Claudio Filosofia e Xamanismo

download Claudio Filosofia e Xamanismo

of 25

Transcript of Claudio Filosofia e Xamanismo

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    1/25

    FILOSOFIA E XAMANISMO: REFLEXESCRTICAS SOBRE A TRADIO

    CONTINENTAL

    Ora, no h porque nos torturarmos angustiados.Pois l onde faltam conceitos,L colocamos uma palavra no momento certo.Com palavras se discute com elegncia,Com palavras se constri um sistema,Em palavras pode-se facilmente acreditar,De uma palavra no se deixa nem um jota roubar.*

    J. W. Goethe (Mephistopheles, Faust)

    Funes do xam so a de exorcisar os espritos maus que habitam os

    corpos dos enfermos e assegurar a harmonia espiritual aos membros do cl.

    Em geral os xams tm conscincia de que tudo o que conhecem so apenas

    truques, de que a sua magia ilusria, uma conscincia que se perdeu no

    caso das religies mais desenvolvidas de nossa civilizao. O religioso

    cristo, por exemplo, acredita honestamente no valor transcendente de seus

    rituais... Ora, com o filsofo no tem sido muito diferente. Ele

    freqentemente age como o ministro religioso e desconfio que por vezes

    tambm como o xam, promovendo de maneira mgica a regenerao da

    cultura e a harmonia espiritual das hordas intelectuais. Nesse ensaio

    pretendo investigar as manifestaes xamansticas da filosofia l onde elasso mais evidentes, ou seja, na assim chamada tradio continental, que

    rene pensadores como Kant, Fichte, Hegel, Husserl, Heidegger e mesmo

    Habermas, e que foi importada para a Frana por Sartre e Merleau-Ponty,

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    2/25

    tornando-se, atravs de filsofos como Foucault, Deleuze e Derrida, o

    sangue e a carne da filosofia francesa contempornea.

    I

    Quero introduzir meus comentrios expondo algumas recordaes

    pessoais que remontam dcada de 1970. A primeira do tempo em que,

    ainda estudante de medicina, pela primeira vez abri o livro de Michel

    Foucault intitulado As Palavras e as Coisas (Les Mots te les Choses). Ele

    comeava com uma citao de Borges e continuava em uma linguagem

    requintadamente literria, que me deixou encantado. Eu quase nada entendia

    do que estava lendo, mas j sabia que estava diante da maior expresso do

    pensamento francs ps-Sartre e, por conseguinte, talvez da maior obra

    filosfica produzida na segunda metade do sculo XX.

    Essas impresses ingnuas de leigo, que certamente se do tambm a

    outras pessoas que amam a literatura e que nada entendem de filosofia, s

    foram desfeitas anos mais tarde, quando comecei a perceber que as tesesmais propriamente filosficas defendidas por Foucault, embora veiculadas

    em meio a um discurso de grande estilo e sofisticao, tinham muito de

    trivial ou simplesmente equvoco. A tese central deAs Palavras e as Coisas

    (Les Mots et les Choses) a afirmao anti-humanista da morte do homem.

    O homem ainda no existia na poca clssica (entre os sculos XVI e

    XVIII), pois esta se caracterizou pelo domnio da razo e da cincia, nela

    no havendo espao para a subjetividade humana. O conceito do humano foi

    inventado pela modernidade (a partir do iluminismo), tornando-se central

    atravs de pensadores como Darwin, Hegel, Marx e Freud. Atualmente,

    porm, como o paradigma epistmico que permitiu a inveno do humano

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    3/25

    est desaparecendo, com ele tambm morre o homem! No me lembro mais

    dos detalhes dessa tese, mas de minha inocente pergunta acerca da ausncia

    de roupas do rei. Essa pergunta era: se o homem foi uma inveno da

    modernidade, o que dizer do humanismo greco-latino? O que dizer dohumanismo renascentista? Foi Scrates quem colocou pela primeira vez de

    forma explcita a natureza humana no centro de sua perspectiva intelectual, e

    o humanismo parece ter sido desde ento constituido de exageraes

    ideolgicas de insights legtimos acerca da natureza humana, que podem ter

    sido mais ou menos tematizados culturalmente em diferentes perodos da

    histria, mas que continuaro a existir mesmo quando o discurso humanista

    tiver perdido qualquer funo ideolgica. A poca clssica foi apenas um

    desses perodos nos quais o discurso humanista voltou a ser latente, aps o

    esgotamento do humanismo renascentista. Hoje o discurso humanista perde

    a fora ideolgica, na medida em que a sua substituio por equivalentes

    mais cientficos se deixa presentir como necessria e possvel. Claro que

    essas observaes seriam vistas por um foucaultiano como inadequadas; o

    rei est vestido, ele diria, apenas que as suas roupas so invisveis.

    Ainda quanto a Foucault, quero oferecer um segundo exemplo do tipo

    autobiogrfico. J desconfiado da importncia de Foucault como filsofo,

    assisti algum tempo mais tarde, em Ipanema, um curso sobre o seu livro

    Histria da Sexualidade I. Embora o texto seja importante como estudo

    emprico dos mecanismos culturais de uso e controle da sexualidade, uma

    tese subliminarmente defendida era a de que Freud estava errado. Freudpensava que a civilizao s seria possvel atravs da limitao, controle e

    prorrogao da satisfao sexual, de modo que a sua frmula um tanto

    espartana era: sem represso, nada de civilizao. Mas para Foucault a nossa

    civilizao, longe de reprimir a sexualidade como meio de permitir a vida

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    4/25

    civilizada, produz sexualidade. A sexualidade inventada em formas cada

    vez mais diversificadas. Basta ver o samba da garrafa para se entender isso.

