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RÉPLICA EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 664-8/01 Cleonice Maria Resende Promotora de Justiça Leslie Marques de Carvalho Promotora de Justiça Luciana Bertini Leitão Promotora de Justiça Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal. Autos nº 664-8/01 O MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS, por suas representantes infra-assinadas, Promotoras de Justiça da Infância e da Juventude, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, vem à presença de V.Exa., na forma do artigo 326 do Código de Processo Civil, diante da contestação de fls. 187/90, apresentar a RÉPLICA aduzindo o que se segue: Às fls. 113/18, quando instado a manifestar-se acerca dos pedidos liminares, e na peça contestatória, às fls. 187/94, o réu aduziu que o pedido do autor não tem fundamento legal, já que o artigo 227 é norma programática. Diz que a prioridade estabelecida no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente restringe-se ao campo das “políticas públicas” e “às áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. 261 Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 261–285, jan./jun. 2002.

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RÉPLICA EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 664-8/01

Cleonice Maria ResendePromotora de JustiçaLeslie Marques de CarvalhoPromotora de JustiçaLuciana Bertini LeitãoPromotora de Justiça

Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude doDistrito Federal.

Autos nº 664-8/01

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL ETERRITÓRIOS, por suas representantes infra-assinadas, Promotoras de Justiçada Infância e da Juventude, no uso de suas atribuições legais e constitucionais,vem à presença de V.Exa., na forma do artigo 326 do Código de ProcessoCivil, diante da contestação de fls. 187/90, apresentar a

RÉPLICA

aduzindo o que se segue:

Às fls. 113/18, quando instado a manifestar-se acerca dos pedidosliminares, e na peça contestatória, às fls. 187/94, o réu aduziu que o pedido doautor não tem fundamento legal, já que o artigo 227 é norma programática. Dizque a prioridade estabelecida no artigo 4º do Estatuto da Criança e doAdolescente restringe-se ao campo das “políticas públicas” e “às áreasrelacionadas com a proteção à infância e à juventude”.

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Sustenta que o autor não demonstrou que o Distrito Federal tenha dadoprioridade a outro programa que não ao da defesa dos direitos da criança e doadolescente.

Às fls.115, relata que o Distrito Federal tem cumprido o seu dever, “noslimites de suas possibilidades”. Salienta que não existe lei que obrigue o DistritoFederal a realizar as providências requeridas na petição inicial e que, por isso, oMinistério Público fez, ele próprio, uma perícia, cujas conclusões teriatransformado em pedidos judiciais. Alega que os pedidos iniciais estão fora darealidade e carecem de fundamento legal.

No entanto, reconhece, em sede de contestação, que os ConselhosTutelares funcionam de forma precária, como todos os demais órgãos do governo,argumentando, ainda, que tal situação não autoriza a reformulação desses órgãosna esfera judicial. Enfatiza que o desejo de reformular a sociedade por meioexclusivo de ordens judiciais fere o princípio da independência dos três Poderes.

Sobre os pedidos liminares deduzidos na inicial, salienta que sãoinconstitucionais, pois consistem em medidas administrativas não previstas emlei (intromissão na esfera do Poder Executivo). Assevera, ainda, que os pedidosliminares implicam grande esforço administrativo e, em caso de deferimento,tornaria praticamente impossível o retorno à situação anterior, que considera sero pressuposto da liminar não satisfativa.

Na peça contestatória, ao comentar o depoimento dos dois ConselheirosTutelares colhidos durante a audiência realizada no dia 02/05/01 (fls. 127/136),afirma que esses têm interesse nos pedidos deduzidos na inicial, acrescentandoque teria havido exagero das testemunhas em relatar as dificuldades do órgão.

Na oportunidade da referida audiência, procedeu-se também à oitiva doCoordenador dos Conselhos Tutelares do DF (fls. 133/6), o qual secomprometeu a juntar aos autos documentos que comprovassem parte de suasalegações, tendo o MM Juiz concedido-lhe o prazo de cinco dias para talfinalidade. No entanto, não consta nos autos notícias de que tais documentostenham sido apresentados a este Juízo.

É o breve relatório.

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1 DA AÇÃO CAUTELAR INOMINADA INCIDENTAL

Preliminarmente, informa o Ministério Público que, verificando a LeiOrçamentária Anual nº 2.657/00, que prevê o orçamento do Distrito Federalpara o ano de 2001, mais especificamente no tocante ao orçamento destinado àSecretaria de Estado de Ação Social, constatou-se a existência de verba específicapara a manutenção e funcionamento dos Conselhos Tutelares (Programa deTrabalho nº 04122010027670005), no valor total de R$188.000,00 (cento eoitenta e oito mil reais), conforme cópia da legislação anexa.

Em razão disso, foi proposta uma Ação Cautelar Inominada Incidental aesta Ação Civil Pública, também com pedido liminar, na forma da legislaçãovigente, para determinar ao Distrito Federal que reserve a quantia de R$23.258,50(vinte e três mil e duzentos e cinqüenta e oito reais e cinqüenta centavos), daverba específica para a manutenção e funcionamento dos Conselhos Tutelares(Programa de Trabalho nº 04122010027670005), prevista na Lei OrçamentáriaAnual nº 2657/00, no prazo de 48 horas, a fim de possibilitar a execução dasdecisões judiciais a serem proferidas na presente Ação Civil Pública, em casode deferimento total ou parcial dos pedidos constantes da petição inicial.

2 DA SITUAÇÃO ATUAL DO CONSELHO TUTELAR DESANTA MARIA

É ponto pacífico a penúria em que se encontra o Conselho Tutelar deSanta Maria, tendo inclusive o réu reconhecido que “o funcionamento dosConselhos Tutelares dá-se de forma precária”. Tal constatação pode sercomprovada não só pela documentação juntada à inicial, bem como pelosdepoimentos prestados na audiência realizada neste Juízo.

Naquela assentada, foram colhidos os depoimentos dos ConselheirosTutelares, M.R.R.C. e P.M.A. M., e, ainda, do Coordenador dos ConselhosTutelares no DF, Dr. R.E.T. Tais provas retratam a realidade em que se encontrao Conselho Tutelar de Santa Maria, bem como o tratamento que o Governo doDistrito Federal tem dispensado aos Conselhos Tutelares já instalados.

