Clodoaldo Freitas - seer.ufal.br
Transcript of Clodoaldo Freitas - seer.ufal.br
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
1
A narrativa literária no início do século XX: Uma análise do conto “Os Burgos” de
Clodoaldo Freitas12
Thalyta Cristine Arrais Furtado Araújo Gonçalves3
Universidade Federal do Piauí – Teresina, Piauí
Resumo
O presente trabalho visa refletir sobre os sentidos produzidos pela confluência da
produção jornalística e literária piauiense no início do século XX. Essa pesquisa adota o
conceito de narrativa a partir da perspectiva de Paul Ricoeur (2010) e faz uma análise
qualitativa do conto “Os Burgos” de Clodoaldo Freitas, publicado em duas edições da
Revista Litericultura, datadas em 01 de janeiro e 01 de abril de 1912. Ao final, podemos
perceber que a narrativa mais do que representar um drama ficcional reflete os valores
da sociedade da época.
Palavras-chave: Clodoaldo Freitas; Literatura; Narrativa; Revista Litericultura;
Introdução
As transformações sociais e os ideais progressistas que nasceram com a
proclamação da República, na passagem do século XIX para o século XX, deixaram
principalmente a preocupação com as letras. O jovem regime suscitou debates que
cobravam mudanças nos campos político e econômico e nas práticas sociais que no
Piauí, acontecia de forma decadente por sua história de atraso econômico e por sua
dependência dos estados próximos.
O jornalismo ainda pouco difundido no Estado por conta de sua população
majoritariamente analfabeta também foi influenciado a transformar-se assumindo um
caráter que ia além das questões políticas voltadas para a disputa entre famílias pelo
poder, para o jornalismo que visava discorrer sobre a realidade do cotidiano através de
outras formas de escrever.
1 Trabalho apresentado no Grupo Temático de História do Jornalismo, do Encontro Nordeste de História da Mídia,
evento componente da Alcar - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia
2 Este trabalho é parte da pesquisa desenvolvida no Núcleo de Pesquisa em Jornalismo e Comunicação (NUJOC) da
Universidade Federal do Piauí, sob orientação da Prof. Dra. Ana Regina Barros Rêgo Leal.
3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí. Email:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
2
É assim que o discurso literário ganha o ambiente jornalístico e os “homens de
letras” buscam criar uma identidade para as produções piauienses. As crônicas, contos,
poemas, poesias, artigos e até mesmo as teses jurídicas invadiam o universo dos
periódicos. Nessa mescla de interesses surge no início do século XX a Revista
Litericultura (1912-1913), que logo em sua primeira edição define-se como uma
“cultura das letras em suas várias modalidades”.
Essa proposta, portanto, pretende analisar a narrativa do conto “Os Burgos” de
Clodoaldo Freitas publicado nas edições de 01 de janeiro e 01 de abril de 1912 da
Revista Litericultura (1912-1913), procurando identificar os sentidos produzidos nesse
texto e perceber como a narrativa ficcional pode tocar o real e vice-versa e quais as
pistas deixadas para retratar a sociedade da época.
A metodologia utilizada para essa produção é a análise qualitativa, que envolve
tanto o estudo, quanto o processo de avaliação de informações/dados localizados, com o
intuito de explicar um fenômeno e seu contexto.
Para trabalhar o conceito de narrativa, tomamos como ponto de partida o
pensamento de Paul Ricoeur (2010), que visa superar a dicotomia entre os textos
ficcionais e aqueles que tem pretensão à verdade. O autor nos mostra que a narrativa
está ligada ao exercício da linguagem e não apenas da ficção, por isso, a confluência
entre Jornalismo e Literatura no início do século XX se torna possível e ainda
encontrarmos pista nessas construções sobre a realidade social e as estratégias
ficcionais.