    A primeira coisa que me veio a mente ao considerar essa idia foi a tese

    da dessublimao repressiva proposta por Herbert Marcuse. Segundo essefilsofo, a civilizao tecnolgica do capitalismo avanado possui

    mecanismos pelos quais produz o que ele chama de mais-represso, que

    uma represso desnecessria, posto que alienadora e limitadora das

    potencialidades espirituais do ser humano, mesmo quando as condies

    econmicas para a sua emancipao j se encontram presentes. Essa mais-

    represso se produz principalmente atravs do mecanismo de dessublimao

    repressiva, que consiste na liberao de formas insublimadas de erotismo

    feita em combinao com um simultneo controle repressivo de suas formas

    mais sublimadas, potencialmente perigosas para o funcionamento da

    sociedade tecnolgica. Essa dessublimao institucionalizada age, por

    exemplo, estimulando o sexo em motis e ao mesmo tempo ridicularizando a

    paixo romntica, maximamente exemplificada em clssicos como Anna

    Karenina e Madame Bovary. A realidade tecnolgica, escreve Marcuse,

    limita o alcance da sublimao ao diminuir a energia ertica intensificando

    a energia sexual(1). Com isso fica teoricamente explicada a produo da

    sexualidade sugerida por Foucault, sem que a equao freudiana fazendo

    civilizao implicar em represso precise ser essencialmente rejeitada.

    H uma terceira sugesto de Foucault que eu gostaria de brevemente

    comentar, que a sua interpretao e defesa implcita de Nietzsche como umfilsofo que v na verdade uma mera inveno do poder(2). Acho esse um

    dos pontos mais fracos e contraditrios do pensamento de Nietzsche, um

    filsofo que por sinal tinha uma saudvel averso aos artifcios discursivos

    tpicos da filosofia continental. Segundo essa tese a verdade uma inveno,

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    5/25

    a servir de instrumento para a aquisio e preservao do poder(3). Essa tese

    , como as anteriormente consideradas, uma exagerao ideolgica a partir

    de um fato scio-cultural que pede um exame isento, no caso, a questo da

    produo ideolgica de pseudo-verdades. Uma exagerao como essa umareao compreensvel defesa do exagero oposto, a crena ingnua em tudo

    aquilo que autoridades declaram verdadeiro, assim como o anti-humanismo

    de Foucault uma reao compreensvel ao humanismo existencialista, por

    isso mesmo tratando-se de uma ideologia passageira, destinada a perder a

    sua eficcia com a perda de eficcia daquilo a que se ope. Se levada a srio,

    contudo, a tese de que a verdade mero instrumento do poder perigosa,

    pois ao privar as pessoas de um conceito diretivo to central arrisca produzir

    efeitos devastadores em sua formao intelectual.

    Com essas consideraes no quero avaliar Foucault como pensador, mas

    como filsofo. Como pensador ele foi um historiador da cultura original e

    iconoclasta, com ricas e penetrantes constataes empricas. Mas como

    filsofo ele foi um terico menor, cujas teses mais importantes so

    geralmente equvocas, quando no constrangedoramente falsas.

    II

    Quero expor ainda outro fato autobiogrfico, desta vez sobre Heidegger,

    que para muitos o candidato junto a Wittgenstein ao ttulo de o maior

    filsofo do sculo XX (a prpria questo ao meu ver equvoca). Foi em um

    curso que assisti na mesma poca sobre o ltimo Heidegger, j no mestrado

    da UFRJ. Por essa poca eu j era estudante de filosofia e no me deixava

    mais mistificar to facilmente. Na primeira aula fui informado que o curso

    seria um exerccio sobre um nico minsculo texto, perdido entre as muitas

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    6/25

    milhares de pginas desse grafomanaco pensador. Aps uma ou duas aulas

    tornou-se-me claro que embora o professor tivesse se adestrado em

    combinar das mais variadas maneiras as tiradas hermtico-altissonantes de

    heidegger, se o essencial de toda aquela algarvia fosse traduzido em termoscivilizados, o resultado seriam trivialidades humanstico-ecolgicas do tipo

    O ser humano contemporneo encontra-se alienado da natureza e de si

    mesmo. Em suma, alguma coisa quase ao nvel do Greenpace. Minha

    reao foi desaparecer e s voltar no final do curso com um resumo de Ser e

    Tempo, escrito com base em civilizada exposio do essencial por Wolfgang

    Stegmller, posto que eu concluira que para os meus intentos no valeria a

    pena perder muito tempo com o original.

    Preciso reconhecer, todavia, que o meu juzo nunca foi de todo negativo.

    Minha avaliao bem menos pessimista do que a de Paul Edwards, que

    tomando de emprstimo uma classificao do filsofo alemo Adolf Sthr,

    qualificou Heidegger como um metafsico glossognico. Segundo Sthr, o

    metafsico glossognico aquele que no consegue dizer nada sobre o

    mundo, mas que consegue rolar palavras; e rolando palavras, nota Edwards,

    Heidegger sucede em provocar transportes extticos em algumas pessoas,

    que acabam por se converter nos pastores e pastoras do ser(4). Diversamente

    de Edwards, reconheo que Heidegger foi capaz de discernir coisas

    importantes sobre o nosso mundo interior, ainda que hiperdimensionando-as

    na forma de mistificaes glossognicas. E diversamente de Edwards eu

    considero Ser e Tempo uma obra de grande originalidade e sugestividade,creio que sem paralelo na antropologia filosfica contempornea. A idia

    heideggeriana de que o homem um ser para a morte, por exemplo, foi

    artisticamente tematizada de vrias maneiras, no s no conto de Tolstoy, A

    Morte de Ivan Ilitch (citado em Ser e Tempo), mas em uma pintura como A

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    7/25

    Vida, de Picasso. Nessa ltima, a juventude, o amor e a paternidade,

    aparecem em primeiro plano, em cores, enquanto a morte e a perda

    aparecem em segundo plano, em preto e branco, meramente esboadas. No

    conto de Tolstoy, Ivan Ilitch, um magistrado, antes disperso empreocupaes fteis, despertado para os valores fundamentais da existncia

    pela descoberta de uma doena que logo o conduzir morte. No h dvida

    de que a conscincia de que podemos morrer a qualquer instante molda em

    profundidade o nosso ser, razo pela qual a tentativa de estabelecer a relao

    entre autenticidade e finitude em uma teoria filosfica da condio humana

    sempre pareceu-me aquilo que Heidegger tinha a oferecer de mais original e

    profundo. S considerei perda de tempo til tentar decifrar a algarvia

    original pelo fato de que o meu interesse maior era mesmo metafsica, e no

    antropologia filosfica travestida de ontologia fundamental(5).