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Nas declarações prestadas pelos membros dos Conselhos Tutelares,pode-se perceber a total falta de estrutura em que funciona tão importante órgão.Confirmou-se os fatos alegados na peça introdutória em todos os seus termos.Das carências apontadas pelo Ministério Público, averiguou-se que apenas foisuprida a necessidade das linhas telefônicas fixas, já que, atualmente, o órgãoconta com três dessas linhas.

Vale mencionar, ainda, que os computadores ali existentes não foramadquiridos com verba do Distrito Federal, mas com o dinheiro do convênioentre o Governo do Distrito Federal e o Ministério da Justiça para instalação doSistema de Informação para a Infância e Juventude-SIPIA.

No que se refere aos demais pedidos, constatou-se pelos depoimentosque a cota de gasolina foi reduzida e que há uma constante troca de veículos,sendo que o veículo que, atualmente, serve ao Conselho encontra-se em péssimascondições de uso.

As testemunhas informaram, também, que há três meses não recebiammaterial de expediente e de limpeza, bem como que são os próprios ConselheirosTutelares que fazem o serviço de limpeza, atendem o telefone, entre outrasatividades administrativas, já que, atualmente, não contam com nenhum servidorpara a realização de tais tarefas. Noticiaram, inclusive, que têm comprado comos seus próprios recursos alguns materiais ou recebido doações da comunidade.

Por outro lado, extrai-se que a realidade descrita pelo Coordenador dosConselhos Tutelares diverge da retratada pelos Conselheiros. Depreende-se doseu depoimento que a Coordenadoria parece não conhecer tão profundamentea realidade do Conselho de Santa Maria. Por diversas vezes, relata que assolicitações dos Conselheiros foram atendidas, contradizendo as declaraçõesdos dois membros daquele Conselho e o conteúdo da documentação juntadaaos autos pelo Ministério Público.

Ressalte-se que o Coordenador informou que possui diversos documentoscomprobatórios das ações implementadas pelo governo em prol do Conselhode Santa Maria, tais como: “todas as requisições feitas pelo Conselho Tutelar de

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Santa Maria, a título de expediente, e também a cópia dos recibos do materialfornecido”; documentos comprobatórios da instalação dos computadoresadquiridos com a verba do SIPIA e vários outros ofícios. Em face disso, o MMJuiz concedeu-lhe o prazo de cinco dias para a juntada aos autos, o que nãoocorreu até a presente data.

Da mesma forma, o digno Procurador de Justiça noticiou às fls. 115 aexistência de “ofícios exarados por diversos Conselhos, dando conta de querecebe periodicamente, bem como que as obras de suas sedes definitivasestão em andamento”. Ocorre que tais documentos apenas foram mencionadose, até a presente data, não foram carreados aos autos. Ademais, o alegadoconteúdo de tais ofícios está em dissonância com os depoimentos prestadospelos Conselheiros Tutelares, bem como com os documentos anexados aosautos.

Por outro lado, a chamada Coordenadoria Técnico-Administrativa criadapela Lei Distrital nº 2.640/00 não existe na prática (a propósito, o cargo deCoordenador dos Conselhos Tutelares tem recebido questionamentos quanto àsua legalidade, até pelo CONANDA), já que o Coordenador é o único integrantedesse órgão – atual presidente do Conselho de Direito da Criança e doAdolescente-CDCA. O referido Coordenador vale-se de toda a estruturaadministrativa do CDCA, que não é um órgão governamental, para tentar suprira ausência de apoio administrativo do próprio Governo do Distrito Federal.

Diante de todos os depoimentos acima analisados, pode-se perceber queo governo não elaborou plano de apoio de manutenção e funcionamento dosConselhos Tutelares, conforme determinado não só no ECA, como também naLei Distrital nº 2.640/00, o que implica a falta de atendimento continuado dassolitações de material em geral, troca e retirada constante de bens que lhe sãodestinados (principalmente veículos e linhas telefônicas), ausência de servidorese, quando muito, lotação temporária de pessoal sem qualificação para as atividadesali desenvolvidas.

Restou patente, também, que o apoio administrativo ao Conselho Tutelarde Santa Maria, quando ofertado, dá-se de forma assistemática, com atendimento

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insuficiente e descontínuo das necessidades verificadas, com a agravante dasfreqüentes promessas verbais, dificilmente cumpridas.

Essa falta de estrutura do Conselho Tutelar de Santa Maria, amplamentecomprovada nos autos, impede que os Conselheiros Tutelares cumpramadequadamente suas funções estatutárias.

A alegação da defesa de que os depoimentos dos Conselheiros Tutelaresnão merecem a credibilidade de um testemunho isento é totalmente descabida.Isso porque trata-se de agentes autônomos, eleitos pela sociedade, para defenderseus interesses, e não meros servidores públicos, como foi abordado pelo dignoProcurador. Não lhes cabe a defesa da melhoria das condições de trabalho doservidor público em geral, mas sim a defesa da causa da infância e da juventude.Cabe esclarecer que seus cargos têm duração de três anos e, no caso do Conselhode Santa Maria, no próximo ano, já se iniciará o processo eleitoral para renovaçãode seus membros. Ademais, ambos os Conselheiros ouvidos em audiência sãooriundos de outros órgãos públicos e, terminados os seus mandatos, retornarãoaos cargos de origem. Assim, não usufruirão de eventuais melhorias verificadas,caso deferidos os pedidos deduzidos neste feito.

3 DA DISCRICIONARIEDADE DO ATO ADMINISTRATIVO

O réu alega em sua defesa que os pedidos deduzidos na inicial não têmamparo legal, por entender que não existe lei determinando ao Governo doDistrito Federal a forma como deve agir, no caso dos Conselhos Tutelares. Talalegação é desprovida de qualquer fundamento jurídico. Conforme detalhadona inicial, a obrigação do Poder Público em criar e estruturar os ConselhosTutelares decorre do artigo 227 da Constituição Federal, do Estatuto da Criançae do Adolescente, especialmente do artigo 134, parágrafo único, e, ainda, daLei Distrital nº 2.640/00, em seu artigo 19, caput e parágrafo único.

