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Dinâmica de sentidos em manifestações políticas de 2014 Organização Cândida Emília Borges Lemos Mariana Mól Gonçalves

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Dinâmica de sentidos em manifestações políticas de 2014

OrganizaçãoCândida Emília Borges Lemos

Mariana Mól Gonçalves

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RAZÃO PURA, RAZÃO SENSÍVEL

Dinâmica de sentidos em manifestações políticas de 2014

Cândida Emília Borges Lemos Mariana Mól Gonçalves (Org)

Belo Horizonte | Minas Gerais | Brasil | 2016Centro Universitário UNA

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© UNA 2016 Todos os direitos reservados

Este eBook é uma publicação de livre acesso.

Capa: Luiz Fernando Toussaint Caetano – Agência

Experimental Luna

Projeto gráfico e edição digital: Pedro Coutinho

Fotografias dos autores: Magda Santiago

Formato eBook, 116 páginas

Publicação: Novembro de 2016

Editor: Instituto de Comunicação e Artes (ICA)

Centro Universitário UNA

Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Diretor do ICA: Rafael Ciccarini

Vice-Reitora UNA: Débora Guerra

LEMOS, Cândida Emília Borges; GONÇALVES, Mariana

Mól (Org.). Razão Pura, razão sensível: Dinâmica de

sentidos em manifestações políticas de 2014. EBook.

Belo Horizonte: UNA, 2016.

una.br/icapesquisa

1. Democracia - Brasil. 2. Aspectos sociais. 3.

Comunicações digitais. 4. Manifestações. 5.

Circulação de Sentidos 6. Semiótica. 7. Análise do

Discurso

CDD: 302.2 – Comunicação social

ISBN: 978-85-87284-32-7

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Sumário

Prefácio

Apresentação

Reductio ad polos (Estou por dentro porque reitero)

Julio Pinto

I - Cultura, narrativas e produção de sentidoMuro é símbolo da divisão no âmbito das ideias que separa a NaçãoCândida Emília Borges Lemos

Eleições presidenciais 2014: o avanço potencial da juventude facistaJéssica Parreiras Marroques

Sobre vídeos, manifestações e montagensMariana Mól Gonçalves

Educação e Comunicação como leitura crítica do mundo e de si mesmo mesmo: análise dos vídeos veiculados pela TV Carta em outubro/2014Cláudia Chaves Fonseca

II - Estratégias discursivas e semióticasConstrução e representação da realidade no discurso oposicionista: uma abordagem críticaIzabella dos Santos Martins

Intertextualidade no discurso político das ruas: entre brados e diálogosMaria Magda de Lima Santiago

Afetos em disputa: razões e economias patêmicas no contexto eleitoralCarlos Jáuregui

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Prefácio

por Cândida Emília Lemos Borges e Mariana Mól Gonçalves

Este eBook é resultante da pesquisa “Razão pura e razão sensível: estudo da dinâmica de circulação de sentidos a partir de vídeos”, realizada por professores do Instituto de Comunicação e Artes (ICA) do Centro Universitário UNA, que integram o Grupo de Pesquisa Produção Criativa em Comunicação, coordenado pelo professor Julio Pinto, criado em 2014. Desta pesquisa também integrou a aluna do curso de Cinema e Audiovisual Jéssica Parreiras Marroques, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig).

O artigo de Julio Pinto, Reductio ad polos (Estou por dentro porque reitero), apresenta as balizas por onde transitaram as pesquisas relativas a vídeos elaborados pela TV Carta, da revista semanária Carta Capital; e TV Folha, do diário Folha de S. Paulo, em 2014, veiculados nos portais de ambas publicações e também postado no Youtube, replicados e comentados por milhares de posts que pululavam na vida digital, quando Dilma Rousseff foi reeleita presidente do Brasil. E questiona o professor: “Nos embates políticos, não é isso o que testemunhamos? Uma política prêt-à-porter, com intermináveis clichês que rotulam isso e aquilo?”

A Parte I - “Cultura, narrativas e produção de sentido” agrupa quatro artigos que abordam:

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a construção e as origens das narrativas de ódio e intolerância política que marcaram as manifestações reais e virtuais da vida política nacional no período em tela; análise dos relatos dos jovens que aparecem nos vídeos e demonstram o entendimento sobre o recorte individual e coletivo da conjuntura naquele momento. Já o terceiro, a partir dos vídeos, avalia as estratégias e discursos a partir da análise fílmica dos dois produtos audiovisuais, seu conteúdo narrativo, para se discutir a produção de sentidos a partir deles. A primeira parte fecha com o artigo que discorre como a dinâmica discursiva apresentada pelos vários interlocutores em interação em vídeo – interação entre eles mesmos, com a câmera e com o público – que tece uma rede semiótica com intencionalidade formativa.

A Parte II - “Estratégias discursivas e semióticas” agrupa três artigos: no primeiro, utiliza-se Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) para se analisar as estratégias do discurso oposicionista de utilizar recursos linguísticos como a nominalização e a construção de orações identificativas para nomear a realidade brasileira. Já o segundo artigo parte dos diálogos interdiscursivos e da escolha temática, além dos efeitos de dramatização, noções apresentadas pela Análise do Discurso Francesa. O último artigo lança o olhar

voltado para a comunicação de afetos por meio do discurso, em que a dimensão afetiva dos discursos midiáticos parte de uma posição contrária à tradicional dicotomia entre razão vs. paixão.

Agradecemos à UNA por valorizar nosso trabalho e, assim, podermos compartilhá-lo.

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Desde a Academia de Platão, que ficava nos subúrbios de Atenas e, portanto, algo apartada da agitada vivência política da Ágora, a universidade se defronta com questões concernentes ao problema intra/extra muros. Nesse contexto, é impossível não mencionar nesta apresentação do livro Razão Pura, Razão Sensível o fato de que os movimentos de 2013-2014 no Brasil, que são o insumo básico para as reflexões aqui propostas, aconteceram literalmente na porta do Instituto de Comunicação e Artes da Una (além, claro, em milhares de espaços nas cidades brasileiras). A rua da Bahia, onde se localiza nosso instituto e na qual começam e terminam muitas das narrativas míticas da cidade, foi mais uma vez cenário da História. Ela aconteceu diante de nós, alunas, alunos, professores e professoras – e dela fomos testemunhas e agentes.

Abrigando os cursos de Cinema e Audiovisual, Jornalismo, Moda, Publicidade e Propaganda e Relações Públicas (e, partir de 2017, também os de Arquitetura, Design Gráfico e Design de Interiores), o ICA tem em sua trajetória, para além da busca constante e obstinada pelo aperfeiçoamento e inovação nas mais diferentes frentes que compõem a vida acadêmica, a marcante atuação na esfera pública em projetos e ações com foco no respeito à diversidade, no combate à intolerância e ao

Apresentação

por Rafael Ciccarini

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preconceito, na defesa à pluralidade de visões de mundo e ao exercício pleno da cidadania: valores que são essenciais na construção de uma democracia no e para o século XXI.

Depois das publicações de Olhares Contemporâneos volumes I e II (2011, 2015) e Mulheres Comunicam (2016) que também trazem consigo essa urgência, essa pulsão pelo enfrentamento de questões decisivas na atualidade da polis, Razão Pura, Razão Sensível, quarta publicação de nosso instituto, traz consigo um gesto ao mesmo tempo corajoso – porque não se furta à tarefa de pensar “no quente” os complexíssimos processos culturais e políticos subjacentes às manifestações – e comedido, por saber-se, desde o princípio, uma publicação que não tem a pretensão de sequer sumarizar o universo infindável de saberes e recortes possíveis que seriam necessários para exaurir analiticamente um processo tão recente e singular na história política e social brasileira.

Fruto do trabalho pertinaz dos professores e professoras e da discente bolsista que integram nosso grupo de pesquisa – conduzido com o misto de rigor e generosidade que singulariza a trajetória do professor Julio Pinto ao longo das últimas décadas – nossa publicação já terá cumprido seu papel se lançar alguma luz,

discreta que seja, ao obscurantismo que se instalou em meio ao radicalismo das paixões irrefletidas, das reiterações reconfortantes, da velocidade utilitarista que aplaca a diferença e, portanto, atenta contra a própria liberdade. Se outrora estivemos no seio do acontecimento e sequer pudéssemos supor o que se daria a partir dele, agora, fazemos esse meneio, esse pequeno movimento de recuo, ou, se quiser, uma tentativa de colocar a cabeça para fora da água e respirar. Não é pouco.

Rafael Ciccarini é Diretor do Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA

[email protected]

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Reductio ad polos (Estou por dentro porque reitero)

por Julio Pinto

Por que as pessoas simplesmente reproduzem a fala alheia, em vez de procurar ter ideias próprias? Seria por razões de mero comodismo, ou estupidez, ou uma combinação dessas coisas? Pode ser, ao se pensar nisso, que haja outras respostas com dimensão explanatória um pouco melhor, por serem menos rápidas. Aliás, a rapidez para suprir respostas é, na minha observação, uma manifestação estridente da contemporaneidade. Mas, como contemporâneos pouco contemporâneos, talvez devêssemos insistir no slow, em vez de no fast.

Quando Agostinho propôs, talvez pela primeira vez como parte de uma arquitetura conceitual sistemática, um algoritmo para a noção de signo – espantosamente semelhante ao que Saussure veio colocar vários séculos depois – ele o fez a partir do princípio do ser do real: o signo não era visto por ele como uma afecção mental, à maneira platônica, mas algo na esfera do mundo sensível. Daí, fumaça como signum só podia se ligar a fogo como signatum. Idem para o signum nuvem e signatum chuva, e assim por diante. O caráter indicial dessa referência salta aos olhos.

É muito fácil fazer dessa indicialidade uma conexão amarrada, numa relação que Aristóteles talvez chamasse de causação

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eficiente: a fumaça necessariamente conduz ao fogo como seu sintoma. Isto é, não é apenas o caráter dêitico da referência que está em jogo. A deixis certamente ajuda a compor essa necessariedade do apontamento que fumaça faz a fogo, mas não é, em si, necessária. O dêitico só aponta, numa teleologia frouxa, por assim dizer.

Ora, isso posto, é possível recolocar a questão: que teleologia é essa que faz com que as pessoas transformem em conexão obrigatória aquilo que é, no máximo, contingente? Por que um único sintoma é tomado como indicador absoluto de uma doença?

Desde a proposição da causação formal extrínseca por Pedro da Fonseca em 1534, derrubando a conexão binária eficiente entre a representação e o representado, e a divulgação das pragmáticas no final do século XIX sabemos que, nas linguagens humanas (falo das verbais, gestuais, faciais, indumentárias, imagéticas, proxêmicas de maneira geral) não existe a univocidade semântica. A possibilidade de combinação de um número finito de classes fechadas (nas línguas naturais, por exemplo, seriam os pronomes pessoais, as preposições, os verbos irregulares, as conjunções) com um universo lexical praticamente aberto (palavras podem ser criadas, novos verbos são adotados,

etc.) conduz a um cenário praticamente infinito de asserções sobre o mundo, em que –n signos potencialmente significam –n objetos. Se a relação é de n-n, nenhum signo pode significar apenas uma coisa. A regra, nesse contexto de abertura de linguagem, é a da lógica da indeterminação, e não o contrário.

Ora, se o que predomina é o indeterminado e o inconcluso, a conexão entre o sinal e aquilo que o sinal assinala deve depender de algum processo interpretativo para que significações sejam derivadas. Um terceiro termo deve intervir, portanto, para que se instaure um processo de significar. Teoricamente, o resultado da interpretação deve ter a ver com ambos os termos da relação, isto é, o sinal e o assinalado, mas não é igual a nenhum dos dois.

A experiência contemporânea, no entanto, vem apontando na direção oposta. Traduzem-se os sentidos múltiplos em clichês redutores, no afã de se fazer o eixo interpretativo recair sobre o significado já adotado anteriormente. No mundo empresarial, na política e mesmo na educação esse fenômeno é evidente. O que se vê acontecendo é uma clivagem cada vez mais radical entre o saber e o agir, o pensar e o operacionalizar. Basta pensar no famoso slogan de certa grife esportiva: Just do it! No âmago de

Reductio ad polos (Estou por dentro porque reitero)

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tal exaltação do agir vislumbra-se a tecnologia como fundamento. A tekhné, avassalador arauto dos novos tempos brumosos, associada ao pensamento mágico da estratégia, ideológico mecanismo travestido de teleologia rígida (que, automaticamente, conduz ao lucro, fruto e razão do agir contemporâneo), produz uma lógica perversa que usa a linguagem como mero instrumento, e não como constituinte de um mundo do pensamento.

Esse discurso-instrumento, engrenagem basal que move aquilo que, na contemporaneidade, chama-se ensino (que, a rigor, não passa de adestramento mal feito) e jornalismo (numa perversa percepção de que a minha informação é a informação certa) vê o pensar crítico como supérfluo, gordura que se deve cortar em nome da economia. Sejamos objetivos, dizem eles. A fórmula infalível da felicidade / sucesso / boa reputação / salvação / lucro / etc./ etc./ etc./ é tal e tal isso assim assim. E tome checklists de procedimentos.

Essa economia de agora, aliás, anda longe do conceito grego de oikonomos – o apascentar da riqueza, distribuição equânime e adequada das ovelhas na pastagem para que todas se alimentem – e se aproxima da prática da usura, o guardar centavos por meio da velocidade de processos que conduzem, não

mais a um saber, mas à oferta de um produto, antigamente chamado de conhecimento, acompanhado de diploma, selo de garantia e carimbo de qualidade que se dá aos clientes compradores do ensino-mercadoria. Pior: essa usura se veste de magnanimidade perversa já que, para ela, a linguagem é parte da razão instrumental, e não o constituinte da ratio que sustenta o real pensamento libertador porque interpretativo. Essa razão de pura inferência, isenta de operacionalização, é que realiza em seu decurso natural a desejável transformação dos saberes, ao contrário do adestramento técnico, banal, supérfluo e transitório, ainda que travestido com o glamour barato do sucesso endinheirado, que o novo oikonomos oferece aos deslumbrados incautos. Esse é o saber traduzido em chavões: “satisfazer o cliente,” “superar expectativas”, “buscar sinergias”, “comunicação não é o que se diz, mas o que se entende” (de onde veio tão leviana generalização que ignora que as teleologias do sentido procedem de razões sociais compartilhadas segundo dispositivos lógicos que se criam e recriam o tempo todo, atingindo emissores e receptores indistintamente?), “receitas de como ser criativo e como inovar” (ora, a criatividade não seria exatamente o oposto do adestramento?). E essa inovação bem comportada é inovação mesmo?

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Nos embates políticos, não é isso o que testemunhamos? Uma política prêt-à-porter, com intermináveis clichês que rotulam isso e aquilo? É bem verdade que as palavras de ordem sempre constituíram o caroço semântico do discurso político. São elas os interpretantes já prontos para servir às massas, ingredientes capazes de suscitar e elicitar as emoções e indignações que vão conduzir à mobilização e aos atos públicos. A polarização é nossa velha conhecida. A ascensão da burguesia e o fortalecimento das ideologias românticas transformaram a hubris trágica – destino inevitável do herói, forçado a escolher entre dois percursos igualmente válidos – em patética escolha entre o bom e o mau, entre ser o mocinho ou ser o vilão. O drama burguês tradicional divide o mundo de forma cristalina: o bom é recompensado, o mau é punido. E é humano julgar-se que o mau é sempre quem não é como nós.

Por outro lado, é possível supor que há uma aparente diferença na polarização tal como aparece nos nossos tempos digitais. Nesse sentido, podemos retomar a velha máxima de Berkeley -- “ser é ser percebido” – que nos acompanha desde o século XVIII, mas que tem validade desde sempre. É ponto pacífico afirmar que as redes digitais em que praticamente vivemos potencializam essa

perceptibilidade de nós pelo Outro. E mais, elas parecem nos aproximar do Outro, o nosso espelho. E o like é o piscar de olho que nos aprova e nos incentiva a prosseguir na nossa brilhante carreira de repassadores de memes e ideias congeladas, prontas para servir. O outro que não nos vê, mas que nos dá o seu like, é o incentivo de que precisamos para confirmar que há mais pessoas que pensam como nós, porque, nas redes, o outro não é a diferença, mas a identidade. Cai-se, portanto, no jogo de nós contra eles, em que os “eles” são os diferentes de nós e, exatamente por isso, são os vilões.

Os significados cristalizados, já velhos conhecidos, acabam, por isso, sendo reverberados socialmente com rapidez e eficiência (no sentido aristotélico do termo). Criam uma lógica da determinação porque enrijecem a deixis outrora frouxa da relação entre signum e signatum. A transformação dessa teleologia não-diretiva, não determinista, em processo télico necessário e forçoso é equivalente a fazer esbater o eixo interpretativo sobre o eixo do significado dado, isto é, exclui o processo interpretativo (porque o torna redundante) igualando-o àquilo que todos (nós, os iguais) já sabemos. Um poderoso ingrediente dessa alquimia semântica é, certamente, o sentimento de pertença, a

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Reductio ad polos (Estou por dentro porque reitero)

esperança do like alheio, sensações primárias que se tornam o combustível de nossa indignação e de nosso nobre engajamento em uma causa cujos contornos não conseguimos discernir muito bem.

Se o eixo interpretativo recai sobre um significado congelado, dispensa-se confortavelmente o sujeito de interpretar. A digestão dos enigmas de sentido já está feita. A esfinge do “Decifra-me ou te devoro” já está adestrada e está sendo aos poucos destruída pelas ventanias digitais, que já têm as soluções antes mesmo de o enigma ser proposto. Daí nossa impressão de que o que estamos testemunhando nas falas políticas das manifestações é raso, perfunctório, e reiterativo em sua estupidez. E é mesmo.

Estaremos, com isso, recolocando Agostinho no trono semiótico?

coautoria com Vera Casa Nova (Belo Horizonte: Autentica, 2009), além de algumas dezenas de capítulos de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Foi vice-presidente (2009-2011) e presidente (2011-2013) da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação - Compós. Fundador e primeiro coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFMG e, posteriormente, da PUC Minas. Coordena atualmente o grupo de pesquisa do ICA/UNA.

Julio Pinto, PhD University of North Carolina at Chapel Hill, pós-doutor Universidade Católica Portuguesa (Lisboa), professor de semiótica da PUC Minas e da UNA, autor de The Reading of Time (Berlim: Walter de Gruyter, 1989), 1, 2, 3 da semiótica (Belo Horizonte: UFMG, 1995), O ruído e outras inutilidades (Belo Horizonte: Autentica, 2002), Algumas Semióticas, em

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I - Cultura, narrativas e produção de sentido

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Muro é símbolo da divisão no âmbito das ideias que separa a Nação

por Cândida Emília Borges Lemos

Quando o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer idealizaram Brasília como a capital do Brasil, projetaram o Eixo Monumental que acolhe a Esplanada dos Ministérios, a Praça dos Três Poderes, a Catedral Metropolitana. Ao meio, está o extenso gramado. São símbolos que personificam a democracia e a divisão dos poderes. E o gramado que campeia o Eixo é percebido como o espaço do povo, a fonte e a razão de todos os poderes.

O que diriam Costa e Niemeyer se hoje aqui estivessem, se vissem o muro que se ergueu no gamado do Eixo Monumental de Brasília, em meados de abril de 2016? Por meio dele, apartaram-se dois pensamentos, dois propósitos, duas vertentes. O muro fora o símbolo da divisão no âmbito das ideias que separa a Nação desde 2014, ao menos, quando da reeleição da presidente da República Dilma Rousseff.

Este artigo que analisa vídeos veiculados nos sítios da internet do jornal Folha de São Paulo e da revista Carta Capital, nos períodos pré-eleitoral e eleitoral da reeleição da presidente da República do Brasil, Dilma Rousseff, em 2014. Tais vídeos apresentam manifestações em espaços públicos de opositores ao governo Rousseff, portanto, contrários à sua reeleição e depois do pleito, passariam a ser defensores

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do impeachment dela. Nos vídeos, pessoas expressam sua visão de mundo e o próprio entendimento que têm do país e da democracia.

Portanto, cabe problematizar: Quais mensagens perpassam nas narrativas discursivas de cidadãos que foram às ruas contra o Governo Rousseff? O que ostentaram cartazes, faixas, roupas e outros símbolos usados por manifestantes? A mídia participou, em que medida, da construção dessas narrativas e da construção do cenário de ódio?

Repulsa ao coletivo

Percebe-se na segunda década do século XXI no Brasil a quebra da noção do bem-comum, do consenso democrático e dos próprios princípios que balizaram a formação do Estado Moderno. Rousseau (1978 [1762]) acredita que a sociedade unitária se expressaria pela vontade geral, por meio da formulação de leis, e estas evitariam a opressão social pelo Estado.

A vontade geral de Rousseau não é a soma de interesses individuais, pois estaria acima destes e diz respeito ao bem-comum de uma sociedade, estabelecido por meio do contrato social firmado entre os cidadãos:

Sendo todos os cidadãos iguais pelo contrato social, o que todos devem fazer, todos podem prescrever, enquanto ninguém tem o direito de exigir de outrem que faça aquilo que ele mesmo não faz. Ora, é precisamente esse direito, indispensável para fazer viver e movimentar-se o corpo político, que o soberano dá ao príncipe ao instituir o Governo. (1978 [1762], p. 111).

Rousseau questiona sobre os direitos dos dissidentes, no contexto da Vontade Geral: “Como o homem pode ser livre e forçado a conformar-se com vontades que não a sua. Como os opositores serão livres e submetidos a leis que não consentiram?” (1978 [1762], p. 120). E responde: “A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral: por ela é que são cidadãos livres”. Nesta perspectiva, está implícita a ideia do pacto voluntário que cada indivíduo fez na direção de se formar o corpo social, na convivência comum. A quebra da submissão aos interesses majoritários colocaria em causa a própria vida em sociedade e se voltaria ao estado de barbárie.

Nas sociedades contemporâneas, observa-se a escalada dos interesses particularistas, das multidões que não se somam, que não conseguem se expressar de acordo com

Muro é símbolo da divisão no âmbito das ideias que separa a Nação

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interesses e visões de conjunto. Rancière (2014) afere que o fenômeno dos indivíduos atomizados gera o triunfo do número e da força. O individualismo associa-se à repulsa ao coletivismo. Logo, “a crítica ao ‘individualismo democrático’ é simplesmente o ódio à igualdade pelo qual uma intelligentsia dominante conforma que é a elite qualificada para dirigir o cego rebanho” (RANCIÈRE, 2014, p. 88).

A definição da vontade coletiva, a qual Platão já falava e Rousseau a defendia, seria a única capaz de retirar o homem da barbárie, porém, não equaciona um problema crucial: o da desigualdade e da igualdade (RANCIÈRE,2014). Mais ainda, por estas persistirem há necessidade de leis que busquem balancear as oportunidades aos indivíduos e o cumprimento delas submete-se ao uso da força em última instância.

Na consolidação das democracias e da participação efetiva do cidadão, volta à baila a problemática das elites e das massas e do peso de cada um na ágora do século XXI. No Brasil atual, a vida virtual, sobremaneira, as vivências nas redes sociais reverberam estas divisões entre elites e massas. O valor do sufrágio universal foi colocado em causa por

cidadãos que frequentam espaços coletivos virtuais e físicos.

Tais fenômenos não estão circunscritos ao Brasil, mas ganham esfera global, em maior ou menor escala de acordo com as particularidades culturais e históricas de cada país. Rancière, com vistas à eliminação de tensões entre a sociedade e o Estado, categoriza a ideologia neorrepublicana, segundo a qual “elimina a própria política”, uma vez que “sua defesa de instrução pública e de pureza política equivale situar a política unicamente na esfera estatal, com o risco de pedir aos gestores do Estado que sigam os conselhos das elites esclarecidas” (2014, p. 89-90).

E questiona Rancière: “Como compreender que, no interior dessas ‘democracias’, uma intelligentsia dominante, cuja situação não é desesperada e que pouco aspira a viver sob outras leis, acuse dia após dia, entre todas as desgraças humanas, um único mal chamado democracia?” (RANCIÈRE, 2014, p. 91)

O indivíduo egoísta foi transformado em consumidor ávido, ele é o homem democrático. Nesta democracia providencial, observa-se a ruína do bem-comum. Percebem-se, neste contexto, que as relações sociais “perderam

Muro é símbolo da divisão no âmbito das ideias que separa a Nação

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o horizonte político e metafísico” (RANCIÈRE, 2014, p. 109).

Portanto, “a democracia passa a ser identificada como a busca de crescimento indefinido, inerente à lógica da economia capitalista”. Em consequência, o latente desinteresse pelo bem público dá espaço para que campeiem as paixões particularistas, na visão do consumidor.

Nessa perspectiva, observa-se a quebra da autoridade, já que teoricamente todos seriam iguais e ninguém saberia mais que nenhum outro. Reinam, assim, as relações contratuais entre indivíduos. Nesta democracia providencial, as relações sociais passam a ser pautadas na lógica do prestador de serviços e do cliente, sejam eles professor e aluno; padre e crente; médico e paciente. (RANCIÈRE, 2014).

Junto à lógica do “prestador de serviços” está a percepção do sentimento de ódio na sociedade brasileira atualmente, o qual já começa a ser fenômeno de análise de estudiosos nos campos das Ciências Sociais e Políticas; da Filosofia e da Psicanálise.

A negação do Outro

No Brasil pós-inflacionário, ciclo que teve início em 1994, Christian Dunker detecta o surgimento de um fenômeno social bem específico nos extratos médios: o entendimento do país como se ele fosse um condomínio fechado. Na lógica do condomínio, este configura-se como local “fortemente delimitado (muros, no qual a representação é substituída pela administração funcional (o síndico) que cria uma rígida lei própria (regulamento) conferindo suplemento de identidade moral a seus habitantes” (DUNKER, 2015a, p. 58).

Ressalta-se a constatação de que, na busca do isolamento do condomínio, a abolição das diferenças, o reforço das relações entre iguais e a assepsia das relações humanas são pontos de partida para esse entendimento. “Os outros estão excluídos”, observa Dunker (2015ª, p, 73). O que venha a prejudicar ou alterar a ordem vigente passa a ser visto como um objeto intruso: “Há algo ou alguém que está a mais em nossa forma de vida e que, ,uma vez excluído, reequilibrará nossa experiência, aproximando-a do bem-estar” (DUNKER 2015b, p. 4). Nessa mesma lógica, o autor detecta outra vertente para a busca da felicidade na vida em condomínio: “[...] “Sofremos porque

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há um pacto malfeito, ou porque alguém não está cumprindo o pacto, ou ainda que esse pacto precisa ser refeito em novas bases, para que então o sofrimento seja tratado” (DUNKER, 2015b, p. 4).

No caso do segundo governo da presidente Dilma Rousseff (2015-2016), o condomínio havia perdido sua paz, se é que já conhecera algo dia, mas dessa vez:

A segregação que antes se fazia à distância e sem afetação direta, conforme assepsia impessoal que vigora na violência silenciosa dos condomínios, agora perdeu a vergonha e proclama abertamente seu mal-estar, contra essa proximidade indesejável dos pobres. A antiga tolerância benevolente, como ou sem democracia racial, tornou-se ódio explícito (DUNKER, 2015b, p. 5).

A partir da definição do ódio como uma emoção, Márcia Tiburi (2015) ressalta que manifestações desse sentimento pululam nas mídias digitais e já pertencem à sociedade e não são exteriores à esta.