    Pouco conheo de Heidegger, mas creio que posso fazer aqui uma breve

    anlise desmistificadora do conceito de Serem sua ltima fase. O Heidegger

    dessa fase cisma mais do que nunca com a palavrinha ser. O Ser, diz ele,

    foi esquecido pela tradio metafsica que aps os filsofos pr-socrticos se

    tornou decadente; devemos recuper-lo; a linguagem a casa do ser; o

    homem o seu pastor, etc. Uma tese central aqui a do esquecimento do

    ser: devemos recuperar o serdoente, o ser que subjaz aos entes, s coisas,

    que em algum sentido as fundamenta. Essa tese tambm hiperdimensiona

    algo verdadeiro. De fato, aps os pr-socrticos a filosofia perdeu a

    originariedade, no sentido de considerar as questes sem referenciaistericos anteriores, como no poderia deixar de ser. Mas isso no significa

    necessariamente decadncia ou perda de vigor, a menos que queiramos

    considerar Plato, Aristteles, Kant e Wittgenstein filsofos menores. Mais

    auspiciosa seria a interpretao da idia de Heidegger luz da crtica

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    8/25

    nietzscheana cristianizao da filosofia a partir de Scrates, perda dos

    valores afirmativos. Mas essa tese polmica: a cristianizao parece ter

    sido um fenmeno secundrio, grandemente limitado filosofia dos valores,

    portanto localizado e limitado a certas perspectivas, alm de fragmentrio(quem consideraria Shakespeare, ou mesmo Dante, decadentes?). Outra

    dificuldade que, aos olhos de Nietzsche, a maneira como Heidegger expe

    a sua tese como esquecimento do ser tambm seria vista como

    decadente, ou seja, como parte da doena que prope diagnosticar.

    O que dizer da tentativa heideggeriana de recuperar o sentido do ser? Em

    meu juzo, Heidegger utiliza a palavrinha ser de forma multiplamente

    equvoca. O verbo ser, como tal, nada tem de misterioso. Ele possui uma

    grande variedade de significados na linguagem ordinria. Se voc quiser

    saber o que ele significa, basta abrir o dicionrio. A funo logicamente

    mais relevante e comum a de introduzir uma predicao (ex: Risoleta

    alegre). Mas ele usado tambm para afirmar identidade (O Everest o

    Chomolungma), para indicar existncia na linguagem potica (Nos altos

    cumes serenidade), ou como sinnimo de realidade, estado, permanncia

    etc., alm de sentidos adventcios, como o de ser digno, ser vivo, ser

    humano, da totalidade das coisas etc. Filsofos tradicionais

    compreensivelmente confundiram diferentes sentidos da palavra, produzindo

    sofismas que no importa considerar aqui. Mas Heidegger vai alm em seu

    uso das propriedades semnticas da palavrinha ser. Como sabemos, quanto

    mais sem contedo for uma palavra, mais facilmente ela adquirir umsentido metafrico quando sistematicamente usada no lugar de outra. Se em

    um texto jurdico a palavra o outorgado vier sempre substituida por o

    blabl, em pouco tempo passaremos a ler o blabl como se fosse o

    outorgado. Por isso o conceito de ser, tradicionalmente considerado o mais

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    9/25

    geral e o mais vazio, presta-se particularmente a esse papel, posto que em

    sua forma substantivada raramente usada na linguagem coloquial possui

    a potencialidade de uma metfora universal. Ora, o que Heidegger faz

    valer-se dessa indeterminao da palavra ser para us-la de formamultiplamente metafrica ao situ-la de forma variadamente sistemtica de

    um contexto para outro, fazendo isso sem admitir o que est fazendo, mas

    insistindo que o seu intento elucidar uma coisa nica, o ser, que em sua

    transcendncia foge possibilidade de ser adequadamente capturado pelos

    meios da linguagem, mas que realmente est l, inacessvel ao esprito

    superficial e despreparado. Minha convico, contudo, a de que todo esse

    jogo equvoco de significados, insinuados e no-admitidos, falha em captar

    qualquer coisa verdadeiramente relevante que no possa ser melhor expressa

    por outros meios, produzindo apenas uma tal impresso em leitores menos

    profundos e preparados.

    H em meu juzo dois modos de uso principais da palavra ser no

    segundo Heidegger, nenhum dos dois admitido pelo autor, mas sem os quais

    o seu discurso j carente de inteligibilidade dificilmente insinuaria

    significados. O primeiro o multiplamentemetafrico, recm-aludido. O Ser

    (ou mesmo o ente) uma metfora para coisas relevantes como sentido,

    essncia e, principalmente, Deus. (A assim chamada diferena ontolgica

    entre os entes (ou seres) e o Ser dos entes, por exemplo, geralmente um

    reflexo da diferena teolgica entre a criao e o criador como ele em si

    mesmo o que no pode ser generalizado, pois os significados dos termosheideggerianos esto sempre sujeitos a modificaes arbitrrias, impostas ao

    capricho do momento.) Seja como for, se, nos textos de Heidegger,

    substituirmos palavras como ser pela palavra Deus, muitas passagens

    tornam-se at mais claras, revelando-se uma espcie de verso laica de

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    10/25

    prdicas religiosas. Contudo, usar a palavra apropriada ao invs da metfora

    polissmica tornaria a coisa um tanto corriqueira e desinteressante...

    Heidegger, ex-estudante de teologia , alis, o endereo certo para quem

    busca um substituto filosfico para a religio. Isso explica o fenmenonotado por Edwards dos pastores e pastoras do Ser; a razo pela qual muitos

    continuam e continuaro por muitos anos a cultuar a sua filosofia.

