co lo cara s su as co stas e o p ren d era co m garras in ... · O gato escuro lança um olhar...
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Ferrugem se contorceu e gritou, tentando escapar do agressor que se colocara às suas costas e o prendera com garras incrivelmente afiadas. Sentiu no pescoço os dentes pontudos. Ao longo de gerações, quatro clãs de gatos selvagens dividiram o território da floresta de acordo com as leis prescritas por seus ancestrais. Mas os gatos do Clã do Trovão correm sério perigo porque o malévolo Clã das Sombras se fortalece a cada dia. No meio dessa turbulência, aparece um “gatinho de gente”, Ferrugem, que pode vir a se tornar o mais valente de todos os guerreiros.
ASALIANÇAS
clãdotrovão
LÍDER ESTRELAAZUL–gataazul-acinzentada,defocinhoprateado
REPRESENTANTERABOVERMELHO–pequenogatoatartarugado,cominconfundívelcaudaavermelhada.APRENDIZ,PATADEPOEIRA
CURANDEIRA FOLHA MANCHADA – bela gata atartarugada escura, cominconfundívelpelosarapintado.
GUERREIROS (gatosegatassemfilhotes):
CORAÇÃODELEÃO – imponente gatomalhado, compelodouradodensocomojubadeleão.APRENDIZ,PATACINZENTA
GARRA DE TIGRE – gatãomarrom-escuro, de pelomalhado, comgarrasdianteirasexcepcionalmentelongas.APRENDIZ,PATANEGRA
NEVASCA–gatãobranco.APRENDIZ,PATADEAREIA
RISCADECARVÃO–gatodepelomacio,malhadodepretoecinza.
RABOLONGO–gatodepelodesbotadocomlistaspretas.
VENTOVELOZ–gatomalhadoeveloz.
PELE DE SALGUEIRO – gata cinza-claro, com excepcionais olhosazuis.
PELODERATO–pequenagatadepelomarrom-escuro.
APRENDIZES (com idade superior a seis luas, em treinamento para setornaremguerreiros)
PATADEPOEIRA–gatomalhadoemtonsmarrom-escuros.
PATACINZENTA–gatodelongopelocinza-chumbo.
PATA NEGRA – pequeno gato preto, magro, com um minúsculosinalbranconopeitoecaudadepontabranca.
PATADEAREIA–gatadepeloalaranjado.
PATADEFOGO–belogatodepeloavermelhado.
RAINHAS (gatasqueestãográvidasouamamentando)
PELEDEGEADA–combelíssimopelobrancoeolhosazuis.
CARARAJADA–bonitaemalhada.
FLORDOURADA–peloalaranjadoclaro.
CAUDASARAPINTADA–malhada,corespálidas,arainhamaisvelhadoberçário.
ANCIÃOS (antigosguerreiroserainhas,agoraaposentados)
MEIORABO–gatãomarrom-escuro,semumpedaçodacauda.
ORELHINHA – gato cinza, de orelhasmuito pequenas; gatomaisvelhodoClãdoTrovão.
RETALHO–pequenogatodepelopretoebranco.
CAOLHA – gata cinza-claro, membro mais antigo do Clã doTrovão,praticamentecegaesurda.
CAUDAMOSQUEADA–gatacascoatartarugada,belíssimaemoutrostempos,combonitopelosarapintado.
clãdassombras
LÍDER ESTRELAPARTIDA–gatomalhadodemarrom-escuro,pelolongo.
REPRESENTANTE PÉPRETO–gatãobranco,comenormespataspretasretintas.
CURANDEIRO NARIZMOLHADO–pequenogatodepelocinzaebranco.
GUERREIROS CAUDATARRACHO–gatomalhado,marrom.APRENDIZ,PATAMARROM
ROCHEDO–gatomalhadodeprateado.APRENDIZ,PATAMOLHADA
CARARASGADA–gatomarrom,comcicatrizesdebatalhas.APRENDIZ,PATAPEQUENA
MANTODANOITE–gatopreto.
RAINHASNUVEMDAAURORA–pequenagatamalhada.
FLORDELUZ–gatadepelopretoebranco.
ANCIÃOS PELODECINZAS–gatocinzentoemagro.
clãdovento
LÍDER ESTRELAALTA–gatobrancoepreto,decaudamuitolonga.
clãdorio
LÍDER ESTRELATORTA–gatoenorme,depeloclaroemandíbulatorta.
REPRESENTANTE CORAÇÃODECARVALHO–gatodepelomarrom-avermelhado.
gatosquenãopertencemaclãs PRESA AMARELA – velha gata de pelo escuro e cara larga e
achatada.
BORRÃO–gatinhoroliçoesimpático,depelopretoebranco,quemoranumacasaàbeiradafloresta.
CEVADA–gatopretoebranco,quemoranumafazendapertodafloresta.
PRÓLOGO
AMEIA-LUAbrilhasobreasrochasdegranitoliso,deixando-asprateadas.Osilêncioéquebradoapenaspelaondulaçãodaságuasinquietasdorionegroepelosussurrodasárvoresnaflorestamaisadiante.Há uma agitação nas sombras e, por todo lado, figuras ágeis e escuras
rastejamfurtivamentesobreaspedras.Garrasàmostrafaíscamàluzdaluaeolhosdesconfiadoscintilamcomoâmbar.Então,comoseobedecessemaumsinalsilencioso,ascriaturassaltamumassobreasoutras;derepente,gatoslutamaosgritos,dandovidaaogranito.Nomeiodofrenesidepelosegarras,umenormegatomalhadoelevaa
cabeçaemtriunfoaoimobilizarumoutro,cordexaxim,nosolo.–CoraçãodeCarvalho!–rugeoagressor.–Comoousacaçaremnossoterritório?AsRochasEnsolaradaspertencemaoClãdoTrovão!–Depoisdestanoite,GarradeTigre, este territóriopassa a ser apenas
outrazonadecaçadoClãdoRio!–respondeogatocordexaxim,cuspindoaspalavras.Um uivo de alerta, estridente e ansioso, chega da margem do rio: –
Cuidado!AívêmmaisguerreirosdoClãdoRio!–GarradeTigreseviraevêcorpos lustrosos e molhados saindo da água abaixo das rochas. OsguerreirosdoClãdoRio,encharcadoseemsilêncio,vãoparaabeiraeseprecipitamnabatalha,semnemsequersepreocuparemsacudiraáguadopelo.OgatoescurolançaumolharfuriosoparaCoraçãodeCarvalho.–Vocêe
seus guerreiros podem nadar como lontras, mas não pertencem a estafloresta!–Elearreganhaaboca,mostrandoosdentes,enquantoogatosedebatesobseucorpo.NomeiodoalaridosedestacaogritodesesperadodeumagatadoClãdo
Trovão. Um felino de pelo eriçado do Clã do Rio conseguiu imobilizar aguerreira marrom, deitando-a de barriga no chão. Agora ele lhe ataca opescoço;dabocaaindapingaaáguadorio.GarradeTigreouveo grito e soltaCoraçãodeCarvalho.Comumpulo
vigoroso,afastadagataoguerreiroinimigoeordena:–Depressa,PelodeRato, corra! – grita, antes de atacar o gato do Clã do Rio, que tinhaameaçadoaamiga.PelodeRatoobedece,tropeçandonasprópriaspatasetremendoporcausadeumprofundocortenoombro.Atrásdela,GarradeTigrecospecomraivaquandoogatodoClãdoRio
lheabreumafendanonariz.Osangueocegaporuminstante,maselesejogaparaafrentedequalquermaneiraecravaosdentesnapernatraseiradoinimigo.OgatodoClãdoRiodáumgritoagudoeconseguesesoltar.– Garra de Tigre! –O rugido vemde um guerreiro de cauda vermelha
comopeloderaposa.–Issoéinútil!SãoinúmerososguerreirosdoClãdoRio!–Não,RaboVermelho.OClãdoTrovão jamais será vencido – vocifera
Garra de Tigre, pulando para o lado do companheiro. – Este território énosso!–Osanguejorradeseufocinholargoenegro,eelesacodeacabeça,impaciente,espalhandogotasvermelhaspelasrochas.–OClãdoTrovãovaireconhecersuacoragem,GarradeTigre,masnão
podemos nos dar ao luxo de perder mais nenhum guerreiro – RaboVermelhoargumenta. –EstrelaAzul jamaisadmitiriaque seusguerreiroslutassem em situação tão adversa. Teremos outra oportunidade paravingar esta derrota! – Ele recebe com firmeza o olhar cor de âmbar deGarra de Tigre; dá um passo para trás e salta para a pedra à beira dafloresta.– Bater em retirada, Clã do Trovão! Em retirada! – ele grita.
Imediatamente os guerreiros se contorcem e conseguem se desvencilhardos adversários. Salivando e rosnando, recuam na direção de RaboVermelho. Pelo espaço de umabatida de coração, os gatos do Clã doRioficam confusos. Teria sido assim tão fácil vencer a batalha? Coração deCarvalhodáumgritodealegria.Assimqueoouvem,osguerreirosdoClãdoRioelevamasvozesesejuntamaoseurepresentante,comemorandoavitória.RaboVermelhoolhaparaseusguerreiros.Comummovimentorápidoda
cauda,dáosinal.OsgatosdoClãdoTrovãopenetramnamataemdireçãoàsRochasEnsolaradasedesaparecementreasárvores.GarradeTigreéoúltimo.Hesitaàbeiradaflorestaeolhaparatrás,para
ocampodebatalhamanchadodesangue.Seurostoéassustador;osolhos,fendas raivosas. Então, com um salto, ele se embrenha na florestasilenciosa,parasejuntaraoClã.
Énoite.Numaclareiradeserta,umagataolhaparao céu.Está sozinha; évelha e acinzentada. Em meio às sombras, ouve a respiração e sente ainquietudedosgatosquedormem.Umapequenagataatartarugadasurgedeumcantoescuro,compassos
rápidosesilenciosos.A gata cinza abaixa a cabeça num cumprimento. – Como está Pelo de
Rato?–mia.– As feridas são profundas, Estrela Azul – responde a atartarugada,
acomodando-sena gramaúmidapeloorvalho. –Mas ela é joveme forte;logovaificarboa.–Eosoutros?–perguntaEstrelaAzul.–Tambémvãoserecuperar.Estrela Azul suspira. – Temos sorte de não ter perdido nenhum dos
nossos guerreiros dessa vez. Você é uma curandeira talentosa, FolhaManchada.–Elavoltaa inclinaracabeça,observandoasestrelas.–Estouprofundamenteperturbadacomaderrotadehoje.DesdequemetorneiachefedoClãdoTrovão, jamais tínhamossidovencidosemnossopróprioterritório–murmura.–Sãotemposdifíceisparaonossoclã.Aestaçãodorenovoestáatrasada,enascerammenosfilhotes.Parasobreviver,oClãdoTrovãoprecisacontarcommaisguerreiros.– Mas o ano mal começou – observa calmamente Folha Manchada. –
Haverámaisfilhotesquandochegaraestaçãodasfolhasverdes.A gata cinza balança os ombros largos. – Talvez.Mas leva tempo para
adestrar os jovens para a guerra. Para o Clã do Trovão defender seuterritório,énecessárioquehajanovosguerreiroslogoquepossível.–VocêestápedindorespostasaoClãdasEstrelas?–miaFolhaManchada
comdelicadeza,seguindooolhardeEstrelaAzulecontemplandoafaixadeestrelasquepiscamnocéuescuro.–Éemhorasassimqueprecisamosdaspalavrasdeantigosguerreiros
paranosajudar.OClãdasEstrelassecomunicoucomvocê?–perguntaalíder.–Não;ejásepassaramalgumasluas,EstrelaAzul.Desúbito,umaestrelacadenteriscaocéusobreasárvores.Acaudade
FolhaManchadaestremeceeopeloaolongodaespinhasearrepia.AsorelhasdeEstrelaAzulseretesam,maselamantémsilêncioenquanto
FolhaManchadacontinuaafitarocéu.Depoisdealgunsinstantes,FolhaManchadaabaixaacabeçaesedirigea
EstrelaAzul:–FoiumamensagemdoClãdasEstrelas–sussurra.Seuolharsetornadistante.–Sóofogopodesalvarnossoclã.–Ofogo?–EstrelaAzulrepete.–Masofogoétemidoportodososclãs!
Comopodenossalvar?FolhaManchadabalançaa cabeça. –Não sei – admite. –Masessa foi a
mensagemqueoClãdasEstrelasdecidiupartilharcomigo.AlíderdoClãdoTrovãofixaosolhosazuiseclarosnacurandeiraemia:
–Vocênuncaseenganouatéagora,FolhaManchada.SeoClãdasEstrelasfalou,assimserá.Ofogovaisalvarnossoclã.
CAPÍTULO1
ESTAVAMUITO escuro. Ferrugem sentia que havia algo por perto. O jovemgatoarregalouosolhosaoobservaratentamenteavegetação.Nãoconheciao lugar, mas os odores estranhos o atraíam em direção às sombras. Abarriga roncava, lembrando-lhe a fome. Abriu ligeiramente a boca paradeixaroscheirosfortesdaflorestaalcançaremasglândulasolfativasdocéudaboca.Odoresbolorentosdehumodefolhasemisturavamcomoaromatentadordeumacriaturapequenaepeluda.De súbito, um risco cinza passou correndo por ele. Ferrugem ficou
parado, prestando atenção. Alguma coisa se escondia entre as folhas, amenosdeduascaudasdedistância.Sabiaqueeraumcamundongo–sentia,no fundo do pelo das orelhas, o rápido pulsar de um pequeno coração.Ferrugem salivou, tranquilizando o estômago barulhento. Em breve suafomeseriasatisfeita.Agachou-selentamente,preparando-separaoataque.Estavanadireção
contráriaàdovento;sabiaqueocamundongonãotinhaconhecimentodasuapresença.Ferrugemexaminoumaisumavezaposiçãodapresa,jogoubemosquadrispara trásepulou, levantandoas folhascaídasnochãodafloresta.O camundongo procurou um buraco no chão onde se esconder. Mas
Ferrugemfoimaisrápido.Conseguiuapanhá-lonoar,prendendoacriaturaindefesa com as garras afiadas, atirando-a para o alto e vendo-a cair nochão coberto de folhas. O camundongo aterrissou aturdido, mas vivo.Tentoucorrer,masogatovoltouaagarrá-lo.Jogou-olongemaisumavez,agoraumpoucomaisadiante.OcamundongoaindaconseguiudaralgunspassostrôpegosantesdeFerrugemalcançá-lo.Foiquando seouviuum fortebarulho,que fezFerrugemolhar à volta.
Com isso, o camundongo conseguiu se soltar.QuandoFerrugemsevirou,viu a presa disparar na escuridão entre as raízes entrelaçadas de umaárvore.Zangado,Ferrugemdesistiudacaça.Girouocorpo,comosolhosverdes
atentos, procurando descobrir o que era o barulho que lhe custara oalmoço.Oruído,comoodepedrinhascaindonumasuperfíciedura,tornou-semaisfamiliar.Ferrugemarregalouosolhos.Aflorestatinhadesaparecido.Eleseviunumacozinhaquenteeabafada,
enroscadonacama.A luzda luapassavapelas janelas, lançandosombras
nochãolisoeregular.Obarulhoforacausadopelasbolinhasderaçãodura,seca,colocadasnasuatigela.Ferrugemtinhasonhado.O gato levantou a cabeça e apoiou o queixo na lateral da cama. Sentia
umacoceiraincômodasobacoleira.Nosonho,tinhasentidoumacorrentedearfrescodespentearopelomacioondeacoleiranormalmentepinicava.Ferrugem rolou o corpo no chão e saboreou o sonho por mais algunsmomentos.Aindapercebiacheirodecamundongo.Eraaterceiravezdesdea lua cheia que tinha o mesmo sonho; e todas as vezes o camundongoescaparadesuasgarras.Ferrugem passou a língua nos lábios. Da cama sentia o cheiro pouco
apetitosodaração.Osdonossempreenchiamsuatigelaantesdeirdormir.O odor poeirento afugentou os cheiros prazerosos do sonho. Mas oestômago continuava roncando e o gato espichou as patas para acordar,atravessandoacozinhaparajantar.Acomidalhepareceusecaesemgosto.Relutante,Ferrugemengoliumaisumaporção.Afastou-sedatigelaesaiupela pequena passagem recortada na porta da cozinha, esperando que ocheirodojardimtrouxessedevoltaasensaçãodosonho.Doladodefora,aluabrilhava.Choviafino.Alerta,Ferrugempercorreuo
jardim bem cuidado, seguindo o caminho de cascalho iluminado pelasestrelas, sentindo as pedrinhas frias e cortantes sob as patas. Defecoudebaixo de um arbusto de folhas verdes brilhantes e floresmuito roxas,cujoperfumeexcessivamentedoceimpregnavaoarúmido.Ogatoretorceuolábioparaespantaraquelecheirodasnarinas.Em seguida, instalou-se no alto da cerca que marcava os limites do
jardim. Era um dos seus lugares favoritos, pois dali podia ver os jardinsvizinhosetambémadensaflorestaverdedooutrolado.Achuvatinhaparado.Atrásdele,agramacortadarenteestavabanhada
peloluar;mas,alémdacerca,aflorestaestavacheiadesombras.Ferrugemesticouopescoçoparainspiraroarúmido.Apeleestavamornaesecasobagrossapelagem,maselesentiaopesodasgotasdechuvaquepingavamnopeloavermelhado.Ouviu os donos chamando-o da porta dos fundos. Se fosse para casa,
seriarecebidocomcarinhosepalavrasgentis;seriaacolhidonacamadeles,ondeseenroscaria,ronronando,quentinhonadobradeumjoelho.Mas, dessa vez, Ferrugem ignorou as vozesdosdonos e voltou a olhar
paraafloresta.Ocheirofrescodavegetaçãotinhaseacentuadodepoisdachuva.
Derepente, sentiuopelodaespinhasearrepiar. Seriaalgumacoisa semexendo lá fora? Alguma coisa que o observava? Ferrugem arregalou osolhos, mas era impossível ver ou farejar qualquer coisa no ar escuro eimpregnadodocheirodasárvores.Levantouoqueixo,destemido;ficoudepé e espichouo corpo, cravando as garras na cerca enquanto esticava aspernasearqueavaascostas.Fechouosolhoseinalouocheirodaflorestamais uma vez. O odor parecia lhe prometer alguma coisa, atraindo-o nadireção das sombras sussurrantes. Tensionando osmúsculos, agachou-seporummomento.Puloucomlevezanadireçãodagramairregulardooutroladodacerca.Aopousar,oguizodopescoçosoounosilênciodanoite.–Aondevocêestáindo,Ferrugem?–umavozfamiliarmiouatrásdele.Ferrugemolhouparacima.Umjovemgatopretoebrancoseequilibrava
semjeitonacerca.–Olá,Borrão–Ferrugemrespondeu.–Vocênãovaientrarnafloresta,vai?–perguntouBorrão,arregalando
osolhoscordeâmbar.–Vousódarumaolhadinha–Ferrugemprometeu, remexendo-se com
certoincômodo.– Eu é que não vou com você. É perigoso! – disse Borrão, franzindo o
nariz negro para expressar seu desagrado. – Henry disse que uma vezentrou na floresta. – O gato ergueu a cabeça e apontou com o nariz nadireçãoalémdacerca,paraojardimondeHenrymorava.– Aquele gato gordo e velho nunca entrou na floresta! – Ferrugem
debochou.–Elemalsaiudopróprio jardimdesdea idaaoveterinário.Sópensaemcomeredormir.–Nãoébemassim.Eleapanhouumpapo-roxolá!–Borrãoinsistiu.–Seissoaconteceu,foiantesdeiraoveterinário.Eleagorareclamados
passarinhosqueperturbamoseucochilo.– De qualquer maneira – Borrão continuou, ignorando o sarcasmo
contidonomiadodoamigo–,Henrymedisseque,nafloresta,existetodotipodeanimaisperigosos.Enormesfelinos,selvagens,quecomemcoelhosvivosnocafédamanhãeafiamaspatasemossosvelhos!–Vousódarumaespiada–Ferrugemmiou.–Nãovoudemorar.–Depoisnãodigaquenãoavisei!–ronronouBorrão,queentãovirou-se,
pulandodacercaparaseujardim.Ferrugemsentounagramamaltratadaalémdacerca.Deuumalambida
nervosanoombro,perguntando-sequantohaviadeverdadenaspalavrasdeBorrão.De repente, seuolhopercebeuomovimentodeumapequena criatura,
quecorriaparabaixodeunsarbustos.Oinstintoofezseagachar.Devagar,umapatadepoisdaoutra,rastejou
paraafrente,nomeiodavegetação.Asorelhasseretesaram,asnarinasseaguçaram;sempiscar,foinadireçãodoanimal.Eleoviaclaramenteagora,sentadoentreos galhos farpados,mordiscandoumagrande sementequetinhaentreaspatas.Eraumcamundongo.Ferrugembalançouosquadrisdeum ladoparaooutro,preparando-se
parapular.Prendeuarespiraçãoparaevitarqueoguizovoltassea tocar.Estava tão empolgado que o coração acelerou. Era ainda melhor que osonho!Foiquandooestalorepentinodegalhosefolhassecasofezsaltar.Oguizoressoou,traiçoeiro,eocamundongoescapouvelozmentepelapartemaisespessadoemaranhadodosarbustos.Impassível,Ferrugemolhouàvolta.Viumaisadianteapontabrancade
umrabovermelhoepeludopassandoporumamoitadesamambaiasaltas.Ocheiroeraforteeestranho;tratava-se,semdúvida,deumcarnívoro;masnão era gato nem cachorro. Distraído, Ferrugem se esqueceu docamundongoeficouobservandocuriosamenteorabovermelho.Queriavê-lomelhor.Todos os sentidos de Ferrugem se aguçaram quando ele se pôs a
avançar. Então, percebeu outro barulho, que vinha de trás, mas pareciasurdo e distante. Girou as orelhas para trás para ouvir melhor. Seriampatas?,perguntou-se, semdesviaroolhardopeloestranhoevermelho;eseguiuemfrente,sorrateiro.FoisóquandoosomficoumaisclaroàssuascostaseasfolhasestalarammaispertoqueFerrugemsedeucontadequeestavaemperigo.A criatura o atingiu como uma explosão e Ferrugem foi jogado para o
ladoemumamoitadeurtigas.Elesecontorceuegritou,tentandoescapardo agressor que se colocara às suas costas e o prendera com garrasincrivelmente afiadas. Sentiu no pescoço os dentes pontudos. Encolheu ocorpo,retorcendo-sedosbigodesàcauda,semconseguirsesoltar.Poruminstanteseviuindefeso;ficouimóvel.Pensandorápido,jogou-sedecostasnochão.Porinstinto,sabiacomoeraperigosoexporabarrigamacia,maserasuaúnicachance.Teve sorte – a manobra pareceu funcionar. Ouviu um “uuufff” sob o
corpo, como se o agressor tivesse perdido o fôlego. Debatendo-se comviolência,Ferrugemconseguiuselibertar.Semolharparatrás,disparoudevoltaparacasa.Atrás dele, um barulho de patas avisava que o atacante não desistira.
Mesmocomasferidasdoendosobopelo,Ferrugemdecidiuqueeramelhorvirar-seeenfrentá-lodoquesernovamenteatacado.Paroucomumaderrapadae,girando,encarouacriaturaqueoperseguia.Eraoutrojovemgato,depelocinza,grossoefelpudo,compernasfortese
rosto largo.Num tique-taquede coração, Ferrugempercebeupelo cheiroquesetratavadeummachoepressentiuaforçadeseusombrosfirmessobapelagemmacia.Foiquandooagressorpulousobreeleatodavelocidade.Pego de surpresa pela guinada de Ferrugem, o gato, atordoado, seesborrachou.O impacto deixou Ferrugem sem fôlego, e ele cambaleou. Mas logo se
colocoudepéearqueouascostas,eriçandoopeloalaranjado,prontoparapular em cima do outro gato. Mas o agressor simplesmente sentou ecomeçoualamberapatadianteira,semnenhumsinaldeagressividade.Ferrugem sentiu-se estranhamente desapontado. Cadamembro do seu
corpoestavatenso,prontoparalutar.–Ei,vocêaí,seugatinhodegente!–miou,animado,ofelinocinza.–Para
umgatodoméstico,vocêatéquelutamuitobem!Ferrugemmanteve-senapontadospésporuminstante,aseperguntar
sevoltavaaatacarounão.Maslembrou-sedaforçadaspatasdoagressorquando fora imobilizadonochão.Entãoabaixou-se, soltouosmúsculoseesticou as costas. – E vou lutar com você de novo se for necessário –rosnou.– A propósito, meu nome é Pata Cinzenta – continuou o gato cinza,
ignorando a ameaça de Ferrugem. – Estou em treinamento para ser umguerreirodoClãdoTrovão.Ferrugem permaneceu em silêncio. Não entendia o que aquele Cinza
alguma coisa estava miando, mas sentiu que a ameaça tinha passado.Disfarçousuaconfusãoinclinando-separalamberopeitoeriçado.–Oqueumgatinhode gente comovocê está fazendona floresta?Não
sabequeéperigoso?–perguntouPataCinzenta.–Sevocêéacoisamaisperigosaqueaflorestatemparaoferecer,acho
quepossoencarar–Ferrugemdesdenhou.Pata Cinzenta olhou-o por ummomento, estreitando os grandes olhos
amarelos.–Ah,estou longedeseromaisperigoso.Seeu fosseaomenosmeio-guerreiro,teriaferidodeverdadeumintrusocomovocê.Ferrugem sentiu um arrepio demedo ao ouvir as terríveis palavras. O
queéqueaquelegatoqueriadizercom“intruso”?–Dequalquermaneira–miouPataCinzenta,usandoosdentesafiados
paratirarumpedaçodegramaentreasgarras–,nãoacheiquevaliaapenamachucá-lo.Estánacaraquevocênãopertenceaumdosoutrosclãs.–Outrosclãs?–Ferrugem,confuso,repetiu.PataCinzentadeuumassovio impaciente.–Vocêdeve terouvido falar
dosquatroclãsdeguerreirosquecaçamnestaárea!EupertençoaoClãdoTrovão.Os outros clãs estão sempre tentando roubar aspresasdonossoterritório, principalmente o Clã das Sombras. Eles são tão ferozes queteriamcortadovocêemtiras,semnenhumapergunta.PataCinzentaparoude falarpara cuspir comraiva e continuou. –Eles
vêm para tomar as presas que são nossas por direito. É tarefa dosguerreiros do Clã do Trovão mantê-los fora do nosso território. Quandoterminarmeutreinamento,tambémsereitãoperigosoquefareiosoutrosclãs tremeremnaspelespulguentas. Elesnão vãoousar se aproximardenós!Ferrugem estreitou os olhos. Aquele devia ser um dos gatos selvagens
sobre os quais Borrão o tinha alertado! Vivendo sem luxo na floresta,caçando e lutando uns contra os outros pelo último pedaço de comida.Mesmo assim, Ferrugem não sentiu medo. Na verdade, era difícil nãoadmirar aquele gato confiante. – Você ainda não é um guerreiro? –perguntou.– Por quê? Pensou que eu fosse? – Pata Cinzenta miou, orgulhoso,
balançandoacabeçalargaepeluda.–Faltaaindamuitotempoparaeuserum guerreiro de verdade. Primeiro preciso passar pelo treinamento. Osjovens precisam ter seis luas de idade antes de sequer começar otreinamento.Hojeéaminhaprimeiranoitecomoaprendiz.– Por que você não arruma um dono com uma casa bonita e
aconchegante?Suavidaiasermuitomaisfácil–Ferrugemargumentou.–Existemmuitaspessoasque ficariamcomumgatocomovocê.Basta ficarunsdiasnumlugarondepossamvê-lo,fazendocaradefome…–Eelasvãomedarparacomerbolinhasqueparecemcocôdecoelhoe
mingau mole! – Pata Cinzenta interrompeu. – Nem morto! Não consigopensaremnadapiordoqueserumgatinhodegente!Elesnãopassamde
brinquedos dos Duas-Pernas! Comendo umas coisas que não parecemcomida, defecando em uma caixa de areia, colocando o nariz na rua sóquando osDuas-Pernas permitem? Isso não é vida! Aqui é selvagem, é aliberdade.Entramose saímosnahoraquedána telha. –Terminoua falacom uma cusparada orgulhosa e miou com malícia. – Se nuncaexperimentouumcamundongofresquinho,vocêaindanãoviveu.Jáprovouumcamundongo?–Não–Ferrugemadmitiu,meionadefensiva.–Aindanão.– Acho que nunca vai entender – Pata Cinzenta suspirou. “Você não
nasceu selvagem, o que faz uma enormediferença. É preciso nascer comsangue de guerreiro nas veias ou sentir o vento nos bigodes. Gatos quenascemnosninhosdosDuas-Pernasnãopodemsentiramesmacoisa.Ferrugem lembrou como se sentira no sonho. – Isso não é verdade! –
miou,indignado.PataCinzentanãocontestou.Derepenteinterrompeuumalambidapelo
meioe,comapataaindalevantada,cheirouoar.–Farejogatosdomeuclã– murmurou. – É melhor você ir. Eles não vão gostar de encontrá-locaçandononossoterritório!Ferrugemolhouàvolta,perguntando-secomoPataCinzentapodiasaber
que um gato se aproximava. Ele não conseguia perceber nenhum cheirodiferentenabrisaquerecendiaafolha.MasseupelosearrepioucomotomdeurgênciadavozdePataCinzenta.–Depressa!–PataCinzentavoltouasussurrar.–Corra!Ferrugemsepreparouparapularnosarbustos,semsaberparaquelado
eraseguroseatirar.Mas já era tarde demais. Ouviu às suas costas um miado firme e
ameaçador.–Oqueestáacontecendoaqui?Ferrugem se voltou e viu uma grande gata cinzenta surgindo
majestosamente da vegetação. Era magnífica. Fios brancos lhe saíam dofocinhoeumafeiacicatrizdividiaopelodosombros;masapelagemcinzaelisabrilhavacomoprataàluzdalua.–EstrelaAzul!–AoladodeFerrugem,PataCinzentaagachoueestreitou
osolhos.Inclinou-seaindamaisquandoumoutrogato,douradoemalhado,entrounaclareira,logoatrásdagata.–VocênãodeveficartãopertodoLugardosDuas-Pernas,PataCinzenta!
–grunhiu,zangado,ogatodourado,apertandoosolhosverdes.–Eusei,CoraçãodeLeão,medesculpe–dissePataCinzenta,abaixando
osolhosnadireçãodaspatas.Ferrugem fez como Pata Cinzenta e agachou no chão da floresta,
crispandoasorelhasnervosamente.Aquelesgatostinhamumquêdeforçaque ele nunca tinha visto em nenhum de seus amigos do jardim. TalvezBorrãotivesserazãoemadverti-lo.–Queméele?–agataperguntou.Ferrugem se encolheu sob o olhar de Estrela Azul. Os olhos azuis
penetrantesofizeramsentir-seaindamaisvulnerável.–Elenãoéumaameaça–PataCinzentamiourapidamente.–Nãoéum
guerreiro de outro clã, apenas um gato de estimação dos Duas-Pernas eviveforadosnossosterritórios.Apenas um gato de estimação dos Duas-Pernas! As palavras encheram
Ferrugem de raiva, mas ele segurou a língua. O olhar de advertência deEstrelaAzul lhedissequeelaperceberaaraivanosolhosdele;Ferrugemdisfarçou.–EstaéEstrelaAzul,alíderdomeuclã.–PataCinzentacochichoupara
Ferrugem. – Ele é Coração de Leão, meu mentor; é ele que está metreinandoparaserumguerreiro.– Obrigado pela apresentação, Pata Cinzenta – miou Coração de Leão
comfrieza.EstrelaAzul continuava a encarar Ferrugem. –Você luta bempara um
gatodeestimaçãodosDuas-Pernas–miou.FerrugemePataCinzentatrocaramolharesconfusos.Comoelasabia?–Estivemosobservandovocêsdois.Queríamossabercomovocêlidaria
comuminvasor,PataCinzenta.Vocêoatacoucombravura.PataCinzentaficouagradecidopeloelogiodalíder.– Sentem os dois! – miou Estrela Azul. Em seguida, olhando para
Ferrugem, acrescentou: – Você também, gatinho de gente. – Ferrugemsentoudeimediato,enfrentandotranquilamenteoolhardagata.– Você reagiu bem à investida, gatinho de gente. Pata Cinzenta émais
forte,mas você soubeusar da inteligência para se defender. E o encarouquandoeleoperseguiu.Nuncatinhavistoumgatinhodegentefazerisso.Ferrugem fez um gesto de agradecimento, surpreso por aquele elogio
inesperado.Aspróximaspalavrasodeixaramaindamaisimpressionado.– Tentei imaginar como você se comportaria aqui, fora do lugar dos
Duas-Pernas. Patrulhamos esta fronteira o tempo todo; vi você muitas
vezessentadonacerca,olhandoparaafloresta.Eagora,finalmente,ousoucolocaraspatasaqui.–EstrelaAzul fitou-o,pensativa.–Parecequevocêtem mesmo uma habilidade natural para caçar. Olhos agudos. Teriaagarradoaquelecamundongosenãotivessehesitadotanto.–M-mesmo?–Ferrugemgaguejou.CoraçãodeLeãosemanifestou.Seumiadoprofundoerarespeitoso,mas
insistente. – Estrela Azul, isso é um gatinho de gente. Não devia estarcaçandono territóriodoClãdoTrovão.Mande-oembora,devoltaparaacasadosDuas-Pernas!Ferrugemarrepiou-secomaspalavrasdedispensadeCoraçãodeLeão.–
Me mandar para casa? – miou, impaciente. Ficara orgulhoso com aspalavras deEstrelaAzul. Ela o notara, tinha se impressionado comele. –Massóvimaquiparacaçarumoudoiscamundongos.Tenhocertezadequehábastanteparatodos.Estrela Azul, que tinha virado a cabeça para ouvir Coração de Leão,
voltou-separaFerrugem.Osolhosazuisbrilhavamcomraiva.–Nuncahábastanteparatodos–disparou.–Sevocênãotivesseumavidafolgada,comcomidaàvontade,saberiadisso!FerrugemficouconfusocomasúbitaraivadeEstrelaAzul,masumúnico
olharparaorostoapavoradodePataCinzentabastou-lheparasaberquefalara demais. Coração de Leão colocou-se ao lado da líder. Os doisguerreirospareciammaioresagora.AomiraroolharameaçadordeEstrelaAzul,Ferrugemviuseuorgulhodesaparecer.Nãoestavalidandocomgatosque se aconchegam em frente a lareiras – aqueles eram felinos maus efamintos, que provavelmente iriam terminar o que Pata Cinzenta tinhacomeçado.