Tiburi aborda uma particularidade bem intrínseca do sentimento de ódio no Brasil: “Não se tem vergonha dele, ele está autorizado hoje em dia e não é evitado. A estranha autorização

para o ódio vem de uma manipulação não percebida a partir de discursos e de dispositivos criadores deste afeto” (TIBURI, 2015, p. 30).

Este sentimento de ódio apresenta algumas características que o aproximam do pensamento pertinente às ideias totalitárias que campearam na primeira metade do século XX. Os elementos irracional e voluntarista e a capacidade mobilizadora da pequena burguesia são considerados como características basilares do movimento fascista italiano (SACCAMANI, 2000). Nesta perspectiva, a filósofa Marilena Chauí alerta a respeito do movimento conservador que grassa no Brasil, caracterizado por ela como “conservador, reacionário, de extrema direita e protofascista que toma conta da pauta política” (2016, p. 10).

Por direita, compreendida no espectro ideológico de uma dada sociedade, adotamos, aqui, neste trabalho as referências conceituais apresentadas pelo cientista político Leonardo Avritzer (2016, p. 142), nas quais “há a ambivalência em relação à democracia, a defesa irrestrita da economia de marcado desregulada e a expressão de preconceitos em relação a grupos”.

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Nessa pauta regressiva, do ponto de vista dos direitos sociais e humanos, pontuam-se as críticas à união de pessoas do mesmo sexo, a condenação do aborto, a favor do armamento civil e a redução da maioridade penal, hoje estabelecida em 18 anos. Aos olhos de Chauí, esta vertente à direita de parcela da sociedade brasileira não fora prevista pela esquerda, que focava sua pauta em questões da democracia e do socialismo: “Foi pega completamente despreparada por uma onda de extrema direita que repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em vigência no início dos anos 1960” (CHAUÍ, 2016, p. 10).

O verde-amarelismo fora embrião da Ação Integralista Brasileira, de inspiração fascistas nos anos 1930. Bem antes disto, o símbolo icônico das cores em destaque na bandeira nacional foi uma construção das elites: “Para servir de suporte e de auto-imagem celebrativa, enfatizando o lado ‘bom selvagem tropical’ que constituiria o caráter nacional brasileiro na perspectiva das oligarquias agrárias, embevecidas com o mito brasileiro do brasileiro cordial, ordeiro e pacífico” (CHAUÍ, 1986, p. 96).

Revestido para novos ambientes sociais e políticos que permeiam a história do país desde a independência de Portugal (1822), a sociedade

brasileira alimentou-se de uma série de mitos: “Embora contestados pela vida cotidiana e pela prática diária, permanecem incontestáveis como representações justamente porque são mitos” (CHAUÍ, 1986, p. 97).

Chauí, já nos anos 1980 quando da democratização do país após 21 anos de Regime Militar, percebia que no interior da Nação as pessoas, embora falassem a mesma língua, não têm a mesma linguagem e, assim, “surgem uma verdadeira proliferação de falas sobre a Nação” (p.113). Embutidos nestas linguagens e nos discursos, a Nação “só atinge a condição de realidade social, política e cultural enquanto se constitui como enunciado linguístico”. Entretanto, nos discursos que se pretendem dizer a Nação, “o movimento invisível que leva cada um dos discursos sobre a Nação a se apresentar como discursos para a Nação e, finalmente, a pretender ser o discurso da Nação [...]” (CHAUÍ, 1986, 114).

Historicamente, tem-se lidado no país com as diferenças e com a alteridade de forma bastante problemática. Por um lado, o diferente está autorizado a ser inserido no contexto das diversidades regionais que podem ser integradas no todo do país. Por outro lado, há o tratamento da exterioridade, “como o outro

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da Nação, situado, de jure, fora dela” (CHAUÍ, 1986, p. 116).

Como exemplo dos que estariam foram do conceito hegemônico de Nação está a própria legislação brasileira que aboliu a diversidade ideológica nas primeiras décadas do século XX, quando socialistas, anarquistas e anarco-sindicalistas foram expulsos do país “como estrangeiros perturbadores da ordem; ou na definição das doutrinas revolucionárias como ‘exóticas” (CHAUÍ, 1986, p. 116). São questões que não se resolveram, em boa medida, quase um século depois.

No fomento às ideologias, valores e pensamentos no corpo social, os meios de comunicação surgem como protagonista de destaque, ao lado de outros, como sistema de ensino, núcleo familiar, formação religiosa, etc. Em sociedades complexas e midiatizadas, estes elementos não operam de forma estanque, pois são multifacetados. Sartori avalia que o termo opinião pública só tenha adquirido sentido próprio quando a tecnologia permitiu o surgimento da imprensa, pois o poder de eleger os governantes não garantiu a democracia, entretanto, esta garantia somente se cristaliza quando o cidadão passou a obter informação e a ser exposto aos formadores

de opinião, entre os quais está a imprensa. (SARTORI, 1994).

Nos regimes democráticos, o bom funcionamento de suas instituições exige “uma cultura de tolerância e pluralidade valorativa” (AVRITZER, 2016, p. 132). Neste contexto, ressalta-se que a mídia é compreendida aqui como instituição fundamental na estrutura de uma sociedade democrática, portanto, deve-se pautar também pela tolerância e pela pluralidade ideológica, sobretudo, em relação a quem ela discorda.

À vida política democrática cruza-se a informação dos cidadãos para se formar suas ideias, desejos e ações (SARTORI, 1994). Então, como compreender as sociedades do século XXI nas quais os aparatos técnicos possibilitam e criam conteúdos e informações, difundidos em dispositivos móveis e fixos de grande acesso da população?

Importante ponderar acerca do alcance limitado de qualquer aferição das influências da mídia sobre o cidadão, pois os efeitos “seguem incertos”, como observam Arato e Cohen:

Se soubermos algo sobre a importância e operação dos meios de comunicação

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de massa e sobre a distribuição de papéis entre o público e os vários atores e se podemos fazer algumas conjecturas razoáveis sobre quem tem o poder dos meios, não seria claro, em absoluto, como os meios intervêm no insondável círculo de comunicação na esfera pública (1999, p. 49).

Nesta trajetória, o poder da imprensa não está circunscrito “à influência dos meios nas suas audiências, mas envolve também o papel destes no quadro mais vasto das estruturas sociais, culturais, políticas ou econômicas da sociedade”, diagnostica Van Dijk (2005, p. 73).

Nessa perspectiva, mesmo que os detentores do discurso, como os políticos, os canais hegemônicos de TV, os produtores das notícias e sua difusão, os publicitários possam incitar o ódio e as manifestações dele, isto não é “suficiente para sustentá-lo, de modo que, para que o ódio persista, sua experiência precisa afirmar-se ‘horizontalmente’, ou seja, precisa ser compartilhada pelos pares” (TIBURI, 2015, p. 34). No tema em questão, o ódio precisa ser compartilhado e fortalecido nas redes sociais virtuais e reais, nos grupos familiares, nas ferramentas de convívio virtual. “[...] pelo fomento do ódio ao outro, transforma a todos em fascistas” (TIBURI, 2015, p. 34).

Sobre a formação de mentalidades semelhantes ao Nazismo e ao Fascismo nos dias atuais, cabe recordar um importante estudo empírico realizado pela Escola de Frankfurt na década de 1930, referente à mentalidade dos trabalhadores da República de Weimar, que conferia a realidade de a classe operária alemã ter aceito o Nazismo sem nenhuma resistência. A personalidade autoritária e suas origens foram um dos temas mais caros à Escola. Horkheimer, ao esboçar a autoridade política e a própria ascensão da Nacional-socialismo, avançou na direção de que estes fenômenos combinaram meios racionalizados e fins irracionais, e esta combinação fora “tão característica do fascismo” (citado por JAY, 1986, p. 204-205).

Nas manifestações antiPT e antiDilma, o perfil dos manifestantes fora nitidamente de classe média e média alta. Segundo Leonardo Avritzer, ‘em sua versão menos, esses atores investem contra os mais pobres, os programas de transferência de renda e os novos segmentos incluídos da população brasileira” (2016, p. 106).

Essa classe média que portava a camisa verde-amarela da seleção brasileira de futebol, nas ruas, empunhava bandeiras negativas para a supressão de direitos do cidadão. Se em 2013

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as manifestações apresentaram uma gama extensa de reivindicações, como melhorias na saúde e na educação, nos anos seguintes “as manifestações não apresentam demandas e sim propõem a remoção da presidenta de uma maneira que estressa o processo político e as regras da democracia no país” (AVRITZER, 2016, p. 125).

A direita brasileira no movimento civil e militar de 1964 esteve às ruas para pedir a intervenção militar a fim de evitar-se um hipotético regime comunista no Brasil (LAMARÃO, 2004). Depois de vitorioso o movimento e a consequente vigência do Regime Militar por 21 anos, ela recolheu-se nos 50 anos seguintes. Não voltou às ruas de forma expressiva e muitos pensaram que ela não mais existia. Ela o fez nas difusas manifestações de 2013, nas quais as agendas iam da liberação do casamento entre homo afetivos, passavam pela liberação da maconha, iam nas verbas para educação e saúde, esbarravam no combate à corrupção e alguns já empunhavam a agenda conservadora de cunho moral (AVRITZER, 2016).

Em adicional, a nova direita, cujas mensagens são, em larga medida, visualizadas e replicadas nas redes sociais da internet, adicionou um ingrediente nada salutar à vida democrática: a intolerância política. Além das manifestações

de rua e mobilização na web, a nova direita compôs uma “pauta antidemocrática com forte inserção no Congresso Nacional que procura romper com a separação entre religião e Estado e ameaça os direitos civis” (AVRITZER, 2016, p. 115).

Limpeza da pátria

Na construção das narrativas contrárias ao PT e ao governo federal quando das gestões de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) – com mais intensidade nesta última-, elas foram publicizadas e verbalizadas. Nas manifestações de rua e também pulularam nas redes sociais virtuais. Nelas, a influência da imprensa é latente. A revista Veja tornou-se ponto de referência nesta construção, ao fornecer, mais além de conteúdos informativos, as linguagens e as expressões usadas e replicadas nas redes sociais e nas relações cotidianas das pessoas, sejam em seus grupos de trabalho e núcleo familiar. O neologismo “petralha” referente a pessoas ligadas ao Partido dos trabalhadores (PT) ou até mesmo aqueles apenas que apoiavam o governo Dilma foi criado pelo jornalista Reinaldo Azevedo, que tem um blog na versão on line de Veja, com cerca de 150 mil acessos diários.

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O neologismo mistura as palavras petista e metralha, este último referente aos personagens irmãos metralhas (The Beagle Boys), a quadrilha de ladrões dos desenhos animados da Disney.

Figura 1: Blog de Reinaldo Azevedo alojado no portal da revista Veja

Fonte: Veja, 2013, 22 agosto.

A narrativa de Azevedo escora-se em adjetivos depreciativos a todas as pessoas que se posicionam à esquerda no espectro ideológico. Por exemplo, quando do falecimento do mítico arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012), que fora assumidamente de esquerda, o blogueiro de Veja cravou: “Morre Oscar Niemeyer, metade gênio e metade idiota” (AZEVEDO, 2012).

O programa “Mais médicos”, um dos projetos estruturantes da saúde pública, que contratou

10 mil médicos para operarem no Sistema Único de Saúde, em 2013, foi aberto a profissionais estrangeiros e por meio de um convênio com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e o governo federal, centenas de médicos cubanos ingressaram no programa. Azevedo, então, estampou em manchete em seu blog: “Os 4 mil escravos de jaleco do Partido Comunista de Cuba custarão ao Brasil R$ 40 milhões por mês. Deve ser o maior escândalo do PT em quase 11 anos de governo” (AZEVEDO, 2013). Os profissionais de Cuba automaticamente já foram rotulados de pertencer ao Partido Comunista e, ao mesmo tempo, já viraram escravos. Realçam neste título as palavras-chave do discurso antiPT que são: Cuba, comunista, escândalo e PT.

Nas jornadas contrárias ao impedimento de Dilma Rousseff, organizadas por movimento populares, Azevedo acusava: “As manifestações mais agressivas foram registradas na cidade de São Paulo, onde os vândalos fecharam ruas e avenidas fazendo barricadas e ateando fogo em pneus” (AZEVEDO, 2016 – grifo nosso). Aos olhos do jornalista, as manifestações, por si só, denotam e envolvem agressão. Já os manifestantes são cunhados como vândalos, no sentido denotativo, destruidores de algo.

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Sobre o governador do estado de Minas Gerais, Fernando Pimentel, que é filiado ao PT, Azevedo assim se refere a ele: “Este senhor foi aluno da Escolinha de Marxismo da Professora Dilma Rousseff quando ainda era um adolescente” (AZEVEDO, 2015). Mais além: “Agora, chegou a hora de usar o Palácio da Liberdade para fazer guerrilha política contra adversários”. O título do artigo já usa a palavra terrorista duas vezes: terrorista e petralha continua presente nas palavras escolhidas por Azevedo: “Governador de Minas, um ex-terrorista, pratica terrorismo moral contra o governo do Paraná. Ou: A tática petralha para desestabilizar adversários” (AZEVEDO, 2015). No sentido denotado: pessoa que pratica o terror. Ou seja, a linguagem da Guerra Fria que propagava a ideia da luta do bem contra o mal, no embate dos deuses contra os demônios.

Nas narrativas dos entrevistados nos vídeos em análise, bem como nos cartazes empunhados pelos manifestantes, realçam o ódio e a intolerância a tudo e a todos que lhes sejam diferentes. Esta fala de um jovem entrevistados no vídeo sintetiza estas narrativas: “Dizem que quem é crente, quem é filho de Deus não tem ódio. Mentira. Temos sim porque é impossível não ter ódio no Brasil. Tenho ódio do PT que acabou com o Brasil” (EM DIA..., 2014 – grifo nosso).

Percebem-se nas linguagens visuais, auditivas e performativas ostentadas nas manifestações, a referência explicita da agenda em prática no início da década de 1960, na qual se vivenciava a bipolaridade do mundo, dividido entre o bloco capitaneado pela então União Soviética, portanto, socialista; e, do outro lado, o polo liderado pelos Estados Unidos.

O início da Guerra Fria encontrou seu ápice na América Latina quando da revolução cubana de 1959, que ascendeu ao poder um regime socialista implantado a 200 milhas do sul dos Estados Unidos. Como observa Kennedy (1989, p. 371), o elemento importante e decisivo nessa rivalidade foi a criação tanto pela União Soviética quanto pelo Ocidente, de alianças através do globo, e a competição para se encontrar novos aliados, ou pelo menos para se evitar que países se juntassem ao outro bloco.

Passados mais de 50 anos do incidente da Baía das Porcos, onde navios americanos se posicionaram para invadir a ilha de Fidel e seus amigos de Sierra Maestra, o pequeno país caribenho fez as pazes com os EUA; os ícones do Rock and Roll presentearam os cubanos com um show grátis; e Chanel, alegoria da alta costura, escolheu La Havana como cenário de seu desfile de primavera 2016. Logo, referenciar

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Cuba nas manifestações como perigo e ameaça ao Brasil é exterminar qualquer possibilidade de análise geopolítica e da história.

Nas manifestações cinquentenárias da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizada na Praça da República, na região central da São Paulo, em março de 2014, alusivas à deposição de Jango Goulart e a tomada do poder pelos militares, em nome do perigo comunista, pessoas chamavam os militares de volta: “Não vai haver reeleição. Não ao comunismo. Vai pra Cuba”, propagandeavam cartazes. A reeleição seria a da presidente Dilma Rousseff em outubro daquele mesmo ano. Outro cartaz despejava sua ira aos supostos comunistas: “Intervenção militar – Ei, comuna vai tomar no c...” (MARCHA..., 2014).

Figura 2: Frame do vídeo sobre a concentração da Marcha da Família e os cartazes preparados para os militantes empunharem

Fonte: Marcha..., 2014.

Já em manifestação em prol do candidato do PSDB Aécio Neves, já no segundo turno das presidenciais, um jovem louro brandeava: “São canalhas, terroristas, guerrilheiros” (EM DIA..., 2014 – grifos nosso). Adjetivos por meio dos quais grita-se ódio.

São exemplos de linguagens que copiam a ideologia da Guerra Fria, esta já nos livros da História do século de XX. O contexto é abolido e há a tentativa de reviver um símbolo de uma época que não existe.

Isabella Trevisani, a jovem que estava à frente da manifestação alusiva ao cinquentenário ao Golpe Militar de 1964, detalha mais estas ideias: “Nosso país hoje não é capitalista. É um país comunista, onde os jovens não têm direitos, onde nós não somos ouvidos, onde as famílias são destruídas, onde idosos não são respeitados, em prol de uma corja” (MARCHA..., 2014). O que mais se estranha é a jovem Trevisani queixar-se da falta de direitos em uma das praças mais movimentadas de São Paulo, sem que nenhum tipo de cerceamento lhe tenha sido imposto.

A jovem ataca a agenda da diversidade que estava em curso no Brasil, como o direito ao aborto, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo; ao cumprimento rigoroso da Lei Maria da

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Penha - tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher -, Estatuto das Criança e Adolescente, etc.: “Tudo isto que é errado eles querem liberar”.

No discurso de Isabella, o fantasma da Guerra Fria ressurge com requintes de realidade: “A gente não pode permitir que assassinos como Guevara, Fidel Castro, Maduro, sejam exaltados como Deus” (MARCHA..., 2014 – grifo nosso).

O discurso da antipolítica coroa a narrativa da jovem que pedia aos militares que voltassem ao poder: “Tenho orgulho de 1964. Para mim, ditadura é o que vivemos hoje e não 1964”. A ideia da política como algo nefasto: “Não é só o PT não. São todos os partidos que têm corruptos. Poucos são os que se salvam e posso citar alguns nomes como Jair Bolsonaro, Guilherme Mussi, Silas Malafaia. São eles que me representam, os demais, não” (MARCHA..., 2014).

Após o discurso de Isabella, voltava o bordão em coro: “Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos militares protegendo o Brasil”. Usava-se a tática do convencimento pela reiteração.

Outro cartaz fazia alusão ao projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados que

pretende revogar o Estatuto do Desarmamento, sancionado pelo então presidente Lula, em 2003, para que sejam flexibilizadas a compra e a posse de armas de fogo no país: “Cadê o meu porte de arma?” (MARCHA..., 2014).

Na manifestação em favor do então candidato Aécio Neves na eleição presidencial de 2014, o sufrágio universal era apresentado apenas um detalhe que devia ou são existir nas palavras de uma senhora loira: “Eu vou salvar o Brasil, sim. Custe o que custar. Pela intervenção militar ou pelo Aécio” (EM DIA..., 2014).

Perpassa nos discursos a necessidade de limpeza, de higienização, de purificação do país, que estaria contaminado por pessoas e organizações nefastas. Uma dicotomia entre o bem e o mal, Deus e diabo. A senhora loira falava de limpeza em 1964 e 50 anos depois: “Não houve ditadura militar. Os militares ficaram, sim, em cima de comunistas. Eles limparam a nossa pátria” (EM DIA..., 2014).

Na mesma linha, uma mocinha de óculos sentenciava: “Quem criou a guerra de classes foi o PT ” ( EM DIA..., 2014).. Mais além, um jovem justifica o ódio que sente e diz ser ele legítimo: “Quem é crente, quem é filho de Deus não tem ódio. Mentira. Temos sim porque é impossível não ter ódio no Brasil. Tenho ódio

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do PT que acabou com o Brasil” (EM DIA..., 2014).

Na visão segregada do Brasil, da negação das diferenças, de alguns serem por natureza superiores a outros humanos, salta este depoimento de um homem que assume que viesse a ser superior aos brasileiros: “Temos um nível superior à da oposição, que infelizmente hoje é situação” (EM DIA..., 2014).

Considerações finais

Em tempos de intolerância, de exclusão ideológica e de limpeza social, há necessidade de que sejam resgatados os valores mais cristalinos da democracia, os quais podem ser substanciados na premissa de que nela, muito mais do que o direito da maioria, está o direito em ser minoria e poder expressar suas ideias e convicções sem constrangimentos de ordem física ou de ordem moral.

Na narrativa do ódio e da exclusão, o outro não existe. A verdade vale apenas como única. A narrativa, por meio de repetições e disfemismos, constrói o ódio sob o domínio da barbárie.

ReferênciasARATO, Andrew; COHEN, Jean. Esfera pública y sociedad civil metapolitica. Ediciones Cepcom. México, 1999, vol. 3, n. 9, p-37-55.

AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

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AZEVEDO, Reinaldo. Morre Oscar Niemeyer, metade gênio e metade idiota. Veja. 6 dez. 2012. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/morre-oscar-niemeyer-metade-genio-e-metade-idiota/. Acesso 22 maio 2016

AZEVEDO, Reinaldo. Governador de Minas, um ex-terrorista, pratica terrorismo moral contra o governo do Paraná. Veja. 15 maio 2015. Disponível em:http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/governador-de-minas-um-ex-terrorista-pratica-terrorismo-moral-contra-o-governo-do-parana-ou-a-tatica-petralha-para-desestabilizar-adversarios/. Acesso em 22 maio 2016.

CHAUÌ, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo. Editora Brasiliense,1986.

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Muro é símbolo da divisão no âmbito das ideias que separa a Nação

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Cândida Emília Borges Lemos é Doutora em História (Universidade do Porto, Portugal). Tem graduação em Comunicação Social, habilitação Jornalismo (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas) e Mestrado em Ciência Política (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Tem artigos publicados em livros e revistas cientificas nas áreas da Comunicação, História e estudos sobre a mídia

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Muro é símbolo da divisão no âmbito das ideias que separa a Nação | Cândida Emília Borges Lemos

sonora. Desde 2009, é professora Adjunta da Instituo de Comunicação e Artes da UNA, Belo Horizonte. Coordena, desde 2012, o Centro de Investigação da Mídia, projeto de Extensão da UNA. Integra o Grupo de Pesquisa Produção Criativa no mesmo Instituto, desde 2014.

[email protected]

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Eleições presidenciais 2014: o avanço potencial da juventude fascista

por Jéssica Parreiras Marroques

Pretende-se com este artigo, sob a perspectiva dos vídeos utilizados como objeto de estudo, analisar e apontar as relações existentes entre a juventude, o conceito que a juventude carrega em sua terminologia, de sua ação em movimentos organizados e principalmente da sua atuação política durante o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras de 2014 e do breve período de governo da candidata eleita, Dilma Rousseff.

Este artigo faz parte da pesquisa “Razão pura e razão sensível: estudo da dinâmica de circulação de sentidos a partir de vídeos”, que busca analisar dois vídeos do site no ano de 2014. São utilizados como objetos de estudo o vídeo “Marcha da família contra Cuba, governo e ‘idiotas da USP’” da revista Carta Capital e “Em dia de debate, sutileza zero nas ruas de SP”, da TV Folha de São Paulo.

A partir disso, pretende-se analisar as obras juntamente com os relatos dos jovens e das jovens que aparecem nos vídeos e demonstram o entendimento sobre o recorte individual e coletivo da conjuntura naquele momento, tanto de líderes dos movimentos de 2014 quanto dos que atualmente constroem a mesma afirmação de identidade e visão com as quais a juventude e, principalmente, a juventude conservadora e

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neoliberal brasileira vem atuando e ganhando espaço a partir de sua participação política.

A juventude e seu potencial transformador

O conceito de jovem atualmente é de um sujeito com valores, comportamentos, visões de mundo, interesses e necessidades de acordo com a sua imersão em uma sociedade com processos transitórios (JARDIM, 2014). Vivemos em uma sociedade que é determinada por relações sociais e culturais historicamente construídas. Desta forma, o estereótipo do jovem, principalmente após a década de 1960, com os movimentos organizados de juventude contra o golpe militar, é formado por características como a rebeldia, o questionamento da autoridade dos pais, a liberdade sexual, a indagação da ordem, do controle, da repressão, da verdade e o debate por temas contemporâneos ligados à sua realidade. Entretanto, os estereótipos são sempre uma simplificação pobre da realidade, ainda mais num país tão fora dos padrões e difícil de classificar, como o Brasil, principalmente quando se trata do potencial transformador de uma juventude tão diversa e das suas pluralidades de contextos.

Contudo, essa mesma juventude se apresenta questionadora com engajamento político e social, notoriamente presente após a década de 1980, com a vivência da liberdade política em prol de direitos e cidadania, com uma nova constituição e pela força social novamente promovida por movimentos organizados de juventude, como as diretas já. Desta forma, tornou-se possível novamente a participação na construção de ações e de políticas públicas que visassem o desenvolvimento social e da participação efetiva desses sujeitos.

De acordo com Elisângela Nunes, educomunicadora da Viração, “A juventude brasileira é composta de 34,1 milhões de jovens entre 15 e 29 anos de idade, o que representa 20,1% da população do país. É a esta parcela da população que hoje se aufere o futuro da nação” (NUNES, 2004). Porém, mesmo com certas afirmações ainda negligenciadas, diversas informações sobre o afastamento dos jovens da vida política, como o fato da inserção dessa faixa etária a caminho do mercado de trabalho, diversas vezes de forma precoce que não apenas o afasta da escolarização quanto impossibilita o debate da potência da sua participação ativa enquanto meio transformador de sua realidade.

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Os meios de informação e comunicação também são fatores para esse estímulo. Jornais, editoras, emissoras de TV e, principalmente, a internet são usados como ferramentas por esses jovens. Esses meios possibilitam que eles opinem sobre diversos assuntos e acompanhem fatos que vão além da sua vivência. Canais como o site YouTube, Facebook, Twitter, dentre outros, são pontes tanto para a comunicação entre eles, quanto para a busca de informações e organização. Exemplo dessa potência são os vlogs e vídeos virais, juntamente com a forma e a possibilidade organizacional, através de eventos e a disseminação de informações, como as mobilizações e atividades ocorridas em julho de 2013 que tiveram como alicerce o uso da internet e das redes sociais.

Julho de 2013 também foi um exemplo do desejo por mudança expressado nas ruas em que mostrou a insatisfação do jovem brasileiro com a ordem política e social. Questões como a melhoria no Sistema Único de Saúde (SUS), o aumento das tarifas no transporte público, a busca pela educação gratuita e de qualidade, a falta de representatividade dentro do Congresso Nacional e a insatisfação com a corrupção no nosso país foram pautas que caracterizaram o estopim para o início das manifestações.

A partir desse recorte, nos aprofundaremos no debate do papel da juventude durante o período das eleições presidenciais brasileiras do segundo turno, marcadas pela disputa entre o candidato Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), contra Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT).

O discurso e a partilha do sensível

A etimologia da palavra “discurso” contém em si a ideia de percurso, de correr por, de movimento. O objeto da Análise do Discurso é o discurso, ou seja, ela se interessa por estudar a “língua funcionando para a produção de sentidos” (ORLANDI, 2013, p.17). Isto permite analisar unidades além da frase, ou seja, o texto e ainda mais além, a análise de obras audiovisuais.

A análise do discurso considera que a linguagem não é transparente e procura detectar, então, num texto, o que ele significa. De acordo com a docente Maria Silva, a análise do discurso é detentora de uma materialidade simbólica própria e significativa de uma obra. “Portanto, com o estudo do discurso, pretende-se apreender a prática da linguagem, ou seja, o homem falando, além de procurar compreender a língua enquanto trabalho

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simbólico que faz e dá sentido, constitui o homem e sua história” (ORLANDI, 2013, p.17). Desta forma, entendemos que a análise do discurso é uma prática do campo da comunicação que consiste na análise do texto em diversas obras (livros, jornais, revistas, cinema, audiovisual, ilustrações, etc.) com base na compreensão das construções ideológicas presentes nas mesmas.