    O outro uso no admitido da palavra ser, apontado por Edwards, o

    existencial, mais proeminente no ltimo Heidegger. Ele evidentemente o

    negaria, mas o contexto de suas consideraes mostra que o ser

    comumente entendido ao menos tambm como o existir, como atesta a sua

    nfase em uma frase como Nos altos cumes (existe, permanece, reina a)

    serenidade, com a qual ele espera captar o sentido do ser de forma mais

    genuina(6). Edwards sugere que Heidegger, usando o conceito de ser em seu

    sentido existencial, redescobre de maneira equvoca a velha idia sugerida

    por Kant e desenvolvida por Frege, de que a existncia no propriedade

    das coisas. Quero antes explicar essa idia. Quando consideramos um objeto

    existente, percebemos uma srie de propriedades nesse objeto: sua cor, sua

    forma, sua textura. Mas se procurarmos entre essas propriedades a sua

    existncia, nada encontraremos. No dizer de Frege, a existncia no uma

    propriedade de coisas, mas de conceitos, qual seja, a propriedade que alguns

    deles tm de serem aplicados ao menos uma vez(7). O conceito de planeta

    Saturno, por exemplo, tem a propriedade de ser aplicado ao menos uma vez,

    donde podemos dizer que Saturno existe. A confuso da existncia com umapropriedade de coisas facilitada pela linguagem, que usa a palavra existe

    predicativamene, como se esta denotasse algo pertencente s coisas. Essa

    confuso teria tido grande importncia na Idade Mdia, quando foi usada

    como condio para a prova anselmiana da existncia de Deus. Hoje, porm,

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    11/25

    muito poucos so os que pensam que a existncia seja uma propriedade de

    coisas. A tese de Edwards que Heidegger redescobre confusamente a velha

    idia de que a existncia no uma propriedade das coisas, mistificando isso

    como se fosse o desvelamento de um insondvel enigma: a ocultao doser. Essa ocultao, escreve Edwards,

    ... um modo de referir ao fato de que quando buscamos a existncia

    nas coisas ns no podemos encontr-la; a revelao do ser um meio

    desnecessariamente apologtico de dizer que as coisas apesar de tudo

    existem. Ns podemos honestamente caracterizar a descoberta

    heideggereana da paradoxal natureza do Ser como uma redescrio

    bombstica desses fatos, que nada faz para esclarec-los(8).

    Com efeito, essa redescoberta que permite a Heidegger perguntar-se que

    ser esse que no um ente junto aos entes, mas que subjaz

    necessariamente a todo ente dado. E com isso voltamos encobertamente ao

    ser-Deus, pois quem seno Deus o responsvel pelo mantenimento das

    coisas em sua existncia? , pois, com o auxlio roubado de bacamartes

    como o ser-existncia, o ser-Deus e ainda o ser-sentido, o ser-essncia, e

    ainda inmeros seres ainda menores, como o ser-belo, o ser-melhor, o ser-

    positivo, o ser-relevante... todos eles contextualmente afirmados e

    explicitamente negados, que Heidegger est preparado para principiar o seu

    cerco a um mistrio to grande que mesmo muitas milhares de pginas noousaro decifrar. E por que no? Ora, porque por detrs do remetimento a

    algo misterioso, que paira alm dos meios usuais de expresso lingstica,

    muito pouco existe alm da descontextualizao de trivialidades e da

    fabricao de simulacros.

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    12/25

    Um outro exemplo do procedimento heideggeriano est em sua anlise da

    verdade como desvelamento (altheia). Ele admite que em um sentido

    secundrio verdade a adequao do enunciado coisa, como pensou a

    tradio filosfica desde Plato. A teologia fundamentou essa adequaorecorrendo a Deus, que criou as coisas em adequao com as suas idias e

    nos tornou capazes de ter acesso a essas idias verificando a adequao.

    Deus torna-se assim o fundamento ltimo da verdade. Heidegger rejeita essa

    explicao teolgica subseqente, mas a reintroduz mais tarde,

    transformada, em sua idia da verdade como desvelamento.

    O argumento de Heidegger pode ser resumido assim(9). Primeiro passo: a

    adequao s possvel por um deixar surgir, pela originria abertura do

    comportamento (o que s faz sentido como uma maneira metafrica de se

    falar dos atos verificacionais pelo sujeito da experincia), a qual s

    possvel onde houver liberdade. Ora, se o que fundamenta a adequao a

    liberdade, a essncia da verdade no a adequao, mas a liberdade; assim,

    a essncia da verdade a liberdade. Segundo passo: essa liberdade o

    abandono abertura do ente, ao seu desvelamento; como a palavra grega

    para a verdade, altheia, significa tambm desvelamento, Heidegger conclui

    que a essncia originria da verdade o desvelamento do ente. Terceiro

    passo: aqui se descobre que o des-velamento tambm velamento; ou seja, a

    verdade o re-velar-se do ente em sua totalidade, que ao se mostrar se vela

    novamente, produzindo assim a experincia do mistrio que define as

    errncias inexorveis do homem historial.Uma anlise desse sugestivo argumento mostra que Heidegger nele

    combina brilhantemente equvoco, confuso e banalidade. Consideremos o

    primeiro passo. possvel dizer que a abertura do comportamento (que

    entendo como o ato verificacional em um sentido amplo), que permite a

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    13/25

    constatao da verdade como adequao, condicionada a alguma forma de

    liberdade, pois um ser no-livre, e.g., um autmato, que proceda

    verificao de um enunciado, no pode chegar a saber que ele verdadeiro.

    Mas isso no nos permite concluir que a essncia da verdade a liberdade!Se a relaoR entrex ey pressupe uma condioz, isso no significa quez

    seja a essncia de xRy. Ou, em um exemplo concreto: se uma condio da

    hemofilia de Joo que seus pais sejam portadores de genes de hemofilia,

    isso no quer dizer que a essncia da hemofilia de Joo sejam certos genes

    recessivos portados por seus pais. Alm do mais, no mesmo sentido em que

    a liberdade uma condio da abertura comportamental (verificao), ela

    tambm uma condio de qualquer ato mental e ao racional. Assim, um

    raciocnio similar ao de Heidegger poderia levar-nos a concluir que o

    pensamento consciente constitui-se essencialmente pela liberdade, como

    tambm outros atos mentais como a crena, o desejo, a ao... o que seria

    absurdo. O segundo passo, com o qual Heidegger conclui que a essncia da

    verdade tambm o desvelamento, desesperadoramente obscuro e

    confuso, exigindo o apelo autoridade filolgica do logos grego. E a

    concluso de que a verdade liberdade e tambm desvelamento

    inconsistente, pois a primeira uma propriedade do sujeito, enquanto o

    segundo uma propriedade do ente apresentado ao sujeito.