O conceito de narrativa e as dimensões de tempo e memória
A narrativa é um instrumento importante de visibilidade do homem dentro da
sociedade e ajuda para que a comunidade se reconheça a partir de seus valores morais,
ideológicos e sociais. Quando se narra, fala-se sobre si, sobre sua identidade e o mundo
que o cerca. Paul Ricoeur (2010) mostra que a narrativa é um elemento de representação
da realidade social, premissa que nasceu com o conceito de mimese de Aristóteles, que
significa a imitação da realidade. Portanto, um objeto ou fato representado não significa
a coisa em si, verdadeira e autêntica, mas uma representação imaginária e simbólica.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
3
A narrativa expressa o mundo a partir de uma realidade construída que possui
um sentido próprio. O ato de narrar estaria assim dentro do ciclo hermenêutico
(RICOEUR, 2010), composto por três fases: a mimese 1 (onde ocorre a prefiguração e
que se aproxima do viver na sua versão mais indiferenciada); a mimese 2 (momento da
configuração textual, que coincide com o texto construído como intriga); e a mimese 3
(processo de refiguração na recepção e que envolve a papel recriador do leitor que
apreende a narrativa).
Narrar implica então numa relação direta com o acontecimento, visto que a
narrativa o representa, por meio da linguagem, e o acontecimento, por sua vez, provoca
um processo de transformação. Portanto, pode-se dizer que uma representação qualquer
– sem o acontecimento – não constitui a narrativa.
A narrativa se constitui na tensão de duas forças. Uma é a mudança, o
inexorável curso dos acontecimentos, a interminável narrativa da
“vida” (a história), onde cada instante se apresenta pela primeira e
última vez. É o caos que a segunda força tenta organizar; ela procura
dar-lhe um sentido, introduzir uma ordem. Essa ordem se traduz pela
repetição (ou pela semelhança) dos acontecimentos: o momento
presente não é original, mas repete ou anuncia instantes passados e
futuros. A narrativa nunca obedece a uma ou a outra força, mas se
constitui na tensão das duas. (TODOROV, 2006, p.21).
A narrativa nasce a partir da ação mimética de organização da intriga, ou da
“arte de compor intrigas” e só pode ser compreendida no tempo. “Tudo o que se narra
acontece no tempo, desenvolve-se temporalmente; e o que se desenvolve no tempo pode
ser contado.” (RICOEUR apud BARBOSA, 2006, p. 140). A intriga surge de uma
necessidade pessoal e faz a mediação entre acontecimentos isolados e a narração,
tornando os eventos cotidianos inteligíveis a partir de arranjos que unificam, na
narrativa, as ações, o tempo, espaço e personagens apresentados.
A narrativa, assim, trabalha com um “terceiro tempo” que media o tempo
cronológico (ou o “tempo lógico” de Aristóteles) e o tempo interno (“tempo da alma” de
Santo Agostinho), permitindo, ao mesmo tempo, uma compreensão do passado e do
tempo presente.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
4
Diante disso, Ricoeur (2010) prefere definir, assim, a narrativa como
“composição diegética”4. Contar implica entrar em uma dimensão ficcional – qualquer
que seja o “narrador” e seu grau de comprometimento com a realidade, como
Jornalismo, História ou Literatura – visto que o ato narrar, sugere eleição, exclusão e
seleção e nunca uma equivalência com a realidade.
A narrativa é sempre constituída de uma trama que constitui seus
diversos episódios e, além de ligá-los entre si, os coloca em relação
com o enredo mais amplo, daí resultando uma totalidade significativa.
Todavia, esta trama que se estabelece para cada narrativa específica,
seja ela qual for, parte antes de mais nada de materiais que já se
encontram configurados previamente na própria língua. [...] A
narrativa é ainda constituída de uma história (ou de histórias
entrelaçadas) não apenas sobre a “ação humana”, mas também sobre
os seus significados [...] narrar é configurar ações humanas
específicas, mas é também discorrer sobre significados, analisar
situações (BARROS, 2012, p. 6-7).
Desta forma, essas narrativas articulam a experiência individual, mas também o
tempo do mundo ou o tempo social, construindo memórias e gerando compreensão
sobre o mundo, que resultam em ações e transformações que repercutem na sociedade.
Enfim, a narrativa nos ensina diuturnamente a “dialética do vir a ser, do ter sido, e do se
fazer presente” (RICOEUR apud BARROS, 2012, p.11).
Ricoeur (2010) chamou esse processo de “dimensão hermenêutica da
consciência histórica”, mostrando que a narrativa – seja ela jornalística, histórica ou
literária – implica em remissões ou projeções, que nos levam para o passado ou futuro, a
partir de rastros, vestígios e documentos.