Juntamente com isso, o discurso é uma construção linguista que está vinculada diretamente ao contexto social em que a obra ou o objeto é desenvolvido, bem como as ideologias que compõem o discurso que está atrelado pelo contexto político-social do autor ou pela mídia de divulgação do texto.

Para o filósofo Jacques Rancière, escritor de “A Partilha do Sensível” (2005), obra que propõe análise e reflexão das relações estabelecidas entre política e estética, busco discorrer de forma sucinta o coletivo de um texto. Em seu trabalho, o autor procura definir o conceito de “partilha do sensível” como o “sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência do comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas” (RANCIÈRE, 2005, p. 15). Diante

disso, percebemos que o conceito descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais que iremos analisar mais detalhadamente adiante.

Como se vê, “partilha” implica aqui tanto um “comum” (a cultura, os direitos civis, a liberdade) quanto um “lugar de disputas” por esse comum – mas de disputas que, baseadas na diversidade das atividades humanas, definem “competências ou incompetências” para a partilha (RANCIÈRE, 2005, p. 16).

O conservadorismo contra a juventude

Vivemos atualmente em um país que sofre com diversos retrocessos de leis juntamente com um rasgo na Constituição de 1988, marcado pelo golpe político que encaminhou de forma antidemocrática o governo ilegítimo de Michel Temer, aliado por bancadas conservadoras do Congresso e do Senado nacional, conhecida como BBB, bancada da bala (referência à indústria bélica), do boi (referência aos latifundiários, agropecuária e agronegócio) e da bíblia (referência ao conservadorismo religioso que desrespeita o laicismo do Estado) com o apoio de diversas empresas nacionais e internacionais. A conjuntura é um reflexo

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não de uma ação momentânea, mas de uma construção que vem sendo consolidada há anos por uma direita conservadora e de cunho fascista. Esta denominação é usada por Marcia Tiburi com a seguinte defesa: “O que chamo de fascista é um tipo psico-político bastante comum. Sua característica é ser politicamente pobre. O empobrecimento do qual ele é portador se deu pela perda da dimensão do diálogo. O diálogo se torna impossível quando se perde a dimensão do outro” (TIBURI, 2015).

O desejo de mudança, como expressado nas ruas em junho de 2013, demonstra uma insatisfação dos jovens contra uma ordem política e social, porém não necessariamente uma juventude conservadora ou progressista, dicotômica. Apenas sinaliza que essa juventude deseja rever o que queremos para que o Brasil e as necessidades que a nossa sociedade anseia, que necessita de uma avaliação profunda da situação atual em que vivemos. Porém, essa mudança é indagada pelo como e a partir desse como ela entra em uma disputa ideológica.

Com os relatos durante as eleições presidenciais em 2014, juntamente com os acarretamentos desse fato, como a votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, percebemos não só uma postura polarizada no próprio Congresso Nacional – a exemplo disso temos o “muro da

vergonha” - como a reafirmação recorrente de uma ideologia de projeto para o Brasil a partir de uma prática discursiva “tanática”. Muro erguido com placas de latas no gramado central da Esplanada dos Ministérios, o trecho mais conhecido do Eixo Monumental, uma das principais vias de Brasília. O objetivo do muro era separar cerca de 300 mil manifestantes contrários e favoráveis à saída da presidenta Dilma Rousseff no processo de impeachment, no dia 17 de maio de 2016.

A professora Marcia Tiburi, em seu artigo “Como conversar com um fascista” (2015) defende essa prática como:

Em casos como o desse discurso podemos falar em uma prática discursiva “tanática”, exemplo perfeito da “tanatopolítica” contemporânea. Típico discurso fascista. Mas a quem esse discurso convence? Eis uma questão que precisamos nos colocar, até para poder combater o mesmo discurso ou para criar alternativas para a sobrevivência de uma política democrática, para uma política melhor, para um poder da diferença, um poder compreensivo que acolha a tradição dos oprimidos. Quem fala o que fala, sem nenhuma responsabilidade, por um lado deve ser legalmente questionado, por outro, é preciso colocar em jogo a

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questão das condições de possibilidade que, na cultura, fazem surgir falas como a desses políticos conservadores. (TIBURI, 2015).

Desde 2014, com a posse do presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (símbolo mor do conservadorismo), há diversos projetos de lei que atacam a juventude, como o projeto do Estatuto da Família, que exclui do conceito de família casais homoparentais, pais e mães solteiras etc.); a redução da maioridade penal, que tenta tratar o efeito, não a causa da violência e nega o debate da discriminação racial e da criminalização de jovens negros e periféricos; o projeto “escola sem partido” de autoria do senador Magno Malta, que propõe censurar a escola e o educador ou educadora, proíbe discussões políticas e o debate em diversas instâncias que seriam necessárias para a formação social dos e das estudantes, dentre vários outros. Projetos estes que foram propagandeados como solução por diversas mídias. A professora Tiburi define esse tipo de abordagem como:

A propaganda é o método que sustenta a negação do outro. A propaganda fascista, a propaganda do ódio, que prega a intolerância, que afirma coisas tão estarrecedoras, como fez o famoso deputado Heinze ao dizer que

“quilombolas, índios, gays, lésbicas”, são “tudo o que não presta”, é a destruição do conhecimento, como relação com o outro, que está na base do desejo de democracia. Autoafirmação de ignorância, assinatura de estupidez. Mas é, ao mesmo tempo, a destruição da política por um discurso antipolítico de um agente que deveria ser político, mas que está, contudo, voltado para o instinto de morte antipolítico. (TIBURI, 2015).

Percebemos nas pautas destes projetos um debate bastante conservador que tenta retroceder com a conquista de direitos sociais, econômico e tenta manter interesses de uma classe específica, como os da Bancada BBB e manter uma política retrógrada voltada para o “instinto de morte antipolítico” como defendido por Tiburi. Ironicamente, mesmo com os retrocessos para a juventude, o conservadorismo é defendido por uma parcela da mesma, a partir de movimentos organizados de juventude como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Círculo Monárquico Brasileiro (CMB), a Juventude Conservadora Brasileira (JCB), e ainda os internacionais como Movimento Cívico Nacional (MCN) e juventude de direita latino-americana, defendidos respectivamente por líderes como Kim Kataguiri, Leandro Pereira, Édipo Ázaro e Gloria Álvarez. Eles

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reforçam a propaganda do conservadorismo e do retrocesso como a solução para o país.

Análise do vídeo I

O vídeo “Marcha da família contra Cuba, governo e ‘idiotas da USP’” com duração de 5 minutos e 5 segundos da revista Carta Capital revela um ato de mobilização um pouco antes das eleições do segundo turno contra a candidata Dilma Rousseff, em março de 2014. O vídeo chama a atenção para essa análise por demonstrar o papel da juventude na política por conter a presença da jovem Isabella Trevisani, que aparece no vídeo diversas vezes realizando falas destacáveis. Isabella afirma a sua indignação com o governo de Dilma Rousseff não atacando a candidata, mas o partido político. A fala dela durante o vídeo destaca que “e não é só o PT não, são todos os partidos hoje, tá. Que são corruptos, todos têm corruptos. Poucos são os que se salvam, que eu posso até citar alguns nomes: Jair Bolsonaro, Guilherme Mussi, Silas Malafaia. Esses são os poucos raros. Eles me representam, os demais não” (MARCHA...,2014). Os nomes citados por ela são de políticos e de representantes religiosos ligados a já mencionada bancada BBB, que não só reafirmam o conservadorismo e o retrocesso de direitos como também

estão envolvidos em processos criminais. O discurso nesse vídeo é marcado pela alusão ao governo PT com o maniqueísmo baseado em uma visão de “certo e errado”, “bom e ruim”, diversas vezes presente nas falas repletas de falsa neutralidade política ou inocência dos entrevistados. Fato interessante é que o mesmo argumento usado por adultos e idosos são reproduzidos de forma ainda mais feroz pela jovem Isabella defendendo sua visão conservadora: “a gente é conservador. A gente conserva nossas famílias, nossos valores, nossos direitos”.

Em sua fala, a jovem Isabella destaca o que chama de “esquerda comunista” e relata que não houve ditadura militar no Brasil. Nega fatos históricos, alegando que tudo é uma invenção dessa mesma esquerda, maldosa e corrupta. Afirma ainda que os jovens não são respeitados em um governo comunista (que de acordo com ela é a gestão do governo de Dilma Rousseff e do PT), assim como ressalta a indignação de políticas públicas como a sua referência à legalização das drogas e a descriminalização do aborto, ambos os temas sendo pauta de saúde pública, que a jovem julga como “tudo isso que é errado”.

Percebemos nesse discurso um tipo de partilha do sensível, baseado no fascismo

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explicitado por Tiburi, alegando que esse tipo de discurso é “fechado em si mesmo, o fascista não pode perceber o ‘comum’ que há entre ele e o outro, entre ‘eu e tu’. Ele não forma mental e emocionalmente a noção do comum, por que para que esta noção se estabeleça, dependemos de algo que se estabelece como uma abertura ao outro” (TIBURI, 2015). De acordo com essa afirmação, podemos perceber na fala de Isabella o notório é somente uma disputa ideológica que apenas acusa o outro, sem levantar questões que pautem o diálogo ou reflexão para além de si, do discurso de ódio e aversão.

O vídeo ainda mostra a exaltação da igreja, da Polícia Militar (PM) e da intervenção militar, a qual Isabella também realiza uma fala em sua defesa: “eu sou favorável aos militares no poder, porque é o único jeito da gente mudar o nosso país” e continua em um outro momento afirmando que “os militares estão ao nosso favor, Deus está com a gente” (MARCHA..., 2014). Para finalizar, a jovem ainda cita que é prevista na constituição a intervenção militar como saída para a solução do país – uma falácia inconstitucional -, exaltando a ordem da polícia como forma de progresso de acordo com o seu ideal de país.

Análise do vídeo II

No vídeo “Em dia de debate, sutileza zero nas ruas de SP”, com duração de 7 minutos e 24 segundos, da TV Folha de São Paulo, são mostrados relatos de eleitores que acompanham o debate político entre os dois candidatos à presidência, no segundo turno das eleições presidenciais. De ambos os lados notamos discursos muito parecidos. Os eleitores destacam estarem cansados da corrupção, de partidos políticos envolvidos em esquemas de desvio de verba e roubo de dinheiro público, assim como a insatisfação da governabilidade e gestão de ambos os candidatos.

São recorrentes falas como “pelo amor de Deus, eu não aguento mais essa corrupção, essa roubalheira” (EM DIA ...,2014) que destacam essa insatisfação. Porém, o que se distingue em ambos os discursos são os alvos de ataque e a culpabilização por essa insatisfação, além dos relatos como solução a essa indignação.

Do lado do candidato do PSDB, podemos destacar falas ligadas à moral e à religião, como a presença de padres e falas como “na Santa Fé é imoral votar em partidos como o PT” (EM DIA ...,2014) e “aqui não é um discurso de ódio quando se diz ‘Fora PT’” e

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do protagonismo da jovem Isabella Trevisani que marca presença também nesse vídeo com a afirmação de que “falam que quem é crente e quem acredita em Deus não tem ódio. Mentira. Porque é impossível você não ter ódio do PT. O PT acabou com o Brasil” e ainda fala que culpabilizam o governo PT pela corrupção e a saída do candidato do PSDB como solução. Notamos falas como “quero mudança, mudança. Fora Dilma, fora PT”; “São canalhas, terroristas, guerrilheiros”; “Eu vim aqui porque eu acredito no País, eu acredito no Brasil. A gente precisa acabar com esse país. Com esse país não, a gente precisa acabar com a corrupção”; “Os líderes do PT hoje tão (sic) na cadeia e se os políticos do PSDB não tão (sic) na cadeia é ou porque eles são inocentes ou por incompetência do PT que era oposição de não ter investigado corretamente”; “Fora PT, muda Brasil”(EM DIA ...,2014). E ainda falas que instigam o candidato do PSDB como porta para a solução através da ditadura militar “por isso eu voto no Aécio. E gente, por mim seria intervenção militar, mas o povo tem o direito a democracia, tem o direito do voto”; “Os militares limparam a nossa pátria” (EM DIA ...,2014).

Percebemos nesses discursos diversas afirmações que não condizem com a realidade social, histórica e cultural do nosso país, além

de diversas falácias, promovidas por esse ódio comum a um inimigo único quase como uma referência a todos os males que os brasileiros têm passado não apenas nos últimos anos, mas até mesmo em épocas em que o Partido dos Trabalhos nem havia posse do mandato de presidência. Todas as falas contidas nesses discursos são reafirmadas pela jovem Isabella que demonstra indignação com a corrupção na sua fala: “O PSDB não é santo, mas o PT ganha de todos os partidos” (EM DIA ...,2014), que relatos que não condizem com a veracidade histórica: “Quem criou a pobreza, quem criou a miséria, quem criou a guerra de classes foi o próprio PT”: e, ainda, com a sensação de impotência que tanto é reafirmada durante o vídeo pelos eleitores de Aécio Neves, como o relato “eu tenho 18 anos e não tenho liberdade de expressão, porque o PT tira todos os direitos” (EM DIA ...,2014) e pela fala “eu vou salvar o meu país sim, seja por intervenção militar ou pelo Aécio”, em um vídeo que é marcado diversas vezes pela presença da fala da jovem em diversos assuntos.

Do lado da oposição ao candidato do PSDB, os eleitores da candidata Dilma Rousseff também demonstram indignação com a corrupção em falas como “Desculpa, Aécio, você não representa todos os mineiros. Você não me representa”; “Por um ódio ao candidato do

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PSDB eu resolvi votar no PT”; “Ele fica falando que é um homem limpo, um homem de bem, mas ele tem um escândalo nas costas dele de uma tonelada de cocaína”; “Cansei de ficar falando só em Cuba, o pessoal não tem mais argumento e é disso que eu to cansada”.

Neste vídeo é perceptível uma dicotomia absolutista entre posições políticas, o maniqueísmo do discurso entre polos. De um lado, eleitores da candidata Dilma Rousseff (PT) que demonstra um caráter mais progressista e neodesenvolvimentista exaltam o partido ou o escolhem devido a problemáticas ideológicas contra o candidato Aécio Neves (PSDB), com caráter extremamente conservador e neoliberal. De outro lado, os eleitores do candidato do PSDB que afirmam ideologias que competem ao combate contra a outra candidata e, principalmente, o ataque ao partido político oposto.

Considerações finais

Por fim, esse artigo pretende instigar a reflexão sobre o papel da juventude aqui citada, juntamente com a análise do discurso desses vídeos a partir de uma contextualização da conjuntura. Coube aqui problematizar o que querem esses jovens que discursam em

manifestações que vão contra ou a favor de certo governo.

Percebe-se que apesar do tom radical na defesa de suas ideias, o discurso desses jovens alia-se não somente ao pluralismo de ideias ou para o desenvolvimento da sociedade, mas se assemelha intrinsecamente ao discurso de ódio e à imposição do conservadorismo fascista com base no maniqueísmo de posições e, principalmente, no individualismo de uma falsa estética do comum, reafirmada por apoio midiático e pela posição de movimentos organizados da juventude de direita.

ReferênciasEM DIA de debate, sutileza zero nas ruas de SP. TV Folha. Disponível em: Felipe, Andre; Bello, Giovanni (eds.) São Paulo. 17 out. 2014. 7’24”. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zb9_4yRJsvY. Acesso em: 17 set. 2016.

JARDIM, Renata. Conceito de Juventude: que é ser jovem hoje? 2014. Disponível em: <http://www.emdialogo.uff.br/content/conceito-de-juventude-o-que-e-ser-jovem-hoje> Acesso em: 14 jun. 2016.

MARCHA da família contra o governo e “idiotas da USP”. TV Carta. Parede, Clara (ed.); Capriglione, Laura (reportagem), Sillva, Joseh (Imagens). São Paulo. 26 mar. 2014. 5’08”. Youtube.

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EJNVPwkhghA. Acesso em: 17 set. 2016.

NUNES, Elisangela. Ser Jovem: Fórum Juventude. 11/02/2004. Disponível em: <www.projetojuventude.org.br>. Acesso em: Acesso em: 01 jun. 2016.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 11. Ed. Campinas: Pontes, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental / Editora 34, 2005.

TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista: Questões preliminares: experiência política e experiência da linguagem ou o diálogo como desafio. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2015/12/como-conversar-com-um-fascista-introducao/> Acesso em: 05 jul. 2016.

TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista: Sobre um desafio teórico-prático. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2015/05/como-conversar-com-um-fascista/> Acesso em: 17 jul. 2016.

Horizonte,. Trabalho orientado pelo professor Julio Pinto do ICA/UNA.

[email protected]

Jéssica Parreiras Marroques é estudante de Artes Visuais Licenciatura da Escola de Design UEMG - Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte e Estudante de Cinema e Audiovisual do Instituto de Comunicação e Artes ICA – Centro Universitário UNA, Belo

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Sobre vídeos, manifestações e montagens

por Mariana Mól Gonçalves

O ano de 2013 foi marcado por manifestações em diversas cidades brasileiras, principalmente nas capitais dos estados, em que as pessoas saíram às ruas no mês de junho, primeiramente, para manifestar contra o aumento das tarifas do transporte público e, em seguida, contra a realização da Copa no país e com inúmeras outras insatisfações relacionadas aos governos, instituições e política em geral. No ano seguinte, 2014, ano de eleição presidencial, as ruas brasileiras foram ocupadas novamente, mas agora por manifestantes interessados em pronunciar suas escolhas partidárias, defender as cores de seus partidos e seus candidatos. Ambos movimentos foram fortemente registrados e divulgados pela mídia.

Juntamente aos veículos tradicionais de jornalismo impresso, radiofônico, televisivo e on line, as chamadas jornadas de junho de 2013 fizeram emergir um novo movimento de produção e circulação de informação com a disseminação e a participação das comunidades digitais e mídias sociais. Conteúdos colaborativos como o Jornalistas livres, #BH nas ruas e a Mídia NINJA Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, assim como as próprias redes sociais Facebook, Youtube e Twitter se tornaram espaços de discussão, produção de conteúdo, como uma estratégia

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1 Exemplos de livros lança-dos: #BH nas ruas – uma ex-periência de cobertura cola-borativa (Letramento, 2014); Nas ruas – a outra política que emergiu em junho de 2013, de Ruda Ricci e Patrick Arley (Letramento, 2014); e Jorna-das de junho: repercussões e leituras, organizado por Cido-val Morais de Sousa e Arão de Azevedo Souza (Livro eletrô-nico, EDUEPB).

2 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=EJN-VPwkhghA>. Acesso em 20 de junho de 2016. Até o momen-to deste acesso, o vídeo tinha 191.069 visualizações.

3 Alguns termos estão desta-cados em itálico para ressal-tar estratégias da linguagem cinematográficas dos vídeos analisados.

de dar vazão rápida e alternativa aos padrões de cobertura vista até então. Essas jornadas de junho receberam importantes análises em livros, artigos e pesquisas acadêmicas1.

Assim, chegando em 2014, não só as mídias alternativas continuaram a cobertura aproximada e urgente das manifestações, mas outros veículos começaram a divulgar em foto e vídeo o que estava acontecendo novamente nas ruas. O presente artigo analisa dois vídeos produzidos em 2014 por dois veículos de circulação nacional: “Marcha da família contra Cuba, governo e ‘idiotas da USP’” – produção da TV Carta e “Em dia de debate, sutileza zero nas ruas de SP” – produção da TV Folha. Ambos foram postados na internet, mais especificamente nos canais de vídeos no Youtube pertencentes à revista semanal Carta Capital e ao jornal diário Folha de S. Paulo, respectivamente. A partir dos vídeos, o artigo intenciona descobrir estratégias e discursos produzidos por estes dois veículos jornalísticos, de políticas e posturas diferentes e, a partir de uma análise fílmica dos dois produtos audiovisuais, elencar elementos visuais e de conteúdo narrativo para discutir a produção de sentidos a partir dos mesmos.

Marcha da família contra Cuba, governo e “idiotas da USP” – TV Carta2

O vídeo da TV Carta foi publicado em 26 de março 2014, tem a duração de 5 minutos e 8 segundos e, ao seu final, traz as assinaturas de Laura Capriglione (reportagem), Joseh Sillva (imagens) e Clara Parada (edição). Na página do canal está a seguinte descrição: “Conheça alguns dos personagens que foram às ruas em SP para pedir proteção aos militares contra novo ‘golpe comunista’”. O registro mostra uma manifestação em São Paulo, capital, localizada à Avenida Paulista. Entre as estratégias fílmicas temos entrevistas com personagens diversos. Todo o tempo a estrutura se divide entre a fala dos entrevistados (que, inclusive, se repetem) e imagens do entorno, em planos gerais3 do espaço e dos participantes.

O vídeo inicia com a voz de um locutor que convida todos a ouvir o Hino Nacional. Enquanto na imagem temos duas bandeiras se movimentando – uma do estado de São Paulo e outra do Brasil –, os primeiros acordes instrumentais do Hino Nacional Brasileiro podem ser ouvidos e a câmera passeia no espaço. Durante os primeiros trinta segundos, com alguns cortes secos, o vídeo apresenta cartazes com diversas inscrições

Sobre vídeos, manifestações e montagens

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e os manifestantes. Estes seguram cartazes, bandeiras do Brasil, alguns levam a mão ao coração e outros rezam durante a execução da música. Uma primeira rima visual e sonora é construída no registro quando os últimos três acordes do hino são mostrados com um homem envolto na bandeira do Brasil, outro com a mão no coração (primeiro plano) e o último com a mão no coração e envolto na bandeira brasileira.

Num primeiro momento, há que se comentar os vários cartazes que aparecem na tela. Alguns são grandes, largos e impressos, mas a maioria é feita de cartolina, escrito à mão, com letras coloridas, com a predominância das cores verde, amarelo e vermelho, mostrando uma espécie de manifestação caseira e improvisada. Entre os temas: “Fora Dilma, fora comunista”; “Intervenção militar já, não ao comunismo”; “corruPTos” (com a sigla do Partido dos Trabalhadores destacada em vermelho); “Fora Dilma #orgulhode64 #Fora PT #fica Sherazade” (novamente colorindo de vermelho a sigla do PT e a nome Dilma), dentre outros. A cor vermelha é utilizada para demarcar as palavras relativas ao PT e os temas correlacionados ao partido pelos manifestantes, como corrupção, comunismo e outros.

Nesse início, a utilização dos planos médios do público e o plano detalhe dos dizeres dos cartazes trazem dados de uma apresentação de quem são os manifestantes, os itens levados às ruas e as temáticas que serão abordadas nas entrevistas do vídeo, que se iniciam em seguida.

O plano é o ponto de vista do espectador e tecnicamente, segundo Marcel Martin (1985), “é determinado entre a distância entre a câmera e o objeto e pela duração focal da cena utilizada” (MARTIN, 1985, p. 37). O plano é a unidade que faz a ligação de sentidos na montagem. A escolha de cada plano, seja ele médio, geral, primeiro plano, tem a ver com a clareza que se quer dar à narrativa. O plano geral é bastante aberto e visa situar o espectador no espaço geográfico, na paisagem, em que a cena/sequência/trama se desenvolve. O plano médio inscreve os indivíduos no espaço que estão e instaura um equilíbrio dramático entre ação e o cenário. É mais frequente em cenas de diálogo entre dois ou três personagens, com destaque para o movimento dos braços e mãos. Já o primeiro plano enquadra o personagem do busto para cima, destacando-o e servindo para mostrar características, intenções e atitudes, conferindo à ação um valor dramático e psicológico determinante. Nos vídeos, o primeiro plano é utilizado na maioria das

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entrevistas. Ainda existe o primeiríssimo plano – também conhecido como plano de detalhe, que ressalta partes do corpo (mão, rosto etc) do indivíduo ou objetos, enfatizando sua função ou sua importância para a trama, como os dizeres dos cartazes por exemplo.

A primeira entrevista é com Elizabeth Monteiro, corretora de imóveis4, que aparece no quadro em primeiríssimo plano, que recorta seu rosto pintado com as cores azul e verde5 e um arco na cabeça com duas bandeiras do Brasil como se fossem “antenas”, à frente dos outros manifestantes. A primeira voz que escutamos vem de fora do quadro, possivelmente da jornalista Laura Capriglione, questiona: “A senhora acha que o comunismo é um perigo mesmo para o Brasil?”. Rapidamente a entrevistada responde: “com certeza. Tá tudo caminhando pra isso”. Ao mesmo tempo que escutamos a entrevista, ao fundo podemos ouvir a voz do locutor que parece dizer palavras de ordem ao público.

Corte seco para a segunda entrevistada, Isabella Trevisani, estudante, que também é enquadrada em primeiro plano, no qual podemos ver seu rosto pintado de amarelo e azul, assim como as tranças de seus cabelos. Ela diz: “ditadura para mim é o que a gente vive hoje e, não, em 64. 64 não teve ditadura.

É tudo invenção dos esquerdas comunistas”. Novamente, ao fundo, o áudio traz palmas do público – que coincidentemente, ou não, finalizam a frase da jovem6.

Em seguida, o vídeo começa a intercalar as falas de Elizabeth, que aponta os sinais de que o Brasil “pode virar uma Venezuela, pode virar uma Cuba”, com a fala de outro entrevistado. A mesma temática surge na fala de Mike Brasil, diretor comercial, que afirma: “nós vamos ser uma Cuba e Venezuela juntos. Com a presidente que nós temos, infelizmente é o que vai acontecer no nosso país”.

As três primeiras entrevistas acontecem com a câmera estática (parada, como se estivesse apenas fotografando o plano), em que destacam os rostos da jovem, da senhora e do homem no quadro. O fundo aparece desfocado, num modelo de plano televisivo. Junto às falas, o áudio capta os ruídos do fundo, numa tentativa de captar dados da realidade, do imediato, da manifestação nas ruas. Ao mesmo tempo, o discurso das entrevistadas traz dados desconexos e até mesmo irreais, como se verá adiante. Assim, a edição monta e ordena as entrevistas e os áudios numa espécie de crítica e ironia como comentário.

4 Neste vídeo, a primeira ima-gem de cada entrevistado vem acompanhada dos créditos contendo o nome e a ocupa-ção dos mesmos.

5 Numa possível referência aos caras-pintadas, que du-rante o processo de impeach-ment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, os jovens que foram às ruas pin-taram o rosto com duas faixas verde e amarelo de cada lado da face, em forma de protesto.

6 Isabella aparece em outros vídeos na internet, no mesmo período. A jovem, conhecida na rede como “a musa jovem da direita”, também produz seus vídeos e possui um canal no Youtube.

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As entrevistas são feitas com a câmera estática, mas o vídeo apresenta movimentos panorâmicos (câmera se movimenta em seu próprio eixo, sem o deslocamento do aparelho). Este movimento pode acontecer da esquerda para direita e vice-versa, de cima para baixo ou vice-versa (chamado tilt) e pode ter as funções: descritiva (do espaço, por exemplo); expressiva (como as circulares, que podem sugerir vertigem, embriaguez, pânico etc); e dramática (quando expressa diretamente pontos de vista do personagem diante de objetos, cenários ou até outros personagens).

O plano seguinte mostra Isabella do alto de um carro de som, falando ao microfone e o seu comentário segue (“Nosso país hoje não é capitalista, a gente vive num país comunista”), enquanto a câmera passeia pelos manifestantes que estão embaixo. Cortes secos fazem a passagem da fala da jovem (que continua falando do atual descuido com idosos, famílias destruídas, drogas, aborto – “tudo isso que é errado, eles querem liberar”) para planos descritivos do espaço e do público trazendo uma “ilustração” do que está no áudio (panorâmicas para direita e esquerda).