    Cada um desses passos exemplifica uma diferente artimanha discursiva

    usada pelo autor. No primeiro a artimanha a do raciocnio equvoco; no

    segundo a da obscuridade, que permite a um autor provar qualquer coisa;j no terceiro a artimaha a da pseudoprofundidade, ou seja, o recurso a um

    linguajar potico-impressionista-aglutinador, que faz o que dito parecer

    muito mais elevado e importante do que realmente .

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    14/25

    Para exemplificar essa ltima artimanha, considere a seguinte passagem

    do texto, acerca do desvelamento que dissimula:

    Instalar-se na vida corrente , entretanto, em si mesmo o no deixarimperar a dissimulao do que est velado. (...) todas essas questes que

    no surgem de nenhuma inquietude e esto seguras de si mesmas so

    apenas transies e situaes intermedirias nos movimentos da vida

    corrente e, portanto, inessenciais. L onde o velamento do ente em sua

    totalidade tolerado sob a forma de um limite que acidentalmente se

    anuncia, a dissimulao como acontecimento fundamental caiu no

    esquecimento(10).

    Podemos traduzir isso mais claramente como a seguinte banalidade:

    Se consideramos apenas as questes da vida comum, no somos em geral

    confundidos; mas o ser confundido coisa inevitvel em investigaes

    mais aprofundadas.

    Considere essa outra passagem sobre a existncia humana no erro:

    A errncia em cujo seio o homem se movimenta no algo semelhante a

    um abismo ao longo do qual o homem caminha e no qual cai de vez em

    quando. Pelo contrrio, a errncia participa da constituio ntima do ser-a qual o homem historial est abandonado(11).

    Traduzido em linguagem civilizada isso quer dizer apenas:

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    15/25

    O homem no alienado apenas de vez em quando; uma certa alienao

    mesmo parte da condio humana.

    Sendo assim, a tese final de Heidegger, de que a essncia da verdade liberdade e desvelamento dissimulador do ente s ganha sentido como uma

    forma equvoca e impressionante de dizer alguma coisa bem mais trivial,

    qual seja, que atravs do exerccio de nossa liberdade que nos tornamos

    capazes de chegar a grandes verdades, nas quais a natureza se revela, mas

    que, considerando que somos inevitavelmente falveis, nosso acertos so

    fatalmente associados a erros, como foi demonstrado por todo o curso da

    histria... Quando nos desfazemos dos equvocos e dos artifcios retrico-

    literrios que geram a pseudoprofundidade, o que resta arrisca-se a se tornar

    penosamente trivial, denunciando Heidegger como o mestre supremo na

    tcnica de inflar bales metafsicos.

    Um ltimo exemplo a tese de Heidegger sobre o nada em O que

    Metafsica(12). Ela pode ser resumida assim. H um estado de nimo que

    nos revele o nada? Sentimentos como o tdio e a alegria revelam-nos a

    totalidade do ente e afastam-nos do nada. Mas h um sentimento raro, que

    o da mais profunda e originria angstia, que capaz de revelar-nos o nada.

    Nessa angstia de estranha tranquilidade, o ser-a (Dasein: o ser do homem)

    torna-se suspenso dentro do nada. Como a essncia do nada o nadificar, o

    nada nadifica o ser-a, conduzindo-o sua transcendncia, que um estar

    para alm do ente em sua totalidade que lhe foge. S nessa clara noite donada surge a abertura para o seu oposto, que o ente enquanto tal. Sem o

    nada o ser-a no teria a revelao do ente enquanto tal, no seria si-mesmo,

    no seria livre...

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    16/25

    Em que pese aquilo que no quero negar, originalidade, profundidade,

    fora sugestiva, a tese de Heidegger sobre o nada s parece ganhar sentido

    como uma exposio metafrica e hiperdimensionada de idias da psicologia

    profunda, nas quais a palavra nada vem no lugar de expresses comosentimento de vazio, que se referem ao afastamento dos objetos

    intencionais na angstia (a fuga do ente em sua totalidade). Tendo isso em

    mente, a tese de Heidegger sobre o nada pode ser traduzida como algo ainda

    importante, embora menos portentoso, ou seja: certas formas de angstia

    produzem em ns um sentimento de vazio to profundo que faz com que as

    auto-iluses que permeiam e possibilitam a nossa existncia cotidiana

    percam a razo de existir; quando isso acontece tornamo-nos capazes de nos

    concentrar no essencial, passando a ver a ns mesmos e ao mundo ao redor

    de forma realista e desilusionada, tornando-nos por isso plenamente livres

    em nossos julgamentos e escolhas. As ltimas horas da vida de Don

    Quixote, quando este recuperou a lucidez, revendo em conscincia plena as

    absurdidades de sua vida pregressa, seria um exemplo dessa angstia de

    estranha tranquilidade referida por Heidegger.

    Enfim: se os usos metafricos de palavras como ser, ente, verdade,

    nada... fossem irresgatveis por apontarem para algo novo, para cuja

    descrio ainda no encontramos palavras, o discurso heideggeriano poderia

    adquirir a relevncia abissal por ele pretendida. Mas como as suas metforas

    s chegam a fazer sentido quando resgatadas em termos de antropologia

    filosfica, parece que sob esse prisma que a sua filosofia pode ser lida comalgum proveito.

    III

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    17/25

    Faamos agora algumas consideraes de ordem gentica. Como

    comeou a tradio continental? Quem foi o culpado? O grande iniciador

    dessa tradio, lamento informar, chamava-se Immanuel Kant(13).

