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    RODRIGO EDUARDO DE OLIVEIRA

    FLOR-DO-CERRADO: O CLUBE DO CHORO DE BRASLIA

    Dissertao apresentada aoprograma de Ps- graduao em Histria,na linha Histria e Cultura da UniversidadeFederal de Uberlndia, como requisitoparcial para a obteno do ttulo de mestreem Histria.

    Orientadora: Prof. Dr Ktia Rodrigues Paranhos

    UBERLNDIA MGAGOSTO DE 2006

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    RODRIGO EDUARDO DE OLIVEIRA

    Flor-do-Cerrado: o Clube do Choro de Braslia

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    graduao em Histria, na linha Histria eCultura da Universidade Federal de Uberlndia, para obteno do ttulo de mestre.

    Banca Examinadora

    Uberlndia, 23 de agosto de 2006.

    _____________________________________________Orientadora: Prof. Dr Ktia Rodrigues Paranhos - UFU

    _________________________________________Prof. Dr Geni Rosa

    _________________________________________Prof. Dr. Adalberto Paranhos UFU

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    FICHA CATALOGRFICAElaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogao e Classificao

    O48f Oliveira, Rodrigo Eduardo de, 1976-Flor-do-cerrado : o clube do choro de Braslia / Rodrigo Eduardo de

    Oliveira. - Uberlndia, 2006.111 f.

    Orientador: Ktia Rodrigues Paranhos.Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Uberlndia, Progra-

    ma de Ps-Graduao em Histria.Inclui bibliografia.

    1. Msica popular brasileira - Histria e crtica - Teses. 2. Choros(Msica) - Teses. 3. Clube do Choro de Braslia - Teses. 4. Cultura -Histria - Teses. I. Paranhos, Ktia Rodrigues. II. Universidade Federal de

    Uberlndia. Programa de Ps-Graduao em Histria. III. Ttulo.

    CDU: 78.067.26(81)(091)

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    A minha me por sempreacreditar em mim.

    A minha esposa por sempreestar l quando precisei.

    E principalmente, a todos oschores que continuam a

    tocar essa msicamaravilhosa, que me enche os

    olhos e o corao a cadaimproviso.

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    AGRADECIMENTOS

    Sem dvida alguma este trabalho no seria possvel, se no fosse a dedicao,

    profissionalismo e carinho da professora Ktia Paranhos, que tanto me agentou durante...Bom, at eu j esqueci quanto tempo. A voc fica meu sincero agradecimento, se aprendialguma coisa sobre pesquisa em histria devo tudo, quer dizer, quase tudo - afinal de contasuma tradio o processo da reproduo em ao, como j disse Raymond Williams - avoc, mentora e amiga.

    Em segundo lugar - assim como gosto de ver o time desta grande figura do mundocontemporneo -, gostaria de agradecer ao professor Adalberto Paranhos pela leiturasempre atenciosa, conversas sobre msica e histria. Maestro soberano, contigo procureiaprender o mximo que pude. Obrigado por valorizar aspectos do meu desenvolvimentointelectual, sem, contudo, deixar de ser profissional.

    Aos meus amigos da UFU, principalmente Rafael, pelas rodas de samba homricasque costumvamos promover; Getlio Ribeiro, pelas conversas mais loucas eenriquecedoras sobre msica; Roney Dornelas pelas sensaes partilhadas ao som dePixinginha, Cartola, Nlson Caquinho, Miles Davis, Coltrane e tantos outros gnios. Aomeu tio Joo Lus pelos princpios e valores transmitidos, pelo carinho e apoio com as fotos

    do trabalho e principalmente, por aquele disco do Baden Powell, que acabou por provocardesdobramentos em minha vida que nunca imaginei que fossem acontecer. Aquela noite noClube do Choro de Braslia foi mgica. Trs geraes da mesma famlia ao som de MarcelBaden Powell!

    Ao meu grande amigo e irmo Leonardo Neves por todas as garrafas de usqueconsumidas ao som de Jacob do Bandolim, e principalmente, por reavivar meu interesse namsica brasileira.

    Gostaria de agradecer novamente a minha me, Maria Eunice de Oliveira, pelaminha vida, por todo carinho e pacincia, mas em especial pela oportunidade de ir a umshow de um certo guitarrista ingls em 1990, ali, fora cristalizada uma paixo que acabou por traar os caminhos de uma profisso, que sempre esteve em sintonia com a minhaessncia.

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    Por ltimo, mas decididamente longe de no ser importante, a voc Claudinha,minha esposa, companheira, amiga... meu doce de coco, minha rosa, entre mil...voc! Teamo sempre.

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    Msica pra mim no um megaevento,

    um pega- pra- capar,Questo de sentimento,

    O afogado em pleno marQue agarra a mo ao vento e ri,

    Usa o sofrimento para poder flutuar(Aldir Blanc e Guinga).

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    RESUMO

    Este trabalho um estudo de caso sobre o Clube do Choro de Braslia. Seu objetivo

    retratar o desenvolvimento do choro no Distrito Federal e nesse processo, analisar arelevncia do trabalho desenvolvido por essa instituio, intimamente relacionada com ahistria do choro brasiliense e possivelmente a mais atuante do gnero no Brasil.

    Com base em procedimentos de pesquisa historiogrfica relacionados HistriaCultural e no dilogo com outras reas do conhecimento, esta dissertao de mestrado complementada por reflexes acerca do fenmeno conhecido como renascimento dochoro e sobre a questo da tradio no interior do gnero musical, cujas bases fixadas porchores como Pixinguinha e Jacob do Bandolim, continuam a inspirar msicos de todo pasa repensar no s o choro, mas a prpria msica instrumental produzida no Brasil.

    Palavras- chave: Clube do Choro de Braslia; Histria Cultural e tradio chorstica.

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    ABSTRACT

    The presents work is a study of case about the Clube do Choro de Braslia. Themain objective of this work is to narrate the development of the brazilian musical style,know as choro in the Federal District and in this process, analyze the function of thisinstitution, deeply involved with the local history of choro and clearly commited with thedirections of choro in its country of origin, Brazil.

    Anchored by research procedures related to Cultural History as well otherknwoledge fields this thesis is complemented by reflections about the phenomenon knownas choros rebirth and the question of tradition inside this particlar musical style, forged

    by names like Pixiguinha and Jacob do Bandolim, artists whose work continue to inspiremusicians of this whole country, not only in the choros field but also in the production of brazilian instrumental music.

    Key- words: Clube do Choro de Braslia, Cultural History and choros tradition.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    1 Marcel Baden Powell e seu violo no Clube do Choro de Braslia 03

    2 Marcel Baden Powell cai no choro. 13

    3 Marcel Baden Powell relembra o pai num momento de descontrao 49

    4 Marcel Baden Powell acompanhado pelo som do silncio 51

    5 Quando passado e presente se encontram 88

    6 Moderna Tradio: a nova cara da msica instrumental brasileira 96

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    SUMRIO

    Introduo:1.1) Velhos companheiros 011.2) Pisando em Brasa 17

    Captulo 11.1) Naquele tempo: artes, artistas e poder estatal 241.2) Choro de memrias: histria do Clube do Choro de Braslia 34

    Captulo 22.1) Vou vivendo: o renascimento do choro em questo 532.2) Ecos: ressonncias da retomada do choro em Braslia 72

    Captulo 33.1) Mistura e manda: a questo da tradio no choro 80

    Terna saudade 100

    Fontes 102

    Bibliografia 109

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    INTRODUO

    1.1) VELHOS COMPANHEIROS

    Entre todas as plantas que crescem nosolo de determinada cultura, a msica aparececomo a ltima planta, talvez porque a maisinterior e, portanto, a que chega mais tarde no outono , no fenecer da cultura que lhe prpria.1

    Friedrich Nietzsche

    Como o historiador elege a msica como objeto de pesquisa?Para responder a esta pergunta, considero necessria uma reflexo acerca dos

    fatores que influenciaram o nascimento dessa empreitada intelectual. Acredito que o relatodessas impresses possa melhor ilustrar as intenes do jovem pesquisador que escreveestas linhas.

    Neste sentido, a observao potica de Nietzsche sobre a arte dos sons fundamental, pois evidencia a caracterstica que julgo ser mais importante numa obra de

    arte: sua condio de criao humana; onde h cultura, h ser humano. E quando ohistoriador fareja carne humana, sabe que ali est sua caa.2

    Seguindo esta linha de raciocnio, se percebemos a importncia que os sons e rudosorganizados por ns, seres humanos, podem assumir em nosso cotidiano, nos meandros denossas experincias individuais e coletivas, encontramos a maior potencialidade da msica:a de se referir aos sentimentos.

    Eis a um dos componentes determinantes para a escolha do tema sob o qual versa a

    pesquisa aqui apresentada e que diz respeito exatamente experincia de apreciao

    1 NIETZSCHE, Friedrich.O Caso Wagner:um problema para msicos/Nietzsche contra Wagner: Dossi deum psiclogo. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 57.2 Metfora utilizada por Marc Bloch ao refletir acerca da relao entre a histria e os homens. Ver: BLOCH,Marc. Apologia da Histria ou o ofcio de historiador . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 54.

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    musical do pesquisador, pois minha paixo pelo choro3 gnero musical que mais meemociona por seu equilbrio perfeito entre virtuosismo e sensibilidade tambm contribuiu para a determinao do objeto e do caminho da investigao.

    Foi no Clube do Choro de Braslia que pela primeira vez pude ouvir um grupo dechoro ao vivo. Observar e escutar msicos como Joel Nascimento, Paulo Moura, SebastioTapajs, Hamilton de Holanda, Yamand Costa e Marcel Baden Powell me ensinou umagrande lio sobre o choro, que considero fundamental: seu autopotencial de renovao.

    Essa experincia foi importante, pois acredito que de frente pro crime, ali,naquele momento com o pblico, que o ouvinte pode melhor captar a essncia do msico esua obra; assim,in natura, que a arte dos sons afina nossos coraes. (Figura 1, p. 3).

    No caso do choro, delicadezas da sonoridade, como mudanas de ritmo no

    cavaquinho, breques inusitados do pandeiro, a sincronia perfeita entre as baixarias dosvioles e o dom do improviso proporcionam ao ouvinte a dimenso das cores quecompem a linguagem chorstica.

    Mas como harmonizar universos to distintos como paixo e crtica esta ltima, preceito bsico de qualquer pesquisa em histria?

    No meu entender, este problema demanda ateno especial do historiador,notadamente daquele envolto com as tenses entre histria e msica. Todavia, a paixo pode e deve ser aproveitada pelo investigador como uma espcie de estimulante. No meucaso, quando a pesquisa se tornava cansativa, corria para os discos de Villa-Lobos,Pixinguinha ou Jacob do Bandolim, colegas de trabalho, os quais sempre encontrava, eme surpreendiam, pois invariavelmente aprendia algo de novo escutando suas msicas.

    Acredito que o historiador tem a funo de entender as transformaes das relaeshumanas num determinado tempo e, por meio de suas reflexes, propiciar discusses sobrea sociedade; da a necessidade de se transformar num pesquisador to crtico quantoapaixonado.