Aduz o reú que a absoluta prioridade “restringe-se ao campo das ‘políticassociais públicas’ e a ‘áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”,como se quisesse dizer que a estruturação do Conselho Tutelar não estivesseincluída nesses dispositivos legais. No entanto, a destinação privilegiada de

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recursos públicos para áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude(art. 4º, parágrafo único, do ECA) abrange, necessariamente, o Conselho Tutelar,que desenvolve serviço público de proteção à infância e à juventude, por vontadedo próprio legislador (art. 134, do ECA).

É indiscutível a responsabilidade e dever do Poder Público no atendimentodas reivindicações do Conselho Tutelar, pois a desestruturação do referido órgão,amplamente comprovada nos autos, coloca óbice ao alcance do princípioconstitucional da proteção integral à criança e ao adolescente.

No caso em apreço, o legislador não deu a opção ao Poder Executivo denão instalar ou de instalar precariamente o Conselho Tutelar. A lei obrigou oPoder Público a priorizar a infância e a juventude e, no caso dos ConselhosTutelares, foi taxativa ao determinar, no artigo 134, parágrafo único, do ECA,que constará da lei orçamentária municipal previsão dos recursos necessáriosao funcionamento do Conselho Tutelar.

Com efeito, o legislador fez constar no artigo supracitado a expressão“recursos necessários”, não dando ao Administrador a liberdade de não destinarrecursos ou de destinar recursos insuficientes, isto é, menos do que o necessáriopara a manutenção e funcionamento adequado.

Não cabe a alegação de que todos os órgãos do Distrito Federal passampor situação de dificuldade de recursos – o que, diga-se de passagem, é bastantequestionável, já que a realidade da maioria dos órgãos do DF é bem diferenteda verificada nos Conselhos Tutelares. E ainda que a precariedade da situaçãofosse generalizada, caberia ao réu comprovar que, mesmo tendo dado prioridadeabsoluta na destinação de recursos à área da infância e da juventude, esses nãoforam suficientes para satisfazer as necessidades dessa área.

É público e notório que o Distrito Federal vem desrespeitando o princípioda prioridade absoluta ao construir, por exemplo, pontes, metrô, anéis viários,viadutos, entre outros, e, ao mesmo tempo, alegar a inexistência de recursospara a área da infância e da juventude. Ora, enquanto não fosse satisfeita a

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prioridade absoluta nessa área, a Administração não poderia realizar outrosinvestimentos, ainda que em benefício da sociedade.

No caso dos autos, o que se vê é a inércia e a omissão do Governo doDistrito Federal em organizar e estruturar de forma adequada o Conselho Tutelarde Santa Maria. Essa inércia se verifica até mesmo na execução dos recursosorçamentários legalmente previstos, conforme se comprovou na ação cautelarincidental proposta. O descaso da Administração e/ou a sua ineficiência emgastar os parcos recursos já previstos para a manutenção e funcionamento dosConselhos Tutelares não podem ser acobertados pela invocação dadiscricionariedade do ato administrativo.

Nesse sentido, vale transcrever os ensinamentos de HELY LOPESMEIRELLES1:

“pouca ou nenhuma liberdade sobra ao administrador públicopara deixar de praticar atos de sua competência legal. Daí porquea omissão da autoridade ou o silêncio da Administração, quandodeva agir ou manifestar-se, gera responsabilidade para o agenteomisso e autoriza a obtenção do ato omitivo pela via judicial...”

Na presente ação civil pública, o Ministério Público pleiteia a tutelajurisdicional dos direitos da criança e do adolescente da cidade de Santa Maria,especificamente o direito a ter um Conselho Tutelar bem estruturado e exercendoas funções estatutárias de forma eficiente e célere, porque verificou grave lesãoa direito constitucional e legalmente protegido.

No caso da estruturação do Conselho Tutelar de Santa Maria, houveomissão do Distrito Federal no que se refere ao não fornecimento regular dematerial em geral (nos últimos três meses não houve fornecimento, embora

1 MEIRELLES, Hely Lopes in: Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. São Paulo : Ed. Malheiros,

p. 90.

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solicitado pelos Conselheiros Tutelares); à não destinação de espaço físicoapropriado; à não lotação de servidores de apoio e técnicos (os servidores deapoio que estavam lotados no órgão foram retirados, ao passo que a equipetécnica nunca existiu) e à não disponibilização de veículos em número suficiente.

Como prega LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN2:

“...o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobrea oportunidade e conveniência de implementação de políticaspúblicas discriminadas na ordem social e constitucional, pois talrestou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborouas normas de integração.”

Como visto, não há discricionariedade na omissão do Poder Público naimplementação das políticas públicas, em especial aquelas destinadas à infânciae à juventude, em face do princípio da prioridade absoluta. Por conseguinte,não há discricionariedade a ser discutida nestes autos.

Se o Poder Público tivesse cumprido o seu papel, não haveria necessidadede o Ministério Público pleitear em Juízo a concretização do direito asseguradona Constituição e na legislação correlata.

Por outro lado, ainda que se tratasse de discussão acerca dadiscricionariedade reservada à Administração em certos assuntos, há que seressaltar que, embora se confira ao administrador o poder de escolha dos motivos(conveniência e oportunidade) e do objeto (conteúdo) de alguns atosadministrativos, essa liberdade deve ser exercida nos limites permitidos pela lei,que demarca a sua extensão. O ato discricionário deve estar subordinado àforma, à competência e, especialmente, à finalidade do ato, que é o interessepúblico.

2FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. in: Políticas Públicas – a responsabilidade do administradore o Ministério Público. Ed. Max Limonad, 2000, p. 95.

