sequer é inacessível: é uma ilusão, a cifra momentânea de uma operação. Um signo de troca, como os bens, as palavras e as mulheres.

Por meio de reduções sucessivas e rigorosas, Lévi-Strauss percorre o caminho da filosofia moderna só que em sentido inverso e para chegar a conclusões simetricamente opostas. Em um primeiro movimento, reduz a pluralidade das sociedades e histórias a uma dicotomia que as engloba e as dissolve: pensamento selvagem e pensamento domesticado. Em seguida, descobre que esta oposição é parte de outra oposição fundamental: natureza e cultura. Em um terceiro momento, revela a identidade entre as duas últimas: os produtos da cultura – mitos, instituições, linguagem – não são essencialmente distintos dos produtos naturais nem obedecem a leis diferentes das que regem os seus homólogos, as células. Tudo é matéria viva, que se transforma. A própria matéria se evapora: é uma operação, uma relação. A cultura é uma metáfora do espírito humano e este não é senão uma metáfora das células e de suas reações químicas que, por sua vez, são outra metáfora. Saímos da natureza e a ela retornamos. Só que agora é uma selva de símbolos: as árvores reais e as feras, os insetos e os pássaros se transformam em equações. Pode ver-se agora com maior clareza em que consiste a oposição de Lévi-Strauss à dicotomia entre história e estrutura, pensamento selvagem e domesticado. Não é que lhe pareça falsa mas que, por mais decisiva que seja para nós, não é realmente essencial. Certo, o acontecer histórico é “poderoso – mas unânime”: seu reino é a contingência. Cada acontecimento é único e nesse sentido não é o estruturalismo, mas a história, quem pode, até certo ponto, explicá-lo.

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Ao mesmo tempo, todos os acontecimentos estão regidos pela estrutura, isto é, por uma razão universal inconsciente. Esta última é idêntica entre os selvagens e os civilizados: pensamos distintas coisas da mesma maneira. A estrutura não é histórica: é natural e nela reside a verdadeira natureza humana. É um retorno a Rousseau, só que a um Rousseau que tivesse passado pela Academia platônica. Para Rousseau o homem natural era o homem passional; para Lévi-Strauss as paixões e a sensibilidade são também relações e não escapam à razão e ao número, às matemáticas. A natureza humana, já que não uma essência nem uma idéia, é um concerto, uma harmonia, uma proporção.

Em um mundo de símbolos, que simbolizam os símbolos? Não ao homem, pois, se não há sujeito, o homem não é nem o ser significado nem o ser significante. O homem é, apenas, um momento na mensagem que a natureza emite e recebe. A natureza, por sua vez, não é uma substância nem uma coisa: é uma mensagem. Que diz essa mensagem? A pergunta que me fiz ao começar e que reapareceu algumas vezes ao longo destas páginas, retorna e se converte na pergunta final: que diz o pensamento, qual é o sentido da significação? A natureza é estrutura e a estrutura emite significados; portanto, não é possível suprimir a pergunta sobre o significado. A filosofia, sob a máscara da semântica, intervém em uma conversação a qual ninguém a convidou, mas que sem ela careceria de sentido. Para que uma mensagem seja compreendida é indispensável que o receptor conheça a clave utilizada pelo emissor. Os homens tinham a presunção, no duplo sentido da palavra, de conhecer a clave, ao menos pela metade. Outros pensaram que a clave não existia. O fundamento da pretensão dos primeiros consistia em crer que o homem era o receptor das mensagens que lhe dirigia Deus, o cosmos, à natureza ou a Idéia. Os segundos afirmavam que o homem era o emissor. Kant debilitou a primeira crença e mostrou que uma região da realidade era intocável, inacessível. Sua crítica minou os sistemas metafísicos tradicionais e fortificou a posição dos partidários da segunda hipótese. Por meio da operação da dialética, Hegel transformou a inacessível “coisa em si” em conceito; Marx deu o segundo passo e converteu o “conceito” em “natureza histórica”; Engels chegou a pensar que “a

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práxis, particularmente a experimentação e a indústria”, tinham acabado para sempre com a “coisa em si”, à qual chamou de “extravagância filosófica”. O fim da “coisa em si”, proclamado por Hegel e seus discípulos materialistas, foi uma subversão das posições no antigo diálogo que sustentam o homem e o cosmos: agora seria este o emissor e a natureza escutaria. A ininteligibilidade da natureza se transformou, pela negação criadora do conceito e da práxis, em significação histórica. O homem humaniza o cosmos, isto é, lhe dá sentido: converte-o em uma linguagem. A pergunta sobre o sentido do sentido o marxismo responde desta maneira: todo sentido é histórico. A história dissolve o ser no sentido. A resposta de Lévi-Strauss a esta afirmação poderia chamar-se: meditação nas ruínas de Taxila ou o marxismo corrigido pelo budismo.