    3 Sobre esta dimenso afetiva, identificada como elemento motivador para a pesquisa, cabe informar que meuguia de cego, ou seja, aquele que me apresentou ao chorinho, que, alis, s conhecia por meio dasinterpretaes de violonistas como Dilermando Reis e Baden Powell, foi o msico Paulinho da Viola, cujodisco Memrias Chorando me despertou para as sutilezas da msica de chores como Pixinguinha e Jacobdo Bandolim. VIOLA, Paulinho. Memrias Chorando. Brasil: EMI, 1976. 1 CD (aprox. 33 min.), estreo.

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    Sobre esta questo, a assertiva do historiador Marcos Napolitano inspiradora.Segundo o autor,alm de ser um veculo para uma boa idia, a cano (e a msica popularcomo um todo) tambm ajuda a pensar a sociedade e a histria. A msica no apenasboa para ouvir, mas tambm boa para pensar.4

    Nesse sentido, acredito que a ampliao dos horizontes auditivos de um pesquisadorresolva em parte o problema acerca do que bom ou no para se escutar, ou seja, precisoque o historiador deixe - ou pelo menos tente deixar - preconceitos de lado e descubraoutros gneros musicais. Toda msica tem um lugar, um tempo e uma histria, repleta desentidos e significados para se desvendar.

    Com estas inquietaes partilhadas e analisadas, transforme-se, ouvinte, em leitor!Esta introduo foi escrita com o ensejo de dividir com voc a paixo por uma das tradies

    musicais mais longevas do Brasil, o chorinho.Permita-me conduzi-lo brevemente ao incio desta histria, um verdadeiro caso de

    amor primeira audio. Tudo comeou numa sexta-feira, no dia 27 de julho de 2001, seno me engano.Era a primeira vez que ia ao Clube do Choro de Braslia e estava ansioso para conhecer o lugar, que s conhecia de reputao. Logo ao entrar, alguma coisa me diziaque no seria a nica vez que ali estaria.

    Naquele ano, o projeto do Clube era denominadoErnesto Nazareth - Pai do choromoderno. A programao da temporada prometia uma noite de muita msica. Vale a penatranscrev-la.

    Quem no conhece Odeon, Brejeiro ou Apanhei-teCavaquinho? So algumas das mais de 200 criaes inspiradssimasde Ernesto Nazareth- Pai do Choro Moderno , pianista e compositorque afirmou com sua obra a maioridade da msica popular brasileira,na virada do sc XIX. Cultor de Mozart e Chopin, mas aberto aosritmos negros e msica das ruas, Nazareth foi uma alma triste eatormentada, que s produziu beleza e alegria. o que o Clube do

    Choro de Braslia nos traz em 2001, na interpretao atualizada dosmelhores instrumentistas da nossa MPB.5

    4 NAPOLITANO, Marcos. Histria & msica: histria cultural da msica popular. Belo Horizonte:Autntica, 2002. p.11.5 Programao do Clube do Choro de Braslia.Ernesto Nazareth Pai do Choro Moderno. 2001. Papel, color;22 cm x 30 cm. Coleo particular (grifo no original).

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    O show daquela noite era um duo de piano e violo, empunhados respectivamente

    por Cristvo Bastos e Joo Lyra, dois grandes instrumentistas nacionais queocasionalmente emprestam seus talentos a grandes figuras da msica brasileira, como

    mais tarde eu iria descobrir.Aps uma breve introduo dos msicos que se apresentariam naquela noite e observada a regra

    bsica de convivncia no clube silncio total durante as apresentaes , cujo prato principal a msica,como sempre avisa Reco do Bandolim, atual presidente do Clube do Choro de Braslia, o espetculo teve

    incio.Com um repertrio centrado na obra de Ernesto Nazareth, intercalado por algumas

    prolas inusitadas, como foi o caso de Cristvo Bastos, que tocou um inesquecvelchorinho de Thelonious Monk 6, os msicos deixaram o pblico, incluindo o historiadorque relata esta cena, totalmente rendido s manhas do chorinho e sua mistura perfeita de

    virtuosismo e sutileza.Como esses msicos e suas fantsticas mquinas sonoras harmonizam linguagens e tradies to

    distintas como o jazz e o choro? Poderia o choro estar se desfigurando nesse processo dialgico entresonoridades? Inquietaes parte, ainda me recordo da euforia com que sa do Clube do Choro de Braslia

    aquela noite. Lembro-me claramente de pensar: Nossa! Um lugar em que todas as pessoas esto para escutarmsica instrumental e, alm de tudo, em silncio!

    Comecei a freqentar o Clube do Choro de Braslia religiosamente. Em alguns perodos, ia de quarta a sexta-feira para assistir ao show do mesmo msico, como foi o casodo violonista Yamand Costa, ou de msicos menos conhecidos, porm no menostalentosos, como, por exemplo, o trombonista Vittor Santos.

    Cada encontro com o clube era uma experincia diferente. Outro momento que memarcou foi o inesperado defrontamento entre o violonista baiano Edson Sete Cordas e aento jovem promessa do violo, o j mencionado Yamand Costa, mestre na arte doimproviso.

    Corria o ano de 2004 e o homenageado era Ary Barroso,um dos maiores talentosde nossa msica instrumental7 , conforme dizia a programao daquele ano. O clube estavacheio e um ar de ansiedade tomou conta do lugar. Ser que aqueles violes iriam se

    encontrar? A noite prometia.

    6 A msica em questo era Round Midnight. Uma verso da msica diga-se de passagem, um clssico do jazz - numa formao tpica de regional pode ser encontrada no primeiro CD solo do pianista, o excelente Avenida Brasil.7 Programao do Clube do Choro de Braslia.O Brasil brasileiro de Ary Barroso. 2004. Papel, color; 22 cmx 30 cm. Coleo particular (grifo no original).

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    Edson se apresentava ao lado do trombonista Fred Dantas, do grupo Choro da Bahiae de uma lenda viva do choro baiano, Cacau do Pandeiro, com idade j avanada. Era umanoite especial para os msicos baianos que celebravam a criao da Escola de Choro daBahia, quando, de repente, Yamand entrou no clube. Parecia um daqueles filmes dewestern, quando dois pistoleiros se olham pela primeira vez ante de um duelo.

    Edson estava no meio de uma msica. Quando terminou, foi logo chamandoYamand para tocar. Duas tradies do violo de sete cordas se encontravam: a de Edson,mais centrada no acompanhamento, certamente influenciada por Dino Sete Cordas, e a deYamand, que utiliza o instrumento para a arte do solo, assim como um jovem chamadoRaphael Rabello o fizera anteriormente.

    Yamand perguntou se Edson tocavaUma valsa e dois amores, clssico de

    Dilermando Reis. Edson falou: Pode tocar, filho. Logo que comearam, a platia osacompanhou com o som do silncio. Os dois violonistas tocavam um de frente para o outro,como que chamando os violes para uma conversa. Pura magia.

    interessante ressaltar que, alm da qualidade dos msicos que tocam no Clube doChoro de Braslia, chamava minha ateno o ambiente. Cercado por fotos de grandeschores e de msicos importantes para a histria do Clube do Choro de Braslia, sob osolhares de Nazareth ou Chiquinha Gonzaga, o ouvinte est exposto a memrias pulsantes, partilhando e vivenciando sensaes, contagiado pelo gnero musical que Pixinguinhacristalizou.

    Outro aspecto que me inquietava nessas apresentaes era a interao do pblicocom a performance dos msicos. Um show de um grupo de choro no clube parece umrecital de msica erudita. Silncio e palmas, com hora marcada, pelo menos at algummsico improvisar um solo brilhante e a platia delirar. Jacob do Bandolim, famoso porseus saraus, em que o estado de contrio era regra, definitivamente aprovaria o espetculo parte da platia.

    Em alguns casos, o sossego do pblico to grande que espanta aos prpriosmsicos, como foi o caso do gaitista e produtor Rildo Hora, que, aps a interpretao deuma pea para gaita composta por Heitor Villa-Lobos, cobriu a platia de elogios pelosilncio durante sua performance.

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    Com a curiosidade auditiva aguada por aquele novo universo sonoro e a cabeafervilhando de idias, procurei ento me informar sobre a histria do gnero e ouvir detudo, de gravaes originais a atuais. De Callado a Pixinguinha, de Jacob a Armandinho, deK-Ximbinho a Z da Velha, de Waldir Azevedo a Henrique Cazes. Queria conhecer mais arespeito do gnero musical que havia me conquistado.

    Tambm procurava ler de tudo revistas, livros, artigos de jornais que enfocasseo chorinho. Foi quando me deparei com o livro do cavaquinista Henrique Cazes intituladoChoro: do quintal ao Municipal.8 Referncia indispensvel para estudiosos e amantes dochoro, nesta obra descobri que Braslia, para minha surpresa, mesmo sendo uma jovemsenhora de apenas 46 anos de idade, alm de possuir uma certa tradio chorstica inclusive, Waldir Azevedo, mestre do cavaquinho, comps um choro em homenagem

    cidade havia se transformado de capital do rock em capital do chorinho.9 No encarte do CD Reco do Bandolim e Choro Livre10 , importante obra do choro

    brasiliense, o depoimento de Mrio de Aratanha fornece vestgios da relao do choro coma capital federal, quase sempre conhecida pelos traos do arquiteto Oscar Niemeyer ou porseu carter mais oficial.

    O choro nasceu no Rio, e sempre foi msica da classe mdia.Entre os artesos da Cidade Nova e os remediados do subrbio, o

    choro povoava muito os quintais dos funcionrios pblicos daVelhacap. Quando estes voaram para o Planalto, o choro foi junto, ehoje, por excelncia, msica de Braslia, onde o Clube do Choro sucesso e onde foi criada a primeira Escola de Choro do pas.11

    Assim, tendo por princpio o fato de que os rumos da histria de uma sonoridade,seja ela qual for, so trilhados pelos msicos que se dedicam a um gnero musicalespecfico, procurei conhecer a produo fonogrfica e a histria do chorinho brasiliense para melhor entender o papel de Braslia no contexto atual do choro.

    8 CAZEZ, Henrique.Choro:do quintal ao Municipal. So Paulo: Ed. 34, 1998.9 O fato de o Clube do Choro de Braslia ser sempre mencionado como a referncia nacional do gnero noslivros mais atualizados sobre o gnero como o caso de Henrique Cazes e Andr Diniz intrigava-me, poisa idia de Braslia como reduto de grandes chores me era completamente nova. Ver: CAZES, 1998, op. cit. e DINIZ, Andr. Almanaque do Choro: a histria do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 2003.10 RECO do Bandolim e Choro Livre. Brasil. Kuarup Discos, 1998. 1 CD (40 min.), estreo.11 Idem, 1998.

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    Foi nesse momento que escolhi o Clube do Choro de Braslia como objeto de pesquisa. Afinal de contas, de onde haviam sado todos aqueles chores brasilienses?

    A partir da fui conhecendo o trabalho de msicos como o citarista Avena de Castro,o violonista Hamilton Costa, o pandeirista Pernambuco do Pandeiro e o bandolinista Recodo Bandolim, cujo grupo, Choro Livre, foi o primeiro regional de choro que ouvi em aona minha vida diga-se de passagem, numa memorvel apresentao ao lado do bandolinista Joel Nascimento.

    Contudo, foi principalmente o trabalho de um jovem msico que me chamou aateno para a importncia de Braslia para o choro, pois, com muita imaginao,sensibilidade e autoridade precoce, um bandolinista escrevia algumas novas pginas nalonga histria do choro. Seu nome: Hamilton de Holanda.