Novamente, pela junção do áudio de Isabella e a ordenação das imagens, o vídeo mostra que a entrevistada fala pelo público, é uma espécie de

voz da manifestação. Isabella une discursos de liberdade, comunismo, legalização de drogas e aborto, numa mistura de nacionalismo, política e religião. Itens já apontados no título do vídeo.

Pausa de silêncio. A cena seguinte mostra um plano em movimento para frente em que manifestantes caminham em direção à câmera e seguram um cartaz com o brasão da Polícia Militar e gritam “Deus, pátria, Família”. Agora a cena dos manifestantes é que completa, corrobora, a frase da jovem.

Numa segunda temática, a edição une as falas das duas entrevistadas (Elizabeth e Isabella) para falar de nomes de líderes “comunistas”. Isabella cita os “assassinos Che Guevara, Fidel Castro e Maduro, que são exaltados, como se fosse um Deus” e, logo em seguida, Elizabeth cita a proximidade de Lula, Dilma e Maduro, “todo mundo do comunismo”. Mais uma vez, a informação “comunista” é aqui unida pelo áudio, pela fala das duas entrevistadas.

O vídeo volta à fala da jovem que cita, agora, nomes daqueles que a representam: Bolsonaro, Guilherme Mussi e Silas Malafaia. Agora, a jovem mistura nomes de políticos e de representantes religiosos. E como ela mesmo diz, esses são “poucos, raros, aqueles

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que se salvam”. Corte seco para imagem de um manifestante que diz: “Para o bem do Brasil, a direita se uniu”. Mais uma vez, a montagem relaciona as informações pelo áudio – mostrando imagens dos cartazes e rostos pintados em verde e amarelo.

A câmera volta ao carro de som, em que um manifestante ao microfone pede ao público uma salva de palmas para os policiais militares. Logo, o vídeo apresenta planos gerais dos militares e alguns camburões presentes na manifestação, enquanto o áudio destaca as palmas do público para a polícia. Em seguida, a montagem acelera a velocidade das imagens ao mostrar a fila de policiais seguindo ao lado dos manifestantes nas ruas. O vídeo e a aceleração aqui alteram o caminhar destes personagens enfocados e acabam realizando um comentário jocoso ao transformar a marcha militar numa imagem mais aproximada de personagens de desenhos animados, como se os policiais fossem soldadinhos de chumbo. Em seguida, o mesmo locutor avisa que eles estão ali para proteção e o som destaca o grito do público: “Viva PM”.

Corte seco para outro momento descritivo do público que grita “Ei Comuna, vai tomar no cu” e reage com gestos afirmativos, de mãos retas para cima, numa alusão ao gesto nazista

(imagem a seguir). A câmera volta ao carro de som, onde Isabella diz que a juventude de hoje está alienada e alerta que está na hora dela acordar e completa: “Porque se não vocês não vão mais ter direitos, vocês não vão mais ter espaço. Vocês só vão ser mais uns idiotas, que entram na USP e saem pior do que entraram”. Em seguida, a câmera segue um jovem, que usa a bandeira brasileira para prender os cabelos, em meio ao público que canta “1,2,3,4,5, mil, queremos militares protegendo o Brasil”.

Figura 1: Frame destaca gestos dos manifestantes

Fonte: MARCHA..., 2014.

Num momento fora do quadro, ouvimos a mesma voz da repórter que conduz a entrevista com Elizabeth. A primeira parece querer provocar a senhora, quando afirma que o mercado imobiliário aquecido (“que

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é uma coisa capitalista por excelência; num governo da Dilma, que é uma comunista”), que supostamente ajudaria no seu trabalho de corretora de imóveis. A entrevistada primeiramente concorda com a repórter, dizendo: “o mercado é regido pela demanda”, mas logo volta atrás e afirma que o governo favorece “o pessoal de baixa renda, que é aonde ele compra o pessoal”. A repórter ainda argumenta que o governo, desta forma, favorece o mercado. Mas a entrevistada finaliza dizendo e se contradizendo: “favorece? Mas será que favorece? Será que não é uma pegadinha aí?”.

Corte seco para um casal composto de uma mulher, usando a bandeira do Brasil como capa, e um homem, com a do estado de São Paulo, ambos com traços nordestinos. Eles dançam ao som do Hino Nacional, só que agora em velocidade acelerada e em ritmo de forró, tocado por uma sanfona. Aqui a montagem faz uma ilustração e comentário irônico à fala anterior da entrevistada Elizabeth e “o pessoal de baixa renda” – de traços nordestinos e que dança ao som do hino em forró em São Paulo. Ao colocar o casal dançando e sorridente para a câmera, o vídeo parece querer deslocar o lugar de fala da entrevistada como autoridade.

Mais uma vez vemos Isabella, do alto do trio elétrico, falando que é favorável a um militar no poder: “porque é o único jeito da gente mudar esse país”. Todas as vezes que o vídeo mostra Isabella e outros falando no trio, os mesmos são filmados pelo ângulo contra-plongée (quando o quadro é apresentado de baixo para cima). O uso desse ângulo muitas vezes busca a impressão de superioridade, exaltação e triunfo, pois faz crescer os indivíduos. Assim, do alto do trio, a jovem branda seus ideais para o resto da população que a escuta.

Novamente ao focar a polícia, a montagem brinca com a duração do plano ao acelerar a cena dos militares se alinhando, enquanto escutamos a continuidade do discurso de Isabella (som fora do quadro): “os militares estão em nosso favor”. O efeito traz novamente um tom jocoso à cena.

Na terceira associação de ideias contidas no título do vídeo, Isabella conclama: “Deus tá com a gente”. Ainda com o som fora de quadro, vemos duas cenas: um homem segura uma imagem de Nossa Senhora Aparecida (ícone católico) e um jovem padre em meio à manifestação reza o Pai Nosso, ao lado de outros manifestantes. Novamente o áudio (a fala da jovem musa) desencadeia a progressão

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7 De acordo com imagens pesquisadas no Manual de Campanha Ordem Reunida, do Ministério da Defesa, do Exército Brasileiro, 3ª edição (2000). Disponível em <http://bibliotecamilitar.com.br/or-dem-unida-manual-de-cam-panha-c-22-5/>. Acesso 20 de junho de 2016.

8 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=z-b9_4yRJsvY. Acesso em 20 de junho de 2016. Até o momen-to deste acesso, o vídeo tinha 342.585 visualizações.

das imagens e a construção do sentido desta manifestação.

O vídeo volta ao plano médio de entrevista com Isabella, que fala que o direito a intervenção “é previsto na Constituição”. Corte seco para outra sequência de duas cenas rápidas, de até 8 segundos, de um segundo trio elétrico com faixas com imagem de caveira e armas (tipo BOPE), e de uma mulher que gesticula, como se estivesse discutindo, brigando.

A entrevista termina com Isabella falando em “apoio popular” e o vídeo encerra exatamente como começou: ao som do Hino Nacional (parte final da música), manifestantes e seus cartazes, a bandeira do Brasil em movimento contra um fundo de arranha-céus de São Paulo e, finalmente, a imagem de um homem vestido com uma calça verde camuflada (alusiva ao uniforme do exército) que segura a bandeira enrolada e paralisada na posição conhecida como “descansar arma”7 (imagem a seguir).

Figura 2: frame da bandeira do brasil em gesto millitar

Fonte: MARCHA..., 2014.

Em dia de debate, sutileza zero nas ruas de SP – TV Folha8

O vídeo da TV Folha foi publicado em 17 de outubro de 2014 e tem a duração de 7 minutos e 24 segundos. Na página do canal está a seguinte descrição: “Encontros simultâneos de simpatizantes dos presidenciáveis Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) em São Paulo reforçaram o clima nada sutil que permeia o segundo turno da disputa eleitoral”. Assinam o vídeo, Douglas Lambert (produção), Isadora Brant e Rodrigo Machado (fotografia e reportagem) e André Felipe e Giovanni Bello (edição).

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9 45 se refere ao número do candidato do PSDB – Aécio Ne-ves.

10 Com cabelos curtos e pre-tos, totalmente diferente do primeiro vídeo analisado neste artigo, a jovem mulher é Isabella Trevisani, que po-demos reconhecer pela voz e discurso.

Numa ocasião diferente do primeiro vídeo, agora estamos no momento que antecede o segundo turno da disputa para presidência, com os candidatos Dilma e Aécio. O vídeo da TV Folha mostra como o público dos dois lados da disputa assistiram ao debate televisivo com os dois candidatos à presidência no dia 16 de outubro de 2014. O vídeo acompanha cada grupo, de cada lado da capital paulista, e mostra as tensões, os argumentos e as agressividades dos discursos dos militantes presentes nos dois eventos. Segundo a descrição do vídeo, do lado dos apoiadores do PT estavam presentes cerca de 200 pessoas; entre os apoiadores do PSDB, eram cerca de 300 pessoas. No início já estão destacados na legenda as informações sobre o dia da filmagem (quinta-feira, dia 16) e a localização (São Paulo).

O vídeo começa mostrando cenas curtíssimas dos dois eventos (5 segundos para cada), intercalando os lados: homem abre uma fita de isolamento; homem cantando hino nacional; casal de idosos com adesivos “45” ; telão do debate, churrasquinho; público assistindo ao debate; homem falando ao megafone com faixa “PT nunca mais”; público de vermelho sentado no chão; público vestido de verde e amarelo caminhando com a PM; homem brigando com ciclista; mulher dizendo palavrões pro Aécio; jovem com adesivos “45”9. A primeira frase é da

jovem10 que branda: “Odeio o PT mais que tudo na vida”. Junto às imagens ouvimos os ruídos das falas do público, dos candidatos no debate televisivo e de uma canção instrumental.

Em seguida, o vídeo apresenta a vinheta do canal TV Folha e a música ganha voz e pode-se escutar a letra: “Eu fui escolhido candidato mais votado/ o meu nome é povo/ sobrenome barganhado”. Trata-se da canção “O eleito”, da banda de rock Bico do Corvo, da cidade de Mogi das Cruzes (SP). Juntamente do desenrolar da canção vemos a apresentação dos dois espaços onde aconteceram o evento: Praça Roosevelt (região central) – numa panorâmica de cima para baixo, identificado com uma legenda “Encontro Pró-Dilma”; e Largo do Batata (região oeste) – numa panorâmica da esquerda para direita, com a identificação “Encontro Pró-Aécio”.

Na cena seguinte, a tela se divide em duas: à esquerda, um homem e uma mulher vestidos de vermelho; à direita, uma mulher, vestida de amarelo e com adesivos “45”. Na parte mais baixa da tela aparece a frase: “SUTILEZA ZERO, ADRENALINA A MIL”, com as palavras-adjetivos zero e mil destacas por negrito – como vemos na imagem a seguir.

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Figura 3: Frame com os dois lados da política brasileira

Fonte: EM DIA..., 2014.

A tela dividida é uma técnica cinematográfica chamada split screen: quando é visível a divisão do plano, tradicionalmente no meio, mas que também pode ser usada em múltiplas divisões. A técnica rompe com a ilusão de que o quadro da tela é uma visão transparente de realidade, semelhante ao olho humano. É utilizada para mostrar duas sequências simultâneas com eventos e personagens diferentes, em espaços diferentes. No caso do vídeo analisado, a tela dividida ainda quer posicionar os atores dessa história em lados opostos: esquerda e direita se referem às posições da tela, mas mais ainda à posição política.

A técnica cinematográfica aqui é o modus operandi do vídeo: que quer mostrar com imparcialidade os “dois lados” da história, inclusive dedicando tempos de exposição e entrevista semelhantes para cada um deles. O áudio da cena da tela dividida traz informações dos dois lados: conversa, de um lado; palmas e gritos de “A-é-cio”, de outro. Os gritos do público com o nome do candidato fazem a passagem da cena dividida para o próximo tópico: o evento pró-Aécio.

Agora a câmera capta planos americanos de vários manifestantes: um jovem padre (que veste boné amarelo e batina) fala em nome da Santa Sé “que não permite votar no PT e companhia”; um skatista que quer mudança, “fora Dilma, fora PT”; e a jovem de cabelos pretos novamente, que fala “quem é crente, quem acredita em Deus, não tem ódio, mas é mentira. É impossível não ter ódio do PT”. A voz da jovem continua em off, “O PT acabou com o Brasil”, e corte seco para manifestantes acompanhados pela polícia militar na rua e seus cartazes. Logo, em seguida, a câmera foca na inscrição: “fora PT”, em letras azuis no fundo amarelo, cores utilizadas pelo Partido da social democracia brasileira e, em seguida, fecha este lado da disputa com primeiro plano de uma senhora, vestida com as cores e o adesivo do PSDB, que fala de corrupção e roubalheira.

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A trilha agora volta ao instrumental e soa num ritmo tenso. A sequência tem exatos 22 segundos de duração.

Do lado vermelho da disputa, o vídeo mostra o público que assiste sentado ao debate exibido num telão. O vídeo intercala depoimentos em plano americano com planos gerais do público presente e suas reações, risadas, gestos e vaias ao ouvir a voz do candidato peessedebista. Os depoimentos trazem uma jovem que, com um tom bravo, diz “desculpa, Aécio, mas você não representa todos os mineiros. Você não me representa”; e o jovem de camisa do flamengo (da cena dividida), afirmando que sempre votou nulo na vida, mas agora “por ódio ao candidato do PSDB, escolhi votar no PT”; a mesma jovem desta sequência termina falando que está cansada, porque as pessoas só falam em Cuba. A sequência dura 32 segundos e a trilha se mantém tensa.

Figura 4: Frame mostra diversidade de espectadores Pró-Dilma

Fonte: EM DIA..., 2014.

Vídeo volta às cenas dos verde e amarelo e começa mais uma série de povo fala: um jovem com a camisa da seleção brasileira e adesivo 45 fala que não tem medo, mas crença que “se o PT ganhar, vamos cada vez mais aproximar da Venezuela”. Corte seco para um plano geral do grupo que caminha pelas ruas da capital paulista, acompanhada pelos policiais militares, enquanto cantam: “Dilma, vá embora que o Brasil não quer mais você/ Aproveita e leva o Lula e os vagabundos do PT”.

A música cantada segue a melodia do refrão da música “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, de 1968. Vale destacar aqui a ironia do uso da mesma melodia de um dos

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hinos da luta contra os anos de chumbo no país.

A trilha tensa e as falas continuam: o jovem padre afirma não existir nessa manifestação algum discurso de ódio, “como se diz Fora PT”; em seguida, um homem de meia idade abraçado a uma mulher diz, com veemência: “são canalhas, terroristas, guerrilheiros”. O último depoimento comenta e completa (ironicamente) a fala anterior do padre. Toda essa sequência dura 30 segundos.

Voltamos à Praça Roosevelt e o vídeo destaca uma mulher de meia idade (com a blusa com o nome Dilma) reagindo ao áudio com a voz do candidato Aécio, ela diz para câmera: “ainda por cima é grosso”. A jovem que falava em tom bravo agora diz que há uma moda anti-PT. O jovem da tela dividida também reage à fala do candidato e faz um gesto de vômito. Outro jovem, de blusa preta e adesivo da Dilma, fala das dificuldades do candidato em responder questões no debate (em plano americano) e enquanto seu depoimento continua em voice over (fora do quadro), a câmera capta mais momentos de reação da plateia. A mulher do início dessa sequência volta e diz: “isto está na internet para qualquer um que quiser saber: dos dez maiores crimes de corrupção no país,

nenhum envolve políticos do PT”. A sequência também dura 30 segundos.

Antes mesmo da fala da mulher terminar, rimando com a sigla PT, o áudio do vídeo traz gritos “Fora PT”. Agora o vídeo usa o áudio como comentário ao depoimento da mulher e antecipa a imagem que está por vir, com os manifestantes gritando e carregando um cartaz com os mesmos dizeres: “Fora PT, muda Brasil”. As cenas seguintes trazem a cara dos vários manifestantes que carregam cartazes e bandeiras do Brasil enquanto caminham, filmam e cantam. Esses momentos são entremeados por novas entrevistas, em plano americano: um jovem explica que a manifestação foi marcada pelo Facebook; o homem de camisa azul da CBF diz “a Petrobrás é nossa”; outro jovem, raivoso, afirma e se contradiz: “eu vim aqui porque eu acredito no país, acredito no Brasil. A gente precisa acabar com esse país... com o país não, a gente precisa acabar com a corrupção”.

Vídeo volta ao público do debate e o jovem de camisa do Flamengo diz que Aécio fala de meritocracia, “mas é partidário do nepotismo”. Logo em seguida, a câmera se vira para o telão onde podemos ver a candidata Dilma dizendo sobre não ter criado o nepotismo. Mais uma vez, o vídeo da TV Folha sugere comentários

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sobre os vários temas ao montar em sequência um depoimento do público e, em seguida, uma cena que ilustra ou complementa a anterior.

Essa estratégia pertence a um dos tipos mais básicos e antigos da montagem cinematográfica chamada montagem paralela, nomeada por Sergei Eisenstein como “intelectual”, que é a montagem de “conflito-justaposição de sensações intelectuais associativas” (EISENSTEIN, 2002, p.86). Por meio da alternância entre planos de duas sequências, esse tipo de montagem pretende formar um novo significado implícito, interpretado pelo espectador.

A sequência continua com a fala da mulher com a blusa da Dilma, que diz que o PT ser partido de corrupto foi uma ideia “que a mídia plantou, homeopaticamente, dia após dia durante décadas, na cabeça das pessoas”. E, para ilustrar mais um momento da montagem paralela, a cena seguinte à fala da defensora da Dilma é a de uma manifestante verde e amarelo segurando um cartaz com os dizeres: “Dilma Mentirosa”.

Voltando ao Largo do Batata, a jovem de cabelos pretos afirma que “quem criou a pobreza, quem criou a miséria e a guerra de classe foi o próprio PT”. Corte seco para três

manifestantes loiras, vestidas de azul, que gritam “Fora PT” (imagem a seguir). Num outro depoimento, mais recortado por imagens que os apresentados até então, uma mulher na ciclovia afirma que o “pessoal está dividindo o povo sim, tá dividindo o negro, dividindo o gay”. Enquanto a voz continua fora do quadro, no momento da palavra “negro”, o plano mostra um manifestante branco parado, bebendo cerveja e uma fila de policiais negros passando à sua frente.

FIGURA 5: Frame apresenta um padrão dos manifestantes Pró-Aécio

Fonte: EM DIA..., 2014.

O vídeo volta à jovem do início desta sequência que fala que a guerra entre nordestino e paulista “é o que eles estão fazendo agora”. A sua fala é interrompida pelo jovem negro

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que está ao seu lado e que diz “entre cores também”. A jovem passa a bola da entrevista para o jovem ao lado, dizendo “ele é negro, ele sabe disso”, e o jovem afirma que é criticado quando dizem “que por eu ser negro, de direita e apoiar o Aécio, que eu sou comprado pelos branquinhos do PSDB”.

A cena é interrompida por um plano geral das pessoas na manifestação e outro homem, branco e com a camisa da CBF amarela, afirma: “tem negro, tem representante de comunidade, tem empresário, tem todo mundo. Toda a sociedade tá representada aqui”. Mais uma vez, o vídeo ilustra a fala com um plano geral da caminhada dos manifestantes ao lado da PM, mas vale destacar que, fora o jovem negro depoente, os outros negros visíveis nos planos são os policiais, que estão à trabalho. Um último depoimento vem comentar a questão racial, pela fala do jovem que afirma: “tem pouco negro em qualquer lugar, porque o país foi colonizado por brancos”. Outro homem de camisa amarela da CBF aparece para dizer, sorridente, que “temos um nível superior ao da oposição, que infelizmente hoje é situação” Corte seco para imagem de uma senhora, loira, branca que segura um cartaz e encara sorridente a câmera.

O áudio, mais uma vez, anuncia o tema que será pautado pelas falas dos depoentes, fazendo a transição de um lado para o outro. Ouvimos a voz do Aécio dizendo sobre importância das investigações de corrupção. O vídeo volta aos espectadores do debate e o jovem de blusa preta e adesivo da Dilma fala sobre Aécio: “engavetava processos. A irmã dele perseguia jornalistas, era uma política muito fechada”. A cena traz o complemento do depoimento da senhora da blusa Dilma que fecha o pensamento da sequência anterior: “eles [a mídia] repetem agora como marionetes que o PT é um partido corrupto”. O jovem de camisa do Flamengo fala que o Aécio se diz limpo, mas “tem um escândalo nas costas de uma tonelada de cocaína”. O vídeo volta na senhora que continua: “não é que tem muita corrupção. Agora ela é exposta, não tá debaixo do tapete”.

Do outro lado, o vídeo apresenta os manifestantes verde e amarelo batendo palmas, e o depoimento do jovem que se contradisse anteriormente e, ele mais uma vez traz um discurso dúbio e confuso ao falar que os líderes do PT estão na cadeia e se os líderes do PSDB não estão é “ou porque eles são inocentes ou por incompetência do PT, que era oposição de não ter investigado corretamente”. Corte seco para manifestantes que falam em um megafone “muda Brasil, fora PT”. A senhora

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que está no meio das avenidas, também continua sua fala, afirmando frontalmente para a câmera que vai salvar o Brasil, “custe o que custar. Pela intervenção militar ou pelo Aécio”.

A temática da ditadura militar vai ser tratada com os depoimentos do jovem negro e da senhora: o primeiro questiona “se aconteceu, de no período militar, houve excessos sim, mas não foi tanto quanto o pessoal fala”; a senhora afirma: “não houve ditadura militar”; ele segue: “pra mim no período militar havia respeito”; ela termina: “os militares ficavam sim em cima, de comunistas. Eles limparam a nossa pátria”. Aqui há uma construção das falas dos dois depoentes, por meio da edição de frases intercaladas, numa amostragem da opinião em comum desse lado dos manifestantes.

O vídeo retorna ao público espectador do debate, num plano geral em que vemos as pessoas sentadas, assistindo ao telão, bebendo cerveja e batendo palmas para a candidata do PT, que fala que o outro candidato nunca andou de metrô – informações trazidas pelo áudio. O jovem da camisa do Flamengo diz que eleger Aécio é uma piada, “assim como eleger o Tiririca. Inclusive ele é uma piada mais nociva que o Tiririca”.

Do lado dos manifestantes pró-Aécio, a jovem de cabelos pretos se exalta, gesticula e grita: “eu tenho 18 anos e não tenho liberdade de expressão, porque o PT tira todos os direitos”. A senhora pró-militarismo, afirma: “eles falam como se tivessem criado o bolsa família. Não, de forma alguma. Ele existiu desde o regime militar, foi criado, se não me engano, pela esposa do Fernando Henrique Cardoso e que veio sempre, só que se usava menos”. Aqui a edição junta dois momentos que não são nem confusos nem contraditórios, mas sim graves ausência de discernimento e informação. A montagem aqui parece ilustrar com mal gosto o comentário do jovem que falou de piada nociva.

Aqui temos mais um momento entrecortado de falas que completam uma ideia, só que agora do lado pró-Dilma. A senhora da camiseta da candidata diz que o confronto se dá entre “um político profissional, verborrágico, eloquente”; a jovem cansada do antipetismo diz: “o Aécio tem um cinismo na lábia, aquele risinho dele”; a senhora continua: “e uma gestora competente e honesta”.

Logo, o outro lado rebate, com a fala da jovem de cabelos pretos: “um governo que tá com mensalão, petrolão. Os maiores escândalos de corrupção estão dentro do PT. O PSDB não é

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santo, mas o PT ganha de todos os partidos”; a senhora pró-intervenção completa: “então é por isso que eu voto no Aécio. E, gente, por mim, seria intervenção militar, mas o povo tem o direito da democracia, tem o direito do voto”. A fala dela é sobreposta ao áudio dos manifestantes cantando o final do hino nacional: “Terra adorada/ Entre outras mil, és tu Brasil, ó pátria amada”, enquanto vemos um homem carregando um cartaz com o texto “ministros profissionais e não políticos”.

Como no início do vídeo, temos uma última sequência com cenas de no máximo três segundos de duração com as percepções dos dois lados. Na Praça Roosevelt, a senhora da camiseta da Dilma nega com um movimento de cabeça e diz “mentira” – parece que ela reage ao debate televisivo, mas a edição coloca essa cena como um comentário contrário à fala da cena anterior da senhora pró-intervenção. O vídeo mostra à manifestação pró-Aécio e as pessoas que caminham e cantam. A jovem cansada do antipetismo volta pela última vez e conclui “não tá um debate sério”. Do outro lado, homens batem palmas e ouvimos o grito de “fora PT”. Tela escura, o vídeo termina e aparecem os créditos.

Considerações finais

Os vídeos analisados se apresentam como recortes e testemunhos das manifestações de 2014. Em dois momentos diferentes, sob duas perspectivas de personagens diferentes, ambos vídeos apresentam suas informações por meio de entrevistas e de uma câmera testemunha das ações. Mas todos os sentidos dos mesmos podem ser retirados das relações construídas por suas montagens. Como já apontado, os dois vídeos utilizam da montagem paralela, alternando planos e sequências para criar um novo significado implícito, que será completado e interpretado pelo espectador.

O primeiro vídeo, da TV Carta, está de um mesmo lado da manifestação, a montagem identifica os entrevistados (com legenda e tudo). E, mesmo dando voz a personagens diferentes (mulher jovem, mulher idosa e homem), acaba construindo personagens (e estereótipos) a partir das falas de Isabella e Elizabeth. E, ainda, constrói discursos em outros dois momentos: primeiro quando acelera a imagem da polícia presente à manifestação, dando aqui um tom irônico e jocoso; e, no momento final, ao relacionar o Hino Nacional (presença, inclusive, dos dois

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Sobre vídeos, manifestações e montagens

vídeos) em ritmo de forró com o casal com traços nordestinos.

No vídeo da TV Folha não há identificação do nome das pessoas depoentes nem mesmo legendas relacionadas às suas profissões. Numa espécie de opinião geral de ambos os lados, pró-Aécio e pró-Dilma, o vídeo divide os dois lados, faz a montagem parecer imparcial ao intercalar as sequências com tempos similares (entre 25, 30 e 40 segundos para cada um), mas não deixa de fazer comentários críticos a partir da mesma. Como, por exemplo, na sequência em que uma mulher defende a candidata Dilma, dizendo que a mídia “planta a ideia de corrupção diariamente”, na cena seguinte, o vídeo traz uma mulher na manifestação pró-Aécio segurando um cartaz com os dizeres “Dilma mentirosa”.

Os vídeos não fazem parte das manchetes principais e nem são o foco das notícias da revista Carta Capital e do jornal Folha de S.Paulo do período. Eles são disponibilizados como conteúdo extra dos canais dos veículos, numa espécie de “saiba mais”, veja mais sobre. Os mesmos são apresentados como registros dos acontecimentos, próximos do modelo telejornalístico, mas como visto, ambos fazem uma construção de modo explícito das estratégias fílmicas e, principalmente por

meio da montagem, transparecem opiniões, assumem estereótipos e imparcialidades. Os vídeos informam, mas não declaram abertamente de que lado os veículos estão e com que lado desejam conversar – ao mesmo tempo que expõem o discurso dos personagens registrados, um outro sentido é construído pela montagem.

ReferênciasAUMONT, Jacques. A estética do filme. São Paulo: Papirus Editora, 1995.

CARMONA, Rámon. Cómo se comenta un texto fílmico. 5ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2002.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

EM DIA de debate, sutileza zero nas ruas de SP. TV Folha. Disponível em: Felipe, Andre; Bello, Giovanni (eds.) São Paulo. 17 out. 2014. 7’24”. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zb9_4yRJsvY. Acesso em: 20 jun. 2016.