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É certo que é reservado a todos os poderes certa margem dediscricionariedade, já que não se mostra possível o legislador fixar de antemãouma única conduta a ser adotada pelo administardor em cada situação fáticaverificada. No entanto, como explica CELSO ANTONIO BANDEIRA DEMELLO3:

“A discrição (...) é a mais completa prova de que a lei sempreimpõe o comportamento ótimo. Procurar-se-á demonstrar quequando a lei regula discricionariamente uma dada situação, ela ofaz desse modo exatamente porque não aceita do administradoroutra conduta que não seja aquela capaz de satisfazerexcelentemente a finalidade legal”.

Em apelação interposta em autos de ação civil pública movida peloMinistério Público de São Paulo-SP, que tinha por finalidade compelir os PoderesPúblicos a prestar assistência social básica à “população de rua”, da capital doEstado, em que a sentença acolheu parcialmente o pedido ministerial, assimdecidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo-TJSP:

“Ação Civil Pública - Legitimidade - Interferência no PoderExecutivo - Inexistência - Tratando-se de atendimento socialprevisto na Constituição da República, é de se reconhecer aexistência de direito difuso a ser tutelado por ação civil pública. Adeterminação para implementação de política pública, já previstana Constituição da República não caracteriza ingerência noPoder Executivo. Recursos a que se negam provimento”.(APC 61.146.5/0-00 - TJSP - 22/06/99)

E ainda sobre o mesmo tema, decidiu a 7ª Câmara Cível do EgrégioTribunal de Justiça do Rio Grande do Sul-TJRS, na Apelação n° 596.017897,julgada em 13/12/97, em acórdão assim ementado:

3MELLO, Celso Antonio Bandeira de. in: Discricionariedade de controle judicial. São Paulo:Malheiros Editores, 1992.

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“A CF, em seu art. 227, define como prioridade absoluta asquestões de interesse da criança e do adolescente; assim, nãopode o Estado-membro, alegando insuficiência orçamentária,desobrigar-se da implantação de programa de internação esemiliberdade para adolescentes infratores, podendo o MinistérioPúblico ajuizar ação civil pública para que a AdministraçãoEstadual cumpra tal previsão legal, não se tratando, na hipótese,de afronta ao poder discricionário do administrador público, masde exigir-lhe a observância de mandamento constitucional.” (RT743/132).

Na mesma apelação citada, ao transcrever os argumentos da sentença delavra do Juiz de Direito João Batista Costa Saraiva, oriunda da Comarca deSanto Ângelo/RS, o Desembargador Relator SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA(TJRS) fez consignar em seu acórdão:

“A discricionariedade não pode afrontar a CF, mais ainda o textocontundente e claro como é o contido no art. 227, caput, daquela,ao se referir à “absoluta prioridade” das obrigações estatais noatinente às crianças e adolescentes.”

RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, ao tratar do tema “A açãocivil pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticasPúblicas”4, assim discorre:

“Destarte, na política da educação nacional, quando a ConstituiçãoFederal estabelece que os Municípios “atuarão prioritariamenteno ensino fundamental e na educação infantil”, devendo aplicarcerto percentual mínimo “na manutenção e desenvolvimento doensino”(art. 211, § 2º, art. 212, caput), aí não se cuida de conceitosvagos ou indeterminados, nem tampouco de valores sujeitos amanejo discricionário, e, menos ainda, de normas programáticas,a serem implementadas ou não, segundo as contingências domomento. O mesmo se pode dizer de outras políticas públicas,como as concernentes à assistência social (CF, art. 203;

4MANCUSO,

Rodolfo de Camargo. “A ação civil pública como instrumento de controle judicial das

chamadas políticas Públicas”. In: Ação Civil Pública: 15 anos. Coordenador Édis Milaré. Ed. RT- p. 725.

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Lei 8.742/93); criança e adolescentes (CF, art. 227; Lei 8.069/90),(...).” Grifo nosso.

E, mais adiante, o mesmo autor5, expõe que:

“É dizer, no plano das políticas públicas, onde e quando aConstituição Federal estabelece um fazer, ou uma abstenção,automaticamente fica assegurada a possibilidade de cobrançadessas condutas comissiva ou omissiva, em face da autoridadee/ou órgão competente, (...).”. Grifo nosso.

Há muito tem-se alegado que o Poder Judiciário não pode se imiscuir naesfera do Poder Executivo e, ainda, que determinadas decisões judiciais, aoadentrarem em uma análise mais minuciosa do ato administrativo, estariam ferindoa teoria da separação dos Poderes. Muitos sustentam tais teorias, já ultrapassadas,mesmo em casos em que os agentes públicos não estejam cumprindo com osseus deveres constitucional ou legalmente estabelecidos. No entanto, taisalegações devem ser incondicionalmente repelidas, em face da nova ótica emque se insere o Poder Judiciário, por ser detentor de poder político. A ação doMagistrado, nos tempos atuais, deve ser a de um agente de transformação darealidade, principalmente quando esta não se apresentar compatível com apreservação dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados.

Essa nova contextualização do Poder Judiciário não implica osuperdimensionamento da função jurisdicional, nem ingerência nas funções dosoutros Poderes. No entanto, não há como afastar o juiz da análise das chamadasopções discricionárias dos demais Poderes, cuidando, porém, para não substituiro critério do administrador ou do legislador pelo seu próprio.

Quando o Poder Judiciário é provocado para analisar a possibilidade deter havido algum erro dos agentes públicos, seja por ação ou omissão, estáapenas colaborando para a real identificação do interesse público, que é o fimúnico a ser perseguido por todos os Poderes. Na verdade, não se está afirmando

5MANCUSO,

Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 726.

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que o Judiciário deve substituir a Administração Pública em sua atividade típica,mas analisar concretamente se houve falha na execução das leis.

Na Apelação n° 596.017.987 - TJRS, já citada, ainda transcrevendo osargumentos da sentença de lavra do Juiz de Direito JOÃO BATISTA COSTASARAIVA, oriunda da Comarca de Santo Ângelo/RS, o Desembargador RelatorSérgio Gischkow Pereira (TJRS) afirma em seu acórdão6,

“O que deve acabar, isso sim, é a caolha perspectiva de que há umconfronto entre os poderes cada vez que há uma ação judicialenvolvendo atos dos demais poderes. Isso deve ser visto comnaturalidade, repito, pois se todas as manifestações do Poder– que em si é uno, não se olvide - necessariamente devem buscaro bem comum, as eventuais demandas judiciais que forempropostas, colocando em dúvida a preservação de tal finalidade,nada mais representam do que uma oportunidade que o sistemaoferece para uma última e detida análise da questão, buscandogarantir a efetiva consecução do interesse público.”