CAPÍTULO2
–EENTÃO?–SIBILOUEstrelaAzul,comorostoaumcamundongodedistânciadodele.CoraçãodeLeãomantevesilêncio,enquantoseagigantavadiantedeFerrugem.Ele abaixou as orelhas e encolheu-se sob o olhar frio do guerreiro
dourado.Seuspelosseeriçavamdemaneiraincômoda.–Nãosouameaçaparaoseuclã–miou,comosolhospostosnaspatas,quetremiam.–Você ameaça nosso clã quando toma a nossa comida – uivouEstrela
Azul.–VocêtemmuitacomidanoninhodosDuas-Pernas.Vemaquisóparacaçarporesporte.Masnóscaçamosparasobreviver.A verdade contida nas palavras da rainha guerreira atingiu Ferrugem
comoumespinhoe,derepente,elecompreendeuaraivaqueEstrelaAzulsentia.Paroudetremer,sentou,empinouasorelhase,buscandoosolhosda gata com os seus, disse: – Ainda não tinha pensado no assunto dessamaneira.Sintomuito–miou,respeitoso.–Nãovoumaiscaçaraqui.EstrelaAzuldesarmouospelose fezumsinalparaCoraçãodeLeãose
afastar.–Vocênãoécomoosoutrosgatinhosdegente,Ferrugem–miou.O suspiro de alívio de Pata Cinzenta fez as orelhas de Ferrugem se
contraírem.ElesentiuaaprovaçãonavozdeEstrelaAzulepercebeuqueagata trocara um olhar significativo com Coração de Leão. Aquele olhar odeixou curioso. O que passava pela mente dos dois guerreiros? Calmo,perguntou:–Asobrevivênciaaquiémesmotãodifícil?– Nosso território cobre apenas parte da floresta – respondeu Estrela
Azul. – Competimos com outros clãs pelo que temos. E, este ano, com oatrasodaestaçãodorenovo,haveráescassezdepresas.–Égrandeoseuclã?–Ferrugemmiou,olhosarregalados.–Grandeosuficiente–respondeuEstrelaAzul.–Nossoterritóriopode
nossustentar,masnãohásobradepresas.– Então vocês todos são guerreiros? – miou Ferrugem. As respostas
cautelosasdeEstrelaAzulodeixavamcadavezmaiscurioso.FoiCoraçãodeLeãoquerespondeu:–Algunssãoguerreiros.Algunssão
jovensdemaisparaisso,outrosvelhosdemais,eoutrasaindasãoocupadasdemaisparacaçar,poiscuidamdosfilhotes.– E vocês todos vivem juntos e dividem as presas? – Ferrugem
murmurou, assombrado, sentindo-se um pouco culpado pela vida fácil e
egoístaquelevava.EstrelaAzulvoltoua fitarCoraçãodeLeão.Ogatodouradodevolveuo
olhar com firmeza. Por fim, ela mirou Ferrugem novamente e miou: –Talvezvocêpossadescobriressascoisasporsimesmo.OqueachadesejuntaraoClãdoTrovão?Ferrugemficoutãosurpresoquenãoconseguiafalar.EstrelaAzulcontinuou:–Sevocêvier,vaitreinarcomPataCinzentapara
setornarumguerreirodoclã.– Mas gatinhos de gente não podem ser guerreiros! – Pata Cinzenta
deixouescapar.–Elesnãotêmsanguedeguerreiro!A tristezanublouosolhosdeEstrelaAzul. – Sanguedeguerreiro–ela
repetiucomumsuspiro.–Muitosanguejáfoiderramadoultimamente.A gata fez silêncio e Coraçãode Leãomiou: – EstrelaAzul está apenas
oferecendo treinamentoavocê, jovemgato.Nãohágarantiade se tornarrealmenteumguerreiro.Podeacabarsendodifícildemaisparavocê.Afinal,estáacostumadoaumavidaconfortável.Ferrugemsentiu-seatingidopelaspalavrasdeCoraçãodeLeão.Giroua
cabeçaparaolhardefrenteogatodourado.–Então,porquemeofereceraoportunidade?Mas foi Estrela Azul que respondeu. – Você está certo em questionar
nossosmotivos,meu jovem.A verdade é que o Clã doTrovãoprecisa demaisguerreiros.– Entenda que Estrela Azul não faz essa oferta de maneira leviana –
advertiuCoraçãodeLeão.–Sequiserfazerotreinamentoconosco,teremosde levá-lo para o nosso clã. Ou você vive conosco e respeita nossoscostumesouterádevoltarparaolugardosDuas-Pernasejamaisretornar.Nãodáparavivercomumapataemcadamundo.Uma brisa fresca movimentou a vegetação, encrespando os pelos de
Ferrugem.Eletremeu,nãoporcausadofrio,maspelaempolgaçãoanteasincríveispossibilidadesqueseabriamdiantedele.–Vocêestápensandosevaleapenaabrirmãodesuavidaconfortávelde
gatinho de gente? – perguntou, delicada, Estrela Azul. – Mas percebe opreçoquevaipagarpelocalorepelacomida?Ferrugem olhou para ela, intrigado. Certamente o encontro com esses
felinoslheprovaracomosuavidaerafácilecheiadeluxo.–Possogarantirquevocêaindaéummacho–acrescentouEstrelaAzul
–,apesardofedordosDuas-Pernasquevemdoseupelo.–Oquevocêquerdizercomaindaéummacho?–VocêaindanãofoilevadopelosDuas-PernasparaoCorta-Gato–miou,
séria,EstrelaAzul. –Se isso tivesseacontecido, você seriabemdiferente.Nãoteriaficadotãoansiosoparalutarcomumgatodeclã!Ferrugem ficou confuso.De repente, pensou emHenry, que se tornara
gordo e preguiçoso desde a visita ao veterinário. Seria ao médico queEstrelaAzultinhasereferidocomooCorta-Gato?– O clã pode não ser capaz de lhe oferecer calor e comida fácil –
continuou Estrela Azul. – Na estação sem folhas, as noites na florestapodem ser cruéis. O clã vai exigir grande lealdade e trabalho duro. Vocêdeveráprotegê-locomaprópriavida,senecessário,ehámuitasbocasparaalimentar. Mas as recompensas são grandes. Você vai continuar sendomacho. Será treinadoàmaneirada floresta.Vai aprenderoqueé serumgatodeverdade.Aforçaeacamaradagemdoclãvãosempreacompanhá-lo,mesmoquevocêcacesozinho.AcabeçadeFerrugemgirava.EstrelaAzulpareciaestarlheoferecendoa
vida tentadoraqueele tantasvezesviveraemseussonhos;masseráquepoderiaviveraquilodeverdade?CoraçãodeLeãointerrompeu-lheospensamentos.–Venha,EstrelaAzul,
não vamos perder mais tempo aqui. Precisamos nos aprontar paraacompanhar a outra patrulha na lua alta. Garra de Tigre deve estar seperguntandooqueaconteceuconosco.–Levantou-seebalançouacauda,aguardando.–Espere–miouFerrugem.–Possopensarsobreaoferta?Estrela Azul olhou-o longamente e concordou. – Coração de Leão vai
estaraquiamanhãnosolalto–disse.–Dê,então,aresposta.Agatafezumpequenogestoe,emumúnicomovimento,ostrêsgatosse
viraramedesapareceramnavegetação.Ferrugempiscou.Voltouoolhar–empolgado, cheiodedúvidas–para
alémdassamambaiasqueocircundavam,atravésdacoberturade folhas,atéasestrelasquebrilhavamnocéuclaro.Ocheirodosgatosdoclãaindapesava no ar da noitinha. Quando virou-se e rumoupara casa, Ferrugemteveaestranhasensaçãodequealgoopuxavadevoltaparaasprofundezasda floresta. Seu pelo se eriçou deliciosamente na brisa; as folhasfarfalhandopareciammurmurarseunomenassombras.
CAPÍTULO3
NAQUELAMANHÃ,aopassearemsonhosnovamente,Ferrugemvoltouaverocamundongo,aindamaisvívidodoqueantes.Livredacoleira,sobalua,eleperseguia a tímida criatura. Mas, dessa vez, sabia que estava sendoobservado. Brilhando no meio das sombras da floresta, via dezenas deolhosamarelos.Osgatosdoclãtinhamentradonomundodosseussonhos.Ferrugemacordou,piscandosobosolbrilhantequebanhavaochãoda
cozinha. Por causa do calor, seu pelo parecia pesado e espesso. Umadastigelas estava cheia de comida; a outra tinha sido lavada e continha umlíquidoamargo.ÁguadosDuas-Pernas.Ferrugempreferiabeberdaspoçasda rua, mas quando estava quente ou ele sentia muita sede, tinha deadmitir que era mais fácil beber a água de casa. Será que conseguiriaabandonaressavidaconfortável?Comeueatravessouaportinholaquedavanojardim.Odiaprometiaser
quente,eoaromadosprimeirosbotõesseespalhavapelojardim.–Olá,Ferrugem–umgatomioudacerca.EraBorrão.–Vocêdevia ter
acordado uma hora atrás. Os filhotes de pardal estavam aqui fora,alongandoasasas.–Vocêpegoualgum?–Ferrugemperguntou.Borrãobocejouelambeuonariz.–Nãoquismedaraotrabalho.Jácomi
bastanteemcasa.Porquedemorouasair?OntemestavasequeixandoqueHenryperdetempodormindoehojevocêfezigualzinhoaele.Ferrugem sentou na terra fresca ao lado da cerca e enrolou a cauda
caprichosamente sobre as patas dianteiras. – Na noite passada estive nafloresta – lembrou ao amigo. Imediatamente, sentiu o sangue ferver nasveiaseopeloseeriçar.Doaltodacerca,Borrãoarregalouosolhos.–Claro,tinhameesquecido!
Comofoi?Pegoualgumacoisa?Oualgumacoisapegouvocê?Ferrugem fez uma pausa, sem saber direito como contar ao velho
companheiro o que tinha acontecido. – Conheci alguns gatos selvagens –começou.–Oquê?–Borrãoestavaclaramenteperturbado.–Vocêsemeteunuma
briga?–Mais oumenos. – Ferrugem sentiu o corpo vibrar, ao se lembrar da
forçaedopoderdosgatosdoclã.
–Vocêfoiferido?Oqueaconteceu?–Borrãoperguntou,ansioso.–Eleseramtrês.Maioresemaisfortesdoquequalquerumdenós.–Vocêlutoucomostrês!?–Borrãointerrompeu,balançandoacaudade
tantaempolgação.–Não!–Ferrugemmioudepressa.–Sócomomaisnovo;osoutrosdois
apareceramdepois.–Enãofizerampicadinhodevocê?–Sómeadvertiramparasairdoterritóriodeles.Masentão…–Ferrugem
hesitou.–Oquê?–Borrãomioucomimpaciência.–Meconvidaramparafazerpartedoclã.OsbigodesdeBorrãotremeram,numgestodedescrença.–Convidaram,sim!–Ferrugeminsistiu.–Porquefariamisso?–Nãosei–Ferrugemadmitiu.–Achoqueprecisamdepatasextrasno
clã.– Acho meio esquisito – Borrão duvidou. – Se eu fosse você, não
acreditarianeles.FerrugemolhouparaBorrão.Seuamigopretoebranconuncamostrara
nenhum interesse em se aventurar na floresta. Estava bem contentevivendo numa casa, com humanos. Jamais entenderia os desejosinquietantes que os sonhos de Ferrugem nele provocavam, noite apósnoite.–Masconfioneles–Ferrugemronronougentilmente.–E jámedecidi.
Voumejuntaraoclã.Borrãodesceucorrendodacercaesecolocounafrentedoamigo.–Por
favor,nãová,Ferrugem–miou,assustado.–Podeserquenuncamaisvejavocêdenovo.Ferrugemafagou-o afetuosamente coma cabeça. –Não sepreocupe.O
pessoaldaminhacasavaiarrumaroutrogatoevocêvaisedarbemcomele.Vocêsedábemcomtodoomundo!–Masnãovaiseramesmacoisa–Borrãolamentou.Ferrugembalançouacauda,impaciente.–Esseéoproblema.Seeuficar
poraqui,elesvãomelevaraoCorta-Gatoeeutambémnãovousermaisomesmo.
Borrãosemostrouconfuso.–OCorta-Gato?–repetiu.–Oveterinário–Ferrugemexplicou.–Parasermodificado,comoHenry
foi.Borrão deu de ombros e abaixou os olhos na direção das patas. –Mas
Henryestábem–murmurou.–Querdizer,estáumpoucomaispreguiçosoagora,masnãoestáinfeliz.Aindapodemosnosdivertir.Ferrugem ficou como coração cheiode tristeza aopensar emdeixaro
amigo.–Sintomuito,Borrão.Vousentirsuafalta,mastenhodeir.Borrãonãorespondeu.Deuumpassoàfrentee,comdelicadeza,roçouo
narizdeFerrugemcomoseu.–Estábem.Seiquenãopossoimpedi-lo,mas,aomenos,vamospassarmaisumamanhãjuntos.
Ferrugem aproveitou aquela manhã ainda mais do que de costume,visitandoantigosrefúgioscomBorrão,conversandocomosgatoscomquecrescera. Seus sentidosestavam todosaguçados, comoseeleestivesse sepreparandoparadarumgrande salto.Quandoo sol estavaquaseapino,FerrugemjámalpodiaesperarparaverseCoraçãodeLeãoestariamesmoaguardandoporele.Ozumbidopreguiçosodomiadodeseusvelhosamigospareciaficarcadavezmaisaolonge,àmedidaquetodososseussentidosopuxavamparaafloresta.Ferrugem pulou da cerca do jardim pela última vez e entrou
furtivamente na floresta. Tinha se despedido deBorrão e agora todos osseuspensamentosestavamconcentradosna florestaenosgatosquenelamoravam.Ao se aproximar do lugar onde se encontrara com os gatos do clã na
véspera,sentouesaboreouoar.Árvoresaltasprotegiamochãodosoldomeio-dia, deixando-o agradavelmente fresco. Aqui e ali o sol brilhavaatravés de uma fresta nas folhas, iluminando a superfície da floresta.Ferrugemsentiuomesmocheirodegatodanoiteanterior,masnãotinhaideia se era um cheiro novo ou antigo. Levantou a cabeça e farejou, semmuitacerteza.– Você tem muito a aprender – miou uma voz grave. – Até o menor
filhotedoclãsabequandooutrogatoestáporperto.Ferrugem viu um par de olhos verdes brilhando debaixo de uma
amoreira.Agorareconheciaocheiro:eraCoraçãodeLeão.– Você sabe dizer se estou sozinho? – perguntou o gato dourado,
colocando-senaluz.
Ferrugemimediatamentesepôsafarejardenovo.OsodoresdeEstrelaAzul e de Pata Cinzenta ainda estavam ali, mas não tão fortes como navéspera.Hesitante,miou:–EstrelaAzulePataCinzentadestaveznãoestãocomvocê.–Estácerto–miouCoraçãodeLeão.–Mastenhooutracompanhia.Ferrugem paralisou-se quando um segundo gato do clã entrou na
clareira.–ÉNevasca–ronronouCoraçãodeLeão.–Umdosguerreirosantigosdo
ClãdoTrovão.Ferrugemolhouparaogatoesentiuaespinhaformigardemedo.Seria
uma armadilha? De corpo comprido e robusto, Nevasca parou diante deFerrugemefitou-odecima.Apelagembrancaeraespessaeimaculada,eosolhos eram amarelos como areia queimada de sol. Ferrugem, prudente,abaixouasorelhasetensionouosmúsculos,preparando-separalutar.– Relaxe antes que o seu cheiro de medo atraia alguma atenção
indesejável–grunhiuCoraçãodeLeão.–Estamosaquiapenasparalevá-loaonossoacampamento.Ferrugem sentou bem quietinho, mal ousando respirar, enquanto
Nevascaespichavaonarizparafarejá-lo,curioso.–Olá,meujovem–miouogatobranco.–Jámefalarammuitodevocê.Ferrugemabaixouacabeça,cumprimentando-o.– Venha, poderemos conversar mais quando estivermos no
acampamento – ordenou Coração de Leão que, ato contínuo, pulou comNevasca rumo à vegetação. Ferrugem pulou também, seguindo-os tãodepressaquantopôde.SemesperarporFerrugem,osdoisguerreirosdispararampelaflorestae
ele logo se viu com dificuldade para acompanhá-los. Não retardaram amarcha nem mesmo ao conduzi-lo por cima das árvores caídas, quesaltaram com um simples pulo, enquanto ele teve de escalá-las pata porpata.Passaramnomeiodepinheirosdearomapenetrante,ondetiveramdepularvalasprofundasabertaspelo comedordeárvoresdosDuas-Pernas.Sentadoemsegurançanacercadojardim,Ferrugemoouviramuitasvezes,urrando e roncando a distância.Umadas valas, larga demais para saltar,com água lodosa e fétida, estava cheia até a metade. Os gatos do clãmergulharamepassaramporelasemtitubear.Ferrugem, até então, jamais pusera uma pata na água. Mas estava
decidido a não mostrar nenhum sinal de fraqueza; por isso estreitou os
olhos e seguiu adiante, tentando ignorar a umidade incômoda que lheensopavaopelodabarriga.Finalmente, Coração de Leão e Nevasca pararam. Ferrugem estacou
bruscamenteatrásdelesealificou,arfando,enquantoosguerreirossubiamnumapedraàbeiradeumapequenaravina.–Estamosbempertodonossoacampamentoagora–miouCoraçãode
Leão.Ferrugemseesforçouparaveralgumsinaldevida–folhassemexendo,
umvislumbredepeloentreosarbustosabaixo–,massóconseguiuavistaramesmavegetaçãoquecobriaorestodochãodafloresta.– Use o nariz. Não é possível que você não esteja sentindo o cheiro –
sibilouNevasca,impaciente.Ferrugem fechou os olhos e farejou. Nevasca estava certo. Os aromas
erammuitodiferentesdocheirodegatoaqueestavaacostumado.Oodoreramaispesado,indicandomuitos,muitosgatosdiferentes.Balançouacabeça,pensativo,eanunciou.–Sintocheirodegatos.CoraçãodeLeãoeNevascatrocaramolharesdivertidos.–Vaichegarumahora,casoseintegreaoclã,emquevaiconhecercada
cheiro de gato pelo nome – Coração de Leão miou. – Siga-me! – Ágil,colocou-se à frente dos demais e desceu pelas pedras para o fundo daravina, abrindo caminho entre os tojos. Ferrugem seguiu atrás dele, comNevasca na retaguarda. Ao atravessar os tojos pontiagudos, que lhearranhavam os flancos, Ferrugem olhou para baixo e notou que a gramasob suas patas estava achatada, formando uma trilha larga e de cheiroforte.Deveseraentradaprincipaldoacampamento,pensou.Alémdos tojos, abria-seuma clareira.Nomeio, o chão eraduro e sem
vegetação, marcado por muitas gerações de solas de patas. Fazia muitotempoqueoacampamentoexistia.Aluzdosolinundavaaclareira,eoareraquenteeparado.Ferrugem observou ao redor, de olhos esbugalhados. Havia gatos por
toda parte, sentados sozinhos ou em grupo, dividindo comida ouronronandocalmamenteenquantopenteavamunsaosoutros.–Logodepoisdosolalto,quandoodiaestámaisquente,éhoradetrocar
lambidas–CoraçãodeLeãoexplicou.–Trocarlambidas?–Ferrugemrepetiu.–Osgatosdosclãssemprepassamumtempopenteandounsaosoutros
econversandosobreasnovidadesdodia–disseNevasca.–Chamamosessehábitode“trocarlambidas”.Éumcostumequeuneosmembrosdoclã.Era evidente que os felinos tinham sentido o odor forasteiro de
Ferrugem,poisascabeçascomeçaramavoltar-se,curiosas,nasuadireção.Comrepentinavergonhadeencarardiretamentequalquerumdosgatos,
Ferrugem olhou à volta da clareira. Era rodeada de grama espessa,pontilhadacomtocosdeárvoreseumaárvorecaída.Umagrossacortinadesamambaiasetojosprotegiaoacampamentodorestodafloresta.– Ali – miou Coração de Leão, agitando a cauda na direção de um
emaranhadodeamoreiras,queparecia impenetrável–éoberçário,ondesecuidadosfilhotes.Ferrugem girou as orelhas na direção dos arbustos. Não conseguia
enxergaratravésdonódegalhospontudos,masouviuomiadodediversosfilhotes que vinha lá de dentro. Enquanto observava, uma gataavermelhadasurgiucontorcendo-seporumapequenafenda.Estadeveserumadasrainhas,Ferrugempensou.Uma rainha malhada, com manchas negras bem definidas, apareceu
pertodaamoreira.Asduasgatastrocaramumalambidaamigávelentreasorelhasantesqueamalhadaentrassenoberçário,falandobaixinhocomosfilhoteschorões.–Todasasrainhasajudamacuidardosfilhotes–miouCoraçãodeLeão.
–Todososgatosservemaoclã.AlealdadeaoclãéaprimeiraleidonossoCódigodosGuerreiros,umaliçãoquevocêprecisalogoaprendersequiserficarconosco.–AívemEstrelaAzul–miouNevasca,farejandooar.Ferrugem também farejou o ar e ficou satisfeito ao perceber que fora
capazdereconhecerocheirodagatacinzentauminstanteantesdeelasairdasombradeumagranderochaaoladodeles,naentradadaclareira.–Eleveio–EstrelaAzulronronou,dirigindo-seaosguerreiros.Nevascareplicou:–CoraçãodeLeãotinhacertezadequenãoviria.Ferrugemnotouque a ponta da caudadeEstrelaAzul estremecia com
impaciência.–Eentão?Oqueachamdele?–agataperguntou.– Aguentou bem a viagem de volta, apesar de ser um gato pequeno –
Nevascaadmitiu.–Pareceforteparaumgatinhodegente.–Entãoestáaceito?–EstrelaAzulperguntou,dirigindo-seaCoraçãode
LeãoeaNevasca.Osgatosaprovaramcomacabeça.– Sendo assim, vou anunciar ao clã sua chegada – disse Estrela Azul,
pulandoparaapedraeuivando.–Quetodososgatoscomidadesuficienteparacaçaraprópriapresacompareçamaumareuniãodoclã,aquisobaPedraGrande.Ao ouvirem o chamado alto e claro, todos os gatos se dirigiram até
Estrela Azul, como sombras líquidas surgidas das laterais da clareira.Ferrugem ficouonde estava, entreCoraçãodeLeão eNevasca.Os outrosfelinosseinstalaramsobaPedraGrande,olhandocuriososparaalíder.Ferrugem sentiu um certo alívio ao reconhecer o pelo farto e cinza de
Pata Cinzenta entre os gatos. Ao lado dele estava uma jovem rainhaatartarugada,comacaudadepontanegra jeitosamentepousadasobreaspequenaspatasbrancas.Umgatogrande,depelocinzamalhado,agachouatrás deles; as listas pretas de seu pelo pareciam sombras num chão deflorestabanhadopelalua.Quandoosgatos ficaramquietos,EstrelaAzul falou:–OClãdoTrovão
precisademaisguerreiros.Nuncaantestivemostãopoucosaprendizesemtreinamento como agora. Foi decidido que o Clã do Trovão vai admitiralguémdeforaparasertreinadocomoguerreiro…Ferrugem ouviumurmúrios indignados surgirem emmeio ao clã, mas
Estrela Azul silenciou-os com um uivo firme. – Encontrei um gato quedesejasetornaraprendizdoClãdoTrovão.–Sortedele tornar-se um aprendiz – guinchou uma voz alta acima da
ondadeespantoqueseespalhouentreosgatos.Ferrugemergueuopescoçoeviuumgatomalhadoedesbotadoquese
levantaraeencaravaalíderdemaneiradesafiadora.Estrela Azul o ignorou e se dirigiu a todo o clã: – Coração de Leão e
Nevasca conheceram esse jovem gato e concordam comigo que devemostreiná-lojuntocomosdemaisaprendizes.FerrugemolhouparaCoraçãodeLeãoe,maisumavez,fitouosgatosdo
clã, encontrando todosos olhos grudadosnele. Seupelo se crispou e ele,nervoso, engoliu em seco. Por um instante se fez silêncio. Ferrugem nãotevedúvidasdequetodospodiamouvirseucoraçãopulsareperceberseucheirodemedo.Uivosensurdecedorescomeçaramentãoabrotardamultidão.–Deondeelevem?
–Aqueclãpertence?– Ele tem um cheiro esquisito! Não é o cheiro de nenhum clã que eu
conheça!Um guincho em especial se sobressaiu: – Vejam a coleira dele! É um
gatinhode gente. – Eradenovoo gatodesbotado. –Umavez gatinhodegente,sempregatinhodegente.Esteclãprecisadeguerreirosnascidosnaflorestaparadefendê-lo,enãodeoutrabocadelicadaparaalimentar.CoraçãodeLeãoseinclinouecochichounaorelhadeFerrugem:–Esse
gato se chama Rabo Longo. Ele está percebendo o seu cheiro de medo.Aliás,todosestão.Vocêprecisaprovaraeleeaosdemaisqueomedonãovaiimpedi-lodelutar.MasFerrugemnãoconseguiasemexer.Comoiriaprovaràquelesgatos
ferozesquenãoeraapenasumgatinhodegente?Rabo Longo continuou a zombar dele: – Sua coleira é umamarca dos
Duas-Pernas, e esse guizo barulhento vai fazer de você, na melhor dashipóteses,umcaçadordearaque.Napior,vaiatrairosDuas-Pernasparaonossoterritório,àprocuradopobregatinhodegenteperdidonafloresta,comsuacampainhadedardó.Todososgatosgritaram,concordando.RaboLongocontinuou,sabendoquecontavacomoapoiodaplateia:–O
barulhodoseusinodelatorvaialertarnossos inimigos,aindaqueo fedordosDuas-Pernasnãoosatraia!CoraçãodeLeãovoltoua cochicharnaorelhadeFerrugem:–Vocêvai
fugirdeumdesafio?Ferrugemcontinuava imóvel.Mas, agora, tentava localizarRaboLongo.
Láestavaele,bematrásdeumarainhamarrom-escura.Ferrugemabaixouasorelhas e estreitouosolhos.Então, sibilando,pulouatravésdosgatos,queficaramsurpresosaovê-lolançar-sesobreoagitador.Rabo Longo estava completamente despreparado para o ataque de
Ferrugem. Cambaleou para um lado, sem conseguir se firmar na terraressequida.Cheioderaivaeansiosoporprovarseuvalor,Ferrugemenfiouas garras com vontade no pelo de Rabo Longo e cravou-lhe os dentes.Nenhumritualsutildemiadosegolpesdepatasantecedeuocombate.Osdois gatos, aos gritos, se engalfinharamnuma luta de saltosmortais pelaclareira, no centro do acampamento. Os outros felinos precisaram darespaçoparaevitaroestridenteredemoinhodepelos.À medida que arranhava e lutava, Ferrugem percebeu que não sentia
medo, mas prazer. No meio do sangue que fazia ruído em suas orelhas,ouviaosgatosaoredorgritandodeempolgação.Foi quando sentiu a coleira apertar-lhe o pescoço. Rabo Longo a
encaixara entre os dentes e puxava, cada vez commais força. Ferrugemsentiuumapressãoterrívelnopescoço.Semconseguirrespirar,apavorou-se.Virou-seecontorceu-se,mas,acadamovimento,apressãopiorava.Comânsiadevômitoe sufocando, reuniu todasas forçase tentouescapardasgarrasdeRaboLongo.Derepente,comumforteestalo,eleseviulivre.Rabo Longo caiu longe. Ferrugem se levantou e olhou à volta. Rabo
Longo estava agachado a três caudas de distância, com a coleira deFerrugempenduradanaboca,destroçada.Imediatamente Estrela Azul desceu da Pedra Grande e silenciou a
multidãocomummiadotonitruante.FerrugemeRaboLongocontinuaramondeestavam,tentandorecuperarofôlego.Tufosdepelopendiamdesuapelagem eriçada. Ferrugem sentiu um corte latejando sobre o olho. AorelhaesquerdadeRaboLongoestavabemmachucada,epingavasanguede seus ombros magros no chão empoeirado. Um encarava o outro; ahostilidadenãotinhaacabado.EstrelaAzuladiantou-seetomouacoleiradeRaboLongo.Colocou-ano
chãoàsuafrenteemiou:–Orecém-chegadoperdeusuacoleiradosDuas-Pernasnumabatalhaporsuahonra.OClãdasEstrelasdeusuaaprovação:estegatofoilibertodojugodeseusdonosDuas-PernaseestálivreparasejuntaraoClãdoTrovãocomoaprendiz.Ferrugem olhou para Estrela Azul e, com um gesto solene de cabeça,
aquiesceu.Levantou-seecolocou-sesobumraiodesol,recebendodebomgrado o calor nos músculos feridos. A poça de luz fez brilhar seu peloalaranjado.Orgulhoso,Ferrugemergueuacabeçaeolhouparaosgatosaoredor.Dessavez,nenhumdelesreclamououzombou.Eleprovaraserumoponentevalorosonumaluta.EstrelaAzulaproximou-sedeFerrugemecolocounafrentedeleacoleira
destroçada.Emseguida,tocou-lheternamenteaorelhacomonarizedisse:–Vocêpareceumatochadefogoàluzdosol–agatamurmurou,comum
certobrilhonoolhar,comosesuaspalavrastivessemumsignificadomaiordo que Ferrugem podia compreender. – Você lutou bem. – Ela se voltouparaoclãeanunciou:–Apartirdehoje,atéreceberseunomedeguerreiro,esteaprendizvaisechamarPatadeFogo,porcausadacordesuapelagem.Estrela Azul recuou e, com os outros gatos, esperou pelo próximo
movimento.Semhesitar,Ferrugemvirou-seechutoupoeiraegramasobreacoleira,comoseestivesseenterrandosuasfezes.RaboLongorosnoue,mancando,saiudaclareiraemdireçãoaumcanto
onde as samambaias faziam sombra. Os felinos se dividiram em grupos,conversando,empolgados.–Ei,PatadeFogo!Ferrugem ouviu a voz amigável de Pata Cinzenta atrás de si. Pata de
Fogo!Umarrepiodeorgulhopercorreuseucorpoaoouvironovonome.Virou-se para cumprimentar o aprendiz cinza com um farejo de boas-vindas.–Grandeluta,PatadeFogo!–miouPataCinzenta.–Especialmentepara
umgatinhodegente!RaboLongoéumguerreiro,emboratenhaterminadootreinamentoháapenasduasluas.Acicatrizquevocêlhefeznaorelhanãovaideixá-loesquecervocêtãocedo.Vocêestragouaquelacarabonita,podeapostar.–Obrigado,PataCinzenta–respondeuPatadeFogo.–Maseleébomde
briga! – Lambeuapatada frente e começoua limpar aprofunda cicatrizquelatejavasobreoolho.Enquantose lavava,ouviunovamenteseunovonomeecoandoentreosmiadosdosgatos.–PatadeFogo!–Ei,PatadeFogo!–Bem-vindo,jovemPatadeFogo!PatadeFogofechouosolhosporuminstanteedeixou-seinundarpelas
vozes.–Onome tambémébom!–miouPataCinzentaem tomdeaprovação,
despertando-odotorpor.PatadeFogoolhouemtorno.–ParaondefoiRaboLongo?– Acho que foi à toca de Folha Manchada – disse Pata Cinzenta,
apontandocomacabeçanadireçãodocantodassamambaias,ondeRaboLongo tinha desaparecido. – É nossa curandeira. É bem atraente. Maisjovememuitomaisbonitaqueamaioria…Umuivobaixoepróximo interrompeuPataCinzenta.Elessevirarame
Pata de Fogo reconheceu o robusto gato cinza que, pouco antes, estavasentadoatrásdePataCinzenta.–RiscadeCarvão–miouPataCinzenta,abaixandoacabeça,respeitoso.OgatolustrosoolhouparaPatadeFogoporummomento.–Sorteasua
coleira terarrebentadonahora certa.RaboLongoéumguerreiro jovem,mas não consigo imaginá-lo derrotado por um gatinho de gente! – Fezquestãodesersarcásticoaodizergatinhodegente;virou-seefoiembora.–Por suavez,RiscadeCarvão–PataCinzenta cochichouparaPatade
Fogo–nãoéjovemnembonito…PatadeFogoiaconcordarcomonovoamigoquandofoidetidopelogrito
dealertadeumgatoidososentadonaorladaclareira.–Orelhinhapressenteproblemas!–PataCinzentamiou, imediatamente
atento.PatadeFogomaltevetempodeolharaoredorantesqueumjovemgato
atravessasse os arbustos e caísse no acampamento. Era magro e, fora apontabrancadacaudafinaecomprida,negroretintodacabeçaaospés.PataCinzentaengasgou.–ÉPataNegra!Porqueestásozinho?Ondeestá
GarradeTigre?Pata de Fogo olhou para Pata Negra, que cambaleava pela clareira,
respirando com dificuldade. A pelagem estava eriçada e suja; os olhos,arregaladosdemedo.–QuemsãoPataNegraeGarradeTigre?–PatadeFogosussurroupara
PataCinzenta, enquantováriosoutros felinospassavamcorrendopor eleparasaudarorecém-chegado.–PataNegraéumaprendiz.GarradeTigre,seumentor–PataCinzenta
explicou rapidamente. – Pata Negra saiu ao nascer do sol com Garra deTigreeRaboVermelhoemumamissãocontraoClãdoRio,aquelabolinhadepelosortuda!–RaboVermelho?–PatadeFogorepetiu,totalmenteconfusocomtodos
aquelesnomes.– O representante de Estrela Azul – Pata Cinzenta explicou baixinho.
“Mas por que diabos Pata Negra voltou sozinho?”, perguntou-se. PataCinzentalevantouacabeçaparaescutarEstrelaAzul,quederaumpassoàfrente.– PataNegra? – a gata chamou calmamente,mas com uma sombra de
preocupação nos olhos azuis. Os outros gatos se afastaram, torcendo oslábios,ansiosos.–Oqueaconteceu?–EstrelaAzulpulouparaaPedraGrandee,decima,
olhouogatoquetremia.–Fale,PataNegra!Pata Negra, ainda tentando respirar, ergueu-se com dificuldade,
deixando o pó da clareira vermelho de sangue;mesmo assim, conseguiuchegaràPedraGrandeecolocar-seaoladodeEstrelaAzul.Ogatovirou-separa a multidão de rostos aflitos que o circundava e reuniu fôlego paradeclarar:–RaboVermelhoestámorto!
CAPÍTULO4
GRITOSDEESPANTOseelevaramentreosgatosdoclãeecoarampelafloresta.PataNegratitubeouumpouco.Apatadianteiradireitareluzia,molhada
dosanguequeescorriadocorteprofundonoombro.–Enc-encontramososguerreiros do Clã do Rio ao lado do riacho, nãomuito longe das RochasEnsolaradas – continuou, tremendo. – Coração de Carvalho estava entreeles.–CoraçãodeCarvalho!–miou,arfante,PataCinzenta,aoladodePatade
Fogo. – É o representante do Clã do Rio, um dos maiores guerreiros dafloresta. Sorte de Pata Negra! Quemme dera fosse eu. Eu teria… – PataCinzentafoisilenciadoporumolharferozdovelhogatocinza,oprimeiroaperceberachegadadePataNegra.PatadeFogovoltouaprestaratençãoemPataNegra.–RaboVermelhoadvertiuCoraçãodeCarvalhoparamanterseugrupo
de caçadores fora do território do Clã do Trovão. Disse que o próximoguerreiro do Clã do Rio apanhado no território do Clã do Trovão seriamorto,masCoração…CoraçãodeCarvalhonãorecuou.Dissequeseu…seuclã precisava ser alimentado e que nossas ameaças eram inúteis. – PataNegra fez uma pausa para respirar. A ferida ainda sangravaabundantementeeeletentava,semmuitojeito,nãofazerpesonoombro.– Então os gatos do Clã do Rio atacaram. Foi difícil ver o que estava
acontecendo. A luta foi selvagem. Vi que Coração de Carvalho imobilizouRaboVermelhonochão,masaíRaboVermelho…–Derepente,osolhosdePataNegra reviraram e ele cambaleou.Meio se arrastando,meio caindo,escorregoudaPedraGrandeeapagounochãodaclareira.Uma rainha alaranjada se aproximou e agachou a seu lado. Passou-lhe
rapidamentealínguanabochechaegritou:–FolhaManchada!Docantosombreadopelassamambaiassaiuabonitagataatartarugada
quePatadeFogotinhavistomaiscedo,sentadaaoladodePataCinzenta.ElacorreuparaPataNegraemiouparaarainhaseafastar.Comopequenonariz cor-de-rosa virou o corpo do aprendiz para examinar a ferida. Acurandeira olhou para cima e miou: – Está tudo certo, Flor Dourada, aslesõesnãosãofatais.Masvouprecisarpegaralgumasteiasdearanhaparaestancarosangramento.Assim que Folha Manchada voltou correndo para a toca, o profundo
silêncionaclareirafoiinterrompidoporumgemidomelancólico.Todosos
olhosseviraramnadireçãodeondeviera.Umenormegatomalhadomarrom-escurocambaleavapelotúneldetojo.