MARCHA da família contra o governo e ‘idiotas’ da USP. TV Carta. Parede, Clara (ed.); Capriglione, Laura (reportagem), Sillva, Joseh (Imagens). São Paulo. 26 mar. 2014. 5’08”. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EJNVPwkhghA. Acesso em: 20 jun. 2016.

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Sobre vídeos, manifestações e montagens

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

Mariana Mól Gonçalves é professora do curso de Cinema e Audiovisual do ICA/UNA. Doutora em Artes pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (2014), com pesquisa relacionada ao cinema produzido na América Latina. Mestre em Artes pela UFMG (2007), compesquisa sobre cinema brasileiro, e graduada em Jornalismo pelo UNI-BH (2003). Experiência na área cultural, atuando principalmente em jornalismo cultural, cinema e produção cinematográfica. Produziu eroteirizou o documentário musical “Simplicidade: Mozart Secundino de Oliveira” (2015), produtora do Lumiar Festival Interamericano de Cinema Universitário, do ICA/UNA (edições 2015 e 2016).

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Educação e Comunicação como leitura crítica do mundo e de si mesmo mesmo:análise dos vídeos veiculados pela TV Carta em outubro/2014

por Cláudia Chaves Fonseca

Muitas são as maneiras de se pensar a educação. Trata-se de um campo de conhecimento complexo, observamos diferentes modos de educar a cada tempo, lugar e sociedade. Nas sociedades contemporâneas ocidentais, por exemplo, o ato educativo é manifesto por diversas práticas, por/em várias instituições, de maneira formal ou não. Convivem com a escola – instituição socialmente legitimada para educar – outras instâncias do meio social que reivindicam para si um lugar pedagógico e elaboram, mesmo que não explicitamente, um discurso pedagógico. Os mass media são uma delas.

Entendemos como lugar pedagógico da mídia a construção de uma narrativa simbólica intencional, exercida no horizonte de uma finalidade informativa que opera, muitas vezes, no exercício da projeção de algumas práticas e no obscurecimento de outras. Jogar luz, evidenciar, destacar tais e quais situações e falas são estratégias próprias das edições midiáticas, particularmente as jornalísticas, do mesmo modo que personalizar, reduzir, minimizar e silenciar. As diferentes estratégias - articuladas em torno de enunciados verbais e não-verbais - compõem uma pedagogia, no sentido original da palavra - a de condução – (paedos) realizada como sugestão de sentido.

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Ora, o termo educação tanto pode ser entendido como educere (formação de autonomia, controle de si) quanto por educare (adaptação ao meio social, reconhecimento das regras de convivência em sociedade) e ambas as acepções estão entrelaçadas e se desdobram em pedagogias, como procedimentos para se conseguir tais objetivos.

Pretende-se com este artigo compreender como a dinâmica discursiva apresentada pelos vários interlocutores em interação em vídeo – interação entre eles mesmos, com a câmera e com o público – tece uma rede semiótica com intencionalidade formativa. O vídeo analisado foi produzido pela TV Carta, da revista Carta Capital, sobre as manifestações de rua sobre a situação política do país em março de 2014. O discurso pedagógico produzido se expressa nas falas, nos gestos, nos enquadramentos e na edição dos vídeos, amparando uma dimensão pedagógica que visa, por meio desses recursos, propor a leitura de uma determinada dinâmica social a partir de certa perspectiva política, entrelaçando o educere com o educare.

Os vídeos da TV Carta

Os vídeos em questão formam o objeto empírico da pesquisa de iniciação científica

intitulada Razão pura e razão sensível: estudo da dinâmica de circulação de sentidos a partir de vídeos sobre manifestações políticas postados nas mídias sociais, desenvolvida pelo grupo de pesquisa em Comunicação do Centro Universitário UNA. O vídeo da TV Carta foi postado no site You Tube e divulgado pela página da revista Carta Capital na mídia social Facebook.

A revista Carta Capital é uma publicação fundada em 1994 pelo jornalista Mino Carta, que à época já era conhecido por ter trabalhado em importantes redações jornalísticas, tais como as revistas Veja e Isto É, além do Jornal da Tarde. Carta, de nacionalidade italiana, mas naturalizado brasileiro, em sua trajetória profissional também atuou como publisher, tendo criado algumas publicações, entre elas a Carta Capital, que leva o seu nome.

Publicada pela editora Confiança, a revista tornou-se semanal em 2001 e, de acordo com o site www.cartacapital.com.br, é focada em temas como economia, política e cultura. Em consonância com as posições políticas do editor, a Carta Capital apresenta linha editorial simpática ao pensamento de esquerda. Em vários editoriais a revista declarou-se favorável ao ideário programático do Partido dos Trabalhadores (PT), notadamente após a

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1 Algumas denúncias foram alvo de investigação da Po-lícia Federal e do Ministério Público Federal, na chamada Operação Lava Jato, ainda em curso.

eleição e reeleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidente Dilma Rousseff.

Para competir em um concorrido mercado multimídia, com crescente evasão de assinantes para as mídias digitais, a revista Carta Capital – como de resto o mercado de revistas - desenvolveu alguns produtos, entre eles a TV Carta, veiculada como canal no site de vídeos You Tube. O vídeo específico analisado tem a duração de 5 minutos e 9 segundos e intitula-se Marcha da Família contra Cuba, governo e os idiotas da USP. Ele foi produzido como reportagem jornalística das manifestações de rua, tendo sido postado no Facebook no dia 20 de março de 2014, obtendo 1,2 mil curtidas, 427 comentários e 1,2 mil compartilhamentos. Segundo a página da revista no Facebook, o intuito do vídeo seria fazer o público conhecer alguns dos personagens que foram às ruas em SP para pedir proteção aos militares contra novo “golpe comunista” no dia 22 de março de 2014.

As eleições presidenciais de 2014

O período eleitoral que antecedeu as eleições presidenciais brasileiras em 2014 foi peculiar. A presidente Dilma Rousseff (PT) concorreu à reeleição, buscando confirmar a presença de

seu partido no poder. Foram seus principais adversários o senador Aécio Neves (PSDB) e o senador Eduardo Campos (PSB), falecido em um desastre aéreo em agosto daquele ano. Em um primeiro momento de campanha, Eduardo Campos despontava como alternativa para a polarização PT/PSDB, que parecia acirrar-se após 12 anos de governo do primeiro, sucedendo a oito anos do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

O repentino desaparecimento de Eduardo Campos embolou a disputa, pois seu lugar foi ocupado por sua vice, senadora Marina Silva, que tentara, sem sucesso, viabilizar candidatura própria. No espectro político-ideológico, Silva tende bem mais à esquerda que Campos, o que ocasionou desconfiança e suspeita em alguns segmentos do eleitorado.

Passada a comoção pelo funeral de Campos, a campanha eleitoral avançou, avaliada por cientistas políticos e jornalistas como uma das mais encarniçadas e agressivas da história política do país, com trocas de acusação de parte a parte e denúncias diversas1. Marina Silva não resistiu ao primeiro turno, de forma que na segunda parte da eleição voltou a polarização inicial entre Dilma Rousseff e Aécio Neves.

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2 Cf. Manoel Castells, Pierre Levy e outros autores que dis-cutem a dinâmica da socieda-de informacional.

Em junho de 2013, no penúltimo ano do primeiro mandato da presidente Dilma, algumas manifestações populares - de natureza difusa - expressavam o descontentamento da população frente à situação econômica do país e à má-qualidade dos serviços públicos. Pelo caráter imprevisto dos eventos, as chamadas “jornadas de junho” prenunciaram o complicado cenário político que se delineava.

No ano seguinte, várias manifestações se seguiram, com pautas mais ou menos definidas, uma vez que foram formados alguns movimentos da sociedade civil alinhados ao pensamento de direita, como o Vem pra Rua, entre outros. Praticamente todas as manifestações nas capitais e cidades mais importantes do país foram notícia nos meios de comunicação, entre eles as revistas semanais, entre as quais se inclui a Carta Capital. A novidade desta cobertura jornalística é que os principais meios de comunicação tornaram público, por meio de editoriais, sua filiação ideológica ou mesmo político-partidária.

Do mesmo modo, as mídias sociais se mostraram um relevante ator político, na medida em que vários segmentos de opinião nelas se manifestaram, muitas vezes em tom polêmico. A busca pela visibilidade política por meio das mídias sociais é um fenômeno

recente e tem sido incorporado como objeto de estudos pelos cientistas políticos, tal a dimensão que vem alcançando.

Comunicação e Educação: mediações mútuas

A comunicação humana é um processo abrangente e, obviamente, precede à comunicação coletiva. Esta é uma novidade trazida pela ciência e pela tecnologia e é uma das principais características da contemporaneidade. A comunicação coletiva, realizada prioritariamente com a mediação de um extenso aparato tecnológico, é uma forma de poder que opera com simbolismos, como explica Thompson (1998). Para o sociólogo britânico, o poder exercido pelos mass media derivam de sua capacidade de registro e de fixação, ao lado de uma retórica persuasiva, fomentada pela contínua exposição do público aos formatos e conteúdos percebidos, de modo que trata-se de uma reorientação cultural.

A invenção e a disseminação dos meios de comunicação digitais, a partir dos últimos anos do século XX, promoveram um aprofundamento de algumas questões que já vinham sendo sinalizadas pela chamada “sociedade da informação”2. Mais do que um evento de consumo, a relação das pessoas com a mídia

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promove uma alteração da experiência social. A possibilidade de convergência midiática, o estabelecimento de redes, a virtualidade, a saturação da informação, o anominato são características, entre outras, que sustentam uma presentificação da experiência, como percepção de um mundo que se esgota no instante vivido, no gozo imediato.

O teórico da comunicação Jesus Martín-Barbero, no livro Dos Meios às Mediações (1992) afirma que a comunicação, em nossa sociedade, alcança tamanha projeção que devemos estudá-la como um fenômeno totalizador, relativo não somente aos meios, mas principalmente às mediações. Ao estudar os processos comunicativos na televisão, o autor apresentou a seguinte definição:

As mediações são esse “lugar” de onde é possível compreender a interação entre o espaço da produção e o da recepção: o que se produz na televisão não responde unicamente a requerimentos do sistema industrial e a estratagemas comerciais, mas também a exigências que vêm da trama cultural e dos modos de ver (MARTÍN-BARBERO, 1992, p.20).

Roger Silverstone (2002) explica o conceito de mediação, de modo ampliado:

A mediação implica o movimento de um significado de um texto para o outro, de um discurso para o outro, de um evento para o outro. Implica a constante transformação de significados, em grande e pequena escala, importante e desimportante, à medida que textos da mídia e textos sobre a mídia circulam em forma escrita, oral e audiovisual, e à medida que nós, individual e coletivamente, direta e indiretamente, colaboramos para sua produção (SILVERSTONE, 2002, p.33).

Assim, é possível pensar que a comunicação e a educação convoquem-se mutuamente numa sociedade complexa como a que vivemos. Seus “textos”, como afirma Silverstone, imbricam-se em diversas situações. A comunicação muitas vezes assume uma perspectiva formadora, mesmo que não-institucionalizada, e as instâncias educativas - entre elas a família e a escola – estão imersas em comunicação. Melo e Tosta (2008, p.27) afirmam que a mídia produz e conforma discursos de várias ordens, entre elas o político e o educativo. Os mass media carregam tanto a potencialidade de promover uma leitura do mundo, formando o público em relação a assuntos públicos (educere) quanto a de encorajar os indivíduos a aderir aos condicionamentos ideológicos vigentes (educare).

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3 Laura Caprigloni atualmente faz parte do coletivo Jornalis-tas Livres, mas trabalhou em redações da grande imprensa, tais com o jornal Folha de São Paulo e revista Veja.

Essa ordem simbólica transborda para o tecido social num movimento contínuo, em que as mediações se tornam também midiatizações – situações em que o meio social pauta a experiência pela lógica midiática. Em relação ao vídeo Marcha da Família contra Cuba, governo e os idiotas da USP, da TV Carta, podemos dizer que a relação entre os espectadores e o vídeo não é direta, mas sempre mediada, entre outros fatores, pelo local e contexto da recepção, pela mídia utilizada (celular, computador, etc), pelo site acessado (You Tube, Facebook, etc). Os significados produzidos não são unívocos, mas constituídos numa trama de sentidos prévios, da experiência vivida; da relação com a técnica e o discurso do vídeo.

Marcha da Família contra Cuba, governo e os idiotas da USP

É importante incorporar os elementos materiais para a análise das mensagens midiáticas. Trata-se de um vídeo com características de documentário, uma vez que é um recorte da cobertura jornalística, realizada pela repórter Laura Capriglioni3 das manifestações ocorridas nas ruas da cidade de São Paulo em março de 2014 (MARCHA..., 2014). Geralmente os vídeos possuem um foco

mais fechado que os das imagens no cinema, de tal forma que os elementos são percebidos em menor profundidade, em primeiro plano ou em plano americano. Poucas imagens mostram um plano mais aberto, de conjunto.

O próprio título do vídeo é significativo, uma vez que contém os termos “marcha” (como movimento ou deslocamento), família (não no sentido biológico, como agrupamento de pessoas que possuem laços de consanguinidade; mas evocada no sentido de agrupamento legitimado no âmbito social e religioso); em contraposição à “Cuba” (termo que opera como figura de linguagem, sintetizando o comunismo), o “governo” (como algo que nos levará a uma situação similar a de Cuba) e os “idiotas da USP” (neste caso, o indevido da generalização salta aos olhos, uma vez que a Universidade de São Paulo tem vários campi e diversos departamentos e cursos, de modo que não é provável que todos os alunos, professores e funcionários sejam idiotas).

Como chamarisco para prender a atenção de um possível espectador, já que na internet o volume de informação é colossal, o título do vídeo, ao sintetizar elementos dos discursos presentes durante a marcha, apela para a curiosidade do internauta. O raciocínio do tipo “x contra y” nos induz a pensar numa

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disputa ou contenda. Sabe-se que o motivo da caminhada foi pedir a proteção dos militares contra uma suposta tentativa do governo Dilma Rousseff (PT) de levar o país para o regime comunista, então a edição do vídeo trabalha os contrastes. A edição ora abre o foco para a multidão que anda, ora se detém em pessoas específicas ou dizeres específicos dos cartazes empunhados pelos manifestantes. Os planos que se sucedem vão formando uma narrativa que às vezes parece dar razão aos manifestantes, mas após os cinco minutos de visualização infere-se uma certa ironia, talvez proposital. (MARCHA..., 2014).

O vídeo emprega a estratégia da personalização, um valor-noticia constante no jornalismo, que é um critério simbólico utilizado pelos jornalistas para compor a narrativa. Alguns manifestantes, como a corretora de imóveis Elizabeth, o diretor comercial Mike e principalmente a estudante Isabella são transformados, pelo processo de edição, em personagens. (MARCHA..., 2014). Todos eles mostram no próprio corpo as marcas do seu posicionamento, com pinturas verde-amarelas pelo rosto e adereços como a Bandeira do Brasil. A personalização tem um caráter didático ao promover a empatia entre a imagem e o público, de forma a buscar identificação. Qualquer um de nós pode se projetar na Elizabeth, no Mike

ou na Isabella, são pessoas comuns. A maneira como são destacados, no entanto, evidenciam um paradoxo, uma vez que aparecem sempre aos gritos, falando frases que embaralham fatos históricos.

Numa divertida passagem, por exemplo, a repórter faz perguntas à corretora de imóveis, que se mostra indignada com os rumos do país. Quando rebate seus argumentos, fazendo uma pergunta após a outra, a repórter deixa a personagem sem resposta, de forma que a última fala de Elizabeth não é uma afirmação, mas também uma pergunta. (MARCHA..., 2014). Fica no “ar” a impressão de que, quando pressionada, a entrevista não sustenta o raciocínio.

Além dos personagens, o vídeo enfoca os símbolos empunhados pelos manifestantes, como imagens religiosas, a farda da Polícia Militar, as batinas dos padres, a bandeira nacional, todos eles ligados ao termo genérico “família”, tal qual preconizado pelos caminhantes. (MARCHA..., 2014).

Ao final, a estudante/personagem Isabella faz um discurso-síntese dos motivos pelos quais estaria ali, remetendo aos políticos que a representariam ideologicamente. Por ser jovem e mulher, Isabella torna-se ela mesma

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4 Escola Nova é o nome de um movimento de renovação educacional que se iniciou na Europa e nos Estados Unidos no final do século XIX e se de-senvolveu no século XX. Prin-cipais autores: Dewey (EUA), Kilpatrick (EUA), Montessori (Itália), Freinet (França), De-croly (Bélgica), Teixeira (Bra-sil) entre vários outros.

um símbolo no vídeo, na mesma condição paradoxal: fala o tempo todo, em tom ora indignado, ora histérico, mas seu discurso não apresenta coerência ou sentido histórico, como se fosse um amontoado de significantes que se perderam dos significados.

Considerações finais

Durante muitas décadas, as Teorias da Comunicação postularam um determinismo no poder da mídia sobre as audiências. Os primeiros estudos sobre comunicação coletiva afirmavam que ao público não restava alternativa – seria fatalmente manipulado pelos meios de comunicação. Estudos empíricos demonstraram que nem sempre essa perspectiva se mostrava correta, pois o público era capaz de negligenciar, discordar ou mesmo desprezar o que via e ouvia. As pesquisas foram reorientadas tanto em direção ao contexto cultural em que as mídias se inserem como para o estudo das mensagens como fenômenos semióticos. O meio social é formado por diferentes lugares de fala e de escuta, um universo de intensa atividade interpretativa.

Na História da Educação ocidental, também durante alguns séculos, pelo

menos até o Movimento da Escola Nova4, a comunicação – como conceito e como prática – foi desconsiderado. Somente com a emergência da mídia e sua rápida disseminação pelo mundo infantil, tornando-se um elemento do cotidiano das crianças, que os educadores começaram a pensar no papel formativo que ela exercia e como se podia tirar partido desse fato para finalidades pedagógicas.

Os produtos midiáticos, sejam eles uma revista, um programa de rádio ou um vídeo, são compostos por dimensões técnicas e narrativas. Ou melhor, constituem narrativas materializadas por funcionalidades técnicas. O vídeo Marcha da Família contra Cuba, governo e os idiotas da USP é resultado de um processo de edição, no qual um ou mais profissionais imprimiram um tom. Editar é recortar, escolher e sequenciar elementos em função de uma ideia, daí o caráter sempre diretivo e prescritivo da atividade. A edição é intencional, segue uma lógica e nisto reside sua condição pedagógica.

Os editores lidam com representações, e o resultado final do vídeo é, em si mesmo, também uma representação. Isto não quer dizer que estamos atribuindo um poder indiscutível aos mídia, mas indiciando as tensões que se revelam nos discursos midiáticos. O

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cenário político brasileiro em 2014 era lugar de intensa disputa, que se desenrolava – e ainda se desenrola – notadamente no campo simbólico. O que é o Brasil, para onde vamos, em que direção seguiremos, são perguntas que pretendem ser respondidas por grupos que buscam hegemonia de suas posições.

Compreender que entre a comunicação e a educação há mais interfaces que supomos e que a análise crítica da mídia é uma forma de educação confirma a indissolubilidade existente entre ambas as raízes da palavra educação: a do sujeito que se constitui para o exercício pleno de si, no interior de uma sociedade à qual pertence e que pode transformar.

Referências MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992.

MARCHA da família contra o governo e ‘idiotas’ da USP. TV Carta. Parede, Clara (ed.); Capriglione, Laura (reportagem), Silva, Joseh (Imagens). São Paulo. 26 mar. 2014. 5’08”. Youtube Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EJNVPwkhghA. Acesso em: 17 set. 2016.

MELO, José Marques; TOSTA, Sandra. Mídia & Educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2008 (Col. Temas & Educação).

SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo, Loyola, 2002.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis, Vozes, 1998.

Cláudia Chaves Fonseca é doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas); mestre em Comunicação e jornalista pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É autora do livro Os Meios de Comunicação Vão à Escola? publicado pela editora Autêntica em 2004. Professora universitária e pesquisadora em Comunicação e Educação, tem interesse nas áreas de Teoria da Comunicação, Semiótica, Metodologia de Pesquisa e Filosofia da Educação. Atualmente é professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade do Centro Universitário UNA, no qual participa de projetos de pesquisa e extensão.

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II - Estratégias discursivas e semióticas

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Construção e representação da realidade no discurso oposicionista:uma abordagem crítica

por Izabella dos Santos Martins

O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestar-se.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

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É este o contexto do corpus analisado neste artigo – o vídeo da Marcha da família contra Cuba, governo e “idiotas da USP”, editado pela TV Carta, em outubro de 2015 (MARCHA, 2014). Tal marcha foi realizada por opositores do governo petista, no mês de março de 2014, e ilustra o momento político em questão, em que são construídos discursos baseados em oposições claras, como “esquerda x direita”, “comunistas x capitalistas” etc.

Em meio a cartazes com dizeres como #foraDilma e Fora Comunista, tal marcha apresenta um discurso de teor altamente crítico ao governo petista de Dilma Rousseff, numa tentativa de associá-lo aos governos cubano e venezuelano de Fidel Castro e Nicolás Maduro, respectivamente.

No presente artigo, procuro evidenciar, à luz da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), as estratégias do discurso oposicionista de utilizar recursos linguísticos como a nominalização e a construção de orações identificativas para nomear a realidade brasileira, em que os adjetivos não são usados abertamente em um primeiro momento, para argumentar em favor de sua causa, atribuindo um aspecto racional a esta argumentação, e deixando os elementos visuais carregados de aspectos que apelam ao emocional dos presentes. Interessa aqui

evidenciar algumas metáforas que emergem no discurso dos manifestantes no que diz respeito à visão que têm e propõem para a leitura desta realidade, e de como, por mais distorcidas que possam ser, aparentemente são construídas como algo dado, evidente.

Dessa maneira, este texto tem como objeto final chamar a atenção para essa tentativa de retrocesso, e para a urgência de se fazer frente a ela em defesa da democracia e da cidadania.

Para tanto, o enquadre geral utilizado é o da Análise Crítica do Discurso (ACD) (FAIRGLOUGH, 2001), donde se realçam os conceitos de interdiscursividade e de discurso, entendido na abordagem em questão como prática social. A LSF, teoria que dá suporte à análise textual da ACD, é aqui utilizada especialmente no que tange à função ideacional da linguagem – sobretudo, no que concerne à metáfora ideacional conhecida como nominalização, e ao tipo de oração conhecida como relacional identificativa (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004), e em menor escala, ao tipo relacional atributiva (HALLIDAY ; MATHIESSEN, 2004). Como suporte para a análise visual do vídeo, foi utilizada a Semiótica Social (KRESS ; VAN LEEUWEN, 2001).

Construção e representação da realidade no discurso oposicionista: uma abordagem crítica

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A Análise Crítica do Discurso

De acordo com Fairclough (2001), na Análise Crítica do Discurso, o discurso é visto como um tipo de prática social, de representação e de significação do mundo. Nesta teoria, o discurso é entendido como constituinte do social, como um modo de ação, pois é uma das maneiras pelas quais as pessoas podem agir sobre o mundo e sobre os outros, mas é também visto como uma forma de representação, pois nele, valores e identidades são representados de forma particular. Os discursos são concebidos como não apenas reproduzindo entidades e relações sociais, mas também como as construindo de diversas maneiras, cada uma das quais posicionando os sujeitos sociais também de diferentes maneiras. Nesta teoria, a dimensão ideológica na construção do sujeito e do discurso é assumida plenamente (FAIRCLOUGH, 2001).

Um dos objetivos principais da teoria é o de contribuir para a pesquisa social das mudanças social e cultural pelas quais a sociedade contemporânea vem passando: para Fairclough e seguidores, as mudanças no uso linguístico – em todos os níveis, como o léxico-gramatical e o semântico – são parte

importante de mudanças culturais e sociais mais amplas.

De acordo com Fairclough (2001, p. 22), “qualquer evento discursivo (isto é, qualquer exemplo de discurso) é considerado simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social”. Para abarcar estas três dimensões do evento discursivo, uma das metodologias muito utilizadas na ACD é o quadro tridimensional de análise proposto por Fairclough (2001).

A primeira dimensão é a análise textual, que usa o aparato da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) de Halliday (1985), muitas vezes chamada de Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) - gramática aqui sendo entendida em um sentido amplo, como um tipo de síntese de determinada visão de mundo. Na LSF, o estudo da linguagem foca no significado e nas maneiras como as pessoas fazem escolhas entre os recursos disponibilizados pelo sistema linguístico para a produção destes significados.

Nesta teoria, considera-se que a linguagem desempenha três metafunções simultaneamente. A metafunção ideacional é concernente à representação da realidade, ideias e experiências. A metafunção interpessoal diz respeito, grosso modo, à

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construção de identidades e relações sociais entre falantes. Já a metafunção textual é a responsável por organizar as escolhas textuais em relação ao contexto textual e ambiental, na ordenação linear do texto (HALLIDAY ; MATHIESSEN, 2004).

A segunda dimensão do quadro tridimensional é a análise das práticas discursivas, relativa à compreensão de como os textos são produzidos, distribuídos e consumidos em dada configuração social. Neste nível da análise, uma das questões mais abordadas pela ACD é a da heterogeneidade dos textos: neste aporte teórico, considera-se que os textos podem ser heterogêneos e ambíguos, e os autores e leitores (ou falantes e ouvintes) usam configurações de diferentes tipos de discurso em sua produção e interpretação. As práticas discursivas são abordadas em termos de intertextualidade e de interdiscursividade. A intertextualidade é entendida como o fenômeno de diálogo entre textos, enfocando-se a propriedade que têm de ter elementos de outros textos, e a interdiscursividade, sinônimo de heterogeneidade constitutiva, é vista como a configuração de convenções discursivas na produção do texto, a constituição de um texto a partir de discursos e gêneros diversos (FAIRCLOUGH, 1993).

Nesse nível da análise, há um interesse em desvendar a ordem do discurso (termo cunhado por Foucault em 1971 (FOUCAULT, 1996) que, de acordo com Fairclough (2001), representa a totalidade das práticas discursivas de uma instituição, ou mesmo de toda uma sociedade, e as relações existentes entre elas. Fairclough define as ordens do discurso como “facetas discursivas das ordens sociais” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 99).

A terceira dimensão do quadro metodológico da ACD, conforme Fairclough (2001), é a análise da prática social, que leva em conta os contextos culturais e sociais mais amplos. Um dos conceitos capilares neste nível da análise é o de hegemonia, entendido aqui como um modo de dominação baseado em alianças, em consentimento, na incorporação de outros grupos através de sua subordinação. De acordo com Fairclough (2001, p. 122), a hegemonia constitui um foco constante de luta entre classes sobre pontos de maior instabilidade, constituindo-se sempre em um “equilíbrio instável”. Dessa forma, a evolução das relações de poder é vista como luta hegemônica.

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A Linguística Sistêmico-Funcional

Na Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), a linguagem é entendida como um sistema de sinalização usado para produção de significados, gerados sempre na interação com o contexto (MARTIN, 1992).

Como foi mencionado anteriormente, o sistema linguístico oferece vários recursos, mesmo que limitados, havendo sempre possibilidade de se frasear algo de mais de uma maneira para a expressão de significados semelhantes (FINE, 1994). Isso significa que onde há possibilidades, sempre há escolhas, que são sempre significativas. Optar por usar o sistema linguístico usando uma ou outra possibilidade oferecida por ela significa expressar um ou outro significado. A diferença, muitas vezes, é sutil, mas se se consideram as escolhas daquele falante ou escritor de forma não isolada, é possível perceber sua tendência de ação ou de comportamento em determinada situação.