Discorre JOSIANE ROSE PETRY VERONESE7 , acerca do papel doJuiz da Infância e da Juventude:

“A ineficiência do Poder Público no fornecimento de programssociais que garantam melhores condições de saúde, educação,moradia, profissionalização, dentre outros, tornou gigantesca adívida deste para com a infância e juventude brasileiras. De sorteque a possibilidade de cobrar judicialmente do Estado, por seudescaso na aplicação de políticas sociais condizentes, significaum passo importante nesse processo de democratização, deresgate efetivo da cidadania”.(...)

“Por fim, na área que envolve os interesses difusos de crianças eadolescentes, sobreleva o “novo” papel do juiz, que terá porobjetivo a busca e a concretização da justiça e da eqüidade nolugar da fria aplicação dos textos legais; isto se dará, sobretudo,

7VERONESE, Josiane Rose Petry. In Interesses difusos e direitos da criança e do adolescente. Ed.Del Rey, 1997, p. 205/6.

6Apelação 596.017897, da 7a. Cível do TJRS, julgada em 13.12.97.

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na esfera processual, tendo em vista que muitos dos instrumentosexistentes, consoante o modelo clássico, não mais satisfazem aessas novas pretensões, que alcançam cada vez mais uma gamaconsiderável de crianças e adolescentes”.

4 DAS NORMAS PROGRAMÁTICAS

Não obstante se tenham progressivamente positivado os direitos sociais,o que, inegavelmente, representou importante passo em direção à sua conquistapelas classes sociais excluídas e maneira de dar-lhes a garantia formal – sem aqual, certamente, apenas com muita dificuldade e esforço hermenêutico poderiamser argüidos, protegidos, tutelados –, a fixação de prerrogativas sociais, nasConstituições, com sua classificação como normas programáticas, foi a soluçãoencontrada para a manutenção de um sistema concentrador de riquezas e paraapaziguar os conflitos sociais.

Afinal, considerando-se que elas não possuiriam efetividade ou eficáciasocial imediata, não vinculariam nem o legislador, a impor-lhes um prazo devigência em respeito ao consagrado princípio da separação dos poderes, nem oexecutor da lei a concretizá-las, já que, como não haveria termo para seucumprimento, não se poderia condenar o administrador por não o fazer, até anteo limite da reserva do possível.

A crítica mais contundente às chamadas normas “programáticas” éjustamente essa: a de que seriam totalmente ineficazes no sentido de concretizaros mandamentos constitucionais e de efetivar as garantias expostas na letra mortada Constituição.

Pode-se citar grandes autores que criticam a classificação de normaprogramática. Alguns pregam sua morte; outros, mudanças em sua interpretação.

Na concepção de CANOTILHO8:

8Cf. CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional. p. 1050/1051.

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“(...) marcando uma decidida ruptura em relação à doutrina clássica,pode e deve falar-se em ‘morte’ das normas constitucionaisprogramáticas. Existem, é certo, normas-fim, normas tarefas,normas programa que ‘impõe uma atividade’ e ‘dirigem’materialmente a concretização constitucional. O sentido destasnormas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional:‘simples programas’, ‘exortações morais’, ‘declarações’,‘sentenças políticas’, ‘aforismos políticos’, ‘promessas’, ‘apelosao legislador’, programas futuros’, juridicamente desprovidos dequalquer vinculatividade. (...) Concretizando melhor, a positividadejurídico-constitucional das normas programáticas significafundamentalmente: (1) vinculação do legislador, de formapermantente, à sua realização (imposição constitucional); (2)vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendoestes tomá-las em consideração como directivas materiaspermanentes, em qualquer dos momentos da actividadeconcretizadora (legislação, execução e jurisdição); (3) vinculação,na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos,justificando a eventual censura, sob forma deinconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam”.

Outro autor que estudou o tema e busca conferir efetividade ao textoconstitucional, ROLANDO E. PINA9 expõe em seu livro críticas à concepçãode normas programáticas:

“La teoría sobre cláusulas constitucionales programáticaspretende que faltando ley especialmente reglamentaria de lacláusula, ésta no tiene vigencia.(...) Estamos en contra de esta calificación de ciertas cláusulasconstitucionales porque entendemos que es una estrategia deno vigencia de cláusulas constitucionales mal expresada, yaque para justificar una orientación de política legislativa sepretende vulnerar la máxima jerarquía normativa de la cláusulapor medio de un argumento - la cláusula sólo tiene vigenciacuando se dicte ley al efecto - que es violatorio de principiosjurídicos básicos y, en última instancia, que implica concedercierto grado de poder constituyente al Poder Legislativo”.

9Cf. PINA, Rolando E. Cláusulas constitucionales Operativas y Programáticas, Editora Astrea. p.24/25.

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PAULO BONAVIDES e EROS ROBERTO GRAU10 também entendemque, hodiernamente, não se pode mais entender que as normas programáticassejam ineficazes ou apenas diretivas ou orientações ao intérprete, mas sim que,em especial, as normas atributivas de direitos sociais e econômicos devem sercompreendidas como eficazes, diretamente aplicáveis e vinculantes do Legislativo,Executivo e Judiciário, pois não se pode subverter a ordem condicionando aefetividade da Constituição à legislação ordinária ou a atos administrativos oudecisões em casos concretos.

Essa necessidade premente de superação da concepção clássica e efetivaconcretização da vontade do povo, detentor do poder soberano, não pode maisesperar, pois no Brasil a exclusão social e a concentração de renda chegam emníveis insuportáveis, gerando uma enorme classe social de miseráveis, em especialas crianças e adolescentes, totalmente excluídos do sistema educacional, de saúdee de uma renda mínima, gerando problemas sociais graves, entre os quais umaviolência incontrolável.

