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Clientes versus Rebeldes Novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno IRLAN SIMÕES EDITORA MULTIFOCO Rio de Janeiro, 2017

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Clientes versus

RebeldesNovas culturas torcedoras nas

arenas do futebol moderno

I r l a n S I m õ eS

EDITORA MULTIFOCO

Rio de Janeiro, 2017

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Copyright © 2017 Irlan Simões

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob

quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores e autores.

EdIção Igor Serrano

REVISão Lucas Morais

CAPA Gian Brasil

dIAGRAMAção Karina Tenório

IMPRESSão E ACABAMENTo Gráfica Multifoco

Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno

SIMõeS, Irlan

1ª edição

Junho de 2017

ISBN: 978-85-5996-566-7

Editora Multifoco

Flaneur edição, Comunicação, Comércio e Produção Cultural LTDA.

Av. Henrique Valadares, 17b - Centro

20231-030 - Rio de Janeiro - RJ

Tel.: (21) 3958-8899

[email protected]

www.editoramultifoco.com.br

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Sumário

Prefácio 13Introdução 21

PARTE I - Clube, Jogador, Estádio e Torcida 41Capítulo 1 | Aquecimento 43Capítulo 2 | Do Jogo ao Esporte e ao Espetáculo 47Capítulo 3 | Indústria do Futebol 71Capítulo 4 | Plastic Football 95

PARTE II - Prezados Clientes: assistência nas arenas multiuso 109

Capítulo 5 | Matchday 111Capítulo 6 | De Leitch a Hillsborough 117Capítulo 7 | Modelo Inglês com American Way 135Capítulo 8 | Copa 2014: vetor da arenização à brasileira 153Capítulo 9 | Mineirão e Beira-Rio 179

PARTE III - Torcidas Rebeldes: resistências ao “futebol moderno” 207

Capítulo 10 | Esquenta 209Capítulo 11 | Torcedores que lutam 213Capítulo 12 | Mercantilização do futebol e formas

de resistência 227

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Capítulo 13 | Luta torcedora e direito à cidade 255Capítulo 14 | Resistência Azul Popular e Povo do Clube 283

Considerações Finais 309Referências 317

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PA r t e I

Clube, Jogador, Estádio e Torcida

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Capítulo 1

Aquecimento

O aquecimento é elemento central no futebol em sua ode ao preparo físico. Um movimento mal feito, uma fibra mal trabalha-da ou um esforço mal calculado são erros que comprometem um jogador e todo um elenco num esporte cada vez mais competitivo e intenso. Jogador, força-de-trabalho da produção de mercadorias futebolísticas, também é uma máquina observada e cuidada como um complexo sistema de fios, placas, fusíveis e soldas.

O trabalhador-máquina é desgastado ao limite para depois virar sucata. Até lá, deverá estar em seu melhor desempenho cada vez que for colocado à disposição para fazer a indústria girar. O aquecimento é o início de toda nova jornada, a partida planejada da planta para a produção de uma mercadoria que hoje é consu-mida de forma instantânea em diversos formatos, cores e sabo-res. O espetáculo do futebol não se armazena e nem se coloca na vitrine, é prontamente devorado por uma massa cada vez maior de consumidores e compradores vorazes e exigentes. A máquina quebrada deverá ser imediatamente descartada e substituída para que a produção não cesse.

Mas essa é apenas parte de toda uma história. A longa traje-tória de vida do futebol possui diversos momentos de destaque. Estudado e destrinchado na academia há mais de meio século, o jogo ainda provoca muita controvérsia entre seus investigadores, exigindo a esquematização de uma cronologia coerente, que dia-logue com várias áreas e perceba as diversas perspectivas e leituras já aplicadas até aqui.

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Por isso, o esforço nesta Parte I foi o de articular alguns au-tores brasileiros e estrangeiros que possuem relativo acordo sobre determinados acontecimentos e suas reverberações. Foram evita-das, portanto, abordagens mais romantizadas, com algumas in-consistências ou mesmo exacerbações factuais, como sóis ocorrer quando o tema futebol é lançado mão em alguma escrita, dada a paixão que inspira e o grande conjunto de significados que é capaz de elaborar.

Partiremos de um interesse maior em elencar as pistas e as evidências que permitem destacar os marcos históricos mais re-levantes para a compreensão das principais etapas do desenvolvi-mento de uma indústria do futebol mundializada. Captar cada um desses passos ao longo de uma linha do tempo permitirá fazer uma análise mais material dos elementos que “desviaram” essa indús-tria dos seus cursos, proporcionando uma compreensão ampla da totalidade – ainda que não conclusiva –, capaz de nortear estudos mais profundos sobre alguns temas específicos.

É dessa forma que atentaremos para as características que cer-cam os quatro elementos que vão no título dessa Parte I. O clube, como entidade básica da prática do futebol, e suas associações, fe-derações e ligas. O jogador, como trabalhador do futebol, em todas as reconfigurações das suas modalidades contratuais. O estádio, como o lugar do jogar e do torcer, em suas transformações e defor-mações. A torcida que, como falaremos mais adiante, será entendi-da como produtora do futebol.

Em Do Jogo ao Esporte e ao Espetáculo, partiremos dos pri-mórdios do futebol na Inglaterra e nos países vizinhos, analisan-do os passos “antecipados” dados na terra da rainha. Ainda nesse segmento, trataremos de um dos fenômenos mais intrigantes da virada do século XIX para XX, que é o processo de difusão e ex-pansão do futebol, tanto para países europeus como para países sul-americanos. Esse processo, também impulsionado pela expan-

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são dos interesses comerciais do império inglês, vai colocar todo o mundo em contato com a epidemia futebolística. Em menor ou em maior grau a depender do recorte geográfico feito, é possível dizer que esse processo se arrasta entre os anos de 1890 aos anos de 1910.

Adiante, no mesmo capítulo, trataremos do longo e conflituo-so processo de consolidação da profissionalização dos jogadores. Esse marco histórico se inicia ainda no ano de 1925 e, por uma motivação metodológica, optamos por esticá-lo na linha do tem-po até a década de 1950. Essa opção advém da necessidade de dar entendimento a elementos que se dão na quadra final dos anos de 1940, com o fim da II Guerra Mundial e a recuperação econômica das potências europeias; concomitante retomada da Copa do Mun-do FIFA – com sua quarta edição ocorrendo no Brasil –, bem como frisar a lenta consolidação internacional da profissionalização do jogador do futebol.

A proposta, portanto, é pensar o desenvolvimento do futebol “do jogo popular” (a sua prática espontânea e sem regras na rua), passando pela sua transformação em “esporte normatizado” (a consolidação de um corpo de regras, normas e a adoção de padrões espaciais), e encerrando na sua afirmação como grande “espetá-culo de profissionais” (nova indústria cultural com dinâmicas e funções particulares).

Teremos então superado os elementos necessários para que possamos tratar de uma Indústria do Futebol, título do capítulo se-guinte. Num primeiro momento será analisado o processo de mas-sificação do jogo a partir da formação de praças desportivas cada vez maiores, capazes de mobilizar públicos colossais. Captaremos como esses grandes palcos serão promovidos por governos diver-sos, sedentos da acumulação de capital social a partir do futebol, se valendo da sua função propaganda para direcionar a atenção e os afetos de assistências massificadas e concentradas.

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Ainda ali, avaliaremos o surgimento de novas tecnologias de comunicação, que oferecerão as condições para a midiatização do futebol, dando atenção aos marcos históricos que se dão desde os anos de 1950 até meados da década de 1980 (resguardados os des-compassos entre os diferentes países), quando perceberemos os tantos aspectos de redimensionamento simbólico e material dos elementos que compõem o futebol, na extensão da assistência e a formatação do jogo às “regras dos estúdios”.

Fecharemos o capítulo tratando da tomada da lógica neoliberal sobre o esporte, intensificando sua mercantilização e privatização e hipertrofiando os seus imperativos econômicos. Esse período, que se iniciaria nos anos de 1970, teria seu ápice ao longo dos anos de 1990, quando uma série de transformações de ordem organiza-tiva e institucional encontrará uma onda de mudanças aplicadas no epicentro dessa indústria, moldando-a aos novos pressupostos do negócio internacionalizado do esporte.

Por fim, em Plastic Football, capítulo que encerra a Parte I, será reservado para uma análise de movimentos mais recentes, da-tados já da virada da década de 2000/2010, e se apresentam como tendências para os anos seguintes. Serão destrinchados três aspec-tos daquela que alegamos ser a nova fase do futebol mundial: os “Magnatas e Barões”, novos proprietários dos grandes clubes do planeta; as “Ligas de Plástico”, torneios e ligas criados “em labora-tório” a partir de grandes projetos comerciais de grandes corpora-ções especializadas no ramo da indústria do entretenimento; e, por fim, os “Clube-empresa e clube-prefeitura”, esse formato de entida-de esportiva que se prolifera no futebol brasileiro a partir dos anos 1990. A proposta é concluir apontando os novos atores políticos e econômicos que se apresentam como linha de frente dessa nova indústria “fictícia” do futebol.

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Capítulo 2

Do Jogo ao Esporte e ao Espetáculo

Falar da história do futebol exige a explicação de que, antes mesmo que boa parte do mundo começasse a ter contato com esse esporte nos seus moldes modernos, normatizados pelos ingleses,13 a Inglaterra já assistia movimentos reestruturantes que só ocorre-riam nas principais ligas do mundo muitos anos depois.

O que se sabe de mais evidente sobre os primórdios do fute-bol até hoje é que o jogo passou a ser incorporado gradativamente por escolas designadas à alta sociedade britânica como forma de educação corporal e cívica. Cada uma dessas escolas teria o seu particular código de regras, que seriam moldados com o tempo para que competições pudessem ser praticadas entre elas. Em 1863, surge a Football Association, primeira liga do mundo, que sofrerá um baque em 1871, quando se estabelece uma cisão definitiva entre o football da associação daquele praticado por uma escola da região central do país. O jogo desta última ainda permitia o uso das mãos e o ataque violento ao adversário, e, por conta disso, passaria a se chamar de rugby, idêntico ao nome da instituição.14

Alguns esportes já eram profissionalizados na Grã-Bretanha, em especial aqueles que exerciam atração nas classes trabalhado-

13 Vários pontos diferentes do mundo registram jogos em que duas equipes disputavam um objeto esférico que deveria ser chutado na direção de balizas em lados opostos.

14 DAMO, A. Para o que der e vier: o pertencimento clubístico no futebol brasileiro a partir do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e seus torcedores. 1998. 247 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998.

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ras: o futebol ainda não era entendido assim. Com o passar do tempo, os clubes deixavam de se resumir a instituições de ensino e começavam a ser formados por diferentes tipos de associações, agora também atingindo setores da classe média e, em alguns ca-sos, comunidades religiosas em bairros operários.15

A partir da década de 1870, no entanto, industriais do norte e do centro da Inglaterra acabam permitindo que seus empregados atuem nos jogos de suas equipes, num longo processo de conflitos que se estabeleceu para com os clubes do sul do país. A adoção da remuneração desses operários acabou criando a distinção entre “amadores” e “profissionais”, ainda que não se tratasse de moda-lidades formais de pagamento, apenas uma retribuição ao tempo perdido fora do ambiente de trabalho.

O público que se aglomerava para assistir às partidas era cada vez maior e muito incentivados pela inserção de membros das clas-ses mais baixas no campo de jogo. Em 1874, o Aston Villa, clube mais popular de Londres, já cobrava ingressos para quem quisesse assistir às suas partidas, possibilitando, também, levantar mais re-cursos para pagar os prêmios. Essa nova realidade atrai cada vez mais numerosos públicos entre a classe trabalhadora. Os ricos dei-xavam gradualmente de atuar em campo para assumir posições gerenciais, ganhando relevância política na região na qual o clube e boa parte dos jogadores remunerados teriam se originado. Nos clu-bes mais aristocráticos ocorre a desistência dos membros da nobre-za da pratica do futebol, retornando a desenvolver os seus antigos laços de socialização em outras modalidades. Dessa forma, são os novos burgueses, em geral industriais, empresários e comerciantes bem sucedidos, que vão assumir a direção dos principais clubes, sob um novo ethos, distinto daqueles primeiros aristocratas.

15 KARAK, A. Accumulation by Dispossession: A Marxist history of the formation of the English Premier League. 2015.

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Vale considerar que, ainda em 1868, ocorre a primeira edição da Trade Union Congress, que formalizou a primeira grande orga-nização de unificação sindical do Reino Unido. Era um momento de ascensão das lutas operárias, o que explica o rápido crescimento de clubes ligados a patronatos que utilizavam o futebol como for-ma de apaziguamento das tensões com seus empregados. O histo-riador inglês E. P. Thompson oferece ótimas menções de como o tempo livre dos trabalhadores já era pensado como problema para os donos de fábricas: desde então, o próprio lazer era planejado como forma de disciplinamento e controle, portanto, uma das competências da administração das fábricas.16 Também não será à toa que os clubes do norte, em especial de Manchester e de Li-verpool, cidades industriais que buscavam fazer frente à capital, Londres, formariam a English Football League em 1888, a primei-ra liga profissional de futebol do mundo. A adesão dos clubes do restante do país se arrastaria até a conclusão definitiva em 1892 – e a essa altura já existiam mais de mil clubes no país.

Eric Hobsbawm, outro destacado historiador inglês, vai ob-servar como o clube do futebol compartilhava o mesmo espaço que a religião e a liderança política trabalhista nos corações e mentes dos operários das grandes cidades inglesas.17 A formação de uma “cultura torcedora” tipicamente operária começava a se dar rela-cionada aos clubes que identificassem determinadas localidades ou regiões onde estavam instalados e haviam sido criados.

Charles Critcher18 aponta que os elementos que cercavam o fu-tebol profissional – masculinidade, agressão, empatia física, vitória e identidade regional – proporcionavam uma atração na cultura da classe trabalhadora masculina equivalente a outras formas de

16 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Pau-lo: Cia das Letras, 1998.

17 HOBSBAWM, E. “A Produção em Massa de Tradições: Europa, 1879 e 1914”. In: HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (Org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 298.

18 CRITCHER, C. “Football Since The War”. In: CLARKE, J.; CTICHER, C.; JOHNSON, R. (org.). Working Class Culture: studies in history and theory. Londres: Hutchinson, 1979. p. 163.

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socialização já estabelecidas. O autor enfatiza as organizações de solidariedade como os public houses (bares com albergues de va-lores módicos), as previdências, as cooperativas e sindicatos, bem como os grupos de lazer de criadores de pombos, treinadores de cães e jogadores amadores.

O que se nota na Inglaterra é que a remuneração ao trabalha-dor do futebol já ocorria antes mesmo da regulamentação da sua atividade, que, por sua vez, só acontece quando a liga admite que é necessário formalização dos contratos. Marcelo W. Proni19 observa que a regulamentação se deu muito mais como uma necessidade dos clubes em controlar as exigências dos jogadores, estabelecen-do limites às remunerações e à troca de clubes, do que necessa-riamente de uma demanda trabalhista dessa nova categoria. É por isso que, no ano de 1900, os clubes acordaram em estabelecer uma regra de teto salarial: um valor limite para a remuneração dos jo-gadores que nenhum clube poderia transgredir.

Da mesma forma, o autor identifica que, nesse momento his-tórico, os clubes não se configuravam como empresas capitalistas e não eram orientados pelo lucro. Os dividendos dos dirigentes possuíam fins muito mais políticos, por conta da relevância po-lítica angariada pelas suas conquistas, e, ainda que os valores adquiridos nas bilheterias fossem crescentes, os clubes em geral eram deficitários e dependentes de uma postura paternalista de seus membros mais ricos.