    Impressionado pelo estilo irreverente de Hamilton, que transpira Jacob doBandolim, Luperce Miranda e Armandinho, sem deixar de ser Hamilton de Holanda,cultivei a idia de investigar a relao do choro com outras linguagens musicais, pois o queHamilton toca vem do choro, mas no exclusivamente ou necessariamente chorinho.

    Ao vivo, as apresentaes de Hamilton de Holanda so conhecidas comoverdadeiras epifanias musicais. Sua apresentao parece a de um msico de rock, tamanhaa empolgao que os sons extrados de seu bandolim exercem sobre ele. Suas composiesamadurecem a cada novo trabalho, evidenciando a consolidao de uma assinaturaartstica.12

    Em Hamilton encontrei o exemplo de um msico, cujo trabalho, mesmo quando setrata de interpretaes, no se resume mera recriao. O que Hamilton faz so ousadasreleituras que, alm de apontarem novos rumos para o uso do bandolim Hamilton usa um bandolim de dez cordas que lhe possibilita tecer acordes e melodias simultaneamente ,sintonizam uma nova gerao com o choro.

    importante mencionar que, ao lado de Hamilton de Holanda, msicos

    brasilienses, como os violonistas Rogrio Caetano e Daniel Santiago e o gaitista GabrielGrossi, dedicam-se fervorosamente ao choro, contribuindo definitivamente para a formaode um sotaque peculiar para o choro de Braslia.

    12 Talvez, o exemplo mais perfeito da arte de Hamilton e seu bandolim, assim como de seu amadurecimentocomo compositor, est em seu ltimo trabalho, o recital de bandolim solo01 Byte 10 Cordas,gravado ao vivono Rio de Janeiro e lanado pela gravadora Biscoito Fino em 2005.

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    Hermeto Pascoal, no depoimento que segue, sintetiza minhas impresses sobre otrabalho desses novos nomes da msica instrumental brasiliense:

    Acho que a msica instrumental est se renovando, se no euno estaria aqui. No quero saber dessa coisa de saudosismo. Asaudade tem que ser aproveitada como realidade, no como uma coisaruim. A palavra chorinho no sentido de chorar de alegria, o quesinto quando toco com esses meninos. Rogerinho, Gabriel e Danieltocam o chorinho com uma interpretao moderna, com umavelocidade grande e harmonias ousadas, isso tudo inovao. O jeitoque eles aplicam os acordes e harmonias de muito bom gosto. Braslia est se tornando uma cidade especial, no s pelo grandeClube do Choro, mas tambm, pela msica clssica, o baio, o forr;aqui existem muitos msicos de qualidade tocando msicas dediferentes estilos.13

    Em suma, foram essas impresses sobre o Clube do Choro de Braslia, que acabamde ser relatadas, que impulsionaram esta pesquisa. Basicamente, a inteno fazer umestudo de caso sobre o Clube do Choro de Braslia, que enfoque a trajetria do clube eevidencie a funo deste no desenvolvimento do choro em Braslia.

    Como contraponto, reflexes sobre questes subjacentes temtica central, tal qual,o sentido da tradio para o choro leia-se estritamente msicos mais relacionados com o

    Clube do Choro de Braslia e a questo do renascimento do choro, expresso que nuncasoou bem aos meus ouvidos complementam este trabalho.

    A esta altura, o leitor deve estar se perguntando: mas qual a hiptese central destetrabalho? Para responder a esta pergunta, recorro a um aspecto da msica enfatizado pelo bandolinista Joel Nascimento em entrevista a mim concedida, uma lio musical queaplicarei na narrativa deste trabalho. Segundo ele,a msica tem que ter seu tempo, omsico no deve comear pelo seu pice, se no cansa logo o ouvinte.14

    Assim, comecemos pelo captulo trs, que procura entender a questo da tradio para os chores contemporneos. Mas antes, algumas consideraes acerca de referenciaistericos que de um modo geral permeiam esta dissertao.

    13 Apud FARIA, Gustavo. Hermeto Pascoal. Jornal da Comunidade, Braslia, 18 a 24 dez. 2004. NmeroUm, p. 07.14 NASCIMENTO, Joel. Entrevistador: Rodrigo Eduardo de Oliveira. Braslia, 30 de maro de 2006.Entrevista concedida no quarto 701 do Hotel Manhattam Palace Hotel.

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    Em termos de escrita e anlise histrica, esta pesquisa est atrelada ao impacto nahistoriografia moderna motivado pelo grupo dos Annales. Ao expandir os limites dacincia histria, Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, a santssima trindade dahistoriografia francesa15, estimula a investigao de aspectos do comportamento humanoanteriormente negligenciados pela tradio historiogrfica.

    Nesse sentido, acredito que a contribuio dos Annales para o estudo da msica, oumelhor, da arte de um modo geral, foi importante. Entretanto, importante ressaltar, que aomesmo tempo em que houve uma ampliao dos horizontes da pesquisa em histria, ohistoriador precisou desenvolver e sistematizar outras formas de interpretao das novasfontes.

    A despeito desta importante herana, cujo maior mrito, pelo menos para mim como

    historiador, foi colaborar na formatao de uma concepo de histria16, procurei outrasfontes tericas para pensar questes relativas a essa pesquisa, como no caso do captulotrs, basicamente inspirado nos estudos de Raymond Williams sobre tradio.

    Portanto, no que concerne inquietao sobre o sentido da tradio, procurei memuniciar de um arsenal terico que estivesse em sintonia com a problemtica central decada captulo desta dissertao. Fui guiado por hbeis timoneiros que se tornaramimportantes para meu prprio desenvolvimento intelectual.17

    Eric J. Hobsbawm foi fundamental. Seu pioneiro trabalho sobre jazz18 constituiu ponto de partida para a organizao e desenvolvimento das problemticas pertinentes pesquisa, sendo particularmente

    inspirador o fato de o autor analisar um tipo de linguagem musical, instrumental por natureza, assim como ochorinho.

    A questo da linguagem, no meu entender, est intimamente ligada noo de tradio, porque atraduo de determinada experincia social se d pela linguagem, que a forma organizada pelo homem para

    15 Assim, quanto ao que se refere primeira gerao, vale a pena se lembrar o juzo de Braudel:Individualmente, nem Bloch nem Febvre foi o maior historiador do perodo, mas juntos o eram (Braudel,1968 a , p. 93). Na segunda gerao, difcil pensar em um historiador da metade do sculo da mesmacategoria de Braudel. Ainda hoje, uma parte significativa do que mais interessante se faz em trabalhoshistricos, ainda realizada em Paris. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluofrancesa da historiografia. So Paulo: Fundao Editora da Unesp, 1997, p. 126.16 No decorrer do meu curso de graduao, Marc Bloch foi definitivo para a minha compreenso da cinciaque decidi abraar. Como o autor coloca,o historiador no pensa apenas humano. A atmosfera em que seu pensamento respira naturalmente a categoria da durao. BLOCH, 2001, op. cit., p. 55.17 Da reside o ttulo desta introduo, pois esses referenciais foram to decisivos para pensar as questesinerentes pesquisa quanto a msica de Jacob do Bandolim ou Pixinguinha, que considero como marcos parase pensar a histria do choro. Em suma, os autores que inspiraram esta investigao se tornaramcompanheiros inseparveis nas horas de reflexo. O ttulo um emprstimo afetuoso de um choro do genialsaxofonista Sebastio de Barros, o K-Ximbinho, cujas composies se caracterizam por explorar as ligaesentre o choro e o jazz.18 HOBSBAWM, Eric J. Histria Social do Jazz.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

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    se expressar. E como foi sugerido anteriormente, por meio do exemplo da msica do bandolinista Hamiltonde Holanda, o dialogismo entre linguagens musicais transforma a tradio chorstica, pois a partir dessa

    inter-relao que o choro continua caminhando.O modo como Hobsbawm enfoca a questo da linguagem serviu de base para minhas ponderaes

    sobre a relao entre tradio e linguagem. Para o autor, a linguagem dos instrumentos musicais calcada naexperincia dos agentes culturais, no caso, os msicos de jazz.19

    Entendida assim, como prtica das manifestaes humanas, obviamente inserida num processohistrico peculiar e dinmico, a linguagem com a qual Hobsbawn trabalha me ajuda a pensar a relao entre

    personalidades, instrumentos, linguagem e tradio.O pequeno texto que segue abaixo a introduo do folder da programao de 2002 do projeto do

    Clube do Choro de Braslia intituladoCaindo no choro, e fornece alguns indcios sobre essa questo.20 Depois de homenagear os mestres Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Waldyr

    Azevedo, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, o Clube do Choro de Brasliaabre o leque e convida voc para a festa da Msica Popular Brasileira. Em 2002, o projeto Caindo no Choro vai trazer, alm dos grandes nomes do gnero, msicos

    de samba, forr, bossa-nova, jazz e at rock para pegar onda na praia do choro.Porque o choro est na raiz de toda msica de qualidade que se faz neste pas. Sem

    perder a linha, abriga muitas tendncias em seu generoso guarda - sol musical. Porisso agrada platia de oito a oitenta anos. Tem cada vez mais gente chegando para a

    festa da MPB. Voc tambm est convidado. Venha cair no Choro.21(Figura 2, p. 13).

    Tendo em vista a fundamentao terica de Hobsbawm acerca da linguagem, sua importncia paraesta pesquisa reside no fato de o autor ressaltar a relao das filigranas musicais, como diria Jacob do

    Bandolim, com a experincia do cotidiano dos msicos envolvidos no processo de formao edesenvolvimento de uma linguagem musical.

    Para Hobsbawm, o artista desenvolve seu estilo e seu trabalho num tempo que permeado portenses estticas e pessoais que so transformadas e comunicadas na obra artstica concebida, seja ela uma

    msica, uma pea de teatro ou um filme.O autor tambm aborda as vrias instncias que perpassam a produo musical. Traando uma linha

    evolutiva da histria do jazz, ele analisa a relao dos msicos com a sonoridade, o pblico e a indstriafonogrfica, e cria um trabalho com idias modernas para a sua poca, principalmente por levar em

    considerao o fato de que s o tempo poder responder a algumas questes sobre o jazz e a arte de um modo

    geral.Outro trabalho de Eric Hobsbawm22 que serviu de referncia para este captulo diz respeito questoda tradio. No entanto, a obra, organizada por ele e Terence Ranger, foge aos objetivos do trabalho que me

    propus a desenvolver, porque a cena chorstica se constitui em Braslia pela autodeterminao dosinstrumentistas que lutaram por sua preservao e divulgao na cidade.

    19 A esse respeito s reflexes de Hobsbawm sobre Louis Armstrong so motivadoras, pois o autor relaciona apoca em que o genial trompetista nasceu com a formao do prprio estilo desenvolvido pelo msico.Conforme Hobsbawm afirma, Armstrongnasceu exatamente na poca em que podia passar logicamente do jazz folk de Nova Orleans para um individualismo completo em arte, sem perder o que tinha ou amaravilhosa e simples qualidade do seu canto, o toque comum de uma msica feita para pessoas comuns.HOBSBAWM, 1990, op. cit., p. 133.20 Como uma das funes do historiador suspeitar de todo e qualquer discurso generalizador, interessantenotar que mesmo que a filosofia do Clube do Choro de Braslia seja a de valorizao absoluta do gnero,afirmar que o choroest na raiz de toda msica de qualidade que se faz neste pas, reduzir a importncia deoutros gneros musicais no desenvolvimento da chamada MPB ou mesmo da msica instrumental produzidano Brasil.21 Programao do Clube do Choro. Caindo no Choro. 2002. Papel, color. 22x 30 cm. Coleo particular(grifo no original).22 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs). A inveno das tradies.Rio de Janeiro: Paz e Terra,2002.