Já se faz sentir nos Tribunais Superiores essa urgência em se efetivar osmandamentos constitucionais. Podemos verificar as importantes decisões, a seguir:

“ROMS 11183/PR - 1999/0083884-0 - MINISTRO JOSÉ DELGADOCONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DESEGURANÇA OBJETIVANDO O FORNECIMENTO DEMEDICAMENTO (RILUZOL/RILUTEK) POR ENTE PÚBLICO ÀPESSOA PORTADORA DE DOENÇA GRAVE: ESCLEROSELATERAL AMIOTRÓFICA PELA. PROTEÇÃO DE DIREITOSFUNDAMENTAIS. DIREITO À VIDA (ART. 5º, CAPUT, CF/88) EDIREITO À SAÚDE (ARTS. 6º E 196, CF/88). ILEGALIDADE DAAUTORIDADE COATORA NA EXIGÊNCIA DE CUMPRIMENTODE FORMALIDADE BUROCRÁTICA.1 - A existência, a validade, a eficácia e a efetividade da Democraciaestá na prática dos atos administrativos do Estado voltados parao homem. A eventual ausência de cumprimento de uma formalidadeburocrática exigida não pode ser óbice suficiente para impedir aconcessão da medida porque não retira, de forma alguma, a

10Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de DireitoConstitucional. p. 223. GRAU, Eros Roberto. Direito,conceitos e normas jurídicas, p. 126.

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gravidade e a urgência da situação da recorrente: a busca paragarantia do maior de todos os bens, que é a própria vida.2 - É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos,indistintamente, o direito à saúde, que é fundamental e estáconsagrado na Constituição da República nos artigos 6º e 196.3 - Diante da negativa/omissão do Estado em prestar atendimentoà população carente, que não possui meios para a compra demedicamentos necessários à sua sobrevivência, a jurisprudênciavem se fortalecendo no sentido de emitir preceitos pelos quais osnecessitados podem alcançar o benefício almejado (STF, AGnº 238.328/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 11/05/99; STJ, REspnº 249.026/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ 26/06/2000).4 - Despicienda de quaisquer comentários a discussão a respeitode ser ou não a regra dos arts. 6º e 196, da CF/88, normasprogramáticas ou de eficácia imediata. Nenhuma regrahermenêutica pode sobrepor-se ao princípio maior estabelecido,em 1988, na Constituição Brasileira, de que “a saúde é direito detodos e dever do Estado” (art. 196).5 - Tendo em vista as particularidades do caso concreto, faz-seimprescindível interpretar a lei de forma mais humana, teleológica,em que princípios de ordem ético-jurídica conduzam ao únicodesfecho justo: decidir pela preservação da vida.6 - Não se pode apegar, de forma rígida, à letra fria da lei, e sim,considerá-la com temperamentos, tendo-se em vista a intençãodo legislador, mormente perante preceitos maiores insculpidos naCarta Magna garantidores do direito à saúde, à vida e à dignidadehumana, devendo-se ressaltar o atendimento das necessidadesbásicas dos cidadãos.7 - Recurso ordinário provido para o fim de compelir o ente público(Estado do Paraná) a fornecer o medicamento Riluzol (Rilutek)indicado para o tratamento da enfermidade da recorrente.CABIMENTO, ESTADO, OBRIGAÇÃO, FORNECIMENTO,MEDICAMENTO, RECORRENTE, HIPÓTESE, FALTA,CONDIÇÃO ECONÔMICA, AQUISIÇÃO, EXCLUSIVIDADE,MEDICAMENTO, OBJETIVO, TRATAMENTO MÉDICO,DOENÇA GRAVE, DOENÇA INCURÁVEL, IRRELEVÃNCIA,DOENTE, DESCUMPRIMENTO, FORMALIDADE, EXIGÊNCIA,AUTORIDADE COATORA, NECESSIDADE, OBSERVÂNCIA,PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL, GARANTIA, DIREITO À VIDA,À SAÚDE.”“STF - E M E N T A: PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOADESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDAE À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE

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MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODERPÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF)- RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDEREPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONALINDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativajurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pelaprópria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídicoconstitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, demaneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular– e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas quevisem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores dovírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêuticae médico-hospitalar. – O direito à saúde - além de qualificar-secomo direito fundamental que assiste a todas as pessoas– representa conseqüência constitucional indissociável do direitoà vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucionalde sua atuação no plano da organização federativa brasileira, nãopode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população,sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em gravecomportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DANORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LAEM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. – Ocaráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política– que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem,no plano institucional, a organização federativa do Estadobrasileiro – não pode converter-se em promessa constitucionalinconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justasexpectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, demaneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, porum gesto irresponsável de infidelidade governamental ao quedetermina a própria Lei Fundamental do Estado.DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOASCARENTES.- O reconhecimento judicial da validade jurídica de programasde distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes,inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividadea preceitos fundamentais da Constituição da República (arts.5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, umgesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas,especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a nãoser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencialdignidade. Precedentes do STF”.

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Ao se tratar os Direitos Fundamentais como direitos, quer-se dizer que aeles, necessariamente, correspondem obrigações, caso contrário, não passariamde meros valores de ordem moral ou ética.

A denominação de normas programáticas somente gera dificuldades aosaplicadores e aos destinatários, que não têm noção e segurança acerca do quepodem e como podem exigir de seu governo e de particulares, por seapresentarem como conduta obrigatória, a qual, se não cumprida, não acarretasanções. Depreende-se uma nítida hipocrisia legal.

Resta à hermenêutica e aos aplicadores do direito minimizarem o problema,definindo os efeitos e a aplicabilidade de tais normas que ordenam, proíbem epermitem num futuro indefinido, sem prazo de carência delimitado e sem sanção,pois os detentores do poder ainda não levam a sério tais direitos e a realidadesocial.