Entreosdentesafiados,oguerreirotrazianãoumapresa,masocorposemvida de outro felino. Levou a criatura em frangalhos até o centro daclareira.Pata de Fogo levantou o pescoço e vislumbrou uma brilhante cauda
avermelhadasendoarrastadanapoeira.Umaondadechoquepercorreuoclãcomobrisagelada.AoladodePata
deFogo,PataCinzentaagachou,cheiodetristeza.–RaboVermelho!–Comoissoaconteceu,GarradeTigre?–perguntouEstrelaAzuldoalto
daPedraGrande.Garra de Tigre soltou o corpo de Rabo Vermelho, que segurava pelo
cangote.DevolveucomfirmezaoolhardeEstrelaAzul.–Elemorreucomhonra,liquidadoporCoraçãodeCarvalho.Nãopudesalvá-lo,masconseguitiraravidadeCoraçãodeCarvalhoenquantoeleaindacantavavitória.–AvozdeGarradeTigreeraforteegrave.–AmortedeRaboVermelhonãofoiem vão; duvido que voltemos a ver caçadores do Clã do Rio no nossoterritório.Pata de Fogo olhou para Pata Cinzenta. Os olhos do aprendiz estavam
escurosdetristeza.Depois de uma pequena pausa, diversos felinos se aproximaram para
lamber o pelo enlameado de Rabo Vermelho. Eles o acariciavam eronronavampalavrasdelicadasparaoguerreiromorto.Pata de Fogo cochichou na orelha de Pata Cinzenta: – O que estão
fazendo?PataCinzentarespondeusemdesviaroolhardogatomorto:–Oespírito
dele pode ter partido para se juntar ao Clã das Estrelas, mas o clã vaihomenagearRaboVermelhocomlambidasumaúltimavez.–ClãdasEstrelas?–PatadeFogorepetiu.–Éatribodeguerreiroscelestesquecuidadetodososgatosdoclã.Você
podevê-losnoTuledePrata.VendoquePatadeFogoestavaconfuso,PataCinzentaexplicou.–Tulede
Prata é aquela espessa faixa de estrelas que você vê todas as noitesestendida no céu. Cada estrela é um guerreiro do Clã das Estrelas. RaboVermelhoestaráentreelesestanoite.PatadeFogofezumgestocomacabeçaePataCinzentaseadiantoupara
homenagearcomlambidasorepresentantemorto.EstrelaAzul,quepermaneceraemsilêncioenquantoosprimeirosfelinos
seaproximavamparareverenciarRaboVermelho,desceudaPedraGrandee dirigiu-se lentamente ao corpo do guerreiromorto. Os outros gatos seafastarameobservaramalíderagacharparalamberovelhocamaradaumaúltimavez.Quandoterminou,EstrelaAzulergueuacabeçaefalou.Avozerabaixa,
graveecomovida,eoclãouviuemsilêncio.–RaboVermelhofoiumbravoguerreiro. Sua lealdade ao Clã do Trovão jamais poderá ser questionada.Sempreconfieiemseubom-senso,porquecompreendiaasnecessidadesdoclã;ele jamaissedeixoulevarporsentimentoscomoegoísmoouorgulho.Teriasidoumótimolíder.A gata se deitou sobre a barriga, com a cabeça baixa e as patas bem
esticadas à frente. Em silêncio, sofreupelo amigo. Vários outros gatos secolocaram ao lado dela, cabeças abaixadas, corpos curvados, na mesmaposiçãodelamentodeEstrelaAzul.Pata de Fogo observava. Não conhecera Rabo Vermelho, mas mesmo
assimficouemocionadoaotestemunharolamentodoclã.Pata Cinzenta voltou a se aproximar dele. – Pata de Poeira vai ficar
desolado–observou.–PatadePoeira?– O aprendiz de Rabo Vermelho. Aquele gatomalhadomarrom-escuro
ali.Ficoaquimeperguntandoquemseráseunovomentor.Pata de Fogo fitou o pequeno gato agachado perto do corpo de Rabo
Vermelho, com o olhar perdido no chão, e perguntou: – E Estrela Azul?Quantotempovaificaralisentadacomoguerreiromorto?–miou.–Provavelmenteanoitetoda–respondeuPataCinzenta.–Pormuitase
muitasluasRaboVermelhofoiorepresentantedeEstrelaAzul.Elanãovaiquerer se afastardele tão cedo; foiumde seusmelhores guerreiros.NãotãograndeepoderosocomoGarradeTigreouCoraçãodeLeão,maseleerarápidoeesperto.PatadeFogoolhouparaGarradeTigre,admirandoaforçaqueemanava
dos músculos poderosos e da cabeça larga. Seu corpo enormemostravasinaisdavidadeguerreiro.Umadasorelhassedividianumprofundocorteemformade“V”eumaespessacicatrizcortavaocavaletedonariz.Derepente,GarradeTigre levantou-seeseaproximousilenciosamente
dePataNegra.FolhaManchada,agachadaaoladodoaprendizferido,usava
osdenteseaspatasdianteirasparapressionarchumaçosdeteiadearanhanaferidadoseuombro.PatadeFogo inclinou-senadireçãodePataCinzenta eperguntou: –O
queFolhaManchadaestáfazendo?–Estancandoosangramento.Foiumcortefeio.PataNegrapareciaestar
realmente abalado.Ele sempre foi umpouco agitado,masnuncao vi tãomalassim.Vamosversejáacordou.Abriramcaminhoentreosgatoschorosos,atéo lugarondePataNegra
estava, e colocaram-se a uma distância respeitosa, para esperar até queGarradeTigreparassedefalar.– E então, Folha Manchada? – Garra de Tigre dirigiu-se à gata
atartarugada com ummiado arrogante. – Como ele está? Acha que podesalvá-lo? Passeimuito tempo treinando esse gato e não quero quemeusesforçosvãoporáguaabaixonaprimeirabatalha.FolhaManchadanãolevantouoolhardopacienteaoresponder.–Vaiser
mesmoumapena se, depois do seu valoroso treinamento, elemorrer naprimeira luta, não é? – Pata de Fogo percebeu uma certa provocação nosuavemiadodacurandeira.–Elevaisobreviver?–perguntouGarradeTigre.–Éclaro.Sóprecisadescansar.Garra de Tigre resfolegou e olhou para a figura imóvel. Cutucou Pata
Negracomumadasgarrasdianteiras.–Vamoslá!Levante-se!PataNegranãosemexeu.–Olhesóotamanhodaquelagarra!–PatadeFogosibilou.–Caramba!–comentouPataCinzenta,impressionado.–Euéquenãoia
quererlutarcomele!–Devagar,GarradeTigre!!–FolhaManchadacolocousuapatasobrea
unhaafiadadoguerreiroegentilmenteaafastou.–Esteaprendizprecisaficar emrepousoatéqueo corte cicatrize.Nãoqueremosquea ferida seabrasóporqueeleresolveudarumsaltoparaagradá-lo.Deixe-oempaz.Pata de Fogo prendeu a respiração, esperando a reação de Garra de
Tigre. Imaginou que poucos gatos ousariam dar ordens ao guerreirodaquele jeito. O grande gato malhado se retesou e parecia que ia falaralgumacoisaquandoFolhaManchadamiou,provocando:–Atévocêsabequenãosepodediscutircomumacurandeira,GarradeTigre.Os olhos do guerreiro chisparam com as palavras da pequena gata
atartarugada.–Eunãoousariadiscutircomvocê,queridaFolhaManchada–GarradeTigreronronou.Virou-separasaireviuPataCinzentaePatadeFogo.–Queméeste?–perguntouaPataCinzenta,olhando-osdecima.–Éonovoaprendiz.–Cheiraagatinhodegente–resfolegouoguerreiro.–Eueraumgatodoméstico–PatadeFogomiou,atrevido–,masestou
treinandoparaserumguerreiro.Garra de Tigre fitou-o com súbito interesse. – Ah, claro. Agora me
lembro. Estrela Azul mencionou ter tropeçado em um gatinho de gentedesgarrado.Entãoelavairealmentetreinarvocê?PatadeFogosentouereto,ansiosoparaimpressionaroilustreguerreiro
doclã,emiou,comtodoorespeito:–Vai,sim.GarradeTigreolhou-o,pensativo.–Vouacompanharseuprogressocom
interesse.PatadeFogo estufouopeito comorgulho, enquantoGarradeTigre se
afastava.–Achaqueelegostoudemim?–perguntouaPataCinzenta.–Nãoachoqueelegostedenenhumaprendiz!–sussurrouoamigo.FoiquandoPataNegrasemexeuemovimentouasorelhas.–Elejáfoi?–
perguntoubaixinho.–Quem?GarradeTigre?–respondeuPataCinzenta,aproximando-se.–
Já,jáfoi.–Comovai?–PatadeFogoperguntou,tentandoseapresentar.–Saiam,osdois!–FolhaManchadaprotestou.–Comopossocuidardesse
gato com tantas interrupções? – Impaciente, balançou a cauda para PataCinzentaePatadeFogoecolocou-seentreeleseopaciente.Pata de Fogo percebeu que a curandeira falava sério, apesar do brilho
vívidonoscalorososolhoscordeâmbar.– Venha, então, Pata de Fogo –miou Pata Cinzenta. – Vou lhemostrar
nossoterritório.Atémaistarde,PataNegra.Os dois gatos deixaram Folha Manchada com o aprendiz ferido e
atravessaramaclareira.PataCinzentapareciapensativo.Estavaclaramentelevandoseupapelde
guiamuitoasério.–VocêjáconheceaPedraGrande–começou,apontandocomacaudaa rochagrandee lisa. –EstrelaAzul sempresedirigeaoclãdali. É onde fica sua toca. – Ergueu o nariz na direção de uma gruta nalateraldaPedraGrande.–Atocafoiescavadahámuitasluasporumvelho
riacho.–Umacortinadeliquenscobriaaentrada,protegendodoventoedachuvaorefúgiodalíder.–Osguerreirosdormemaqui–PataCinzentacontinuou.PatadeFogoseguiu-oatéumarbustoapoucadistânciadaPedraGrande.
Dalisepodiamverbemostojosdaentradadoacampamento.Osgalhosdoarbustoerambaixos,masPatadeFogoconseguiuverumespaçoprotegido,ondeosguerreirosfaziamseusninhos.–Osguerreirosmaisexperientesdormempertodocentro,ondeémais
quente–explicouPataCinzenta.Normalmente,partilhamaspresasfrescasnaquela moita de urtiga. Os guerreiros mais jovens comem ali perto. Àsvezes são convidados a se juntar aos veteranos nessa hora, o que é umagrandehonra.– E os outros gatos do clã? – perguntou Pata de Fogo fascinado, mas
aindacompletamenteperplexocomtodasastradiçõeseosrituaisdavidanoclã.–Asrainhastambémficamnosalojamentosdosguerreirosquandoestão
nessa função, mas, quando estão esperando filhotes, ou amamentando,ficamemumninhopertodoberçário.Osanciãostêmseuprópriolugar,dooutroladodaclareira.Venha,voulhemostrar.Pata de Fogo seguiu Pata Cinzenta, atravessando a clareira e deixando
para trás o canto sombreado onde ficava a toca de Folha Manchada.Pararamao ladodeuma árvore caída queprotegia umpedaçode gramaviçosa. Agachados no meio do verde macio estavam quatro anciãosdevorandoumroliçofilhotedecoelho.–PatadePoeiraePatadeAreiadevem ter trazidoapresaparaeles–
PataCinzentaexplicoubaixinho.–Umdosdeveresdosaprendizesépegarpresafrescaparaosanciãos.–Olá,meujovem–umdosanciãossaudouPataCinzenta.–Alô,Orelhinha–miouPataCinzenta,inclinandoacabeçacomrespeito.– Este deve ser nosso novo aprendiz. Pata de Fogo, não é? –miou um
segundo felino. Seu pelomalhado eramarrom-escuro e havia apenas umcotoconolugardorabo.–Issomesmo–PatadeFogorespondeu,imitandoogestorespeitosode
PataCinzenta.–MeunomeéMeioRabo–ronronouogatomarrom.–Bem-vindoaoclã.–Vocêsjácomeram?–miouOrelhinha.
PatadeFogoePataCinzentanegaramcomacabeça.– Há comida bastante aqui. Pata de Poeira e Pata de Areia estão se
tornando ótimos caçadores. Você se importa se esses jovens partilharemumcamundongoconosco,Caolha?Arainhacinzadesbotado,aoladodele,balançouacabeça.PatadeFogo
percebeuqueagatatinhaumolhoembaçadoecego.–Evocê,CaudaMosqueada?A outra anciã, uma gata atartarugada de focinho cinza,miou comuma
vozalquebradapelaidade:–Claroquenão.– Obrigado – miou Pata Cinzenta, ansioso. Adiantou-se, pegou um
camundongograndedapilhadepresaseatirou-oaospésdePatadeFogo,perguntando:–Vocêjáprovoucamundongo?– Ainda não – Pata de Fogo admitiu. De repente, sentiu-se estimulado
pelos odores mornos que exalavam da presa fresca. Todo o seu corpotremeu ao pensar em partilhar a primeira comida de verdade comomembrodoclã.–Nessecaso,podedaraprimeiramordida.Deixeumpoucoparamim!–
PataCinzentaabaixouacabeçaeseafastou,dandopassagemparaPatadeFogo.O gato agachou e deu uma boa mordida no camundongo. A carne
suculentaemaciatraduziaossaboresdafloresta.–Então,oqueachou?–perguntouPataCinzenta.–Fantástico!–murmurouPatadeFogo,aindadebocacheia.–Chegueparalá,então–miouPataCinzenta,dandoumpassoàfrentee
inclinandoacabeçaparadarumamordida.Enquanto os dois aprendizes partilhavam o camundongo, ouviam os
anciãosconversar.– Quanto tempo vai levar para Estrela Azul nomear um novo
representante?–perguntouOrelhinha.–Oquevocêdisse?–miouCaolha.–Achoque,alémdecega,vocêestáficandosurda!–disparouOrelhinha,
impaciente.–Pergunteiquantotempovai levarparaEstrelaAzulnomearumnovorepresentante.Caolha ignorou a resposta irritada de Orelhinha e dirigiu-se à rainha
atartarugada:–CaudaMosqueada,vocêlembraodia,muitasluasatrás,emqueaprópriaEstrelaAzulfoiindicadacomorepresentante?
Séria,CaudaMosqueadamiou:–Claro!Foipoucodepoisqueelaperdeuosfilhotes.– Ela não vai ficar contente em indicar um novo representante –
observouOrelhinha.–RaboVermelhoserviu-afielmentepormuitotempo.Maselaprecisasedecidirlogo.Deacordocomoscostumesdoclã,aescolhadeve ser feita antes da lua alta que ocorre depois da morte do antigorepresentante.–Aomenos,destavez,aescolhaéóbvia–miouMeioRabo.PatadeFogo levantouacabeçaepasseouosolhospelaclareira.Oque
seráqueMeioRaboqueriadizer?ParaPatadeFogo, todososguerreirospareciam dignos de se tornar representante. Talvez ele estivesse sereferindoaGarradeTigre;afinal,queriavingaramortedeRaboVermelho.Garra de Tigre não estava longe; sentado, apontava as orelhas para o
lugarondeosanciãosconversavam.Quando Pata de Fogo esticava a língua para lamber dos bigodes os
últimos restos do camundongo, da Pedra Grande ouviu-se o chamado deEstrelaAzul.OcorpodeRaboVermelhoaindaestavanaclareira,umcinza-claronaluzqueseapagava.–Umnovorepresentanteprecisaserindicado–elamiou.–Mas,primeiro,vamosagradeceraoClãdasEstrelaspelavidado nosso guerreiro. Esta noite ele estará ao lado de seus companheiros,entreasestrelas.Fez-sesilêncioquandotodososgatoselevaramosolhosparaocéu,que
começavaaescurecercomocairdanoitesobreafloresta.–AgoradevonomearonovorepresentantedoClãdoTrovão–Estrela
Azulcontinuou.–DigoessaspalavrasanteocorpodeRaboVermelho,paraqueseuespíritopossaouvireaprovarminhaescolha.Pata de Fogo olhou para Garra de Tigre. Não pôde deixar de notar o
desejo nos olhos cor de âmbar do grande guerreiro quando ele fitou aPedraGrande.–CoraçãodeLeão–miouEstrelaAzul–seráonovorepresentantedoClã
doTrovão.PatadeFogoestavacuriosoparaverareaçãodeGarradeTigre.Maso
rosto escuro do guerreiro nada revelava quando ele se dirigiu paracumprimentarCoraçãodeLeãocomumabraço tão fortequequase fezogatodouradoperderoequilíbrio.–PorqueelanãoescolheuGarradeTigrecomorepresentante?–Patade
FogoperguntoubaixinhoparaPataCinzenta.
– Provavelmente porque faz mais tempo que Coração de Leão éguerreiro;porissotemmuitomaisexperiência–PataCinzentasussurrouemresposta,aindaolhandoparaEstrelaAzul.A líder voltou a falar: – Rabo Vermelho também eramentor do jovem
Pata de Poeira. Como não deve haver demora no treinamento de nossosaprendizes,devoindicaronovomentordePatadePoeiraimediatamente.Risca de Carvão, você está pronto para receber seu primeiro aprendiz;assim, continuará o treinamento de Pata de Poeira. Você teve um ótimomentor em Garra de Tigre e espero que passe adiante as excelenteshabilidadesquelheforamensinadas.RiscadeCarvãoencheuopeitocomorgulhoaoaceitaramissãocomum
gesto solene. Dirigiu-se a Pata de Poeira, inclinou a cabeça e, de formadesajeitada, trocou toques de nariz com o novo pupilo. Pata de Poeiramovimentou a cauda com respeito, mas seus olhos sem brilho estavamtristespelamortedoantigomentor.Estrela Azul elevou a voz. – Passarei a noite velando o corpo de Rabo
Vermelho, antes de o enterrarmos ao nascer do sol. – Pulou da PedraGrandeefoideitar-seoutravezaoladodocorpodoguerreiro.Muitosdosoutrosfelinossejuntaramaela,entreeles,PatadePoeiraeOrelhinha.–Devemossentarcomeles?–sugeriuPatadeFogo.Tinhadeadmitirque
a ideianãoo atraíamuito. Foraumdia agitado e estava começandoa sesentircansado.Tudooquequeriaeraacharumlugarquenteesecoparaseenroscaredormir.PataCinzentabalançouacabeça.–Não;apenasosmaischegadosaRabo
Vermelho estarão com ele na última noite. Vou lhemostrar onde vamosdormir.Atocadosaprendizeséaliadiante.PatadeFogoseguiuPataCinzentaatéumcerradoarbustodesamambaia
queficavaatrásdeumtocodeárvorecheiodemusgo.– Todos os aprendizes partilham presas frescas nesse toco – Pata
Cinzentafalou.–Sãoquantosaprendizes?–perguntouPatadeFogo.–Não tantos quanto de costume; apenas eu, você, PataNegra, Pata de
PoeiraePatadeAreia.Enquanto os dois aprendizes se instalavam ao lado do toco de árvore,
uma jovem gata surgiu devagar das samambaias. Tinha a pelagemavermelhada,comoadePatadeFogo,masmuitomaisdesbotada,malsedistinguindoasriscasmaisescuras.
–Eisentãoonovoaprendiz!–elamiou,estreitandoosolhos.–Olá–respondeuPatadeFogo.A jovem gata farejou e disse rispidamente. – Ele cheira a gatinho de
gente. Não me diga que vou ter de dividir meu ninho com esse fedorrepulsivo!PatadeFogo ficou surpreso.Desde sua luta comRaboLongo, todosos
gatos tinhamsidobastanteamigáveis.TalvezestivessemapenasabaladoscomasnovidadesdePataNegra,pensou.– Perdoe Pata de Areia – desculpou-se Pata Cinzenta. – Ela deve estar
comumaboladepeloentaladaemalgumlugar.Nãocostumasertãomal-humorada.–Caleaboca!–cortouPatadeAreia.– O que é isso, jovens? – Ouviu-se a voz grave de Nevasca atrás dos
aprendizes.–PatadeAreia!Comominhaaprendiz,esperavaquefosseumpoucomaiscordialcomorecém-chegado.PatadeAreialevantouacabeçaeolhouparaNevasca,comardesafiador.
– Sinto muito, Nevasca – ronronou, sem parecer nem um poucoarrependida.–Équenãoesperavafazermeutreinamentocomumgatinhodegente;sóisso.–Tenhocertezadequevaiseacostumar,PatadeAreia–miouNevasca,
calmamente. – Já está ficando tarde e o treinamento começa bem cedoamanhã. Vocês três devem dormir um pouco. – Lançou um olhar severopara Pata de Areia, que concordou, obediente. Quando Nevasca saiu, elagirouedesapareceunamoitadeurtigas,fungandomaisumavezaopassarporPatadeFogo.Com ummovimento de cauda, Pata Cinzenta convidou Pata de Fogo a
segui-loefoiatrásdePatadeAreia.Ochãodaáreadedormireracobertodemusgomacio,eoluarfracodeixavatudocomumdelicadotomdeverde.Oarcheiravaasamambaiaeeramaisquentedoqueoládefora.–Ondeéqueeudurmo?–perguntouPatadeFogo.–Emqualquerlugar,desdequenãosejapertodemim!–rosnouPatade
Areia,enquantorevolviaumpoucodemusgocomapata.PataCinzentaePatadeFogotrocaramolhares,masnadadisseram.Pata
deFogojuntouumaporçãodemusgocomasgarras.Depoisdeprepararacama, fazendo um ninho aconchegante, andou em círculos até se sentirconfortáveleacomodou-se.Seucorpotodoestavasonolentoefeliz.Aqueleeraseular,agora.ElefaziapartedoClãdoTrovão.
CAPÍTULO5
–EI,PATADEFOGO,acorde!–omiadodePataCinzentainterrompeuosonhodoamigo,queestiveracaçandoumesquiloatéosgalhosmaisaltosdeumaltocarvalho.–Otreinamentocomeçaaoraiardosol.PatadePoeiraePatadeAreiajá
estãodepé–PataCinzentaacrescentou,aflito.PatadeFogoseespreguiçou,sonolento,eentãolembrou:eraoprimeiro
dia de treinamento. Pôs-se em pé com um pulo e o torpor evaporou àmedidaqueaempolgaçãoinvadiasuasveias.PataCinzentatomavaumbanhorápido.Entrelambidas,miou:–Acabei
defalarcomCoraçãodeLeão.PataNegrasóvaitreinarconoscoquandoaferidaestivermelhor.ProvavelmentevaificarnatocadeFolhaManchadapormaisumdiaoudois.PatadePoeiraePatadeAreiaestãoemmissãodecaça.PorissoCoraçãodeLeãopensouquenósdoispodíamostreinarcomele e Garra de Tigre hoje de manhã. Ou seja, é melhor se apressar –acrescentou.–Elesestãoesperando!PataCinzentaguiouPatadeFogo rapidamentepelaentradade tojodo
acampamento e pela lateral do vale salpicado de pedras. A brisa frescaacariciavaseuspelosenquantosubiamparaoaltodaravina.Nuvenscheiasebrancascortavamocéuazul.PatadeFogosentiuumaalegriaferozbrotardentrodeleaoseguirPataCinzentaporumdecliveàsombradeárvoresatéumvalearenoso.GarradeTigreeCoraçãodeLeãoestavamrealmenteesperandoporeles,
sentadoscompoucascaudasdedistânciaentresi,naareiaaquecidapelosol.–Nofuturo,esperoquesejammaispontuais–rosnouGarradeTigre.– Não seja severo demais, Garra de Tigre; a noite de ontem foi difícil.
Imagino que tenham mesmo ficado cansados – miou Coração de Leão,apaziguador. – Ainda não lhe foi designado um mentor, Pata de Fogo –continuou. – Por enquanto, Garra de Tigre e eu vamos dividir aresponsabilidadepeloseutreinamento.PatadeFogo ficou tãoentusiasmadoqueempinoua cauda, incapazde
disfarçaroprazerdeterdoisguerreirostãoimportantescomomentores.– Vamos – miou Garra de Tigre, impaciente. – Hoje mostraremos os
limitesdonossoterritórioparaquesaibamondevãocaçarequefronteirasprecisam proteger. Pata Cinzenta, não lhe fará mal se lembrar das
demarcaçõesdoterritóriodoclã.Semmaisnadadizer,GarradeTigredeuumsaltoesaiudovalearenoso.
CoraçãodeLeãofezumgestoparaPataCinzentaeosdoisdispararamnamesma velocidade. Pata de Fogo galgou o terreno atrás deles, as patasescorregandonaareiafofa.As árvores eram troncudas naquela parte da floresta, onde grandes
carvalhosfaziamsombraparabétulasefreixos.Ochãotinhaumtapetedefolhasmortasquebradiças,que farfalhavamsobaspatasdosgatos.GarradeTigreparouparaesguichar seu cheironummontede samambaias.Osoutrospararamaseulado.–TemumcaminhodosDuas-Pernasaqui–murmurouCoraçãodeLeão.
–Useonariz,PatadeFogo.Consegueidentificaralgumcheiro?PatadeFogo farejou.Havianoarum levecheirodeumDuas-Pernase
umodormaisforte,decachorro,queeleconheciadesuaantigacasa.–UmDuas-Pernastrouxeocachorroparapassearporaqui,masjáforamembora–miou.–Muitobem–aprovouCoraçãodeLeão.–Achaqueéseguroatravessar?PatadeFogo farejoumaisumavez.Osodores eram fracos epareciam
encobertosporcheirosmaisfrescosdafloresta.–É,sim–respondeu.GarradeTigreconcordoueosquatrofelinosseesgueiraramparaforada
cobertura de samambaias e atravessaram as pedras pontiagudas doestreitocaminhodosDuas-Pernas.Maisadiantehaviafileirasemaisfileirasdepinheirosaltoseretos.Era
fácilandarporalisemfazerbarulho.Ochãoeraespesso,comcamadasdeagulhassecasdepinheiroquepinicavamassolasdePatadeFogo,maslhedavam a sensação de pisar em espuma. Não havia por ali nenhumavegetação rasteira onde pudessem se esconder, e Pata de Fogo percebeuum certo nervosismo nos outros gatos por caminharem desprotegidosentreostroncosdeárvores.–OsDuas-Pernaspuseramessasárvoresaqui–miouGarradeTigre.–
Elesasderrubamcomcriaturasdecheiroruimquevomitamtantafumaçaquedeixaosgatoscegos.EntãolevamasárvoresderrubadasparaoPontodeCortedeÁrvores,queficaaquiperto.PatadeFogoparoueprocurououviro rugidodo comedordeárvores,
quejáconhecia.–O lugar dasÁrvores Cortadas vai ficar em silêncio pormais algumas
luas, até a época das folhas verdes – explicou Pata Cinzenta, percebendo
queelehaviaparado.Osgatosseguirampelaflorestadepinheiros.–O lugardosDuas-Pernas ficanaqueladireção–miouGarradeTigre,
jogandoacaudaparaolado.–Semdúvida,vocêpodesentirocheiro,PatadeFogo.Mas,hoje,vamosparaoladocontrário.FinalmentechegaramatéoutrocaminhodosDuas-Pernas,quemarcava
o limiteextremoda florestadepinheiros.Cruzaramrapidamenteparaosarbustos seguros da floresta de carvalhos, mais além. Mas Pata de Fogoaindapercebiaaansiedadedosoutrosfelinos.–EstamosnosaproximandodoterritóriodoClãdoRio–murmurouPata
Cinzenta.–ÉondeficamasRochasEnsolaradas.–Apontoucomofocinhomacioparaummontederochassemvegetação.PatadeFogosentiuopeloeriçar.EraolugarondeRaboVermelhotinha
sidomorto.CoraçãodeLeãoparoupertodeumapedracinzaeachatada.–Aquiéa
fronteiraentreosterritóriosdoClãdoTrovãoedoClãdoRio.OClãdoRiodita as regrasnas zonasde caça ao ladodogrande rio –miou. –Respirefundo,PatadeFogo.OcheirocáusticodegatosestranhoschegouaocéudabocadePatade
Fogo. Ele se surpreendeu ao perceber como era diferente dos cheirosmornos dos gatos do acampamento do Clã do Trovão. E também ficouadmirado ao se dar conta de como já lhe pareciam familiares ereconfortantesosodoresdoClãdoTrovão.–Este é o cheirodoClãdoRio – rosnouGarradeTigre ao seu lado. –
Lembre-sebemdisso.Ocheiroserámaisfortenafronteiraporqueéondeosguerreirosmarcamasárvorescomseusodores.–Comessaspalavras,ogato de pelo escuro ergueu a cauda e esguichou seu cheiro na pedraachatada.– Vamos seguir essa linha de fronteira, pois ela leva direto a Quatro
Árvores–miouCoraçãodeLeão.Ele se pôs em marcha rapidamente, distanciando-se das Rochas
Ensolaradas;foiseguidoporGarradeTigre.PataCinzentaePatadeFogoosacompanharam.–QuatroÁrvores?Oqueéisso?–PatadeFogoarfou.–Éopontoondeosterritóriosdosquatroclãsseencontram–respondeu
Pata Cinzenta. – Ali há quatro grandes carvalhos, tão velhos quanto osclãs…
–Calados!–ordenouGarradeTigre.–Nãoesqueçamqueestamosmuitopertodoterritórioinimigo!Os dois aprendizes fizeram silêncio e Pata de Fogo se concentrou na
caminhadasilenciosa.Atravessaramumriachoraso,pulandodeumapedraaoutrapeloleitodorioparanãomolharemaspatas.QuandochegaramaQuatroÁrvores,PatadeFogoestavacompletamente
semarecomaspatasdoloridas.Nãoestavaacostumadoacaminhadastãolongas, aindamaisnaquela velocidade. Ficou aliviadoquandoCoraçãodeLeão e Garra de Tigre os conduziram para fora da floresta fechada epararamnoaltodeumaencostacobertadearbustos.O sol agora estava a pino. As nuvens tinham desaparecido e o vento
diminuíra. Abaixo, banhados pelo sol ofuscante, havia quatro enormescarvalhos, as coroas verde-escuras quase alcançando o topo da encostaíngreme.–ComodissePataCinzenta–miouCoraçãodeLeãoparaPatadeFogo–,
aquiéolugarchamadoQuatroÁrvores,ondesejuntamosterritóriosdosquatroclãs.OClãdoVentogovernaaquelaterraaltaàfrente,ondeosolsepõe.Hojevocênãovaiconseguirperceberocheirodeles,poisoventoestásoprandoafavor.Maslogovaireconheceroodor.– E o Clã das Sombras dominamais adiante, na parte mais escura da
floresta – acrescentou Pata Cinzenta, virando a cabeça de um lado paraoutro. – Os anciãos dizem que os ventos frios do norte sopram sobre osgatosdoClãdasSombrasegelamseuscorações.– São tantos clãs! – exclamou Pata de Fogo. E tão bem organizados,
pensou,lembrando-sedashistóriashorripilantesqueBorrãocontavasobregatosselvagensespalhandoterrorpelafloresta.–Vocêagorapodeentenderporqueacaçaétãovaliosa–miouCoração
deLeão.–Porqueprecisamoslutarparaprotegeropoucoquetemos.– Mas isso parece sem sentido! Por que os clãs não podem trabalhar
juntosepartilharaszonasdecaça,emvezdelutaremunscontraosoutros?–PatadeFogosugeriu,comaudácia.Suaspalavrasforamrecebidascomumsilêncioimpactante.GarradeTigrefoioprimeiroaresponder:–Essaéumaformatraiçoeira
depensar,gatinhodegente.– Não seja tão feroz, Garra de Tigre – advertiu Coração de Leão. – As
regrasdosclãssãonovasparaesseaprendiz.–Dirigiu-seaPatadeFogo:–Vocêfalacomocoração,jovemPatadeFogo.Umdia,issofarádevocêum
guerreiromaisforte.Garra de Tigre rosnou: – Ou poderá fazê-lo render-se à fraqueza de
gatinhodegentebemnomomentodoataque.Coração de Leão olhou rapidamente para Garra de Tigre antes de
continuar. – Os quatro clãs, na verdade, têm um encontro pacífico numaAssembleiaacada lua.Bemaqui– inclinouacabeçaemdireçãoaquatrograndes carvalhos que ficavam abaixo. – A trégua dura até a lua cheiaatingiroápice.– Então, em breve haverá um encontro? – perguntou Pata de Fogo,
lembrandooluarbrilhantedavéspera.–Éverdade!–respondeuCoraçãodeLeão,parecendoimpressionado.–
Aliás,éhoje.AsReuniõessãomuitoimportantesporquepermitemqueosclãs seencontremempazporumanoite.Maséprecisoqueentendaquealiançasmaislongastrazemmaisproblemasquebenefícios.–Éanossa lealdadeaoclãquenostorna fortes–GarradeTigremiou,
concordando.–Sevocêenfraquecea lealdade,enfraquecenossaschancesdesobrevivência.–Compreendo–PatadeFogomiou,assentindocomacabeça.–Vamos lá – disse Coração de Leão, pondo-se de pé. – Continuemos a
caminhada.Passarampeloaltodovale,ondeficavaQuatroÁrvores.Agoraestavam
seafastandodosol,quecomeçavaamergulharnocéudatarde.Cruzaramoriachonumpontoestreito,quepermitiaatravessianumpulosó.Pata de Fogo farejou o ar. Um novo cheiro de gato atingiu-lhe as
glândulasdaboca,forteeácido.–Queclãéesse?–perguntou.–OClãdasSombras–grunhiu,feroz,GarradeTigre.–Estamospassando
por suas fronteiras. Fique alerta, Pata de Fogo. Cheiros mais frescossignificamqueumapatrulhadoClãdasSombrasestánaárea.QuandoPatadeFogoconcordoucomacabeça,ouviuumbarulhoaltoe
desconhecido.Ficouparalisado,masosoutrosgatosmantiveramopasso,indodiretonadireçãodoterrívelestrondo.– O que é isso? – Pata de Fogo perguntou, acelerando o passo para
alcançaroscompanheiros.–Numinstantevocêvaiver–respondeuCoraçãodeLeão.PatadeFogoolhouentreasárvoresadiante.Pareciamestarficandomais
finas, deixando-se penetrar por uma larga faixa de sol. – Estamos nos
limites da floresta? – perguntou. O aprendiz parou e respirou fundo. Osaromasverdesdaflorestamisturaram-seaoutros,estranhosetenebrosos.Dessaveznãoeracheirodegato,masumodorqueofezlembrar-sedasuaantiga casa dos Duas-Pernas. O barulho se tornava cada vez mais alto eretumbava semparar, fazendoo chão tremer,maltratandoosouvidosdePatadeFogo.–EsteéoCaminhodoTrovão–miouGarradeTigre.Pata de Fogo e os outros seguiram Coração de Leão em direção aos
limites da floresta. Então ele sentou, e os quatro gatos se puseram aobservar.PatadeFogoviuumcaminhoacinzentado,quecortavaa florestacomo
um rio. A pedra dura e cinza se estendia tão longe à sua frente que asárvores do outro lado pareciam borradas e pequenas. Pata de Fogoestremeceuaosentirocheiroacrequeexalavadocaminho.De repente, saltou para trás, arrepiando-se todo quando um monstro
gigantescopassourugindo.Osgalhosdasárvoresqueladeavamocaminhobatiamloucamenteporcausadoventoquecorriaatrásdomonstroveloz.PatadeFogoolhouparaosoutrosfelinos;tinhaosolhosarregaladosenãoconseguia falar. Já tinha visto caminhos como aquele perto da sua antigacasadosDuas-Pernas,masnuncaumtãoextenso,nemcommonstrostãovelozesebravios.–Daprimeiravez, tambémmorridemedo–observouPataCinzenta.–
Mas, aomenos, ele ajuda a evitar que os guerreiros do Clã das Sombrasentrem no nosso território. O Caminho do Trovão corre por muitaspassadas ao longo da nossa fronteira. Não se preocupe; esses monstros,pelojeito,nuncasaemdoCaminhodoTrovão.Vocêficarábem,desdequenãocheguepertodemais.–Estánahoradevoltarparaoacampamento–miouCoraçãodeLeão.–
Vocêsagorajáconhecemtodasasnossasfronteiras.MasvamosdesviardasRochasdasCobras,emboraocaminhosejamais longo.Umaprendizsemtreinoseriaumapresafácilparaumaserpente,eimaginoquevocêestejaficandocansado,PatadeFogo.PatadeFogosentiu-sealiviadocomaideiaderetornaraoacampamento.
Sua cabeça rodopiava com todos os novos cheiros e as novas visões, eCoraçãodeLeãotinharazão:estavacansadoefaminto.Colocou-seatrásdePata Cinzenta quando os gatos se afastaram do Caminho do Trovão evoltaramparaafloresta.