    Descartes era claro; Spinoza e Leibniz tambm. Os empiristas eram todosmuito claros. Desde os pr-socrticos, passando por Plato, por Aristteles e

    por quase todos os filsofos medievais, a filosofia procedia atravs de

    argumentos que pelo menos aspiravam a clareza, ainda que esta acabasse

    quase sempre irremediavelmente turvada pelas dificuldades intrnsecas ao

    prprio questionamento filosfico. A regra era: nada de truques. Mas Kant

    fundou a tradio de fazer poeira em torno das idias. Sua desculpa foi dizer

    que no teve tempo de escrever a Crtica de maneira mais clara, mas

    sabemos que era apenas uma desculpa. Coisas que poderiam ser ditas

    claramente e em poucas palavras so apresentadas por ele de forma

    intrincada e altissonante, em um jargo obtuso e pedante, como se fossem

    revelaes de uma pitonisa prolixa. Dificuldades intrnsecas ao sistema

    que me parecem patentemente insuperveis so ocultadas atravs de

    emboladas argumentativas, como o caso da famosa deduo transcendental

    das categorias (cujo estudo, nas palavras de H. J. Paton, pode ser comparado

    travessia do grande deserto rabe). O problema que, como notou P. F.

    Strawson(14), Kant produziu grande mistificao mesclada a grandes

    insights, os quais fizeram de sua obra a mais influente e provavelmente a

    mais importante de toda a filosofia moderna. Essa estratgia, que permitiu a

    Kant colar as peas de seu sistema, foi rigorosamente assimilada por Fichte elevada maturidade no idealismo alemo. Um filsofo como Hegel

    tambm ele um homem de gnio produziu um sistema omniabrangente que

    se l como uma algarvia filosfica desmedidamente pretenciosa e confusa,

    cujos efeitos fulgurantes esto muito acima, certamente, dos mritos mais

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    18/25

    modestos que ele possui pela sugesto de idias seminais em domnios como

    os da filosofia da cultura, da histria e da arte. A continuao da estratgia

    de produzir um vendaval retrico em torno das idias com o objetivo de

    faz-las parecer mais profundas foi levada ao extremo pelo segundoHeidegger e por filsofos franceses como Gilles Deleuze e Jacques Derrida,

    nos quais cada vez mais o que encontramos uma nevoada de

    experimentalismo retrico descompromissado, que adquire as mais bizarras

    formas, mas que quando faz sentido o suficiente para poder ser traduzido em

    linguagem civilizada evidencia-se como banalidade ou bobagem.

    Como pretendo ter feito notar, h algo de inerentemente perverso nessas

    estratgias. Atravs do estilo continental de se fazer filosofia aprende-se a

    no considerar as questes com rigor e objetividade, priorizando artifcios

    retrico-discursivos que obscurescem o pensamento, que dificultam a

    deteco da verdade, e que transformam o discurso filosfico em uma

    maneira de fazer a cabea do leitor; como no h o objetivo de se chegar a

    um entendimento efetivo sobre coisa alguma, mas apenas o de produzir um

    efeito de aquiescncia e deslumbramento na audincia, o processo todo

    arrisca-se a se tornar emocional, intimidatrio e intrinsecamente desonesto,

    mesmo que institucionalmente respaldado e inconsciente. Brian Magee

    resumiu esse ponto de forma um tanto dura nas seguintes palavras:

    Como forma de treinamento mental a filosofia continental

    contraprodutiva: ela ensina os estudantes a se exprimireminautenticamente em um jargo morto mais do que em uma linguagem

    viva, portentosamente mais do que simplesmente, obscuramente mais do

    que claramente e a abandonar o argumento racional pela retrica. Ela

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    19/25

    ativamente treina-os a no pensar e a serem falsos; e ao fazer essas coisas

    ela corrompe as suas mentes(15).

    Pode-se aqui, em defesa da filosofia continental, apelar para o elementoesttico, sugerindo que a ela tambm pode ser concebida como arte. De fato,

    obras de filsofos como Deleuze e Derrida seriam melhor avaliadas em

    termos estticos. Quando Derrida publicou Glas, um livro com dois textos

    paralelos de quase trezentas pginas, um deles comentando a metafsica

    sistemtica de Hegel, o outro comentando a sodomia sistemtica de Jean

    Genet(16), o objetivo era claramente o de produzir um shocksemelhante ao

    que produzido por certas instalaes em artes visuais.

    Certo, mas ainda assim preciso apontar para o fato de que h uma

    diferena categorial relevante entre a situao do filsofo e a do artista,

    sendo isso o que costuma produzir tenses. Como notou Ernst Tugendhat,

    aprender filosofia no como aprender a danar(17). Quando aprendemos a

    danar no faz muita diferena entre uma forma e outra: uma pessoa pode

    danar o foxtrote pela manh e o maxixe noite. Mas em filosofia entra a

    questo da verdade. E quando duas filosofias sugerem solues opostas para

    um mesmo problema porque uma delas deve estar certa ou pelo menos

    mais prxima da verdade em um ou mais aspectos. O mesmo no ocorre

    com a arte. Obras de arte no competem entre si, uma delas sendo boa

    apenas se a outra for ruim e vice-versa. A arte no diretamente heurstica:

    com ela ns no pretendemos comunicar a verdade ou conduzir o intelecto.A arte apenas ilusoconsciente, e a grande arte iluso consciente capaz

    de produzir em nossas mentes ao menos uma aptido para uma ampliao de

    nossa compreenso da condio humana, o que pode (mas no precisa)

    orientar-nos em direo verdade. Esse carter no-diretivo da relao entre

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    20/25

    arte e verdade impede que a arte qua arte seja mistificadora. Mas o mesmo

    no podemos dizer de ao menos parte do que se escreve sob a rubrica de

    filosofia continental. Embora haja excees (como os devaneios de

    Bachelard, que so limtrofes arte e no pretendem nos impingir coisaalguma) o estilo continental no tanto o da iluso consciente, mas o de uma

    filosofia da iluso, oposta a da verdade. Produz-se iluses fazendo-se de

    conta que se trata da revelao da verdade, ou, se esta ltima for suposta no

    existir, ao menos de alguma coisa que se encontra alm da mera iluso,

    numa auto-indulgncia que tende a fazer desse estilo filosfico,

    diversamente da arte, uma atividade inevitavelmente mistificadora. O

    resultado, se ns levarmos as suas concluses demasiado a srio, pode ser

    oposto ao da experincia da obra de arte, terminando em um estreitamento

    dogmtico de nossas aptides para perceber novas e mais legtimas

    alternativas em nossa viso da realidade.