Assim, mesmo sem o compromisso com a realidade, a narrativa literária é fruto
de seu tempo e, por isso, também fala sobre ele a partir de uma dinâmica complexa que
disputa sentidos, identidades, memórias e esquecimentos. É uma construção que
envolve o acionamento de personagens, espaços e temporalidades fictícios mas que dão
pistas sobre o contexto social de uma época.
4 A diegese é um conceito da narratologia, que diz respeito à dimensão ficcional de uma narrativa. Aproxima-se do
conceito de enredo. Contudo, o enredo é a história, propriamente dita, e divide-se em partes: princípio, meio e fim.
Na narrativa o tempo e espaço decorrem ou existem dentro da trama, com suas particularidades, limites e coerências
determinadas pelo autor. É diferente da realidade do mundo que nos cerca.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
5
A Revista Litericultura e a escrita dos intelectuais
A Revista Litericultura nasce em janeiro de 1912, sob a iniciativa de intelectuais
piauienses, num contexto em que os periódicos possuíam traços literários mais
evidentes, com o objetivo de diferenciar-se daquele tipo de imprensa voltado às
questões políticas. O periódico se manteve em circulação de forma independente, e com
edições mensais, até o ano de 1913.
Logo em sua primeira edição, o mensário deixa claro que suas páginas eram
espaços livres para quem quisesse produzir algo relacionado à cultura das letras que se
relacione com o desenvolvimento intelectual e moral da sociedade. Além disso,
redatores e colaboradores foram alertados sobre a importância do caráter social da
revista em detrimento de publicações partidárias ou particulares.
Embora o pouco tempo em que esteve em circulação, a Revista deixou um
grande legado para a imprensa piauiense. As páginas da revista traziam várias
modalidades de escritas – ensaios, crônicas, poemas, poesias, contos, artigos, críticas –,
contava com uma confluência de estilos em sua produção jornalística-literária.
O conteúdo era de responsabilidade de cerca de cinquenta homens, que
invadiram o ambiente jornalístico em busca de uma identidade cultural própria
rompendo com padrões estéticos europeus. Isso é bastante evidenciado nos textos
publicados na Litericultura que fez questão de em suas produções destacar o povo
piauiense, sua linguagem e cultura através de autores locais.
Os financiamentos para a produção vinham dos profissionais liberais que nela
anunciavam além da arrecadação dos valores conseguidos com a venda dos exemplares.
Com o apoio financeiro reduzido, os altos custos da produção, a falta de interesse por
parte do governo para a manutenção da circulação da revista, um público leitor reduzido
e a preponderância do jornalismo de caráter político, a Litericultura acabou tendo seu
fim decretado na última folha da edição de 30 de novembro de 1913.
A sociedade da época era marcada por valores conservadores e religiosos e as
polêmicas eram cada vez mais tratadas nas páginas da revista – o conflito com o
cientificismo, a Maçonaria, a emancipação da mulher, discussão do Direito e do poder
judiciário e o retrato cultural do Piauí (folclore e tradições). O periódico revela-se então
como um importante documento, que faz referência ao pensamento e comportamento de
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
6
diferentes grupos sociais e que através de seus escritos propõe reflexões sobre as
relações sociais e culturais.
O conto “Os Burgos”
O conto de Clodoaldo Freitas5, “Os Burgos”, publicado na Revista Litericultura
em duas edições – datadas de 01 de janeiro de 1912 e 01 de abril de 1912 –, apresenta a
trágica história de amor entre dois irmãos, provenientes de família abastada, que passam
a viver maritalmente e são descobertos pela sociedade. Assim como a maior parte de
sua produção ficcional, o enredo se desenrola no espaço urbano, mais especificamente
na capital maranhense São Luís, reconhecida na trama a partir de alguns dados como o
nome da rua onde ficava localizada a casa dos Burgos (Rua São Pantaleão – que fica
situada atualmente no centro da cidade) e pela referência à Igreja da Sé.
A partir do título Clodoaldo Freitas apresenta o sobrenome da nobre família a
qual os irmãos fazem parte – a família Burgos, situando que a trama estará centrada no
seio dessa família, no caso a relação entre os irmãos Christina e Burgos. Podemos
dividir o enredo em pelo menos três fases: a primeira que trata sobre o amor entre os
irmãos (como se conheceram e o afastamento da sociedade); a segunda que dá conta da
reação da sociedade com a descoberta da relação incestuosa e dos filhos mortos; e por
fim, o ápice, com o suicídio de Christina e o completo isolamento de Burgos.