De acordo com Halliday (1994), a linguagem possibilita aos usuários fazerem sentido da realidade, do que está ao redor e dentro deles mesmos. Na visão da LSF, a realidade é feita de processos e consiste de eventos: fazer, sentir, acontecer, significar, ser e comportar. Segundo Halliday, todos estes acontecimentos

são organizados na gramática da oração, sendo o sistema da transitividade a realização da função ideacional da linguagem, através da representação de ideias e experiências. Dessa forma, a transitividade constrói o mundo da experiência em conjuntos de tipos de processos.

Os fenômenos do mundo real são representados na estrutura linguística por meio da gramática da oração da seguinte maneira: o próprio processo (tipicamente realizado por grupos verbais); o(s) participante(s) do processo (tipicamente realizado(s) pelos grupos nominais); a(s) circunstância(s) associada(s) ao processo (tipicamente realizadas pelos grupos adverbiais ou sintagmas preposicionais). De acordo com essa abordagem, na transitividade há um padrão de processos que, de alguma forma, é universal entre as línguas humanas.

Dentre os vários tipos de processos possíveis, há um tipo constituído pelas ações de classificar e identificar, que tem como função relacionar um fragmento de experiência a outro. Esta categoria recebe o nome de processos relacionais (HALLIDAY, 1994) e é representada pelos verbos do ser, do estar e do pertencer, que estabelecem atributos, identidades e relações de posse.

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Neste tipo de processo, uma relação é construída entre duas diferentes entidades: uma entidade sempre é x, tem x ou está x. Segundo Halliday (1994), todas as línguas apresentam construções de processos relacionais, que podem ser de três tipos principais: a) intensivos, em que x é a; b) circunstanciais, em que x está em a (podendo ser também x está sobre a, com a, dentro de a etc.); c) possessivos, em que x tem a.

Todos os tipos de processos relacionais ilustrados acima podem ser expressos de dois modos: a) atributivo, em que a é um atributo de x, e b) identificativo, em que a é a identidade de x.

Os processos identificativos podem mudar a ordem dos participantes sem mudança no sentido. Já os processos atributivos não podem sofrer mudança na ordem dos elementos, uma vez que, se isso ocorresse, a construção ficaria semanticamente diferente do sentido original.

No modo atributivo, alguma qualidade é atribuída a uma entidade. Em x é a, x é chamado de portador, e a é chamado de atributo. No modo identificativo, x é chamado de identificado e a é chamado de identificador. Nos processos de modo identificativo, uma entidade é usada para identificar outra: x é identificado por a.

As metáforas ideacionais

Thompson (2004, p. 165) afirma que a metáfora pode ser caracterizada como “a expressão de um significado por meio de uma forma léxico-gramatical que se desenvolve para expressar um tipo diferente de significado”.

As metáforas ideacionais constituem um recurso discursivo de expressão de significados ideacionais. As construções oracionais (no formato participantes – processos – circunstâncias) adquirem um traço semântico diferente mediante a nominalização de um dos termos, levando à ideia de um significado concreto, de entidade que existe por si só, o que resulta em apagamento da agência das ações.

A expressão linguística que pode ser percebida como menos metafórica – já que todo uso linguístico é simbólico – pode ser chamada de “congruente” (HALLIDAY, 1994). Ou seja, a expressão congruente é a realização gramatical esperada, ou prevista, para a construção da oração naquele determinado contexto. A oração é a expressão linguística típica, com sua construção baseada em processos, participantes e circunstâncias. Já uma forma incongruente é a realização gramatical não prevista, quando a mudança na estrutura gramatical da oração acarreta uma perda de

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informação acerca dos participantes, bem como de circunstâncias. O uso de formas congruentes ou incongruentes é feita através do uso de vários recursos gramaticais, das quais nos interessa aqui a escolha do emprego de uma forma nominal ao invés de um processo verbal. Por meio desse tipo de construção, os processos e as propriedades veiculados respectivamente por ação verbal e por adjetivos são expressos metaforicamente por nomes, aparecendo não mais dentro da oração como processo ou como atributo, mas funcionando como entidade, como coisa (HALLIDAY, 1994).

A Semiótica Social

Na Semiótica Social, as redes de signos são entendidas como configuradas de modo a produzirem discursos em que relações de poder e dominação são produzidas ou reproduzidas, tendo o sistema socioeconômico o papel histórico de determinar quem pode comunicar/receber significados sobre determinados tópicos (KRESS ; VAN LEEUWEN, 2001).

Na visão da teoria, os significados são produzidos através de diferentes recursos, como a postura e a movimentação corporal, a

cor, a perspectiva, o ângulo, sendo a dimensão de análise mais importante a relação física dos participantes em um determinado espaço e tempo.

O uso deste aparato aqui é complementar ao proposto pela ACD, para dar suporte à análise visual do vídeo objeto de estudo deste artigo.

Os gêneros discursivos na manifestação de rua

Seria difícil proceder a uma análise do discurso de uma manifestação de rua sem observar o que é constitutivo dos gêneros que a caracterizam.

A literatura disserta sobre dois destes gêneros – o cartaz de protesto e a frase de protesto –, embora não haja referência – pelo menos nos estudos do discurso – aos demais que o embasam, como o discurso de palanque. No entanto, é possível considerar que estes dois gêneros supramencionados sejam a base textual para os demais. Portanto, concentremo-nos neles.

Bazerman (2006, p. 42) afirma que, em relação à classificação de algo como um gênero específico, é preciso informar-se sobre os textos e sobre como as outras pessoas entendem

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1 Os grifos são meus, para ressaltar as categorias indica-tivas dos discursos políticos, que podem ser observadas nos gêneros que compõem as manifestações de rua. Tais categorias serão, em menor ou maior medida, retomadas na análise do objeto empírico deste artigo.

esses textos. Quando se pergunta às pessoas de certo campo qual o nome dos tipos de textos com os quais trabalham, é possível, segundo o autor, identificar este conjunto de gêneros de uma situação/prática comunicativa. Assim, a existência de um gênero é, via de regra, de conhecimento comum às pessoas envolvidas na situação comunicativa em questão.

Martins (2007) em estudo com participantes de mobilização de protesto, observou que estes nomeavam os seus dizeres como “frase”. Seguindo a autora, também em função da prática discursiva ser muito semelhante à por ela examinada, as frases analisadas neste artigo são também chamadas de ‘frases de protesto’. Trago aqui as considerações de Coracini (1991) no que tange à caracterização do que chama de “discurso político”. Considero o discurso que emerge na manifestação aqui analisada um discurso de cunho político, uma vez que do ponto de vista do conteúdo, trata-se de uma superposição de falas proferidas em nome de um bem comum (o país, a vida em sociedade) por meio da expressão de valores sociais, políticos e econômicos.

De fato, como afirma Pinto (2006), embora todo discurso seja um discurso de poder, já que, em última instância, pretende impor verdades ou pontos de vista ao interlocutor, o discurso

político apresenta uma especificidade: ele deixa clara sua luta pelo poder, enquanto que nos demais discursos fica clara uma tentativa de apagamento dessa luta. No discurso político, “a explicitação de seu desejo de poder é o próprio discurso” (PINTO, 2006, p. 92).

Coracini (2002) afirma que, para atingir seus objetivos, o discurso político faz uso, dentre outros recursos, da estrutura inversa de transitividade1, e de vocábulos carregados de pressupostos ideológicos (ex. comunismo, corrupto). As pressuposições, ainda segundo esta autora, são consideradas formas efetivas de manipulação, porque são difíceis de desafiar. Fairclough (2001) argumenta que as pressuposições são mecanismos intertextuais, formas de incorporar textos de outros autores no texto do autor em questão. Ele afirma ainda que as frases negativas carregam tipos especiais de pressuposição que também funcionam intertextualmente, incorporando outros textos somente para contestá-los ou rejeitá-los.

De acordo com Martins (2007), a metáfora também é um dos mecanismos bastante utilizados na argumentação, estando sua força no fato de que, “ao diluir os limites entre dois elementos, ela diminui o caráter opinativo da analogia” (MARTINS, 2007, p. 183).

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Outra estratégia apontada pela autora relativamente aos discursos políticos é o apelo ao emocional, normalmente demonstrando apoio, solidariedade à causa do interlocutor. Pêcheux (1997) chama de antecipação esse processo sobre o qual se funda a estratégia do discurso, de natureza argumentativa e persuasiva, que aparece quando o locutor parte da premissa de que existe uma distância entre ele e seus interlocutores. Quando se trata de uma tentativa de ganhar a adesão, de transformar o ponto de vista do interlocutor, configura-se uma tentativa de persuasão, enquanto que, quando não há essa necessidade, devido a uma identificação locutor/interlocutor, configura-se o fenômeno de cumplicidade cultural. Assim, o apelo à solidariedade, à identificação de causas comuns, é uma estratégia persuasiva de se ganhar adesão onde não há certeza de adesão prévia.

O tom autoritário é outra característica do discurso político, como o que pode ser observado nos gêneros cartazes e frases de protesto. Por meio do discurso autoritário, tenta-se a adesão dos interlocutores à causa em questão. Neste tipo de discurso, normalmente no modo imperativo, reduz-se muito a possibilidade de o interlocutor interpretar a realidade à sua maneira: “O tipo ‘autoritário’ é

o que tende para a paráfrase (o mesmo) [...], em que a polissemia é contida (procura-se impor um só sentido)” (ORLANDI, 1996, p. 24). Assim, por meio dessa estratégia linguística, tenta-se orientar não somente a leitura, mas também as ações do leitor: no discurso político, o locutor ultrapassa “o nível da convicção” e empenha-se em “atingir o nível da ação”, com o objetivo de levar o “público ouvinte a agir pelo voto” (CORACINI, 1991, pp. 42-43).

Assim, fica clara a característica da polêmica, da desconstrução do outro, como traço fundamental do discurso político. Segundo Pinto (2005:92), essa é uma questão fundamental para entendê-lo, “[...]porque o que ele faz é desconstruir o outro, para se construir. Porque, se ele não desconstruir o outro ele não tem condições de construir a si próprio”.

Por fim, outra característica do discurso político é a não centralidade da posição do enunciador para legitimá-lo, ao contrário do que acontece em outros discursos, como o científico, por exemplo (PINTO, 2005).

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Metodologia

O vídeo aqui analisado, Marcha da Família contra Cuba, governo e “idiotas da USP”, tem duração de pouco mais de cinco minutos (MARCHA..., 2014). Foi produzido pela TV Carta (ligada à revista Carta Capital), no contexto das eleições presidenciais de 2014, quando publicou diversos deles, principalmente sobre as manifestações de rua.

Os pressupostos teórico-metodológicos que embasam a análise aqui proposta têm origem na Análise Crítica do Discurso, na Semiótica Social e na Linguística Sistêmico-Funcional, com as contribuições de teóricos estudiosos do discurso político (ver capítulo de Fundamentação Teórica).

Ressalto aqui que a proposta não foi analisar o gênero vídeo jornalístico, mas sim, a partir dele, como suporte, analisar as falas e imagens que materializam a manifestação aqui observada. Por este motivo, não analiso posicionamentos de câmera, edição e outros aspectos técnicos concernentes ao gênero, já analisados em outro capítulo deste livro (GONÇALVES, 2016).

Não analiso todas as frases proferidas na manifestação, nem todos os cartazes mostrados no vídeo, por questões de espaço. Entretanto,

selecionei os que considerei os mais relevantes para compor os exemplos da análise, a seguir.

Análise dos dados

No começo do vídeo, entra a chamada: Conheça alguns dos personagens que foram às ruas em SP para pedir proteção aos militares contra novo golpe comunista. As primeiras imagens são dos manifestantes – muitos com faixas de protesto e com a mão direita no coração – ao som do hino nacional. As imagens se alternam com entrevistas e com os discursos das pessoas que estão no palanque.

Ao fundo, várias bandeiras são sacudidas: do Brasil, do estado de São Paulo. E vários cartazes aparecem, com dizeres como “Fora Dilma Fora Comunista”; “O povo diz NÃO ao comunismo”; “O povo brasileiro está ao lado das forças Armadas”; “PT é Quadrilha e o STF é cúmplice”.

O ufanismo é flagrante em bandeiras amarradas nos corpos dos manifestantes, em forma de bandanas em seus cabelos, o gestual dos olhos fechados e das mãos posicionadas em cima do coração durante a execução do hino nacional, dos cabelos e rostos pintados de verde e amarelo.

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A mensagem que os manifestantes tentam passar é que o governo petista de Dilma Rousseff é um governo comunista, e que o comunismo representa um perigo para o Brasil.

Recorrendo a Kress e Van Leeuwen (2001), é importante observar a disposição espacial dos manifestantes no espaço. Na manifestação aqui analisada, as pessoas estão muito próximas umas às outras, formando uma espécie de corrente humana, remetendo à ideia de corrente de proteção – ideia essa que perpassa todo o discurso da manifestação. As cores verde e amarelo estão pintadas em rostos, corpos e cabelos. O curioso é que a manifestante que profere o discurso no palanque ostenta as cores azul e amarelo em seus cabelos – o que imediatamente remete às cores do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), cujo emblema é um tucano, também azul e amarelo. A associação é com a imagem de um Brasil que se legitimaria pela adesão a tudo que representa o oposto à ordem política atual, representada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), adversário histórico do PSDB.

Visualmente, outro aspecto que chama a atenção é a presença do elemento religioso. As batinas dos padres e sua movimentação com

terços nas mãos fazem lembrar uma procissão, que soa bizarra, com cartazes de “fora Dilma” por trás e a oração de Ave Maria ao fundo, remetendo à ideia de ritual de exorcismo, para uma entidade que, em última análise, seria o governo petista de Dilma Rousseff, associado em vários momentos do discurso a um governo comunista, e com a colocação do termo “Igreja” alhures, puxa pela memória a associação histórica do comunismo com o ateísmo – o que, numa mesma rede possível de associação semântica, o colocaria como um governo satânico, que seria o outro extremo do continuum cristão – ateu – satânico.

Também os gritos “Deus, pátria, família”, associados a imagens de militares marchando, trazem à memória a ideia de governos militares e movimentos que a eles ofereceram suporte ideológico, como a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – organização civil de inspiração católica tradicionalista, pautada no combate às ideias maçônicas, socialistas e comunistas. As três palavras em sequência criam a impressão de que são naturalmente associadas, de que uma chama a outra. A leitura contrária possível seria “Comunismo, pouco amor à pátria e esfacelamento da ideia de família”; ou seja, o discurso que está sendo inflado é o de que o governo petista atual, no que promoveu maior

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igualdade em termos de acesso à propriedade privada (a distribuição de renda ficou menos desigual) e de maior acesso à educação (principalmente, mais jovens ingressaram nas universidades) representa uma ameaça aos direitos historicamente constituídos das elites. Confundem-se os feitos do governo em si com o momento político como um todo, após várias conquistas de movimentos civis, que promoveram acesso a liberdades individuais e civis, como a maior liberdade para se falar e se posicionar publicamente sobre temas polêmicos, como a orientação sexual e as escolhas de cunho político e religioso. Também o advento da globalização e da internet propiciaram a chegada de ideias e movimentos irrefreáveis, que para olhos e ouvidos mais conservadores, soam como ameaçadores à ideia de tradição e de nacionalismo. Tudo isso, toda essa ameaça à ordem – ao mundo linearmente constituído, de cima para baixo – no discurso ultraconservador que pode ser aqui analisado é personificado na figura do governo do PT.

Chama a atenção o cartaz “Para onde pender São Paulo e Minas, penderá o Brasil. Pensem nisso”!

Analisando-se as estratégias linguísticas dos manifestantes, fica claro o uso das orações

relacionais identificativas como forma primeira de estruturar a realidade social de forma mais razoável, somente recorrendo a mecanismos de atribuir identidades:

(1)“Ditadura pra mim é o que a gente vive hoje; não em 64. Em 64 não teve ditadura. É [Ditadura] tudo uma invenção dos esquerdas comunistas”.

(2)[o cenário atual] São pequenos sinais que você vai vendo que de repente pode mudar. Pode virar uma Venezuela. Pode virar uma Cuba...

(3) Então, sim, eu sou favorável a um militar no poder, que é o único jeito da gente mudar esse país!

(4) “PT é Quadrilha e o STF é cúmplice”. (MARCHA...,2014).

Por meio do uso deste recurso, a manifestante nomeou de ditadura o contexto atual, e descontruiu o discurso acerca do que foi a ditadura de fato, corroborando as categorias do discurso político de uso de vocábulos carregados de pressupostos ideológicos (ditadura; comunismo) e da polêmica. Ao mesmo tempo, em todas as frases acima, exceto em 3, pode-se perceber o fato da não-citação da fonte ser um dado no discurso político,

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e de ele de fato prescindir deste expediente para se legitimar. Em 3, entretanto, é possível perceber o autoritarismo no discurso, por meio do uso do imperativo, impelindo os presentes a agirem no sentido de colocarem os militares de volta ao poder.

Logo após esse primeiro recurso ser usado pelos manifestantes, como forma de apresentação da realidade aos presentes, entram em cena as orações atributivas, para exaltarem e coagirem ainda mais os participantes em direção a uma ação. Observe a seguir:

(5) Nosso país hoje não é capitalista. A gente vive num país comunista, onde os jovens não têm direito, onde os idosos não são respeitados, onde famílias são destruídas e drogas, aborto, tudo isso que é errado, eles querem liberar.

(6) A juventude que hoje tá alienada, tá na hora de acordar e começar a se mexer, porque senão vocês não vão mais ter direito, cês não vão mais ter espaço, vocês só vão ser mais uns idiotas que entram na USP e saem piores do que entraram. A gente é conservador. A gente conserva nossas famílias, nossos amores, nossos direitos. (MARCHA...,2014).

Nas frases acima, fica claro o recado dos manifestantes: o apelo emocional como

categoria do discurso político entra em cena (por meio do recurso dos adjetivos), em uma tentativa de levar o medo da perda dos direitos. A ideia de uma sociedade que vive um momento de aquisição de direitos civis passa a ser atrelada à ideia de sociedade comunista de forma arbitrária (polêmica), por meio da desconstrução de discursos anteriores. O autoritarismo é percebido claramente em 6, no que a manifestante exorta os presentes a agir, sob pena de perderem seus direitos. O discurso patente é o da ameaça da perda dos direitos constituídos historicamente, e não por mérito.

Outra estratégia que os manifestantes usam a todo o tempo é a da nominalização de entidades e ações como estratégia de apagamento das ações/atribuições e instituição de entidades, reforçando a categoria do discurso político da não centralidade da posição do enunciador para sua legitimação:

(7) O povo diz NÃO ao comunismo;

(8) Essa proximidade de Dilma, Lula, Maduro, todo mundo do comunismo... A gente chega a levar à conclusão de que vai acontecer isso.

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(9) Tá previsto na Constituição: quando houver desordem no país, em terra civil, enfim, violência, a gente precisa de uma intervenção constitucional militar. Então, é isso que a gente precisa hoje. E hoje a gente tá tendo esse apoio popular. (MARCHA...,2014).

O uso das entidades nós; o povo; a gente, ‘empacotam’ uma autoria que não se sabe ao certo se engloba realmente tantos sujeitos assim. Essa é uma forma de solidarizar com o clamor popular (apelo emocional). Ao mesmo tempo, nominaliza-se a realidade, chamando-se, por exemplo, todo um processo do que se vive hoje de comunismo, e de proximidade do comunismo, por exemplo – o que resulta no apagamento da agência das ações, resguardando o discurso da necessidade de autoria e assentando-o na polêmica.

Outra estratégia observada – esta, nos cartazes e nos gritos dos manifestantes – foi o uso da intertextualidade para ratificar o discurso através da referência a outras construções discursivas que foram usadas em outras épocas, mas que soam pertinentes ao que se pleiteia nesta ocasião.

(10) Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos militares protegendo o Brasil”!

(11) Para onde pender São Paulo e Minas, penderá o Brasil” (MARCHA...,2014).

O exemplo 10 refere-se ao grito proferido no Movimento das Diretas Já, quando se clamava pela volta do governo civil, constituído por meio de eleição direta. A frase original era “Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos eleger o presidente do Brasil!”. Ou seja, apropriou-se formalmente da frase, e semanticamente houve uma inversão de seu sentido original. Já em 11, a referência explícita é ao período histórico que ficou conhecido como República do Café com Leite, arranjo político que vigorou no período da Primeira República, envolvendo as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais e o governo central, no sentido de controlar o processo sucessório, para que somente políticos desses dois estados fossem eleitos à presidência, de modo alternado. Fica clara, por essa referência, então, o apelo emocional, de manutenção dos privilégios historicamente herdados, e de exclusão do acesso das demais classes ao processo decisório. A metáfora como categoria do discurso político finalmente aparece, ratificando o que foi exposto sobre o tema na Fundamentação Teórica deste artigo.

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Considerações Finais

Através da análise do recurso léxico-gramatical do uso das orações relacionais identificativas e atributivas, do recurso semântico da nominalização e do recurso discursivo da intertextualidade, foi possível ‘desnaturalizar’ as estratégias do discurso oposicionista de apresentar a realidade da maneira que lhe convém, sem margem para discussão e através do uso de conceitos muitas vezes enviesados, remetendo a uma realidade desejada que é excludente e rejeita as conquistas sociais de cunho político, civil e econômico.

Foi possível também fazer a ponte entre estes recursos discursivos e as características do discurso político apontadas pela literatura aqui revista, evidenciando de que maneira estas são realizadas por aquelas.

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temas linguagem em gêneros midiáticos e empresariais. Trabalha com consultoria em análise do discurso em pesquisa de mercado, comportamento e opinião, e em análise e posicionamento de marcas, produtos e empresas. É professora adjunta no Centro Universitário Una, e membro do Núcleo Docente Estruturante (NDE) dos cursos do Instituto de Comunicação e Artes.

[email protected]

Izabella dos Santos Martins é doutora e pós-doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais e bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tem experiência em pesquisas em Análise do Discurso de abordagem sistêmico-funcional e em Análise Crítica do Discurso, atuando principalmente nos

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Intertextualidade no discurso político das ruas: entre brados e diálogos

por Maria Magda de Lima Santiago

A situação política do Brasil vive um momento delicado, em tempos de protestos políticos populares que se proliferam, fazendo ressurgir acontecimentos passados, críticas explícitas a discursos ideologicamente contrários, em que se estabelecem novas vozes e objetivos de empoderamento político. Diversos vídeos publicados na web, produzidos a partir da cobertura das mobilizações populares de 2014 – ano das eleições presidenciais, em que Dilma Rousseff foi reeleita –, revelam estratégias persuasivas nos dizeres desses manifestantes, que indicam visadas de captação (CHARAUDEAU, 2009) que nos propusemos a analisar.

No contexto político das eleições, a TV Carta, ligada à revista Carta Capital – lançada em 1994, cuja linha editorial é considerada de esquerda –, publicou vídeos de algumas dessas manifestações, como o que intitulou: Marcha da Família contra Cuba, governo e “idiotas da USP”. O vídeo, com duração de pouco mais de cinco minutos, tem a seguinte chamada jornalística: Conheça alguns dos personagens que foram às ruas em SP para pedir proteção aos militares contra novo golpe comunista. O audiovisual começa com a imagem, em plano próximo, dos manifestantes ao som do hino nacional, muitos com a mão direita no peito, enquanto sustentam faixas de protesto. As

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1 Consideramos que estamos tratando de um produto mi-diático, uma vez que esse ví-deo, como outros publicados, foi editado por jornalistas, que ordenam e determinam o tempo de apresentação des-ses acontecimentos – tempo de leitura dos cartazes mos-trados pelos cidadãos, de du-ração dos áudios, do corte ao final de frases, dentre outros –, além da escolha das cenas apresentadas, numa pós-pro-dução (inerente ao meio) que propõe uma narrativa a partir das imagens e áudios captura-dos (a reportagem é de Laura Capriglione, as imagens são de Joseh Silva e a edição é de Clara Parada).

imagens do coletivo são alternadas com três entrevistas e com as falas de “líderes” que estão no palanque.

Transcrevemos, neste trabalho, o discurso da estudante Isabella Trevisani, uma das entrevistadas, que também fala para a multidão do palanque. Colocamos as frases proferidas em texto contínuo, na ordem em que aparecem no vídeo, e efetuamos a análise observando os efeitos de credibilidade – a partir dos diálogos interdiscursivos e da escolha temática –, além dos efeitos de dramatização, noções apresentadas pela Análise do Discurso Francesa, que examinamos em Charaudeau (2009; 2011), Maingueneau (2008) e Pêcheux (2009), entre outros autores consultados. Também foram transcritos os dizeres dos cartazes mostrados no vídeo, além de dez comentários de internautas na página online da Revista.

Tivemos como objetivo proceder à análise do discurso político, cientes da organização da linguagem audiovisual proposta pelo próprio veículo1, elegendo um dos discursos proferidos, no caso a fala da estudante Trevisani, tanto como entrevistada, como no palanque. Optamos por acrescentar ao corpus, numa análise breve, o discurso dos cartazes presentes nas imagens e o dos comentários

publicados por internautas, buscando uma amostra do posicionamento ideológico do coletivo presente na manifestação e a crítica, favorável ou contra, daqueles que assistiram ao vídeo.

Procuramos descobrir como se estabelecem as estratégias de influência, considerando que os acessos interdiscursivos (PÊCHEUX, 2009) e as escolhas temáticas contribuem para os efeitos de credibilidade no discurso (CHARAUDEAU, 2009; 2011); assim como a menção à origem das informações apresentadas, que Maingueneau (2008) nomeia de intertextualidade explícita. Portanto, observamos, como Pêcheux (2009), os discursos mencionados e as relações de confirmação ou de oposição a eles, buscando a formação ideológica presente no discurso da estudante, além de verificar as relações de compatibilidade e de incompatibilidade temática, a partir de Maingueneau (2008), que discrimina os temas impostos e os específicos em relação ao discurso/contexto.

Observamos que o discurso é atravessado por efeitos de dramatização, que confirmam uma visada de captação (CHARAUDEAU, 2009; 2011), que o discurso político compartilha com o discurso midiático. Esses efeitos podem ser identificados pelos gritos, palavras negativas e exclamações de luta. Essa visada também é

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2 “De maneira geral, um indi-víduo pode ser julgado digno de crédito se houver condi-ções de verificar que aquilo que ele diz corresponde sem-pre ao que ele pensa (condição de sinceridade ou de transpa-rência), que ele tem os meios de pôr em prática o que anun-cia ou promete (condição de performance), e que o que ele anuncia e aplica é seguido de efeito (condição de eficácia)” (CHARAUDEAU, 2011, p. 119).

confirmada pela utilização de estratégias de aproximação com os espectadores, ligadas à categoria de pessoa (FIORIN, 2005).