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    Basicamente a anlise de Hobsbawm e Ranger est centrada num tipo de tradio apropriada e propositalmente criada pelo Estado a partir de componentes antigos, localizveis no passado da histria

    europia, com o intuito de manipulao ideolgica; no mera coincidncia que tais elementos eram ligados idia de nacionalismo.23

    Assim, um exemplo do que os autores entendem por inveno de tradies perceptvel no captulosobre a tradio das terras altas escocesas. Como Hugh Trevor - Roper afirma;

    Hoje em dia, onde quer que os escoceses se renam para celebrar suaidentidade nacional, eles a afirmam abertamente atravs da parafernlianacionalista caracterstica. Usam o saiote (kilt), feito de um tecido de l

    axadrezado (tartan) cuja cor e padro indicam o cl a que pertencem, e quandose entregam ao prazer da msica, o instrumento utilizado a gaita de foles. Tal parafernlia, que eles reputam muito antiga, , na verdade, bem moderna. Foi

    desenvolvida depois, e, em alguns casos, muito depois da Unio com a Inglaterra,evento contra o qual constitui, de certo modo, um protesto.24

    Apesar de o trabalho destes dois autores ser completamente diferente do modo como penso atradio do choro, o contato com a referida obra me direcionou para um autor cuja noo de tradio se

    23 Num outro contexto, Adalberto Paranhos analisa, no Brasil dos anos 1930 e 1940, como se d o roubo dafala dos trabalhadores, que apropriada e ressignificada por agentes do governo Vargas e devolvida aostrabalhadores sob a forma de mito. PARANHOS, Adalberto.O roubo da fala: origens da ideologia dotrabalhismo no Brasil. So Paulo: Boitempo, 1999.24TREVOR- ROPER,Hugh. A inveno das tradies: a tradio das terras altas (Highlands) da Esccia. In:HOBSBAWM; RANGER, 2002, op. cit., p. 25.

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    harmoniza com a maneira com a qual procuro pensar a tradio chorstica, mais baseada na atuao dosagentes socioculturais; seu nome: Raymond Williams.25

    Ao entender cultura como modo de vida, Raymond Williams concebe tradio como um processoconstante de ressignificao resultante da atuao prtica de sujeitos histricos, mediante a incorporao de

    elementos novos tradio por agentes sociais em permanente tenso.Como diz o prprio autor,

    A tradio (nossa herana cultural) mostra-se de modo claro como um processo de continuidade deliberada, embora, analiticamente, no se possa

    demonstrar que alguma tradio seja uma seleo ou re-seleo daqueles elementossignificativos recebidos e recuperados do passado que representam uma

    continuidade no necessria, mas desejada. Nisto ela se assemelha a educao que uma seleo equivalente de conhecimento desejado e de modalidades de ensino e deautoridade. importante salientar, em cada caso, que esse desejo no abstrato

    mas efetivamente definido pelas relaes sociais gerais existentes.26

    Impulsionado por tal concepo, pude visualizar alguns sinais de permanncias e rupturas nahistoricidade do choro e entender que a arte, seja ela qual for, msica ou cinema, est sujeita a novas

    elaboraes construdas por meio da ressignificao e da apropriao que os atores sociais fazem da formaartstica a que se dedicam.Tambm no que concerne aos estudos sobre tradio, foi importante o trabalho27 do historiador

    Eduardo Granja Coutinho a respeito do sentido da tradio na obra do sambista e compositor Paulinho daViola. Ele analisa a problemtica, enfocando tanto as letras como a msica do compositor. Tambm dedica

    um tpico do livro ao renascimento do choro na dcada de 1970, uma das questes abordadas nesta pesquisa,apresentando Paulinho da Viola como figura exponencial no processo que acabou por imprimir novos rumos

    ao gnero que Pixinguinha e Jacob do Bandolim definiram musicalmente.Falando em renascimento do choro, o captulo dois desta dissertao tem o intuito de questionar esta

    idia. A inquietao surge da hiptese de que a linguagem do choro consolidada por demais para quemorresse ou desaparecesse por muito tempo. Trata-se de uma tradio cultural construda sobre pilares

    musicais que resistiram ao tempo, inspirando outras geraes e, por meio desse processo, reinventando-se.O historiador Andr Diniz28, num trabalho elaborado com estilo conciso, que mescla informaes

    gerais e dados interessantes sobre elementos relacionados histria do gnero, coloca que a noo de

    renascimento do choro est atrelada reapropriao do chorinho pela indstria cultural29

    . A dcada de 1970 simbolizou uma revoluo no universo chorstico. Pela

    primeira vez jornais, revistas, rdios e tv davam destaque caloroso ao mais antigognero musical urbano brasileiro. Os festivais, com a revelao de novos grupos e

    25 Autor essencial para os pesquisadores envolvidos com estudos culturais, porm, de leitura trabalhosa.Travei conhecimento com os estudos de Williams por meio da leitura dos livros Cultura e O Campo e aCidade e da obra da especialista em literatura inglesa, Maria Elisa Cevasco, que constituiu importanteferramenta terica para a compreenso dos estudos de Williams acerca das relaes entre cultura e sociedade.Ver: CEVASCO, Maria Elisa.Para ler Raymond Williams. So Paulo: Paz e Terra, 2001. WILLIAMS,Raymond.Cultura. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. WILLIAMS, Raymond.O campo e a cidade.So Paulo: Companhia das Letras, 1973. 26 WILLIAMS, 2000, op. cit., p. 184-185.27 COUTINHO, Eduardo Granja.Velhas histrias, memrias futuras: o sentido da tradio na obra dePaulinho da Viola. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002.28 DINIZ, 2003, op. cit.29 De fato e choro e seus executantes obtiveram um destaque significativo na dcada de 70, contudo, afirmarque houve umarevoluo no universo chorstico como faz Andr Diniz um exagero. No meu entender,naquele momento, o choro passava por uma fase de transio,em que o que pode ser principalmente ntido que a forma anterior est sob tenso: que h novos elementos incompatveis ou no digeridos, haja visto queum dos grandes debates do perodo versava sobre a descaracterizao do choro, ou seja, para alguns tericos ochoro estava se distanciando de seus moldes tradicionais. WILLIAMS, 2000, op. cit., p. 197.

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    msicos talentosos, espalharam-se pelas principais cidades do pas. O choro virou pop star televisivo.30

    Se por um lado o choro recebia considervel destaque na mdia, por outro era bombardeado decrticas que alertavam para sua descaracterizao.31 Contudo, o gnero que Pixinguinha denominava comoum negcio sacudido e gostoso permaneceu chorando baixinho, transformando-se, incorporando novas

    linguagens, despertando a curiosidade de uma nova gerao que, explorando as mltiplas possibilidades dochorinho, ampliaria os horizontes da msica instrumental brasileira.

    Se a indstria cultural incorporou o gnero por interesses financeiros, o choro de hoje aprendeu alidar com as amarras do negcio fonogrfico. Talvez o choro no tenha se transformado; talvez o que mudou

    foi o choro ao se sintonizar com a realidade em que vive, como analisa o violonista Marcello Gonalves.

    Eu acho que um dos principais fatores para impulsionar este mercado a profissionalizao do msico. Por exemplo, quando se lana um disco de choro voc

    est disputando um mercado com um lanamento da Madona, do Caetano... Entovoc tem que se armar para enfrentar o mercado de msica, no apenas o mercadode choro. Ento, deve-se contratar uma assessoria de imprensa, ir para um estdio

    bem equipado, fazer uma capa bonita, bem feita, enfim, despertar a ateno para seutrabalho. Esse o caminho para se ganhar espao.32

    O tempo em que vivemos aparentemente de mar cheia para o choro, msica instrumental brasileira por excelncia. Contudo, ser que esterevival do choro meramente guiado por interesses

    mercadolgicos ou existe uma prtica consciente por parte dos msicos ao encampar as propostas da indstriacultural e divulgar a msica cujas bases foram lanadas pelo flautista Joaquim Callado h mais de um sculo?

    Nesse sentido, outro autor essencial para a composio deste texto o socilogo Paulo MarcosPuterman. Seu trabalho33, ao contrrio de outros que priorizam a questo do estilo, analisa os elementos

    formadores do gnero em sintonia com as condies sociais de produo que cercam os agentes culturais e,claro, a sonoridade.

    A perspectiva de Puterman se afirma com esta dissertao, pois tem como princpioo fato de que a msica, assim como outras formas artsticas fruto de um processo dialtico

    e contraditrio entre diversos segmentos sociais que se apropriam e vivem da arte, talvezuma maneira de fugir da realidade, ou quem sabe melhor compreend-la.

    1.2) PISANDO EM BRASA

    Agora, sem mais delongas, vamos entrar na roda do choro.

    30 Idem, p. 43.31 A este respeito ver: AUTRAN, Margarida. Renascimento e descaracterizao do choro. In: BAHIANA,Ana Maria et al. Anos 70. 1. Msica popular. Rio de Janeiro: Europa, 1978 1980, p. 65-75.32 GONALVES, Marcello. Entrevista: Marcello Gonalves. Revista Sete, Braslia, n. 168, ano III, p. 5, nov.2002. Entrevista concedida a Michelle Maia.33 PUTERMAN, Paulo Marcos. Choro: A construo de um estilo musical. 1985. 138 p. Dissertao(Mestrado em Cincias Sociais) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de SoPaulo.

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    O choro surgiu como elemento musical verificvel durante a segunda metade dosculo XIX no Rio de Janeiro. Amlgama sonoro resultante do encontro de danaseuropias, notavelmente a polca, com elementos africanos como o lundu, o choro foi, deincio, no um gnero, mas a forma que o msico popular da poca encontrou para tocar, sua maneira, a msica executada nos sales e bailes da alta sociedade carioca.

    Caracterizado pelo rond, estrutura musical que periodicamente retorna ao primeirotema da composio, por sua vez alternada com outros motivos, iguais ou transformados, eclaro, pela improvisao, o choro nasceu como um jeito brasileiro de tocar as msicasestrangeiras que desembarcavam no pas como o xtis, a quadrilha e a valsa , e hojeconstitui uma das mais longas tradies musicais do pas.

    Em seus primrdios, destaca-se a figura do flautista Joaquim Antnio da Silva Callado, considerado pela literatura especializada do gnero como o pai dos chores por formatar os grupos de instrumentistas

    populares a partir do trinmio ideal, em outras palavras, a base instrumental clssica do choro: flauta,cavaquinho e violo.Os chores, designao dada aos msicos que tocavam choro, estavam presentes em

    festas populares como casamentos, aniversrios e batizados, mas tambm nos sales daelite imperial, sempre motivados pelo prazer de tocar msica e pelos agrados etlicos egastronmicos oferecidos nessas ocasies; afinal de contas, ser choro, antes de tudo, eraser bomio.

    Nas festas das classes menos abastadas da sociedade, quando no havia uma mesa

    recheada com bebidas e comidas oferecidas pelo dono da casa, dizia-se que o gato estavadormindo no fogo e logo os chores batiam em retirada, pois a remunerao proposta a estes msicos no seria suficiente para agrad-los.34

    interessante notar que a maior parte dos msicos no tinha nenhuma formao profissional. Apesar da existncia de diversos tipos de bandas musicais, o aprendizadogeralmente era desenvolvido no calor das rodas de choro, no contato com os grupos eamigos instrumentistas. Era assim que msicos como Joaquim Callado concretizavam suamusicalidade.