De todo modo, cabe observar as novas formas de envolvimen-to que começavam a se estabelecer na virada do século. A consoli-dação de um público que ocupava os setores mais baratos, oriundo especialmente de classe trabalhadora urbanizada, começa a forma-tar o cenário dos estádios que veríamos ao longo de várias décadas

19 PRONI, M. W. Esporte-Espetáculo e Futebol-Empresa. 1998. 275 f. Tese (Doutorado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

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do século XX. Esse aspecto corresponde ao que queremos aqui di-zer por “cultura torcedora”.

A Inglaterra precede, portanto, antes mesmo da difusão do fu-tebol por todo o mundo, uma série de movimentos que vão se repli-car e se repetir nos primeiros países a adotar o jogo dos pés. Servia, então, de modelo antecipado. É só após boa parte dessas reestrutura-ções que o futebol começaria a chegar em outros cantos do mundo.

Epidemia futebolística transcontinental

A difusão do futebol pelo mundo dependeu muito da presença de trabalhadores ingleses em empresas que surgiam em diversos países, ou por meio do contato entre trabalhadores ingleses e de outras nacionalidades nas regiões portuárias. Para Gilmar Masca-renhas,20 os ingleses eram “portadores dos nexos globais, os agen-tes ‘demonstradores’ desta novidade esportiva, e a presença maior ou menor destes agentes implica no grau de exposição do lugar” à nova informação que era o futebol.

Analisando a difusão do esporte na Espanha, Ramon Llo-pis-Goig parte do mesmo princípio: são os centros industriais e as cidades com relevância portuária que recebem o futebol, não só pelo contato direto com britânicos já acostumados com o fu-tebol, mas pela capacidade de absorção de novidades e intercâm-bio de ideias.21 Não era para menos: consta que, entre 1881 e 1901, exatamente no período que acreditamos corresponder ao ápice da difusão e expansão internacional do futebol, aproximadamente 5 milhões de pessoas teriam deixado o Reino Unido para cumprir funções profissionais em outros países.22

20 MASCARENHAS, G. Várzeas, operários e futebol: uma outra geografia. GEOgraphia – Revista do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, Niterói, v. 4, n. 8, p. 84-92, 2002.

21 LLOPIS-GOIG, R. Claves etnoterritoriales de la historia del fútbol español. X Congreso de His-toria del Deporte, Sevilla. Novembro 2-5, 2005.

22 MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e Bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014. p. 39.

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Quando começa a se espalhar pelo mundo, o futebol já conta com uma conjuntura favorável para a sua “instalação”. As classes dominantes de muitos países já haviam adotado diversas práticas es-portivas, inspiradas pelos valores da modernidade que entravam em sintonia com o ideal republicano e capitalista liberal. Ainda no sé-culo XVIII, já haviam sido fundados diversos clubes, que passariam, não sem conflitos, a inserir o futebol dentro do rol de esportes prati-cados, na medida em que o jogo ia sendo disseminado por membros das comunidades britânicas que se espalhavam pelo mundo junto à industrialização e as trocas comerciais marítimas. São as cidades portuárias que serão privilegiadas nesse processo, inclusive na Amé-rica Latina, onde Buenos Aires e Montevideo são as pioneiras.

O Le Havre (1872), da França; o Quilmes, da Argentina (1887) e o Huelva, da Espanha (1889), nascem em anos muito próximos, possivelmente os primeiros clubes criados especificamente para o futebol fora da Inglaterra, não à toa, fundados por britânicos emi-grados. Juntos ao português Porto (1893), são os únicos clubes de futebol não britânicos na lista dos mais antigos do mundo.23

Aqui, vale destacar que, em 1894, o Barão de Coubertin fa-ria o convite a diversos aristocratas europeus para criar o Comitê Olímpico Internacional, que dois anos depois organizaria a pri-meira Olimpíadas moderna. O período era de crescimento de um ideal de “espírito esportivo” e de integração entre os povos, numa conjuntura de muitas disputas imperiais e intercapitalistas.

A Espanha foi o palco de um dos primeiros registros da práti-ca do futebol nos moldes ingleses e fora da ilha britânica, em 1878, por meio de trabalhadores das minas em Huelva. O primeiro tor-neio espanhol foi a Copa del Rey (1902), mas a primeira liga só vem a surgir em 1909, e a unificação consolidada em 1913, através de

23 Consta que em 1867 se daria a fundação do Harrow School Team, nos Estados Unidos. Por ser esse um país que não teve grande tradição no jogo ao longo de todo séc. XX, deixamos apenas o registro em nota. Cf. MASCARENHAS. op. cit., 2014. p. 41.

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clubes de círculos de elite.24 As divisões regionais do país vão atra-sar por um tempo a consolidação de uma liga em todo o território espanhol. Essa introdução, no entanto, pode ter se dado de forma dispersa e paralela em diversos pontos do país, devido à grande quantidade de portos que o país oferecia em sua costa.25 Algo pa-recido com o que ocorre na Itália, onde o futebol chega por meio de um industrial de Turim após viagem à Inglaterra, em 1887, mas outras formas de introdução teriam se dado em regiões ao sul da “bota”. Em 1906, o país funda sua primeira liga, ainda concentra-da no norte, sendo que a unificação só vai ocorrer mais de duas décadas depois, característica que se espelha em diversos outros aspectos da formação do Estado-nação italiano.

Na Alemanha, o futebol só aporta em meados dos anos de 1880 por meio de comerciantes ingleses na região portuária de Bre-men e Hamburgo, e tem sua consolidação pela fundação de uma liga em 1900 por clubes de integrantes da classe média, e rapida-mente atinge a classe trabalhadora. O esporte era considerado uma “doença inglesa” pela aristocracia local, o que explica a diferente forma de introdução.26 Trataremos melhor de alguns aspectos de tal “repulsa” germânica ao futebol mais adiante.27

A Argentina, que reivindica ainda hoje ser um dos primeiros lugares da prática do futebol fora da Inglaterra, cria seu primeiro campeonato em 1891, mas registros de quinze anos antes indicam que já se jogava futebol em muitos bairros populares, em especial nas regiões portuárias. Vale ressaltar que Buenos Aires já despon-tava como principal centro urbano para os interesses britânicos na América do Sul, com população maior que o Rio de Janeiro.

24 LLOPIS-GOIG, R. op. cit., 2005.25 MASCARENHAS, op. cit., 2014. p. 43.26 WYNN, A.The Goals of Government: The Politics of Football in Fascist Italy and Nazi Germany

Honors Theses - All. Paper 4, 2007.27 De antemão podemos dizer em acordo com Mascarenhas (2014, p. 69), que Estados Unidos,

França e Alemanha, cada qual com sua motivação histórica própria, compartilhavam da repul-sa aos hábitos britânicos. O football não passaria incólume.

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Apesar da “fundação” se resumir aos ciclos sociais de uma elite in-glesa, ele é favoravelmente espalhado pela presença de uma imensa quantidade de imigrantes italianos, e se difunde com velocidade pelo resto do país.

Essa particularidade terá peso central na difusão do futebol em toda a região do Prata, formando um polo em particular no continente. Montevideo acompanha muito de perto os movimen-tos ocorridos “do outro lado do rio”, fundando sua primeira liga em 1900, e, na medida em que a prática se expande por seu terri-tório, acabará por atingir o extremo sul do Brasil. Mais conectado econômica e culturalmente com essa região do que com a própria capital do Brasil, o estado do Rio Grande do Sul será objeto direto da influência dessa “via platina de difusão do futebol”.28

Em seu trabalho sobre a “geografia do futebol” brasileiro, Gil-mar Mascarenhas ressalta o aspecto particular dessa introdução, que se dá “quase simultaneamente por vários pontos desconectados en-tre si (mas conectados com o exterior), com incursões independentes no movimento conjunto da difusão”.29 É a partir desses aspectos que devemos seguir a noção de uma introdução “polinucleada”, cujas datas tidas como “oficiais”, muito próximas entre si, provam a tese. Afinal, estamos tratando de ligas que surgem com distâncias físicas de quase 4 mil quilômetros e pouco intercâmbio entre si.

No Brasil é lugar comum apontar que a primeira partida com respeito às regras oficiais aconteceu em 1895, graças a Charles Mil-ler, quando da sua volta de um período na Inglaterra, reuniu os jovens amigos do São Paulo Athletic Club para praticar o football. Para os nossos objetivos, mais vale apontar o surgimento dos pri-

28 Cf. CABO, A. Os primórdios do futebol uruguaio: da English high school inglesa à celestial garra charrúa. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011.

29 MASCARENHAS. op. cit., 2014. p. 49.

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meiros campeonatos amadores como marcos:30 São Paulo (1902),31 Salvador (1905)32 e Rio de Janeiro (1906).33 Maiores cidades do país à época, esses são os palcos das primeiras ligas de clubes de futebol do Brasil, por meio da prática de jovens de clubes ligados a colônias inglesas, à aristocracia nacional e/ou a círculos sociais burgueses. Vale considerar que isso acontece menos de uma década depois da abolição da escravidão e da proclamação da República.

Esses primeiros torneios amadores brasileiros são contempo-râneos da formação da Fédération Internationale de Football As-sociation (FIFA), entidade criada em 1904 para organizar o fute-bol a nível mundial, ainda que encontrasse diversos entraves para articular os interesses do já profissional futebol britânico. Outros torneios seriam criados em cidades brasileiras ainda naquela déca-da. Em João Pessoa e em Belém, isso acontece em 1908. Em 1911, os clubes do Rio de Janeiro e de São Paulo ensaiam o primeiro torneio interestadual com os campeões de cada estado, que se dariam sob diversas alcunhas nos anos seguintes. Em 1910, surge a primeira liga em Porto Alegre, no extremo sul do país, que representa um capítulo à parte do futebol brasileiro, como comentamos acima.

A dificuldade da troca de informações e de contato com a América do Sul, onde o futebol já mostrava estar se desenvolven-do, levaria à formação, em 1916, da Confederación Sudamericana de Fútbol (Conmebol), submetida à FIFA. A essa altura, outras ci-dades brasileiras já tinham suas ligas: a exemplo de Manaus (1914). Em 1915, nascem campeonatos em quatro grandes cidades brasi-leiras: Belo Horizonte, Curitiba, Recife e Fortaleza.

30 Para evitar a repetição das citações, deixaremos subentendido as referências aos primórdios do futebol das três cidades nas notas seguintes.

31 ANTUNES, Fátima Martin. Futebol de Fábrica em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Socio-logia), FFLCH-USP, 1992.

32 SANTOS, Henrique Sena: “Pugnas Renhidas”: futebol cultura e sociedade em Salvador. Disser-tação (Mestrado em História). DCHF, Universidade Estadual de Feira de Santana. 2012.

33 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do Futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). 1998. 380 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

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O que ocorre é que, no Brasil, membros de setores sociais alheios à elite começaram a se interessar pelo futebol que viam os ricos jogando, e que buscavam reproduzir com improviso e criati-vidade nas ruas. Estamos falando de uma massa de trabalhadores formais e informais que envolviam negros recém-libertos, mes-tiços pobres e imigrantes italianos, portugueses e espanhóis. Os já citados Miranda e Santos trazem relatos da primeira década do século, que contam sobre aglomerações de pessoas de baixa renda nos arredores dos jogos dos clubes de elite. Logicamente, represen-tando grande desgosto aos protagonistas.

A popularização do futebol, por assim dizer, é um momento que precisa ser frisado por significar uma ruptura com estrutu-ra do futebol amador elitista. Esse é um movimento que deve ser entendido em diversos sentidos. A prática livre e popular do fute-bol nas ruas, praças e terrenos baldios também alçou esse jogo a uma nova relação cotidiana com o meio social onde se desenvol-veu. Essas expressões do futebol popular eram sistematicamente desaprovadas pelos sportmen, condenadas na imprensa escrita e reprimidas pelos órgãos públicos. É interessante, porém, explicar esse movimento a partir da fundação de alguns clubes mais signi-ficativos nas primeiras décadas do século.

Primeiro, há a ampla criação de clubes mais modestos voltados para a prática do futebol, não relacionados aos clubes ricos de elite. Eles eram responsáveis, em grande medida, pela difusão do futebol nas classes populares. Os melhores exemplos são os “pretinhos” do Ypiranga (1906) em Salvador, fundado por estivadores; o “de valor inferior” Andarahy AC (1909, já extinto) no Rio de Janeiro e o “varzeano” Corinthians (1910) em São Paulo ambos diretamente fundados por operários.

Também podem ser entendidos nesse contexto clubes fun-dados por setores da classe média como o carioca Méier (1906), o Clube Atlético Mineiro (1908) e o pernambucano Santa Cruz

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(1914); ou por comerciantes como o carioca Madureira (1914) e a Associação Atlética da Bahia (1914), que, em alguns casos, aceita-vam de forma mais precoce a entrada de seus funcionários como jogadores, dentre eles negros e mestiços, também acordando paga-mento de prêmios por atuações – às vezes de forma simulada, para driblar as regras rígidas do amadorismo elitista.

A configuração de “clubes de colônias” – britânicas, germâni-cas, italianas, espanholas, sírias – representa um capítulo interessan-te da formação dos clubes brasileiros, mas explicam apenas parcial-mente a popularização do jogador de futebol. Apesar de ilustrarem a grande leva de imigração para o Brasil na virada do século, ainda são experiências de setores estrangeiros mais endinheirados das princi-pais cidades brasileiras das atuais regiões Sul e Sudeste. Em São Pau-lo, por exemplo, registra-se que, em 1920, imigrantes comandavam mais de 60% dos estabelecimentos comerciais, ao passo que estes formavam quase 18% da população (820 mil).

Entender a febre do futebol em São Paulo, cidade que mais recebia imigrantes em todo país, passa por visualizar o “futebol de várzea”, que era jogado pelos populares, boa parte deles imigrantes italianos e espanhóis de bairros operários. O mesmo tipo de recor-te que é preciso ser feito no Rio de Janeiro, ao se perceber o surgi-mento dos clubes de vilas operárias da zona norte e do subúrbio, distintos daqueles da endinheirada zona sul e das famílias mais requintadas da região. Em Salvador, essa leitura passa obrigatoria-mente pela identificação de espaços públicos, como praças e largos, onde capoeiras, batuqueiros e brinquedos de fogos de artifício se misturavam aos “babas” das “maltas de desocupados”.

Por outro lado, começam a se desenvolver times de futebol relacionados a fábricas, que levavam o nome da empresa, não ape-nas como forma apaziguamento das tensões com os trabalhadores, mas também como uma estratégia de publicidade da parte patro-nal. O carioca Bangu (1904) e o paulista Juventus (1909, com outro

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nome) são exemplos mais famosos desse tipo de clube. Ambos se inspiravam em experiências já feitas no exterior (principalmente na Inglaterra e na Itália), igual a diversos exemplos dentre os clubes criados em tecelagens e companhias ferroviárias e de gás.

Uma vez que a socialização operária se dava no ambiente da fábrica e do bairro, muitos clubes foram fundados com bases nesses laços sociais. Nei Jorge dos Santos Junior, procura distin-gui-los a partir de dois exemplos. O Bangu (1904) seria um “clube da fábrica”, fundado por trabalhadores da fábrica Banguê, que cedia o nome e recursos ao clube para sua promoção, sempre so-frendo a ingerência do patrão. O Andarahy (1909), por sua vez, seria um “clube de fábrica” por ter sido fundado por operários da fábrica Cruzeiro, que não vinculava a sua imagem ao time e nem intervia nas decisões diretivas, mas desempenhava um papel de patrocínio, cedendo terreno, complementando rendimentos, etc.34 A argumentação de Nei Junior tem valor porque formas de apoio financeiro e político sem intervenção diretiva nos clubes modestos não eram incomuns. O próprio Ypiranga, de Salvador, teria recorrido a grandes comerciantes locais para viabilizar a sua sobrevivência. O Corinthians, igualmente, teria recorrido a administradores de fábricas que pudessem contribuir com seus orçamentos para a estruturação do clube.