Efeitos de credibilidade, de dramatização e de aproximação

Para Charaudeau (2011, p. 84), no discurso do político ocorre uma tensão entre o racional e o afetivo, “oscila entre a ordem da razão e a da paixão [...] é uma questão da estratégia a ser adotada na construção de sua imagem (ethos) para fins de credibilidade e de sedução”. A construção do valor de verdadeiro, que busca criar efeitos de credibilidade – como na escolha de temas e acontecimentos/personagens mencionados –, ocorre em meio a um fazer sentir, que aspira a seduzir, a persuadir (CHARAUDEAU, 2009, p.91). Produzindo comoção com o seu discurso, os líderes que conduzem a manifestação têm como concorrentes aqueles que se opõem à formação ideológica do seu grupo e que também querem convencer o coletivo. Para o autor,

[...] não se pode descartar os sentimentos em nenhum processo linguageiro que tenda a influenciar o interlocutor, mas, ao mesmo tempo, que convém distinguir “convicção” de

“persuasão”. A primeira pertenceria ao puro raciocínio, fundar-se-ia sobre as faculdades intelectuais e estaria voltada para o estabelecimento da verdade. A segunda pertenceria aos sentimentos (hoje em dia, diríamos “ao afeto”), fundar-se-ia sobre os deslocamentos emocionais e estaria voltada para o auditório (CHARAUDEAU, 2011, p.81).

Charaudeau (2011, p. 119) explica que o “ethos de credibilidade”2 tem algumas premissas: as condições de “sinceridade ou de transparência”, de “performance” e de “eficácia”. Já as dramatizações, ligadas aos “imaginários sócio-discursivos”, são representadas por encenações verbovisuais que têm o objetivo de estarem alinhadas às emoções. No vídeo em análise são auxiliadas por expressões faciais/corporais que indicam indignação, raiva e aversão, que são enfatizadas pelo conjunto (personagens no palanque, nas entrevistas, no coletivo de manifestantes). Para o autor,

É à medida que as emoções correspondem a representações sociais, constituídas por uma mistura de julgamentos, de opiniões e de apreciações, que elas podem desencadear sensações ou comportamentos [...] isso faz parte do processo de persuasão, mas, dessa vez, com recurso a universos de discurso impregnados de afeto. [...] o sujeito

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que fala deve saber escolher universos de crença específicos, tematizá-los de determinada maneira e proceder à determinada encenação, tudo em função do modo como ele imagina seu interlocutor ou seu público e em função do efeito que espera produzir nele (CHARAUDEAU, 2011, p. 89-90).

Outro tipo de efeito no discurso, descrito por Fiorin (2005, p. 58-74), é aquele que busca aproximação com o espectador, por meio das categorias de pessoa, espaço e tempo, situados na sintaxe discursiva da Análise Semiótica Francesa, ou Greimasiana. A primeira pessoa (eu, nós), assim como o tempo verbal presente, criam efeito de sentido de aproximação, enquanto a terceira pessoa, ele (s), ela (s), indicam distanciamento. O espaço do lá, ao contrário do aqui, distancia; assim como a utilização de verbos no passado e no futuro. São os dêiticos ou marcadores de subjetividade apontados por Benveniste (1991), como os pronomes pessoais e os marcadores espaciais e temporais.

Intertextualidade e tematização: diálogos e posicionamentos

Para a análise dos diálogos interdiscursivos e dos temas presentes no discurso, que

tomamos como recursos de credibilidade estrategicamente escolhidos, que indicam o posicionamento ideológico, recorremos às noções de intertextualidade e de tematização. Maingueneau (2008, p. 77; 82) observa, na primeira, “os tipos de relações intertextuais que a competência discursiva define como legítimas”, considerando que “um campo discursivo define certa maneira de citar discursos anteriores do mesmo campo” e, na segunda, “as restrições semânticas” de cada discurso.

O discurso no palanque, diante da multidão que protesta, estabelece, de maneiras diversas, diálogos interdiscursivos (PÊCHEUX, 2009), através dos quais se pode entrever, no jogo entre o explícito e o implícito, as formações ideológicas subjacentes. E, como isso é expresso aos brados, indica uma disposição para o confronto. Como afirma Pêcheux (2009), é por meio da apreensão desse diálogo (harmônico ou polêmico) que podemos identificar as formações discursivas e ideológicas assumidas pelo enunciador:

O interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo intradiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito

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se constitui como “sujeito falante” com a formação discursiva que o assujeita (...) a unidade (imaginária) do sujeito, sua identidade presente-passada-futura encontra aqui um de seus fundamentos” (PÊCHEUX, 2009, p. 154-155).

Os temas levantados no discurso nos levam a crer que se tratam de temas impostos, ou comuns ao campo discursivo, a maior parte compatíveis com o sistema de restrições do discurso em análise. Temas como a educação e os idosos, por exemplo, são impostos ao discurso político; mas o discurso também elege temas específicos de modo superficial, resgatando da memória personagens e discursos. É preciso lembrar Maingueneau (2008, p. 84; 82), que afirma ser “por sua formação discursiva e não por seus temas que se define a especificidade de um discurso [...] o importante não é o tema, mas seu tratamento semântico”.

Transcrição das falas da estudante

Apresentadas intercaladas por outros locutores e entrevistados, e por imagens dos manifestantes, as falas da estudante Isabella Trevisani que são apresentadas no vídeo foram aqui transcritas, de forma contínua, tanto o

discurso da entrevista quanto do palanque, na ordem em que são mostradas no audiovisual:

(Áudio: estrofe que inicia o hino nacional)

Ditadura pra mim é o que a gente vive hoje e não em 64. 64 não teve ditadura, é tudo uma invenção dos esquerdas comunistas.

(Áudio: som de palmas)

Nosso país hoje não é capitalista, a gente vive num país comunista, onde os jovens não têm direito, onde os idosos não são respeitados, onde famílias são destruídas e drogas, aborto, tudo isso que é errado eles querem liberar.

(Áudio - gritos: Deus, pátria, família!...)

Que a gente não pode mais permitir que um assassino como Che Guevara, que um assassino como Fidel Castro, Maduro, seja exaltado, como se fosse um Deus.

E não é só o PT não, são todos os partidos hoje, que são corruptos, todos têm corruptos, poucos são os que se salvam, que eu posso até citar alguns nomes, que é o Jair Bolsonaro, Guilherme Mussi, Cilas Malafaia, esses são os poucos, raros.

Eles me representam, os demais não.

(Áudio: som de palmas para a polícia militar a pedido do locutor. Gritos: Viva a PM! Viva a PM!

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Ei, comuna, vai tomar no cú! Ei comuna, vai tomar no cú!)

A juventude que hoje tá alienada, tá na hora de acordar e começar a se mexer, porque senão vocês não vão mais ter direito, vocês não vão mais ter espaço, vocês só vão ser mais uns idiotas que entram na USP e saem pior do que entraram.

(Áudio - gritos: Um dois, três, quatro, cinco, mil: queremos militares protegendo o Brasil!)

A gente é conservador. A gente conserva nossas famílias, nossos amores, nossos direitos...

Somos sim, eu sou favorável a um militar no poder. Porque é o único jeito da gente mudar esse país. Os militares são a nosso favor! Deus tá com a gente!

(Imagem e áudio: Homens vestidos de batina rezando a oração Ave Maria)

Está previsto na Constituição: quando houver desordem no país, guerra civil, enfim... violência, a gente precisa de uma intervenção constitucional militar, tá previsto na Constituição como lei, então é isso que a gente precisa hoje, e hoje a gente tá tendo esse apoio popular...

(Áudio: estrofe de encerramento do hino nacional)

Fonte: MARCHA..., 2014.

Análise

Consideramos que o discurso presente no vídeo em análise trafega por um campo de conhecimento comum ao discurso político, pois tematiza as ações do governo vigente, em que se coloca como oposição, adversário, apesar da própria informalidade. Esse discurso menciona aspectos sociais, mas não esclarece a fonte das informações, numa intertextualidade implícita, ao longo de todo o discurso, que apresenta uma única referência explícita ao citar a Constituição Brasileira.

O acesso a discursos do mesmo campo de conhecimento, presentes na memória coletiva, com os quais se mostra em oposição, indica uma estratégia semântica que busca enaltecer o próprio discurso em detrimento do discurso criticado. Os discursos acessados não estão, em relação ao discurso proferido, “semanticamente próximos daqueles que são autorizados por sua formação discursiva” (MAINGUENEAU, 2008, p. 78), uma vez que são alvo de crítica, o que indica uma posição ideológica contrária.

O discurso em análise menciona o comunismo, o capitalismo, a família, a religião, os militares, os jovens, as drogas, o aborto, a ditadura no Brasil, a Constituição Brasileira,

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a educação (Universidade de São Paulo - USP), o sistema partidário no Brasil (o Partido dos Trabalhadores - PT), a política cubana e venezuelana, apresentando temas do campo discursivo da política. Em tom acusatório, esses discursos são acessados de modo breve, em exclamações que demonstram indignação, mas cujo conteúdo, sem citação de fontes ou qualquer explicação a respeito, é vago.

A estudante cita o nome de três integrantes da política brasileira: Jair Bolsonaro, Guilherme Mussi, Silas Malafaia, direcionando-se a temas específicos, o que deixa explícita uma posição ideológica aliada ao pensamento e à conduta desses políticos, que tiveram episódios de repercussão negativa veiculados pela imprensa durante o mandato da presidente Dilma Rousseff, e que são considerados de direita, em oposição ao governo vigente. No entanto, apenas os nomes são citados, sem qualquer informação a não ser a declaração: eles me representam, os demais não.

Também dialoga com outros personagens da política latino-americana, tematizando especificamente Che Guevara, Fidel Castro, Maduro, em efeitos de dramatização que se dão a partir da caracterização fortemente negativa, como em assassinos. Lembrar o líder político Che Guevara é um tema específico

que soa incompatível, pois deslocado de seu contexto pelo discurso, mesmo que integrante do campo da política. Podemos dizer que a fala da estudante tenta apresentar uma identidade discursiva ligada “ao conceito político, enquanto lugar de constituição de um pensamento sobre a vida dos homens em sociedade”, mas não uma identidade discursiva relacionada “à prática política, lugar das estratégias da gestão do poder”, como discrimina Charaudeau (2011, p. 79), o que remete a questões de legitimidade.

Os efeitos de aproximação, relacionados às categorias de pessoa, espaço e tempo, que buscam intimidade, estão concentrados na categoria de pessoa: a expressão a gente foi pronunciada nove vezes; o pronome possessivo nosso (nossa, nossos, nossas) aparece cinco vezes; o pronome pessoal vocês, em que se dirige diretamente ao público jovem, está presente três vezes na mesma fala – como se a locutora não fizesse parte da mesma faixa etária, optando pelo vocês ao invés do nós, numa diferenciação implícita.

Quanto aos efeitos de credibilidade no discurso, consequência de uma visada de captação que busca convencer pela exposição do embasamento (conhecimento, informação), ligada ao ethos, ou estatuto

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do locutor, identificamos as expressões: eu posso até citar alguns nomes; tá previsto na Constituição como lei e a gente é conservador. A gente conserva. A citação da Constituição como fonte da informação é a única forma de intertextualidade explícita no discurso e que apresenta alguma consistência informacional; e por conservador e a gente conserva identificamos a busca pela construção de um ethos de seriedade no discurso.

Os efeitos de dramatização apresentam-se em maior número que os efeitos de credibilidade. Consideramos que estão presentes nas seguintes expressões, amparadas por negativos e superlativos, em exclamações que são atravessadas pela emoção, de acordo com o discurso e com o modo de locução utilizado, como se pode observar no audiovisual:

Onde os jovens não têm direito, onde os idosos não são respeitados, onde famílias são destruídas e drogas, aborto, tudo isso que é errado eles querem liberar [...] que a gente não pode mais permitir que um assassino como Che Guevara, que um assassino como Fidel Castro, Maduro, seja exaltado, como se fosse um Deus e somos sim, eu sou favorável a um militar no poder. Porque é o único jeito da gente mudar esse país. Os militares são a nosso favor! Deus tá com a gente! [...] quando houver desordem

no país, guerra civil, enfim... violência, a gente precisa de uma intervenção constitucional militar, tá previsto na Constituição como lei, então é isso que a gente precisa hoje, e hoje a gente tá tendo esse apoio popular... (MARCHA..., 2014).

O posicionamento ideológico está explícito no discurso nas seguintes expressões, lembrando que a faixa no palanque (FFAA já!) faz referência às Forças Armadas:

Ditadura pra mim é o que a gente vive hoje e não em 64. 64 não teve ditadura, é tudo uma invenção dos esquerdas comunistas [...] a gente vive num país comunista [...] tudo isso que é errado eles querem liberar [...] assassino como Che Guevara, que um assassino como Fidel Castro [...] todos têm corruptos [...] Eles me representam, os demais não [...] uns idiotas que entram na USP e saem pior do que entraram [...] A gente é conservador [...] eu sou favorável a um militar no poder [...] a gente precisa de uma intervenção constitucional militar [...] é isso que a gente precisa hoje. (MARCHA..., 2014).

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Figura 1: Frame do audiovisual Marcha da família contra Cuba, governo e idiotas da USP

Fonte: MARCHA..., 2014.

Cartazes

Transcrevemos, a seguir, para auxiliar na análise do contexto em que é proferido o discurso da estudante, os dizeres impressos nos cartazes visíveis no vídeo, nas imagens dos manifestantes, que se alternam com entrevistas e com os discursos no palanque, e que apresentam, de modo explícito, a formação ideológica dos cidadãos presentes na manifestação:

Fora Dilma, fora Comunista

O povo brasileiro está ao lado das Forças Armadas e Auxiliares

O povo diz não ao Comunismo

Intervenção militar já, não ao Comunismo

CorruPTos

PT é quadrilha e o S.T.F. é cúmplice!

Fora Dilma! O nosso Brasil pede socorro! #Orgulho 64 #Fora PT #Fica Sheherazade

Dilma e Lula, vá para Cuba que te pariu! Curta! Impeachment da presidente Dilma

Endireitando o Brasil; Avante Brasil

Pra onde pender São Paulo e Minas, Penderá o Brasil pensem nisso!

Lugar de bandido é na cadeia e não no governo. Fora PT

Marcha da família com DEUS pela Liberdade 50 anos Viva 31 de março

Intervenção MILITAR constitucional JÁ #Fora ditadura comunista #Fora governo vermelho #Não ao foro de São Paulo #Não ao marco digital

O governo é cúmplice do terrorismo internacional. Forças Armadas, são nossa última chance

Comissão da mentira fora!

Não vai ter reeleição!

Fonte: MARCHA..., 2014.

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Os dizeres dos cartazes repetem sete vezes a palavra fora, referem-se 14 vezes de modo desfavorável ao Partido dos Trabalhadores (PT) e também à Cuba, ao comunismo, a Dilma Rousseff e a Lula, em efeitos de dramatização construídos por expressões negativas, como quadrilha, corruptos, bandido, cadeia, ditadura comunista, cúmplice do terrorismo internacional, entre outras. Apresentam um posicionamento ideologicamente favorável aos militares, às forças armadas, à Marcha da Família, numa demonstração de alinhamento ideológico com o discurso de Trevisani.

Comentários

Na página da TV Carta onde foi publicado o vídeo, que contava com 191.107 visualizações no dia 30 de junho de 2016, foram postados 1.754 comentários, dos quais reproduzimos dez, em que cinco internautas se posicionam ideologicamente contra a manifestação e cinco são favoráveis ao conteúdo do vídeo, em posts de um e dois anos atrás, segundo informa a página. Entre as postagens mais recentes, identificamos que a maioria critica os manifestantes. A seleção, além do critério de apresentar o mesmo número de comentários contra e a favor, buscou, entre discursos de conteúdo muito próximo, reunir

aqueles que representassem o pensamento de vários internautas, mas também elegemos comentários que se diferenciam por apresentarem mais informações que os embasam. A seguir apresentamos os posts desfavoráveis e, em seguida, os que se posicionam a favor dos manifestantes, que incluem, ainda, uma crítica à cobertura jornalística:

Nunca antes na história da psiquiatria brasileira, houve uma aglomeração de tantos esquizofrênicos num curto espaço. Alguém sabe me dizer se essa reunião de esquizofrênicos entrou para o Guiness Book? (Cacá Ahmadinejad, há um ano).

Freak Show! Queria que tivesse ditadura, para essa bostinha da Isabelle Trevisani ter bastante espaço para se expressar. Livro de história é artigo esgotado para esses conservadores. (Eve Manoel, há um ano).

Essa garota que disse que falta liberdade para a juventude não é a mesma que disse, em uma outra passeata, que “tenho 18 anos e eu não tenho liberdade, porque o PT tirou a minha liberdade?” De que liberdade ela tá falando? Ela faz passeata e a polícia (que eles aplaudem) os acompanha sem impedir manifestação alguma. Piada essa galerinha (Lauro Portela, há um ano).

Quanta gente burra,é melhor não chegar perto.Como alguem pode dizer que o golpe militar foi bom?E as torturas e assassinatos?E a miséria exagerada?E a inflação gigantesca?Falar que Silas Malafaia é

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uma boa pessoa é uma ignorância tão grande que vai além da minha imaginação.Essa menina que defeca pela boca, deveria estudar um pouco, só um pouco de história e sociologia.É lamentável ver que ainda existe pessoas tão pobres intelectualmente a ponto de achar que deveria voltar a ditadura militar (Victor Frioli, há um ano).

Eu estava na marcha e a favor de tirar o PT e seus aliados do poder, mas tenho que concordar com você, essa menina surtada não me representou nessa marcha rs (Rafael Pereira de Araújo, há 2 anos).

O fato é que a esquerda brasileira não aceita os fatos históricos. O regime militar foi necessário ao país, ou os militares tomavam o poder de Jango, ou Jango daria um golpe de estado, entregando a tutela do Brasil a URSS. Aí meus caros, vcs iam ver o que é uma ditadura, que só na China matou mais de 70 milhões de pessoas (Paulo Paulistano, há 2 anos).

Faz sentido pra quem usa o cérebro ...aproximação com Cuba, marco civil da internet, corrupção, maconheiros da usp, vagabundos do PT com alianças que mais parece o mapa do inferno... (Davi Queiroz, há 2 anos).

Esse video é a voz do povo !!!! ta na hora de escurraçar com esses comunas de merda vermelhos corruptos que estão no governo. o povo verde e amarelo logo vai por fim a esse circo dos horrores corruptos do podre pt. o povo verde e amarelo esta se unindo ! foraaaaaaa Dilma e leve o pt junto !!!!!!! (Drico d, há 2 anos).

Felizes daqueles que sabem o futuro... eu vou dar o “pinote”... vou pegar as malas e vou morar na Europa!!! quero ver essa gente inocente que nem bebê tomar uma dose de comunismo, disfarçado de socialismo, de governo do povo pelo povo, de liberdade (extremelydangerous + Morra Comuna, há dois anos).

Cada um merece o lixo que apoia. Primeiro que a revista não sabe fazer uma reportagem imparcial, segundo que deve ter entrevistado mil pessoal e colocou quem não tem muito preparo para argumentar, editando lógico a entrevista e terceiro essa nega não entendi nada, o mercado não está mais aquecido? A Senhora não esta ganhando mais dinheiro? Perguntas super inteligentes... Nem procurou saber o que era a marcha da família. Anta! (Gabriel Pimenta, há dois anos)

Fonte: MARCHA...,2014.

Os primeiros cinco comentários apresentam um sentido conjunto de reprovação à estudante e alguns estendem à multidão presente no vídeo esse tom negativo, por vezes jocoso, com ênfase para as expressões: esquizofrênicos, conservadores, quanta gente burra, ignorância tão grande, defeca pela boca, deveria estudar um pouco, pobres intelectualmente, menina surtada. O sentido de gozação está nas expressões: Guiness Book, piada, freak show, rir muito, rs. O discurso desses internautas mostra que eles desdenham do conhecimento

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intelectual e da condição mental da estudante e consideram o coletivo apresentado no vídeo como extremista e mal informado.

As cinco últimas postagens da lista, que se mostram alinhadas à ideologia do coletivo presente na manifestação, são semelhantes no fato de que não compartilham com os dizeres da estudante diretamente; ela não é mencionada nesses comentários, que se mostram favoráveis à manifestação como um todo. O sentido de gozação e crítica presente nos posts contrários ao movimento parece ter contribuído para esse silenciamento, como no último post, que critica a reportagem, em que a posição favorável do comentarista está implícita. Enquanto o primeiro post dos comentários favoráveis traça referências históricas, numa contra crítica aos partidos de esquerda, o segundo comentário do conjunto de posts favoráveis é o único que repete frases de Trevisani, além da expressão “faz sentido para quem usa o cérebro”, que se opõe, implicitamente, às críticas sobre a saúde mental da estudante.

Considerações finais

A cobertura da manifestação em São Paulo, publicada no dia 26 de março de 2014 pela TV

Carta, surpreende a quem assiste ao vídeo. O resgate a discursos do passado, a temas polêmicos e a acontecimentos atuais, é feito de passagem, quando cada tema/discurso/personagem é apenas mencionado, predominando uma intertextualidade implícita, que compromete o efeito de credibilidade do discurso. Os dizeres dos cartazes confirmam a fala dos entrevistados e a dos líderes no palanque, mostrando-se ideologicamente compatíveis com elas. No entanto, os comentários postados na web indicam, em sua maioria, uma posição contrária aos manifestantes presentes no vídeo veiculado, chegando à ridicularização da estudante Trevisani.

Os efeitos de dramatização estão nas exclamações de teor agressivo, em expressões ousadas – pois em tom imperativo e desprovidas da fonte –, que são confirmadas pela edição das imagens, que enfatiza o clima presente na mobilização, como nas cenas dos gritos coletivos (Viva a PM! Deus, pátria, família!) e da oração Ave Maria, entre outras.

O vídeo começa ao som da primeira estrofe do hino nacional e termina com a estrofe final do hino, criando um sentido de ufanismo que é confirmado pelos manifestantes, entrevistados e locutores no palanque. O tema da coesão está presente, assim como a exaltação, num discurso

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que se preza pelo excesso de dramatização e de interdiscursividade, mas que é pobre em efeitos de credibilidade, elegendo temas específicos e impostos sobre os quais nada discorre.

Acreditamos que o discurso da estudante trata – de modo breve e sem esclarecimentos –, de “dizer o que aconteceu”, remetendo ao passado, de “revelar a intenção oculta”, atribuída à corrente política oposta, mas não de “fornecer a prova das explicações”, como detalha Charaudeau (2009, p. 90-91), sendo permeado, do início ao fim, pela superficialidade.

ReferênciasBENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas, SP: Pontes/Ed.UNICAMP, 1991.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo, SP: Contexto, 2009.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. São Paulo, SP: Contexto, 2011.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005.

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. São Paulo, SP: Parábola Ed., 2008.

MARCHA da família contra o governo e ‘idiotas’ da USP. TV Carta. Parede, Clara (ed.); Capriglione, Laura

(reportagem), Sillva, Joseh (Imagens). São Paulo. 26 mar. 2014. 5’08”. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EJNVPwkhghA. Acesso em: 17 set. 2016.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2009.

Maria Magda de Lima Santiago é doutoranda e mestre em Linguística - Análise do Discurso (UFMG); especialista em Comunicação: Mídias, Linguagens, Tecnologias (UNI-BH); e bacharel em Comunicação Social, Jornalismo (PUC-MG). Iniciou-se na Análise do Discurso literário e dedica-se, desde 2008, à análise da produção midiática, publicitária e jornalística, com foco nas relações entre os discursos verbal e visual. Desde 2003 no ensino superior, criou e coordenou o curso de pós-graduação lato sensu “Fotografia: Técnica, Linguagem e Mídia”, no Centro Universitário UNA, atualmente integrante do corpo docente. No mesmo Instituto, em Belo Horizonte, leciona nos cursos de Publicidade, Jornalismo, Relações Públicas e Moda, é integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação e coordenadora do Projeto de Extensão “Árvore Urbana”.

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O Brasil vive um momento político, marcado por manifestações populares em espaços públicos, cujo marco inicial pode ser atribuído ao ano de 2013. Naquele ano, o país assistiu a várias manifestações reativas ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo, que foram reproduzidas em várias outras cidades brasileiras. Àqueles primeiros movimentos, vieram se somar outras manifestações, contra os gastos de dinheiro público e os processos licitatórios fraudulentos para a realização das obras relativas à Copa do Mundo de 2014.

Sucessivamente, vieram acontecendo uma série de outras manifestações, que no ano de 2014 começaram a ficar sistemáticas, relacionadas a insatisfações generalizadas com a classe política, cada vez mais desacreditada pelo eleitor. A proximidade das eleições presidenciais recrudesceu a vontade popular de ir às ruas manifestá-la.

Na proximidade das eleições presidenciais de 2014, que viriam a reeleger a presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se a manifestações cuja pauta era ligada a agendas ultraconservadoras, nas quais ficava evidente o apelo por um retrocesso em termos de conquista de liberdades individuais e de direitos civis, como, por exemplo, a volta de governo militar no Brasil.

Afetos em disputa:razões e economias patêmicas no contexto eleitoral

por Carlos Jáuregui

Desejo que o mundo do leitor, que agora se encontra com o mundo deste texto, seja o mais lúcido e distanciado possível do cenário político onde se desenvolveu a pesquisa que, dentre outros resultados, produziu este artigo. Isso possibilitará críticas mais pertinentes e conclusões melhoradas em relação ao que escrevo nas próximas linhas.

Na tentativa de delimitar mais claramente o mundo em torno deste texto, relato que ao longo dos anos de 2015 e 2016, estive envolvido com a pesquisa “Razão pura e razão sensível: estudo da dinâmica de circulação de sentidos a partir de vídeos sobre manifestações políticas postados nas mídias sociais”. Tal investigação se dedicou a análise de produtos audiovisuais postados em redes sociais no ano de 2014, à ocasião do processo eleitoral que viria a conduzir o Partido dos Trabalhadores (PT) a mais quatro anos no comando do país, após um período de 12 anos no poder. No entanto, quando este artigo foi finalizado já se sabia que o tempo do PT na presidência seria menor do que o previsto, tendo vista o controverso processo de Impeachment que resultou na cassação do mandato da presidenta Dilma Rousseff. Naquele momento, o vice-presidente Michel Temer assumia definitivamente a tarefa de governar o país, em meio a um momento econômico desfavorável e a denúncias de

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1 Compreendemos a comple-xidade do vocabulário relacio-nado aos fenômenos afetivos (“afeto”, “emoção”, “paixão” e “sentimento” etc.). Contu-do, em função das limitações deste artigo, anunciamos nos-sa escolha pelo uso indistinto dessas palavras, incluindo-as no conjunto dos fenômenos do pathos (termo grego que engloba de forma satisfatória o vocabulário passional por uma perspectiva dos afetos no discurso). Ao longo do texto também surgirão os deriva-dos: patêmico, patemização e patemizar. É importante lem-brar que recusamos o uso do termo “patético”, em função de seu caráter pejorativo. Uma discussão mais aprofun-dada acerca dessa terminolo-gia pode ser encontrada em Jáuregui (2015).

corrupção envolvendo a equipe de governo que ele tinha acabado de montar.

Feita esta contextualização inicial, passamos a uma breve apresentação da abordagem que norteia esta análise, dedicada à compreensão e à problematização de paixões comunicadas em vídeos que compõe o corpus de nossa pesquisa. O corpus completo do projeto de pesquisa foi composto por um total de cinco vídeos assinados pela TV Carta (ligada à Revista Carta Capital) e pela TV Folha (ligada ao jornal Folha de S. Paulo). Para este artigo trabalhamos com um recorte de apenas dois vídeos da TV Carta.

Pathos e comunicação

Nossa abordagem da dimensão afetiva dos discursos midiáticos parte de uma posição contrária à tradicional dicotomia entre as razão vs. paixão. Ao longo de pesquisa doutoral (JÁUREGUI, 2015), pudemos observar que tais dimensões do pensamento, da experiência humana e, por conseguinte, da comunicação se articulam de diferentes maneiras.