A narrativa contada em terceira em pessoa se utiliza da digressão temporal,
levando o leitor de um presente, em que o autor apresenta Burgos já com certa idade –
fazendo uma breve descrição do seu perfil físico e psicológico – para um passado, onde
se encontrariam todas as justificativas para a atual situação do personagem. Logo no
início ele apresenta Burgos assim:
Aquele velho alvo, formoso, de longa barba branca, que passava
silencioso e risonho, com um pequeno embrulho debaixo do braço,
teve uma mocidade brilhante e tempestuosa. Foi rico e um dos mais
festejados peralvilhos de seu tempo. Passará longos anos na Europa
estudando e recebera uma aprimorada educação literária e artística.
Falava diversas línguas, era músico e pintor. A todos estes dotes,
5 Clodoaldo Severo Conrado de Freitas (1855-Oeiras, 1924-Teresina) bacharelou-se em Direito pela Faculdade de
Recife e teve uma intensa vida profissional destacando-se como jurista, político, jornalista e literato. Sua ação na
literatura, resultou na publicação de cerca de 14 obras e muitas outras inéditas.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
7
juntava o de uma grande beleza, de uma bondade infinita sem
afetação. Tudo nele transpirava bondade. Seu gênio angelico a todos
cativava. Suas maneiras eram tão singelas, que ninguém lhe podia
resistir. No infortúnio, já velho e pobre, ainda tinha no rosto esse
condão, que lhe era peculiar, de cativar os corações. Quem o via
passar, curvado ao peso da idade e dos terríveis sofrimentos, olhava-o
com piedade e respeito. (FREITAS, 1912a, p. 24).
Após essa breve apresentação Clodoaldo Freitas leva os leitores para 30 anos
antes, com a intenção de explicar sobre esse personagem e sobre a trama que o envolvia.
A partir daí a história começa a ser contada do passado, mostrando como os irmãos
Burgos e Christina haviam se apaixonado e quais as consequências que sofreram com a
decisão de manter a união.
Após um tempo separados – Burgos havia passado uma temporada na Europa
para estudar, o que reflete uma prática comum na sociedade época, onde os filhos de
famílias ricas iam para os centros europeus para se formarem – ao se reencontrem os
irmãos se envolvem e começam um relacionamento amoroso. A partir daí os
personagens passam por um drama psicológico e resolvem mudar o seus
comportamentos.
Aparentados com as melhores famílias do Maranhão, os dois irmãos
eram muito frequentados e relacionados na sociedade maranhense.
Aos poucos, porém eles foram resumindo as festas, cortando as
relações, isolando-se no grande prédio, que ocupavam, à rua de S.
Pantaleão. Afinal trancaram as portas mesmo aos parentes. É que eles
se amavam e viviam entregues à felicidade desse amor, que os
absorvia completamente. (FREITAS, 1912a, p. 23).
O isolamento de Burgos e Christina tinha como objetivo evitar os comentários
sobre sua relação incestuosa. A narrativa deixa transparecer o receio que sentiam ao
imaginar que poderiam ter sua relação descoberta: Christine revela que num primeiro
instante relutou em assumir sua paixão “por medo de afrontar as iras e as maldições do
mundo” (FREITAS, 1912a, p. 25); depois Burgos, que em certo momento da narrativa,
ainda que seguro da decisão teme pela reação da sociedade.
No entanto, a paixão e o amor que nutriam ganhava mais força do que a
preocupação com a possível descoberta do romance, e por isso, em vários momentos da
narrativa, Clodoaldo Freitas permite que os personagens exponham seus sentimentos e
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
8
descrevam sua relação “por suas próprias bocas”, através do diálogo, para gerar um
sentimento de proximidade com o leitor e para mergulhá-lo no universo romântico que
envolvia os irmãos, como vemos no trecho a seguir:
– Dizes bem. Porque havíamos nós de nos privarmos da nossa
felicidade por causa da maledicência desta sociedade, que
abandonamos e de que não carecemos? Deixemo-la com suas
maldades. Vivamos para o nosso amor, para esse amor que faz de
minha vida um éden de delícias divinalmente imortais.