    Podemos nos perguntar pela razo da emergncia de uma filosofia da

    iluso em contraste com a filosofia da verdade. Uma razo pode ser

    encontrada em Nietzsche, um filsofo que por ser claro e usar argumentos

    metafricos, mas no retrico-confusivos, no pode ser confundido com os

    filsofos continentais que exemplificam as minhas consideraes. Para ele

    esse modo de filosofar seria uma manifestao da decadncia, do nihilismo,

    servindo fraqueza do ser humano que precisa da iluso para suportar a

    vida. Essa iluso pode ser propiciada pela religio, mas tambm pela retrica

    discursiva deliberadamente obscura e pseudoprofunda, to comum filosofia continental. Paradoxalmente, uma comparao nietzscheana entre

    Nietzsche e Heidegger sugere considerarmos o primeiro como o filsofo da

    afirmao destemida dos valores vitais e o ltimo como uma vtima do

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    21/25

    nihilismo, a refugiar-se em um universo de simulacros verbais sempre mais

    poticos e vazios.

    Quero terminar considerando algo acerca da relao entre filosofia

    continental e a sofstica. A filosofia continental por ns consideradadistingue-se por ser mais voltada para a produo de iluso do que para a

    aproximao da verdade. Se o filsofo continental, mais do que outros, um

    vendedor de iluses, no seria ele um exemplar daquilo que Plato chamou

    de sofista? Sem cair no grande exagero que seria dizer que a filosofia

    continental em si mesma sofista, quero sugerir que ela foi o principal veio

    do pensamento sofista no sculo XX, em alguns casos mais do que em

    outros.

    Contudo, como esse veio mistificatrio no de modo algum o nico, e

    como a filosofia analtica ou ps-analtica anglo-americana parece estar se

    tornando plenipotenciria, sou forado, para ser equitativo, a adicionar um

    breve excurso sobre os elementos sofsticos mais prximos das formas

    tradicionais que vigem dentro desse estilo filosfico. O primeiro e mais

    grave defeito da filosofia analtica contempornea foi ao meu ver apontado

    por P. F. Strawson e se chama cientismo(18). O cientismo consiste em se

    assimilar procedimentos e questionamentos filosficos aos das cincias

    particulares, importando standards de preciso, mtodos, terminologia e

    quadros conceituais de maneira excessiva e perversa. O resultado disso

    uma espcie de fragmentao positivista do campo da investigao

    filosfica, na qual ela perde o seu poder de sntese, a abrangncia quesempre a caracterizou, passando a ser satisfeita pela construo de uma

    multiplicidade de discusses localizadas e conflitantes umas com as outras,

    sem esperana de generalizao para alm disso. Wittgenstein e Habermas

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    22/25

    foram, cada um ao seu modo, os ltimos filsofos capazes de resistir a essa

    tendncia.

    Dentro do cientismo, h um procedimento que eu gostaria de apontar

    como particularmente problemtico e que emerge da falta de compromissoda investigao com a totalidade de nossa viso de mundo. Ele consiste no

    desenvolvimento de idias que se chocam de modo frontal e o que

    decisivo completamente gratuito com o senso comum, perdendo nisso o

    necessrio equilbrio reflexivo que bem ou mal havia sido conservado pela

    tradio filosfica(19). Nos Estados Unidos, o expoente fundador dessa

    tendncia foi W. V-O. Quine, particularmente com as suas famosas teses da

    indeterminao das traduo, da referncia etc. Embora essas teses sejam

    brilhantemente argumentadas e intelectualmente incitantes, ensinando-nos

    algo ao forar-nos a refut-las, isso no nos deve fechar os olhos para o fato

    de que elas so obviamente falsas. Como ouvi de J. R. Searle, a estratgia de

    Quine : Se voc chegar a uma concluso totalmente implausvel, no culpe

    o seu argumento; proclame-a uma descoberta!. Essa estratgia foi bem

    assimilada por filsofos como Saul Kripke (com a sua irresgatvel doutrina

    do batismo dos nomes prprios), Hilary Putnam (que acha que existem

    pensamentos fora das mentes) e David Lewis (que quer nos fazer acreditar

    que os mundos possveis existem), devido s liberdades propiciadas pela

    nfase formalista da filosofia da linguagem ideal da qual so herdeiros,

    tendo transbordado para fora dela em filsofos como Daniel Dennett (que

    escreveu um livro tentando demonstrar que a conscincia fenomenal noexiste) e ainda em Richard Rorty (que rejeita a possibilidade da

    epistemologia). Rorty , alis, um imaginoso escapista cujo pensamento se

    torna particularmente debilitador ao conjugar em um nico discurso as duas

    fontes de sofisma acima mencionadas: de um lado, a rejeio gratuita de

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    23/25

    intuies do senso comum, de outro, o recurso a estratgias retrico-

    literrias(20).

    Parece, pois, que o xamanismo filosfico mantm-se ainda hoje um

    fenmeno insidioso e ubquo que, a semelhana de um vrus, possui umprodigioso poder de transmutao, que o permite adaptar-se a qualquer novo

    estilo filosfico que venha a aparecer.