    Choro, nesse momento, significava maneira de tocar, uma noo associada interpretao afetiva que os msicos realizavam de gneros musicais europeus, processo de

    34 A esse respeito, ver o livro: PINTO, Alexandre Gonalves.O Choro: reminiscncias dos chores antigos.Rio de Janeiro: Funarte, 1978. Escrito em 1936 pelo choro e funcionrio pblico, Alexandre GonalvesPinto, popularmente conhecido como Animal, que conheceu e conviveu com muitos integrantes da hojechamada Velha Guarda. Este livro constitui a principal fonte de informao sobre os hbitos e as memriasdos chores desde 1870, provvel data de nascimento do choro.

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    releitura que acabaria por dar origem chamada msica brasileira. Ao lado de tantoschores annimos que ajudaram a construir a histria do choro, sucederam-se pioneiroscomo Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Joo Pernambuco,todos legando suas indelveis contribuies a esse gnero musical. Contudo, foi o flautistaAlfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, que consolidou o choro como formamusical precisa.

    Pixinguinha conferiu personalidade ao choro, edificando-ocomo um gnero musical. A partir da herana dos chores do sculo XIX e da tradio afro-brasileira, produziu a mais importante obrachorstica de todos os tempos. A habilidade na flauta fez das suasinterpretaes o apogeu da histria da flauta brasileira. Comocompositor do gnero nos deixou incontveis preciosidades: Sofres porque queres, Naquele Tempo, Um a Zero, Carinhoso, Rosa.35

    Considero que Pixinguinha extrapola, para a msica brasileira, os limites do choro.Todavia, sua importncia para o gnero reside no fato de o msico ter sido igualmente bemsucedido como instrumentista, compositor e improvisador. Em outras palavras, percorreutodas as formas de choro com uma inventividade ainda hoje imbatvel.

    Tocado por msicos amadores ou profissionais, em sua maioria funcionrios

    pblicos, os chores durante a chamada poca de ouro da msica brasileira (1930-1945)viram-se reduzidos a meros acompanhantes das estrelas do rdio, a despeito do enormesucesso de Carinhoso36, cano que se imortalizaria pela interpretao magistral de OrlandoSilva.

    Longe de morrer ou sumir de cena, o choro continuou sendo tocado a despeito dosucesso de gneros musicais como o samba e mais tarde a bossa-nova. Nesse contexto,talvez seu maior defensor e divulgador tenha sido Jacob do Bandolim que desde 1933quando estria como msico profissional at sua morte em 1969, militou pela manutenodo gnero deixando um legado que mais tarde se firmaria como um dos mais ricos dahistria da msica instrumental brasileira.

    35 DINIZ, 2003, op. cit., p. 26-27.36 Para maiores detalhes sobre a gnese da imortal composio de Pixinguinha ver SEVERIANO, Jairo;MELLO, Zuza Homem de. A cano no tempo: 85 anos de msicas brasileiras, vol. 1: 1901-1957. So Paulo:Ed. 34, 1977.

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    Nesse sentido, o texto do socilogo Adalberto Paranhos, A inveno do Brasil comoterra do samba: os sambistas e sua afirmaosocial37 exemplar. Nessa empreitada oautor busca examinar:

    O discurso musical de compositores e intrpretes da msica popular brasileira industrializada, entre o final dos anos 20 emeados dos 40 do sculo XX, perodo que cobre desde o surgimentodo samba carioca at sua consolidao como expresso musical debrasilidade.38

    Somente na dcada de 1970 o gnero comeou a ser retomado e repensado pormsicos e intelectuais, num momento especial da histria do choro, como comentaMargarida Autran.

    S a partir de 73, quando o show Sarau, de Paulinho da Viola,dirigido por Srgio Cabral, apresentou Zona Sul carioca ovirtuosismo do tradicional conjunto poca de Ouro, acompanhante de Jac do Bandolim, o choro comeou a interessar um outro tipo de platia:

    Esse tal de choro um barato. Dava o maior p emWoodstock, escutou Srgio Cabral de um jovem espectador. Emnovembro de 75, estimulados pela receptividade de Sarau, Srgio,Paulinho da Viola, Albino Pinheiro e Juarez Barroso criaram o Clubedo Choro, no Rio, promovendo concertos que reuniam chorestradicionais, grupos recm-formados por msicos jovens einstrumentistas de formao erudita, como o Quinteto Villa-Lobos e o pianista Artur Moreira Lima, que estava ento descobrindo ovirtuosismo de Ernesto Nazareth.39

    Foi nesse contexto que nasceu o Clube do Choro de Braslia, fundado em 1977, a

    partir de reunies informais entre msicos como Waldir Azevedo, Odette Ernest Dias,Avena de Castro e outros chores. Considerada a entidade mais importante do gnero, o

    37PARANHOS, Adalberto. A inveno do Brasil como terra do samba: os sambistas e sua afirmao social. Histria, So Paulo, v. 22, n. 1, p. 81-113, 2003.38 Idem, p. 83.39AUTRAN, Margarida. Renascimento e descaracterizao do choro. In: BAHIANA, Ana Maria et al. Anos70. 1. Msica popular. Rio de Janeiro: Europa, 1979 1980. p. 66.

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    Clube do Choro de Braslia atualmente presidido pelo jornalista e msico Henrique LimaSantos Filho, o Reco do Bandolim, que comenta a relao da cidade com o gnero:

    Em Braslia, exatamente na dcada de 70, havia ummovimento muito forte do comeo do chorinho. O comeo propriamente dito foi com a vinda dos funcionrios pblicos do Rio para c, na dcada de 60, com a transferncia da capital, que veiomuita gente ligada ao chorinho. Mas na dcada de 70, especialmente,eles comearam se encontrar aqui em Braslia e se reunir na casa deum, na casa de outro.40

    Reco do Bandolim lembra queo choro cresceu no Rio de Janeiro sob a fiscalizao dos velhoschores. Ele cresceu muito ali nos padres do choro tradicional, porque os antigos estavam ali. Foi diferenteem Braslia,onde cresceu solto, sem nenhum tipo de fiscalizao, choro livre, completamente livre.O msico

    salienta queem Braslia ns temos a sorte de ter essa cidade que rene pessoas de todos os lugares. Issoresulta evidentemente, numa riqueza no apenas na rea da msica, mas em qualquer rea da cultura.41

    E assim, Braslia, um dia j chamada de capital do rock, por abrigar bandas comoPlebe Rude e Legio Urbana, conhecida atualmente como celeiro de bons instrumentistas,a exemplo do bandolinista Hamilton de Holanda, que, junto do irmo e violonista FernandoCsar, forma o Dois de Ouro, um dos mais celebrados duos do gnero no Brasil.

    Desta relao entre o choro e Braslia surgiu esta dissertao que, como foi ditoanteriormente, um estudo de caso sobre o Clube do Choro de Braslia. O objetivo central

    analisar a relevncia e o sentido do trabalho desempenhado em Braslia para odesenvolvimento da linguagem chorstica. Em suma, procuro responder pergunta: se oClube do Choro de Braslia a instituio mais importante do gnero no Brasil, quais sosuas contribuies para a sonoridade que o inspirou?

    O primeiro captulo da dissertao diz respeito histria do Clube do Choro deBraslia, resgatada em artigos de jornais locais e em entrevistas42 com msicos relacionadosa essa entidade cultural. Nele, identifico elementos que evidenciem as caractersticas quedistinguem esse clube de seus semelhantes. composto por duas partes, uma que enfatiza a

    40 BANDOLIM, Reco do apud NAVARRO, Luciana. Choro em ascenso na cidade. Correio Brasiliense,Braslia, 26 maio 2003. Caderno Braslia, p. 4.41 BANDOLIM, Reco do. Entrevistador: Rodrigo Eduardo de Oliveira. Braslia, 14 jun. 2005. Entrevistaconcedida na Secretaria do Clube do Choro de Braslia.42 No que concerne o trato das entrevistas, devo confessar que em alguns casos me senti honrado deentrevistar chores como Joel do Nascimento, msico cujo trabalho sou grande apreciador. No intuito deneutralizar, ou ao menos minimizar a influncia desse fator, a postura adotada para as entrevistas foi a detentar ser o mais objetivo possvel, enfocando somente questes pertinentes pesquisa.

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    formao e consolidao do Clube, assim como sua relao com o contexto cultural deBraslia, e outra que analisa sua atuao na cena chorstica atual.

    Esse captulo tem basicamente trs referenciais tericos que o norteiam. Dentreesses portos seguros, destaco o trabalho do antroplogo Antnio A. Arantes Neto43 acercade aspectos polticos e culturais da produo social do espao pblico paulista. O autoraborda as transformaes urbanas em So Paulo como recurso para discutir como se processa a vida social em meio paisagem urbana que, por sua vez, se forma e transformada por intermdio de prticas sociais e culturais dos cidados que compem amegalpole paulistana.

    Importa ressaltar que parte da anlise empreendida nesta investigao feita com base em artigos de jornais e programaes do Clube do Choro de Braslia, que trazem um

    discurso positivo no sentido estrito da palavra sobre Braslia, ancorado no sucesso dosmsicos brasilienses. Para lidar com esse discurso, recorro ao auxlio de Antnio Arantes,que apresenta uma viso de espao pblico pautada no princpio de que a sociedadeconstri sua prpria imagem, mascarando desigualdades e tenses vivenciadas na realidadeda experincia social.

    Por ltimo, mas no menos importante, est a contribuio da obra do historiadorJos Geraldo Vinci de Moraes44, cuja concepo de msica como expresso artstica mais prxima dos seres humanos exerceu forte influncia sobre minha compreenso do modocomo a arte dos sons se manifesta em nosso cotidiano45. Foi seu trabalho46 sobre produoe difuso da msica em So Paulo nos anos 1930 que me chamou mais ateno, comcerteza pelo fato de o autor dedicar uma parte de sua pesquisa aos chores e instrumentistas

    43 ARANTES NETO, Antnio Augusto.Paisagens paulistanas: transformaes do espao pblico.Campinas: Editora da Unicamp, So Paulo: Imprensa Oficial, 2000.44 MORAES, Jos Geraldo Vinci de. Histria e Msica: cano popular e conhecimento histrico. Revista Brasileira de Histria. So Paulo: Fapesp, v. 20, n. 39, 1999.45 A esse respeito Vinci afirma que sons e rudos esto impregnados no nosso cotidiano de tal forma que, namaioria das vezes, no tomamos conscincia deles. Eles nos acompanham diariamente, como uma autnticatrilha sonora de nossas vidas, manifestando-se sem distino nas experincias individuais ou coletivas. Issoocorre porque a msica, a forma artstica que trabalha com os sons e ritmos nos seus diversos modos egneros, geralmente permite realizar as mais variadas atividades sem exigir ateno centrada do receptor,apresentando-se no nosso cotidiano de modo permanente, s vezes de maneira quase imperceptvel. Idem, p.204.46 MORAES, Jos Geraldo Vinci de. Metrpole em sinfonia: histria, cultura e msica popular na So Paulodos anos 30. So Paulo: Estao Liberdade, 2000.