– Como te amo, não sei dizer-te, por que não encontro na linguagem
humana uma palavra que possa exprimir essa mistura de alvoroço e de
calma, de ânsias e de ternura, de desejos e de delícias que me
fervilham n’alma. Amo-te, principalmente porque sei que o mundo te
amaldiçoa. Tu me amas também assim, não é verdade? (FREITAS,
1912a, p. 23-24).
O segundo momento da narrativa mostra as primeiras atribulações pelas quais os
personagens vão passar. Eles abandonam a residência localizada no centro urbano e
mudam-se para uma quinta da família, numa área rural mais afastada, e fazem de lá o
seu refúgio. Anos depois, o local foi comprado pelo Estado e transformado em hospital
para tratar pacientes com peste bubônica e varíola.
Entregues a uma vida pacata e longe dos questionamentos sociais, Burgos e
Christina sofrem em quatro anos, com a perda de quatro filhos – todos nasceram mortos
e foram enterrados no quintal da casa. O último parto, no entanto, iria abalar a vida
silenciosa que levavam. Christina teve febre puerperal e foi necessário o auxílio médico,
isso foi o bastante para que a notícia de que Christina havia perdido um filho se
espalhasse. Até então as únicas testemunhas da relação, os escravos que trabalhavam na
casa dos Burgos, nunca tinham comentado nada.
A opinião pública começou a murmurar e os escravos, aproveitando o
ensejo, a espalhar que D. Christina havia tido outros partos e matava
os filhos para encobrir a sua desonra. Não faltou quem se julgasse
bem informado e bradasse contra o escândalo e contra a indiferença da
polícia, de braços cruzados, diante de tantos e tão execrandos crimes.
(FREITAS, 1912b, p. 5-6).
Nos diálogos travados entre outros personagens – como Moura, o vizinho e
amigo da família – sobre o caso Burgos, revelam uma sociedade fortemente marcada
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
9
pelos valores religiosos em que qualquer afronta deveria ser punida, e na ideia de que os
ricos, naquela sociedade, não sofrem penalidades, já que segundo eles as penas eram
feitas para os pobres. Moura, nesse ponto, reflete a fala da sociedade.
– Uns canalhas, berrava ele. E eu que os frequentava e deixava minha
família ter relações com aquela mulher infame! É preciso um castigo
exemplar, uma punição severíssima contra aqueles incestuosos, que
afrontaram com tanta impudência a moral, os bons costumes, a família
e a religião (FREITAS, 1912b, p. 5-6).
Com a notícia sobre a morte das crianças tornadas públicas e distorcidas, os
irmãos Burgos passaram a sofrer acusações morais – pelo incesto – e criminalmente
pelos supostos infanticídios que haviam cometido e que os levariam à pena de morte ou
prisão perpetua, as punições possíveis naquele contexto. Esse cenário demarca as
primeiras nuances da tragédia que cercava a vida dos Burgos.
Em paralelo ao drama que os irmãos viviam, a narrativa de Clodoaldo Freitas faz
trava um diálogo com o contexto social da época. A história se passava ainda em
tempos de Império, o que leva o autor a refletir os seus ideais pela fala dos seus
personagens – em um momento acreditando que o fim do Império estaria próximo, em
outro se utiliza de um personagem para estabelecer um debate sobre a crença e a
descrença na mudança que viria com a República, que poderia ser reflexo dos
questionamentos da sociedade ou da própria consciência do autor.
– Por isto é que há tantos ódios latentes contra o império, o fautor de
todas essas misérias. A revolução há de vir, mais cedo ou mais tarde,
sanear esta atmosfera empestada e lavar esta lama pútrida que cobre a
superfície da pátria escravizada. Há de vi e ai dos grandes e dos
poderosos, quando chegar a vez dos pobres e dos pequeninos! Não
teremos misericórdia. O sangue há de correr em ondas para fecundar a
árvore da liberdade.
– Isto para o dia de São Nunca.
– Quem sabe?
– Eu sei, porque vejo como as coisas se passam e não posso iludir-me.
Tolo é quem duvida do que vê.
– Eu, que creio no progresso humano e na evolução, não posso
duvidar que tudo isto há de passar rapidamente e chegará o dia da
igualdade, que é o dia da justiça para todos. O que sinto é que esta
ordem de coisas não pode durar, porque ninguém a tolera mais. Este
império, que vive na iniquidade, há de acabar pela iniquidade.
(FREITAS, 1912, p. 6-7).