É preciso ficar alerta para as colocações de ROLANDO E. PINA11,segundo o qual:

“1. Al adjudicar a una cláusula menor vigencia que a otras, pretendeestablecer desigualdad de jerarquía entre las normasconstitucionales.2. Porque al aceptar que es por ley reglamentaria como sóloadquiere vigencia la cláusula constitucional, pretendeestablecer que una ley del Poder Legislativo tiene capacidadpara conceder vigencia a la norma constitucional, lo queimplica: a) que se adjudique a la ley del Poder Legislativo maiorjerarquía que a la norma del poder constituyente; b) que seviole la separación de los poderes y se sustraiga al PoderJudicial, en especial a la Corte Suprema, la faculdad decontrolar la constitucionalidad de las leyes, o sea laconcordancia y coherencia de la ley del Poder Legislativo comla vigência de la cláusula constitucional, ajustando la vigenciade aquélla a ésta”.

11Cf. PINA, Rolando E. Op. cit., p. 62-63

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Assiste razão ao doutrinador acima referido, pois, de fato, caso se admitaa não efetividade das normas ditas programáticas, o antigo Estado de leistorna-se um Estado de administração. No que se refere ao Poder Legislativo, asnormas programáticas não podem estar submetidas a leis infraconstitucionaispara sua aplicação concreta. Devem ser auto-executáveis, portanto. Casocontrário, seria admitir a revogação ou suplantamento do poder constituinteoriginário pelo poder constituído inferior, o qual poderia regulamentar as normasquando lhe conviesse ou mesmo não o fazer. Se são direitos, são exeqüíveis. Sesão fundamentais, mais urgente, então, torna-se seu exercício.

A auto-aplicabilidade dos Direitos Fundamentais é, pois, indispensávelgarantia de sua eficácia, cabendo, portanto, aos tribunais a tarefa de efetivaremas normas constitucionais, ainda que não regulamentadas, de forma que seatenham a recursos técnicos e objetivos oferecidos pelo Direito e sua Ciência.Nota-se que não se deve basear exclusivamente no estrito texto legal, sob penade adotar-se conduta eminentemente positivista e legalista, mas, de qualquermaneira, os recursos utilizados para a interpretação hão de ser, necessariamente,objetivos.

Ademais, grande dificuldade se verifica na inexistência entre osdoutrinadores de um critério para a definição de determinada norma comoprogramática. Há juristas que estipulam a determinação de uma norma comovinculante a partir da averiguação da possibilidade de constatação de sua lesãopelo Tribunal Constitucional do país – no caso brasileiro, o Supremo TribunalFederal – STF, já que a ele cabe a análise de questões constitucionais.

No entanto, particularmente, em relação aos direitos fundamentais dacriança e do adolescente, a não implementação do disposto no artigo 19, e seuparágrafo 1º, da Lei Distrital nº 2640/00, evidencia a lesão a direito constitucionalfundamental, bem como a norma principiológica da prioridade absoluta, sendo,por conseguinte, perfeitamente dotada de inteligibilidade para sua constataçãopelo juiz de primeiro grau (competente para presidir o processo devido ao controlede constitucionalidade difuso adotado nacionalmente) ou mesmo pelo STF, otribunal pátrio legítimo para o julgamento, em última instância, de causas queenvolvam controvérsias de natureza constitucional.

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Deve-se exigir a imediaticidade do estabelecimento de açõesgovernamentais que busquem a realização empírica das ordens emanadas dasnormas constitucionais e legais. Imprescindível é, exatamente, o direcionamentodos atos públicos – legislativos e administrativos –, para aquela realização, sobpena de inconstitucionalidade por omissão (passível de Ação Direta de mesmonome ou de Mandado de Injunção), em caso de inércia do Estado, ou por ação(argüível por Ação Direta de Inconstitucionalidade, por Ação, Mandado deSegurança, ou Ação Popular, conforme o bem lesado), na hipótese de efetivaçãode conduta atentatória àqueles preceitos constitucionais.

Portanto, se as ações governamentais pretendem ser constitucionais – como,naturalmente, todas deveriam ser –, a máquina estatal não se pode colocarsubmissa a serviço de oligarquias econômicas e burocráticas.

Consoante os ensinamentos do doutrinador ROBERT ALEXY12,desrespeitar algum direito fundamental, seja por ação ou, como é mais comum,por omissão, é uma incoerência, pois se está: derrogando normas nada menosdo que constitucionais, elaboradas e ratificadas pelo próprio Estado.

Caso isso ocorra, compete aos lesados legitimados e, primordialmente,ao Ministério Público, interpor as ações cabíveis para defesa daqueles direitosessenciais ofendidos, como ocorreu, no caso em análise, no que se refere àlesão dos direitos das crianças e dos adolescentes de Santa Maria.

Não se pode desprezar a realidade constitucional que declara os direitossociais não apenas por meio de princípios – esses sim, passíveis de ponderaçõese mesmo de negação de acordo com o caso concreto –, mas também por meiode regras, insuscetíveis, por sua natureza, de qualquer ponderação, sendo oucompletamente válidas e eficazes ou, em caso contrário, desprovidas de qualquervalidade ou eficácia, situação essa incompatível com as mais basilares efundamentais normas, oriundas da Constituição Federal, orientadoras de todo oordenamento legal e jurídico nacional.

12Cf. ALEXY, Robert. Derecho y Razón Prática, 2.ed. BÉFDP, nº 30, , 1998. p. 7-33

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Inegavelmente, o ordenamento legal, em qualquer Estado regido pelosistema do Direito Continental ou Positivado, é o primeiro instrumento no qualse deve pautar o aplicador, e a Lei Maior brasileira é muito clara ao afirmar aauto-aplicabilidade dos Direitos Fundamentais, em seu artigo 5º. Assim, aeficácia imediata nada mais faz do que atender à especial força vinculante daConstituição – que dela, obrigatoriamente, goza, dado ser geradora, por siprópria, de direitos subjetivos, sem necessidade de mediação legislativa, seja noâmbito de atuação dos poderes públicos, seja entre os entes privados.