Os aromas orvalhados da tardinha enchiam o ar quando Pata de Fogoatravessou a entradade tojosdo acampamentodoClãdoTrovão. Presasfrescasosesperavam.PatadeFogoePataCinzentatiraramsuasporçõesdeuma pilha na parte sombreada da clareira e as levaram para o toco deárvorequeficavaforadosalojamentos.PatadePoeiraePatadeAreiajáestavamlá,mascandovorazmente.– Ei, gatinho de gente – miou Pata de Poeira, contraindo os olhos
desdenhosamenteparaPatadeFogo.–Saboreieacomidaquenóspegamosparavocê.– Quem sabe, um dia, você vai aprender a caçar a própria comida! –
debochouPatadeAreia.–Vocêsdoisaindaestãoemmissãodecaça?–perguntou,inocente,Pata
Cinzenta. – Não faz mal. Estávamos patrulhando as fronteiras do nossoterritório.Vocêsvãoficarfelizesemsaberqueestátudoasalvo.– Tenho certeza de que os outros clãs ficaram apavorados quando
farejaramvocêschegando–uivouPatadePoeira.– Eles nem sequer ousaram mostrar a cara – replicou Pata Cinzenta,
incapazdedisfarçararaiva.–Vamosperguntarissoaeleshojeànoite,naAssembleia–miouPatade
Areia.– Vocês vão à Assembleia? – disparou Pata de Fogo, impressionado,
apesardahostilidadedosaprendizes.–Claroquevamos–respondeuPatadePoeiracomarrogância–Éuma
grande honra, você sabe.Mas não se preocupe; pelamanhã, contaremostudoavocê.PataCinzenta ignorou abravatadePatadePoeira e começoua comer
suapresa.PatadeFogotambémestavafamintoe inclinou-separacomer.NãoconseguiuevitarumapontadadeinvejaaosaberquePatadePoeiraePatadeAreiairiamaoencontrodosoutrosclãsnaquelanoite.AoouvirochamadoemvozaltadeEstrelaAzul,PatadeFogoolhoupara
cima.Reparouquediversosguerreirosdoclãeosanciãosse reuniamnaclareira.EstavanahoradeogrupodoclãpartirparaaAssembleia.PatadePoeiraePatadeAreiaselevantarameforamjuntar-seaosoutrosgatos.–Tchau,vocêsdois–dissePatadeAreiaporsobreosombros.–Tenham
umaboanoite,calmaetranquila!Os felinos reunidos se dirigiram silenciosamente para a entrada do
acampamento em fila indiana, com Estrela Azul à frente. O pelo da líderbrilhavacomoprataàluzdaluaeelaestavacalmaeconfianteaoconduzirseuclãparaabrevetréguaentrevelhosinimigos.– Você nunca esteve emumaAssembleia? – perguntouPata de Fogo a
PataCinzentacomcertamelancolia.– Ainda não – respondeu Pata Cinzenta, mascando ruidosamente um
ossodecamundongo.–Masnãovaidemorarmuito;bastaesperar.Todososaprendizestêmasuavez.Os dois aprendizes fizeram o resto da refeição em silêncio. Quando
terminaram,PataCinzenta foi atéPatadeFogo e começouapentear suacabeça.Aoselavarem,trocaramlambidas,comoPatadeFogotinhavistoosoutros gatos fazeremquando chegouaoacampamentopelaprimeiravez.Então,cansadosdalongacaminhada,foramparaatoca.Aconchegaram-senosninhoselogopegaramnosono.Namanhãseguinte,PataCinzentaePatadeFogochegaramcedoaovale
arenoso. Tinham saído antes de Pata de Areia e Pata de Poeira acordar.Pata de Fogo estava ansioso para saber sobre a Assembleia, mas PataCinzentaoarrastara,dizendo:–Vocêvaificarsabendodetudomaistarde,sebemconheçoaquelesdois.Maisumavez,odiaprometiaserquente.Dessavez,PataNegrajuntou-se
aeles.GraçasaFolhaManchada,aferidaestavasarando.PataCinzentabrincava,jogandofolhasparacimaepulandoparaapanhá-
las.PatadeFogoprestavaatenção,divertido,balançandoacauda.Sentadoquietinhoemumcantodovale,PataNegrapareciatensoeinfeliz.– Anime-se, Pata Negra – miou Pata Cinzenta. – Sei que não gosta de
treinar,masnuncaovitãoabatidoassim.OscheirosdeCoraçãodeLeãoeGarradeTigrealertaramosaprendizes
desuachegada,ePataNegramiourapidamente:–Équeeunãogostariademachucarmeuombrodenovo.Nessemomento, Garra de Tigre surgiu dos arbustos, seguido de perto
porCoraçãodeLeão.– Guerreiros devem sofrer a dor em silêncio – rosnou Garra de Tigre,
fitando Pata Negra direto no olho. – Você precisa aprender a segurar alíngua.PataNegrarecuoueolhouparaochão.–GarradeTigreestámeiorabugentohoje–PataCinzentacochichouna
orelhadePatadeFogo.
CoraçãodeLeão lançouumolharseveroparaoaprendizeanunciou:–Hoje vamospraticar tocaia.Háumagrandediferença entre aproximar-sedeumcoelhoeaproximar-sedeumcamundongo.Algumdevocêssabemedizerporquê?PatadeFogonãotinhaamenorideia,ePataNegra,pelovisto, levaraa
sérioocomentáriodeGarradeTigreeestavasegurandoalíngua.–Vamos!–miou,impaciente,GarradeTigre.FoiPataCinzentaque respondeu: –Porqueumcoelho vai sentir o seu
cheiro antes de vê-lo,mas um camundongo sentirá seus passos no chão,mesmoantesdefarejarvocê.– Exatamente, Pata Cinzenta! Então, o que é preciso ter em mente
quandocaçamoscamundongos?–Pisardeleve?–PatadeFogosugeriu.CoraçãodeLeãoolhou-o comaprovaçãoedisse: –Muitobem,Patade
Fogo.Éprecisoconcentrartodoopesonosquadris,paraqueaspatasnãocausemimpactonochãodafloresta.Vamosexperimentar!PatadeFogoobservouenquantoPataCinzentaePataNegraagacharam
imediatamentenaposiçãodetocaia.– Muito bem, Pata Cinzenta! – miou Coração de Leão quando os dois
aprendizessemoveramparaafrentedemaneirafurtiva.– Mantenha o quadril baixo, Pata Negra; parece um pato! – disparou
GarradeTigre.–Agora,tentevocê,PatadeFogo.PatadeFogoagachouecomeçouarastejarpelochãodafloresta.Tevea
sensaçãodeque seu corpo instintivamenteassumiuaposição certa e, aoavançardamaneiramaisleveesilenciosaquepôde,encheu-sedeorgulhoporseusmúsculosresponderemtãofacilmente.–Bem,ficaclaroquevocênadasabedeleveza!–miouGarradeTigre.–
Rastejoucomoumgatinhodegentepesadão!Estápensandoqueo jantarvaisedeitarnasuatigelaeesperarsercomido?PatadeFogo se retesou rapidamenteaoouvir aspalavrasdaGarrade
Tigre, ficando um tanto abalado pelo tom duro. Ouviu o guerreiro comatenção,determinadoafazertudocerto.– O ritmo e o movimento para a frente virão mais tarde, mas o
agachamentodePatadeFogoestáperfeitamenteequilibrado!–CoraçãodeLeãodestacougentilmente.–EstámelhorqueodePataNegra,peloquevejo– reclamouGarrade
Tigre, olhando comdebochepara o gatonegro. –Mesmodepois de duasluas de treinamento, você ainda está colocando todo o peso do ladoesquerdodocorpo.PataNegraficouaindamaisdesalentado;PatadeFogonãosecontevee
deixouescapar:–Masomachucadodeleestádoendo,éporisso.GarradeTigrevirouacabeçaeencarouPatadeFogo.–Asferidasfazem
parte da vida. Ele devia ser capaz de se adaptar. Até você, Pata de Fogo,aprendeualgumacoisanestamanhã.SePataNegrapegasseascoisas tãodepressa quanto você, ele seria motivo de honra para mim, não umproblema. Imagine ser ultrapassadopor umgatinhode gente! – grunhiu,zangado,paraoaprendiz.Incomodado com aquilo, Pata de Fogo sentiu o pelo pinicar. Não
conseguiaencararPataNegraeolhouparabaixo,paraasprópriaspatas.–Bem,euestoumaistortoqueumtexugoperneta–miouPataCinzenta,
passando a cambalear comicamente pela clareira. – Vou ter de meconformar com caçar camundongos burros. Eles não terão nenhumachance. Irei capengandoatéondeestivereme sentarei emcimadeles atéqueserendam.–Concentre-se,jovemPataCinzenta.Nãoéhoradefazerpiada!–miou,
sério, Coração de Leão. – Talvez consiga se concentrar melhor se tentartocaiarumapresadeverdade.Ostrêsaprendizesficaramanimados.–Queroque cadaumde vocês tente apanhar umapresade verdade –
miouCoraçãodeLeão.–PataNegra,olheaoladodaÁrvoredaCoruja.PataCinzenta, deve haver alguma coisa naquela grande faixa de amoreiras aliadiante.Evocê,PatadeFogo,sigaapistadoscoelhosnaquelasubida;vaiencontraro leito secodeumriachode inverno.Écapazdeacharalgumacoisaporlá.Os aprendizes saíram, até mesmo Pata Negra, que encontrou alguma
energiaextraparaencararodesafio.Comosanguepulsandonasorelhas,PatadeFogorastejoudevagarpela
subida.Realmenteumleitoderiocortavaasárvoresàsuafrente.Naépocadas folhas caídas, imaginou, aquele leito levaria a chuva da floresta emdireção ao grande rio que atravessava o território do Clã do Rio. Agoraestavaseco.
PatadeFogosearrastousembarulhopelamargemeagachounoterreno
arenoso.Seussentidosseinflamavamdeexcitação.Emsilêncio,examinouo rio seco, atrás de sinais de vida. Com a boca aberta, para captar atémesmoocheiromaisdiscreto,easorelhasvoltadasparaafrente,prestavaatençãoacadapequenomovimento.Sentiu,então,cheirodecamundongo.Reconheceuoodorimediatamente,
lembrando-sedaprimeiraprovananoiteanterior.Umaenergiaselvagemtomou conta dele, mas ele não se mexeu, tentando desesperadamentelocalizarapresa.Retesouasorelhasparaafrenteeentãopercebeuorápidopulsardeum
minúsculocoraçãodecamundongo.Foiquandoumlampejomarromatraiuseuolhar.Acriaturaescalavaogramadoaltoquemargeavaorio.PatadeFogoavançouumpoucomais,lembrando-sedemanteropesonosquadrisaté que estivesse na distância certa para pular. Em seguida, apoiando-sefirmemente nas patas traseiras, tomou impulso e saltou, levantando umanuvemdeareia.Ocamundongoesquivou-se.MasPatadeFogofoimaisrápido.Atirou-o
no ar com uma pata, lançou-o no leito arenoso do rio e arremessou-sesobreele,abatendo-ocomumamordidacerteira.Pata de Fogo levantou com cuidado o corpomorno entre os dentes e,
comacaudaerguida,voltouparaovaleondeGarradeTigreeCoraçãodeLeãoesperavam.Eraaprimeiravezquematavaumapresa.AgoraeraumverdadeiroaprendizdoClãdoTrovão.
CAPÍTULO6
OSOLDO INÍCIOdamanhãbanhavaochãoda florestaquandoPatadeFogosaiuembuscadepresas.Duasluashaviamsepassadodesdeoiníciodoseutreinamento.Elesesentiaàvontadenaqueleambienteagora.Seussentidostinhamsidodespertadoseeducadosàmaneiradafloresta.PatadeFogoparouparafarejaraterraeascoisasescondidasquenelase
revolviam.PercebeuocheirodeumDuas-Pernasqueandarapelaflorestarecentemente.Agoraqueaépocadasfolhasverdeschegaradeverdade,afolhagem enchia os galhos de árvores e pequenas criaturas trabalhavamocupadassobotapetedehumo.AsombraesguiaefortedePatadeFogomovia-sesilenciosamenteentre
asárvores,etodososseussentidosestavamatentosàtrilhadecheirosqueterminariaemumamorterápida.Eraaprimeiravezquesaíasozinhonumamissão e estava determinado a ter sucesso, mesmo que a missão fosseapenaslevarpresasfrescasparaoclã.Dirigiu-seaoriachoquehaviacruzadonasuaprimeiracaminhadapela
zonadecaçadoClãdoTrovão.Borbulhasdeáguarespingavamdorioquecorria sobre as pedras lisas e redondas. Pata de Fogo fez uma pequenaparadaparabeberdaáguafriaeclara;levantouacabeçaevoltouafarejaroar,procurandoalgumcheirodepresa.Ofedorderaposaeraforte.Umcheiroazedodenunciavaqueelaandara
bebendoporalimaiscedo.PatadeFogoreconheceuoodorquesentiranaprimeiravisita à floresta.Desdeentão,CoraçãodeLeão lhe ensinaraqueaquiloeracheiroderaposa,mas,alémdeumacaudaqueeleviraderelancenaquela primeira saída, Pata de Fogo nunca tinha visto uma raposa deverdade.Teve de se esforçar para ignorar o odor de raposa e se concentrar no
cheirodapresa.Derepente,osbigodesseretesaramquandoelepercebeuopulsardosanguequentedeumacaça–umratosilvestresemexendononinho.Ummomento depois, ele avistou a presa. O corpo gordo emarrom se
lançava para a frente e para trás ao longo da margem, enquanto o ratojuntava hastes de grama. Pata de Fogo ficou com água na boca só deimaginar.Jáfaziamuitashorasdesdesuaúltimarefeição,masnãoousariacaçarparasimesmoatéqueoclãtivessesidoalimentado.Lembrava-sedaspalavrasqueCoraçãodeLeãoeGarradeTigrenãocansavamderepetir:“O
clãdeveseralimentadoemprimeirolugar.”Agachou-seecomeçouatocaiarapequenacriatura.Suabarrigaamarela
roçava a grama úmida. Chegou mais perto, sem tirar os olhos da presa.Estavaquaselá.Maisuminstanteeestariapertosuficienteparapular…Derepente,algumacoisasemexeunassamambaiasatrásdele, fazendo
barulho.Asorelhasdoratosilvestreestremecerameeledesapareceuemumburaconamargem.PatadeFogosentiuopeloeriçar-seaolongodaespinha.Algoarruinara
suaprimeiraboachancedepegarumapresae,fosseoquefosse,haveriadepagar.Farejouoar.Sabiaqueeraumgato,maspercebeucomumtremorque
não podia identificar a que clã pertencia, pois o cheiro azedo da raposaconfundiaseuolfato.Um grunhido brotou-lhe na garganta quando ele começou a recuar,
fazendo um grande círculo. Retesou as orelhas e arregalou os olhos,procurandoalgummovimento.Ouviuoruídonavegetaçãomaisumavez.Agoraeramaisalto,vinhadeumdoslados.PatadeFogoseaproximou.Viuassamambaiassemovendo,masacopadasárvoresaindaoimpediadevero inimigo. Um galho quebrou, produzindo um som agudo. Pelo barulho,deve ser grande, pensou Pata de Fogo, preparando-se para uma batalhaferoz.Pulouparao troncodeum freixoe subiu rápidae silenciosamenteaté
um galho pendurado. Debaixo dele, o guerreiro invisível se aproximavacadavezmais.PatadeFogoprendeua respiraçãoe, enquantoavaliavaasituação, as samambaias se abriram e delas surgiu uma grande formaacinzentada.– Grrrrrrrr – O grito de batalha bramiu na garganta de Pata de Fogo.
Garras de fora, ele se lançou sobre o inimigo, caindo sobre ombrosvigorosos e peludos. Atirou-se com força, cravando as garras afiadas,prontoparadesferirumapoderosamordidadealerta.–Ei! Ei!Oque é isso? –O corpo sobPatadeFogodeuumpulono ar,
carregando-ojunto.–Hã?PataCinzenta?–PatadeFogoreconheceuavozespantadaesentiu
ocheirofamiliardoamigo;masestavamuitoagitadoparasoltarasgarras.–Emboscada!!Miauuuuuuuuu!!–disparouPataCinzenta,semperceber
queeraPatadeFogoque lheagarravaascostas.Ogatosecontorciasemparar,tentandosesoltardoagressor.
–Uuff-ff! – Pata de Fogo se contorcia também, imprensado e achatadosob o corpo pesado. – Sou eu, Pata Cinzenta! – gritou, lutando para selibertar e recolher as garras.Retorcendo-se, ficoudepé; sacudiuo corpotodo, num tremor que lhe eriçou o pelo até a ponta da cauda. – PataCinzenta!Soueu–repetiu.–Penseiquefosseumguerreiroinimigo!Pata Cinzenta se levantou. Estremeceu e sacudiu o corpo. – Parecia
mesmo! – falou entre dentes, virando a cabeça para lamber os ombrosmachucados.–Vocêmearranhoutodo!–Desculpe!–PatadeFogomurmurou.–Masoqueéqueeu iapensar,
comvocêseaproximandodessejeitosorrateiro?– Sorrateiro? – Os olhos de Pata Cinzenta ficaram redondos de
indignação.–Foiminhamelhortocaia.–Tocaia!–Vocêfoitãodiscretoquantoumtexugomanco!–PatadeFogo
provocou,abaixandoasorelhas,divertido.Pata Cinzenta deu um assobio de prazer. – Vou lhe mostrar quem é
manco.Osdoisgatospularam,engalfinhando-senumalutadebrincadeira.Pata
CinzentaatingiuPatadeFogocomforçaeojovemaprendizviuestrelas,acabeçazunindo.– Uufff-ff! – Pata de Fogo sacudiu a cabeça para colocar as ideias em
ordemepartiuparaocontra-ataque.Conseguiu ainda dar uns dois golpes antes que Pata Cinzenta o
dominasse,mantendo-onochão.PatadeFogosoltouocorpo.– Você desiste fácil demais! –miou Pata Cinzenta, afrouxando a garra.
Nessemomento,PatadeFogoergueu-se comumgirodo corpo, atirandoPataCinzentanavegetação.Emseguida,pulandosobreele,PatadeFogo imobilizou-onochão.–A
surpresaéamaiorarmadeumguerreiro–grunhiu,citandoumadasfrasesfavoritas de Coração de Leão. Soltou-se agilmente de Pata Cinzenta ecomeçouarolarnacamadadefolhas,saboreandoavitóriafácileocalordaterranascostas.PataCinzentanãopareceuaborrecidopelasegundaderrotadamanhã.O
diaestavabonitodemaisparaentregar-seaomauhumor.–Eentão?Comoestásesaindonessaprimeiratarefa?–perguntou.PatadeFogosentou–Iamuitobematévocêaparecer!Estavaapontode
pegarumratosilvestrequandoobarulhodosseuspassosoassustoueelefugiu.
–Ah,desculpe–miouPataCinzenta.PatadeFogoolhouparaoamigocabisbaixo.–Tudobem.Vocênãosabia
– ronronou. –Mas vocênãodevia estar indo ao encontrodapatrulhanafronteira do Clã do Vento? Pensei que tinha de lhes entregar umamensagemdeEstrelaAzul.–Éverdade,masaindatenhomuitotempo.Primeiroiacaçarumpouco.
Estoumortodefome!–Eutambém.Masprecisocaçarparaoclãantesdecaçarparamim.–ApostoquePatadePoeiraePatadeAreiacostumavamengolirumou
dois musaranhos quando estavam em missão de caça – bufou PataCinzenta.– Não ficaria surpreso com isso, mas esta é minha primeira tarefa
sozinho…–Evocêquerfazerdireitinho;seicomoé–PataCinzentasuspirou.–Afinal,qualéamensagemdeEstrelaAzul?–PatadeFogoperguntou,
mudandodeassunto.–ElaquerqueapatrulhaesperenoGrandePlátanoatéquesereúnaa
elesnosolalto.ParecequealgunsfelinosdoClãdasSombrasestiveramporláatrásdepresas.EstrelaAzulquerfazerumainspeção.–Então,émelhorvocêir–PatadeFogoaconselhou.–AszonasdecaçadoClãdoVentonãoficamlongedaqui.Hátempode
sobra – respondeu Pata Cinzenta, confiante. – Acho que émelhor ajudarvocê,jáque,porminhacausa,perdeuoratosilvestre.–Não fazmal–miouPatadeFogo.–Encontrareioutro.Odiaestá tão
quentequedevehaverumbocadodelesporaí.–Éverdade.Masvocêaindaprecisapegá-los.–PataCinzentamordiscou,
pensativo,umadaspatasdianteiras,tirandoumalascadagarradescoberta–Vocêsabequeissopodedemoraratéosolficaralto,talvezatéopôrdosol.Pata de Fogo concordou sem entusiasmo, sentindo a barriga roncar.
Provavelmente teria de fazer três ou quatro excursões de caça antes deconseguiracumularpresassuficientes.OTuledePrataestarianocéuantesquetivesseumachancedecomer.PataCinzentabalançouosbigodes.–Vamoslá;vouajudá-loacomeçar.É
o mínimo que posso fazer para compensá-lo. Acho que conseguiremospegaralgunsratossilvestresantesqueeumevá.
PatadeFogoseguiuPataCinzentarioacima,contentepelacompanhiaepelaajuda.Ofedordaraposaaindaestavanoar,mas,derepente,pareceumaisforte.PatadeFogoparoueperguntou:–Estásentindoessecheiro?Pata Cinzenta parou e também farejou o ar. – É raposa. Já senti esse
cheirohoje.–Masnãoparecemaisfrescoagora?–perguntouPatadeFogo.Pata Cinzenta voltou a farejar, abrindo levemente a boca. – Você tem
razão –murmurou, abaixando a voz. Virou a cabeça para olhar do outroladodorio,nadireçãodosarbustosqueficavamnafloresta.–Olhe!–faloubaixinho.PatadeFogoolhoueviuumacoisavermelhaepeludasemovendoentre
osarbustoseentrandoemumaclareiradavegetação.Eraumcorpobaixoerubro, que cintilava à luz do sol. A cauda era bastante peluda, com umapontacompridaeestreita.–Então,istoéqueumaraposa?–cochichouPatadeFogo–Quefocinho
feio!–Temrazão!–concordouPataCinzenta.– Eu estava seguindo uma dessas quando nós… nos conhecemos –
murmurouPatadeFogo.– Era ela que provavelmente seguia você, seu idiota! – sibilou Pata
Cinzenta. – Jamais confie numa raposa. Parece um cachorro, mas secomporta comoumgato. Precisamos avisar as rainhas sobre essa raposadesgarrada no nosso território. – As raposas são tão ruins quanto ostexugosquandosetratadematarfilhotes.Estoufelizquevocênãoatenhaalcançado quando a viu da última vez. Ela teria feito gato e sapato dealguémtãopequeno.–PatadeFogoolhoumeiosemjeitoePataCinzentaacrescentou: – Mas agora você já tem mais chance. De qualquer forma,provavelmenteEstrelaAzul vaimandarumapatrulhade guerreirosparaespantá-la.Issovaiacalmarasrainhas.Araposanãotinhanotadoosdoisaprendizesque,assim,continuaramao
longodoriacho.– Então, como é um texugo? – perguntou Pata de Fogo, à espreita,
farejandodeumladoparaoutro.–Pretoebranco,pernascurtas.Vocêvaireconhecerquandoencontrar.
Sãomal-humorados,animaispesados.Émenosprovávelqueelesataquemoberçáriodoqueumaraposa,massuamordidaéterrível.Comovocêacha
queovelhoMeioRaboganhouaquelenome?Elenãoconseguemaissubiremárvoredesdequeumtexugolhearrancouacauda!–Porquenão?–Temmedode cair.Umgatoprecisa do rabopara aterrissar depé.O
raboajudaagirarnomeiodosalto.PatadeFogobalançouacabeça,sinalizandoquehaviaentendido.Como Pata de Fogo previra, a caça foi boa naquele dia. Não demorou
muitoparaPataCinzentaagarrarumcamundongopequenoePatadeFogopegarumsabiá.Eleomatourapidamente.Nãohaviatempoparapraticartécnicas de abate. Eram muitíssimas as bocas famintas esperando noacampamento.PatadeFogo jogou terra sobreapresa,paraque ficasseasalvodepredadoresatéqueviessebuscá-la.Derepente,apareceuumesquilo.PatadeFogosepôsemação.–Atrásdele!–gritou,espichando-seaose
atirarnochãodafloresta,seguidoporPataCinzenta.Paroudesúbitoquandooesquiloescapuliuparaoaltodeumabétula.–Nósoperdemos!–PataCinzentagrunhiu,desapontado.Resfolegando, osdois gatospararampara recuperar o ar.O fedor acre
quechegavaasuasbocasenarizesossurpreendeu.–OCaminhodoTrovão–miouPatadeFogo.–Nãopercebiquetínhamos
vindotãolonge.Os dois gatos avançaram para olhar além da floresta, para o caminho
grandeeescuro.Eraaprimeiravezqueestavamalisozinhos.Umatrilhadecriaturas barulhentas grunhia pela superfície dura, com os olhosmortosolhandodiretoparaafrente.–Eca!–miouPataCinzenta.–Essesmonstrosrealmentefedem!Pata de Fogo sacudiu as orelhas, concordando. Aqueles cheiros
asfixiantesfaziamsuagargantaarder.–VocênuncaestevenoCaminhodoTrovão?–miou.PataCinzentanegoucomacabeça.Pata de Fogo deu um passo e saiu do refúgio da floresta. Havia uma
margemdegramaoleosaentreasárvoreseoCaminhodoTrovão.Devagar,colocou ali uma pata, mas se encolheu para trás quando, violentamente,passouummonstrocomumcheiroterrível.–Ei,aondevocêvai?–miouPataCinzenta.PatadeFogonãorespondeu.Esperouaténãovermaisnenhummonstro.
Então,maisumavez,ultrapassouamargemdegrama,coladinhonabeiradocaminho.Comcuidado,colocoualiumapata.Eraquente,meiopegajoso,aquecido pelo sol. Olhou para cima, para o outro lado do Caminho doTrovão. Seria um par de olhos brilhando lá longe? Farejou o ar, mas sóconseguiusentirofedordograndecaminhocinza.Osolhosdooutroladoaindabrilhavamnassombras.Atéquepestanejaram.PatadeFogotinhacertezaagora.EraumguerreirodoClãdasSombras
queofitavadiretamente.– Pata de Fogo! – A voz de Pata Cinzenta fez Pata de Fogo pular,
exatamentequandoummonstroenorme,maisaltoqueumaárvore,rugiupertinhodo seu nariz.O bafo quase o derrubou. Pata de Fogo se virou ecorreuomaisdepressaquepôdeparaasegurançadafloresta.– Seu bobo com miolo de camundongo! – disparou Pata Cinzenta, os
bigodestremendodemedoeraiva.–Oqueestáfazendo?– Só queria saber como era o Caminho do Trovão – Pata de Fogo
murmurou.Seusbigodestambémestavamtremendo.–Venha–sibilouasperamentePataCinzenta.–Vamosdaroforadaqui!Pata de Fogo pulou de volta para a floresta e seguiu o amigo. Quando
estavam a uma distância segura do Caminho do Trovão, Pata Cinzentaparoupararecuperarofôlego.PatadeFogosentouecomeçoua lamberopeloeriçado.–Achoquevi
umguerreirodoClãdasSombras–miouentreumalambidaeoutra.–Nafloresta,dooutroladodoCaminhodoTrovão.– Um guerreiro do Clã das Sombras! – repetiu Pata Cinzenta, com os
olhosarregalados.–Émesmo?–Tenhocerteza.– Foi bom que omonstro tenha passado naquela hora – replicou Pata
Cinzenta.–OndeháumguerreirodoClãdasSombras,háoutrosmais,enósaindanãosomospáreoparaeles.Melhorirmosembora.–Olhouparacima,encarandoosolquaseapino.–Ébomeumemexersequiserencontrarapatrulhaatempo–miou.–Atémaistarde.–Pulounadireçãodavegetação,dizendo,aoseafastar:–Nuncasesabe;CoraçãodeLeãotalvezmedeixevirajudá-lonacaçadadepoisqueeuentregaramensagem.Pata de Fogo olhou o amigo se afastar. Teve inveja de Pata Cinzenta;
quem dera fosse ele a se juntar a uma patrulha de guerreiros. Mas, aomenos, teriaalgumacoisapara contaraPatadePoeiraeaPatadeAreiaquando voltasse ao acampamento. Tinha visto seu primeiro guerreiro do
ClãdasSombras.
CAPÍTULO7
PATADEFOGORETOMOUocaminhodevoltaaoriacho.PensavanaquelesolhosqueimandonaescuridãodoterritóriodoClãdasSombras.Derepentesentiuumcheirotênuenabrisa.Umestranho!TalvezoguerreirodoClãdasSombras…Imediatamenteumgrunhidodesprendeu-sedagargantadePatadeFogo.
Amensagemolfativalhediziamuitascoisas.Oestranhoeraumagata,nãomuito jovem e que, com certeza, não fazia parte do Clã do Trovão. Nãoexalava o cheiro peculiar de nenhum dos clãs, mas Pata de Fogo podiaperceberqueestavacansada,famintaedoente–edemauhumor.Pata de Fogo agachou-se e avançou na direção do odor. Então parou,
atrapalhado. O cheiro de guerreiro estava agoramais fraco. Ele voltou afarejar.De repente, como faísca, uma bola de pelo emaranhado surgiu dos
arbustos,caindoatrásdele.Apanhadodesurpresa,PatadeFogoberrouquandoagataarremeteu-se
contraele,derrubando-odelado.Duaspataspesadascravaram-seemseusombros, e mandíbulas de ferro fecharam-se em seu pescoço. –Miauuuuuuuuu! – grunhiu, já pensando rápido. Se o agressor enfiasse asgarrasfundodemais,tudoestariaacabado.Ele se fez de vencido, relaxando os músculos como se estivesse
dominado,eemitiuumgritofingidodealarme.Agataabriuabocaparaumgritotriunfante.–Ah,umpequenoaprendiz.
VítimafácilparaPresaAmarela–sibilou.Aoouviroinsulto,PatadeFogoseencheudefúria.Esperesó.Iamostrar
paraaquelaboladepelocuspidaquetipodeguerreiroeleera.Masaindanão,pensou.Espereatésentirosdentesdeladenovo.PresaAmarelamordeu.PatadeFogosejogouparacimacomtodaaforça
deseuvigorosocorpojovem.Agatamiou,surpresa,aoseratiradalongeebateuemretirada,nadireçãodeumarbustodetojo.PatadeFogosacudiu-se:–Nãosouumapresaassimtãofácil,nãoé?Presa Amarela exalava desconfiança quando conseguiu se soltar dos
galhos fechados e disparou: – Nada mau, jovem aprendiz. Mas você vaiprecisarfazermuitomelhor!PatadeFogopiscouquandoviuaadversária claramentepelaprimeira
vez.PresaAmarelatinhaumacaralarga,quaseachatada,eolhosredondosecordelaranja.Opeloescuroecinzaeralongoeestavaemaranhadoemtufos fedorentos. Tinha as orelhas machucadas e rasgadas, e o focinhotraziacicatrizesdemuitasantigasbatalhas.PatadeFogonãosemexeu.Estufouopeitoelançouodesafionacarada
intrusa:–VocêestánazonadecaçadoClãdoTrovão.Caiafora!– Quem é que vai me obrigar? – Presa Amarela retraiu o lábio,
desafiadora,expondodentesmanchadosequebrados.–Voucaçar.Depoisvouembora.Outalvezeufiqueumpouco…– Chega de conversa – Pata de Fogo disparou, sentindo por dentro a
agitaçãodosantigosespíritosdosfelinos.Nãohavianelenenhumvestígiodegatodomésticonaquelemomento. Seu sanguedeguerreiro fervia.Eleestavaloucoparalutar,paradefenderseuterritórioeprotegerseuclã.PresaAmarelapercebeuamudançanele.Osferozesolhoscordelaranja
brilhavamagoracomrespeito.Abaixandoacabeçaedesviandooolhar,elacomeçouarecuar.–Nãoprecisaseprecipitar–ronronouemtomsedoso.Pata de Fogo não caiu no truque. Com as garras esticadas e a pele
eriçada,pulouparaafrente,dandoseugritodeguerra:–Grr-aaar!Comumuivode raiva, a gata respondeu.Rosnando e cuspindo, o gato
jovemeagatavelhaseengalfinharam.Rolaramparaláeparacá,dentesegarras em ação. Com as orelhas coladas contra a cabeça, Pata de Fogotentava a todo custo agarrar Presa Amarela. Mas o pelo emaranhado dagataseenrolavaemsuasgarraseelenãoconseguiaatingir-lheapele.PresaAmarelaergueu-seentãonaspatastraseiras.Comacaudaimunda
earrepiada,pareciaaindamaior.PatadeFogoviuabocaenormedePresaAmarelavindonasuadireçãoe
conseguiu se inclinar para trás bem na hora. Uma dentada! Dentesmaltratadossefecharamnoarpertodesuaorelha.Instintivamente,PatadeFogorevidoucomumgolpe.Suapatapegoua
lateral da cabeça de Presa Amarela. Foi uma pancada tão forte que elesentiuondasdechoquenapatadianteira.–Uauu!–Zonza,PresaAmarelacaiunasquatropatas.Sacudiuacabeça
paracolocarasideiasemordem.Eraapenasumabatidadecoraçãoantesqueagataserecuperasse,ePata
de Fogo aproveitou a oportunidade. Jogou-se para a frente, agachou eenfiouasmandíbulasdiretonapernatraseiradePresaAmarela.–Murrrrr!–Ogostodopeloemaranhadoerahorrível,maselemordeufundo.