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
10
Clodoaldo Freitas aproveita-se ainda do enredo para fazer uma leve crítica social
através do personagem Moura, como citado anteriormente, amigo e a pessoa que mais
mostrou indignação com a história envolvendo os Burgos. Ao chegar em casa e contar
para a esposa Briolange sobre o segredo dos vizinhos, esta, num primeiro momento não
dá atenção ao marido e parte violentamente para cima dele cobrando explicações acerca
de uma amante que ele possivelmente mantinha.
Na briga, Briolange ataca o marido e o aponta como “canalha”, “mau pai”, “mau
marido” e “mau cidadão”. Moura nega que tenha uma amante, mas a narrativa toca
sutilmente nas hipocrisias que mantem-se vivas na fala da sociedade – Moura apontava
os erros dos vizinhos, mas não analisava os erros que cometia em sua própria casa.
Outra crítica que aparece no conto de Clodoaldo Freitas é sobre a relação que os
escravos desempenhavam nos lares e como eram representados na sociedade da época.
Num primeiro momento da trama, fica claro que a presença de escravos na casa dos
Burgos não representava nenhum risco para o segredo dos irmãos. Eram indivíduos que
sabiam dos pormenores da relação, mas que deveriam fingir não ver e não podiam
comentar. Outro fato é que se falassem caíam no descrédito como vemos no diálogo a
seguir, entre Moura e Briolange:
– E como nós, sem motivo sério de convicção, lavramos logo contra
eles a sentença de morte? E se eles forem inocentes?
– Realmente! A gente não deve acusar sem prova. O fato do incesto
não induz logicamente o fato do infanticídio.
– Afinal de onde partiu tudo isto?
– Dos escravos.
– Ora, é ser louco acreditar em histórias de escravos contra seus
senhores. Não devemos ser fáceis. (FREITAS, 1912b, p. 6-7).
Assim, definidos como sujeitos ignorados em sua presença e existência, e suas
falas desacreditadas pela sociedade, restava também serem responsabilizados por
qualquer situação negativa. Foi o que D. Christina fez. Ao saber da investigação da
polícia, a irmã de Burgos tratou de colocar a culpa na escrava Quitéria, afirmando que
as ossadas das crianças encontradas enterradas no quintal, eram frutos de uma relação
com Burgos. No entanto, mesmo responsabilizando a escrava e negando que mantinha
um relacionamento incestuoso, D. Christina foi acusada de infanticídio e mais uma vez
a face trágica da vida do casal se mostra.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
11
Burgos e a irmã haviam combinado um plano em caso de serem acusados: se os
dois fossem presos ou apenas D. Christina fosse presa, os dois se suicidariam; se apenas
ele fosse preso, a irmã iria tentar de tudo para conseguir a sua absolvição ou sua fuga.
No entanto, sem terem tempo de pensar, eles foram surpreendidos com a chegada do
chefe de polícia e do mandado de prisão da irmã.
A privacidade da família Burgos foi violada por que, para aquele conjuntura (o
século XIX onde se passa a história), a suspeita de que pudessem ter atentado contra a
vida de uma criança – já que a maternidade e a paternidade eram as principais funções
da mulher e do homem na sociedade – era visto como um grave delito e que deveria ser
punido, o que justificava a investigação da polícia e o julgamento social. Essa passagem
exemplifica como os valores morais da sociedade se impõem diante dos desejos e ações
individuais.
Sem alternativa diante do caso, D. Christina vai ao quarto e bebe um copo com
água e arsênico. Já envenenada, chama o irmão e faz com que ele prometa que não
tentará suicídio. “Pois bem, vive para me chorares, me amares depois de morta”
(FREITAS, 1912b, p. 18). A morte lenta, entre juras de amor é assistida também pelo
chefe de polícia.
A exposição da vida íntima de Burgos e Christina resulta na construção de uma
narrativa que levou o casal à separação, da maneira mais trágica que pode ser, através
da morte, e da trajetória solitária de Burgos, que passados 30 anos se apoiava, até a sua
morte, nas lembranças e no luto representado materialmente num quadro da irmã
pintado por ele e num embrulho de presente que continha a blusa que Christina usava no
dia de sua morte.