    Notas:* Nur muss man sich nicht allzu ngstlich qulen;/ Denn eben wo Begriffefehlen,/ Da stellt ein Wort zur rechten Zeit sich ein,/ Mit Worten lsst sich

    trefflich streiten,/ Mit Worten ein System bereiten,/ An Worte lsst sichtrefflich glauben,/ Von einem Wort lsst sich kein Jota rauben.1Ideologia da Sociedade Industrial (trad. bras. de The Unidimentional Man)(Zahar: Rio de Janeiro 1969), p. 83. Penso haver um bvio elemento deingenuidade na identificao feita por Marcuse do papel social da mais-represso: a dessublimao repressiva efetivamente existe, mas no , comoele pensava, um produto dispensvel do capitalismo. Com efeito, uma dasiluses difundidas por Marx e assimilada de maneira no-crtica pela escolade Frankfurt foi uma crena idealizada na capacidade humana de viver emconscincia plena da realidade, caso as condies econmicas o possibilitem uma crena negada por Freud e de modo muito vvido tambm porescritores como Dostoivski e Ibsen. H nisso uma certa reduo dopsicolgico ao social. Se levarmos em conta esse fato, veremos que adessublimao repressiva no um produto dispensvel, imposto pela ordemeconmica, mas algo que nasce expontaneamente como a melhor alternativaque o ser humano encontra, em uma sociedade inevitavelmente estratificadae diversificada, para fazer face s contingncias que o envolvem.2 Ver Verdade e Poder e Nietzsche, a Genealogia e a Histria, em M.Foucault: A Genealogia do Poder(ed. Roberto Machado), Rio de Janeiro,

    1979. A favor de Foucault j foi notado que ele nunca defendeuexplicitamente essa idia; contudo, como ele a deu a entender, por que eleno desfez o mal-entendido negando-a?3 Foucault sugere que os discursos, i.e., as produes culturais resultantesdas epistemes (dos pressupostos das manifestaes culturais de cada poca)no so comparveis entre si, sendo as suas verdades relativas. A tese paralela de Tomas Kuhn, que sugeriu serem os paradigmas cientficos (i.e.,

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    24/25

    os pressupostos da cincias de cada poca) no-comparveis entre si(incomensurveis), sendo as suas verdades tambm relativas. A tentao amesma, mas a concluso de Kuhn (concernente cincia) muito menosadmissvel que a de Foucault, se a ltima ficar restrita aos saberes no-cientficos produzidos pela cultura.4 P. Edwards: Heideggers quest for Being, Philosophy, 64, 1989.5 Sobre isso bom notar que Heidegger sugeriu em Ser e Tempo que pelofato de (1) formularmos a pergunta sobre o sentido do ser nos tornamos,como seres humanos (Daseins) (2) o tipo de entidade cujo ser deve serpropriamente questionado, o que para ele d sua antropologia o direito detornar-se ontologia fundamental. Mas nada garante que (1) implica em (2)!Por exemplo: o fato de eu formular uma pergunta sobre a natureza de coisasparticulares, e o fato de eu mesmo ser uma coisa particular, em nada garanteque eu prprio deva ser o objeto mais apropriado de uma investigao sobre

    a natureza das coisas particulares. Essa maneira de ver implausvel, porm,est na base de uma frtil perverso antropocntrica de nossa maneira de vera filosofia e a sua histria.6 M. Heidegger:Introduo Metafsica (Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro1999), p. 116.7 G. Frege: Die Grundlagen der Mathematik(Hamburg 1988 (1884)), par.53.8 P. Edwards:Ibid, p. 464.9 M. Heidegger: Sobre a Essncia da Verdade, in col. OsPensadores, vol.XLV (Abril Cultural: So Paulo 1973), pp. 340-41 (Vom Wesen derWahrheit, in Wegmarken (Vittorio Klostermann: Frankfurt 1996) pp. 177-202).10 Sobre a Essncia da Verdade, p. 340 (Cf. Wegmarken, p. 195). Essemtodo de parafrasear em linguagem comum o que certos filsofosescrevem foi usado por Popper em sua crtica a Adorno em Razo ouRevoluo?, publicado em K. R. Popper, Lgica das Cincias Sociais(Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro 1978), p. 45.11 Sobre a Essncia da Verdade p. 340-1 (Cf.Wegmarken, p. 196).12 Que Metafsica?, in col.. Os Pensadores (Abril: So Paulo 1973)

    (Was ist Metaphysik?, Wegmarken,pp. 103-122)13 Devo essa sugesto ao professor Fernando Fleck, com quem tiveenriquecedoras conversaes acerca do tema desse artigo.14 P. F. Strawson: The Bounds of Sense, London 1966, prefcio. Pode-seargumentar que esse um juzo demasiado severo, pois a falta de clarezapode ter um valor heurstico ao permitir que certas vises de mundo sejamsistematicamente desenvolvidas at o limite de sua racionalidade. Isso

  • 7/29/2019 Claudio Filosofia e Xamanismo

    25/25

    verdade, creio, quanto a filsofos analticos continentais, como oWittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus (a virtude mxima dafilosofia continental est, eu creio, em produzir vises sistematizadoras eabrangentes do mundo, o que inclui um momento de sntese especulativalegtima que a torna diferente da filosofia analtica, usualmente modeladapor uma fragmentao positivista do universo do saber). A questo da faltade clareza , contudo, quantitativa. H um limite para alm do qual o uso derecursos retrico-discursivos deixa de sugerir possibilidades interessantes ecomea a assumir uma funo tuteladora e mesmo limitadora do pensar.15 B. Magee: Confessions of a Philosopher, New York 1999, p. 429.16 P. Strathern:Derrida em 90 Minutos (Zahar: Rio de Janeiro, 2002), p. 61.17 E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einfhrung in die AnalytischeSprachphilosophie (Suhrkamp: Frankfurt 1976), prefcio.18 P. F. Strawson: Scepticism and Naturalism: Some Varieties (Columbia

    University Press: New York 1985).19 Considerando a Weltanschauung religiosa da poca, o choque com osenso comum em Leibniz, por exemplo, nada tem de gratuito. Em filosofiaanaltica o equilbrio reflexivo ideal encontra-se, creio, a meio caminho entrea superficialidade de uma filosofia da linguagem ordinria que no vaimuito alm de uma lexicografia, e a arbitrariedade de uma filosofia dalinguagem ideal que depende da constante inveno de novos usos para aspalavras da linguagem ordinria sem encontrar justificao suficiente paratal, como hoje cada vez mais freqente.20 Para uma crtica a Rorty e ao relativismo contemporneo, ver o livro deSusan Haack, Manifesto of a Passionate Moderate: Unfashionable Essays(Chicago University Press: Chicago 1998).