–Ruuur,uuuuuuuuuuuuuui–PresaAmarelaberroudedor,enquantosedebatiaparatentarmorderacaudadePatadeFogo.OsdentesdagatasefecharamePatadeFogosentiuadoratravessar-lhe
aespinha.Masissosóodeixoumaiszangado.Arrancouacaudadabocadaoponenteesacudiu-acomforçaparaafrenteeparatrás,comraiva.PresaAmarelaagachou,preparando-separaumnovoataque.Seuhálito
parecia vir direto dos pulmões fedorentos. O cheiro fulminou o nariz dePatadeFogo.Assimdeperto,amensagemdedesesperoefraqueza,ovaziodoloridodoestômagofamintodagatachegavaamachucar.Algumacoisaseagitoudentrodele,umsentimentoquenãocondiziacom
umguerreiro:piedade.Tentounão sedeixardominarpor esse instinto–sabiaqueeraaoclãquedevialealdade–masnãoconseguiuevitar.–Vocêfalacomocoração,jovemPatadeFogo.–AspalavrasdeCoraçãodeLeãomais uma vez ecoaram em sua cabeça. – Um dia, isso fará de você umguerreiromais forte.–Então,aadvertênciadeGarradeTigrebuzinounasuaorelha:–Oupoderá fazê-lo render-seà fraquezadegatinhodegentebemnomomentodoataque.PresaAmarelainvestiuePatadeFogodevolveuaagressão.Agatatentou
subirnosombrosdeleparaumgolpemortal,mas,dessavez,foiimpedidapelapernaferida.– Grr, grr! – Pata de Fogo arqueou a espinha, mas Presa Amarela
conseguiuenfiar-lheasgarrase cravou-ascom força.Maiordoqueele, agataomantevenochãocomseupeso.PatadeFogosentiuogostode terrana línguaecuspiuaareiaque lhe
enchiaaboca.–Pah!Virou-seagilmenteparaevitaraspernastraseirasdePresaAmarela,que
nãoparavamdegolpeá-lo,easgarrasafiadasquetentavamarranhar-lheabarrigamacia.Eassimrolaramerolaram,mordendo-seearranhando-se.Momentosdepois,sesepararam.PatadeFogorespiravacomdificuldade,
maspercebeuquePresaAmarelafraquejava.Estavamuitoferidaeaspatastraseirasmalconseguiamsuportarocorpomagro.–Eentão?Jáchega?–PatadeFogogrunhiu.Seaintrusaserendesse,ele
adeixariairapenascomumamordidadeadvertênciaparaserlembrado.– Nunca! – Presa Amarela sibilou de volta, bravamente. Mas a perna
ferida falseou e ela caiuno chão.Tentou levantar-se,masnão conseguiu.SeusolhosestavamembaçadosquandosedirigiuaPatadeFogocomvozfraca:–Senãoestivessetãofamintaecansada,teriatransformadovocêem
poeiradecamundongo.–Abocadagatasecontorciaemdoredesafio.–Acabecomigo.Nãovouimpedi-lo.Pata de Fogo hesitou. Jamais tinha matado outro gato. No calor da
batalha,talvezofizesse.Masasangue-frio?Issoeramuitodiferente.– O que está esperando? – Presa Amarela provocou. – Você está
vacilandocomoumgatinhodegente!Pata de Fogo despertou ao ouvir as palavras da gata. Será que podia
sentirneleocheirodosDuas-Pernas,mesmodepoisdetantotempo?–SouumaprendizdeguerreirodoClãdoTrovão–disparou.PresaAmarela estreitouosolhos.ViuquePatadeFogo se incomodara
comsuaspalavrasepercebeuqueatingiraumpontofraco.Agatamiou:–Ah, não me diga que o Clã do Trovão está tão desesperado que precisarecrutargatinhosdegenteagora?–OClãdoTrovãonãoestánadadesesperado!–devolveuPatadeFogo.– Então prove! Aja como um guerreiro e acabe comigo. Estará me
fazendoumfavor.Pata de Fogo a encarou. Não ia ser impelido a matar aquela criatura
infeliz. Sentiu os músculos relaxarem à medida que a curiosidade ocutucava.Comoumgatodeclãtinhachegadoàqueleestado?OsanciãosdoClãdoTrovãoerammaisbemcuidadosqueosfilhotes!–Vocêpareceestarcomumapressaterríveldemorrer!–miou.–Émesmo?Bem, issonãoédasuaconta, sua raçãodecamundongo–
provocouPresaAmarela.–Qualéoseuproblema,gatinho?Estátentandomematardetantofalarcomigo?Aspalavraseramcorajosas,masPatadeFogosentiaafomeeadoença
queemanavamdagataemondas.Ela iamesmoacabarmorrendosenãocomesse logo. E comonão conseguiria caçar sozinha, talvez fossemelhormatá-laagora.Osgatossefitaram;aincertezapairavanosdoisolhares.–Espereaqui–PatadeFogofinalmenteordenou.PresaAmarelapareceuafrouxar.Ospelosabaixarameacaudaperdeua
rigidezquelembravaumtojo.–Estábrincando,gatinho?Nãovouapartealguma–elagrunhiu,enquantosedirigiaparaumtapetedeurzesmaciaslogo ali, mancando de dor. Despencou ali mesmo e começou a lamber apernamachucada.PatadeFogoolhou-aporcimadoombroebufou,exasperado,antesde
rumarparaasárvores.
Caminhando em silêncio entre as samambaias, sentiu os odoresaquecidospelosolpenetraremseunarizedistinguiuentreelesofedoracredeumratomortohaviatempo.Ouviuoruídodosinsetossobacascadasárvores, barulhinhos de coisas peludas correndo sobre as folhas. Seuprimeiropensamentofoidesenterrarosabiáquetinhamatadomaiscedo,masissoiatomartempodemais.Talvezdevesseescavaracarcaçadorato.Erauma formade conseguir carne fácil,masumgato famintoprecisadepresafresca.Sóemtemposmuitodifíceisumguerreirocomeriacomidadecorvo.Foi quando parou, farejandomais adiante um jovem coelho. Deumais
unspassoseconseguiuvê-lo.Agachoueficouàespreita.Estavaamenosdeumcamundongodedistânciaquandofoidetectado.Maseratardedemais.OrabopequenoebrancoafugiremdisparadaatiçounasveiasdePatadeFogoavibraçãodacaça.Comummovimentoágilegarrascerteiras,eleopegou.Imobilizandorapidamenteocorpoagitado,logoacaboucomele.Presa Amarela lançou a Pata de Fogo um olhar cansado quando ele
soltouocoelhonochão,aoladodela.Estavasurpresa.–Bom,oidenovo,gatinho!Penseiquetivesseidobuscarseusamiguinhosguerreiros.–É?Bem,talvezaindafaçaisso.Enãomechamedegatinho–reclamou
Pata de Fogo, empurrando o coelhomais para perto dela com o focinho.Estavasemgraçacomaprópriagentileza.–Olhe,senãoquiser…PresaAmarelalogoretrucou:–Ah,não.Querosim.Pata de Fogo ficou observando enquanto a gata rasgava a presa e
começavaaengoli-la.Afomedoaprendizaflorou,abocaseencheudeágua.Sabia que não devia sequer pensar em comida. Ainda precisava levarpresas suficientes para o clã, mas aquela presa fresca tinha um cheirodelicioso.– Hummm-mm – Alguns minutos depois, Presa Amarela soltou um
grandesuspiroecaiudelado.–Aprimeirapresafrescaquecomiemdias.–Limpouonarizcomalínguaesepreparouparaumbanhocompleto.Como se um banho fosse fazer muita diferença, Pata de Fogo pensou,
mexendoonariz.Elaeraoprópriofedor.Olhou para os restos estraçalhados da presa. Não sobrara muito para
satisfazer a barriga de um gato faminto, mas a luta com Presa Amarelatinhaaguçadoaindamaisseuapetite;rendeu-seàfomeeengoliuosrestos.Estavamdeliciosos.Lambeuosbeiços, saboreandoatéoúltimopedaço,e
sacudiu-sedacabeçaàspatas.PresaAmarela o observava de perto, expondo os dentesmanchados. –
MelhorqueaporcariadaraçãocomqueosDuas-Pernasalimentamalgunsdosnossos irmãos, não é? –miou,matreira. Sabendode seuponto fraco,tentavahostilizá-lo.PatadeFogoaignorouecomeçouaselavar.–Éveneno–PresaAmarelacontinuou.–Fezesderato!Sóumsacode
pelo invertebrado aceitaria aquelas ovasde sapo repulsivas…–Paroudefalareficoualerta.–Psssssiu…guerreiroschegando.PatadeFogo tambémpercebeuaaproximaçãodegatos.Ouviupisadas
suaves sobre a camada de folhas e o som de pelo se arrastando pelosgalhos. Farejou o vento que acariciava a pelagem dos felinos. Cheirosconhecidos. Eram guerreiros do Clã do Trovão, que, sentindo-se segurosemseupróprioterritório,nãoprecisavamseimportarcomobarulhoquefizessem.Cheio de culpa, Pata de Fogo lambeu os lábios, esperando conseguir
eliminarqualquervestígiodosrestosqueacabaradeengolir.OlhouentãoparaPresaAmarelaeparaapilhadeossosdecoelhoao ladodela. “Oclãprecisa ser alimentado em primeiro lugar!” A voz de Coração de Leãobuzinava na sua cabeça, mais uma vez. Mas, com certeza, elecompreenderia por que Pata de Fogo alimentara aquela famigeradacriatura. Suamente girava, subitamente amedrontada comoquepoderialheacontecer.Naprimeiratarefadeaprendizhaviaquebradoocódigodosguerreiros!
CAPÍTULO8
PRESAAMARELAGRUNHIUdesafiadoramenteàaproximaçãodaspassadas,masPatadeFogopercebeuqueelaestavaapavorada.Agatamalconseguiaficardepé.–Atélogo.Obrigadapelarefeição.–Tentouseafastar,mancandoemtrêspatas,masentãoestremeceudedor.–Aiii!Estapernaficoudormenteenquantoeuestavadescansando.Agora era tarde demais para correr. Sombras silenciosas saíam das
árvorese,noespaçodeumabatidadecoração,apatrulhadoClãdoTrovãotinhacercadoPatadeFogoePresaAmarela.PatadeFogoosreconheceu:Garra de Tigre, Risca de Carvão, Pele de Salgueiro e Estrela Azul, todosesbeltos e musculosos. Pata de Fogo farejou o medo que Presa Amarelasentiuaoverogrupo.PataCinzentaveiologodepois.Saiudetrásdosarbustoseparouaolado
dapatrulhadeguerreiros.PatadeFogomiou,numcumprimentoapressadoaoclã.MasapenasPata
Cinzentarespondeu:–Olá,PatadeFogo!–Silêncio!–rugiuGarradeTigre.Pata de Fogo olhou para Presa Amarela e grunhiu por dentro; ainda
sentiaocheirodemedoqueagataexalava,masaimundacriatura,emvezdesecurvaremsubmissão,tinhaumolhardesafiador.–PatadeFogo?–avozdeEstrelaAzulerafriaecalculada.–Oquetemos
aqui?Uma guerreira inimiga; e, considerando o cheiro de ambos, recém-alimentada.–Seusolhosqueimavamnadireçãodele.PatadeFogoabaixouacabeçaecomeçouafalar:–Elaestavafracaefaminta…–E você?A fomeera tantaqueprecisava se alimentar antesde reunir
presas para o clã? – Estrela Azul continuou. – Presumo que tenha umarazãomuitoboaparaterquebradoocódigodosguerreiros.PatadeFogonãoseiludiucomotomsuavedalíder.EstrelaAzulestava
furiosa–ecomrazão.Eleseabaixouaindamais.Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Garra de Tigre sibilou
ruidosamente:–Umavezgatinhodegente,sempregatinhodegente!Estrela Azul ignorou Garra de Tigre e olhou para Presa Amarela. De
repente,mostrou-se surpresa. – Ora, ora, Pata de Fogo! Parece que vocêcapturou uma gata do Clã das Sombras. E uma que conheçomuito bem.
VocêéacurandeiradoClãdasSombras,nãoé?–miou,dirigindo-seaPresaAmarela. – O que estava fazendo tão longe, aqui no território do Clã doTrovão?–EueraacurandeiradoClãdasSombras.Agora,prefiroviajarsozinha–
ciciouPresaAmarela.Pata de Fogo ouviu, impressionado. Será que tinha escutado direito?
PresaAmarelaeraumaguerreiradoClãdasSombras?Sujadaquele jeito,deve termascaradoocheirocaracterísticodoseu território.Sesoubesse,teriatidomaisprazeremseengalfinharcomela.– Presa Amarela! Parece que você está em decadência, já que foi
derrotadaporumaprendiz–miou,zombeteiro,GarradeTigre.FoiavezdeRiscadeCarvão falar.–Essagatavelhanão temserventia
paranós.Vamosmatá-laagora.Quantoaogatinhodegente,elequebrouocódigodosguerreirosaoalimentaruminimigo.Deveserpunido.– Guarde as garras, Risca de Carvão – Estrela Azul ronronou, calma. –
TodososclãscomentamabravuraeasabedoriadePresaAmarela.Podeserbomouviroqueelatemadizer.Vamoslevá-laparaoacampamentoeentão decidir o que fazer com ela… e com Pata de Fogo. Você consegueandar?–perguntouaPresaAmarela.–Ouprecisadeajuda?–Aindatenhotrêspernasembomestado–devolveuagataacinzentada,
mancandoparaafrente.PatadeFogoviuqueosolhosdePresaAmarelaestavamembaçadosde
dor,maselapareciadeterminadaanãomostrarnenhumafraqueza.Notoutambémo ar de respeito estampadono rosto deEstrelaAzul, antes de alíderdoClãdoTrovãosevirare iniciaracaminhadaentreasárvores.Osoutros guerreiros ladearam Presa Amarela e a patrulha seguiu, tendo ocuidadodemanteromesmoritmoqueaprisioneiramanca.PatadeFogoePataCinzentacaminhavamjuntosatrásdogrupo.–VocêjátinhaouvidofalardePresaAmarela?–PatadeFogocochichou
paraPataCinzenta.– Alguma coisa. Parece que era uma guerreira antes de se tornar
curandeira, o que não é comum. Mas não consigo imaginá-la como umaisolada.ElapassouavidatodanoClãdasSombras.–Oqueéumisolado?PataCinzentaolhouparaele:–Éumgatoquenão fazpartedeumclã
nemécuidadoporumDuas-Pernas.GarradeTigredizquesãoegoístasequenãosedeveconfiarneles.CostumamviverpertodascasasdosDuas-
Pernas,masnãopertencemaninguémecaçamaprópriacomida.–Talvezsejaesseomeufim,quandoEstrelaAzulacabarcomigo–Pata
deFogomiou.–EstrelaAzulémuitojusta–PataCinzentagarantiu.–Nãovaiexpulsá-
lo. Com certeza está satisfeita por ter como prisioneira uma gata tãoimportantedoClãdasSombras.Apostoquenãovaicriarcasoporvocêteralimentadoaquelepobresacodesarna.–Masficamfalandootempotodonaescassezdaspresas.Ah!Porquefui
comeraquelecoelho?–PatadeFogosentiuavergonhaqueimar-lheopelo.–Bem,éverdade–PataCinzentacutucouoamigo.–Issofoimesmocoisa
demiolodecamundongo.Nessahoravocêrealmentequebrouocódigodosguerreiros,masnenhumgatoéperfeito!Pata de Fogo não respondeu; fechou-se, com o coração pesado. Não
imaginaraquesuaprimeiratarefasozinhoterminariadessamaneira.
Quando a patrulha passou pelas sentinelas que guardavam a entrada doacampamento,osdemaisgatosdoClãdoTrovãovieramcorrendosaudarosguerreiros.Rainhas, filhotes e anciãos se aboletaram nas laterais. Olhavam com
curiosidadeparaPresaAmarela,conduzidapeloacampamento.Algunsdosanciãos reconheceram a velha gata. Logo se espalhou pelo clã que setratavadacurandeiradoClãdasSombras,eummurmúriodeescárniosegeneralizou.PresaAmarelapareciasurdaaosarcasmo.PatadeFogonãopôdedeixar
deadmirar adignidade comqueelamancavapelo corredordeolhares einsultos.Sabiaquesentiamuitadorefome,apesardocoelhoquelhedera.QuandoapatrulhachegouàPedraGrande,EstrelaAzulapontouochão
batido em frente à rocha. PresaAmarela seguiuo comando silenciosodalíderdoClãdoTrovão,deitando-se,agradecida,naterra.Aindaignorandoosolhareshostis,começoualamberapernaferida.PatadeFogopercebeuqueFolhaManchada saírado seu canto.Talvez
tivesse farejado apresençadeumgatomachucadono acampamento. Eleobservouamultidãodarpassagemàjovemgataatartarugada.Presa Amarela olhou para Folha Manchada e desdenhou: – Sei como
tomarcontadasminhasferidas.Nãoprecisodasuaajuda.FolhaManchadanadadisse;apenasfezumsinalrespeitosocomacabeça
erecuou.
Alguns felinos tinham estado fora, caçando, e presas frescas foramservidas aos guerreiros recém-chegados. Cada um pegou seu bocado eafastou-separaaáreadasurtigasparacomer.Sódepoisosoutrosgatosdoclãseadiantaramparapegarasuaparte.Pata de Fogo, faminto, andava pela clareira observando os gatos
agachadosemseusgruposcostumeiros,mastigando,devorandoacomida.Estava louco por um pedaço, mas não ousava tirar nada da pilha. Haviaquebrado o código dos guerreiros e imaginava que, por isso, estavaproibidodepegarasuacotadepresafresca.ParouaoladodaPedraGrande,ondeEstrelaAzultrocavapalavrascom
GarradeTigre.Emdúvida,PatadeFogoolhouparaalíder,esperandoumsinaldepermissãoparacomer.Masagatacinzaeseuguerreiroexperienteestavam muito ocupados, conversando em voz baixa. Pata de Fogo seperguntava se estariam falando dele. Desesperado para saber qual seriaseudestino,esticouasorelhasparaouviroquediziam.O uivo de Garra de Tigre soou impaciente. – É perigoso demais trazer
uma guerreira inimiga para o coração do Clã do Trovão! Agora que elaconheceoacampamento,atéomenorfilhotedoClãdasSombrasvaificarsabendoondeestamos.Teremosdenosmudar.–Calma,GarradeTigre–EstrelaAzulronronou.–Porquedevemosnos
mudar?PresaAmareladizquevivecomoisoladaagora.OClãdasSombrasnãotemcomosaber.– Você acredita mesmo nisso? O que esse gatinho de gente estava
pensandodavida?–GarradeTigredisparou.–Penseummomento,GarradeTigre–miouEstrelaAzul. –Porquea
curandeira do Clã das Sombras escolheria deixar o lar? Você parece termedo que Presa Amarela vá dividir nossos segredos com o Clã dasSombras;masjáimaginouquantossegredosdoClãdasSombraselapodedividirconosco?AoveropelodeGarradeTigreabaixar-se,PatadeFogopercebeuqueas
palavras de Estrela Azul faziam sentido. O guerreiromeneou a cabeça esaiuparapegarsuaporçãodepresafresca.EstrelaAzulficouondeestava.Olhouaclareira,ondealgunsdosjovens
filhotesbrincavamdelutarerolarnaterra.Alíderlevantou-seecomeçouaandarnadireçãodePatadeFogo.Ocoraçãodeledisparou.Oqueseráqueelaialhedizer?MasEstrelaAzulpassoudiretoporele.Nemsequeroolhou;osolhosda
líderestavamnubladosporpensamentosdistantes.–PeledeGeada!–elachamou,aoseaproximardoberçário.Uma gata toda branca, com olhos azuis-escuros, surgiu das amoreiras.
Dentro,obarulhodosmiadosaumentou.–Silêncio, crianças– ronronouagatabranca,acalmando-as.–Nãovou
demorar.–Virou-separaalíder.–Sim,EstrelaAzul.Oqueé?– Um dos aprendizes viu uma raposa na área. Avise as outras rainhas
paravigiaremoberçáriocomcuidado.Ecuideparaque todosos filhotescommenosdeseisluasfiquemnoslimitesdoacampamentoatéquenossosguerreirosatenhamexpulsado.Pele de Geada concordou. – Vou passar adiante o aviso, Estrela Azul.
Obrigada. – Dizendo isso, esgueirou-se para dentro do berçário, paraacalmarosbebêschorões.Finalmente, EstrelaAzul se dirigiu à pilha de presa fresca e pegou sua
porção.Umroliçopombotorcazforadeixadoparaela.PatadeFogoseguiu-a com o olhar ávido enquanto ela levava o pombo até onde estavam osguerreirosexperientes.AfomedePatadeFogofez,enfim,comqueelesemexesse.PataCinzenta
estavacomPataNegradevorandoumpequenopintassilgoaoladodotocodeárvore.AoverPatadeFogoseaproximardapilha,dirigiu-lheumsinalencorajador com a cabeça. Pata de Fogo inclinou o pescoço, pronto paraagarrarcomosdentesumrato-do-campo.–Você,não–rosnouGarradeTigre,andandopomposamenteatrásdele
e afastando o rato com a pata. – Você não trouxe nenhuma presa. Osanciãosvãocomerasuaparte.Leveparaeles.PatadeFogoolhouparaEstrelaAzul.–Façaoqueelediz–alíderordenoucomumacenoseco.Obediente, ele pegou o camundongo e o levou até Orelhinha. O cheiro
deliciososubiupelonarizdePatadeFogo,quesópensavaemesmigalharapresacomseusdentesfortes.Quasesentiaaenergiavitaldocamundongoinundandoseujovemcorpo.Com grande autocontrole, colocou a presa em frente ao gato cinza e
então afastou-se, educadamente. Não esperava nenhum agradecimento enenhumlhefoioferecido.Agora estava feliz por ter devorado os restos do coelho que apanhara
paraPresaAmarela.Nadamaisteriaparacomeratévoltaracaçarnodiaseguinte.
PatadeFogoandounoescuroatéencontrarPataCinzenta.Oamigotinhacomidoaté se fartar e estavadeitado comPataNegrado ladode foradatoca dos aprendizes. Estava esticado de lado, lambendo a pata dianteiranumritmoconstante.Pata Cinzenta viu Pata de Fogo se aproximar e parou de se lavar. –
EstrelaAzuljádissequalseráoseucastigo?–perguntou.–Aindanão–PatadeFogorespondeu,desanimado.Semnadaadizer,PataCinzentaestreitouosolhoscomsimpatia.Ouviu-se o chamado de Estrela Azul pela clareira. – Estou convocando
todososgatoscom idadesuficienteparapegaraprópriapresaparaumareuniãodoclã.Amaioriadosguerreirostinhaacabadodecomere,comoPataCinzenta,
estavam ocupados, se penteando. Ergueram-se graciosamente sobre aspatas e foram até a Pedra Grande, onde Estrela Azul esperava pelomomentodefalar.–Vamos–miouPataCinzenta.Eleselevantoudeumpulo.PataNegrae
PatadeFogooseguiramquandoelecorreueabriucaminhoà forçaparaconseguirumbomlugar.–Estoucertadequetodosouviramfalardaprisioneiraquetrouxemos
hoje–começouEstrelaAzul.–Masexisteoutracoisaqueprecisamsaber.–Elaabaixouosolhosparaagataavermelhada,imóvelaoladodaPedraAlta.–Vocêconseguemeouvirdaí?–perguntou.–Possoservelha,masaindanãoestousurda–PresaAmareladisparou
emresposta.Estrela Azul ignorou o tom hostil da prisioneira e continuou. – Temo
trazeralgumasnotíciaspreocupantes.HojepercorrioterritóriodoClãdoVentocomumapatrulha.Oarestava impregnadocomoodordoClãdasSombras. Praticamente todas as árvores tinham sido marcadas com ocheiro de seus guerreiros. E não encontramos nenhum gato do Clã doVento,emboratenhamosnosembrenhadonoterritóriodeles.Aspalavrasforamrecebidascomsilêncio.PatadeFogopercebeuqueos
gatosdoclãestavamconfusos.– Você quer dizer que o Clã das Sombras os expulsou? – perguntou
Orelhinha,emtomhesitante.–Nãopodemosassegurar–miouEstrelaAzul.–Ofatoéqueocheirodo
ClãdasSombrasestavaemtodolugar.Encontramossanguetambém,alémdepelo.Deve ter havidoumabatalha, embora não tenhamos encontrado
corposdenenhumdosdoisclãs.Umuivo de espanto elevou-se damultidão em uníssono. Pata de Fogo
percebeuqueosfelinosàsuavoltaseretesavam,nummistodesurpresaefúria.Nuncaantesumclãhaviadespejadoooutrodesuaszonasdecaça.–ComopôdeoClãdoVentotersidoexpulso?–Caolhaperguntoucom
sua voz fraca e baixa. – O Clã das Sombras é feroz, mas são muitos osguerreirosdoClãdoVento. Faz geraçõesque vivemnas terras altas. Porque foramexpulsosagora?–Ansiosa,balançoua cabeça;ospelosdo seubigodetremiam.–Nãoseiarespostaparanenhumadessasperguntas–miouEstrelaAzul.
–ÉsabidoqueoClãdasSombrashápoucoelegeuumnovolíder,depoisdamorte de Estrela Afiada. O novo líder, Estrela Partida, não fez nenhumamençãodeameaçaquandooencontreinaúltimaAssembleia.–TalvezPresaAmarelasaibadealgumacoisa–miouRiscadeCarvão.–
Afinal,elapertenceaoClãdasSombras!– Não sou traidora! Nada vaime fazer revelar os segredos do Clã das
Sombrasparaumselvagemcomovocê!–grunhiuPresaAmarela,olhandocomagressividadeparaRiscadeCarvão.OguerreirodoClãdoTrovãodeuumpassoàfrente,comasorelhasabaixadas,olhosemfendas,prontoparaumabriga.–Parem!–gritouEstrelaAzul.RiscadeCarvãoimediatamenteparou,emboraPresaAmarelaofuzilasse
comosolhosecomumuivoferoz.– Já chega! – a líder gritou. – A situação é séria demais para ficarmos
brigando entre nós. O Clã do Trovão precisa se preparar. A partir destenascer da lua, os guerreiros vão caminhar emgruposmaiores.Os outrosmembros do clã ficarão perto do acampamento. As patrulhas vigiarão asfronteirascommaisfrequênciaeosfilhotesnãosairãodoberçário.Osgatosconcordaram.Estrela Azul continuou. – A necessidade de guerreiros é nosso maior
obstáculo. Precisamos solucionar o problema acelerando o treinamentodosaprendizes.Precisamestarprontosomais rápidopossívelpara lutarpeloclã.Pata de Fogo viu Pata de Poeira e Pata de Areia trocarem um olhar
palpitante. Pata Cinzenta estava olhandopara cima, para EstrelaAzul, osolhosarregaladosdeempolgação.PataNegraesfregavaaspatas,ansioso.Seusolhosbemabertosmostravammaispreocupaçãoqueanimação.
EstrelaAzulcontinuou.–Umjovemgato tempartilhadomentorescomPataCinzentaePataNegra.Ensinando-o, vouaceleraro treinamentodostrêsaprendizes–Fezumapausaeabaixouosolhosparaosgatosdoclã.–VoufazerdePatadeFogomeuaprendiz.PatadeFogoarregalouosolhos, impressionado.EstrelaAzul iasersua
mentora?Aoladodele,PataCinzentaengasgou,incapazdeesconderasurpresa.–
Quehonra!JáfazluasqueEstrelaAzulnãotemumaprendiz.Normalmenteelatreinaapenasosfilhotesderepresentantes!Foiquandoumavozfamiliarelevou-senafrentedamultidão.EraGarra
deTigre.– Então Pata de Fogo vai ser premiado, não punido, por alimentar um
guerreiroinimigoquandodeviaestaralimentandoopróprioclã?– Pata de Fogo agora émeu aprendiz. Pode deixar que lido com ele –
respondeuEstrelaAzul.AlídersustentouporummomentooolharferozdeGarradeTigre,antesdelevantaracabeçaparasedirigiraoclãmaisumavez. –PresaAmarela está autorizadaa ficar aqui até recuperar as forças.Somos guerreiros, não selvagens. Ela deve ser tratada com respeito ecortesia.– Mas o clã não pode sustentar Presa Amarela – Risca de Carvão
protestou.–Játemosbocasdemaisparaalimentar.– É isso mesmo! – Pata Cinzenta cochichou para Pata de Fogo. – E
algumasbocassãomaioresqueasoutras!–Nãoprecisoqueninguémcuidedemim!–disparouPresaAmarela.–E
voupartiremdoisquemtentar!–Simpática,nãoé?–PataCinzentamurmurou.Pata de Fogo sacudiu a cauda, concordando. Ouviram-se miados
abafadosdosoutrosguerreirosque,demávontade,reconheciamoespíritodelutadaguerreirainimiga.Estrela Azul ignorou o burburinho. – Vamosmatar duas presas de um
golpesó,comosediz.PatadeFogo,comopuniçãoporquebrarocódigodosguerreiros, será sua responsabilidade tomar conta de PresaAmarela. Vaicaçarparaelaecuidardesuasferidas.Buscarápalhafresquinhaparafazersuacamaelimparásuasfezes.– Está bem, Estrela Azul – miou Pata de Fogo, abaixando a cabeça,
submisso.Limparfezes!,pensou.Eca!
PatadePoeiraePatadeAreiamiaramemtomdedeboche.–Boaideia!!–sibilou Pata de Poeira. – É bom que Pata de Fogo seja craque emmatarpulgas!– E em caçar! – acrescentou Pata deAreia. – Aquele saco de ossos vai
precisardecomida.–Basta!–EstrelaAzulinterrompeuadupla.–EsperoquePatadeFogo
não considere uma vergonha tomar conta de Presa Amarela. Ela é umacurandeiraemaisvelhadoqueele.Essasrazõesjásãosuficientesparaqueelearespeite.–AlíderlançouumolharagudoparaPatadeAreiaePatadePoeira.–Nãoénadahumilhantetomarcontadequemnãopodecuidardesi. A reunião acabou aqui. Agora quero falar só com meus guerreirosantigos.–Dizendoisso,elapuloudaPedraGrandeesedirigiuàsuatoca.Coração de Leão a seguiu. Os outros felinos do clã começaram a se
distanciardaPedraGrande.UmoudoiscumprimentaramPatadeFogoporter sido escolhido como aprendiz de Estrela Azul; outros, debochando,desejaram-lhe sortenos cuidados comPresaAmarela.PatadeFogo ficoutãoatarantadocomoanúnciodalíder,queapenasbalançavaacabeça.RaboLongoaproximou-se.Aindaestavavisívelocorteemformade“V”
quePatadeFogolhefizeranapontadaorelha.Ojovemguerreirorecolheuos bigodes num feio rosnado. – Espero que, da próxima vez, pense duasvezesantesdetrazergatosvadiosparaoacampamento–zombou.–Comoeudisse,forasteirossempretrazemproblemas.
CAPÍTULO9
–SE EU FOSSE VOCÊ, ia conversar comPresaAmarela –disse, baixinho,PataCinzentaquandoRaboLongoseafastou–Elanãoparecemuitocontente.Pata de Fogo olhou para a velha gata, ainda deitada ao lado da Pedra
Grande.PataCinzentaestavacerto;elaofitava.–Estábem,lávoueu–elemiou.–Deseje-mesorte!–Dessavez,vocêvaiprecisarde todaasortedoClãdasEstrelasaseu
favor – respondeuPataCinzenta. – Chame se precisar de ajuda. Se acharqueelavaipegá-lo,voudevagarzinhoportráseacertoacabeçadelacomumcoelhomorto.PatadeFogoronronou,divertido,efoiemdireçãoaPresaAmarela.Sua
animaçãologodesapareceu,àmedidaqueseaproximavadarainhaferida.Ela estava claramente de péssimo humor. Sibilou uma advertência,
mostrandoosdentes:–Pareaímesmo,gatinhodegente!PatadeFogosuspirou.Pareciaqueestavaparaentrarnumaluta.Ainda
tinhafomeecomeçavaasesentircansado.Estavaloucoparaseenroscarno ninho e tirar um cochilo. A última coisa que queria era discutir comaquelechumaçodepeloedentesdignodepena.–Podemechamardoquequiser–elemiou,impaciente.–EstouapenasseguindoasordensdeEstrelaAzul.– Então você é mesmo um gatinho de gente, não é? – disse, ofegante,
PresaAmarela.Ela também está cansada, pensou Pata de Fogo. A voz da gata tinha
menosforça,emboraaironiaestivessemaisfortedoquenunca.– Eu vivia com uns Duas-Pernas quando era filhote – Pata de Fogo
respondeucalmamente.–Suamãeeragatinhodegente?Seupaieragatinhodegente?– Eram, sim. – Pata de Fogo abaixou a cabeça, o ressentimento o
queimandopordentro.Jáeraruimosmembrosdoseupróprioclãaindaoconsiderarem um forasteiro. Com certeza não devia satisfações àquelaprisioneiramal-humorada.Presa Amarela pareceu tomar o seu silêncio como um convite para
continuar.–Sanguedegatinhodegentenãoéamesmacoisaquesanguedeguerreiro.Porquenãocorreparaa casados seusDuas-Pernasagoraemvezdeficarmepajeando?Éhumilhantesercuidadaporumgatodebaixa
estirpecomovocê!PatadeFogoperdeuapaciênciaegrunhiu:–Vocêsesentiriahumilhada
mesmo que eu tivesse nascido guerreiro. Ficaria envergonhada quer eufosseumapreciosagatadoseupróprioclã,querummiserávelDuas-Pernasqueativesseapanhadonarua.–PatadeFogofezacaudachicoteardeumladoparaoutro.–Oque,naverdade,vocêachatãohumilhanteéofatodeprecisarseentregaraoscuidadosdequalquergato!PresaAmarelaarregalouosolhoscordelaranja.PatadeFogocontinuou,feroz:–Vaiterdeseacostumarcomaideiade
alguém cuidar de você até estar bem suficiente para tomar conta de simesma,seusacodeossosvelhoedesprezível!Ele parou quando Presa Amarela começou a fazer um ruído baixo e
estranho,comoseestivessecomfaltadear.Alarmado,PatadeFogodeuumpassonadireçãodagata.Elatremia,com
osolhosestreitadosempequeníssimasfendas.Estariatendoalgumtipodeataque?–Olhe,eunãoquis…–elecomeçou,atéderepentesedarcontadeque
PresaAmarelaestavarindo!– Miau, miau, miau – ela fazia, com um rom-rom vindo de dentro do
peito.PatadeFogonãosabiaoquefazer.– Você é espirituoso, gatinho de gente – Presa Amarela provocou,
parandoafinal.–Agoraestoucansadaeminhapernadói.Precisodormirecolocaralgumacoisanessaferida.Váprocuraraquelacurandeirabonitinhade vocês e peça para ela me arrumar algumas ervas. Se conseguir umcataplasma de virgáurea vai ajudar. E, enquanto estiver providenciandoisso,euiaadorarficarmascandoumassementesdepapoula.Essadorestámematando!Impressionado coma súbitamudançade humorda gata, Pata de Fogo
virou-serapidamenteedisparounadireçãodatocadeFolhaManchada.Nunca estivera naquela parte do acampamento. Com as orelhas
retesadas,atravessouumtúnelverdeefrescodesamambaias,quelevavaaumapequenaclareiragramada.Deumladohaviaumapedraalta,divididaaomeioporumafendagrandebastanteparaumgatofazeraliasuatoca.Na clareira estava FolhaManchada. Como sempre, seus olhos brilhavam,amigáveis, e suapelagemmalhada luziacomcentenasdesombrascordeâmbaremarrons.
PatadeFogoacumprimentoutimidamentecomummiadoeapresentouoroldeervasesementespedidasporPresaAmarela.–Tenhoamaioriadelasnaminhatoca–respondeuFolhaManchada.–
Voupegartambémalgumasfolhasdecravo-de-defunto.Seelacolocarissonaferida,vaiafastarqualquerinfecção.Espereaqui.– Obrigado – miou Pata de Fogo enquanto a curandeira sumia para
dentrodatoca.Eleestreitouosolhos,tentandovislumbrá-lanointeriordorefúgio.Masatocaestavaescurademais;sóconseguiuouvirumfarfalharesentiroscheirosestonteantesdeervasestranhas.FolhaManchada surgiuda escuridão e colocouumpacotedobrado em
folhasaospésdePatadeFogo.–DigaaPresaAmarelaparanãoexagerarcomasementedepapoula.Nãoqueroque fique totalmentesemdor.Umpoucodedorpodeserútil,poisvaimemostrarseelaestámelhorando.PatadeFogoindicouterentendidoeapanhouaservascomosdentes.–
Obrigado, Folha Manchada! – miou, segurando o pacote e retomando otúneldesamambaiasatéaclareiraprincipal.Garra de Tigre estava sentado do lado de fora da toca dos guerreiros,
observando-o atentamente. Quando Pata de Fogo se dirigia até PresaAmarela,carregandoaservas,sentiuoolharcordeâmbarqueimando-lheopelo do cangote. Virou a cabeça e, curioso, fitou Garra de Tigre, queestreitouosolhosevirouorosto.PatadeFogodeixoucairomaçodeervasaoladodePresaAmarela.–Ótimo–miou.–Agora,antesdemedeixarempaz,mearrumealguma
coisaparacomer.Estoufaminta!