Essas vias de popularização, que colocaram diferentes tipos de trabalhadores braçais frente a clubes de jovens da alta socieda-de, causaria uma série de conflitos que se consubstanciaram em rompimentos de ligas. Era flagrante e largamente documentado o desinteresse dos clubes de elite em compartilhar as mesmas com-petições, campos e ambientes de trabalhadores braçais. As referên-cias aqui utilizadas provam que essas questões eram motivadas por fortes sentimentos racistas e elitistas. Não existia uma única liga,

34 SANTOS JUNIOR, N. J. A construção do sentimento local: o futebol nos arrabaldes de Andaraí e Bangu (1914-1923). 2012. 126 f. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universi-dade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

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mas diversas, espalhadas por diferentes regiões da cidade e com características bem distintas, seja pela origem dos clubes associa-dos, seja pela composição étnico-racial dos seus jogadores.

Em Salvador, essas divisões são mais dramáticas por se tratar de uma cidade praticamente sem transporte público. Sena dos Santos35 registra que o ground do Rio Vermelho, que foi fundado em 1907 e munido de maior estrutura, foi escolhido por uma das ligas dos clubes de elite e era considerado “muito distante” dos campos da Graça e da Pólvora, onde a liga dos clubes modes-tos alternava a ocupação com outra liga elitizada. A distância da primeira era de dez ou oito quilômetros das outras. O carioca Bangu, por exemplo, se deslocava mais de 40 km para competir na zona sul da cidade, distância facilmente percorrida pelos trens das industrializadas Rio de Janeiro e São Paulo, mas inviáveis para a estagnada Salvador.

Ainda assim uma contenda entre a Federação Brasileira de Sports (FBS) e a Federação Brasileira de Futebol (FBF), localizadas respectivamente no Rio de Janeiro e em São Paulo, atrasa a organi-zação do “futebol oficial” brasileiro até 1916, quando finalmente é fundada a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que passará a ditar a “legitimidade” ou não da liga que lhe conviesse. O período, frise-se, era marcado por forte discussão sobre os valores patriotas da recente república brasileira, impulsionado pela guerra mundial.

As divergências da popularização se agravam profundamente quando dos primeiros indícios de remuneração desses jogadores das classes populares, num fenômeno que acontece em todos os grandes países do futebol e, de certa forma, tendeu a se estender de forma ainda mais incisiva nos outros esportes olímpicos. A so-lução, na maioria dos estados brasileiros, foi a aceitação, por parte desses clubes aristocráticos, da escalação de jogadores das classes populares. Os ricos fundadores, claro, passaram a ocupar apenas

35 SANTOS, H.S, op. cit., 2012.

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os cargos diretivos das instituições, onde passaram a desfrutar dos dividendos políticos que a posição proporcionava.

O que pretendemos frisar quanto à popularização é esse pro-cesso em que jogadores de origem popular, ainda ligados aos seus ofícios nas fábricas, armazéns, portos etc., agora passavam a ser “aceitos” nos clubes de elite e de classe média, na medida em que seus fundadores migravam para as direções; ou mesmo passavam a fundar suas próprias agremiações, em que pesem as dificuldades financeiras para mantê-las em atividade (o que os fazia recorrer a uma relação de patronato).

Esse “deslocamento” dentro do que era o clube de futebol é extremamente relevante e condizente com o aumento da populari-dade do jogo nas cidades brasileiras. Revela a capacidade de instru-mentalização política que o jogo começa a oferecer ainda nos seus primórdios, que só aumentaria nos anos seguintes. Como veremos adiante, mais do que dividendos econômicos – esses, pelo contrá-rio, prejuízos – o jogo passava a atrair membros da alta sociedade pelo seu poder de capitalização social.

Profissão futebolista e a renda do clube

Entre os anos de 1914 e de 1918 ocorre a Primeira Guerra Mun-dial, acontecimento histórico que desestabiliza a estrutura forte-mente agrícola brasileira, favorece a incipiente industrialização e, com isso, proporciona a formação das grandes cidades nacionais. Esse período foi marcado pela consolidação de São Paulo enquanto importante centro urbano e pela estagnação econômica e política de Salvador. A capital baiana deixa de ter relevância não apenas pela sua distância geográfica do cinturão do poder e da produção de riquezas agrícola e industrial que envolvia os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro; mas por um entrave geral no plano econômico, incapacitada de adentrar na industrialização,

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perdendo população, prestígio e poder e se defasando em termos de infraestrutura.36

Ao mesmo tempo Belo Horizonte, fundada cerca de 20 anos antes para ser o centro administrativo de Minas Gerais, passava a ter maior relevância no cenário político e econômico e começava a se tornar uma grande cidade. Iniciava-se a última década do perío-do que seria chamado de República Velha, marcada pelo domínio das oligarquias rurais paulistas e mineira, que insistiam na manu-tenção do Brasil enquanto país agroexportador. O Rio de Janeiro, enquanto capital federal, era a maior cidade do Brasil, ainda conta-va com o dobro da população de São Paulo.

O Brasil teria recebido cerca de 1,5 milhões de imigrantes nas décadas de 1910 e 1920. No plano internacional, a revolução so-viética em 1917 causaria um estado de alerta contra formas varia-das de organizações de trabalhadores em todo o mundo. Por outro lado, com o fim da guerra, diversos países tentavam se reconstruir.

Ampliavam-se os registros de aglomerações ao redor dos cam-pos de jogo, inclusive por integrantes de setores populares. Com o passar do tempo, são construídos os primeiros campos com arqui-bancada no Brasil. Em 1919, é inaugurado o estádio das Laranjei-ras, pertencente ao Fluminense, primeira praça brasileira nos mol-des adotados internacionalmente. A adoção de uma estrutura mais arrojada, com capacidade para 18 mil espectadores – inédito para os padrões nacionais da época – favorecia a captação de recursos pelo clube com a venda de ingressos.

O movimento de aquisição de um estádio também acontece com o Palmeiras em 1920. O então Palestra Itália, no episódio co-nhecido como “A Loucura do Século”, decide adquirir o Parque

36 Segundo os dados do IBGE, entre 1900 e 1940, enquanto São Paulo multiplicou por cinco a sua população, atingindo cerca de 580 mil habitantes, Salvador via um grande êxodo da sua população, que causou um crescimento populacional de menos de 50% em quatro décadas, aparecendo com 280 mil habitantes no Censo de 1940. A falta de estrutura também fez com que Salvador chegasse aos anos 1920 sem um estádio de qualidade minimamente razoável, causan-do uma grande defasagem frente aos clubes do Sul e Sudeste.

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Antártica, praça desportiva que pertencia à empresa de bebidas de mesmo nome, onde ocorriam os jogos do campeonato local desde os seus primórdios. Em dez anos, o estádio estaria preparado para receber 33 mil espectadores – se tornando um dos maiores do país. Esse estádio só seria superado em grandeza pelo Estádio São Ja-nuário, construído pelo clube Vasco da Gama, no Rio de Janeiro. Com capacidade para mais de 40 mil espectadores, o estádio cario-ca sinalizava um tempo de grande procura pelo futebol.

No Velho Continente, aqueles que se tornariam grandes esco-las do futebol nas décadas seguintes, seguiam exatamente o mesmo compasso. Na Itália e na Espanha, a questão do “profissionalismo marrom” já começava a causar uma série de constrangimentos. O futebol já era o esporte mais popular e praticado fora dos círculos elitizados das instituições tradicionais. Estádios já recebiam públi-cos razoáveis, e os valores cada vez maiores adquiridos pela venda de ingressos permitia que os clubes pagassem prêmios aos seus jo-gadores. Na Alemanha, apesar da resistência ao jogo, estádios já atingiam a marca de 60 mil pagantes.

Em 1923, é inaugurado o estádio de Wembley, na Inglaterra, com capacidade para 120 mil pessoas, construído por um mem-bro da nobreza local. Tratava-se de uma construção feita apenas para a edição daquele ano da Exposição do Império Britânico.37 A proposta inicial era de demolição, como era comum à época, mas, a mando da família Real, é reformado e mantido, quando da sua aquisição por um grande empresário. Nesse mesmo ano, no Brasil, o Vasco da Gama causava alvoroço ao ser campeão escalando jo-gadores negros e mestiços que recebiam prêmios pelas conquistas.

Em todas as referências aqui citadas, mesmo tratando de paí-ses distintos e com pouco contato entre si, apontam que a popula-rização se dava, em grande parte pelo cruzamento de dois fatores.

37 Essas Exposições eram grandiosos eventos internacionais que contavam, dentre outras coisas, com uma feira de tecnologias. O Brasil recebeu uma versão da Exposição Universal em 1922, na qual teria sido apresentado um protótipo do rádio.

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Ao passo que jogadores de origem popular eram aceitos, e alguns inclusive remunerados, os clubes iam permitindo e tornando viá-vel a formação de públicos cada vez maiores para os jogos, já come-çando a cobrar pelos ingressos de forma módica, o que possibilita-va o acesso da classe trabalhadora às exibições. Em todos os casos, se destaca que o futebol não era apenas uma forma de divertimen-to, mas também uma saída para os sofrimentos coletivos da vida nas grandes cidades.

Proni38 aponta que o profissionalismo fora da Grã-Bretanha só se inaugura quando a Áustria aceita a remuneração dos joga-dores em 1924. Como uma bola de neve, isso vai se espalhando, a começar pela Tchecoslováquia (1925) e Hungria (1926), exatamen-te aqueles Estados nacionais surgidos cinco anos antes, oriundos do Império Austro-Húngaro. A dissolução do antigo império se-ria um acontecimento histórico imposto como exigência da Liga das Nações ao término da Primeira Guerra Mundial – ocasião que também vai impor uma série de obrigações ao Estado alemão, que teria consequências posteriores. O grande marco, no entanto, se dá na realização do Congresso da FIFA em Roma, no ano de 1926, que marca a aprovação do profissionalismo pela entidade.39

A Alemanha, dentre os principais casos, acaba se mostrando uma exceção, muito por conta das dificuldades enfrentadas após a Primeira Guerra, durante a Republica de Weimar, política e econo-micamente instável, além da persistência em caracterizar o futebol enquanto esporte degenerado.40

Nesse período, é que podemos visualizar a predominância do uso do futebol pelo Estado ou grupos políticos dominantes, não apenas em suas formas mais extremas, como o fascismo, mas vá-rias formas de populismo e grupos hegemônicos em países de tra-dição liberal. Há não só a utilização política (propaganda) desse

38 PRONI, op. cit., 1998.39 LLOPIS-GOIG, op. cit., 2005.40 WYNN, op. cit., 2007.

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novo fenômeno popular, do qual o futebol era de longe o mais as-sistido, mas principalmente no aprimoramento das leis com vistas à organização, racionalização e profissionalização. Nessa altura o futebol brasileiro se cruza com o futebol italiano e com o espanhol, que novamente atravessam fases muito semelhantes.

Na Itália, Benito Mussolini era extremamente atencioso ao es-porte enquanto instrumento de propaganda do regime fascista. O futebol antes dele era tocado por duas ligas distintas e dividido re-gionalmente. O período já marcava a remuneração e troca de clu-bes por diversos jogadores, de formas ilegais, o que levou o ditador a nomear políticos de confiança para organizar uma nova liga que proporcionasse a ideia de unidade nacional.41 A Federazione Italiana Giuoco Calcio é remodelada e passa a admitir jogadores “não ama-dores”, portanto, remunerados. A Itália então promove a profissio-nalização em 1926, mas seu torneio unificado só ocorrerá em 1929.

Na Espanha, um processo muito próximo ocorre. Incentiva-do pela necessidade de conter o separatismo, em especial catalão e basco, a profissionalização é aplicada pela ditadura de Miguel Primo de Rivera a partir de 1926 e uma liga unificada se consolida em 1928.42 Esse momento coincide com a instauração da II Repú-blica Espanhola, mas em poucos anos aconteceria a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que alçaria ao poder o general Francisco Franco que, inspirado no nazi-fascismo, promoverá medidas de in-gerência estatal ainda mais profundas que aquelas vistas na Itália de Mussolini.43

Em contrapartida, em 1928, foram implantadas uma série de restrições à importação de jogadores para a Lega Calcio, que, na época, eram aos montes húngaros e austríacos da “escola de Da-

41 Idem.42 RIVERO, A., De LA PLATA, N., DAVARA, M. A. e MAYORGA, J. I. Las Leyes del deporte

español: análisis y evolución histórica. Sevilla: Wanceulen Editorial Deportiva, 2008.43 ROJO-LABAIEN, E. El fútbol: reflejo permanente de la diversidad nacional del estado español

desde sus Orígenes. Revista Apunts, n. 116, p. 23-32, 2014.

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núbio”. Na Espanha, igualmente, há uma limitação à contratação de jogadores estrangeiros, permitidos apenas os “oriundos” que fossem descendentes de espanhóis. Nesse ponto, há uma questão muito importante: proibidos de contratar estrangeiros, os clubes italianos e espanhóis passam a recorrer a jogadores “oriundos” es-palhados pelo mundo, promovendo uma grande leva de repatria-ção de jogadores uruguaios, argentinos e brasileiros.

Coelho44 sinaliza que os primeiros indícios de jogadores bra-sileiros que emigram são os que jogavam em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Apesar da colônia italiana também ser expressiva nos estados do Sul, o intercâmbio e a incidência de “ar-regimentadores”45 contratados pelos clubes italianos para pinçar os melhores talentos eram muito menores. Registram-se vinte e seis jogadores que saíram dos clubes brasileiros no período entre 1925 e 1938 – portanto, entre a profissionalização italiana e a brasileira, que demoraria tanto para ser aprovada quanto para se consolidar.

Esses jogadores eram convencidos a se mudar tanto pela ideia de retornar às origens quanto pela oportunidade de ganhar melho-res remunerações, deixando de dividir o tempo entre o trabalho oficial e os ganhos razoáveis, porém, extremamente criticados e condenados, do “profissionalismo marrom” do futebol brasileiro à época. O jogador empobrecido do futebol brasileiro sofria muito preconceito, tido como elemento de degeneração do espírito espor-tivo amador ao aceitar retorno financeiro pelos seus feitos.

Bons jogadores a essa época já gozavam de certo prestígio so-cial, ainda que a ausência de regras para as remunerações – e pior, regras que dificultavam a troca para clubes que pagassem melhor – frustrassem seus planos. Toda excursão de clube brasileiro para

44 COELHO, Paulo Vinícius. Bola fora: a história do êxodo do futebol brasileiro. São Paulo: Panda Books, 2009.

45 Coelho (2009) menciona o caso de Amílcar Barbuy, ex-membro de Corinthians e Palmeiras, que foi convidado pelo presidente da Lazio para convencer esses jogadores para seguir para Itália, onde também foi jogador e técnico do elenco apelidado de Brazilazio.

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a Europa se tornava uma oportunidade de ser visto e contratado. A popularidade do futebol já começava a atrair empresas diversas, que se utilizavam do futebol para divulgar suas marcas, promo-vendo promoções, sorteios e concursos. Essa parceria entre clubes, empresas e jornalismo impresso foi importante à época para de-tectar os clubes com maiores torcidas, mas a ausência de condições de trabalho fazia o futebol brasileiro perder seus melhores talentos.