A narrativa se compõe também de poucas histórias paralelas que aparecem para
dar mais leveza ao drama, sem, no entanto, desviarem o foco do enredo principal. Surge
assim Tinoco, que se tornou indigente após perder toda a fortuna do pai e que
concentrava em sua figura todos os vícios – era guloso, “comia como um porco”, falava
pornografias, era ébrio, fumava e não tinha bons modos. Esperto e com certa dose de
humor, Tinoco tinha sempre garantido as refeições na casa dos Burgos.
Outro personagem que surge é o do padre Maia, que só carregava esse título,
mas na verdade era capelão da Sé. Conhecido por sua ignorância, nunca pode ordenar-
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
12
se porque não sabia falar em latim. Por isso, o Sr. Burgos ajudava-o com gramática
latina e portuguesa.
A figura de Tinoco e do padre Maia serve pra reforçar a construção em torno do
perfil psicológico do casal Burgos, marcados pela bondade que se exprimiam nos seus
semblantes “angelicais” – Burgos e Christina mesmo diante de todos os vícios de
Tinoco abrem sua casa para ele e são prestativos ao ajudar o capelão com as aulas.
No que diz respeito à narrativa produzida por Clodoaldo Freitas, percebe-se que
o autor faz uso recorrente da descrição: tanto para situar temporalmente – “Corria o mês
de Março chuvas torrenciais e calor asfixiante” (FREITAS, 1912a, p. 26) – e a descrição
do espaço, como da casa dos Burgos, em que aponta a disposição de móveis: “a sala de
jantar [...] muito arejada, com grandes quadros religiosos e profanos pelas paredes
gaiolas de pássaros pelas janelas misturadas com trepadeiras” (FREITAS, 1912a, p. 27).
O uso de descrição é feito especialmente quando Clodoaldo Freitas apresenta os
personagens:
D. Christina teria vinte e cinco anos. Era alva, esbelta, alva, tinha os
olhos grandes e negros, cabelos negros, boca pequena, dentes
admiráveis. Era uma mulher bonita. Tinha muitos traços de
semelhança com o irmão e a mesma bondade angélica no semblante.
O Burgos era de estatura regular, um pouco cheio do corpo. Tinha os
cabelos pretos e nazarenos. Era também um bonito rapaz. (FREITAS,
1912, p. 24).
O conto também faz uso de alguns recursos como a sátira – “O Tinoco, quando
comia, não conversava [...] era um ato de estupidez e falta de educação não levar a sério
um ato de tamanha magnitude” (FREITAS, 1912a, p. 26). Há algumas marcas de ironia
e de um leve humor como no trecho a seguir:
Na festa dos Remédios ano passado, um indivíduo, que tinha um
botequim anunciou dar jantar com vinho por cinco mil reais. O
desembargador Braga pendeu o Tinoco em um quarto, sem comida,
durante o dia inteiro. A noite levou-o para o largo e mandou-o comer.
O Tinoco limpou tudo, doces, bolos, frutas e comidas. Bebeu tudo,
cervejas, vinhos, licores e até o café. O pobre hoteleiro pôs as mãos na
cabeça. Pagaram-lhe os prejuízos os que assistiram o jantar
pantagruélico do incomparável glutão e o hoteleiro, no dia seguinte,
por baixo do anúncio, acrescentou: Menos para o Tinoco! (FREITAS,
1912, p. 28-29).
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
13
Voltando para o núcleo da história – a relação dos irmãos Burgos – embora o
social, num primeiro momento, não consiga interferir na vida do casal, por conta do
retraimento desses personagens e a formação de um lar – na sua concepção como
ambiente conformado para a discrição e para a intimidade de uma família –, não foi
possível evitar o peso da sociedade sob a história do casal, o que levou ao desfecho
trágico.
A literatura de Clodoaldo Freitas insere-se nessa perspectiva do jornalismo
literário praticado no início do século XX, articulando em sua narrativa ficcional,
estratégias diversas como a descrição e o uso do humor, com o apelo ao real,
demonstrando em torno de uma tragédia romântica referências para a crítica e a reflexão
do cotidiano social.
Considerações Finais
Disputando espaço com o jornalismo político dominante, as produções literárias
foram se firmando nos periódicos locais ao passo que acompanhavam as transformações
que a passagem do século XIX para o século XX provocou. Ainda que atrasado quanto
à produção literária nacional, a elite piauiense demonstrou o interesse em se tornar um
dos centros que entendeu a literatura como um ponto de reflexão social o que tornou a
produção da Revista Litericultura um marco para a época.