O sol tinha se levantado três vezes desde que Presa Amarela chegara aoacampamento. Pata de Fogo acordou cedo e cutucou Pata Cinzenta, queaindadormiaaseulado,comonarizenfiadodebaixodacaudaespessa.–Acorde–PatadeFogomiou.–Vaiacabarseatrasandoparaotreinamento.Pata Cinzenta ergueu a cabeça, ainda sonolento, e assentiu com um
grunhidorelutante.PatadeFogocutucouPataNegra.Ogatoabriuosolhosimediatamenteedeuumpulo.–Oqueé?–miou,
olhandoàvolta,alerta.–Calma,PataNegra.Estáquasenahoradotreinamento–PatadeFogoo
tranquilizou.PatadePoeiraePatadeAreiatambémcomeçaramasemexeremseus
ninhosdemusgo,dooutroladodorefúgio.PatadeFogoselevantoueabriucaminhoentreassamambaias.Amanhãestavaquente.Porentreasfolhasegalhosquesedebruçavam
sobre o acampamento, Pata de Fogo avistou o céu de um azul profundo.Mas hoje um orvalho pesado fazia brilhar as folhas de samambaias ecintilavanagrama.PatadeFogofarejouoar.Aestaçãodasfolhasverdesestavaacabando,elogootempoiacomeçaraesfriar.Eledeitouerolounaterraaoladodotocodeárvore,esticandoaspernas
evirandoacabeçaparatrásparaesfregá-lanochãofresco.Entãoseviroude lado e olhou através da clareira, para ver se Presa Amarela já estavaacordada.Foradestinadoàgataumlugardedescansonoextremodaárvorecaída
ondeosanciãosse reuniamparacomer.Oninho tinhasidoarrumadonotroncocheiodemusgo,deondenãosepodiamescutarosanciãos,mascomvistatotalparaatocadosguerreirosdooutroladodaclareira.PatadeFogoviuapenasummontedepelocinzadesbotadoselevantarelogocairparatirarumasoneca.PataCinzentasaiuda tocaatrásdoamigo, seguidoporPatadeAreiae
PatadePoeira.FinalmentechegouPataNegra,examinandonervosamenteolugarantesdesairtotalmentedoabrigo.– Mais um dia tomando conta daquele saco sarnento cheio de pulgas,
hein, Pata de Fogo? – miou Pata de Poeira. – Aposto que preferia estarconosconotreinamento.Pata de Fogo levantou-se e sacudiu o pó do pelo. Não ia ceder à
provocaçãodePatadePoeira.–Nãoligue,PatadeFogo–murmurouPataCinzenta.–EmbreveEstrela
Azulvaimandá-lodevoltaparaotreinamento.– Talvez ela pense que é melhor um gatinho de gente ficar no
acampamento, cuidando dos doentes – miou, grosseira, Pata de Areia,agitandoacabeçalustrosaeavermelhada,comumolhardedeboche.PatadeFogoresolveu ignoraroscomentáriosásperosdagata.–Oque
Nevascavailheensinarhoje,PatadeAreia?–perguntou.–Vamostreinarcombate.Elevaimeensinarcomolutaumguerreirode
verdade–PatadeAreiarespondeucomorgulho.– Coração de Leão vai me levar até o Grande Plátano – miou Pata
Cinzenta–,paraeupraticarashabilidadesdeescalada.Émelhoreuir.Eleestáesperando.
–Voucomvocêatéoaltodaravina–miouPatadeFogo.–PrecisopegarocafédamanhãdePresaAmarela.Vocêvem,PataNegra?GarradeTigredeveteralgumacoisaplanejadaparavocê.PataNegra suspirou, concordou e seguiuPataCinzenta ePatadeFogo
para fora do acampamento. Embora a ferida estivesse completamentecurada,eleaindapareciaterpoucoentusiasmopelotreinamento.
–Aquiestá–miouPatadeFogo, largandoumgrandecamundongoeumpintassilgonochão,aoladodePresaAmarela.–Jáestavanahora–elagrunhiu.Agataaindaestavadormindoquando
Pata de Fogo chegou ao acampamento depois da missão de caça. Mas ocheirodepresafrescadevetê-ladespertado,poisagorajáestavasentada.Elaabaixouacabeçae,comavidez,engoliuoquePatadeFogotrouxera.
Oapetitesemostravavorazàmedidaqueaforçavoltava.Aferidaestavamelhor, mas o temperamento continuava feroz e imprevisível comosempre.PresaAmarelaacaboua refeiçãoe reclamou:–Abasedaminhacauda
coçamuito,masnãoconsigoalcançá-la.Dáparavocêlavarparamim?Tremendopordentro,PatadeFogoagachoueiniciouafunção.Enquanto explodia as pulgas gordinhas entre os dentes, percebeu um
grupo de filhotes brincando na terra ali perto. Fingiam estar lutando, àsvezescomviolência.PresaAmarela,que tinha fechadoosolhosenquantoPatadeFogocuidavadela,abriuparcialmenteumdelesparaobservarosfilhotessedivertindo.Parasuasurpresa,PatadeFogopercebeuaespinhadagataseretesarsobseusdentes.Por um instante, ele prestou atenção aos gritinhos e barulhos dos
filhotes.– Sinta meus dentes, Estrela Partida – miou um filhote malhado, que
pulounascostasdeumoutro,cinzaebranco,quefingiaserolíderdoClãdas Sombras. Os dois pequenos rolaramna direção da Pedra Grande. Derepente,ofilhotecinzaebrancodeuumgrandeimpulsoeconseguiusoltaromalhadodascostas.Comumguinchoassustado,omalhadofoipararaoladodePresaAmarela.Imediatamenteavelhagatasepôsdepénumpulo,comapelagemtoda
arrepiada,edisparou,agressiva:–Fiquelongedemim,seupedaçodepelo!Ofilhotemalhadoolhouparaagatafuriosa,virou-lheacaudaecorreu.
Foi esconder-se atrás de uma rainha também malhada, que, zangada,
encaravaPresaAmareladooutroladodaclareira.Já o pequeno gato cinza e branco congelou. Então, pata a pata, com
cuidado,retrocedeunadireçãodasegurançadoberçário.AreaçãodePresaAmareladeixouPatadeFogochocado.Achavaquejá
tinhavistoopiordelaaolutaremquandoseconheceram,masosolhosdagata chispavam com uma raiva diferente agora. – Acho que está sendodifícil para os filhotes ficarem confinados no acampamento – miou,cauteloso.–Estãoficandoinquietos.–Azarodeles–grunhiuPresaAmarela.–Dêumjeitodemantê-loslonge
demim!– Você não gosta de filhotes? – Pata de Fogo perguntou, quase sem
querer.–Nuncatevefilhos?–Vocênãosabequecurandeirasnãotêmfilhos?–miou,raivosa,Presa
Amarela.–Massoubequeantesvocêeraumaguerreira–PatadeFogoarriscou.– Não tenho nenhum filho! – Presa Amarela disparou. Afastou dele a
caudaeselevantou.–Dequalquerforma–disseemtomrepentinamentemaisbaixo,quasetriste–,parecequeacontecemacidentescomascriançasquandoestouporperto.Os olhos cor de laranja nublaram de emoção. Ela apoiou o queixo
achatado nas patas dianteiras e deixou o olhar se perder. Pata de Fogoobservouosombrosdagataafundaremnumsuspirolongoesilencioso.PatadeFogoaobservou, intrigado.Oqueelaqueriadizercomaquilo?
Seráqueavelhagataestavafalandosério?Eradifícildizer;PresaAmarelapareciamudar de humor rapidamente. Ele deu de ombros e continuou apenteá-la.– Ficaram alguns carrapatos que não consegui tirar – ele disse, ao
terminar.–Apostoquevocênemtentou,seuidiota!–reclamouPresaAmarela.–
Nãoquero cabeçasde carrapatonomeu traseiro,muito obrigada. Peça aFolha Manchada um pouco de bile de rato para esfregar nelas. Umaborrifadadissonoscarrapatoseeleslogosesoltam.–Vouagoramesmo!–PatadeFogoseofereceu,felizpelaoportunidade
de se afastarumpoucoda gata rabugenta. Enão serianenhumsacrifíciovoltaraverFolhaManchada.Dirigiu-seaotúneldesamambaias.Viumuitosgatoscruzandoaclareira,
carregando nos dentes ramos e galhos de árvores. Enquanto estiveratratando de PresaAmarela, o acampamento se enchera de atividade. EraassimdesdeodiaemqueEstrelaAzulanunciaraodesaparecimentodoClãdo Vento. As rainhas teciam galhos e folhas para formar uma espessaparedeverdeaoredordoberçário,demodoaassegurarqueapassagemestreita fosse a única maneira de entrar e sair da região das amoreiras.Outrosgatostrabalhavamnoslimitesdoacampamento,cuidandoparanãodeixarnenhumespaçolivrenavegetaçãocerrada.Até os anciãos estavam ocupados, cavando um buraco no chão. Os
guerreirosemfilaempilhavamaoladodelespedaçosdepresafrescaparaserem guardados dentro do buraco recém-cavado. Pairava no ar umespírito de concentração tranquila, uma determinação de tornar o clã omaisseguroeabastecidopossível.Se o Clã das Sombras tentasse invadir seu território, o Clã do Trovão
teriaoacampamentocomorefúgio.NãoseriamdeslocadosdesuaszonasdecaçatãofacilmentequantoforaoClãdoVento.Risca de Carvão, Rabo Longo, Pele de Salgueiro e Pata de Poeira
esperavamemsilêncionaentradadoacampamento,comosolhosfixosnaabertura do túnel de tojos. Uma patrulha acabara de chegar, todosempoeiradosecomaspatasdoídas.Assimqueosguerreirosentraramnoacampamento, Risca de Carvão e seus companheiros se aproximaram etrocarampalavrascomeles.Maslogoseafastaram.Entãosaíramrápidaesorrateiramente do acampamento. As fronteiras do Clã do Trovão nãoficavamnemumminutosemproteção.Pata de Fogo desceu na direção do túnel de samambaias que levava à
toca de Folha Manchada. Ao entrar na clareira, viu que a gata estavapreparandoalgumaservasquerecendiamumcheirodoce.–Vocêpodemeconseguirumpoucodebilederatoparaoscarrapatos
dePresaAmarela?–PatadeFogomiou.–Numinstante–respondeuFolhaManchada,juntandodoispunhadosde
ervasemisturandoapilhaaromáticacomumadasgarrasdelicadamenteestendida.–Estáocupada?–perguntouPatadeFogo,ajeitando-seemumpedaço
deterraaquecido.– Quero estar preparada para qualquer eventualidade – murmurou a
curandeira,fitando-ocomseusolhosclaroscordeâmbar.Poruminstante,PatadeFogosustentouoolhar,quedepoisdesviou, sentindonopeloum
certodesconforto.FolhaManchadavoltouaprestaratençãonaservas.Pata de Fogo esperou, feliz por estar ali calmamente sentado,
observando-atrabalhar.–Pronto–miou,afinal.–Oquevocêqueriamesmo?Bilederato?–É,porfavor.–PatadeFogoficoudepéeesticouaspatastraseiras,uma
decadavez.Seupeloestavaquentedosol,queotinhadeixadosonolento.FolhaManchadaentrounatocaetrouxealgumacoisaládedentro,que
carregavacuidadosamentenaboca.Eraumchumaçodemusgopenduradoemumestreitopedaçodecascadeárvore.ElaoentregouaPatadeFogo.Oaprendizsentiuseuhálitomornoedoceaopegarentreosdentesatiradecascadeárvore.– Omusgo está empapado em bile – explicou Folha Manchada. – Não
deixeentrarnaboca;ficariacomumgostohorrívelpordiasafio.Pressioneomusgonoscarrapatosedepoislavebemaspatas–numriacho,nãocomalíngua!Pata de Fogo agradeceu e voltou até onde estava Presa Amarela,
sentindo-se, de repente, alegre e cheio de energia. – Fique quieta! – elemiou para a velha gata. Com cuidado, usava as patas dianteiras parapressionaromusgoemcadacarrapato.Quando Pata de Fogo acabou o serviço, Presa Amarela miou: – Você
podia aproveitar e limpar minhas fezes, agora que suas patas já estãofedendo mesmo! Vou tirar um cochilo – bocejou, revelando os dentesescurecidos e quebrados. O calor do dia também a deixara sonolenta. –Depois, pode ir e fazer essas coisas que vocês, aprendizes, fazem –murmurou.PatadeFogolimpouasfezesdePresaAmarela,deixou-adormindoefoi
na direção do túnel de tojo. Estava ansioso para chegar ao riacho eenxaguaraspatas.–PatadeFogo!–umavozochamoudoladodaclareira.Oaprendizsevirou.EraMeioRabo.– Aonde você está indo? – miou o velho gato, curioso. – Devia estar
ajudandonospreparativos.– Acabei de colocar bile de rato nos carrapatos de Presa Amarela –
respondeu.Os bigodes deMeio Rabo semexeram, divertidos. – Corra então até o
riachomaispróximo!Tratedevoltarcomalgumapresafresca.Precisamos
detudooquepudermosencontrar.–Certo,MeioRabo!Pata de Fogo saiu do acampamento em direção à ravina. Desceu a
margemdoriachoondeeleePataCinzentatinhamcaçadonodiaemqueencontraraPresaAmarela. Semhesitar,pulounaágua limpae fria,queocobriu até os quadris emolhou o pelo da sua barriga, fazendo-o arfar etiritar.Um ruído nos arbustos chamou-lhe a atenção, embora o cheiro
conhecidoquelhechegavaaonarizanunciassequenãohaviamotivoparaalarme.–Oqueestáfazendoaí?–PataCinzentaePataNegraoolhavam,comose
oamigoestivesselouco.–Nemqueiramsaber!–PatadeFogorespondeucomumacareta.–Bile
derato!OndeestãoCoraçãodeLeãoeGarradeTigre?–Foramjuntar-seàpatrulhamaispróxima–respondeuPataCinzenta–
enosmandarampassarorestodatardecaçando.–MeioRabomedisseamesmacoisa–PatadeFogomiou,encolhendo-se
aosentirnaspatasumacorrentedeáguagelada.–Todosestãoocupadosnoacampamento.Atéparecequevamosseratacadosaqualquerinstante.–Pingando,subiuparaamargem.–Quemdizquenãovamosseratacados?–miouPataNegra,olhandode
um lado para o outro, como se uma patrulha inimiga fosse pular dosarbustosderepente.PatadeFogoolhouparaomontedepresas frescasempilhadasao lado
dosdoisaprendizes.–Parecequevocêssederambemhoje–miou.–Éverdade–dissePataCinzenta,orgulhoso.–Eaindatemosorestoda
tardeparacaçar.Querirtambém?–Claroque sim! –PatadeFogo ronronou.Deuumaúltima sacudida e
seguiuosamigospelavegetação.
PatadeFogonotouqueosgatosnoacampamentoficaramimpressionadoscom a quantidade de presas que os três aprendizes haviam conseguidoapanhar na caçada da tarde. Foram saudados com caudas erguidas efocinhadas amigáveis. Tiveram de fazer quatro viagens para levar oresultadodacaçaaodepósitocavadopelosanciãos.Coração de Leão e Garra de Tigre tinham acabado de voltar com a
patrulha quando os aprendizes carregavam o último fardo para o
acampamento.– Muito bem, garotos – miou Coração de Leão. – Soube que andaram
ocupados.Odepósitoestáquasecheio.Podemcolocaresseúltimolotenapilha de presas frescas para esta noite. E levem algumas para sua toca.Vocêsmerecemumbanquete!Ostrêsaprendizesbalançaramascaudas,contentes.–EsperoquenãoestejadeixandoPresaAmareladelado,comtodaessa
caça,PatadeFogo–GarradeTigreadvertiu.PatadeFogosacudiuacabeça,impaciente,loucoparairembora.Estava
faminto.Dessavez,obedeceraaocódigodosguerreirosenãocomeranemsequerumnacoaocaçarparaoclã.Nemelenemoscompanheiros.Afastaram-seecolocaramaúltimapresanapilhaformadanocentroda
clareira.Cadaumdelespegouumaporçãoelevouparaotroncodeárvore.Atocaestavavazia.–OndeestãoPatadePoeiraePatadeAreia?–perguntouPataNegra.–Devemestaraindaempatrulha–PatadeFogosugeriu.–Ótimo.Pazesossego–miouPataCinzenta.Comeramatésefartareserecostaramparaselavar.Oarfrescodatarde
erabem-vindodepoisdocalorquefizera.De repente, Pata Cinzentamiou: – Ei! Adivinhe! Pata Negra conseguiu
arrancarumelogiodovelhoGarradeTigreestamanhã!–Émesmo?–PatadeFogoseespantou.–Oquevocêfezparaagradar
GarradeTigre?Voou?–Bem–começouPataNegratodosemjeito,mirandoaspatas.–Peguei
umcorvo.–Comoconseguiu?–PatadeFogomiou,impressionado.–Eraumcorvovelho–PataNegraadmitiumodestamente.–Maseraenorme–acrescentouPataCinzenta.–AtéGarradeTigreteve
de se render! Ele andava de muito mau humor desde que Estrela Azultomouvocêcomoaprendiz.–Pensativo,lambeuapataporummomento.–Espere aí… Na verdade, ele está assim desde que Coração de Leão foiescolhidocomorepresentante.–ElesóestápreocupadocomoClãdasSombraseaspatrulhasextras–
PataNegraseapressouaexplicar.–Vocêdeviaevitaraborrecê-lo.Aconversafoiinterrompidaporumgritodooutroladodaclareira.–Ah,não!–grunhiuPatadeFogo,pondo-sedepé.–Esquecidelevara
comidadePresaAmarela!– Fique aqui – miou Pata Cinzenta, dando um pulo. – Eu levo alguma
coisaparaela.–Não,émelhoreu ir–PatadeFogoprotestou.–Ocastigoémeu,não
seu.–Ninguémvai perceber – argumentouPataCinzenta. –Todoomundo
estáocupado, comendo.Vocême conhece:quieto comoumcamundongo,rápidocomoumpeixe.Espereaqui.PatadeFogovoltoua sentar, incapazdeesconderoalívio.Observouo
amigoseafastardotroncodeárvoreatéapilhadepresafresca.Como se cumprisse ordens, PataCinzenta, confiante, escolheudois dos
camundongos mais apetitosos. Rapidamente começou a atravessar aclareiranadireçãodePresaAmarela.–Pare,PataCinzenta!–Umrosnadoaltoseouviudaentradadatocados
guerreiros. Garra de Tigre foi até o aprendiz e perguntou: – Aonde vocêestálevandoessescamundongos?Comumfrionabarriga,PatadeFogoobservava,desolado,dotroncode
árvore. Ao lado dele, Pata Negra parou no meio de uma mordida eencolheu-sesobreacomida,comosolhosmaisarregaladosdoquenunca.–Umm…–PataCinzentasoltouoscamundongosetrançouaspatas,sem
graça.– Você não está ajudando o jovem Pata de Fogo levando comida para
aquelatraidorainsaciável,está?PatadeFogoviuoamigoexaminaraspatasporuminstante.Finalmente,
o aprendiz respondeu: – Eu, é… estava apenas com fome. Ia levar oscamundongos para comer sozinho. Se aqueles dois vissem – olhou paraPatadeFogoePataNegra–,iammedeixarsócomossosepelo.–Émesmo?–miouGarradeTigre.–Seestácomtantafome,podemuito
bemcomeressescamundongosaquieagora!– Mas… – Pata Cinzenta começou a falar, olhando assustado para o
guerreiro.–Agora!–rugiuGarradeTigre.O aprendiz rapidamente abaixou a cabeça e começou a comer os
camundongos. Devorou o primeiro com algumas mordidas e o engoliurapidamente.Demorouumpoucomaisparacomerosegundo.PatadeFogoachouqueoamigonuncaiaconseguirbotarocamundongoparadentro,e
seu próprio estômago se apertava em solidariedade; finalmente, comdificuldade,PataCinzentaengoliu,eoúltimopedaçodesapareceu.–Estámelhoragora?–perguntouGarradeTigre,comavozmaciaeum
certodeboche.–Muito–respondeuPataCinzentacomumarroto.–Muitobem–disseGarradeTigre,voltandoàsuatoca.PataCinzenta,semgraça,foiatéondeestavamosamigos.–Obrigado,PataCinzenta–agradeceuPatadeFogo,passandoofocinho
nopelomaciodocompanheiro.–Vocêpensourápido.OrugidodePresaAmarelaecooumaisumavez.PatadeFogosuspiroue
pôs-se nas quatro patas. Ia deixar para ela comida bastante para a noitetoda.Queriavoltarcedoparacasa.Tinhaabarrigacheiaeospéscansados.–Tudobem,PataCinzenta?–perguntouaosevirarparasair.– Miau, miau – reclamou o gato, encolhido, tremendo de dor. – Comi
demais!–VáverFolhaManchada–PatadeFogosugeriu.–Comcertezaeladará
umjeitonisso.–Esperoquesim–miouPataCinzenta,afastando-selentamente.PatadeFogoqueriaobservaroamigopartir,masoutrogritozangadode
PresaAmarelaofezsaircorrendopelaclareira.
CAPÍTULO10
NAMANHÃSEGUINTE,umagaroafinaencharcouacopadasárvoreseescorreupeloacampamento.PatadeFogoacordoucomasensaçãodeestarmolhado.Tinhasidouma
noite desconfortável. Levantou-se e sacudiu-se com força, afofando apelagem.SaiudatocadosaprendizeseatravessouaclareiranadireçãodoninhodePresaAmarela.Agataestavaagitada.Levantouacabeçaeolhouparaovisitantecomos
olhossemicerrados.–Meusossosestãodoendoestamanhã.Choveuanoitetoda?–Desdequepassoualuaalta–PatadeFogorespondeu.Aproximou-see,
cauteloso, tocouoninhodemusgo. – Sua camaestá encharcada.Porquenãoficamaispertodoberçário?Aliémaisprotegido.– O quê? E ficar acordada a noite toda com aqueles filhotes miando?
Prefiroficarmolhada!–grunhiuPresaAmarela.PatadeFogoobservou-adarvoltas,resoluta,sobreacamademusgo.–
Ao menos deixe-me arranjar uma cama seca para você – ele ofereceu,disposto a não falar a respeito de filhotes, já que o assunto incomodavatantoavelhagata.–Obrigada,PatadeFogo–respondeuPresaAmarelabaixinho,voltando
aseacomodar.PatadeFogoficouespantado,aseperguntarseagataestavasesentindo
bem.Era a primeira vez que lhe agradecia por alguma coisa e quenãoochamavadegatinhodegente.–Ora,nãofiqueaísentadocomoumesquiloassustado;váapanharmais
musgo–eladisparou.OsbigodesdePatadeFogosemexeram,divertidos.AquelaeraaPresa
Amarelaqueeleconhecia.Fezquesimcomacabeçaesaiudepressa.QuasetromboucomCaudaSarapintadanomeiodaclareira.Eraarainha
que,navéspera,tinhaobservadoaexplosãoraivosadePresaAmarelacomofilhotemalhado.–Desculpe,CaudaSarapintada!–PatadeFogomiou.–Vocêestáindover
PresaAmarela?– O que eu ia querer comaquela criatura esquisita? – replicou a gata,
rudemente.–Naverdade,estavaprocurandovocê.EstrelaAzulquervê-lo.
PatadeFogocorreunadireçãodaPedraGrandeedatocadalíder.Estrela Azul estava sentada do lado de fora, balançando a cabeça
cadenciadamente, enquanto lambia a pelagem cinza abaixo da garganta.Parouquandopercebeuachegadadoaprendiz.–ComoestáPresaAmarelahoje?–miou.– Sua cama está encharcada; então estava indo buscar mais musgo –
respondeuPatadeFogo.– Vou pedir a alguma das rainhas para providenciar – Estrela Azul
lambeuopeitomaisumavezeentãoolhouatentamenteparaPatadeFogo.–Elajáestábemparaconseguircaçaraprópriacomida?–perguntou.–Achoquenão–miouPatadeFogo–,masjáestácaminhandobem.– Compreendo – miou Estrela Azul, que pareceu pensativa por um
instante.–Jáétempodevoltaraotreinamento,PatadeFogo.Masvocêvaiprecisartrabalharduropararecuperarotempoqueperdeu.– Ótimo! Quero dizer, muito obrigado, Estrela Azul! – o aprendiz
gaguejou.– Você vai sair com Garra de Tigre, Pata Cinzenta e Pata Negra esta
manhã – continuou a líder. – Pedi a Garra de Tigre para avaliar ashabilidadesdeguerreirode todososnossosaprendizes.NãosepreocupecomPresaAmarela;vouassegurarquealguémcuidedelaenquantoestiverfora.PatadeFogofezquesimcomacabeça.–Agora,junte-seaseuscompanheiros–ordenouEstrelaAzul.–Imagino
queoestejamesperando.– Obrigado, Estrela Azul –miou o aprendiz. E, com ummovimento de
cauda,disparounadireçãodesuatoca.
EstrelaAzulestavacerta;PataCinzentaePataNegraoesperavamnotocodeárvore favorito.PataCinzenta, tensoedesconfortável, tinhaapelagemlongapesadaporcausadaumidadedoar.PataNegraandavadeumladopara o outro perto do toco de árvore, perdido em seus pensamentos,mexendoapontabrancadacauda.– Então hoje você vai conosco! – disse Pata Cinzenta ao ver o amigo
chegar.–Quedia,hein?–Sacudiu-secom forçaparase livrardaáguadachuva.– É verdade. Estrela Azulme disse que Garra de Tigre vai nos avaliar
hoje.PatadeAreiaePatadePoeiratambémvãoconosco?
–NevascaeRiscadeCarvãolevaramosdoisnapatrulhadosguerreiros.AchoqueGarradeTigrevaicuidardelesdepois–respondeuPataCinzenta.–Vamos,estánahora!–apressouPataNegra,quepararademarchare
agoraesperavaaoladodosamigos,ansioso.–Pormim,tudobem–miouPataCinzenta.–Esperoqueoexercíciome
aqueçaumpouco.Ostrêsgatossaíramdoacampamentopelatrilhadetojoecorreramatéo
vale de areia. Como Garra de Tigre não havia chegado ainda, ficaram aoabrigodeumpinheiro,comopeloarrepiadodefrio.– Está preocupado com a avaliação? – Pata de Fogo perguntou a Pata
Negra ao ver o amigo caminhando para a frente e para trás, compassosrápidosenervosos.–Nãoprecisa.Afinal,vocêéaprendizdeGarradeTigre.QuandoelefizerorelatórioparaEstrelaAzul,vaiquererdizercomovocêébom.–ComGarradeTigre,nuncasesabe–miouPataNegra,semparardese
mexer.–Pormisericórdia,sente-se–reclamouPataCinzenta.–Dessejeito,você
estaráexaustoantesmesmodecomeçarmos.QuandoGarradeTigrechegou,océutinhamudado.Asnuvenspareciam
menoscomumapelagemespessaecinzaemaiscomasbolasdepelofofoebrancoqueasrainhascostumavamcolocarnosninhosdosrecém-nascidos.Os céus azuis não estavam longe,mas a brisa que trouxera nuvensmaislevestransportavaumfriozinhonovo.PatadeTigrecumprimentourapidamenteosaprendizesefoidiretopara
os detalhes do exercício: – Coração de Leão e eu passamos as últimassemanastentandoensinarvocêsacaçardemodoapropriado.Hojevãotera oportunidade demostrar quanto aprenderam. Cada um vai pegar umarotadiferente e caçaromáximodepresaspossível.Tudooquepegaremserálevadoparaoestoquenoacampamento.Os três aprendizes se entreolharam, nervosos e empolgados. Pata de
Fogosentiuocoraçãobatermaisrápidocomaperspectivadodesafio.–PataNegra,vocêvaiseguiratrilhaalémdoGrandePlátano,chegando
até as Rochas das Cobras. Isso será fácil até mesmo para suas poucashabilidades.Você,PataCinzenta–continuouGarradeTigre–,vaipegararotaaolongodoriacho,indoatéoCaminhodoTrovão.–Ótimo–miouPataCinzenta.–Patasmolhadasparamim!–Oolharde
GarradeTigreocalou.
–E, finalmente,você,PatadeFogo.Umapenasuagrandementoranãoestar aqui hoje para testemunhar sua atuação. Você vai pegar a rota queatravessa os Pinheiros Altos, passando pelas Árvores Cortadas, até afloresta.PatadeFogoconcordou,traçandofreneticamentearotanacabeça.–Elembrem:–terminouGarradeTigre,encarando-osfirmementecom
seuolharsembrilho–Estareideolhoemtodosvocês.Pata Negra foi o primeiro a sair correndo na direção das Rochas das
Cobras. Garra de Tigre tomou um caminho diferente rumo à floresta,deixando sozinhos no vale Pata Cinzenta e Pata de Fogo, que tentavamadivinharaquemoguerreiroseguiriaemprimeirolugar.–Não sei porque ele achaque a rotadasRochasdasCobras é fácil! –
miouPataCinzenta.–Olugarparecerastejardetantasserpentes.Pássarosecamundongosficamlongedaliporcausadaquantidadedecobras!– Pata Negra terá de passar o tempo todo evitando ser picado –
concordouPatadeFogo.–Ele vai ficarbem–miouPataCinzenta. –Nemmesmouma serpente
seriarápidabastanteparaagarrarPataNegraagora,detantoqueelepula.Émelhoreuir.Encontrovocêsaquimaistarde.Boasorte!Pata Cinzenta correu na direção do riacho. Pata de Fogo parou para
farejaroaredepois,dirigindo-seàencostadovale,começouarumarparaosPinheirosAltos.Parecia estranho seguir naquela direção, para as bandas do lugar dos
Duas-Pernas,ondetinhacrescido.Comcuidado,PatadeFogoatravessouocaminhoestreitoquedavaparaaflorestadepinheiros.Olhouatravésdasfileiras retas de árvores, de um lado a outro do chão batido da floresta,alertaparaveralgumapresaousentirseucheiro.Um movimento lhe chamou a atenção. Era um camundongo se
esgueirando entre as agulhas dos pinheiros. Lembrando a primeira lição,PatadeFogoagachounaposiçãodetocaia,mantendoopesonosquadriseaspatasencostadasdelevenochão.Atécnicafuncionouperfeitamente.OcamundongonãoconseguiuperceberPatadeFogoatéopulofinal.Ogatoopegoucomumapataerapidamenteomatou.Entãoenterrouapresa,paraapanhá-lanavolta.Pata de Fogo foi um pouco mais além pelos Pinheiros Altos. O chão
estavabastantemarcadopelatrilha feitapeloenormemonstrodosDuas-Pernasquederrubavaasárvores.Elerespiroufundo,comabocaaberta.O
hálitoácidodomonstro,porenquanto,nãoimpregnaraoarporali.Pata de Fogo seguiu as trilhas fundas, pulando pelos buracos no chão.
Estavammeiocheiosdechuva,oqueodeixavacomsede.Ficoutentadoapararebeberumpoucodaspoças,mashesitou.Umalambidadaquelaágualamacentaefedidaeelesentiriaogostohorríveldomonstropordias.Decidiuesperar.TalvezhouvesseumapoçadechuvaalémdosPinheiros
Altos. Embrenhou-se entre as árvores e atravessou o caminho dosDuas-Pernasnafronteiraextrema.Estavadevoltaàvegetaçãoespessadaflorestadecarvalho.Entrouainda
maisatéencontrarumapoça,ondesefartoudeáguafresca.Derepente,seupelo começou a se eriçar em alerta. Ele reconheceu sons e cheirosfamiliaresdoseuantigopontodeobservaçãonacercae logosoubeondeestava. Era a floresta que fazia fronteira com o lugar dos Duas-Pernas.Agoradeviaestarbempertodasuaantigacasa.Maisadiante,PatadeFogosentiuocheirodosDuas-Pernaseouviusuas
vozes,altaseestridentes, comodecorvos.Eraumgrupode jovensDuas-Pernas brincando pela floresta. O aprendiz agachou, observando atravésdas samambaias.Os sons estavama umadistância segura. Elemudoudedireção,evitandoosbarulhos,cuidandoparanãoservisto.PatadeFogopermaneceualerta,observando,masnãoapenasporcausa
dosDuas-Pernas–GarradeTigrepodiaestarporperto.Pensouterouvidoum estalar de galho nos arbustos atrás dele. Farejou o ar, mas nadapercebeudenovo.Estariasendoobservado?,perguntou-se.Pelocantodoolho,percebeuummovimento.Primeiropensouquefosse
a pelagemmarrom-escuro de Garra de Tigre,mas então viu um lampejobranco. Parou, agachou e respirou fundo. O cheiro era estranho; era umgato,masnãodoClãdoTrovão.PatadeFogosentiuopeloeriçarcomosinstintosdeumguerreirodeclã.Teriadeexpulsaro intrusodoterritóriodoClãdoTrovão!Pata de Fogo observou a criatura semovimentando entre a vegetação.
Viu claramente seu perfil enquanto ela passava correndo entre assamambaias. Esperou que se aproximasse. Agachou ainda mais, com acaudaem lentacadênciaparaa frenteepara trás.Quandoogatopretoebranco seaproximou,PatadeFogobalançouosquadrisdeum ladoparaoutro,preparando-separaatacar.Maisumabatidadecoraçãoeelesaltou.O gato preto e branco pulou no ar, apavorado, e correu pelomeio das
árvores.PatadeFogocorreuatrás.
Éumgatodegente!,pensou,disparandopelavegetação,sentindocheirodemedo.Nomeu território! PatadeFogo se aproximava rapidamentedoanimalemfuga.Derepente,ogatodiminuiuoritmo,preparando-separaescalarotroncodeumaárvorecaída,largoecheiodemusgo.Comosanguelatejando nas orelhas, Pata de Fogo pulou nas costas dele comumúnicomovimentoe,aocravar-lheasgarras,sentiu-osedebater.Ogatosoltouumgritodesesperadodeterror.Pata de Fogo soltou as garras e afastou-se. O gato preto e branco,
tremendodemedo,agachou-seaopédeumaárvorecaídaeolhouparaele.Pata de Fogo levantou o nariz, sentindo um tremor de desgosto com arendição tão fácil do intruso. Aquele gato doméstico, macio e roliço, deolhosredondoserostoestreito,pareciamuitodiferentedosgatosmagrosedecabeça larga comquemPatadeFogoviviaagora.Mesmoassim,haviaalgofamiliarnaquelefelino.PatadeFogoencarou-ofirmeefarejouoar,tentandoidentificaroodor
dogato.Nãoreconheçoocheiro,pensou,procurandonamemória.Entãoelesedeuconta.–Borrão!–mioualto.– Co-como você-cê sabe me-meu n-nome? – gaguejou Borrão, ainda
agachado.–Soueu!–miouPatadeFogo.Ogatodomésticopareciaconfuso.–Nós crescemos juntos! Eumorava no jardimperto de você – insistiu
PatadeFogo.–Ferrugem?–miouBorrão,semacreditar.–Évocê?Voltouaencontrar
osgatosselvagens?Ouestánumacasanova?Deveser isso,sevocêaindaestávivo!– Meu nome agora é Pata de Fogo –miou o aprendiz, que relaxou os
ombrosedeixouapelagemabaixar,revelandoumpelolustrosoelaranja.Borrão também relaxou. Suas orelhas se retesaram. – Pata de Fogo! –
repetiu, divertido. – Bem, Pata de Fogo, parece que os seus novos donosnão lhe dão comida suficiente! Com certeza você não estava magricelaassimdaúltimavezquenosencontramos!–NãoprecisoqueosDuas-Pernasmealimentem–replicouPatadeFogo.
–Tenhoumaflorestainteiradecomidaparamealimentar.–Duas-Pernas?
–Osquemoramnascasas.Éassimqueosclãsoschamam.Borrão pareceu perplexo por um segundo; então, sua expressão
converteu-se em total assombro. – Quer dizer que você está mesmovivendocomosgatosselvagens?–Estou!–PatadeFogofezumapausa.–Vocêsabe,vocêtemumcheiro…
diferente.Estranho.–Estranho?–Borrãorepetiu.Ogatocheirouoar.–Achoqueagoravocê
estáacostumadocomocheirodosgatosselvagens.PatadeFogobalançouacabeça,comosequisesseclarearopensamento.
– Mas crescemos juntos. Eu devia reconhecer o seu cheiro comoreconheceria o da minha própria mãe. – Então Pata de Fogo lembrou.Borrão tinha mais de seis luas. Não era estranho parecer tão macio egorducho, com um cheiro tão diferente. – Você esteve no Corta-Gato! –arfou.–Querodizer,noveterinário!Borrãoencolheuosombrosnegroseroliços.–Edaí?PatadeFogoestavamudo.EstrelaAzultinharazão.–E então?Comoé viverna floresta? –Borrãoperguntou. –É tãobom
quantopensouquefosse?PatadeFogopensouporuminstante:nanoiteanterior,dormindonuma
tocaúmida.PensounabilederatoenatarefadelimparasfezesdePresaAmarela;emsuastentativasdeagradarCoraçãodeLeãoeGarradeTigreaomesmotempo,duranteotreinamento.Lembrou-sedecomoimplicaramcomeleporcausadeseusanguedegatinhodegente.Entãoselembroudaemoçãodaprimeirapresa,decorrerpelaflorestaperseguindoumesquiloedasnoitesmornassobasestrelas,trocandolambidascomosamigos.–Agoraeuseiquemsou–miousimplesmente.BorrãovirouacabeçaparaoladoeolhouparaPatadeFogo,claramente
confuso.–Émelhoreuirparacasa–miou.–Daquiapoucoestánahoradaminhacomida.–Tenhacuidado,Borrão–PatadeFogoinclinou-seedeunovelhoamigo
umalambidacarinhosaentreasorelhas.Borrão,retribuindo,esfregouneleo focinho.–Mantenha-sealerta.Podeandarpelaáreaoutrogatoquenãoseja, como eu, tão amigo de gatinhos de gente… quero dizer, gatosdomésticos.AsorelhasdeBorrãoseagitaramnervosamenteaoouviressaspalavras.