Exatamente por conta desse êxodo que Argentina e Uruguai se antecipam e profissionalizam a atividade futebolística em 1931, se tornando o novo “Eldorado” para os melhores jogadores brasileiros, principalmente negros e mestiços que não atendiam aos critérios de descendência exigidos pelos principais países europeus. O Uruguai já havia surpreendido o mundo ao vencer dois torneios olímpicos de futebol. Em 1924, tendo como principal jogador dessa primeira conquista um atleta negro: José Leandro Andrade, apelidado pela imprensa francesa de “Maravilha Negra”.46 Em 1928, voltaria a ser campeão numa final contra a também sul-americana Argentina. Eram os dois principais países do futebol fora da Europa.

Vale o destaque de um movimento crucial para o futebol in-ternacional. Diante da crescente profissionalização do futebol em todos os países, o Comitê Olímpico Internacional passa a proibir sistematicamente a remuneração dos jogadores dos selecionados nacionais que disputavam os torneios olímpicos de futebol, àque-la altura a grande competição de seleções. Com a opção da FIFA em autorizar a realização da Copa do Mundo de 1930, a pedidos do Uruguai, aquele que seria o anfitrião, o COI decide extinguir definitivamente o futebol dos seus eventos em 1932. Portanto, foi dada a largada para a consolidação de um campeonato mundial de seleções nacionais, que aconteceria a cada quatro anos, além de decretar a cisão organizativa entre o futebol e o esporte olímpico.

46 CABO, op. cit., 2011.

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A primeira edição não conta com os principais países europeus por conta dos custos previstos e pelo desinteresse dos ingleses.47

Na Alemanha, assumia o poder o partido nazista e, com isso, sob o comando de Adolf Hitler, o país sofre um processo de “na-zificação” de todas as suas esferas políticas, culturais e sociais. No esporte, curiosamente, a interpretação nazista difere da fascista: ainda que o esporte tivesse grande utilidade na formação de uma sociedade plenamente sã, ele não deveria ter suas bases numa rela-ção de trabalho, mas por engajamento pessoal. Uma demonstração de bricolagem de sua ideologia com o que já estava estabelecido anteriormente na cultura esportiva do país, no tempo do amado-rismo, no qual os clubes locais eram impedidos de competir com clubes profissionais de outros países.48 Isso faz com que o regime vete profissionalização do futebol em 1933, assim que ele é aprova-do pelos clubes por meio da federação local.49 Tal e qual o regime fascista na Itália, os nazistas alemães perseguirão clubes socialistas e comunistas, extinguindo-os,50 ao passo que busca capitalizar a sua popularidade para os fins ideológicos do regime.

Apesar do certo grau de isolacionismo causado pela ideologia do esporte amador e militarizado do nacional socialismo, em 1936 a Alemanha será o centro da atenção do mundo com a realiza-ção das Olimpíadas de Berlim. Inicialmente rejeitada por Hitler, a Olimpíada passaria a ser entendida como uma oportunidade úni-ca por Joseph Goebbels, então Ministro da Propaganda. Não só para o povo alemão, mas para todo o mundo, numa tentativa de criar contornos diplomáticos a um regime que era intensamente criticado por quebrar os acordos de desarmamentos estabelecidos quando do fim da I Guerra Mundial.

47 PRONI, op. cit., 1998.48 WYNN, op. cit., 2007. p. 49.49 Wynn observa que esse aspecto mostrava a distinção feita pelo nazismo entre esporte e cultura.

No plano das artes, foi intensa a profissionalização e remuneração de artistas próximos ao Par-tido Nacional Socialista.

50 WYNN, op. cit. 2007. p. 12 e 50.

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De volta ao Brasil, a profissionalização do futebol já se tor-nava inevitável, e acaba por ganhar um “aliado”. A Revolução de 1930, quando se desarticula a estrutura de poder que marcava a chamada República Velha, alça o gaúcho Getúlio Vargas ao po-der. Seu interesse pelas ideias do corporativismo e suas proposições pelo controle do Estado na tutela e organização dos interesses dos trabalhadores acabaram servindo de incentivo. Em 1933, os clubes paulistas e cariocas assumem o profissionalismo, mas esse proces-so se arrasta até meados dos anos de 1940, quando são promovidas, agora já pelo Estado Novo, diversas legislações esportivas que con-solidam o processo no Brasil.

É importante frisar que, transversalmente a esses aconteci-mentos, o rádio passa a assumir um papel muito importante, to-mando a dianteira da mídia de massas. Com um projeto naciona-lista em vigor, Vargas se aproveita do futebol ao gosto que diversos outros regimes faziam em todo o mundo: um potente instrumento de propaganda política.

A profissionalização do jogador de futebol no Brasil vai cau-sar uma brusca mudança no quadro clubístico até então existente. Clubes de elite como o Paulistano (SP) e o Bahiano (BA) decidem não se profissionalizar e abandonam as ligas. Outros, mesmo se-guindo nas ligas, não se profissionalizam, como o Vitória (BA). Enquanto isso, outros clubes de elite sofrem cisões, com essas dis-sidências buscando novas fusões a fim da aplicação do profissio-nalismo, como é o caso do nascimento do Esporte Clube Bahia, oriundo da Associação Atlética da Bahia e do Clube Bahiano de Tênis;51 e do São Paulo Futebol Clube, oriundo de dissidências do Paulistano e da Associação Atlética das Palmeiras. Um episódio que mostra que, mesmo nos clubes mais elitizados, a questão da

51 O Bahiano de Tênis (1916), localizado no bairro soteropolitano da Graça, tem uma história pecu-liar. Um dos seus fundadores, Luiz Tarquínio, foi o criador da primeira vila operária do Brasil no bairro de Boa Viagem, em 1892, essas que foram o berço de muitos clubes tradicionais do país. Era o mais relevante industrial do estado à época. Lá, no entanto, não nasceram clubes de futebol.

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remuneração formal dos jogadores era um debate ferrenho. A tra-dição inglesa de historiografia do futebol sempre dá considerável atenção às mudanças do perfil gerencial, por conta disso.

Essa virada profissionalizante do futebol pode ser sintetiza-da na história de Leônidas da Silva. Considerando um dos melho-res jogadores entre os clubes de RJ-SP, Leônidas tem uma rápida passagem pelo o Uruguai em 1933, no esquadrão do Peñarol, que contava com nada menos que oito brasileiros. Ele se convence a retornar ao Brasil com a oficialização do profissionalismo, que ocorre logo depois. Na Copa do Mundo de 1938, é apelidado pela imprensa francesa de “Diamante Negro”, e, logo no ano seguinte, recebe uma proposta de uma fábrica de chocolates para utilizar o seu nome e sua imagem para a promoção de um novo produto.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) pode ser vista como um entrave ao futebol europeu, uma vez que esses países foram os principais focos da destruição causada pelos confrontos bélicos. Foram longos anos de reconstrução das economias locais, prejudi-cadas pela destruição física, pela instabilidade política e pela perda de boa parte das suas populações. A década de 1940, por causa disso, conta com um baixo número de jogadores brasileiros expa-triados, pouca mudança no cenário geral do futebol, com poucos marcos relevantes no futebol europeu.

No Brasil, no entanto, seguiam sendo construídos grandes es-tádios, dando prosseguimento ao desenvolvimento do futebol lo-cal. Em 1940, surge o Estádio Municipal do Pacaembu, que repre-senta um marco na tradição de construção de estádios pelo poder público. Também representava a consolidação de São Paulo como vanguarda. Apesar do nível estrutural do futebol estar se aproxi-mando dos países europeus, o Brasil ainda encontra dificuldades de articular uma competição nacionalizada por conta das suas di-mensões continentais e dos custos altíssimos de deslocamentos de clubes que não estivessem no eixo RJ-SP.

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É exatamente por essa característica que a ampla maioria dos jogadores brasileiros que se tornavam conhecidos no exterior (incluindo os vizinhos Uruguai e Argentina) estavam vincula-dos aos dois Estados, afinal, a seleção brasileira, organizada pela CBD, tendia a ser montada apenas por nomes desses clubes.52 De todo modo, era notável o crescimento da atração popular pelo futebol em todos os cantos do país. O Brasil, cada vez mais inte-grado territorialmente, começava a busca pela consolidação de uma “identidade nacional”. E o futebol se mostrava parte impor-tantíssima desse processo.

Como explicado anteriormente, nos próximos dois capítulos estaremos tratando de um “segundo ciclo” da história do futebol. Lidaremos com os primeiros projetos e situações conjunturais que potencializariam e sofisticariam o futebol para pavimentar o ca-minho rumo à consolidação de uma indústria.

52 Há a notável hegemonia de cariocas. Jogadores convocados para as primeiras Copas: 1930 (todos do RJ); 1934 (de 17 ao todo, apenas 4 paulistas, um gaúcho e um que atuava no Uruguai); 1938 (14 cariocas e 4 paulistas). Isso se explica tanto pelo êxodo já comentado dos jogadores ítalo-brasileiros dos clubes paulistas, como pela disputa que se instalada pelo controle da CBD, dominada por cariocas.

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Capítulo 3

Indústria do Futebol

A opção de estender o debate da profissionalização até a dé-cada de 1950 se dá por dois motivos: a lentidão da consolidação do futebol profissional pelo Brasil; e o processo de reconstrução da Europa pós-guerra, que, quando concluso, estabelece uma série de novos paradigmas para entender o desenvolvimento dos clubes, dos estádios, do jogador profissional e da formação de culturas tor-cedoras mais consolidadas. Como é possível perceber, a indústria do futebol de Espanha, Itália e Alemanha não havia se desenvol-vido suficientemente nem para alcançar a dimensão inglesa, nem para se diferenciar de Argentina, Brasil e Uruguai.

No início da década de 1950, as populações do Rio de Janeiro (2,3 mi) e de São Paulo (2,1 mi) já eram superiores às das gran-des cidades europeias onde o futebol ganhava corpo, como Turim (719 mil), Liverpool (750 mil), Munique (823 mil), Milão (1,2 mi), Barcelona (1,2 mi), Madri (1,5 mi), Roma (1,6 mi) e se aproxima-vam da população de Manchester (2,6 mi). Cidades estas muito impactadas por perdas populacionais consideráveis ocorridas na Segunda Guerra Mundial. Num plano intermediário, três outras cidades brasileiras se mostram como centros urbanos destacados para além do eixo RJ-SP, como Recife (524 mil), Salvador (417 mil) e Belo Horizonte (352 mil), cada uma com um processo di-ferente de crescimento.

Logicamente, os números frios do crescimento populacional não indicam pujança econômica, mas proporcionam o vislumbre de um meio urbano massificado, de dinâmicas sociais complexas e

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plurais e, em se tratando de futebol profissional e crescentemente custoso, indica a existência de público. As cidades brasileiras esta-vam no mesmo patamar das grandes capitais mundiais do futebol quando da demanda por estádios de futebol capacitados a receber públicos cada vez maiores, num tempo em que o futebol já estava massificado, com necessidade de buscar a renda para garantir bons jogadores, enquanto cobrava pouco pelo acesso aos jogos. Tanto assim que, em 1940, surge o estádio do Estádio Municipal do Pa-caembu, com 70 mil lugares, representando um marco na tradição de construção de estádios pelo poder público.

Foi seguido pelo também municipal e carioca Maracanã no meio da rivalidade entre os estados, feito para a Copa do Mundo de 1950, um colosso de 150 mil lugares.53 O estádio foi criado e construído para a realização da IV Copa do Mundo FIFA, aquela que voltava a ser realizada após doze anos de hiato, causados pela II Guerra Mundial. Pensado para servir de “modelo” para um Brasil que buscava notabilidade internacional, o estádio se firmou com o maior do mundo por muito tempo, sendo a “casa” do futebol brasileiro. Na realidade, as primeiras competições pretensamente nacionais, apesar de se resumirem a uma fase curta eliminatória, só começam a acontecer no ano de 1959.

Logo depois desses dois gigantes, viria a Fonte Nova em 1951, em Salvador, com capacidade para 50 mil espectadores; e por fim surgiria o particular Morumbi em 1960, de São Paulo, fechando os quatro mais relevantes estádios antes do fato que marca história do futebol brasileiro: a instauração do regime civil-militar de 1964. Impulsionados pela paixão elevada depois da conquista das Copas do Mundo de 1958 e 1962, é durante o governo ditatorial que o fu-tebol brasileiro assume o seu período ápice de envolvimento num projeto político.

53 MASCARENHAS. op. cit., 2014.

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Para além da tão falada relação entre a seleção brasileira, um projeto de gigantismo do regime passava imediatamente pelo fu-tebol, e foi a partir de 1965, com a criação do Mineirão, para mais de 100 mil pessoas, e o Beira-Rio em 1969, para 75 mil – proje-tados e construídos em esferas estaduais – que o regime atentou para o potencial do futebol para a sua propaganda. O sucesso do projeto “Ninguém Segura Este País”, com o título da Copa do Mundo de 1970, dá “carta branca” para a fomentação do futebol brasileiro pela ditadura.

Acontece a criação do primeiro torneio nacionalizado de lon-ga duração, em 1971, e se inicia uma sequência de construção de grandes estádios por todo o Brasil. Manaus, Recife, Natal, Fortale-za, Goiânia, Belém e São Luís são capitais que ganham gigantescos estádios entre os anos de 1972 e 1978 – que marcam o ápice e o declínio da ditadura. Cidades menores do interior também foram agraciadas com estádios. Ao passo que o regime ditatorial buscava garantir sua hegemonia política, se utilizando do futebol enquanto instrumento de propaganda, eram nesses estádios que se davam também formas de expressão populares dinâmicas e resistentes.54

Em todo o mundo, um novo “parâmetro” também se impôs. O futebol só seria rentável na medida em que pudesse mobilizar grandes massas, numa fase histórica de grandes públicos. No ano de 1970, a média de público global era crescente na primeira divi-são de países como a Inglaterra, aproximadamente 32 mil pagantes e, na Itália, mais de 30 mil. Esses públicos precederam temporadas que registraram uma queda brusca no público dos estádios, cau-sada, possivelmente, pela chegada de um fator responsável por um marco histórico crucial no futebol: a televisão.

Mascarenhas, partindo de leituras calcadas na geografia, vai observar como a formação das grandes metrópoles impacta no fu-tebol. Processos de nível macro socioeconômicos que, do ponto de

54 Idem. p. 167.

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vista de uma economia política do futebol, também explicaria o agigantamento dos clubes originários desses imensos conglome-rados urbanos causados pelo afluxo humano sem precedentes, do interior para as grandes e industrializadas cidades.55 É importante salientar esse aspecto porque ele tem conexões diretas com as di-nâmicas que se apresentam durante os anos de 1970.

Cabe voltar um pouco no tempo para destacar mudanças im-portantes na Europa. Em 1960, a Inglaterra finalmente derruba a regra do teto salarial dos jogadores, permitindo agora a atração de atletas de clubes médios ou pequenos por meio da oferta de maio-res salários. Em 1963, finalmente o futebol se profissionaliza de fato na Alemanha, país que ainda penava para reconstruir a sua economia após a derrota na II Guerra Mundial. Estamos falando, portanto, de dois movimentos que acontecem numa Europa que começava a mudar, consolidando um novo patamar econômico que faria transitar uma parcela considerável da sua classe operária para a condição de “classe média”. Nas palavras de Perry Ander-son, “o capitalismo avançado estava entrando numa longa fase de auge sem precedentes – sua idade de ouro –, apresentando o cres-cimento mais rápido da história”.56

Esse novo setor social, capacitado a dispender suas econo-mias em mercadorias que iam além das suas necessidades básicas, passaria a ser o “alvo” do futebol antes mesmo do advento do te-levisionamento. Charles Critcher,57 cujo trabalho aqui utilizado acompanha essa transformação, mostrava como uma nova leva de dirigentes começava a atentar para essas mudanças e preconizava que era necessário mudar muito daquilo do que se entendia por

55 Idem, p. 179.56 ANDERSON, Perry. “Balanço do neoliberalismo”. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (org.)

Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9-23.

57 CRITCHER, op. cit., 1979.

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futebol. Era um momento aprofundar as noções de “espetáculo”, acompanhando os passos da indústria da música, por exemplo.

Os anos de 1960 se encerram sob essa celeuma. O jogo preci-saria se transformar por inteiro e as velhas relações patronais de-veriam ser mudadas por uma lógica mais racional e menos dispen-diosa. Nessa altura, o televisionamento de jogos de futebol ainda começava a dar os seus primeiros passos na Europa, sob a estru-tura das então redes estatais, se resumindo ao televisionamento de compactos de jogos que já haviam acontecido.58

Buscando estabelecer um histórico do televisionamento do fu-tebol, Anderson Santos vai mostrar que tais iniciativas já datavam desde os anos de 1930 em alguns países da Europa. As dificuldades e limites tecnológicos, no entanto, ainda limitavam o poder de pe-netração do “futebol midiatizado”,59 por assim dizer. Antes disso, muitas outras transformações foram tomando corpo.

Marcelo Proni60 observará um evento que incrementará a mentalidade que apregoava um futebol menos dispendioso e ca-paz de auferir lucros. Em 1967, surge a National American Soccer League (NASL), que se tornaria a grande liga de futebol dos Esta-dos Unidos. Inspirada no modelo já adotado para outros esportes com força local, e contando com um momento histórico com um imenso mercado consumidor ao seu favor, a liga investe de forma pesada em grandes estrelas do futebol mundial para tentar vingar.Por motivos de falta de base local, além da dificuldade de atrair público diante da concorrência pesada das outras indústrias espor-tivas locais, a NASL encerraria suas atividades de forma deficitária ainda em 1984, mas deixaria uma marca na história do futebol. Era a “primeira liga profissional a implementar uma concepção empre-

58 Idem.59 SANTOS, A. A consolidação de um monopólio de decisões: a Rede Globo e a transmissão do

Campeonato Brasileiro de Futebol. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2013.

60 PRONI, op. cit, 1998. p. 154.

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sarial moderna de organização esportiva no soccer, e provavelmen-te inspirou a adoção do futebol-empresa na Europa”.61

A FIFA, ainda sob o comando do Sir Stanley Rous, desaprovava tal modelo. Assim como o profissionalismo demoraria a ser admiti-do por uma resistência de base moral, é possível entender boa parte da rejeição ou resistência à adoção de um modelo tão mercantiliza-do, mesmo que o futebol já movimentasse valores e interesses co-merciais elevadíssimos. David Kennedy e Peter Kennedy, em acordo com o que já sinalizamos anteriormente, destacam que mesmo os grandes clubes não funcionavam como negócios lucrativos, mas um lugar de captação de “capital social – de concessão de um enorme status local e prestígio social”.62 Para eles, inclusive, essa é uma das razões pela qual até hoje torcedores de todo o mundo rejeitam a ideia do futebol como um negócio, como veremos no Parte III.

A grande questão é que, como o próprio Critcher observa, o mundo vivia um processo de intensa “americanização” cultural, e toda a pujante indústria cultural que articulava elementos de entretenimento – música, cinema, parques temáticos, fast-foods, automóveis particulares, shopping centers, classe média suburbana – passa a engolir o futebol como um produto de potencial incalcu-lável. E essa grande virada se dá na década de 1970.

Tempos de TV e de “vender o produto”

Um passo significativo foi a consolidação das modalidades de transmissão via satélite na Copa do Mundo de 1970 e, num segun-do momento, a entrada de João Havelange na direção da FIFA em 1974, com um ambicioso projeto mercadológico para a instituição, por meio de uma parceria com a Adidas, e um acordo milionário e

61 Idem, p. 155.62 KENNEDY, D. & KENNEDY, P. Football in Neo-Liberal Times: A Marxist Perspective on the

European Football Industry, Routledge, 2016. p. 3.

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de longo prazo com a Coca-Cola, ao passo que buscava aproximar mais empresas parceiras.63

Paralelamente, no plano macroeconômico, o final da década de 1970 apresentava um momento de expansão geográfica sem precedentes de empresas transnacionais, com diversificação das áreas de investimento. Aproveitavam-se da abertura dos mercados nacionais, impulsionado pela sofisticação do sistema financeiro, num processo de grande interesse sobre o setor da comunicação, que, naquele período, passava a se sofisticar e ganhar contornos bem mais complexos e diversificados de comercialização.64 O fu-tebol, nesse sentido, é um dos principais produtos a ser explorado.

Vale dar atenção especial ao papel cumprido pelo brasileiro João Havelange para construir um grande império mercadológico em torno da FIFA e de seus parceiros comerciais, e sua tomada de posse sob a célebre frase: “Vim para vender o produto chamado futebol”. Ainda na sua campanha, Havelange articula federações africanas e asiáticas – além de outras com pouca tradição futebo-lística –, desprivilegiadas, com a promessa de investimentos di-retos em formação de atletas e financiamento de novos estádios. Também prometeu ampliar o número de vagas da Copa do Mun-do, garantindo a participação dessas federações que ainda desen-volviam o futebol localmente.

Todo esse projeto de poder demandava imenso aporte de re-cursos, e o seu encontro histórico com o desenvolvimento sem precedentes das tecnologias de transmissão de imagens via satélite vai conduzir paulatinamente o futebol a um processo de mercan-tilização inédito. Do que antes era uma atividade financiada por patronos desejosos de influência política, o futebol agora se torna-ria uma grande indústria, um negócio de escala internacional. Ao

63 Ibidem.64 SANTOS. op. cit., 2012. p. 90.

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gosto das indústrias culturais midiatizadas, seu pilar central seria o televisionamento e a venda de anúncios como ponta de lança.

Várias mudanças são detectadas diante disso. Em 1974, a Es-panha finalmente derruba a “Normativa de los oriundos”, regula-mentação que impedia a contratação de jogadores que não tivesse origem espanhola. Concomitantemente, a FIFA libera o uso de pa-trocínios estampados nas camisas dos clubes em 1977. A Itália, que abriu brevemente seu futebol a estrangeiros, tornou a fechá-lo em 1966, acaba reabrindo em 1980 por intensa pressão dos clubes. Essa “estrangeirização”, claro, ainda era resumida a poucos atletas. No Brasil, os patrocínios são utilizados em 1982.

O televisionamento do futebol, no caso brasileiro, vai apro-fundar uma realidade já existente desde os tempos do rádio. A for-mação de “clubes nacionais”, principalmente aqueles localizados no Rio de Janeiro e em São Paulo – maiores metrópoles e sedes das principais redes de televisão nacionais –, vai alimentar, não sem a ação direta e planejada da imprensa esportiva, a atração de públi-cos “torcedores” para esses clubes, nos mais distintos recantos do país. Essas grandes potências se consolidarão como os produtos televisivos mais atrativos, como se replicou em todo o mundo, em que pese a realidade brasileira abranger até os dias atuais um nú-mero superior aos três ou quatro exemplos de outras ligas.65

Essa figura do “torcedor midiatizado” passa a ganhar cada vez mais relevância. Não apenas enquanto um consumidor de uma partida, mas enquanto prioridade da TV na abertura de novos mercados, sob um convencimento geral de que não havia mais dis-tinções entre o torcedor de estádio e o torcedor-midiatizado. En-quanto um estádio comportaria 80 a 100 mil pessoas em um jogo de grande atratividade, a televisão começava a projetar audiências na casa das dezenas de milhões.

65 Idem.

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A lógica que rege essa preocupação das redes de TV em ga-rantir a atratividade do público consumidor a um número cada vez menor de clubes segue outra lógica inerente à indústria de ondas. Propõe que, para garantir uma maior eficiência de comer-cialização, convém uma menor variedade de produtos, da mesma forma que possam ser consumidos por diferentes tipos de público, com vistas à “previsibilidade do consumo”. Caso esse público este-ja disperso em um número cada vez maior de clubes, em especial àqueles em que o público opta por ser devoto por conta da sua localidade, há aí um ponto de fragilidade na comercialização dos jogos pela televisão.66

O que se observa nas principais ligas do mundo é a “seleção” de grandes clubes vencedores que seriam, a partir do argumento de atração de maior audiência, agraciados com maiores repasses. Em alguns casos, passamos a ver discrepâncias de valores na ordem de oito a dez vezes maiores que outros competidores do mesmo tor-neio. Agrava-se, portanto, a desigualdade econômica entre os clu-bes “grandes” e os ditos “médios”. Essa necessidade se cruza com outro aspecto: o clube deve deixar de ser um polo de associação de torcedores. Esses deverão ser consumidores cada vez mais passivos do produto do futebol de uma forma geral. É o tipo de fenômeno que trataremos de forma mais profunda mais adiante.

O futebol profissional midiatizado passa a configurar uma dimensão estrutural totalmente distinta do início do século. Isso quer dizer que passa a ser exigida do clube uma capacidade muito maior de gestão dos recursos e de suas atividades cotidianas, am-pliando consideravelmente as condições básicas funcionamento.

66 Anderson Santos, especialista na temática e parceiro de pesquisa e produção do autor dessa dis-sertação, acredita que nos tempos atuais há uma tendência de reversão dessa lógica por conta do interesse ao retorno a uma “regionalização” do conteúdo. Com a ampliação da oferta de canais digitais, assim como da viabilização de conteúdos ao vivo em plataforma online, o futebol pode sofrer algumas mudanças. Cf. SANTOS, A. D. G. dos. Las estrategias de mercado del Esporte Interativo: la regionalización y la presencia del capital extranjero. SEMINARIO REGIONAL (CONO SUR) ALAIC, 8., 2015. Córdoba. Anais... Córdoba: ALAIC, 2015.

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Esse aspecto acaba, por sua vez, exigindo a inserção de diversos tipos de profissionais que não apenas os jogadores, mas trabalha-dores envolvidos na “produção do espetáculo”. Estamos falando da adoção de figuras cada vez mais profissionalizadas, como maquei-ros, árbitros reservas, delegados das partidas e gandulas, pensados inclusive para garantir que a dinamicidade da partida não com-prometesse o conteúdo midiático, que, aos poucos, ia se tornando a principal fonte de renda dos clubes.

Quando apontamos que apenas nessa altura podemos come-çar a tratar o futebol como uma “indústria”, salientamos que es-tamos por assim definir a existência de um conjunto de agentes econômicos de diferentes vertentes, mas de interesses semelhan-tes. Esse aspecto analítico é crucial para entender o funcionamen-to das indústrias culturais, mesmo em casos mais particulares. A “sociabilidade entre os capitais” se estabelece na medida em que esses interesses particulares passam a se articular e competir den-tro de um mesmo circuito, conferindo diferentes momentos de mediação e contradições.67

Apesar da entrada cada vez maior dos recursos oriundos da TV anunciar estabilidade financeira para essa indústria, os efeitos colaterais começam a aparecer. Os custos altos, a estrutura arcaica e o paternalismo dos dirigentes acabam causando uma busca de-senfreada para a montagem de times vencedores, sem relação dire-ta com os recursos que entravam, em meio a uma inflação salarial nunca vista. Os clubes passam a acumular imensas dívidas com o Estado, que reage prontamente com uma grande movimentação política para transformá-los em empresas.

Parte considerável desse capítulo será retomada na Parte III, quando trataremos de questões referentes à ultramercantilização do futebol de forma mais localizada e contextualizada. Analisare-

67 BOLAÑO, C.R.S.; BRITTOS, V.; GOLIM, C. Economia da arte e da cultura. São Paulo: Obser-vatório Itaú Cultural, 2010.

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mos, principalmente, os reflexos desse fenômeno naquilo que trata-remos por “cultura torcedora”. De todo modo, é necessário seguir o apanhado histórico de forma cronológica, para que possamos com-preender as diversas consequências dessa virada mercantilizadoras dos anos de 1970 e de 1980, em especial atentando à consolidação da hegemonia da doutrina neoliberal em escala internacional.

Futebol em tempos neoliberais

O período que acabamos de superar – da década de 1950 ao início de 1980 – é um marco que altera todos os mínimos aspectos do futebol. A partir daqui, trataremos de um momento histórico em que os quatro elementos que compõem o título desta Parte I já estão redimensionados por inteiro.

O clube é alçado à dimensão de uma instituição demasiada-mente grande para ser tratada como uma associação civil sem fins lucrativos e começa a ser ameaçado de empresarização. O jogador começa a avançar gradativamente nos termos dos seus “direitos trabalhistas”, atingindo rendimentos cada vez maiores e atraindo, de forma direta, o interesse de agentes econômicos que se respon-sabilizariam por suas milionárias carreiras. Os estádios, agora não mais tão relevantes para o orçamento de clubes, uma vez que o peso dos valores repassados em cotas televisivas era dezenas de ve-zes maior daquele arrecadado em ingressos, começavam a ser tra-tados como um ambiente inóspito e violento. E, por fim, a torcida começava a ser entendida cada vez mais como público consumidor, sendo alvo de planos cada vez mais agressivos de ressignificação, principalmente aquele que chamamos de “público dos estádios”.

O que é importante frisar é que esse novo imperativo merca-dológico conduzirá totalmente o que deve e o que não deve ser feito em termos de gestão dessa grande indústria; e, ao mesmo tempo, incitará a formação de novos atores econômicos, cada vez mais

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presentes em todas as esferas do futebol. Com o passar do tempo, os critérios de “mérito esportivo” vão sendo trocados pelas deman-das de uma indústria cada vez mais sedenta e voraz, que passa a remodelar torneios, formar novas ligas e alterar regras, com vistas à potencialização da sua lucratividade.

Cada vez mais alinhada à também cada vez mais mundiali-zada e desregulamentada economia do período, o futebol vai se ajustando aos ditames macroeconômicos e geopolíticos mais con-cretos. Grandes economias formam grandes ligas e começam a concentrar os grandes craques da bola. Países como Brasil e Ar-gentina, que ainda conseguiam manter certo nível de competitivi-dade contra a Europa, são deixados para trás na cadeia alimentar do futebol-negócio. De grandes escolas, passam a se tornar, gra-dativamente, fornecedores dos melhores “pés-de-obra” do planeta.

A nova realidade de inserção do futebol numa cadeia produ-tiva de bens culturais de dimensões crescentes dá sustentação a um novo entendimento mercadológico, que buscava superar as limitações das formas de controle paternalista dos clubes por di-rigentes “amadores”, tidas como arcaicas. Em alguns casos, indí-cios de lavagem de dinheiro teriam sido detectados, ampliando a preocupação do poder público com a situação do futebol. O “novo momento” exigia, ao menos em tese, profissionalização e garantia de ética empresarial. David Kennedy e Peter Kennedy enxergam que “a concentração de capital e a habilidade para se libertar da tradicional cultura de governança coletiva do jogo, na sua terra de origem mais especialmente, porém globalmente crescente, agora apoia a natureza de ‘livre mercado’ do futebol”.68

Esse período histórico deve ser compreendido em um duplo movimento de liberalização dos mercados e a ideologia neoliberal

68 No original: “This concentration of capital and the ability to break free from the traditional col-lective culture of governance of the game in its European heartlands more especially, but increas-ingly, now underpins the free market nature of football”. Cf. KENNEDY; KENNEDY, op. cit., 2016. p. 18.