Talvez o capítulo mais belo deste livro que se chama Tristes tropiques seja o último. O pensamento alcança nessas poucas páginas uma densidade e uma transparência que fariam pensar nas construções do cristal de rocha, não fosse o caso de estar animado por uma palpitação que não recorda tanto a imobilidade mineral como a vibração das ondas da luz. Uma geometria de resplendores que adota a forma fascinante da espiral. É o caracol marinho, símbolo do vento e da palavra, signo do movimento entre os antigos mexicanos: cada passo é simultaneamente uma volta ao ponto de partida e um avançar para o desconhecido. Aquilo que abandonamos ao principio nos espera, transfigurado, ao final. Mudança e identidade são metáforas do Mesmo: se repete e nunca é o mesma. O etnógrafo regressa do Novo ao Velho Mundo e i na antiga terra de Gándara une os dois extremos de sua exploração: na selva brasileira viu como se constitui urra sociedade; em Taxila contempla os restos de uma civilização que se concebeu a si mesma como um sentido que se anula. No primeiro caso foi testemunho do nascimento do sentido; no segundo, de sua negação. Duplo regresso: o etnólogo volta das sociedades sem história à história presente; o intelectual europeu regressa a um pensamento que nasceu há dois mil e quinhentos anos e descobre que nesse começo já estava inscrito o fim. O tempo também é uma metáfora e seu transcorrer é tão ilusório como os

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nossos esforços para detê-lo: nem transcorre nem se detém. Nossa própria imortalidade é ilusória: cada homem que morre assegura a sobrevivência da espécie, cada espécie que se extingue confirma a perduração de um movimento que se despenha incansavelmente para uma imobilidade sempre iminente e sempre inalcançável.

Taxila não é só uma assembléia de civilizações mas de deuses: os antigos cultos de fertilidade e Zoroastro, Apolo e a Grande Deusa, Shiva e o deus sem rosto do Islã. Entre todas essas divindades, a figura de Buda, esse homem que renunciou a ser Deus e que, pela mesma decisão, renunciou a ser homem. Assim venceu, ao mesmo tempo, a tentação da eternidade e a não menos insidiosa da história. Lévi-Strauss assinala a ausência de monumentos cristãos em Taxila. Não sei se está certo ao pensar que o Islã impediu o encontro entre o budismo e o cristianismo mas não se equivoca ao dizer que esse encontro teria dissipado o feitiço terrível que enlouqueceu o Ocidente: sua carreira frenética em busca do poder e a autodestruição. O budismo é a malha que falta na cadeia de nossa história. É o primeiro nó e o último: o nó que, ao se desfazer, desfaz a cadeia. A afirmação do sentido histórico culmina fatalmente em uma negação do sentido: “entre a crítica marxista que libera o homem de suas primeiras cadeias e a crítica budista que consuma a sua liberação, não há oposição nem contradição”. Um duplo movimento que une o princípio com o fim: aquilo que nos propôs o Buda ao começo de nossa história talvez só é realizável ao terminar: unicamente o homem livre do fardo da necessidade histórica e da tirania da autoridade poderá contemplar sem medo a sua própria ninharia. A história do pensamento e a ciência do Ocidente foram apenas uma série de “demonstrações suplementares da conclusão a que quiséramos escapar”: a distinção entre o sentido e a ausência de sentido é ilusória.

Disse ao princípio que a resposta de Peirce à pergunta sobre o sentido era circular: o significado da significação é significar. Como no caso do marxismo, Lévi-Strauss não nega nem contradiz a resposta de Peirce; recolhe-a e, fiel ao movimento da espiral, enfrenta-a consigo mesma: sentido e não-sentido são o mesmo. Esta afirmação é uma

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repetição da antiga palavra do Iluminado e, simultaneamente, é uma palavra distinta e que só um homem do século XX poderia proferir. É a verdade do princípio, transfigurada por nossa história e que unicamente diante de nós se revela: o sentido é uma operação, uma relação. Combinação de chamadas e respostas psico-químicas ou de dharmas impermanentes e insubstanciais, o eu não existe. Existe um nós e seu existir é apenas um pestanejo, uma combinação de elementos que tampouco têm existência própria. Cada homem e cada sociedade estão condenados a “perfurar o muro da necessidade” e a cumprir o duro dever da história, sabendo que cada movimento de liberação os encerra ainda mais em sua prisão. Não há saída, não há outra margem? A “idade de ouro está em nós” e é momentânea: esse instante incomensurável em que – quaisquer que sejam nossas crenças, nossa civilização e a época em que vivemos – nos sentimos não como um eu isolado nem como um nós extraviado no labirinto dos séculos mas como uma parte do todo, uma palpitação na respiração universal – fora do tempo, fora da história, imersos na luz imóvel de um mineral, no aroma branco de uma magnólia, no abismo encarnado e quase negro de uma amapola, no olhar, “grávido de paciência, serenidade e perdão recíproco que, às vezes, trocamos com um gato”. Lévi-Strauss chama a esses instantes: despreendimento. Eu acrescentaria que são também um des-conhecimento: dissolução do sentido no ser, embora saibamos que o ser é idêntico a nada.