Ele olhou à volta com cuidado e pulou sobre o tronco da árvore caída. –Adeus,Ferrugem–despediu-se.–Voucontaratodoomundoemcasaque
vocêestábem!–Adeus,Borrão–miouPatadeFogo.–Aproveitesuarefeição!EleobservouapontabrancadacaudadeBorrãodesaparecernoextremo
do tronco de árvore. A distância, ouviu o barulho de ração seca sendodespejadanatigelaeavozdeumDuas-Pernaschamando.PatadeFogovirou-see, comacauda levantada, começouavoltarpara
casa,farejandooaraolongodocaminho.Vouencontrarumpintassilgooudoisporaqui.Depois vouarrumarmaisalgumacoisano caminhodevoltaentreospinheiros–pensou,decidido.Sentia-secheiodeenergiadepoisdoencontrocomBorrão;dava-secontaagoradecomotinhasorteemvivernomeiodoclã.Olhou os galhos acima dele e começou a andar silenciosamente pela
floresta, com todos os sentidos alertas. Agora só faltava impressionarEstrelaAzuleGarradeTigreparaodiaserperfeito.
CAPÍTULO11
PATADEFOGOVOLTOUcomumpintassilgopresofirmementeentreosdentes.Deixou-ocairnafrentedeGarradeTigre,queesperavanovale.–Vocêfoioprimeiroavoltar–disseoguerreiro.–É,mastenhomuitomaispresasparabuscar–respondeudeprontoo
aprendiz–Enterrei-as…–Seiexatamenteoquefez–grunhiuGarradeTigre.–Estiveobservando
você.Um zunido nos arbustos anunciou a volta de Pata Cinzenta. Carregava
umpequenoesquilonaboca,quecolocouao ladodopintassilgo.–Eca!–disparou.–Esquilos sãopeludosdemais.Voupassaranoite toda tirandopelodosdentes.GarradeTigrenãoprestouatençãoaoresmungodePataCinzenta.–Pata
Negra está atrasado – observou. – Vamos dar a ele mais um tempo evoltamosaoacampamento.–Mas,eseeletiversidopicadoporumaserpente?–protestouPatade
Fogo.– Então, a culpa é dele – retrucou Garra de Tigre friamente. – Não há
lugarparatolosnoClãdoTrovão.Esperaramemsilêncio.PataCinzentaePatadeFogo trocaramolhares,
preocupados com o amigo. Garra de Tigre estava imóvel, aparentementeperdidoempensamentos.Pata de Fogo foi o primeiro a farejar a chegada de Pata Negra. Pulou
quando o gato negro deu um salto na clareira, parecendo incrivelmentesatisfeito.Tinhapenduradanabocaumaserpentecompridaecomocorpoestampadoemdiamantes.–PataNegra!Tudobemcomvocê?–perguntouPatadeFogo.–Ei!–miouPataCinzenta,adiantando-separaadmirarapresadePata
Negra.–Elapicouvocê?–Elanãotevetempoparaisso!–ronronouPataNegraemvozalta,cheio
deorgulho.FoiquandodeudecaracomGarradeTigreecalouaboca.Oguerreirocongelouostrêsaprendizescomoolhar.–Venham–disse
secamente.–Vamospegarorestodaspresasevoltaraoacampamento.
Pata de Fogo, Pata Cinzenta e Pata Negra entraram no acampamento,
seguindoGarradeTigre.Traziamnabocasuaspresasadmiráveis,emboraPata Negra continuasse tropeçando na cobra morta. Quando saíram docaminhodetojos,umgrupodefilhotesescapoudoberçárioparavê-los.–Vejam!–PatadeFogoouviuumdelesdizer.–Osaprendizesacabamde
voltar da caçada! – Ele reconheceu o gato malhado que Presa Amarelamaltrataranavéspera.Sentadopertodeleestavaumfilhotecinzaepeludo,quenãotinhamaisqueduasluasdeidade.Aseulado,umgatopretobemmiúdoeumapequenagataatartarugada.–AquelenãoéPatadeFogo,ogatinhodegente?–guinchouofilhote.–É,sim!Olheopelocordelaranja!–miouopreto.–Dizemqueébomcaçador–acrescentouagataatartarugada.–Lembra
umpoucoCoraçãodeLeão.Vocêachaqueébomcomoele?–Nãovejoahoradecomeçarotreinamento–miouomalhadinho.–Vou
seromelhorguerreiroqueoClãdoTrovãojáviu!Pata de Fogo levantou o queixo, orgulhoso dos comentários de
admiraçãodosfilhotes,eseguiuosdoisamigosatéocentrodaclareira.– Uma cobra! – Pata Cinzentamiou novamente, quando os aprendizes
colocaram no chão o resultado da caça para que os outros gatos apartilhassem.– O que faço com isso? – perguntou Pata Negra cheirando o corpo da
cobracolocadoaoladodapilha.–Issosecome?–perguntouPataCinzenta.– Você, sempre pensando no estômago! – brincou Pata de Fogo,
cutucandoPataCinzentacomacabeça.–Eu équenão ia querer comer isso –murmurouPataNegra. –Quero
dizer,jáestoucomumgostohorrívelnabocasódetrazeracobra!– Vamos colocá-la no toco da árvore, então – sugeriu Pata Cinzenta –,
paraquePatadePoeiraePatadeAreiaavejamquandovoltarem.Cadaumcarregouasuapresa,alémdaserpente,devoltaparaatocados
aprendizes.Comcuidado,PataCinzentacolocouacobranotoco,deformaque pudesse ser vista claramente de todos os lados. Então, comeram.Quando acabaram, sentaram perto um do outro para lamber-se econversar.–QuemseráqueEstrelaAzulvaiescolherparairàAssembleia?–Patade
Fogoperguntou.–Amanhãéluacheia.– Pata de Areia e Pata de Poeira já foram duas vezes – retrucou Pata
Cinzenta.–PodeserqueEstrelaAzulagorachameumdenós–miouPatadeFogo.
–Afinal,jáestamosemtreinamentoháquasetrêsluas.–MasPatadeAreiaePatadePoeiraaindasãoosaprendizesmaisvelhos
–PataNegralembrou.PatadeFogoconcordou.–EessaAssembleiavaiserimportante.Vaiser
aprimeiradesdequeoClãdoVentodesapareceu.NenhumgatosabeoqueoClãdasSombrasvaidizerarespeito.OmiadobaixodeGarradeTigreinterrompeu-os.–Vocêestácerto,meu
jovem.–Oguerreiroseaproximarasemsernotado.–Aliás,PatadeFogo–acrescentoucomvozsuave–,EstrelaAzulquervê-lo.PatadeFogoficousurpreso.Porqueseráquealíderqueriavê-lo?–Agora,sevocêsedignar–miouGarradeTigre.Pata de Fogo pôs-se em pé imediatamente e atravessou a clareira na
direçãodatocadeEstrelaAzul.Alíderestavasentadadoladodefora,agitandoacaudasemparar,paraa
frente e para trás. Quando viu o aprendiz, levantou-se e o olhoufirmemente.–GarradeTigremedissequeviuvocêconversandohojecomumgatodosDuas-Pernas–elamiou,calma.–Mas…–começouPatadeFogo.– Disse que você começou lutando com o gato, mas que acabaram
trocandolambidas.–Éverdade–admitiuoaprendiz,nadefensiva,sentindoopeloeriçar.–
Trata-sedeumvelhoamigo,crescemosjuntos.–Fezumapausaeengoliuemseco.–Quandoeueraumgatinhodegente.EstrelaAzulolhou-olongamenteeperguntou:–Vocêsentefaltadasua
antigavida,PatadeFogo?Pensebemantesderesponder.–Não,não sinto. –Comoelapodiapensaraquilo?, espantou-se Pata de
Fogo.Acabeçagirava.OqueEstrelaAzulestavatentandofazê-lodizer?–Vocêquerdeixaroclã?–Claroquenão!–PatadeFogoficouchocadocomapergunta.EstrelaAzulnãopareceunotarovigorda resposta.Balançoua cabeça,
parecendo de repente velha e cansada. – Não vou julgá-lo se você nosdeixar,PatadeFogo.Talvezeutenhaesperadodemaisdevocê.Talvezmeujulgamento tenha sido prejudicado pela necessidade do clã de novosguerreiros.
O pânico tomou conta do aprendiz, ao pensar em deixar o clã parasempre.–Masmeulugaréaqui!Esteéomeular–protestou.–Precisomaisdoque isso,PatadeFogo.Precisopoder confiarna sua
lealdade ao Clã do Trovão, principalmente agora que o Clã das Sombraspareceestarplanejandoumataque.Não temos lugarparaquemnão temcertezaseoseucoraçãoestánopassadoounopresente.PatadeFogorespiroufundoeescolheuaspalavrasseguintescommuito
cuidado. – Quando vi Borrão hoje, o gato doméstico com quem euconversavaquandoGarradeTigremeobservava,percebicomominhavidateriasidoseeutivesseficadocomosDuas-Pernas.Fiqueifelizpornãoterficado. Me senti orgulhoso de ter partido. – Ele não desviou o olhar deEstrela Azul, que o fitava. – Encontrar Borrão me deu a certeza de quetomei a decisão correta. Nunca ficaria satisfeito com a vida mansa degatinhodegente.EstrelaAzul fitou-oporuminstante,comosolhosestreitos, finalmente
concordandocomacabeça.–Muitobem.Acreditoemvocê.Pata de Fogo abaixou a cabeça numa reverência profunda e deu um
suspirodealívio.– Faleimais cedo comPresa Amarela –miou a líder em um tommais
brando.–Elapensamuitobemdevocê.Éumagatavelhaesábia,vocêsabe.Acho que nem sempre foi mal-humorada. Na verdade, imagino que eupossaatéacabargostandodela.Pata de Fogo sentiu uma inesperada sensação de prazer ao ouvir tais
palavras.Talvez,enquantotomavacontadePresaAmarela,suaadmiraçãotenhasetransformadoemafeição,apesardotemperamentodifícildagata.Qualquerquefossearazão,ficoufelizporEstrelaAzultambémgostardela.– Mas há alguma coisa que me deixa desconfiada – a líder continuou
calmamente.–ElavaificarcomoClãdoTrovãoporora,masaindacomoprisioneira. As rainhas vão tomar conta dela. É preciso que você seconcentrenotreinamento.O aprendiz fez um sinal com a cabeça e esperou para ser dispensado;
masagataaindanãoterminara.–PatadeFogo,emboravocêtenhatomadoadecisãoerradahoje,falandocomumgatodoméstico,GarradeTigreficouimpressionadocomsuashabilidadesde caçador.Naverdade, relatouquetodos vocês foram bem. Fico satisfeita com o progresso. Vocês vão àAssembleia;ostrês.PatadeFogomalpodiaseconter.Seucorpopinicavadeempolgação.A
Assembleia!–EPatadeAreiaePatadePoeira?–perguntou.–Vãoficarnoacampamento,montandoguarda–explicouEstrelaAzul.–
Agora pode ir. – Ela balançou a cauda comprida para mostrar que eleestavadispensadoevoltouaselamber.
PataCinzentaePataNegraficaramespantadosaoverPatadeFogovindonasuadireção,todosaltitante.Estavamnervosos,esperando-oaoladodotocodeárvore.PatadeFogosentoueolhouparaosamigos.–Eentão?–perguntouPataCinzenta.–Oqueeladisse?–GarradeTigrenosdissequevocêestava trocando lambidascomum
gatinho de gente esta manhã – disparou Pata Negra. – Você estáencrencado?– Não. Embora Estrela Azul não tenha gostado – admitiu o aprendiz,
lamentando. – Ela achou que eu estivesse pensando em deixar o Clã doTrovão.–Masvocênãoestá,está?–perguntouPataNegra.–Claroquenão!–miouPataCinzenta.PatadeFogodeuumapatada carinhosano amigo cinzento. –Ah, você
detestariaisso.Precisademimparacaçarunscamundongosparavocê!Sóoqueconseguepegarsãoesquilosvelhosepeludos!PataCinzentasedesvioudobafodePatadeFogoeficoudepénaspatas
traseiras,prontopararevidar.– Você nunca vai adivinhar o quemais ela disse! – continuou Pata de
Fogo.Estavaexcitadodemaisparaperdertempobrincandodelutar.PataCinzentaimediatamenteseafastou,colocando-senasquatropatas.
–Oquê?–perguntou.–VamosparaaAssembleia!Pata Cinzenta deixou escapar um grito de prazer e subiu no toco de
árvore. Uma de suas patas traseiras bateu na serpente que estavapendurada, e esta acabou caindo na cabeça de Pata Negra, vindo a seenrolarnoseupescoço.PataNegracuspiu,assustadoesurpreso,esevoltouparaPataCinzenta.
– Preste atenção! – reclamou, grosseiro. Sacudiu a serpente e a jogou nochão.– Ficou commedo que ela omordesse? – provocou Pata de Fogo. Em
seguida,agachou-see,sibilando,arrastou-senadireçãodePataNegra.
PataNegraestremeceubigodesereplicou:–Quebelacobravocêdaria!–PulousobrePatadeFogoefacilmenteoviroudebarrigaparacima.PataCinzentadesceudotocodaárvoreedeuumpuxãonacaudadePata
Negra.QuandoestesevirouparadarumapatadadeleveemPataCinzenta,PatadeFogopulouemcimadosdois,fazendoPataCinzentavoardotoco.Ostrêsgatosrolaramnaterra,lutandonochão.Finalmentesesepararameseajeitaram,colocando-seaoladodotoco.–PatadeAreiaePatadePoeiravãotambém?–perguntouPataCinzenta.–Quenada!–dissePatadeFogo, incapazdedisfarçarumcertotriunfo
navoz.–Têmdeficardeguardanoacampamento.–Ah!Não vejo a hora de contar para eles – implorouPata Cinzenta. –
Estouloucoparaveracaraquevãofazer!–Eutambém!–concordouPatadeFogo.–Nãopossoacreditarquenós
vamosnolugardeles.PrincipalmentedepoisdeGarradeTigretermevistocomBorrãohoje!– Isso foi apenas azar – dissePata Cinzenta. –Todosnóspegamosum
bocadodepresasnaavaliação.Devetersidoissoquelevaramemconta.–FicoimaginandocomodeveseraAssembleia–miouPataNegra.–Vai ser fantástica– respondeuPataCinzenta, confiante.–Apostoque
todososgrandesguerreirosvãoestarlá.CaraRasgada,PeledePedra…Mas Pata de Fogo não estava mais prestando atenção. Na verdade,
pensavaemGarradeTigreeemBorrão.PataCinzentaestavacerto.Foraazarqueograndeguerreirooestivesseobservandobemnahoraemqueencontraraovelhoamigo.PorquenãoestavaobservandoPataCinzentaouPataNegra?FoimesmofaltadesorteGarradeTigretê-loenviadoparatãopertodolugardosDuas-Pernas.Derepente,ummaupensamento invadiuamentedePatadeFogo:por
que Garra de Tigre o tinha enviado para tão perto de sua antiga casa?Queriatestá-lo?NãoacreditavanasualealdadeaoClãdoTrovão?
CAPÍTULO12
PATA DE FOGO OBSERVAVA do alto de uma encosta coberta de arbustos. PataCinzenta e Pata Negra estavam agachados a seu lado. Perto deles, navegetação, um grupo de anciãos, rainhas e guerreiros do Clã do TrovãoaguardavaosinaldeEstrelaAzul.PatadeFogonãotinhavoltadoàquelelugardesdesuaprimeirajornada
com Coração de Leão e Garra de Tigre. A vereda escarpada pareciadiferente.Overdeabundantedasflorestasestavaembranquecidopelaluzda lua cheia, e as folhas das árvores brilhavam como prata. Embaixoestavamosgrandescarvalhosquemarcavamopontoemqueo territóriodecadaclãseencontravacomosdemais.Oarestavadensocomoscheirosmornosdegatosdosoutrosclãs.Pata
de Fogo podia vê-los claramente ao luar,movimentando-se na grama daclareiraquehaviaentreosquatrocarvalhos.Nocentro,umapedragrandeepontiagudasurgiadochãodaflorestacomoumdentepartido.–Vejamtodosaquelesgatosláembaixo–PataNegrasilvou,baixinho.–LáestáEstrelaTorta–PataCinzentacochichoudevolta.–O líderdo
ClãdoRio.–Onde?–PatadeFogomiou,impaciente,cutucandoPataCinzenta.–Aquelegatomeiomalhado,aoladodaPedradoConselho.PatadeFogoseguiuaindicaçãodoamigoeviuumgatoenorme,maior
aindaqueCoraçãodeLeão,sentadonomeiodaclareira.Apelagemlistradabrilhavapalidamenteaoluar.Mesmoàqueladistânciaorostomostravaossinais de uma vida dura, e a boca parecia torta, como se tivesse sidoquebradaeconsertadadequalquerjeito.– Ei! – miou Pata Cinzenta. – Vocês viram como Pata de Areia cuspiu
quandolhedesejeiumaótimanoiteemcasa?–Garantoquevaiter!–PatadeFogoronronou.Pata Negra interrompeu-os com um grunhido surdo: – Vejam! Lá está
EstrelaPartida,olíderdoClãdasSombras.Pata de Fogo olhoupara o gato listradodemarrom-escuro.O pelo era
incrivelmentelongo;acara,largaeachatada.Seujeitotaciturnodesentar-seeolharàvoltafaziaapelagemdePatadeFogoeriçar-sedeincômodo.–Eleparecebemantipático–murmurouPatadeFogo.– É verdade – concordou Pata Cinzenta. – Não há dúvida de que
conseguiuumareputaçãoentretodososclãspornãotolerarbrincadeiras.Enemfaztantotempoquesetornoulíder…quatroluas,desdequeseupai,EstrelaAfiada,morreu.–ComoéolíderdoClãdoVento?–perguntouPatadeFogo.–EstrelaAlta?Nuncaovi,masseiqueépretoebrancoetemumacauda
bemcomprida–respondeuPataCinzenta.–Vocêconseguevê-lo?PataCinzentaolhouparabaixo,procurandoentreamultidãodefelinos.–
Neca!–ConseguesentirocheirodealgumgatodoClãdoVento?PataCinzentabalançouacabeça.–Não.OmiadodeCoraçãodeLeãosooucalmoaoladodeles:–OsgatosdoClã
doVentopodemestarapenasatrasados.–Mas,esenãoaparecerem?–miouPataCinzenta.– Silêncio! Precisamos ter paciência. São temposdifíceis.Agora fiquem
quietos. Estrela Azul, daqui a pouco, vai dar o sinal para nosmovimentarmos–CoraçãodeLeãomioubaixinho.Enquanto ele falava, Estrela Azul se levantou e, mantendo a cauda no
alto,balançou-adeum ladoparaoutro.OcoraçãodePatadeFogoquaseparou quando os gatos do Clã do Trovão se levantaram todos juntos esurgiramemmeioaosarbustos,descendonadireçãodolocaldeencontro.Ele correu ao lado dos felinos, sentindo o vento nas orelhas e as pataspinicandodeansiedade.Os gatos do Clã do Trovão pararam instintivamente no extremo da
clareira, forados limitesmarcadospeloscarvalhos.EstrelaAzul farejouoar.Fezumgestoeatropaavançouparadentrodaclareira.Pata de Fogo estava excitado. Os outros felinos pareciam ainda mais
impressionantes vistos de perto,movendo-se lentamente nas imediaçõesda Pedra Grande. Um guerreiro grande e branco passou. Pata de Fogo ePataNegraoolharam,maravilhados.–Olhequepatas!–murmurouPataNegra.PatadeFogoolhouparabaixoepercebeuqueaspatasenormesdogato
eramdeumpretoretinto.–DeveseroPéPreto–miouPataCinzenta.–Onovorepresentantedo
ClãdasSombras.PéPretocaminhouatéEstrelaPartidaesentouaoseulado.OlíderdoClã
dasSombrasoreconheceucomummovimentodaorelha,masnadadisse.–Quandooencontrovaicomeçar?–PataNegraperguntouaNevasca.– Seja paciente. O céu está claro esta noite, o que significa que temos
muitotempo.CoraçãodeLeão inclinou-seeacrescentou:–Nós,guerreiros,gostamos
de ficar um tempo nos vangloriando das vitórias, enquanto os anciãostrocamhistóriassobrecomoeramascoisasantigamente,antesdeosDuas-Pernas chegarem. – Os aprendizes o olharam e viram seus bigodes semexercommalícia.Cauda Mosqueada, Caolha e Orelhinha foram direto até um grupo de
gatos mais velhos que se ajeitavam sob um dos carvalhos. Nevasca eCoração de Leão seguiram na direção de outros guerreiros, que Pata deFogonãoconhecia.ElefarejouoarereconheceunelesocheirodoClãdoRio.A voz de Estrela Azul soou por trás dos três aprendizes. – Não
desperdicem nem um minuto esta noite – advertiu. – Esta é uma boaoportunidadeparaconhecerosinimigos.Ouçamoquedizem;lembrem-sede como são e como se comportam. Nesses encontros aprende-semuitacoisa.–Efalempouco–advertiuGarradeTigre.–Nãodeemnenhumadicaque
possaserusadacontranósquandoaluaminguar.–Nãosepreocupe;vamosnoscomportar!–PatadeFogologoprometeu,
olhandonosolhosdeGarradeTigre.Eleaindasentiaqueoguerreironãoconfiavanasualealdade.Os dois guerreiros concordaram em silêncio e se afastaram, deixando
sozinhososaprendizes,queseolharam.–Oquefazemosagora?–perguntouPatadeFogo.–Oqueelesmandaram–respondeuPataNegra.–Prestamosatenção.–Enãofalamosmuito–acrescentouPataCinzenta.PatadeFogosemostravapreocupado.–VouveraondefoiGarradeTigre
–miou.–EeuvouprocurarCoraçãodeLeão–miouPataCinzenta.–Vocêvem
comigo,PataNegra?–Não,obrigado.Vouprocuraroutrosaprendizes.–Tudobem.Agenteseencontramaistarde–miouPatadeFogo,saindo
noencalçodeGarradeTigre.
FoifácilsentirocheirodeGarradeTigreeencontrá-lonocentrodeumgrupodeenormesguerreiros,atrásdaPedraGrande.ElecontavaumahistóriaquePatadeFogotinhaouvidomuitasvezesno
acampamento.Descreviaa recentebatalhacontraos caçadoresdoClãdoRio.–LuteicomoumgatodoClãdosLeões.Trêsguerreirostentarammesegurar,mas joguei-os longe. Lutei até dar cabode dois deles; o terceirocorreuparaafloresta,comoumfilhotechorandopelamãe.Dessa vez Garra de Tigre não mencionou ter matado Coração de
CarvalhoparavingaramortedeRaboVermelho.TalvezparanãoofenderosguerreirosdoClãdoRio,PatadeFogodeduziu.O aprendiz ouviu educadamente até o fim da história, mas um cheiro
familiarodistraiu.LogoqueGarradeTigreparoudefalar,PatadeFogosevirounadireçãodocheirodoce,quevinhadeumgrupodegatosaliperto.Encontrou Pata Cinzenta entre os felinos,mas não era aquele o cheiro
queeleperseguia.DooutroladodePataCinzenta,entredoisgatosdoClãdo Rio, estava Folha Manchada. Pata de Fogo olhou-a timidamente e secolocouaoladodoamigo.– Ainda não sinto nenhum cheiro do Clã do Vento – miou para Pata
Cinzenta.–O encontro aindanão começou; pode ser que ainda venham.Veja, lá
está Nariz Molhado. Parece que é o curandeiro do Clã das Sombras. –Apontouparaumpequenogatocinzaebranco,nomeiodogrupo.– Estou vendo por que o chamam Nariz Molhado – observou Pata de
Fogo. O nariz do curandeiro estava úmido na ponta, cheio de craca nasbordas.–Eca–dissePataCinzenta,debochando.–Nãoseiporqueoindicaram
comocurandeirosenãoconseguenemcuidardopróprioresfriado!Nariz Molhado estava falando a uns gatos sobre uma erva que os
curandeiros usavam antigamente para curar a tosse de filhotes. – DesdequeosDuas-Pernaschegarameencheramolugarcomterraduraefloresestranhas–elereclamava,falandoalto–,aervadesapareceueosfilhotesagoramorremàtoanotempofrio.Osgatosàvoltagrunhiram,mostrandodesaprovação.– Isso nunca teria acontecido na época dos felinos dos grandes clãs –
observouumarainhanegradoClãdoRio.–Éverdade–miouumgatomalhadodeprateado.–Osgrandesfelinos
teriam matado qualquer Duas-Pernas que ousasse entrar no território
deles.SeoClãdosTigresaindavagasseporesta floresta,osDuas-Pernasnuncateriaminvadidonossasterrasaesseponto.EntãoPatadeFogoouviuomiadocalmodeFolhaManchada:–SeoClã
dos Tigres andasse por estas florestas, nós tampouco teríamos instaladoaquionossoterritório.–OqueeraoClãdosTigres?–perguntouummiadobaixinho.Patade
Fogo viu que se tratava de um pequeno aprendiz malhado de um dosoutrosclãs,sentadoaoseulado.– O Clã dos Tigres foi um dos maiores clãs de grandes felinos que
andavamnesta floresta–explicoucalmamentePataCinzenta.–Sãogatosdanoite,grandescomocavalos,comlistraspretasretintas.EháoClãdosLeões.Eles…–PataCinzentahesitou,franzindoatestaaotentarlembrar.–Ah!Ouvifalardeles–miouofilhotemalhado.–Eramgrandescomoos
tigres,compeloamareloejubasdouradascomoraiosdosol.PataCinzentaconcordou.–Eaindahaviaaqueleoutro,ClãdosPintados
oucoisaparecida…–AchoquevocêestáfalandodoClãdosLeopardos,jovemPataCinzenta
–miouumavozatrásdeles.– Coração de Leão! – Pata Cinzenta saudou o mentor com um toque
afetuosodonariz.Coração de Leão balançou a cabeça, comdesprezo e deboche. – Vocês,
jovens, não conhecem a própria história? O Clã dos Leopardos tinha osfelinosmaisrápidos.Eramenormes,dourados,etinhampintasnegrasquesepareciamcompatas.Agradeçamaelespelavelocidadeepelacapacidadedecaçaqueagorapossuem.–Agradecer?Porquê?–perguntouogatomalhado.CoraçãodeLeãoolhouparaopequenoaprendizedisse:–Háemcadagatodehojeumvestígiodetodososgrandesfelinos.Não
seríamos caçadores noturnos sem nossos ancestrais do Clã dos Tigres, enossoamorpelocalordosolvemdoClãdosLeões.–Fezumapausa.–VocêéumaprendizdoClãdasSombras,nãoé?Quantasluasvocêtem?Ogato,meiosemjeito,olhouparaochão.SemfitardiretamenteCoração
deLeão,gaguejou:–Se-seisluas.– Bem pequeno para seis luas – murmurou o guerreiro. O tom era
delicado,masoolharerainquiridoresério.– Minha mãe também era pequena – disse o gato, nervoso. Então,
inclinouacabeçaeseafastou,gingandoacauda levementemarrom,paradesaparecernamultidão.CoraçãodeLeãovirou-separaPatadeFogoePataCinzenta.–Elepode
ser pequeno, mas ao menos se mostrou curioso. Quem dera vocês doismostrassemomesmointeressepelashistóriasqueosanciãoscontam!– Desculpe, Coração de Leão – miaram os dois aprendizes, trocando
olharescheiosdedúvida.Coração de Leão grunhiu de forma amigável. – Ah, saiam daqui vocês
dois. Da próxima vez, espero que Estrela Azul arrume aprendizes queapreciemoqueouvem.–Comummiadodesanimado,espantou-osdali.–Venha–ronronouPataCinzenta,quandosaíam.–Vamosverondeestá
PataNegra.Ele estava no meio de um grupo de aprendizes loucos para saber da
históriadabatalhacomoClãdoRio.–Vamos,PataNegra!Conteoqueaconteceu!–gritouumagatamiúda,
pretaebranca.PataNegra,tímido,movimentouospésesacudiuacabeça.–Conte,PataNegra!–insistiuumoutrogato.OaprendizolhouàvoltaeviuPatadeFogoePataCinzentanocantodo
grupo.PatadeFogofezumsinalcomacabeça,paraencorajá-lo.PataNegrabalançouacauda,agradecido,ecomeçouacontar.No início se atrapalhou um pouco, mas, à medida que prosseguia, o
temorfoidesaparecendodavozeeleconquistouopúblico,quearregalavaosolhosmaisemais.– Havia pelo voando para todo lado. O sangue se espalhava pelas
amoreiras, vermelho vivo contra o verde. Tinha acabado deme livrar deumgatoenorme,quesaiuguinchandoparadentrodosarbustos,quandoochãotremeueouviogritodeumguerreiro.EraCoraçãodeCarvalho!RaboVermelhopassoucorrendopormimcomabocapingandosangue,opelorasgado, gritando que Coração de Carvalho estava morto. Então, saiucorrendoparaajudarGarradeTigre,quelutavacomoutroguerreiro.–QuemdiriaquePataNegraera tãobomcontadordehistórias–Pata
Cinzenta,impressionado,comentoubaixinhocomPatadeFogo.MasPatadeFogoestavapensandoemoutracoisa.Oqueforamesmoque
PataNegrahaviadito?RaboVermelhomataraCoraçãodeCarvalho?Mas,deacordocomGarradeTigre,CoraçãodeCarvalhomataraRaboVermelho
eele,GarradeTigre,tinhamatadoCoraçãodeCarvalho,comovingança.– Se Rabo Vermelho matou Coração de Carvalho, quem matou Rabo
Vermelho?–PatadeFogocochichoucomPataCinzenta.– Se quem fez o quê? – Pata Cinzenta repetiu, distraído. Não estava
prestandomuitaatenção.PatadeFogobalançoua cabeçapara colocaras ideiasemordem.Pata
Negradeveter-seenganado,pensou.DeveterqueridodizerGarradeTigre.Pata Negra estava chegando ao final da história. – Finalmente, Rabo
Vermelhoagarrouacaudadogatochorosoeconseguiuafastá-lodeGarradeTigree,comaforçadetodooClãdosTigres,atirou-onosarbustos.PatadeFogopercebeuuma sombra semexendo.Olhou ao redor e viu
GarradeTigrenãomuitolonge.OguerreiroestavaobservandoPataNegracomumolhardeferro.Semsedarcontadapresençadomentor,oaprendizcontinuou respondendo às inúmeras perguntas de sua entusiasmadaplateia.–QuaisforamasúltimaspalavrasdeCoraçãodeCarvalho?–Éverdadequeelenuncatinhaperdidoumabatalha?Pata Negra respondia prontamente, em voz alta e clara, os olhos
brilhando.MasquandoPatadeFogofitouGarradeTigre,percebeuoolharterríveldoguerreiroeacaratransfiguradapelaraiva.EraevidentequeelenãoestavagostandonadadahistóriadePataNegra.PatadeFogoiacomeçarafalaralgumacoisaparaPataCinzentaquando
umgritoanunciouquetodososfelinosdeviamficarquietos.PatadeFogoficoualiviadoquandoPataNegrafinalmentecalouabocaeGarradeTigresefoi.Pata de Fogo procurou ver de onde viera o grito. Contra a luz da lua,
percebia-seasilhuetadetrêsgatossentadosnoaltodaPedraGrande.EramEstrelaAzul,EstrelaPartidaeEstrelaTorta.Os líderes iam começar a reunião. Mas onde estava o líder do Clã do
Vento?–ElesnãovãocomeçarareuniãosemEstrelaAlta,vão?–PatadeFogo
cochichou.–Nãosei–murmurouPataCinzenta.– Você viu? Não há nenhum gato do Clã do Vento aqui – observou,
baixinho,outroaprendizdoClãdoRio,dooutroladodePatadeFogo.Todosdeviamestarcomentandoamesmacoisa,imaginouPatadeFogo.
Os outros gatos foram se reunindo abaixo da Pedra Grande, com ummurmúrioinquietopresonagarganta.–Aindanãopodemoscomeçar–umavozsobrepôs-seaobarulho.–Onde
estãoosrepresentantesdoClãdoVento?Precisamosesperaratéquetodososclãsestejampresentes.Noaltodarocha,EstrelaAzuldeuumpassoàfrente.Apelagemcinzaera
quasebranca sobobrilhoda lua. – Sejambem-vindos, gatosde todososclãs – miou com a voz clara. – É verdade que o Clã do Vento não estápresente,masEstrelaPartidadesejafalar,aindaassim.Estrela Partida, sem fazer barulho, colocou-se ao lado de Estrela Azul.
Observouamultidãoporalgunsinstantes,comosolhoscordelaranjaembrasa.Respiroufundoecomeçou:–Amigos,estouaquihojeparafalarcomvocêsarespeitodasnecessidadesdoClãdasSombras…Foiinterrompidoporvozesimpacientesqueselevantaram.–OndeestáEstrelaAlta?–umgatoperguntou.–OndeestãoosguerreirosdoClãdoVento?–outrogritou.Estrela Partida estirou totalmente o corpo e a cauda chicoteou de um
ladoparaooutro.Comavozcheiadeameaça,grunhiu:–ComolíderdoClãdasSombras,tenhoodireitodefalaraqui!Amultidão fezumsilênciodesconfortável.PatadeFogosentiunoaro
cheiroforteeacredomedo.EstrelaPartidavoltouauivar.–Todossabemosqueostemposdifíceisda
estação sem folhas e o renovo tardio deixarampoucas presas emnossaszonasdecaça.MastambémsabemosqueoClãdoVento,oClãdoRioeoClãdoTrovãoperderammuitosfilhotesduranteotempofrio,quechegoutãotardenestaestação.OClãdasSombrasnãoperdeufilhotes.Resistimosbemao vento frio donorte.Nossos filhotes são, desdequenascem,maisfortes que os de vocês. Com isso, temos muitas bocas para alimentar epouquíssimaspresasparasatisfazê-las.Amultidão,aindaemsilêncio,ouviacomansiedade.– As necessidades do Clã das Sombras são simples. Para sobreviver,
precisamos expandir nossas zonas de caça. É por isso que insisto quepermitamaosguerreirosdoClãdasSombrascaçarnoterritóriodevocês.Umgritosurdodeespantopercorreuaaudiência.–Partilharaszonasdecaça?–perguntou,irado,GarradeTigre.–Issonuncaaconteceu!–indignou-seumarainhaatartarugadadoClãdo
Rio.–Osclãsnuncapartilhariamdireitossobreacaça!– O Clã das Sombras deve ser punido porque nossos bebês são mais
fortes?–disseEstrelaPartidadoaltodaPedraGrande.–Vocêsqueremquefiquemosolhandoenquantonossosjovensmorremdefome?Vocêstêmdedividirconoscooquepossuem.– Como assim, temos? – disparou Orelhinha, furioso, lá de trás da
multidão.– É. Têm de partilhar – repetiu Estrela Partida. – O Clã do Vento não
conseguiu entender a situação. No final, tivemos de despejá-lo do seuterritório.Gritosindignadospercorreramamultidão,masouivodeEstrelaPartida
foimaisalto.–Senecessário,vamosexpulsarvocêstambémdassuaszonasdecaçaparaalimentarnossosfilhotesfamintos.Houveumsilêncio instantâneo.Dooutro ladodaclareira,PatadeFogo
ouviuumaprendizdoClãdoRiocomeçaramurmuraralgumacoisa,maslogoumgatomaisvelhoofezcalar.Satisfeitoporconseguiraatençãodosfelinos,EstrelaPartidacontinuou:
–Acadaano,osDuas-Pernasdanificammaisfaixasdonossoterritório.Aomenos um clã deve permanecer forte, para que todos os outros possamsobreviver. O Clã das Sombras prospera enquanto vocês encontramdificuldades.Epodechegarahoraemquesejanecessáriodarmosproteçãoavocês.– Você duvida da nossa força? – protestou Garra de Tigre. Os olhos
pálidos fuzilaram ameaçadoramente o líder do Clã das Sombras; seusombrospoderosos,tensos,tremiam.–Nãopeçorespostasagora–disseEstrelaPartida, ignorandoodesafio
doguerreiro.–Quecadaumváemboraepensenasminhaspalavras.Mastenhamemmenteoseguinte:vocêspreferempartilharaspresasouseremdespejados,ficandosemcasaefamintos?Guerreiros, anciãos e aprendizes se entreolharam sem conseguir
acreditar.Napausaansiosaque se seguiu,EstrelaTorta seadiantou. – JáconcordeiemconcederaoClãdasSombrasalgunsdireitosdecaçanorioquecortaonossoterritório–mioucalmamente,olhandoparaseuclã.SentimentosdehorrorehumilhaçãopercorreramosgatosdoClãdoRio,
aoouviremaspalavrasdolíder.–Nãofomosconsultados!–gritouumgatomalhadodecinza-prata.– Acho que é omelhor para o nosso clã. Para todos os clãs – explicou
EstrelaTorta,comavozcheiaderesignação.–Hámuitospeixesnorio.Émelhorpartilharnossaspresasdoquederramarsanguelutandoporelas.–EoClãdoTrovão?–reclamouOrelhinha.–EstrelaAzul,vocêtambém
concordoucomessaexigênciaultrajante?EstrelaAzul,segura,enfrentouoolhardovelhofelino.–Nãofiznenhum
acordocomEstrelaPartida;sódissequeiadiscutirapropostacommeuclãdepoisdaAssembleia.–Bom,aomenos jáéalgumacoisa–dissePataCinzentanoouvidode
PatadeFogo.–VamosmostraraelesquenãosomostãobonzinhosquantooscovardesdoClãdoRio.EstrelaPartidavoltouafalar,comavozásperaemtomarroganteeforte
depoisdarendiçãodeEstrelaTorta.–Tambémtragonotíciasimportantespara a segurança de seus filhotes. Uma gata do Clã das Sombras foidesonesta e quebrou o código dos guerreiros. Nós a expulsamos doacampamento, mas não sabemos onde está agora. É uma velha criaturaesquálida,mascomumamordidadignadoClãdosTigres.OpelodePatadeFogoseeriçou.SeráqueelesereferiaaPresaAmarela?