O conto “Os Burgos” está entre a liberdade e os apelos da fantasia proposta pela
narrativa ficcional ao passo que também se prendem a pressupostos reais, onde
podemos perceber os ideais defendidos pelo próprio autor, as regras, as relações e as
imposições sociais que dominavam contexto da época.
O ficcional encontra dois núcleos trágicos em torno dos irmãos Burgos: o
incesto, moralmente condenável pelos valores religiosos que regiam a sociedade da
época, e a morte dos bebês, que por um lado abalam a relação familiar visto que não era
possível construir uma família na concepção da época (formada por pai, mãe e filhos) e
por outro, é onde a sociedade consegue atribuir o peso de suas histórias e condená-los
criminalmente.
Narrativamente a solução para a intriga formada foi matar D. Christina e acabar
o núcleo familiar que já começava imperfeito e fracassado diante da sociedade, ainda
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
14
que nutrissem um sentimento sincero e sem culpas. Embora o texto de Clodoaldo
Freitas seja uma tragédia ficcional ele apela para uma construção emotiva, trabalhando
entre a descrição de um amor puro de um lado e a desaprovação por outro,
demonstrando que o social pesa mais sobre as relações do que o desejo do indivíduo,
podendo levar às tragédias reais.
Referências
ARNT, Héris. Jornalismo e ficção: as narrativas do cotidiano. Rio de Janeiro: E-papers
Editora, 2004.
BARBOSA, Marialva. O que a história pode legar aos estudos de jornalismo. Revista
Contracampo, n. 12, 2005. Disponível em:
http://www.uff.br/contracampo/index.php/revista/article/view/558/325. Acesso em: 09/07/2015.
__________. O filósofo do sentido e a comunicação. Conexão – Comunicação e Cultura,
UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 139-149, jan./jun. 2006. Disponível em:
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/viewFile/209/200. Acesso em:
09/07/2015.
BARROS, José D'assunção. Tempo e Narrativa em Paul Ricoeur: considerações sobre o
círculo hermenêutico. Revista de História e Estudos Culturais Vol.9. Ano IX no 1, 2012.
Disponível em: http://revistafenix.pro.br/PDF28/Artigo_9_Jose_D_Assuncao_Barros.pdf.
Acesso em: 09/07/2015.
BERGER, Christa. Potencialidades das narrativas histórica e jornalística. In: Narrativas do
Jornalismo & Narrativas da História. Porto: Media XXI, 2014.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Disponível em:
http://www.fecra.edu.br/admin/arquivos/Antonio_Candido_Literatura_e_Sociedade.pdf. Acesso
em: 06/06/2015.
CUNHA, Higino. Clodoaldo Freitas (sua vida e sua obra). Revista da Academia Piauiense de
Letras, Teresina, ano 7, n. 8, p. 28-54, dez 1924; CHAVES, Joaquim. (Mons.) Clodoaldo
Severo Conrado de Freitas. In: CHAVES, Joaquim. (Mons.) Obra completa. 2. ed. Teresina:
Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998. p. 552-555.
FREITAS, Clodoaldo. Os Burgos. In: Revista Litericultura. Therezina: Typographia Paz,
1912a. anno I, n.1, p.22-31.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - 04 E 05 DE AGOSTO DE 2016
15
___________. Os Burgos. In: Revista Litericultura. Therezina: Typographia Paz, 1912b. anno I,
n.4, p.05-23.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9ª edição. São Paulo: Ática. 2006.
GENETTE, Gérard. Fronteiras Da Narrativa. In: BARTHES, Roland [et. al.] Análise Estrutural
Da Narrativa. 7. Ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Narrativas: representação, instituição ou experimentação da
realidade? Sbpjor, n. 1, p. 1-13, 2009. Disponível em:
http://sbpjor.kamotini.kinghost.net/sbpjor/admjor/arquivos/luiz_gonzaga_motta.pdf. Acesso em:
09/07/2015.
QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a República: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as
tiranias do tempo. 3ª edição. Teresina: EDUFPI, 2011.
RÊGO, Ana Regina. Imprensa Piauiense entre a literatura e a política. 2008. Disponível em:
http://paginas.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/6o-encontro-2008-
1/Imprensa%20Piauiense.pdf. Acesso em: 06/06/2015.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
_____________. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Perspectiva, 2006.