Para a constatação dessa inerente auto-aplicabilidade dos direitos sociais,basta-se considerar a regra jurídica geral de que direitos a prestações positivas,seja por parte do Estado seja pelos indivíduos, apenas são tornados eficazes,isto é, somente são suscetíveis de argüição na ocorrência de seu fato gerador:o fato gerador dos direitos sociais é, exatamente, a simples condição de pessoahumana do indivíduo, o que faz com que, por se tratar de ser humano,necessariamente, ele tenha direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, àsegurança, à previdência social, entre outros.

No caso dos autos, um Conselho Tutelar atuante viabiliza a concretizaçãodos direitos fundamentais da criança e do adolescente, como, por exemplo, oacesso e permanência na escola; o acesso à rede pública de saúde, enfim, o zelopelo desenvolvimento físico, psicológico e intelectual, dentro dos princípios dadignidade do ser humano.

Legal e juridicamente, não há justificativa técnica palpável que negue adeterminação, imposição e cumprimento do texto constitucional, atributos essesque lhe são inerentes. Obstáculos administrativos ou econômicos alegados, serealmente presentes, não são matérias jurídicas. Imperativos legais, aliás,constitucionais, e mais, fundamentais, existem para serem cumpridos e nãodotados apenas de mera disposição formal, ou não seriam nem imperativos nem,muito menos, fundamentais.

As normas programáticas representam autênticas normas de justiça sociale, nesse ponto, a Constituição deixa vir à tona o seu papel ímpar no processo detransformação social.

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Diante desse papel relevante impõe-se a superação da concepção clássicade eficácia, aplicabilidade e efetividade das normas constitucionais programáticase uma reformulação desses conceitos, buscando atribuir-lhes concretização,eficácia positiva, com o cumprimento da Constituição, independentemente daexistência ou não de normas reguladoras e de condições materiais.

É necessária uma mudança na mentalidade dos detentores do poder, deforma que a Constituição seja vista como Dirigente e Vinculante relativamente atodos os poderes públicos.

É imprescindível que se cumpra o preceito constitucional que confereaplicação imediata aos direitos fundamentais, ditos programáticos, aplicando,conseqüente e imediatamente o artigo 227, da CF, no que tange à prioridadeabsoluta à infância e à juventude, o qual está regulamentado e detalhado noEstatuto da Criança e do Adolescente. No que se refere ao Conselho Tutelar,órgão imprescindível à efetivação da garantia supracitada, o detalhamento danorma constitucional citada está disposto no artigo 134, parágrafo único, doECA e artigo 19, e seu parágrafo primeiro, da Lei Distrital 2.640/00.

Considerando todos os pontos citados, atingir-se-á uma interpretaçãoque conferirá operatividade às cláusulas constitucionais, ditas programáticas, epropiciará a justiça social, demonstrando-se, assim, o real poder transformadorda Constituição.

5 DOS PEDIDOS LIMINARES

Se deferidas as liminares, como espera o Ministério Público, tal providênciavirá apenas assegurar que os Conselheiros Tutelares de Santa Maria prestem àcomunidade local um atendimento mínimo na proteção da criança e doadolescente, distante ainda do ideal.

Não há antecipação do pedido principal, visto que as providênciaspreliminares apenas visam a assegurar as condições mínimas de funcionamentodo Conselho Tutelar de Santa Maria, sendo que, após a instrução probatória, sechegará ao conhecimento das condições indispensáveis ao funcionamentoadequado daquele órgão, de forma a se poder estipular quais são os recursos

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suficientes mencionados no pedido principal (item 5 da inicial). Portanto, o pedidoprincipal não se confunde, necessariamente, com os pedidos liminares, já que oque se pede nos primeiros é o quantum mínimo já estipulado e, no último, oquantum ideal, a ser estipulado. Assim, os pedidos liminares e principal apenastêm a mesma natureza, mas podem se diferenciar na quantidade.

Por sua vez, a alegação de caráter satisfativo das liminares não tem razãode ser, haja vista que nenhum dos pedidos implica grande investimentoadministrativo. Assim é porque, com relação ao mobiliário, linhas telefônicas,veículos, servidores, espaço físico, o pedido foi de destinação ou lotaçãoprovisória, conforme o caso, sendo, portanto, passível de reversão ao statusquo ante. Ademais, os bens e servidores a serem destinados ou lotados, dada anatureza do Conselho, como órgão vinculado à Administração, semprepertencerão a esta.

No que se refere à destinação de material de expediente, higiene e limpeza,embora não haja reversibilidade, tal questionamento não foi sequer trazido peloréu. Contudo, à guisa de argumentação, o deferimento desse pedido implica a“sobrevivência” do próprio Conselho, tornando-se impossível a alegação deque a eventual decisão judicial acolhendo o pedido liminar causará danosirreversíveis ao Distrito Federal. Impossível também haver decisão de méritodenegando o pedido de atendimento às solicitações de materiais em geral, feitaspelo Conselho Tutelar, por se tratar de obrigação prevista em lei.

Outrossim, ao contrário da argumentação esposada pelo digno Procurador,no sentido de que o deferimento dos pedidos liminares traria grande dificuldadede se retornar as coisas ao estado anterior, causando prejuízos à Administração,faz-se premente advertir que, o não atendimento das liminares, importaria danosirreversíveis e irreparáveis à população infanto-juvenil de Santa Maria, conformejá amplamente analisado na petição inicial. Assim, em obediência ao princípioda proporcionalidade, imprescindível a avaliação por este Juízo dos possíveisdanos a serem causados. Ao sopesar os direitos em discussão, a prioridade emgarantir os direitos das crianças e dos adolescentes de Santa Maria, em vez dese considerar possíveis danos à Administração, que na verdade não ocorreriamcomo visto acima, deve ser observada indiscutivelmente.

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Diante do exposto, o Ministério Público ratifica a petição inicial em todosos seus termos, inclusive quanto à necessidade de concessão das liminares,requerendo a procedência de todos os pedidos ali deduzidos.

Brasília-DF, 18 de junho de 2001.

CLEONICE MARIA RESENDEPromotora de Justiça

LESLIE MARQUES DE CARVALHOPromotora de Justiça

Obs.: A elaboração desta peça contou com a contribuição da Promotorade Justiça Luciana Medeiros Costa.

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