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do “Estado mínimo”, por um lado, e um amplo processo de inter-nacionalização (ou mundialização) do capital financeiro, com uma superação sem precedentes das barreiras econômicas então delimi-tadas pelas fronteiras dos Estados-nação. Nas palavras de François Chesnais,69 a “mundialização” é o resultado de dois movimentos distintos interligados, que seriam a inédita fase de acumulação ininterrupta do capital desde 1914, e as “políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o iní-cio da década de 1980”.70

Nesse último quesito, que resume perfeitamente os funda-mentos da doutrina neoliberal, é crucial destacar o nome de Ro-nald Reagan, nos Estados Unidos; e a primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher. Essa última será protagonista de um marco histórico fundamental para este trabalho, que trataremos logo adiante, e de forma mais aprofundada no Parte II.

O que cabe aqui é salientar que o crescimento de um “movi-mento” neoliberal a nível internacional não se trata de um breve apogeu. Trata-se de uma das forças políticas e ideológicas mais sólidas do pós-guerra, que mudaria de vez tudo o que se enten-dia por “sociedades ocidentais”, principalmente aquelas do dito capitalismo avançado. Perry Anderson, um dos mais renomados observadores desse período, estabelece o ano de 1973 como um marco, quando uma crise dessa então “era de ouro” do capitalis-mo sob os preceitos da socialdemocracia (serviços públicos, assis-tência estatal, direitos trabalhistas e empoderamento do capital produtivo) chega a níveis preocupantes, com grande recessão e baixas taxas de crescimento.71

O que ele observa é que o neoliberalismo se vale exatamente do ataque a esses preceitos que norteavam a ideia de um Estado

69 CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.70 Idem, p. 41.71 ANDERSON, op. cit., 1995.

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bem-estar social. A proposta era condenar essa estrutura como “parasitária” e causadora da crise, propondo uma nova abordagem daquilo que se entendia por “Estado”. Agora as mudanças viriam em dois flancos: primeiro, na retirada de toda a participação na as-sistência aos trabalhadores e na garantia de direitos fundamentais como saúde, educação e renda mínima (importantes para a repro-dução do próprio capitalismo com modo de vida); segundo, no uso da força política, jurídica e física do Estado para desmantelar or-ganizações civis, como sindicatos, associações de trabalhadores e movimentos sociais, tratados como “inimigos internos da nação”.

Como veremos adiante, o futebol não estará fora do furacão neoliberal dos anos de 1980. Muito ao gosto dos tempos de gover-nos fascistas e autoritários das primeiras décadas do século XX, era a vez agora da doutrina neoliberal também se utilizar do jogo como elemento de propaganda e publicidade. O futebol como negócio, o clube e o estádio como empresas e o torcedor como consumidor.

Empresarização dos clubes

A nova proposta do mundo cada vez mais regido pelos dita-mes do “mercado” era gerir o clube enquanto uma empresa, não apenas para otimizar e racionalizar as suas ações, mas também para gerar lucros, dentro de uma nova lógica mundializante da in-dústria cultural. Por conta disso que a aplicação de algumas leis – ainda que baseadas no argumento da contenção das dívidas – devem ser vistas como intervenções diretas pela empresarização e privatização dos clubes.

O primeiro passo nesse sentido acontece na Itália. A lei do So-cietá per Azioni (SpA), lançada em 1981, obrigou todos os clubes das duas divisões superiores a se transformarem em sociedades acionárias. Na sequência, em 1984, a França, até então secundária no futebol mundial, lança a lei do Société Anonyme à Objet Sportif

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(SAOS) nos mesmos moldes. Em 1990, é a vez da Espanha lançar a lei das Sociedades Anónimas Deportivas (SAD), poupando apenas quatro clubes, dentre eles o Real Madrid e o Barcelona. Apesar das suas particularidades, em todos esses casos ocorrerão reformas nas leis para aprofundar essas medidas, autorizando os clubes a entrar no mercado de ações.

A Alemanha se constitui como uma exceção. Em 1998, a pro-posta de empresarização dos clubes sofre resistência e a solução en-contrada pelo então governo socialdemocrata foi de estabelecer um limite para a venda. Surge a lei 50+1%, que obriga os clubes a manter a maior parte das suas ações na mão dos seus membros-torcedores, vendendo para investidores profissionais apenas o que lhe interes-sasse e lhe fosse necessário, sem perder o controle da instituição.72

Esses movimentos europeus são de importância central para entender o contexto dos anos de 1990. O “parâmetro” lançado so-bre como o esporte deveria ser administrado se encontrava com um momento em que o futebol e a economia brasileira passavam por uma crise sem precedentes. Marcelo Proni relaciona essa crise financeira e uma dita “decadência” do futebol brasileiro, situação que vai desembocar numa adoção cada vez maior da ideia de em-presarização. “Não era incomum aparecer propostas de moderni-zação para o futebol brasileiro, que tinham como referência o novo modelo de organização que vinha sendo desenvolvido na Europa: o ‘futebol empresa’”.73

Ao longo da década de 1990, em especial quando analisados os governos Collor e FHC (1990 a 2001), o mundo do futebol é cer-cado de promotores e agentes econômicos interessados no proces-so de empresarização dos clubes brasileiros. Não por acaso, trata-vam-se de dois governos totalmente mergulhadores nos preceitos da doutrina neoliberal tão dominante no período. Foi em 1990/91,

72 SUPPORTERS DIRECT. What is the feasibility of a Supporters Direct Europe? London, 2009.73 PRONI, op. cit., 1998. p. 205-208.

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portanto, já depois do início do televisionamento dos torneios na-cionais, que surge a Lei Zico, cujos objetivos eram de regulamentar a comercialização do futebol profissional e a entrada das empresas, alterar as leis dos contratos com os jogadores e descentralizar o poder de decisão da CBF.74

A parte mais relevante do projeto, no entanto, estava na exi-gência da transformação obrigatória dos clubes em empresas. Fo-ram dadas três alternativas: 1) transformação em sociedade comer-cial de natureza esportiva; 2) constituição de sociedade comercial de natureza desportiva independente, com controle da maioria do capital com direito a voto; ou 3) contratação de sociedade comer-cial para gestão de atividades profissionais. Quando o projeto foi finalmente votado e aprovado, seu texto alterava a obrigação pela permissão de empresarização.

Ao que constam as análises do período, a mudança se deu principalmente por conta da intervenção da “Bancada da Bola”, o lobby dos cartolas brasileiros.75 O projeto voltaria a ser “reedita-do” alguns anos depois, no bojo do surgimento da Lei Pelé, em 1997/1998. Essa nova iniciativa tinha como foco principal atualizar as normas trabalhistas para os jogadores brasileiros (como a ex-tinção do “passe”), mas acabou por ser incorporada em uma nova ofensiva de empresarização e privatização dos clubes, destaque-se: por iniciativa do Ministério dos Esportes.

Aprovada em 1998, a Lei Pelé obrigou os clubes a se transfor-marem em empresas num prazo de dois anos, caso contrario não participariam de competições profissionais. Marcelo Proni,76 cuja pesquisa se desenrolou exatamente durante a discussão dessa lei, se posiciona favoravelmente às medidas como um processo necessá-rio de “modernização e profissionalização” do principal esporte do mundo. Não há muitos materiais que indiquem uma reavaliação

74 Idem, p. 218.75 HELAL, R. Passes e Impasses: futebol e cultura de massas no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1997.76 PRONI, op. cit., 1998.

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do seu posicionamento (ou mesmo manutenção de caracterização positiva sobre o tema),77 mas vamos seguir num caminho inverso, analisando alguns casos nacionais.

Um dos poucos casos de clubes tradicionais que chegou a ser controlado por uma empresa foi o Esporte Clube Vitória. Ainda no ano de 2000, cerca de seis meses após a conquista do 4º lugar no campeonato brasileiro, e pouco mais de um ano após o centenário do clube, o então presidente, Paulo Carneiro, selou um contrato até então inédito no Brasil e vendeu 51% das ações do Vitória S.A – que cuidava apenas do departamento de futebol da entidade esportiva – para investidores argentinos do Fundo Exxel Group. O banco se tornaria, desse modo, o primeiro acionista a investir no futebol brasileiro. Seu rival, o Esporte Clube Bahia, faria um acordo em moldes semelhantes com o Banco Opportunity, ainda em 1998, quando foram compradas iguais 51% das ações.

As iniciativas baianas foram vistas como marcos no momen-to. Muito elogiadas e inspirando confiança nos promotores des-sas mudanças, a dupla BAVI entrou de cabeça em “parcerias” que planejavam grandes ganhos nos anos que viriam. Fracassou na medida em que os investidores passaram a deixar de investir nos clubes, aos moldes dos grandes grupos financeiros, o que deixou o futebol baiano em situação muito delicada: os clubes foram re-baixados sucessivamente, disputando a Série C do Campeonato Brasileiro no ano de 2006.

Outras experiências aconteceram posteriormente e foram igualmente fracassadas. O Vasco da Gama formou uma joint ven-ture com o NationsBank e se tornou o primeiro clube brasileiro a emitir títulos no mercado de capitais. Na Série B e C, em clubes de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, é possível observar casos

77 Curiosamente, nas considerações finais do seu trabalho, o autor faz algumas ponderações sobre os riscos que estariam em torno de um processo tão agressivo de mercantilização dos clubes e do futebol. Queixas que já se davam em larga escala na Europa, como veremos no Parte III.

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de pequenos clubes-empresa, sem torcida em sua maioria. Falare-mos mais sobre isso no próximo capítulo.

O que ficou é que a aplicação forçada do modelo europeu de clube-empresa foi um fracasso tão grande que praticamente não houve outro caso parecido entre os grandes e médios clubes do Bra-sil. Seja pela dificuldade em viabilizar essas “mudanças de menta-lidade” (para usar o termo em voga na época); seja pela estrutura associativista dos clubes brasileiros, ainda muito ligados às famílias tradicionais que compunham seus conselhos; seja pelo esmoreci-mento da temática e, inclusive, recuo de muitos dos seus defensores, dentre eles jornalistas consagrados; ou – para nossos objetivos aqui o principal de tudo – uma tomada de postura mais ativa por parte dos torcedores. Essa questão estará presente na Parte III.

Vale a pena apreciar outro aspecto da ultramercantilização do futebol que não ocorre necessariamente nos clubes, mas também deriva do processo de transformação dos torcedores em consumi-dores passivos; que é a transformação dos estádios.

Empresarização dos estádios

Os “tempos neoliberais” não atingiram o futebol apenas no ataque aos clubes enquanto instituições coletivas. Precisamos re-tornar um pouco no tempo, mais precisamente ao final da década de 1980, para tratar de um momento histórico que mudou com-pletamente o futebol mundial. No protagonismo dessas mudan-ças está exatamente a supracitada Margareth Thatcher, então nos últimos de seus doze anos no cargo de primeira-ministra britâ-nica. Em mais de uma década de governo radicalmente neolibe-ral, Thatcher se viu impelida a dar respostas aos problemas que concerniam ao futebol na Inglaterra, um fenômeno de proporções gigantescas, encrustado naquele setor social no qual ela era odiada em sua grande maioria. Essa tal “cultura da classe trabalhadora”

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e suas manifestações efusivas dentro dos estádios estampavam os noticiários com cada vez maior frequência.

No ano de 1985, na partida final da Taça dos Campeões da Eu-ropa (hoje Liga dos Campeões, ou apenas Champions), que envol-via o inglês Liverpool e a italiana Juventus, grupos de hooligans se confrontaram com ultras italianos, causando uma grande confu-são no estádio. O pisoteamento e esmagamento, além da queda de grades e muros, decorrentes do pânico causado pelas brigas, oca-sionou a morte de 38 pessoas. Esse fato, que ficou conhecido como a “Tragédia de Heysel”, marcou o momento em que o debate sobre a violência entre os torcedores nos estádios era crescente em todo o mundo com o surgimento de diferentes subculturas torcedoras voltadas para a prática costumeira do confronto físico.

Hollanda observara que o acontecimento de Heysel já era uma “tragédia anunciada” diante do arrefecimento das tensões entre “hooligans e ultras”, que “vinha sendo incitada há alguns anos com ameaças mútuas”. O ano de 1984 já registrara confrontos ocorri-dos de deslocamentos de grupos de torcedores ingleses do mesmo Liverpool e também do londrino Tottenham, respectivamente na cidade de Roma e de Bruxelas, “fazendo a primeira-ministra Mar-gareth Thatcher qualificar a onda de violência como ‘uma desgraça para a Inglaterra’”.78

Evitaremos tratar amiúde do tema da violência por acreditar-mos ser esse um tema de extrema complexidade e de difícil defini-ção e interpretação, que demandaria uma longa incursão teórica. Sugerimos ao leitor interessado nessa temática que se debruce sobre a extensa introdução à tese doutoral do já citado Bernardo Borges Buarque de Hollanda para compreender os caminhares da acade-mia e da temática da violência entre torcedores de todo o mundo.

78 HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalis-mo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-1988). 2008. 771 f. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. p. 27.

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Lá será possível captar os tantos vieses de pesquisa desenvolvidos num momento em que os estudos do futebol ainda começavam a tomar corpo na academia brasileira, e que o assunto era tratado de modo imediatista e sensacionalista, partindo de um “cariz racial e biológico assimilado pelos jornalistas”.79

Interessa-nos, aqui, no entanto, avaliar as consequências do fato, e como o tema da “violência” – real, porém, superestimado – foi utilizado para aprofundar o processo de ultramercantilização do futebol. Primeiro na Inglaterra, e depois no resto do mundo.

O caso Heysel levou a uma punição de cinco anos para os clubes ingleses em competições europeias, aplicada pela própria UEFA com o apoio público da Rainha Elizabeth II. O tema to-mava, assim, proporções nacionais, uma vez que a punição não se resumiu ao clube ao qual pertencia a torcida violenta. Toda a “opinião pública”, imprensa esportiva e meio político começavam a proferir que a “decadência do futebol inglês” – ainda hoje um tema controverso – era decorrência direta da violência promovi-da pelas firmas hooligans.80

É quando, em abril de 1989, um novo acontecimento, ainda mais grave, gera um processo de inevitável (talvez oportuna) toma-da de decisão pelo governo de Margareth Thatcher. Na semifinal da Taça da Inglaterra, um jogo entre o mesmo time do Liverpool con-tra o Nottingham Forest, no estádio do clube do Sheffield Wednes-day, conhecido como Estádio Hillsborough, considerado um dos melhores do país e totalmente adequados às normas de segurança vigentes na época. Com a superlotação e grande deslocamento de ambas as torcidas para essa cidade do norte inglês, o movimen-to de entrada incontida de torcedores quando dado o apito inicial da partida ocasionou a morte por esmagamento e sufocamento de nada menos que 96 pessoas. Uma tragédia que prontamente cau-

79 Idem. p. 33.80 Veremos como se deu a construção midiática desse momento na Parte II.

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sou uma movimentação geral nos círculos de poder ingleses, que decidiram que alguma atitude enérgica deveria ser tomada.

Como trataremos mais profundamente dos detalhes desse fato histórico, cabe aqui sinalizar que, além do hooliganismo – que, des-cobriu-se mais de vinte anos depois, não foi o verdadeiro culpado pela tragédia –, os tradicionais estádios ingleses também começa-riam a ser condenados e dados como inviáveis (mesmo que o Hills-borough tivesse sido reformado cerca de dez anos antes, estando em total acordo com as normas da época).

O acontecimento levou à produção do famoso “Relatório Tay-lor”, documento que investigou as causas do acidente, e estabeleceu diretrizes para um novo projeto de segurança. Mais que isso, tal relatório também traria novas normas de estruturação dos está-dios e do próprio futebol inglês. Algo que era tido como um tabu no mundo do futebol até então passou a ser linha de frente dos trabalhos: condenar, coibir, proibir e perseguir todos os tipos de manifestações festivas dentro dos estádios.