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    paulistanos que, como em outras cidades grandes, desempenharam importante papel nodesenvolvimento da msica popular urbana.

    particularmente inspirador o modo como Vinci analisa o circuito de consumocultural da So Paulo da dcada de 1930 e desvela as conseqncias da instabilidade profissional no meio artstico. Neste ponto, seus estudos se compatibilizam com osinteresses da minha investigao, uma vez que busco relacionar a cena cultural brasiliensecom a histria do Clube do Choro de Braslia.

    Alm disso, ao enfocar a questo da profissionalizao, Vinci no perde de vista ocarter informal que caracterizava o choro naquele momento, mencionando as reunies emcasa de amigos que mantinham a tradio do choro pulsante, mesmo que os msicos notivessem espao para tocarem e se desenvolverem. questes pertinentes a esta pesquisa,

    que procura tambm saber se o choro sofre hoje, tanto quanto no passado, com estacarncia.

    Caro leitor, j tempo de encerrar a introduo e embarcar numa viagem pelahistria do Clube do Choro de Braslia.

    CAPTULO 1

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    1.1) NAQUELE TEMPO47: ARTE, ARTISTAS E PODER ESTATAL

    Por trs dos grandes vestgios sensveisda paisagem, [os artefatos ou as mquinas,] por trs dos escritos aparentemente maisinspidos e as instituies aparentemente maisdesligadas daqueles que a criaram, so oshomens que a histria quer capturar 48.

    Marc Bloch

    A pesquisa em histria um desafio, mas tambm um processo de descobertas. No decorrer dainvestigao, a busca de vestgios sobre a histria do Clube do Choro de Braslia me conduziu a uma visita ao

    passado que despertou minha ateno para a realidade cultural da capital federal.Este captulo tem por objetivo retratar, com base em artigos de jornais e entrevistas, o circuito

    cultural brasiliense durante o momento da formao do Clube do Choro de Braslia. A inteno sintonizar oleitor com o contexto cultural brasiliense, evidenciando as tenses entre agentes culturais e rgos pblicos no

    fazer artstico de uma cidade em busca de uma poltica cultural. preciso ressaltar que o uso da referida documentao no se restringe somente ao interesse em

    pintar um quadro do perodo estudado. Trata-se de entender os discursos construdos pela imprensa acerca deacontecimentos que perpassam esta pesquisa.

    Sendo a histria a cincia dos homens no tempo, ento cabe ao historiador a tarefa de reconstruir aatmosfera em que ocorrem os acontecimentos que lhe despertaram inquietaes. Compete tambm ao

    pesquisador desta rea analisar as relaes humanas no tempo estudado, propiciando o questionamento dasociedade.

    Nesse sentido, a histria que aqui ser contada se desenrola em meio a adversidades como o ritmofrentico das mutaes do espao pblico, a dependncia da arte em relao ao Estado, a falta e/ou noutilizao de espaos culturais e, por fim, a busca de uma integrao da classe artstica brasiliense para

    discutir a cultura na cidade. um momento interessante da histria brasiliense, pois a cidade inventada por Lcio Costa e Oscar

    Niemeyer se transformava, denotando um conflito entre a cidade idealizada e a realizada. No contextocultural, esta tenso se manifesta na experincia de artistas locais, como os msicos ligados ao Clube doChoro de Braslia artistas que enfrentaram desafios para manterem acesa a chama do choro no Planalto

    Central.Voltemos a 1977, poca da histria brasileira marcada pelo incio do processo de transio do regime

    ditatorial para a democracia, um dos objetivos do governo do presidente Ernesto Geisel, imposto comosucessor de Emlio Garrastazu Mdice. Tempo de recesso econmica, era o fim do chamado milagreeconmico. A oposio crescia a despeito das medidas de represso do governo e o movimento por

    liberdades democrticas se espalhava pelo Brasil.49 Em Braslia, palco onde a histria desta dissertao encenada, o tempo era de transformar a cidade

    emuma mquina de humanizao da vida50, segundo as palavras do ento governador Elmo Farias, que

    47 Choro composto por Pixinguinha. A primeira gravao dessa msica (28/03/1934) foi realizada pelo pernambucano Luperce Miranda, rival de Jacob no trono de bandolinistas virtuoses brasileiros. Utilizo o ttulodessa composio como uma referncia ao panorama do circuito cultural da dcada de 70 em Braslia.48 BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o ofcio de historiador . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 54.49 VILLA, Marco Antnio.Sociedade e Histria do Brasil: a ditadura militar. Braslia: Instituto TeotnioVilela, 2001.50 A cidade tem que ser uma mquina de humanizao da vida.Correio Braziliense, Braslia, set. 1977.Cidade, p. 07.

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    almejava aproveitar uma certa predisposio de Braslia em se tornar um centro cultural para sanar ascarncias da populao nesse setor.

    Num contexto de mudanas, um discurso era ensaiado na capital federal: o da transformao deBraslia em centro irradiador de cultura. Contudo, o ideal j pensado pelo urbanista Lcio Costa, na prtica,convivia com outra realidade: a dificuldade em se fazer arte no Planalto Central. Nos jornais pesquisados, tal

    impresso recorrente:

    Mais uma vez, voltamos a falar da flacidez cultural de Braslia que vetaqualquer manifestao desse povo j meio calado, sem incentivo, por qualquer

    rgo, seja pblico ou particular. Esse silncio provm do isolamento, causado pelo fato de que a cidade faz uma arte elitista, mesmo que todo mundo faa arte.51

    idia de marasmo cultural se somavam problemas como a falta de incentivo cultura, a noutilizao de espaos destinados a apoiar a vida cultural da cidade, como o caso da Concha Acstica criada

    em 1963, localizada s margens do Lago Parano.

    Numa cidade com acontecimentos culturais to raros, ou insuficientes para fornecer um leque de razoveis opes, no se compreende que um local como

    a Concha Acstica no seja bem utilizado. A nica tentativa de utilizao feita pelos casais de namorados que procuram o estacionamento para uns momentos deretiro e sossego.52

    Nos depoimentos acerca do panorama cultural de Braslia, residem dois elementos pertinentes paraesta pesquisa: a questo da carncia de espaos culturais e a dependncia do Estado para a realizao de

    projetos artsticos dois aspectos que norteiam a histria dos msicos ligados ao Clube do Choro de Braslia,que, sua maneira, enfrentariam esses entraves, nem sempre com sucesso, mas sempre armados de muita

    paixo. No que concerne relao entre artistas e o poder estatal na cidade, o repentista Bero, msico que

    veio do Cear para Braslia em 1978, comenta que a poltica cultural era discriminatria.

    O grande problema em Braslia para os artistas : falta de respeito, unio

    e apoio dos rgos culturais. Aqui tem muito artista bom. Mas os rgos culturais,em primeiro lugar, precisam acreditar mais no artista, porque s se faz arte comdinheiro. Se o artista no tem dinheiro ele precisa recorrer Fundao, Funarte,Sesc, etc, e tem muita gente que trabalha nesses rgos e que no sabem nada de

    arte. Esto l s pra defender o deles. A poltica cultural tinha de ser mais de apoioao artista. H muita discriminao e preciso haver igualdade tanto para o artista

    local quanto para os que vm de fora.53

    A viso do choro Reco do Bandolim msico ligado histria do Clube do Choro de Braslia desdeseus primeiros acordes e que posteriormente assumiria a presidncia do clube - sobre a situao de Braslia

    naquele momento no muito diferente da apresentada por Bero.

    Eu vejo a coisa cultural... o seguinte, eu sempre tive, rapaz, assim, eusempre fiz uma observao sobre o negcio de Braslia, pelo fato, especialmente,naquela poca, que eu trouxe o primeiro trio eltrico pra Braslia, o Massa Real,

    ento o que eu percebi, enquanto na minha terra na Bahia, em geral, a pessoa que ia pra secretaria de cultura, ou em qualquer outro lugar, ou em Minas, ou no Rio de

    51 TURAZI, Deigma. Arte: por uma galeria aberta.Correio Braziliense, Braslia, fev. 1977. Gelia Geral, p.03.52 CONCHA acstica no completo abandono.Correio Braziliense, Braslia, jul. 1978. Vida Cultural, p. 14.53 ARTE, artistas e poder.Correio Braziliense, Braslia, fev. 1981, p. 01.

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    Janeiro, eram pessoas, ou no Maranho, em qualquer lugar, eram pessoasenvolvidas com o lugar (o secretrio de cultura, por exemplo, da Bahia, vamos falardo meu estado, um secretrio de cultura da Bahia, um cara que tem conhecimentodo que o carnaval, do que o ax, do que um trio eltrico, do que so aqueles

    movimentos religiosos, ele tem uma noo, e por isso ele vai pra uma profisso comoessa, mesma coisa com os outros estados) aqui em Braslia, at bem pouco tempoatrs, eu tambm notava que esses cargos de cultura, como secretrio de cultura e

    outros cargos, eram mais polticos, era algum que no tinha alcanadodeterminada meta e recebia como prmio de consolao ir pra uma secretaria decultura, ou uma coisa dessas. Ento, eu me ressentia muito disso, eu no via uma

    ligao, num sentido mais exato, quer dizer, da pessoa que estava na secretaria decultura com os movimentos que aconteciam em Braslia, eu sentia que uma pessoa

    estranha tivesse recebido aquilo ali como um prmio de consolao: , fica a, nessasecretaria de cultura.54

    Do ponto de vista governamental, a soluo estaria no repensar a poltica cultural da cidade. Assim,nasceu o Projeto Cultural Braslia, que visava criao de um plo cultural na cidade. No jornal Correio

    Braziliense, a notcia recebeu destaque, especialmente pelo fato de o flautista Jean Pierre Rampal ser a estrelado espetculo de lanamento do projeto.

    Com a presena do presidente da repblica, ministros de Estado,embaixadores e importantes autoridades dos meios scio-poltico e cultural, ser

    lanado o Projeto Cultural Braslia, iniciativa do ministro da Educao e Cultura,Eduardo Portella, com o objetivo de transformar a capital do Distrito Federal num

    dos principais plos culturais do pas.55

    perceptvel a idia de Braslia como centro cultural do pas. um discurso incorporado pelaimprensa com base na herana legada por Lcio Costa na sua crena de que Braslia, a seu tempo, seria capaz de tornar-se num foco de cultura das mais lcidas do pas.56 E para esta transformao foram traados planos,

    como os elaborados por Ferreira Gullar, autor do primeiro projeto cultural de Braslia.

    Bem, no projeto que eu tinha para Braslia, considerei que a cidade era a juno do que havia de mais novo e de mais velho no Brasil o urbanismo de LcioCosta e a arquitetura de Oscar Niemeyer de um lado, e do outro a cultura trazidacom a mo de obra do nordestino, o pau-de-arara. A Fundao devia, de um lado,trazer para Braslia o que havia de mais moderno e atual nos diferentes campos da

    cultura e por outro estimular em Braslia uma atividade de arte popular. Ento, essaarte de vanguarda seria trazida no se poderia esperar que isso pudesse nascer em

    Braslia de repente.57

    Como se pode perceber, a suposta vocao de Braslia como centro cultural convivia com umarealidade mais complexa, j que era uma cidade de apenas dezessete anos, cujos contornos culturaiscomeavam a tomar forma em meio tenso sobre o que a cidade realmente era e o que poderia ser.