O Ocidente nos ensina que o ser se dissolve no sentido e o Oriente que o sentido se dissolve em algo que não é nem ser nem não ser: em um O Mesmo que nenhuma linguagem designa exceto a do silêncio. Pois nós, os homens, estamos feitos de tal modo que o silêncio também é linguagem para nós. A palavra do Buda tem sentido, embora afirme que nada o tem, porque aponta para o silêncio: se quisermos saber o que realmente disse devemos interrogar o seu silêncio. Pois bem, a interpretação do que não disse o Buda é o eixo da grande controvérsia que divide as escolas desde o princípio. A tradição conta que o Iluminado não respondeu a dez perguntas: o mundo é eterno ou não?, o mundo é infinito ou não?, corpo e alma são o mesmo ou são diferentes?,

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o Tathagatta viverá depois de sua morte ou não, ou ambas as coisas, ou nenhuma das duas? Para alguns essas perguntas não podiam ser respondidas; para outros, Gautama não soube como responder; e para outros, preferiu não responder. K. N. Jayatileke traduz as interpretações das escolas em termos modernos.20 Se o Buda não conhecia as respostas, foi um cético ou um agnóstico ingênuo; se preferiu calar porque respondê-las poderia desviar os ouvintes da verdadeira via, foi um reformador pragmático; se calou porque não havia resposta possível, foi um racionalista agnóstico (as perguntas estão mais além dos limites da razão) ou um positivista lógico (as perguntas carecem de sentido e, portanto, de resposta). O jovem professor singalês se inclina pela última solução. A despeito de que a tradição histórica pareça contradizê-lo, sua hipótese me parece plausível se se recorda o caráter extremamente intelectualista do budismo, fundado em uma teoria combinatória do mundo e do ego que prefigura a lógica contemporânea. Por esta interpretação, não muito distanciada da posição de Lévi-Strauss, esquece outra possibilidade: o silêncio, em si mesmo, é uma resposta. Essa foi a interpretação da tendência Madhyamika e de Nagarjuna e seus discípulos. Há dois silêncios: um, antes da palavra, é um querer dizer; outro, depois da palavra, é um saber que não se pode dizer a única coisa que valeria a pena dizer-se. O Buda disse tudo que se pode dizer com as palavras: os erros e os acertos da razão, a verdade e a mentira dos sentidos, a fulguração e o vazio do instante, a liberdade e a escravidão do niilismo. Palavra plena de razões que se anulam e de sensações que se entredevoram. Mas seu silêncio diz algo distinto.

A essência da palavra é a relação e daí que seja a cifra, a encarnação momentânea de tudo que é relativo. Toda palavra engendra uma palavra que a contradiz, toda palavra é relação entre uma negação e uma afirmação. Relação é atar alteridades, não resolução de contradições. Por isso a linguagem é o reino da dialética que sem cessar se destrói e renasce só para morrer. A linguagem é dialética, operação, comunicação. Se o silêncio do Buda fosse a expressão deste relativismo não seria silêncio mas palavra. Não é assim: com o seu silêncio cessam o 20 Early Budhist Theory of Knowledge, Londres, 1963.

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movimento, a operação, a dialética, a palavra. Ao mesmo tempo, não é a negação da dialética nem do movimento: o silêncio do Buda é a resolução da linguagem. Saímos do silêncio e voltamos ao silêncio: à palavra que deixou de ser palavra. O que diz o silêncio do Buda não é negação nem afirmação. Diz outra coisa, alude a um mais além que está aqui. Diz Sunyata: tudo está vazio porque tudo está pleno, a palavra não é dizer porque o único dizer é o silêncio. Não um niilismo mas um relativismo que se destrói e vai mais além de si mesmo. O movimento não se resolve em imobilidade: é imobilidade; a imobilidade, movimento. A negação do mundo implica uma volta ao mundo, o ascetismo é um regresso aos sentidos, Samsara é Nirvana, a realidade é a cifra adorável e terrível da irrealidade, o instante não é a refutação, mas a encarnação da eternidade, o corpo é uma janela para o infinito: é o próprio infinito.

Já notamos que os sentidos são ao mesmo tempo os emissores e os receptores de todo sentido? Reduzir o mundo à significação é tão absurdo como reduzi-lo aos sentidos. Plenitude dos sentidos: aí o sentido se desvanece para, um instante depois, contemplar como a sensação se dispersa. Vibração, ondas, chamadas e respostas: silêncio. Não o saber do vazio: um saber vazio. O silêncio do Buda não é um conhecimento mas o que está depois do conhecimento: uma sabedoria. Um desconhecimento. Um estar solto e, assim, resolvido.* A quietude é dança e a solidão do asceta é idêntica, no centro da espiral imóvel, ao abraço dos pares enamorados do santuário de Karli. Saber que sabe nada e que culmina em uma poética e em uma erótica. Ato instantâneo, forma que se desagrega, palavra que se evapora: a arte de dançar sobre o abismo.

* No original, jogo verbal entre suelto e resuelto, impossível de ser reproduzido em português. (N. do T.).

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