A “nova ordem” dos estádios iria impor aos clubes ingleses uma reestruturação financeira de grandes proporções. Boa parte dos clubes precisou abrir seu capital para investidores de toda or-dem, atrair recursos para a reforma obrigatória dos seus estádios, dando, assim, início ao ciclo mais agressivo da supracitada empre-sarização e privatização dos clubes ingleses.

Com o estrondoso sucesso financeiro da English Premier League (fundada em 1992 para marcar essa remodelação total do futebol local) e de seus clubes, o “modelo inglês” se impõe como novo parâmetro para todo o futebol mundial. Formar uma gran-de liga, moderna, profissional e rentável, passaria diretamente pela capacidade de adequação dos estádios para esse novo momento, oferecendo um padrão de conforto, de segurança, de serviços ali-mentícios variados e visando, principalmente, um público alheio àquele tradicional público torcedor dos clubes.

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Os “eventos jogos de futebol” dos clubes de ponta da Europa vão se tornar grandes e lucrativos produtos, pensados para atrair turistas e visitantes diversos, com pacotes de alto custo, muitas vezes inviáveis para o tradicional torcedor local. É uma mudança completa de paradigma sobre o que seria “a torcida” enquanto pú-blico componente dos estádios. “O consumidor, solitário ou imer-so em seu pequeno e ‘fechado’ grupo, contempla, aplaude, filma e fotografa o cenário. Uma experiência sem riscos, sem incertezas, adequada e altamente lucrativa para os donos do espetáculo”.81

Esse marco histórico que destacamos ainda requer um novo destaque: a adoção do modelo de “arenas multiuso” para o futebol se expande, numa assimilação direta dos preceitos do esporte-ne-gócio norte-americano para o velho ludopédio britânico-mundial. A “arena multiuso” deve ser entendida, acima de qualquer leitura, como um “conceito”, uma vez que prevê uma instalação que extra-pola os interesses esportivos, alegando “multifuncionalidade”, ao mesmo tempo que reduz a importância do esporte na manutenção financeira e utilitária daquele equipamento.

Como veremos na próxima Parte, esse “conceito” se expandirá em todo o mundo do futebol, mas só superará os limites financei-ros previsíveis para a sua aplicação quando FIFA e UEFA passam a adotá-los como pré-requisitos básicos para suas principais compe-tições. Ou seja: as próprias entidades máximas se encarregarão de pensar as suas competições como vetores da construção de novas arenas em todo o mundo, com claros interesses financeiros e po-líticos que envolvem toda uma cadeia de relações entre o capital financeiro, esportivo, empresas de consultoria e assessoria jurídica voltadas para o setor, grandes escritórios internacionais de arquite-tura e gigantes empreiteiras. Até aqui nos cabe apontar que é nesse contexto que a Copa do Mundo é pensada para o Brasil, como um

81 MASCARENHAS, op. cit., 2016. p. 210.

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grande veículo de transformação e modernização, capaz de deixar um “legado” para o futebol nacional.

É curioso, e um tanto compreensível, observar como soa con-traditório alegar aos espectadores menos atentos à história do fu-tebol que estádios estão sendo remodelados para diminuir a sua capacidade desde os anos de 1990. Mascarenhas observa que essa tendência chega ao Brasil a partir de 1995, com uma série de re-formas (e normativas) que reduzem a capacidade dos estádios, e, posteriormente, a partir da inauguração da Arena da Baixada em 1999, uma nova geração de equipamentos.82 Foi pesquisando esse novo modelo, pertencente ao Clube Atlético Paranaense, que An-tônio Cruz destaca a figura do seu então presidente, Mario Celso Petraglia, que viveu longos anos de enfrentamento com a Fanáti-cos, principal torcida organizada do clube. Os torcedores protesta-vam e criticavam a política aplicada no preço dos ingressos, quan-do o cartola se resumia a dizer: “O povão já não vai a lugar nenhum há muito tempo. Quem fez a exclusão social não foi o Atlético. Boa parte dos que reclamam são aqueles que depois de saírem do está-dio vão beber e assaltar”.83

Vamos nos reservar a comentar apenas brevemente o tema da empresarização dos estádios em tempos neoliberais, porque re-servamos toda a Parte II para tratar dessa temática. Acreditamos, no entanto, termos cumprido o papel de articular historicamente essas transformações da indústria do futebol a partir de leituras macroeconômicas, aliada a uma ligação entre as diferentes conjun-turas nacionais (em especial no seu epicentro financeiro, a Euro-pa) e dando atenção à investigação dos diferentes atores políticos e econômicos que se faziam presentes nesses momentos.

O tema da mercantilização do futebol e empresarização dos clubes e estádios ainda serão tratados nas próximas duas Partes.

82 MASCARENHAS, op. cit., 2016. 83 PLACAR, n. 1270, 2004. p. 54-55.

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Gostaríamos de encerrar a Parte I, na qual fizemos o esforço de traçar o desenvolvimento do futebol ao longo de quase um século e meio, tratando de uma nova tendência dessa indústria. À parte de todo arcabouço teórico que tivemos nos capítulos anteriores, a parte que encerra este capítulo será de caráter mais expositivo e explicativo, porque se tratam de fenômenos recentes com pouco ou nenhum estudo, e, com isso, teremos o anseio de inspirar os leito-res a acompanhar esses casos como potenciais objetos de pesquisa no campo dos estudos do futebol.

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Capítulo 4

Plastic Football

A virada dos anos de 2000 para 2010 representou mais do que uma continuação ou mero aprofundamento daquilo que aca-bamos de tratar no capítulo anterior. O futebol-negócio, ou fute-bol-empresa, ou “futebol em tempos neoliberais”, aparenta estar atravessando uma nova etapa que se mostra totalmente em aberto. O objetivo desse último capítulo é avaliar eventos mais recentes e buscar captar algumas tendências que se anunciam para o futebol no decorrer desse século XXI.

Nas próximas páginas trataremos de três elementos que com-põem parte daquilo que optamos por chamar de “Plastic Football”, ou “futebol de plástico”, por representarem uma faceta dessa gran-de indústria que esgarça as tantas contradições do processo de mercantilização de todas as relações sociais. Veremos como esses elementos extrapolam o que até então se via como aceitável dentro dessa indústria, considerando, principalmente, que a viabilidade financeira desse esporte parece estar em cheque.

Usaremos essa metáfora para simbolizar algo sem vida, inor-gânico, como flores de plástico que enfeitam os apartamentos frios e mal iluminados. Objetos que estão ali para simular algo que deveria ter vida, quando qualquer observador nota que se tra-ta de mero enfeite artificial, de cores falsas e formas projetadas para imitar a realidade. Objetos feitos para enganar os sentidos, mas incapazes de fazê-lo.

Primeiro, trataremos da entrada sem precedentes de grandes investidores estrangeiros nos clubes europeus. Mais do que agentes

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econômicos alheios à história dessas instituições, veremos como em alguns casos o interesse desses passa muito longe da pretensão de lucrar com o jogo. Interesses diversos se mostram presentes no topo do futebol mundial, por meio do qual os valores astronômicos desembolsados em prêmios, transferências e salários vêm causan-do um grave desequilíbrio financeiro no futebol a nível interna-cional. Principalmente em clubes que gastam muito mais do que conseguem produzir ou arrecadar, respaldados pela total desregu-lamentação das finanças no mundo do futebol.

A segunda faceta que investigaremos são as ligas surgidas em recantos com pouca tradição futebolística por meio de grandes aportes de investimentos. Iniciativas diversas já poderiam ser de-tectadas ao longo da história do futebol, mas os anos de 2000 e de 2010 guardaram casos que surpreendiam seja pelo volume de dinheiro desembolsado, seja pela total artificialidade e distancia-mento das verdadeiras tradições esportivas do país em que sur-giam. Veremos como esses torneios podem estar indicando novas modalidades de organização financeira e esportiva que não se es-gotaram e estão passíveis de reprodução nos próximos anos.

Por fim, deslocando essa discussão para o Brasil, trataremos dos clubes-empresa e clubes-prefeitura que se proliferaram no país nos anos de 2000 e ganham novos casos nos anos de 2010. Veremos como esses clubes geralmente se constituem em projetos de curto prazo, com objetivos políticos e econômicos bem específicos, e são extremamente prejudiciais para equipes de médio e pequeno porte que possuem grande torcida. Localizados em regiões economica-mente mais favoráveis, esses clubes acabam “ocupando” o espaço de instituições históricas que não conseguem encontrar fontes de financiamento equiparável. Esse três elementos podem sintetizar o que detectamos como tendência para os próximos períodos, em prognósticos sobre os rumos da indústria do futebol.

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Magnatas e barões

Em um exercício de ciência política, Kennedy & Kennedy as-sim concluíram a atual contenda política que toma corpo no fute-bol europeu: “A UEFA pertence a uma típica perspectiva política europeia da socialdemocracia, a economia política que se funda na promoção dos interesses do capital produtivo contra os interes-ses do capital financeiro”.84 Os autores se referiam a um confronto que se instaura desde 2009, quando o então presidente da entidade europeia, o ex-jogador francês Michel Platini, promove uma ofen-siva pela moralização e racionalização dos gastos exorbitantes dos grandes clubes do continente, que estariam gerando uma inflação sem precedente nos valores do jogo.

O ataque da UEFA acontecia exatamente porque toda trans-formação ocasionada a partir do processo de empresarização do futebol europeu resultou na formação de ligas de clubes nacionais dissociadas das antigas federações, e proporcionou o surgimento da European Club Association (ECA), uma associação dos princi-pais clubes do continente europeu. Essa entidade se tornaria uma força política capaz de alterar ao seu gosto o formato da Cham-pions League, maior torneio de futebol do mundo, diversas vezes, aumentando o numero de vagas para os países mais fortes, redu-zindo vagas para os menores, criando diversas fases preliminares para “filtrar” os competidores, etc. A ECA foi fundada ainda em 2008, buscando articular clubes de um numero maior de federa-ções do que aquele que até então se chamava o “Grupo dos 14”.85 De todo modo, a entidade segue defendendo os interesses financeiros dos mais ricos clubes locais, chegando a criar a iniciativa de fundar a “European Super-League”, um torneio ainda mais elitizado e res-trito para essa “nata” do futebol europeu.

84 Do original: “UEFA belongs within the European-wide political perspective of social democracy, the political economy of which is founded on promoting the interests of productive capital against those of finance capital”. Cf. KENNEDY; KENNEDY, op. cit., 2016. p. 29.

85 SIMÕES, I. Em jogo ruim, bola dividida. Outras Palavras. 23 set. 2011.

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A movimentação de afastamento dos clubes das tradicionais federações e entidades gestoras não é algo muito novo. Porém, é importante entender que a reação da UEFA pela aplicação de um “ fair-play” financeiro – inclusive acompanhada de diversas orga-nizações de torcedores – tinha como pano de fundo uma realida-de que merecia real preocupação. Ainda que muito dos interesses que rondam a ECA seja exatamente de abocanhar valores cada vez maiores dos bilhões que o futebol já movimenta com o televi-sionamento e agora o uso de outras plataformas, há, também, um outro perfil de dono de clube que pouco tem mostrado interesses lucrativos. Há alguns anos, determinados clubes não mostravam balanços financeiros positivos86 e os seus donos eram, em um nú-mero cada vez maior, investidores que pouco se interessavam pelo futebol. Clubes europeus estão constantemente na mira de barões do petróleo e sheiks, assim como uma variedade de grandes gru-pos de investimento desejosos de desembolsar grandes valores na formação de elencos e na infraestrutura dos clubes não ape-nas como uma forma de aprimorá-los, mas para um meio para se infiltrar nas economias nacionais e finalmente atuar nos seus investimentos principais.

Da Península Arábica – Emirados Árabes Unidos (EAU), Qa-tar, Bahrein, Kuwait, Arábia Saudita e Omã – também tem chega-do muito dinheiro para o futebol europeu. Tais países, ricos em petróleo, são governados por famílias que se cultivam há décadas no poder. Mantêm fundos soberanos que reúnem alguns trilhões de dólares, e, entre seus negócios, está o futebol. Um exemplo é o Sheik Butti Bin Suhail Al Maktoum, membro da família real do Dubai, que investiria pesado no modesto Getafe da Espanha. Anos depois viria o Sheik Abdullah Bin Nassar Al-Thani, do Catar, que faria imensos investimentos no espanhol Málaga. O Sheik Nasser

86 Já são dezenas de casos de clubes de ligas ricas ou medianas que foram à falência, como o holandês Haarlem, o italiano Parma, o espanhol Sporting Gijón e o inglês Coventry City. Cf. KENNEDY; KENNEDY, op. cit., 2016. p. 26-27.

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Al-Ghanin Khelaifi também se valeu dos recursos da Qatar Invest-ment Authority para se tornar proprietário do clube francês Paris Saint-Germain, no qual investiu pesado para contratar grandes es-trelas do futebol mundial no período.

O destaque que deve ser feito especificamente para os investi-mentos vindos do petróleo do Oriente Médio é o quão notável tem sido o esporte enquanto “ferramenta de relações exteriores” desses regimes. Diversas outras modalidades esportivas recebem recursos de patrocínio ou anúncio de empresas como a Fly Emirates (do clã Al Maktoum). Esses investimentos também são vistos na camisa de grandes clubes de futebol, como é o caso do primeiro patrocínio de toda a história do Barcelona, cedido à Qatar Foundation. Vale lembrar que esse país será a sede da Copa do Mundo de 2022, em que pese a total ausência de tradição no futebol.

Diferente do tratamento dado pelos poderosos países ociden-tais aos regimes autoritários da região, os emirados-capitalistas con-quistam apoio e prestígio, tendo seus crimes aos direitos humanos sistematicamente ignorados pelos países mais poderosos (sorte não encontrada por muitos ditadores de países vizinhos com registros bem menores de abusos, na Líbia, Egito, Irã e Iraque, por exemplo).

Outro tipo comum de investidor bilionário dos últimos anos são os novos oligarcas da Rússia pós-soviética. Uma companhia de energia local, a Gazprom, é a proprietária do clube de futebol Zenit St. Petersburg e a patrocinadora do alemão Schalke 04 e do sérvio Estrela Vermelha. É também anunciante do inglês Chelsea, clube que pertence a Roman Abramovich, antigo dono da Sibneft, em-presa que se tornaria a Gazprom. O oligarca russo se notabilizou por derramar mais de 2 bilhões de euros no clube quando da sua chegada. Outro indivíduo que teve o mesmo percurso de enrique-cimento com a privatização de bens estatais da antiga União So-viética foi Abusaidovich Kerimov, que também fez investimentos imensos no russo Anzhi, mas sem muito sucesso.

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Há ainda uma série de casos de investidores “forasteiros”. A Premier League inglesa, origem dessa “invasão”, tem um panorama bem distinto de nacionalidades. Dentre os considerados 29 grande investidores dos 20 clubes da Premier League em 2016-2017, ape-nas 11 são ingleses. Dentre os 18 estrangeiros, estão investidores de EUA (6), Rússia (3), China (2), Irã, Egito, Tailândia, Emirados Árabes, Suíça, Itália e Noruega. Na divisão de acesso ainda se en-contram chineses, malaios, indiano, italianos e kuaitianos.