    54 BANDOLIM, Reco do. Entrevistador: Rodrigo Eduardo de Oliveira. Braslia, 30 de maro de 2006.Entrevista concedida no quarto 701 do Hotel Manhattam Palace Hotel.55 PLO Cultural: Portela cumpre promessa criando centro artstico no DF.Correio Braziliense, Braslia, jun.1979. CB hoje, p. 01.56 POR vocao, Braslia ser centro cultural.Correio Braziliense, Braslia, abril 1980. Educao e Cultura, p. 14.57 GULLAR, Ferreira apud SEVERINO, Francisco. Fundao Cultural: 21anos a servio da cultura.Correio Braziliense, Braslia, jun. 1982, p. 01

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    O depoimento de Fausto Alvim, funcionrio da Fundao Pr-memria, faz aluso ao embate quemarca a questo cultural desse perodo em Braslia:

    H pouca conscincia de que Braslia seja o ponto de somatizao da psique brasileira. Fala-se muito que Braslia no tem cultura. Eu acho que isto no

    um fato: Braslia tem toda uma riqueza cultural. Agora, ela reflete o que acontececom o Brasil. Se ela tem um teatro com dificuldades porque o teatro no Brasil tem

    dificuldades e o mesmo acontece com as outras artes.58

    No tocante questo de espaos culturais, o descaso governamental era patente. Exemplo maiordesse fato era a situao de precariedade e abandono do Espao Cultural, hoje conhecido como Centro de

    Convenes, situado no setor de difuso cultural, que compreende a Torre de TV e a praa do Buriti localde funcionamento do Clube do Choro de Braslia at hoje.

    Como Braslia foi planejada em setores, o de difuso cultural tinha a funo de ser a alma cultural dacidade. A presena da Torre de TV, da sala Funarte e do prprio Clube do Choro so evidncias desse projeto.Acerca do descaso governamental que atingiu outros locais destinados produo e difuso de cultura, e mais

    tarde o Clube do Choro de Braslia, a reprter Maria do Rosrio Caetano comenta:

    A ao cultural nunca teve vez no Centro de Convenes. At 1983, quando Jos Tarcsio dos Santos assumiu o Detur, organismo subordinado chefia do

    Gabinete Civil, o espao parecia sem funo: era muito pequeno para a promoode grandes convenes, e apresentava-se sujo, mal cuidado e incapaz de ser um focode irradiao turstica. O planetrio entregue Fundao Cultural do DF seguiumostrando sua repetitiva programao. Nunca, em momento algum, lembrou seu

    famoso co-irmo, o Planetrio da Gvea/Rio.59

    Como se no bastasse, a situao se agravava, pois o problema no se restringia s limitaes delocais para os artistas levarem ao pblico suas produes; atingia tambm as possibilidades de atuao

    profissional de pessoas interessadas e vinculadas vida cultural da cidade. Marco Antonio Guimares, ex-assessor de Cinema da Fundao Cultural no perodo de 1971 a 1979, relata que o trabalho na Fundao

    Cultural era desenvolvido de baixo da seguinte ordem: Braslia uma cidade que precisa ser constantementedesaquecida tudo era meio subjetivo, mas a ordem era do Ministro da Educao e Cultura Ney Braga.

    Tinha um fantasma que dizia o que podia e o que no podia fazer.60

    Sinais do tempo? Certamente, tendo em vista que o pas ainda vivia sob a ditadura militar e seusresqucios ainda seriam perceptveis ao longo da histria poltica brasileira. No depoimento de Ary Parraios,artista do grupo mambembe Esquadro da Vida, a indignao perante a situao clara: para as instituiesculturais, em Braslia, quem faz cinema comunista, quem faz dana bicha, quem faz teatro prostituta e

    quem faz msica maconheiro. Depois dizem que eu que sou palhao s porque pinto a cara e doucambalhota.61

    No Planalto Central, em meio a uma sensao de vazio, descaso e marasmo, a classe artstica localtentava imprimir novos rumos realidade cultural da cidade. Entre esses artistas estavam os chores brasilienses, representados invariavelmente pelo Clube do Choro de Braslia, ento um grupo que se

    movimentava para popularizar o gnero em Braslia. O jornalista Irlam Rocha Lima, importante crticocultural de Braslia, estava atento a toda essa agitao e, em artigo publicado pelo Correio Braziliense,

    informava:

    58 ALVIM, Fausto apud SEVERINO, Francisco. A cultura da cidade no contexto nacional.Correio Braziliense, Braslia, jan. 1985. Atualidades, p. 22.59 CAETANO, Maria do Rosrio. Cultura quer o seu espao.Correio Braziliense, Braslia, jun. 1985.Atualidades, p. 01.60 GUIMARES, Marco Antnio apud SEVERINO, Francisco. Fundao Cultural: 21anos a servio dacultura.Correio Braziliense, Braslia, jun. 1982, p. 01.61 PARRAIOS, Ary apud SEVERINO, Francisco, idem, p. 02.

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    O pessoal que faz choro em Braslia est com propsitos (os melhores) de levar estegnero musical (brasileirssimo) a pblicos de todos os nveis (social/econmico/cultural),

    o que eu particularmente acho timo.Um esquema de apresentaes em todas as cidades satlites, por exemplo, comear

    a ser desenvolvido pelo Clube do Choro (agora empresado pela Publiarte) a partir deamanh, quando vai dar uma audio no Teatro Chapadinha, em Brazlndia. O show faz

    parte dos festejos comemorativos daquela cidade.62

    Na documentao pesquisada, a questo do marasmo cultural uma aura que perseguiria Braslia por muito tempo contrastada pelo esforo de unio da classe artstica da cidade, que gradativamente iaconseguindo vitrias a custo de muita luta pela transformao da cena cultural de Braslia. Aos poucos, foi

    ficando freqente a presena dos grandes nomes da Msica Popular Brasileira em Braslia. Semana passada foram Paulinho da Vila e Elton Medeiros. Agora (hoje e amanh) dois (quase mitos) da MPB: Nelson

    Cavaquinho e Clementina de Jesus.63 A participao dos chores brasilienses nessa luta pela dinamizao cultural transparece em vriosmomentos da documentao qual tive acesso. Acredito que a ateno dada ao Clube do Choro de Braslia

    pela mdia est associada situao do gnero naquele momento. Era a nova poca de ouro para o chorinho,tempo de renascimento do choro questo que ser abordada no prximo captulo.

    Acerca da participao dos chores no cenrio cultural da cidade, interessante notar que os msicosse apropriavam ou, melhor dizendo, aproveitavam qualquer espao que estivesse disponvel para tocar, para promover seu trabalho. Ambientes como a Escola Parque de Braslia, a Escola de Msica ou a praa JK, noConjunto Nacional, so alguns exemplos de locais onde muitos artistas tiveram a oportunidade de mostrar sua

    arte. Na poca em que o Clube do Choro enfrentava dificuldades financeiras para reforma da sua sede, a

    Escola de Msica serviu de palco para espetculos dos chores brasilienses. No prximo fim de semana, no auditrio da Escola de Msica, o Clube

    do Choro estar promovendo um desfile de chores, num show que vai reunirnomes como Nilo do Sax, Beth Ernest Dias, Jos de Aquino, Pernambuco doPandeiro, Reco do Bandolim, os solistas do grupo Vou Vivendo e Chorando

    Pelos Dedos. As duas noites de choro devero reunir todo pblico apreciadordo gnero, enquanto os instrumentistas cumprem um repertrio formado porobras de grandes nomes do choro no Brasil, entre eles Pixinguinha, Ernesto

    Nazareth, Luiz Americano, Waldir Azevedo, Jacob do Bandolim e Abel

    Ferreira.64

    significativa tambm a presena do Clube do Choro de Braslia em celebraes oficiais, como foi o

    caso da solenidade cvica em homenagem bandeira nacional em 1977. Novamente, l estavam os chorestocando sua arte e sendo divulgados pela imprensa local.O Clube do Choro de Braslia vem ganhando

    grande repercusso em todo o pas e, a cada dia, o nmero de adeptos vem aumentando, na maioria jovens.65 A respeito desse deslocamento dos chores no espao urbano da cidade, interessante notar, como j

    mostrou Antnio Arantes num outro contexto, por esse processo, ruas, praas e monumentos transformam-seem suportes fsicos de significaes e lembranas compartilhadas, que passam a fazer parte da experinciaao se transformarem em balizas reconhecidas de identidades, fronteiras de diferena cultural e marcos de

    pertencimento.66Portanto, essas localidades utilizadas pelos chores representam simultaneamente problema e

    solues, pois ao mesmo tempo em que compreendemsonhos e desejos de seres humanos concretos,abrigando muitas vezes projetos e conquistas compartilhadas67 , expem a necessidade de se repensar a

    62 LIMA, Irlam Rocha. O Choro nas satlites.Correio Braziliense, Braslia, jun. 1977. Gelia Geral, p. 03.63 LIMA, Irlam Rocha. Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus.Correio Braziliense, Braslia, maio 1977.Caderno Dois, p. 01.64 CLUBE do Choro promove show na Escola de Msica.Correio Braziliense, Braslia, abril 1982, p. 01.65 BRASLIA faz festa para a bandeira.Correio Braziliense, Braslia, jan. 1977, p. 11.66 ARANTES NETO, Antnio Augusto.Paisagens Paulistanas: transformaes do espao pblico.Campinas, So Paulo: Editora da Unicamp; So Paulo: Imprensa Oficial, 2000. p.106.67 Idem, p. 162.

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    poltica cultural local, uma vez que a cidade e seus indivduos mostravam-se carentes de espaos para adivulgao artstica.

    No que concerne transformao da cena cultural na cidade, o Correio Braziliense anunciava, em1977, o programa Vero Funarte, criao de Hermnio Bello de Carvalho,

    Uma solicitao macia de Braslia, ansiosa para rever alguns dosartistas que passaram pelo Projeto Pixinguinha. E nada melhor do que

    promover essa srie pautando nela artistas de Braslia - como o caso do Clubedo Choro, um dos melhores conjuntos do pas.

    Acho que marcar um encontro de Turbio Santos com Paulinho daViola, de uma D. Ivone Lara com Cartola, de Clementina de Jesus e Xang tudo isso justifica a nossa euforia em voltar a Braslia para v-la pulsar em

    ritmo de samba e choro.68

    Nessa atmosfera mista de efervescncia e impossibilidades, o esboo de uma suposta identidadecultural brasiliense ganhava seus primeiros traos, oriundos da diversidade cultural acentuada em Braslia

    desde o momento da sua construo, quando migraram, para o Planalto Central, principalmente, nordestinos,cariocas e mineiros.

    Este modo de pensar a cultura brasiliense est impregnado pela idia de Braslia ser uma espcie deespelho do pas, de conter em si manifestaes culturais de todas as regies do pas uma sedutora imagem

    que permeia ainda hoje o imaginrio brasiliense. O choro Reco do Bandolim, nascido na Bahia, reflete sobrea questo:

    Voc tem aqui, em Braslia, pessoas de todos os lugares. Isso, evidentemente,resulta em algo Braslia uma jovem senhora, de 1960 pra c, tem quarenta e cinco

    anos, quer dizer, voc comea a ver agora uma gerao e uma produo tipicamente de Braslia. Eu acho que ela comea a tomar forma como uma coisa completamente distintade todos os lugares do Brasil, porque fruto de uma qumica, de uma mistura de todos os

    lugares do Brasil. muito comum, por exemplo, voc ir a Minas, que tem uma culturamuito forte, voc ver l cultura mineira; voc vai a Bahia, tem uma cultura muito[...];voc vai ao Rio Grande do Sul, voc v aquela cultura gacha; voc chega aqui em

    Braslia, voc tem uma coisa misturada, uma coisa [...] em democracia, livremente.69

    Esta pesquisa no tem o intuito de investigar o fenmeno de surgimento de uma representao daidentidade brasiliense, contudo indcios desse processo podem ser rastreados no modo como o choro tocadoem Braslia, porque existem sotaques regionais que formam ramificaes na rvore genealgica da linguagem

    chorstica.70 Mas ser que essa viso era partilhada por todos? E mesmo se fosse, ser que no existiriamconflitos entre os diferentes tipos de cultura?