Sem a possibilidade de desenvolver neste artigo o mesmo aprofundamento da investigação anterior, apresentamos resumidamente,

as linhas gerais que compõem a nossa compreensão acerca do pathos1 nas interações.

a) O pathos é razoável. Diferentes áreas do pensamento têm convergido para uma compreensão do pathos como resultado de processos avaliativos e como componente fundamental do raciocínio lógico. No campo filosofia da linguagem, é possível mencionar a proposta de Herman Parret (1997, p. 123), que propõe que o “próprio juízo é passional”, uma vez que “juízo e o raciocínio realizam-se a partir de conceitos-valores, de uma justificação” e “os conceitos-valores são constituídos pelas disposições da paixão e por suas avaliações”. Assim, as paixões não seriam fenômenos ilógicos, mas encontrariam fundamentos na experiência dos sujeitos e nas relações tecidas entre eles e os objetos de paixão. Conclusões semelhantes são encontradas na neurobiologia de Antônio Damásio (2004), que, a partir de evidências clínicas, sustenta que o comportamento emocional humano pode ser compreendido por seu caráter de avaliação, reação e adaptação às condições que o mundo o impõe; dessa forma, ao se avaliar que certo objeto é ameaçador, sente-se medo; quando se entra em contato com algo prazeroso, sente-se alegria e assim por diante. De acordo com Damásio, as emoções seriam elementos necessários nos processos de tomada de

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decisão, por associarem estímulos positivos ou negativos às relações de causa e efeito realizadas pela via puramente lógica. No que diz respeito à semiótica, diferentes aproximações ao problema (PEIRCE, 2008; SAIZ, 2012; SAVAN, 1981) apontam para a emoção como forma de intermediação entre sujeito e objeto – logo, um signo. E, no campo da antropologia, não seria estranho reconhecer a existência de culturas afetivas que possibilitam a vivência emocional de diferentes grupos humanos (LE BRETON, 2008).

b) O pathos é relacional. Embora seja inegável a dimensão individual e psicológica do pathos, é notória a sua existência como elemento mediador, um signo reconhecido por aqueles que se comunicam (EMEDIATO, 2008; SAIZ, 2012; SAVAN, 1981). Partindo disso, uma abordagem comunicacional dos afetos não se dedicaria a estudar aquele pathos vivenciado no interior do espírito dos sujeitos, mas aquele que se faz relevante em situações de interação. Quéré (1991) também aponta para a necessidade de se superar uma dicotomia entre estados internos vs. expressão externa. A análise do pathos no discurso midiático não deveria fazer inferências sobre a vivência afetiva de comunicadores ou membros do público a partir de indícios exteriores revelados pelos sujeitos; ao invés disso, deve ater-se àqueles

pathé que podem ser identificados a partir das avaliações e valores que são expressos e sugeridos nas trocas comunicativas. É preciso ter em conta, ademais, que as razões do pathos e os quadros de sentido que delineiam as trocas simbólicas estarão num contínuo processo de retroalimentação, reconfiguração e atualização.

c) O pathos é coletivo. Autores como Ahmed (2004), Parret (1997) e Peñamarín (1995) têm observado a importância dos afetos numa dimensão coletiva e/ou comunitária. Apesar das diferenças entre suas propostas, é possível observar convergência na percepção do afeto como amálgama fundamental dos grupos humanos. Parret defende que os vínculos entre os sujeitos são o verdadeiro fundamento das comunidades, visto que “o ser-em-comunidade não é uma ideia (normativa, transcendental), mas um sentimento ativando nossa faculdade de afeto” (PARRET, 1997, p. 21 – grifos do autor). De forma semelhante, Peñamarín sustenta que quanto maior a intensidade da paixão compartilhada em um grupo humano, maior será a percepção de que os fundamentos de identificação de um coletivo (nação, etnia, raça, território...) são inquestionáveis e absolutos. Por essa perspectiva, compreenderíamos que quaisquer comunidades poderiam ser interpretadas desde um olhar voltado aos

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afetos, sejam grupos humanos identificados em função de suas nacionalidades ou culturas, sejam os grupos mais ou menos abstratos que os estudos do jornalismo reconhecem como “comunidade de leitores” de determinada mídia. Partindo de pressupostos semelhantes, Ahmed (2004) desenvolve análises sobre as formas de circulação pathé nos corpos sociais e propõe a noção de economia afetiva. Para a autora, os afetos deslizam em relação a diferentes sujeitos e objetos, interagindo, inclusive, com outros afetos. Assim, seria possível, por exemplo, estudar a forma como circula o ódio racial num contexto de xenofobia, sendo dirigido a alguns objetos de forma mais ou menos específica, e como esse ódio dialoga com outros sentimentos como o orgulho nacional ou o amor à pátria.

d) O pathos é discursivo. Se o pathos pode ser compreendido como um signo, um intermediário nos processos comunicativos, também é razoável reconhecer sua natureza discursiva. Como apontam diversas escolas voltadas para o estudo do discurso (FONTANILLE, 1991 e ABRIL, 2010, no campo da semiótica; CHARAUDEAU, 2010 e EMEDIATO, 2008, pela semiolinguística; e PLANTIN, 2010 e MICHELI, 2011, numa abordagem retórica), é possível identificar relações entre formas e estruturas do discurso e processos

de patemização. Dentre elas, destacamos a construção argumentativa que revela as razões do pathos (os valores representados e articulados nos discursos), os papeis patêmicos propostos nos textos e os percursos narrativos que mostram como os afetos podem derivar uns dos outros e levar os sujeitos à ação (o sujeito colérico que encontra prazer na vingança ou o sujeito resignado que aceita uma determinada situação, por exemplo).

Tendo em vista este quadro teórico e suas consequências metodológicas ao longo deste trabalho, seguimos para uma breve descrição do corpus a ser analisado.

“Fora Dilma” e “Aécio Never”

Dentre os cinco produtos que compõe o corpus do projeto de pesquisa, foram escolhidos dois para a análise desenvolvida neste artigo, identificados a partir de agora como VÍDEO 1 e VÍDEO 2.

- VÍDEO 1: Atos pró-Aécio e pró-Dilma em BHPublicado na plataforma de vídeos Youtube, no dia 20 de outubro de 2014, pela TV Carta.(ATOS..., 2014)

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- VÍDEO 2: O que pensam os eleitores de Dilma e Aécio em BHPublicado na plataforma de vídeos Youtube, no dia 23 de outubro de 2014, pela TV Carta. (O QUE PENSAM...,2014)

O estudo foi desenvolvido em diferentes etapas de apreensão e análise do corpus. Em um primeiro momento, os materiais foram assistidos, com o objetivo de selecionar enunciados atribuídos a eleitores dos então candidatos à presidência do Brasil, Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), e Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

Foram selecionados ao todo 16 enunciados (oito por vídeo), apresentados nas próximas páginas por meio de transcrições e seleção de frames. Para esse recorte, buscamos selecionar enunciados de posicionamentos contrários que se encontrassem concatenados nos vídeos, considerando o efeito de diálogo ou contraposição sugerido pelas escolhas da montagem.

Após essa seleção e organizamos do corpus, desenvolvemos uma análise voltada para a compreensão dos pathé comunicados por esses discursos. Um primeiro gesto é a identificação dessas paixões no discurso, a partir de

ferramentas disponibilizadas pela semiótica e de categorizações advindas da filosofia e da semiótica. Num segundo momento, buscamos identificar os argumentos (as razões do pathos) que embasam as paixões identificadas, assim como papéis narrativos e patêmicos que relacionam os sujeitos dessas paixões. A análise é finalizada com considerações a respeito da economia afetiva que pode ser vislumbrada a partir desses enunciados.

Trechos selecionados no vídeo 1

“Ô, Aécio é só caô! Aécio é só caô!”

(Cantado em coro, acompanhado de bateria de bloco carnavalesco)

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“Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil. Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”

(Cantado em coro)

“Eu poderia citar vários motivos aí pra votar pela Dilma, mas o principal deles é o fato do Brasil ter saído pela primeira vez do mapa da fome....”

“Eu vou votar no Aécio por três motivos. Primeiro ideológico porque tá acontecendo uma coisa no Brasil que é muito séria, que é a revolução... bolivariana. As pessoas não se dão conta da gravidade disso. A gente tá correndo o risco de perder a nossa liberdade e a nossa democracia...”

“Esse cartaz é em homenagem ao Aécio, que num debate da Band disse que, por onde quer que ele vá, ele escuta o povo brasileiro pedindo libertação. E é isso que a gente precisa. Precisa de libertação desse governo que, há doze anos, teve oportunidade de mudar nosso país. E que nada fez! Pelo contrário

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só cavou um buraco cada vez mais profundo, causando indignação no povo brasileiro”.

“É porque a Dilma fez com que eu parasse de passar fome. Consegui sair do morro, porque é difícil lá. Ela salvou minha vida. E sem eu... E eu poderia ter sido injustiçado se continuassem os outros partidos, eu não ia aguentar mais, eu não ia superar mais. Eu tinha certeza. Se não fosse eles ter entrado lá, eu já tinha morrido, eu não tava falando com vocês aqui hoje não”

“Ao contrário do que dizem, a bandeira da Justiça Social, ela não é petista, ela é mineira. Tiradentes foi o mais justo, nobre e correto dos mineiros. Nós nos espelhamos em Tiradentes, acreditamos na mudança, e a mudança tem nome: Aécio Neves!”

Eu voto na Dilma o resto da vida. E quem ela colocar lá, eu tô com ela também, porque ela sabe o que faz pra nós. Entendeu? Agora o que passou a vida que eu passei e não votar nela, ele tem merda na cabeça!.

Fonte: ATOS..., 2014.

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Trechos selecionados no vídeo 2

“Eu, por ser mulher negra, por ser mulher jovem, vir de uma origem pobre. Eu, a partir de mim, vi que minha vida mudou muito e a vida de muitas pessoas próximas, de familiares, de amigos mudou.”

“Tudo bem que o PT tirou milhões pessoas da linha da miséria. Mas e aí? Eles vão parar na classe média ou vão continuar subindo de classe? É... O Brasil realmente tá precisando de mudança”

“Se você votou no PT e colocou essa corja, você tem que se redimir! Você tem que ir lá na urna e se redimir. Você tem que ir lá na urna e votar 45. Se você não fizer isso, deixa aquela árvore na porta da sua casa bem de pé, porque você vai precisar dela um dia, quando seus netos te pedir a comida e não tiver a ração pra eles comer. Porque vai chamar ração! Aí você vai lá naquela árvore e se suicide, que é o que você precisa fazer!”

“Uma coisa que aconteceu recentemente é que o Brasil saiu do mapa da pobreza da ONU e isso pra

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mim é muito relevante para eu deixar de lado e fingir que não aconteceu”.

“Não vejo nada de positivo na Dilma! Nada, nadinha!”

“Há doze anos atrás, o medo do meu pai era de ficar desempregado. Hoje, é de eu não passar na faculdade. A nossa vida mudou, e é por isso que eu voto na Dilma.”

“Palavras não tiram ninguém da miséria e slogan de mudança não significa mudança!”

“Aécio, liberta a gente desse PT, dessa corrupção. Ninguém aguenta mais!”

Fonte: O QUE PENSAM..., 2014.

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2 Uma reflexão mais apro-fundada acerca do pathos da indignação pode ser encontra-da no capítulo 3 de nossa tese de doutoramento (JÁUREGUI, 2015).

3 A tônica é semelhante em diferentes escolas teóricas. Citando a Retórica de Aristó-teles (2007), Descartes (1999) avalia a indignação como uma modalidade não viciosa da in-veja. Spinoza (2009, p. 145) vê o sentimento como uma mo-dalidade de “ódio por alguém que fez mal a um outro”. Pela perspectiva da Antropologia de Kant (1991), a indignação estaria mais próxima do ape-tite de justiça (de caráter uni-versal) do que do apetite de vingança (individual).

4 A Escola Francesa de Semió-tica, que tem nos trabalhos de Algirdas J. Greimas sua prin-cipal fonte teórica, toma as paixões como uma espécie de motor das narrativas. Por essa perspectiva, também se faz re-levante compreender como a relação dos pathé com os pa-peis actanciais do sujeito, an-tissujeito, destinatário e desti-nador promove a construção de papeis patêmicos de natu-reza mais concreta e especí-fica. No caso da indignação, por exemplo, propomos que sujeito e antissujeito alcan-cem um nível mais concreto nos papeis de digno e indigno (JÁUREGUI, 2015).

Indignações e esperanças

A partir de um olhar voltado para a comunicação de afetos por meio do discurso, identificamos duas paixões que parecem se destacar nos vídeos selecionados para análise, podendo servir como elementos de comparação entre os enunciados atribuídos aos então eleitores de Dilma e Aécio: a indignação e a esperança.

Tais sentimentos receberiam variadas definições em função de diferentes contextos culturais e de distintas abordagens em campos como os da filosofia, da psicologia e da retórica. Contudo, sustentamos que certos aspectos comuns dessas definições podem guiar nossa análise.

No caso da indignação, é possível partir de traços gerais que a identificaria como “um pathos vinculado com a ideia da injustiça, indignidade e de um mal feito a alguém” (JÁUREGUI, 2015, p. 59), direcionado a um indivíduo que fez o mal. Esse sentimento é comumente visto como próximo do ódio ou da inveja, com a diferença de que a indignação teria base numa razoabilidade que extrapola limites particulares2. Isto é: o indivíduo não se indigna simplesmente porque foi ofendido ou viu alguém ser ofendido; o indignado entende que uma norma moral válida para todo um

grupo também teria sido transgredida naquela situação3. Além disso, esse afeto poderia vir acompanhado por sentimentos como o de compaixão ou de simpatia em relação aos prejudicados pela situação injusta.

Tais definições encontrariam eco numa semiótica do discurso, a partir da identificação dos papeis patêmicos do digno e do indigno. Dessa forma: o sujeito indignado se crê digno e experimenta a indignação em relação a um sujeito indigno, que fere a dignidade alheia (JÁUREGUI 2015)4.

A esperança, por sua vez, seria uma espécie de “confiança na satisfação futura de um desejo” (JÁUREGUI, 2015, p. 49), um pathos que surgiria no momento em que uma alegria ou uma expectativa de alegria começa a superar uma situação de tristeza ou de ameaça.

Componente necessário para a esperança, a alegria é correntemente compreendida como um sentimento relacionado à satisfação de um desejo e, dessa forma, é possível encontrar convergência entre diferentes escolas teóricas. No âmbito do racionalismo, Descartes (1999) e Spinoza (2009) considerariam a alegria como afeto de base para diferentes pathé de natureza positiva. Este último dividiria todo o universo afetivo humano entre os afetos alegres e

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5 Ao se debruçar sobre a pro-blemática do pathos, Patrick Charaudeau (2010) retoma a abordagem narrativa de Grei-mas e Fontanille (1991), pro-pondo algumas releituras do vocabulário. Na proposta do teórico da semiolinguística, os arquétipos actanciais do aliado ou do benfeitor seriam análogos ao papel do adjuvan-te (CHARAUDEAU, 2008).

tristes, que, respectivamente, aumentariam ou diminuiriam a potência do ser. Uma oposição semelhante seria encontrada na abordagem empirista de David Hume (2009), para quem o prazer e a dor são os princípios organizadores de todo o universo passional humano e que a relação do sujeito com o objeto de sua paixão será baseada em atitudes de simpatia ou antipatia.

A esperança seria, portanto, um sentimento oposto ao medo, que consistiria em uma expectativa de que algo ruim, ou indesejável, aconteça. Em outras palavras, é possível dizer que esses dois pathé funcionam como polos opostos de um contínuo de expectativas felizes ou tristes, prazerosas ou dolorosas. É o que se pode ver, por exemplo, nas definições de Spinoza (2009). Para o filósofo, a esperança “é uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida” (p. 143). Sua definição para o medo, por sua vez, teria uma caracterização semelhante, com a diferença de o medo ser “uma tristeza instável” (p. 144).

E, pela ótica de uma semiótica do discurso, o sujeito esperançoso crê na possibilidade de realização de um desejo, seja por ele mesmo ou por alguém que desempenhe o papel de um adjuvante (pelo vocabulário da

semiótico) ou de um benfeitor (nos termos da semiolinguística)5.

Tais definições construídas a partir da observação do caráter razoável dos pathé (por meio do desenho de situações propícias ao surgimento das paixões e identificação de suas possíveis causas) também apontam a relação desses dois sentimentos com outros afetos. Assim, fica claro que dificilmente a indignação ou a esperança aparecerão de forma isolada nos discursos, mas sempre numa complexa economia patêmica.

Com base nestas breves definições, tratamos de compreender como indignação e esperança surgem de formas nos discursos atribuídos a eleitores Aécio e Dilma, identificando a construção de uma economia afetiva nos vídeos de TV Carta sobre a corrida eleitoral em 2014.

No caso dos eleitores de Aécio a indignação se mostra como um pathos predominante. Para uma jovem apoiadora de Aécio, vestida de verde e amarelo, a gestão do PT teria deixado o país em uma situação injusta:

.... E é isso que a gente precisa. Precisa de libertação desse governo que, há doze anos, teve oportunidade de mudar nosso país. E que nada fez. Pelo contrário

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só cavou um buraco cada vez mais profundo, causando indignação no povo brasileiro. (ATOS..., 2014 – grifos nossos)

A personagem afirma que o “povo brasileiro” precisa se libertar de um governo que, em doze anos, “nada fez” e “cavou um buraco cada vez mais profundo”, chegando a mencionar explicitamente a “indignação” que seria vivenciada por esse “povo”. Na fala de outras personagens favoráveis ao candidato Aécio, a indignação se relaciona com um prognóstico nefasto sobre o futuro do país e ao medo de que o PT vença as eleições:

Eu vou votar no Aécio por três motivos. Primeiro ideológico porque tá acontecendo uma coisa no Brasil que é muito séria, que é a revolução... bolivariana. As pessoas não se dão conta da gravidade disso. A gente tá correndo o risco de perder a nossa liberdade e a nossa democracia... (ATOS..., 2014 – grifos nossos)

Se você votou no PT e colocou essa corja, você tem que se redimir. Você tem que ir lá na urna e se redimir. Você tem que ir lá na urna e votar 45. Se você não fizer isso, deixa aquela árvore na porta da sua casa bem de pé, porque você vai precisar dela um dia, quando seus netos te pedir a comida e não tiver

a ração pra eles comer. Porque vai chamar ração. Aí você vai lá naquela árvore e se suicide, que é o que você precisa fazer. (O QUE PENSAM..., 2014–grifos nossos)

No primeiro destes trechos, a personagem avalia que o Brasil vive a “revolução bolivariana”, que colocaria em risco a democracia do país e, no segundo deles, a personagem chega a prever o desabastecimento de alimentos no caso da derrota de Aécio nas urnas. Ambas usam as cores da bandeira em suas roupas e acessórios.

Esta última fala também se destaca por vincular uma dimensão de culpa às pessoas que elegeram o PT nas três eleições anteriores. No pleito de 2014, votar em Aécio poderia ser uma forma de redenção. Por essa lógica, o voto no PT teria sido um ato imoral, mesmo que as eleições signifiquem livre escolha para o eleitorado. O trecho ganha tons ainda mais agressivos pois sugere o suicídio para aqueles que não aceitarem sua proposta de redenção. De acordo com a personagem, a vitória do PT ocasionaria a falta de alimentos e, frente a essa situação e à culpa acarretada por ela, ao eleitor de Dilma não haveria outra saída senão tirar a própria vida.

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6 Quando trata dos protestos massivos ocorridos entre 2010 e 2012 na Islândia, Tunísia, Egito e Espanha, Manuel Cas-tells (2012) identifica certa re-gularidade nas formas como indignação e esperança coe-xistem e se alimentam mutu-amente em contextos de forte mobilização popular. Embora os objetos, argumentos e vi-sões políticas que sustentam as indignações sejam diferen-tes, compreendemos que a percepção dessa relação entre pathé possa lançar luz sobre diferentes situações onde a indignação é vivenciada de forma coletiva.

As figuras da presidenta Dilma, do PT e de seus apoiadores ocupariam, portanto, o papel patêmico do indigno. O eleitor de Aécio e um suposto “povo brasileiro” seria o digno, que sofre uma agressão a sua dignidade.

Tal indignação estaria combinada com uma esperança na melhora do quadro supostamente “imoral” a ser alcançada pela vitória de Aécio Neves e do PSDB. Estes seriam a concretização de um sujeito benfeitor ou adjuvante com o poder de conter a “revolução bolivariana”, trazer a “libertação” e impedir a escassez de víveres. Sendo assim, frente aos aspectos negativos da gestão do PT e, apesar de certo medo de que ele continue no poder, existe energia e uma expectativa positiva de mudar o contexto6.

Mas, além da esperança, é possível mencio-nar outros sentimentos que se mesclam à indignação dos eleitores de Aécio Neves. Quando uma das personagens sugere que eleitores de Dilma se suicidem, tal indignação parece se aproximar mais de sentimentos como o ódio e o desejo de vingança, de natureza mais particular do que a indignação. E, além do nível estritamente verbal, a própria entonação dessa entrevistada, sugere o componente agressivo do discurso dessas personagens, normalmente falando em tom de grito e reprovação.

No caso das personagens favoráveis à Dilma, é possível encontrar tanto semelhanças quanto diferenças no que diz respeito aos sentimentos comunicados. Após 12 anos de um governo avaliado positivamente, tais indivíduos demonstram alegria em relação ao momento que o país vive e esperança de que novos avanços sejam obtidos:

Uma coisa que aconteceu recentemente é que o Brasil saiu do mapa da pobreza da ONU e isso pra mim é muito relevante para eu deixar de lado e fingir que não aconteceu (O QUE PENSAM..., 2014)

Há doze anos atrás, o medo do meu pai era de ficar desempregado. Hoje, é de eu não passar na faculdade. A nossa vida mudou, e é por isso que eu voto na Dilma. (O QUE PENSAM..., 2014)

Tal alegria proporcionada pelos supostos avanços do governo de Dilma e PT seria retribuída por meio do voto.

E no rol desses sentimentos de caráter positivo, também está presente a esperança de que a reeleição da presidenta signifique a continuidade ou a intensificação dos avanços mencionados.

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7 Nos trechos selecionados identificamos apenas duas pessoas de pele negra, ambas apoiadoras de Dilma.

Tal esperança, no entanto, conviria com o medo de uma vitória da oposição nas urnas. Afinal, quando os apoiadores do PT relembram um passado de “pobreza” e “desemprego” que existia “doze anos atrás”, eles se referem à época em que o país era governado pelo PSDB.

Por essa lógica, tal partido e seu candidato acabariam ocupando um lugar negativo dentro do discurso dos apoiadores de Dilma. Estes também comunicam a indignação, ainda que esse sentimento seja construído sobre outras bases argumentativas e narrativas.

Um primeiro aspecto a ser considerado seria a imagem de mentira e falsidade atribuída ao candidato Aécio e ao PSDB. No Vídeo 1, por exemplo, é possível ver o coro de apoiadores do PT entoando o refrão: “Ô, Aécio é só caô! Aécio é só caô” (ATOS..., 2014 - grifos nossos). Já no Vídeo 2, um jovem apoiador de Dilma faz alusão ao discurso da oposição afirmando que “Palavras não tiram ninguém da miséria e slogan de mudança não significa mudança” (O QUE PENSAM..., 2014- grifos nossos).

A gíria ‘caô’, correntemente usada para designar um discurso que usa mentiras para convencer alguém, e a crítica ao slogan apontariam para essa falta de compromisso e de sinceridade.

Além da associação do PSDB com a mentira, também é possível identificar o argumento baseado na luta de classes. No Vídeo 1, um homem de cor negra7 relata um passado de dificuldades econômicas e não admite que pessoas com uma história semelhante a dele possam votar em outro candidato senão Dilma: “...quem passou a vida que eu passei e não votar nela, ele tem merda na cabeça” (ATOS..., 2014).

Seja pelos argumentos que opõem sinceridade e falsidade ou pela lógica da luta de classes, o discurso atribuído aos apoiadores de Dilma nos vídeos analisados colocaria, no papel do digno, os segmentos menos favorecidas da população acompanhados pelo PT e a presidenta. Do outro lado, no papel do indigno, estariam a elite econômica, o PSDB e Aécio.

Considerações finais: ressentimentos na disputa eleitoral

A análise desenvolvida neste trabalho converge com parte dos resultados obtidos em nossa pesquisa doutoral voltada para estudo da retórica da indignação no discurso jornalístico (JÁUREGUI, 2015). Naquele momento, já percebíamos que a compreensão desse pathos

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não poderia prescindir da análise dos valores e narrativas que servem de base para ele:

As indignações podem ter razões muito distintas, algumas mais justificáveis do que outras, sendo colocadas também em contextos muito diferentes. E, para além dos sistemas axiológicos que as fundamentam, elas poderão interagir com pathé muito diversos, contribuindo para alimentar economias afetivas complexas demais para que possam ser vistas de forma unicamente positiva ou negativa (JÁUREGUI, 2015, p. 197)

Àquela época também foi possível observar que a compreensão de tal afeto precisava estar atenta ao papel desempenhado pelos ressentimentos que serviriam como uma espécie de base afetiva do universo passional.

Por ressentimento(s) compreendíamos (e ainda compreendemos), diferentes combinações de pathé tais como ódio, medo, inveja e desejo de vingança existentes na forma de recalque ou de memória afetiva. Nossa compreensão do ressentimento é construída a partir das análises desenvolvidas pelo historiador Pierre Ansart (2009), o semioticista José Luiz Fiorin (2011) e do comunicólogo Elton Antunes (2012). Esse tipo de vivência passional desemboca em predisposições afetivas capazes de influenciar

de variadas formas e graus as valorações que os indivíduos fazem sobre o mundo.

No caso desta análise dos vídeos da TV Carta, os ressentimentos em relação ao PT e Dilma ou em relação ao PSDB e Aécio Neves são parte essencial da razoabilidade que embasa as diferentes indignações e esperanças. Afirmamos isso não apenas pela identificação de economias afetivas características do ressentimento, com a presença dos sentimentos de ódio e de medo. Ao(s) ressentimento(s) também creditamos a polarização tão acirrada frente a um cenário político complexo demais para ter apenas dois lados.

Em 2014, após 12 anos governado pelo Partido dos Trabalhadores, o Brasil não constava mais no Mapa da Fome divulgado anualmente pelas Organização das Nações Unidas, mesmo assim uma eleitora de Aécio afirmava sem pudor: “Não vejo nada de positivo na Dilma. Nada, nadinha” (O QUE PENSAM..., 2014).

Naquele mesmo cenário, frente a pesquisas eleitorais que apontavam para uma apertada vitória de Dilma8 e a uma crise econômica que já se anunciava, um eleitor do PT dizia convicto: “Eu voto na Dilma o resto da vida. E quem ela colocar lá, eu tô com ela também,

8 No dia 25 de outubro, o Ins-tituto de Pesquisa Datafolha contabilizava 54% das inten-ções de voto para Dilma, con-tra 48% para Aécio. O IBOPE apontava uma vitória da can-didata do PT por 57% contra 47%.

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porque ela sabe o que faz pra nós” (ATOS..., 2014).

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entendida como fenômeno comunicativo. No campo da produção jornalística, desenvolveu atividades de mídia impressa, internet e rádio, em temáticas como meio ambiente, direitos humanos, esportes e cultura.

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Carlos Jáuregui é professor do Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA. É doutor em Comunicação Social, mestre em Estudos Linguísticos e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui trajetória de pesquisa na interface entre a Comunicação e os Estudos da Linguagem, com interesse voltado para o estudo das paixões no discurso midiático e da música popular massiva

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