O que se nota é que o futebol aparenta atravessar uma fase de retorno ao tempo em que atraía interesses de ordem política numa escala superior aos interesses diretamente econômicos. Po-de-se entender que há uma retomada de sua instrumentalização para fins de “capital social”, que seria utilizado em fins terceiros. Uma indústria fictícia do esporte, na qual o ganho financeiro não se faz claro, e os interesses passam muito longe do jogo em si. “Um exame forense do estado do topo do futebol europeu destaca, reve-lando outro e diferente quadro do pretenso sucesso comercial: é o da dívida, da falência, da perda de balanço competitivo”.87

No atual estágio de desenvolvimento da indústria do futebol, tem-se tornado difícil mensurar o que realmente há de negócio num investimento tão dispendioso que só tem servido a objetivos que não possuem absolutamente nada a ver com o esporte. Mas há ainda outros aspectos do plastic football que nos interessam.

Ligas de plástico

Nos anos de 1990, diversas ligas de países com menor tradição futebolística receberam grandes investimentos ou foram fundadas com fins puramente comerciais. O caso japonês, do qual fez parte o brasileiro Zico; mais adiante, a retomada da Major League Soccer nos Estados Unidos; e, posteriormente, o eldorado dos petrodóla-

87 KENNEDY; KENNEDY, op. cit., 2016. p. 25.

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res do futebol de Qatar e Arábia Saudita, deslocou uma série de bons jogadores de todo o mundo com a oferta de ótimos salários e gordos pagamentos aos clubes que detinham seus direitos econô-micos. Nos anos de 2000, destacaram-se da Rússia e Ucrânia, que receberam recursos dos supracitados novos oligarcas, e acabaram tomando espaço de ligas medianas como a holandesa e portuguesa como primeiro destino europeu de muitos jogadores brasileiros.

Algumas dessas ligas ainda seguem vivas, outras passando por um novo momento de investimento pesado e outras minguaram sem se consolidar como atração para além do dinheiro. Atualmen-te, dois casos merecem atenção redobrada por superarem essas anteriores quanto aos recursos e à ousadia do modelo de negócio aplicado. Na China, uma Super Liga foi fundada por volta do ano de 2004, mas, em 2011-2012, passa a ganhar novos contornos após intervenção estatal por conta de escândalos de corrupção envol-vendo manipulação de resultados. O futebol entraria, segundo uma análise da BBC, na lista das quatro áreas “inusitadas” em que a China resolveu investir os seus mais de 3 trilhões de dólares em reservas.88 Para além dos quase 100 jogadores estrangeiros atuando na divisão principal, o país começa a investir em diversos centros de formação de jogadores. Para a temporada de 2017, o jogador brasileiro Oscar foi envolvido numa transação de nada menos de 280 milhões de reais com o Chelsea, passando a ser o terceiro atleta mais bem pago do mundo. Lionel Messi chegou a receber uma pro-posta de 1 milhão de reais diários para jogar nesse novo eldorado.

Os valores surreais que envolveram as notícias da liga chinesa, entretanto, só interessam mesmo aos atletas. Seu torneio continua restrito ao mercado interno, em que valha o seu tamanho: cerca de 1,35 bilhão de habitantes. Número gigantesco que só se compara ao de outro país que também começou a ver a importância de desen-

88 BBC Mundo. Quatro áreas inesperadas em que a China investe para ser número 1 do mundo. 27 fev. 2016.

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volver o esporte mais consumido do mundo em suas fronteiras: a Índia vem aos poucos estruturando a sua própria Super Liga, com particularidades ainda mais curiosas do que o caso chinês, apesar dos valores mais tímidos.

Com mais de 70 anos de fundada, a I-League, gerida pela All Indian Football Federation (AIFF), tinha dificuldades em superar o críquete na preferência dos mais de 1,2 bilhão de indianos. Eis que surge uma iniciativa de remodelamento do futebol indiano pela IMG-Reliance, uma joint-venture formada pela Reliance, maior empresa do país, junto ao gigantesco conglomerado coorporativo dominado pela IMG Worldwide.89 A empresa já havia anunciado uma parceria semelhante com a Federação de Basquete da Índia por 30 anos, da qual seria responsável pelo desenvolvimento do esporte no país, desde a formação de atletas até a sua liga profissional e de todos os aspectos de comercialização das marcas que envolvem o esporte no país. No caso do futebol, apesar dos termos do contrato serem semelhantes, a realidade é mais agressiva: a parceria assina-da por 15 anos previa a cessão de absolutamente todos os direitos comerciais relacionados à AIFF – incluindo a seleção nacional e a Primeira Divisão –, passando agora às mãos da IMG-Reliance.

O que aconteceu posteriormente foi bem diferente: a organi-zação de um torneio de duração de dois meses, com clubes sele-cionados pela própria empresa, que seriam franquias vendidas a milionários e bilionários locais. O colunista Bhargab Sarmah, do Huffignton Post, questionou, com preocupação, como as princi-pais decisões sobre o futebol indiano estariam passando por fora dos seus principais “stakeholders”, isto é, os clubes. Mas o mais curioso: também gestora da I-League, na qual jogam os clubes mais tradicionais do país, a própria IMG-Reliance passaria a organizar outro torneio paralelo com clube-empresas novos. Para explicar esse caso surreal, Sarmah fez a seguinte analogia: “por uma lado

89 SIMÕES, I. Um torneio monstruoso de plastic football surge na Índia. 14 out 2014.

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você vai para a cama com as grandes corporações que participarão da ISL, e por outro lado você manda os principais clubes locais na I-League para dormir no chão”.90

A estrutura que se assemelha à Major Soccer League, a liga norte-americana, propõe que os clubes sejam franquias de uma grande empresa controlada pela IMG-Reliance, e funcionará como uma forma de abafar os antigos clubes diante dos bilhões que es-tão sendo investidos em jogadores, marketing, atenção midiática e holofotes para a nova liga. Cada uma das oito franquias da ISL foi vendida ao preço de 25 milhões de dólares, a grupos econômicos ou investidores profissionais, que iam desde estrelas de Bollywood até empresas de telecomunicações e mesmo clubes de futebol (sen-do um deles da própria I-League).

A gigante IMG também fez investimentos em matéria de mar-keting esportivo em outros países, inclusive o Brasil. Em parceria com o grupo EBX, do logo falido empresário Eike Batista, forma-ram a IBX, empresa que teria como principal objetivo gerir a Arena Maracanã após a Copa do Mundo. Não deu muito certo, mas ou-tros investimentos chegaram a gerar frutos antes do encerramento das atividades da iniciativa: contratos de organização da Ultimate Fight Championship (UFC) no Brasil; agenciamento de marketing da Confederação Brasileira de Basquete (CBB); além de cuidar da imagem de atletas como Neymar e o surfista Gabriel Medina.

A liga da IMG Reliance Star (agora uma nova parceira) segue existindo no mesmo formato de pouca duração, possivelmente por se tratar de uma estratégia para atrair jogadores com maior facilida-de. Por se dar no meio da temporada europeia, a nova liga de plás-tico indiana não compromete o plano de muitos jogadores e trei-nadores em atuar nas principais ligas na sequência da temporada.

90 SARMAH, B. Indian Super League - IMG-Reliance’s Short-Sighted Endeavor Will Hamper I-League.Huffington Post. 1 mai. 2014.

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As ligas dos países com a maior população do mundo, apesar de diferentes configurações, ainda são apostas que vão depender de diversos fatores, mas indicam uma tendência a momentos cícli-cos de grande investimento nos rincões mais alheios à história do futebol, que envolvem interesses que ainda passam muito longe do conhecimento geral. Por um lado, o poder econômico chinês ainda provocará grande deslocamento de atletas e treinadores, com pro-postas salariais imbatíveis até para algumas ligas europeias; por outro lado, o modelo de surgimento relâmpago da nova liga india-na pode ser de parâmetro para o surgimento, talvez, de muitos ou-tros torneios de baixa frequência e com pouca ou qualquer relação com a estrutura histórica do esporte nacional.

Passemos, então, para uma terceira dimensão de uma reali-dade “pós-neoliberal” da indústria do futebol, que entendemos ser importante para compreender o que “sobrou” das inciativas de mercantilização agressiva do futebol que tratamos no capítulo an-terior. Esta, agora, compete diretamente ao Brasil.

Clube-empresa e clube-prefeitura

Como falamos anteriormente, a empresarização dos clubes foi um tema marcante no futebol brasileiro nos anos de 1990. A aber-tura e o incentivo para a formação de novos clubes com o formato de sociedades empresariais gerou um boom que pôde ser notado principalmente nos anos de 2000. Antes de tratarmos deles, po-rém, é importante definir o “conceito” que aplicaremos aqui.

Clube-empresa, de um modo geral, é uma instituição espor-tiva criada com fins lucrativos, a partir da articulação de diversos atores políticos e econômicos em um – ou para um – determinado contexto histórico. Boa parte desses clubes, no Brasil, durou menos de uma década e teve total incapacidade de criar raízes nas comuni-dades, cidades ou regiões em que atuavam. Alguns chegaram a ter

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destaque nacional por breves anos, montar bons elencos que depois se dissolviam em negociações rápidas. Boa parte dos casos que lis-taremos são oriundos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Os clubes-prefeitura, por sua vez, devem ser vistos como ini-ciativas ligadas a gestões pontuais de alguns municípios, receben-do incentivos públicos, e logo são abandonados, na medida em que o grupo político deixe o controle da máquina pública. Esses mode-los são muito vistos em cidades do interior do Brasil, estando mais restritos às disputas dos campeonatos estaduais. A enorme quan-tidade de casos nos impede de fazer um diagnóstico mais preciso, portanto, focaremos na investigação do primeiro.

Ademais, é lógico que o fato de uma instituição ser “clube-em-presa” não exclui a possibilidade de ele também comportar aspec-tos do clube-prefeitura. Muito pelo contrário, a grande maioria dos casos conta com uma relação estreita desses agentes econômicos com o poder local, mas a dimensão do empreendimento e as for-mas de gestão podem trazer diferenças sobre o seu funcionamento em longo prazo.

Há muito tempo as pequenas agremiações com proprietários atraem o interesse do conhecido “empresário de jogador”. Essa fi-gura, que surge por volta dos anos de 1990 no Brasil, se aproveita da modernização das leis trabalhistas proporcionadas pela Lei Pelé e passa a ser um agente econômico que intermedia o interesse do atleta com relação aos clubes. Mais do que um representante do jogador, esse empresário (ou agente) também possui grandes inte-resses financeiros em jogo. Clubes-empresa sempre funcionaram como uma “vitrine” prática e de rápido acordo, ao contrário dos conflitos de interesses encontrados nos grandes clubes.

Da mesma forma, essa estrutura de empresa privada também elimina uma série de problemas encontrados em clubes tradicio-nais de estruturas associativas. Sem a necessidade de debates mais amplos dentro de suas instâncias (conselhos, assembleias,

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etc.), os clubes-empresa tendem a possuir gestões sem conflitos ou disputas. Ao mesmo tempo, e por motivações óbvias, não ex-perimentam a pressão e a cobrança da torcida nos momentos de derrotas. Há casos de clubes que até trocaram de cidade, como é o caso do paulista Grêmio Barueri que mudou para Grêmio Prudente; do mineiro Ituiutaba que mudou para Varginha e se tornou BOA Esporte; mais recentemente, o Oeste, de Itápolis, e depois Osasco, que mudará para Barueri.

Essas características favoreceram o crescimento de muitos clubes-empresa no Brasil, que tiveram seu ápice na década de 2000. Desde a adoção do formato de “pontos corridos” no futebol brasi-leiro, em 2003, o número de clubes-empresa nas duas principais divisões nacionais girou em torno de 8 clubes, sendo quase sem-pre 7 deles na Série B e um na Série A. O número recorde foi de 9 clubes-empresa disputando juntas a Série B de 2007, praticamen-te metade dos participantes do torneio. Apenas nas edições 2005 (Brasiliense e São Caetano) e 2009 (Santo André e Barueri) dois clubes-empresa chegaram a jogar juntos a Série A.

Participaram da Série B ao menos uma vez: Bragantino, Gua-ratinguetá, Ituano, Marília, Mogi Mirim, Paulista, Oeste, União São João (de São Paulo); Boa Esporte/Ituiutaba (de Minas Gerais); Duque de Caxias e Macaé (do Rio de Janeiro); Gama (DF); Lu-verdense (MT). Participaram da Série A: Barueri/Prudente, San-to André e São Caetano (de SP); Chapecoense (SC), Brasiliense (DF), Ipatinga (MG).

Apesar da redução considerável dos últimos anos – apenas quatro clubes-empresa na Série A e B de 2016 e 2017 –, é pouco provável que não surjam novos empreendimentos do mesmo por-te, afinal, esses clubes possuem curto tempo de vida. Dentre os que foram listados entre os que já participaram da Série A, nada menos que quatro deles praticamente encerraram as suas atividades, ou se encontram nas últimas divisões dos campeonatos estaduais de ori-

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gem. Outros seis, dentre os listados como participantes da Série B, passam pela mesma situação, não se encontrando nem na disputa da Série D de 2016.

A verdade é que boa parte desses clubes não conseguiu estabe-lecer raízes ou mesmo articular um quadro social capaz de man-tê-los em atividade mesmo nos momentos mais difíceis ou quan-do da desistência de investimentos da parte de seus proprietários. São clubes que surgem de canetadas, vivem de negócios frívolos e não contribuem em basicamente nada para o futebol brasileiro enquanto elemento cultural.

Vale destacar que a maioria dos clubes listados é oriundo dos estados mais ricos do Brasil. São grandes economias, capazes de articular capitais diversos para desenvolver tais projetos. O caso de São Paulo merece ainda mais destaque por se tratar do único esta-do onde o campeonato estadual é de fato rentável; e é exatamente a federação da qual saíram os dois últimos presidentes da CBF: José Maria Marin e Marco Polo Del Nero. Talvez um estudo mais pro-fundo seja capaz de estabelecer uma relação entre o surgimento e o financiamento desses clubes menores (em detrimento de tantas equipes paulistas de médio porte que são tradicionais e de grande torcida) com a captação de poder político desses dirigentes no xa-drez político do futebol nacional.

O que importa é ressaltar o quanto a existência desses clubes tem sido prejudicial para clubes de grande torcida que se localizam em estados mais pobres. No Pará, uma das primeiras escolas brasilei-ras do futebol, o Paysandu pena para se manter na Série B, e o Remo nunca passou da Série C desde o início dos pontos corridos em 2003. Os principais clubes do Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas, passam por problemas semelhantes, disputando espaço com clubes de bem menor tradição, mas com contas bancárias muito maiores.

Mesmo clubes de porte mediano na escala nacional já passa-ram pelo mesmo problema, com destaque para os grandes da re-

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gião Nordeste. Vitória, Bahia, Sport, Santa Cruz, Ceará e Fortaleza (esse último na Série C) já deixaram de disputar a elite do futebol nacional por conta de vagas perdidas para clubes-empresas que deixaram de existir menos de cinco anos depois.

Essa faceta brasileira do que optamos por chamar de “plastic football” encerra a nossa empreitada sobre a história do futebol a partir da localização do clube, do jogador, do estádio e da torcida em tantos e distintos momentos. Como anunciado, buscamos tra-tar desses movimentos com atenção à conjuntura material de cada contexto, salientando os processos que se antecipavam no centro econômico da indústria e observando o movimento dos distintos atores econômicos que se faziam presentes e se confrontavam, alte-rando os rumos do futebol.

A partir daqui investigaremos de forma separada o estádio e a torcida, para captar os marcos históricos e elementos político-e-conômicos que nos trazem à realidade que decidimos destacar, da formação dessa nova cultura torcedora, dialética por princípio: por um lado, da mercantilização do futebol e do controle do público dos estádios e seu apassivamento e, por outro lado, da tomada de uma postura ativa e de resistência dos torcedores no enfrentamen-to dessa mesma mercantilização que agride e exclui.