    Seja como for, os chores seguiam seu curso, sem deixar tambm de se preocupar com questesmuito concretas, como o problema da profissionalizao. Foi quando um grupo de msicos se reuniu emArax, Minas Gerais, em 1985, para discutir reinvidicaes fundamentais para a categoria, como direitos

    autorais, mercado de trabalho, relao com o Estado e controle de venda e produo de discos. Era o PrimeiroEncontro da Msica Popular Brasileira, que produziu a Carta de Arax, que no foi ignorada pela comunidadeartstica de Braslia. Ao contrrio, o contedo do documento teve grande receptividade na capital brasileira.

    Os chores aprovaram o documento, pois a questo do mercado de trabalho dizia respeito consolidao e ampliao de espaos culturais, questo cara para a comunidade artstica de Braslia. Na

    poca, Reco do Bandolim defendiaa criao de programas com artistas locais, principalmente nas rdiosFMs, pois atinge justamente o pblico da cidade em que ela funciona.71

    68 CARVALHO, Hermnio Bello de apud LIMA, Irlam Rocha. Vero Funarte ou samba e choro no Planalto.Correio Braziliense, Braslia, fev. 1979, p. 03.69 BANDOLIM, Reco do. Entrevistador: Rodrigo Eduardo de Oliveira. Braslia, op. cit.70 Para uma reflexo sobre essa temtica, ver captulo Canhoto da Paraba e o choro nordestino no livroCAZES, Henrique.Choro:do quintal ao Municipal. So Paulo: Ed. 34, 1998. p. 147-152.71 BANDOLIM, Reco do apud LIMA, Irlam Rocha. Msicos de Braslia aprovam Carta do Arax.Correio Braziliense, Braslia, mar. 1985. Atualidades, p. 02.

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    Nessa trama, em que artistas locais e a cultura pediam espao no Planalto Central, est entrelaada ahistria do Clube do Choro de Braslia, uma histria que comea a partir de encontros informais entre

    msicos apaixonados e compromissados com o choro, tradio musical que se enraizava em Braslia, comoveremos a seguir.

    1.2) CHORO DE MEMRIAS72: HISTRIA DO CLUBE DO CHORO DE BRASLIA

    Na natureza do cerrado, todo dia primavera. Um olhar atento na paisagem revela belezasescondidas na vegetao retorcida e seca por conta de meses sem chuva. Uma dessas maravilhas so as

    plantas do cerrado que, para sobreviverem s condies que a natureza oferece, desenvolvem estratgias deadaptao.

    Entre essas plantas, a flor-do-cerrado talvez seja a mais bonita, por causa de suas cores ou formas,mas no s isto que a torna especal. Ao contrrio do que muitos pensam, a flor no serve apenas para

    embelezar ou perfumar, mas tambm para gerar frutos.Penso no Clube do Choro de Braslia como uma flor-do-cerrado, pois, contrariando todas as foras

    que impediam o desenvolver da arte na capital brasileira, os msicos que semearam a arte do choro na cidadeacabaram por gerar frutos que amadureceriam o gnero em Braslia, tornando-a referncia no contexto

    nacional.As circunstncias em Braslia, no que tange produo e divulgao artstica, no eram favorveis,

    porm, entre circunstncias propcias e verdadeiros entraves, o Clube do Choro de Braslia ou, melhordizendo, o choro vingou no Planalto Central e a imprensa local no deixou de perceber esse movimento

    chorstico, conforme Irlam Rocha Lima relata: Houve um tempo em que pelo menos, de ms em ms, surgia em

    Braslia um novo grupo de rock. Bastava que alguns amigos conseguissemdescolar uma guitarra, um baixo e uma bateria, para logo formar um conjunto,que saa por a fazendo barulho, infernizando a vida dos outros. No meio desta

    enxertada de grupos de rock, porm, alguns desenvolveram trabalhos bemrazoveis, inclusive com uma certa criatividade. O Bueiro, a Margem, o Portal,

    estiveram entre estes. Mas, agora os tempos so outros. O pessoal que transa msica na

    cidade est mais ligado em nossa realidade cultural e descobriu que fazermsica popular brasileira uma boa. D um tremendo p.

    Ano passado, todo mundo saudou com entusiasmo a fundao do Clubede Choro de Braslia. O clube nasceu, cresceu e hoje uma das mais agradveis

    realidades brasilienses.73

    No depoimento de Irlan Rocha Lima, uma observao importante deve ser feita. Datado de 1977,esse artigo sugere que o Clube do Choro de Braslia nasceu em 1976. Entretanto, no foi encontrado em

    jornais locais desse perodo nenhuma informao sobre a fundao do clube nesse ano. A data de registrooficial do clube efetivada no dia 9 de setembro de 1977.74

    Mas como o choro chegou em Braslia?Conforme a literatura consultada, entrevistas concedidas e artigos de jornais, o choro chegou em

    Braslia em 1960, na bagagem de atores sociais, oriundos de regies como Rio de Janeiro e Nordeste, quemigraram para o Planalto Central para a construo da cidade e tambm quando ocorreu a transferncia da

    capital federal e nasceu Braslia.

    Penso que no poderia ter sido diferente, tendo em vista que a ento jovem capital, em termos de produo cultural prpria, nada desenvolvia. Mas num primeiro momento o choro progrediu na cidade em

    72 O ttuloChoro de memrias uma aluso trajetria do Clube do Choro de Braslia, cuja histria aquicomea a ser narrada. A msica, em questo, um choro de autoria do msico Paulinho da Viola compostoem Braslia. VIOLA, Paulinho da. Memrias Chorando. Op. cit.73 LIMA, Irlam Rocha. Choro Livre.Correio Braziliense. Braslia, mar. 1977. Gelia Geral, p. 03.74 A informao pode ser confirmada na home page do Clube do Choro de Braslia. Disponvelem:.

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    sintonia com alguns aspectos tradicionais que fazem parte da histria do gnero, ou seja, em reuniesinformais onde no faltavam comida e bebida.

    A interessante matria que segue sobre pessoas, fatos e lugares que contriburam para odesenvolvimento da arte em Braslia, desvela essa faceta da histria do choro na cidade.

    Cerveja, vatap e sarapatel: o indigesto trinmio, quem diria, teveimportante papel na criao de uma das mais importantes instituies

    brasilienses, o Clube do Choro. Explica-se: foi no apartamento da flautistaOdette Ernest Dias, na SQS 311, onde reunies regadas a cerveja deram origem

    entidade, fundada em 9 de setembro de 1977.E como o vatap entra na histria? Quem responde o veterano

    Pernambuco do Pandeiro: em abril de 1979, eu e Bide da Flauta, Eli doCavaco, Miudinho e outros msicos fomos tocar na casa do Dr. Evandro Pinto,

    no Park Way, que estava recebendo o ento governador Elmo Serejo Farias para um vatap.75

    No depoimento de Pernambuco do Pandeiro, msico cuja maestria pude ter a honra de presenciar noClube do Choro de Braslia, percebemos a presena dos comes e bebes que fazem parte da tradio do choro,

    mas tambm vestgios de um fator que acredito ser importante para o florescimento do choro na cidade: a proximidade do poder estatal.

    imprescindvel afirmar que no encaro tal aspecto como fator determinante para odesenvolvimento do choro em Braslia, contudo a presena dos chores at hoje em solenidades e eventos particulares, como o mencionado por Pernambuco do Pandeiro, indica a existncia de negociaes entre

    msicos e a classe poltica local.A festa tipicamente nordestina oferecida para integrantes do corpo diplomtico que ento se formavaem Braslia tambm representativa da estreita relao entre os chores e a elite brasiliense.

    O melhor da festa ficou por conta do nosso amigo, o mdiconeurologista Arnaldo Veloso, com o seu afinadssimo grupo Os Originais

    Choristas de Braslia, que gentilmente concordou em aceitar nosso convite, para mostrar aos nossos convidados um tipo de msica popular pouco

    conhecida dos estrangeiros que s escutam falar em samba.76

    Mas quem so os personagens centrais dessa roda de sociabilidades?Retornando aos msicos que impulsionaram o movimento chorstico em Braslia, o gnero comeou

    a brotar na cidade a partir do encontro entre msicos veteranos, em sua maioria chores funcionrios pblicoscariocas, com parceiros de amor no choro, como a pianista Neuza Frana, o cavaquinista Francisco Assis

    Carvalho, mais conhecido como Six, o percussionista Valci e a flautista Odette Ernest Dias.Acerca dos primeiros anos do Clube do Choro de Braslia, Antnio Lcio, um dos primeiros

    presidentes do Clube, revela quetudo comeou por volta de 76, quando um grupo do qual eu no participava pensou em abrir uma instituio que abrigasse instrumentistas que tocassem chorinho.77Conforme depoimento de Walcyr Tavares, funcionrio pblico aposentado que mora em Braslia

    desde 1960 e tambm um dos ex-presidentes do Clube nos seus primeiros anos, foi numa reunio,em casa da flautista Odette Ernest Dias, que surgiu a idia da criao do Clube do Choro de Braslia. O Bide da Flautae o citarista Avena de Castro eram alguns dos msicos que tomavam parte dessas reunies. O Avena viria a

    ser o primeiro presidente do clube.78

    75 39 Histrias.Correio Braziliense. Braslia, abril 1999. Caderno 2: Edio especial, p. 03.76 MENDES, M. As razes do nosso trabalho.Correio Braziliense. Braslia, ago. 1977. Segundo Caderno, p.05.77 LCIO, Antnio apud ARAJO, Carlos. Clube do Choro: Novo Presidente expe planos para o Bar dosChores.Correio Braziliense. Braslia, fev. 1982, p. 02.78 TAVARES, Walcyr apud LIMA, Irlam Rocha. Relquias Preservadas.Correio Braziliense. Braslia, jun.1997, p. 07.

  • 8/14/2019 Clube Do Choro

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    Dentre os chores veteranos que migraram para Braslia com a sonoridade no corao, podemosdestacar Bide da Flauta, Pernambuco do Pandeiro, Hamilton Costa, Avena de Castro, Tio Joo e o mestre docavaquinho Waldir Azevedo, que chegou em Braslia annimo, depois de perder uma filha num acidente de

    carro.Do encontro entre esses personagens nasceu o Clube do Choro de Braslia, inspirado no

    conterrneo carioca, primeiro do gnero no pas, que surgiu em 1975 com a proposta de relanar e promovernomes como Altamiro Carrilho e Abel Ferreira, aproveitando a crescente demanda do pblico pelo gnero.

    Afinal de contas, era tempo de renascimento do choro.Em Braslia, a idia de formar o clube surgiu do clarinetista carioca Celso Cruz e ento