Esticouasorelhas,curiosoparaouvirmais.–Estouavisandoqueéperigosa.Nãolhedeemabrigo–EstrelaPartida
fezumapausateatral.–Enquantonãoforapanhadaemorta,aconselho-osavigiaremseusfilhotesbemdeperto.PelosgrunhidosnervososquebrotaramdagargantadosgatosdoClãdo
Trovão, Pata de Fogo percebeu que também tinham pensado em PresaAmarela. A gata corajosa nada fizera para agradar a seus anfitriõesrelutantes,eoaprendizimaginavaquenãoiademorarmuitoparasecriarumsentimentodeódiocontraela–aspalavrasdeuminimigodetestávelcomoEstrelaPartidajáseriamsuficientes.OsguerreirosdoClãdasSombrascomeçaramaseretirar.EstrelaPartida
desceu da Pedra Grande e foi logo rodeado por seus guerreiros, que oescoltaram na saída das Quatro Árvores, de volta ao seu território. Osdemais guerreiros do Clã das Sombras logo os seguiram, entre eles opequeninogatomalhado inquiridoantesporCoraçãodeLeão.Mas,entreos outros aprendizes do Clã das Sombras, o felino não parecia mais tãopequeno; todos tinham uma aparência diminuta e desnutrida, maisparecendofilhotesdetrêsouquatroluasdoqueaprendizesjácriados.–Oquevocêachadissotudo?–miou,baixinho,PataCinzenta.PataNegrapulouantesquePatadeFogopudesseresponder.–Oquevai
aconteceragora?–miou,comopeloeriçadoemsinaldealarmeeosolhosmaisesbugalhadosdoquenunca.PatadeFogonãorespondeu.Tentavaouviroquediziamosanciãosdo
ClãdoTrovãoreunidosaliperto.–EledeviaestarfalandodePresaAmarela–observouOrelhinha.–ElarealmenteatacouofilhotemaisnovodeFlorDouradanooutrodia
– murmurou, lúgubre, Cauda Sarapintada. Era a mais velha rainha doberçárioeprotegiabravamentetodososfilhotes.–Enósadeixamoslá,comoacampamentopraticamentesemproteção–
grunhiuCaolhaque,pelaprimeiravez,pareceunãoternenhumproblemaparaouvirtudooquesedizia.–Tenteiavisarqueelaeraumperigoparanós–disseRiscadeCarvão.–
EstrelaAzulprecisadarouvidosàrazãoagoraeselivrardePresaAmarelaantesqueelamachuquealgumadenossascrianças.Garra de Tigre foi até o grupo. – Precisamos voltar imediatamente ao
acampamentoeresolverasituaçãocomessavilã!–exclamou.PatadeFogonãoparouparaouvirmais. Sua cabeçagirava. Leal como
eraaoclã,simplesmentenãopodiaacreditarquePresaAmarelafosseumperigo para as crianças. Temendo pelo destino da gata, queimando comperguntas que somente ela poderia responder, o aprendiz se afastou dePataCinzentaedePataNegrasemnadafalar.Subiupelaencostae seembrenhouna floresta.Teria seenganadocom
PresaAmarela?Seaalertassequantoaoperigoqueestavacorrendo,poriaemriscosuaprópriasituaçãonoClãdoTrovão?Mesmoquesemetesseemalgum tipo de problema, precisava saber dela a verdade antes que osoutrosgatosvoltassemaoacampamento.
CAPÍTULO13
PATADEFOGOFOIatéabeiradaravinae,delá,olhouoacampamento.Estavaarquejandoetinhaaspatasescorregadiasporcausadoorvalho.Farejouoar.Estavasozinho.AindahaviatempoparafalarcomPresaAmarelaantesque os outros voltassem da Assembleia. Sem fazer barulho, desceu aencostarochosaeescorregoupelotúneldetojosemsernotado.Oacampamentoestavasilenciosoecalmo,apesardoressonardosgatos
quedormiam.PatadeFogorapidamenterastejoupelabeiradaclareiraatéo ninho de Presa Amarela. A velha curandeira estava enroscada em suacamademusgo.– PresaAmarela –murmurou, num tomde urgência. – PresaAmarela!
Acorde,éimportante!Osolhoscordelaranjaseabriramebrilharamnoluar.–Eunãoestava
dormindo–mioutranquilamenteagata,quepareciacalmaealerta.–Vocêveio direto da Assembleia para falar comigo? Isso quer dizer que vocêouviu.–Elapestanejoueolhouparaooutro lado.–EntãoEstrelaPartidamanteveapromessa.–Quepromessa?–perguntouoaprendiz,confuso.PresaAmarelaparecia
sabermaisdoqueelesobreoqueestavaacontecendo.–Onobre líderdoClãdasSombrasprometeumeexpulsardequalquer
territóriodosclãs–agatarespondeusecamente.–Oqueeledisseameurespeito?–Elenosadvertiuqueosfilhotesestariamemperigoenquantodéssemos
abrigoaumavilãdoClãdasSombras.Nãomencionouseunome,masosgatos do Clã do Trovão adivinharam de quem estava falando. Precisa iremboraantesqueosoutrosvoltem.Vocêestáemperigo!– Quer dizer que acreditaram em Estrela Partida? – Presa Amarela
abaixouasorelhasebalançouacaudacomraiva.–Acreditaram!–PatadeFogomiou,apressado.–RiscadeCarvãodisse
quevocê éperigosa.Osoutros gatos estão commedodoque vocêpossafazer.GarradeTigreestáplanejandovoltare…nãosei…Achomelhorvocêiremboraantesqueelechegue!Ao longe, Pata de Fogo escutava os gritos de gatos zangados. Presa
Amarela, obstinada, tentou ficar de pé. O aprendiz deu-lhe um pequenoempurrão para ajudá-la a se levantar. Sua cabeça rodopiava com tantasperguntas. – O que Estrela Partida quis dizer quando nos advertiu para
vigiar de perto os filhotes? – não pôde deixar de perguntar. – Você fariamesmoalgumacoisaassim?–Euoquê?–Maltratarianossosfilhotes?PresaAmareladilatouasnarinaseolhoufirmeparaPatadeFogo.–Você
achaisso?Eles se encararam sem vacilar. –Não. Não acredito que você tivesse a
coragemdemachucar um filhote.Mas por que Estrela Partida diria umacoisadessas?O barulho dos gatos se aproximava e, com ele, odores de agressão e
raiva.PresaAmarelaolhavaassustadadeumladoparaoutro.–Vá!Válogo!–PatadeFogoaapressou.AsegurançadePresaAmarela
eramaisimportantedoqueacuriosidadedele.Masagatapermaneceuondeestavaeofitou.Derepente,umardecalma
tomoucontadeseusolhos.–PatadeFogo,vocêacreditaquesouinocenteeagradeço por isso. Se você acredita em mim, talvez os outros tambémacreditem.SeiqueEstrelaAzuléjustaevaimeouvir.Nãopossofugirparasempre.Souvelhademais.Vouficaraquieenfrentaradecisãodoseuclã.–Elasuspirouedeixouocorpocairemseusquadrisossudos.–Mas,eGarradeTigre?Eseele…?–Eleécabeça-duraesabeopoderqueexercesobreosoutrosgatosdo
clã,queoadmiram.MasatéelevaiobedecerEstrelaAzul.O farfalharnavegetaçãoalémdas fronteirasdoacampamento indicava
queosfelinosestavamquasenaentrada.– Vá embora, Pata de Fogo – sibilou Presa Amarela,mostrando-lhe os
dentes escurecidos. – Não arrume problemas para você por estar aquicomigoagora.Nãohánadaquepossafazerpormim.Confienasualíderedeixequeeladecidaqualseráomeufim.PatadeFogopercebeuquePresaAmarelaestavadecidida.Tocoucomo
narizapelagemmaltratadadagatae, emsilêncio,penetrounas sombrasparaobservar.Pelos tojos vinham os gatos, Estrela Azul à frente, acompanhada de
CoraçãodeLeão,comPeledeGeadaePeledeSalgueirologoatrás.PeledeGeadaseafastoudatropaecorreuatéoberçário,comapelagemdacaudaeriçadaemalerta.GarradeTigreeRiscadeCarvãoentrarampelaclareira,ombroaombro,carasamarradas.Osoutrosvinhamatrás;osúltimoseram
Pata Negra e Pata Cinzenta. Assim que viu os amigos, Pata de Fogo foiencontrá-los.– Você foi avisar Presa Amarela, não foi? – Pata Cinzenta perguntou
baixinho.–Fui,sim–PatadeFogoadmitiu.–Maselanãovaiembora.Confiaque
EstrelaAzulvaitratá-lacomjustiça.Alguémsentiuaminhafalta?–Sónós–PataNegrarespondeu.Os gatos que tinham ficado no acampamento começaram a acordar.
Deviamterpercebidoocheirodeagressãoeouvidoatensãonasvozesdosfelinosquevoltavam,pois todoschegaramcorrendoàclareira,decaudaslevantadas.–Oqueaconteceu?–perguntouumguerreiromalhadochamadoVento
Veloz.–EstrelaPartidaexigiudireitosdecaçaparaoClãdasSombrasnonosso
território! – explicou Rabo Longo em voz alta para que todos os gatosouvissem.– E nos advertiu sobre uma vilã que vai machucar nossas crianças –
acrescentouPeledeSalgueiro.–DeveserPresaAmarela!Miadosderaivaeansiedadesurgiramnamultidão.– Silêncio! – ordenou Estrela Azul, subindo na Pedra Grande.
Instintivamente,osgatosseposicionaramdiantedalíder.Umgritoagudoealto fez todosviraremacabeçanadireçãodaárvore
caída onde os anciãos dormiam. Garra de Tigre e Risca de Carvãoarrastavam Presa Amarela do ninho com brutalidade. Ela guinchavafuriosamenteenquantoapuxavamatéaclareira,paradeixá-laemfrenteàPedraGrande.PatadeFogosentiuatensãotomarcontadecadamúsculodoseucorpo.Sempensar,agachou,prontoparapularnosperseguidoresdePresaAmarela.–Espere,PatadeFogo–falouPataCinzentanoouvidodoamigo.–Deixe
queEstrelaAzulcuidedisso.–Oqueestáacontecendo?–perguntoualíder,pulandodaPedraGrande
eencarandoosguerreiros.–Nãodeinenhumaordemparaatacaremnossaprisioneira.GarradeTigreeRiscadeCarvãoimediatamentesoltaramPresaAmarela,
queseagachounaterra,reclamandoecuspindo.PeledeGeada,chegandodoberçário,abriucaminhoecolocou-seàfrente
dos gatos. – Chegamos a tempo –miou com voz assustada. – Os filhotesestãoasalvo!–Claroqueestão!–disparouEstrelaAzul.Pele de Geada pareceu surpresa. – Mas… você vai expulsar Presa
Amarela,nãovai?–miou,comosolhosazuisarregalados.– Expulsar Presa Amarela? – disparou Risca de Carvão, mostrando as
garras.–Devemosmatá-laagora!EstrelaAzulfixouosolhosazuispenetrantesnacarazangadadeRiscade
Carvão.–Eoqueelafez?–alíderperguntou,comumacalmaglacial.PatadeFogoprendeuarespiração.–VocêestavanaAssembleia!EstrelaPartidadissequeela…–começou
RiscadeCarvão.– Estrela Partida disse apenas que existe uma vilã em algum lugar da
floresta –miouEstrelaAzul, coma voz tranquila,mas ameaçadora. –Elenão mencionou o nome de Presa Amarela. Os filhotes estão a salvo.Enquantoestivernomeuclã,elanãoserámaltratadadeformaalguma.As palavras foram recebidas com silêncio e Pata de Fogo respirou
aliviado.PresaAmarelaolhouparaEstrelaAzuleestreitouosolhos,comrespeito
–Sevocêquiser,vouemboraagora,EstrelaAzul.–Nãoénecessário.Vocênadafezdeerrado.Estaráasalvoaqui.–Alíder
olhouparaamultidãoquerodeavaPresaAmarelaemiou:–Estánahoradediscutirmos a real ameaça ao nosso clã: Estrela Partida. Já começamos anosprepararparaumataquedoClãdasSombras–EstrelaAzulcomeçou.–Vamos continuar com os preparativos e patrulhar nossas fronteiras commais frequência.OClãdoVentose foi.OClãdoRioconcedeudireitosdecaçaparaosguerreirosdoClãdasSombras.OClãdoTrovãoestásozinhocontraEstrelaPartida.Um murmúrio de desconfiança correu entre todos, e Pata de Fogo,
ansioso,sentiuapelagemeriçar.– Então não vamos concordar com as exigências de Estrela Partida? –
miouGarradeTigre.–Osclãsnuncapartilharamdireitosdecaça–respondeuEstrelaAzul.–
Sempreconseguiramsemanternosprópriosterritórios.Nãohárazãoparaissomudar.–GarradeTigreaprovoucomacabeça.– Mas temos condições de nos defender contra um ataque do Clã das
Sombras?–perguntoua voz trêmuladeOrelhinha. –OClãdoVentonãoconseguiu!OClãdoRionãovaisequertentar!EstrelaAzulfitouosvelhosolhosdoguerreiro.–Precisamostentar.Não
vamosdesistirdonossoterritóriosemluta.Por toda a clareira Pata de Fogo viu os gatos demonstrando
concordância.–IreiatéaPedradaLuaamanhã–anunciouEstrelaAzul.–Osguerreiros
doClãdasEstrelasvãomedaraforçadequeprecisoparalideraroClãdoTrovão nestes tempos sombrios. Vocês todos agora precisam descansar.Todostemosmuitooquefazerquandoamanhecer.AgoraquerofalarcomCoraçãode Leão. – Semmais nada dizer, virou-se e foi emdireção à suatoca.Pata de Fogo notou o olhar de admiração de alguns felinos quando
Estrela Azulmencionou a Pedra da Lua. Os gatos do clã rapidamente sereuniramemgrupos,miandobaixinho,agitados.–OqueéaPedradaLua?–PatadeFogoperguntouaPataCinzenta.–Éumarochaqueficasobaterraequebrilhanoescuro–respondeuo
amigo.Suavozestavaroucadeespanto.–TodososlíderesdeclãprecisampassarumanoitenaPedradaLuaquandosãoescolhidos.Lá,osespíritosdoClãdasEstrelasfalamcomeles.–Falamoquê?PataCinzentafranziuatesta.–Nãosei–admitiu.–Sóseiqueosnovos
líderesprecisamdormirpertodapedrae,enquantodormem,têmsonhosespeciais. Depois disso, recebem o dom das nove vidas e o nome de“estrela”.PatadeFogoobservouPresaAmarelaretornarmancandoparaseuninho
àsombra.PareciaqueotratamentoríspidodeGarradeTigretinhapioradosuas velhas feridas. Ao voltar para a toca dos aprendizes, Pata de Fogodecidiu que, pela manhã, ia pedir a Folha Manchada mais sementes depapoula.– Então, o que aconteceu? –miouPata dePoeira, ansioso, colocando a
cabeçaparaforadatoca.PareciateresquecidosuasdiferençascomonovoaprendiznaansiedadedesabersobreaAssembleia.– É comoRabo Longo disse. Estrela Partida exigiu direitos de caça… –
começouPataCinzenta.Pata deAreia e Pata de Poeira sentaram e ouviram,mas Pata de Fogo
observavaoacampamento.ViaassilhuetasdeEstrelaAzuledeCoraçãode
Leãoque,sentados ladoa lado,na tocada líder,conversavamepareciampreocupados.EntãopercebeuapequenaformadePataNegranaentradadatocados
guerreiros,GarradeTigreaolado.ViuasorelhasdePataNegraabaixaremde susto diante da ferocidade do guerreiro, que se debruçava sobre opequeno gato, duas vezes maior do que ele, com seus olhos e dentesbrilhando ao luar. O que estaria dizendo? Pata de Fogo estava quase seaproximandoparaouvirquandoPataNegra recuou,virou-see, correndo,atravessouaclareira.PatadeFogocumprimentouPataNegraquechegouàtoca,masoamigo
malonotou,entrandosemdizerpalavra.PatadeFogoselevantouparasegui-loquandoviuqueCoraçãodeLeão
seaproximava.– Bem – miou o representante do Clã do Trovão, dirigindo-se, em
passadaságeis,atéosaprendizes.–ParecequePatadeFogo,PataCinzentaePataNegravãopassaraumestágioimportantedotreinamento.–Qual?–perguntou,empolgado,PataCinzenta.–EstrelaAzulquerqueostrêsaacompanhemnajornadaatéaPedrada
Lua!–disseCoraçãodeLeãosemdeixardeperceberodesapontamentonorostodePatadePoeiraedePatadeAreia,poisacrescentou:–Vocêsdoisnão se preocupem; seu dia logo chegará. Por enquanto, o Clã do Trovãoprecisadaforçaedahabilidadedevocêsnoacampamento.Eutambémvouficaraqui.PatadeFogoolhouparaCoraçãodeLeãoedepoisparaalíder.Elaiade
grupo em grupo de guerreiros, passando instruções. Por que o haviaescolhidoparaaviagem?–pensava.–Elaquerquevocêsdescansemagora– continuouCoraçãodeLeão. –
Mas, primeiro, devem ir até Folha Manchada pegar as ervas de que vãoprecisarparaaexpedição.Éumlongocaminho.Vãonecessitardealgumacoisapara lhesdar forçae reduzir seuapetite.Haverápouco tempoparacaçar.PataCinzentaaquiesceu;PatadeFogodesviouoolhardeEstrelaAzule
tambémmeneouacabeça.–OndeestáPataNegra?–perguntouCoraçãodeLeão.–Jáestánoninho–respondeuPatadeFogo.–Ótimo.Deixemquedurma.Vocêspodemapanharaservasparaele–
miouCoraçãodeLeão.–Descansembem.Partirãoaoamanhecer.–Sacudiu
acaudaevoltouparaatocadeEstrelaAzul.– Bem – miou Pata de Areia. – É melhor então irem falar com Folha
Manchada.PatadeFogoprestouatençãoparaversenotavaalgumamargornavoz
dagata,masnãohavia.Nãoerahorapara ciúmes.Todosos gatosdo clãpareciamestarunidoscontraasameaçasdoClãdasSombras.Pata de Fogo e Pata Cinzenta foram depressa até a toca de Folha
Manchada.Otúneldesamambaiasestavaescuro.Nemmesmoaluacheiaconseguiapenetrarnacoberturaespessa.A curandeira parecia esperar por eles quando surgiram na clareira
iluminadapelalua.–Vierambuscaraservasparaaviagem–elamiou.–Sim,obrigado–respondeuPatadeFogo.–EachoquePresaAmarela
precisa de mais sementes de papoula. Parece que as feridas a estãoincomodando.– Vou levar algumas para ela depois que vocês saírem. As ervas da
viagemjáestãoprontas.FolhaManchada indicouumapilhademaçosdeervas cuidadosamente
amarrados.–Hásuficienteparaostrês.Aervaverde-escuravaievitarquesintam fomedurante a viagem.A outra lhes dará força.Devem comer asduasumpoucoantesdesair.Nãosãotãogostosasquantopresafresca,masosabornãovaidurarmuitotempo.– Obrigado, Folha Manchada – miou Pata de Fogo, inclinando-se para
pegar um dos pacotes. Quando ele abaixou a cabeça, FolhaManchada seesticouedelicadamenteesfregouofocinhonabochechadoaprendiz.PatadeFogosentiuseucheirodoceequenteeronronouemagradecimento.PataCinzentapegouosoutrosdoispacoteseosamigosvoltaramatravés
dotúnel.–Boasorte!–desejouacurandeira.–Viajemempaz!
Chegaramàentradadatocadosaprendizeselargaramospacotes.– Espero que essas ervas não tenham um gosto ruim demais! –
murmurouPataCinzenta.–Deveseruma longacaminhadaatéaPedradaLua.Nuncanosderam
ervasantes.Vocêsabeondeé?–perguntouPatadeFogo.–Alémdoterritóriodoclã,emumlugarchamadoPedrasAltas.Ficasob
ochão,emumacavernaquechamamosBocadaTerra.
– Você nunca esteve lá? – perguntou Pata de Fogo, impressionado porPataCinzentasabertantoarespeitodaquelelugarmisterioso.–Nunca,mas todososaprendizesprecisam fazeraviagemantesdese
tornaremguerreiros.EssepensamentofezosolhosdePatadeFogobrilharemdeempolgação,
eelenãopôdeevitarumacertaaltivez.–Nãoelevemuitosuasesperanças.Aindatemosdeacabarotreinamento
–dissePataCinzenta,comoselesseospensamentosdoamigo.Atravésdacobertadefolhas,PatadeFogoolhouparaasestrelasnocéu
escuro. A lua alta tinha passado. – Precisamos dormir umpouco –miou.Maspensouque seriamuito difícil pegarno sono coma aventuradodiaseguinterodandonacabeça.IràAssembleia,fazeraviagematéaPedradaLua–comopareciadistanteagoraavidadegatinhodegente!
CAPÍTULO14
OARFRIOGELAVAosossosdePatadeFogoeaescuridãooenvolvia.Elenadaouviaeocheirodemofodaterraúmidalheinundavaasnarinas.Derepentesurgiuàsua frenteumabrilhantebolade luz.PatadeFogo
abaixou a cabeça e apertou os olhos contra o clarão. A luz brilhava friacomo uma estrela; então se apagou, desaparecendo tão depressa quantosurgira.Denovonaescuridão,eleseviuna floresta.Sentiu-seconfortadopelosodoresfamiliaresdamata.Aoinalaroscheirosúmidosdavegetação,foitomadoporumasensaçãodecalma.Sem aviso, um terrível barulho surgiu das árvores. Pata de Fogo se
arrepiou com a gritaria de gatos apavorados saindo dos arbustos. Logoreconheceu a pelagem do Clã do Trovão quando os bichanos passaramcorrendo por ele. Estava grudado no chão, incapaz de se mexer. Depoisapareceramgrandes felinos, enormes guerreiros de pelo escuro, comumbrilho cruel nos olhos. Vinham estrondosamente na sua direção,esmagando a terra com patas gigantescas e garras de fora. Saindo dassombras,PatadeFogoescutouumgritodesesperado,cheiodedoreraiva.PataCinzenta!Pata de Fogo acordou, aterrorizado. O sonho se desfez; ficou com os
ouvidosretumbandoeopeloarrepiado.Quandoabriuosolhos,viuGarrade Tigre olhando para dentro da toca. Pata de Fogo levantou-se de umsalto,imediatamenteemalerta.–Algumacoisaerrada,PatadeFogo?–perguntouoguerreiro.–Foisóumsonho–oaprendizmurmurou.GarradeTigreolhou-o, intrigado, e entãogrunhiu:–Acordeosoutros.
Vamossairdaquiapouco.Do lado de fora da toca, o novo dia nascia glorioso e o orvalho se
espalhava nas samambaias. Quando o sol estivesse alto, o tempoesquentaria,mas a umidadedamanhã lembrava a Pata de Fogoquenãoestavalongeaépocadasfolhascaídas.Pata de Fogo, Pata Cinzenta e Pata Negra rapidamente engoliram as
ervas preparadas por Folha Manchada. Garra de Tigre e Estrela Azul osobservavam,prontosparapartir.Orestodoacampamentoaindadormia.–Ugh!–reclamouPataCinzenta.–Sabiaqueeramamargas.Porqueno
lugar dessas ervas não podíamos comer um camundongo gordo esuculento?
– Essas ervas vão mantê-los sem fome por mais tempo – respondeuEstrela Azul. – E deixá-los mais fortes. Temos uma longa jornada pelafrente.–Jácomeuassuas?–PatadeFogoperguntou.–Nãopossocomer,poisestanoitevoupartilharsonhoscomoClãdas
EstrelasnaPedradaLua.–respondeuEstrelaAzul.Pata de Fogo sentiu uma comichão nas patas quando ouviu essas
palavras.Estavaloucoparacomeçarajornada.Comaluzdoamanhecereasvozesfamiliares,opavordosonhosefora.Ficaraapenasalembrançadaluzbrilhante;aspalavrasdeEstrelaAzulprovocaramneleumnovoarrepiodeempolgação.Oscincogatospassarampelotúneldetojosesaíramdoacampamento.CoraçãodeLeãoacabavadevoltarcomumapatrulhaedesejou:–Viajem
asalvo!EstrelaAzulocumprimentourespondendo:–Seiquepossoconfiarem
vocêparamanteroacampamentoseguro.CoraçãodeLeãoolhouparaPataCinzentae,abaixandoacabeça,disse:–
Lembre-sedequevocêéquaseumguerreiro.Nãoseesqueçadoque lheensinei.Pata Cinzenta olhou para o mentor com afeição. – Jamais esquecerei,
Coração de Leão – miou, esfregando a cabeça contra o pelo dourado doguerreiro.
VoltaramapercorrerarotanadireçãodasQuatroÁrvores.Eraamaneiramais rápida de entrar no território do Clã do Vento. As Pedras Altasficavamadiante.QuandoPatadeFogocontornoualateraldaveredanadireçãodaPedra
doConselho, ainda sentiaosodoresdaAssembleiadavéspera. Seguiuosoutros gatos pela clareira gramada, subindo a encosta do outro lado, nadireçãodoterritóriodoClãdoVento.Àmedidaquesubiam,oterrenocheiode arbustos ficava mais inclinado e mais cheio de pedras, obrigando osfelinosapulardeumaparaoutranalateralescarpadadopenhasco.PatadeFogoparouquandochegaramaoaltodomorro.À frentedeles,
avistava-seumextensoplanalto.Oventosopravaforteefirme,ondeandoagrama e dobrando as árvores. O solo era pedregoso; rochas nuaspontilhavamapaisagemaquieali.OaraindatraziaosodoresdoClãdoVento,maseramcheirosrançosos.
MuitomaisfrescosealarmanteseramosindíciospungentesdeixadospelosguerreirosdoClãdasSombras.–TodososclãstêmdireitoàpassagemseguraparaaPedradaLua,maso
Clã das Sombras parece não ter mais nenhum respeito pelo código dosguerreiros; portanto, estejam alertas – advertiu Estrela Azul. – Mesmoassim,nãopodemoscaçarforadonossoterritório.Vamosseguirocódigodosguerreiros,aindaqueoClãdasSombrasoignore.Ogrupoatravessouoplanaltoenquantoosolnascia,seguindoastrilhas
entre as urzes. Pata de Fogo crescera acostumado a viver sob umacobertura de árvores. Sem essa sombra, sua pelagem cor de fogo ficavapesadaequente,ascostaspareciamqueimar.Eleagradeciapelabrisaquevinhadafloresta.Derepente,GarradeTigreparou.–Cuidado!–sibilou.–Sintoocheirode
umapatrulhadoClãdasSombras.PatadeFogoeorestodogrupolevantaramofocinhoeconfirmaramque
ocheirodosguerreirosdoClãdasSombrasviajavacomovento.– Eles estão contra o vento. Não vão saber que estamos aqui se
continuarmos a caminhar – miou Estrela Azul. – Mas precisamos nosapressar.Sepassaremànossafrente,vãonosdescobrir.AgoranãoestamoslongedafronteiradoterritóriodoClãdoVento.Apressaramopasso,pulandosobreasrochas,avançandosobreasurzes
decheirodoce.PatadeFogodavaumaspassadasefarejavaoar,olhandopor trás dos ombros, atento à patrulha do Clã das Sombras. Mas, aospoucos, o odor foi ficando mais fraco. Eles devem ter voltado, pensou,aliviado.Finalmente chegaram ao extremo do planalto. A paisagem mudara
radicalmente, de todo irreconhecível depois de ter sidomodificada pelosDuas-Pernas. Trilhas largas de terra cruzavam as campinas verdes edouradas, pontilhadas de pequenos capões, com ninhos dosDuas-Pernasaqui e ali entre os campos. A distância, Pata de Fogo viu um caminhofamiliar, largo e cinza, e o gosto ácido trazido pela brisa travou suagarganta.–ÉoCaminhodoTrovão?–perguntouaPataCinzenta.–É,sim.ElecomeçanoterritóriodoClãdasSombras.Vocêconseguever
asPedrasAltasatrásdele?Pata de Fogo olhou no horizonte distante. Num determinado lugar, a
terraáridanitidamenteseelevavaemponta.
–EntãotemosdeatravessaroCaminhodoTrovão?–Issomesmo!–miouPataCinzenta,comavozforteeconfiante,quase
felizaodepararcomadifíciljornada.–Vamos!–miouEstrelaAzul,avançando.–Podemosestarláaonascer
dalua,semantivermosoritmo.Ogruposeguiualídermontanhaabaixo,afastando-sedasdesertaszonas
decaçadoClãdoVento,nadireçãodoterritóriodosDuas-Pernas,cobertodevegetação.Mantendo-sepertodoslimites,osfelinosmarchavam.Porumaouduas
vezesPatadeFogopercebeu cheirodepresavindodos arbustos,masaservas de FolhaManchada funcionavam bem para cortar o apetite. Aindasentia o sol quente nas costas, mesmo nas sombras das árvores dafronteira.RodearamumninhodosDuas-Pernas.Ficavanumaáreaampladepedra
branca e dura, com ninhos menores à volta. Abaixados, os felinosultrapassaram a cerca que circundava as pedras brancas. Voltaramcorrendo ao depararem, de repente, com uma barreira de latidos erosnados.Cães!OcoraçãodePatadeFogoquaseparou.Ogatoarqueouascostas,
arrepiadodofocinhoàcauda.GarradeTigreolhouatravésdacerca.–Tudobem!Estãoamarrados!–
avisou.Pata de Fogo olhou para os dois cães cujas patas raspavam o chão de
pedra,amenosdedezcaudasdedistância.Nãosepareciamnadacomoscachorros de estimação que viviam no jardins dos Duas-Pernas. Esses oencaravam com olhos selvagens, assassinos. Forçavam as guias e selevantavam nas patas traseiras. Grunhiam e latiam, abrindo a boca pararevelar dentes enormes, até que a voz de um Duas-Pernas invisívelmandou-oscalar.Osgatosforamemfrente.O sol estava começando a baixar quando chegaram ao Caminho do
Trovão. Estrela Azul mandou-os parar e esperar sob uma cerca. Com osolhoseagargantareclamandodosodores,PatadeFogoficouobservandoosgrandesmonstroscorrendodeláparacáàsuafrente.–Vamosumdecadavez–ordenouGarradeTigre.–Primeirovocê,Pata
Negra.–Não,GarradeTigre–EstrelaAzulinterrompeu.–Devoirprimeiro.Não
seesqueçadequeestaéaprimeiratravessiadosaprendizes.Deixequeeu
mostrocomosefaz.Pata de Fogo fixou o olhar na líder enquanto ela se dirigia à beira do
Caminho do Trovão e olhava para cima e para baixo. A gata esperoucalmamente que osmonstros passassem, um depois do outro, correndo,fazendoondularsuapelagem.Quandoobarulhoensurdecedorparouporummomento,elaatravessoudepressaparaooutrolado.–Vá,PataNegra;vocêjáviucomoé–ordenouGarradeTigre.Pata de Fogo viu os olhos do amigo se arregalarem de pavor. Sabia
exatamentequaleraasensação,poispercebiaoprópriocheirodemedo.Opequeno felino preto se dirigiu para a beira da estrada. O lugar estavacalmo,masPataNegrahesitou.–Vá!–ordenouGarradeTigredamargem.PatadeFogoviuosmúsculos
de Pata Negra se retesarem quando ele se preparava para correr. Foiquando o chão começou a tremer debaixo de suas patas. Um monstrosurgiu epassou zunindo.O gatonegro se encolheuporum instante,maslogoselançouemfrenteejuntou-seaEstrelaAzul.Ummonstrovindodaoutra direção espalhou poeira bemonde suas patas tinhampisado haviaapenas uma batida de coração. Com os pelos arrepiados, Pata de Fogorespiroufundoparaseacalmar.Pata Cinzenta teve sorte. Um período de calmaria permitiu que
atravessasseasalvo.ChegouavezdePatadeFogo.–Évocêagora–rosnouGarradeTigre.PatadeFogoolhouparaGarrade
TigreedepoisparaoCaminhodoTrovãoesaiudesobacerca.Esperounabeirada,comoEstrelaAzulhavia feito.Ummonstrovinhanasuadireção.PatadeFogoolhouparaele.Depoisdeste,pensou,eesperouqueacriaturapassasse. De repente seu coração pinoteou ao perceber que o monstrotinhasedesviadodoCaminhodoTrovãoevinhaquicandopelagrama.Bemna direção dele! UmDuas-Pernas gritava por uma abertura na lateral domonstro. Pata de Fogo pulou para trás, garras de fora, empurrado pelatempestadedevento causadapelomonstrodosDuas-Pernas, quepassourugindo, a um bigode de distância. Tremendo, o gato agachou na terra,olhos fixos no monstro, que voltou ao caminho e desapareceu. Com osangue fervendo nas orelhas, Pata de Fogo percebeu que o Caminho doTrovãoestavacalmonovamente;correndocomonuncaantesemsuavida,atravessouparaooutrolado.–Penseiquevocêfossevirarpresafresca!–gritouPataCinzentaquando
PatadeFogodespencouemcimadele,quaseonocauteando.
– Eu também! – arfou Pata de Fogo, tentando parar de tremer. O gatovoltou-separaobservarGarradeTigredispararnadireçãodeles.–EssesDuas-Pernas!–desdenhouaochegaraooutrolado.–Querdescansarantesdecontinuar?–perguntouEstrelaAzulaPatade
Fogo.O gato olhou para cima e viu o sol baixo no céu. – Não, estou bem –
respondeu.Mastinhapuladotãofreneticamenteparafugirdomonstroquesentiaaspatasfracasedoloridas.Os felinos continuaram a caminhada, Estrela Azul à frente. A terra era
maisescuradaquele ladodoCaminhodoTrovão, e agrama,maisásperasob as patas. Àmedida que se aproximavamda base das Pedras Altas, agramadavalugaraumsoloáridoerochoso,comalgunstrechosdeurze.Oterreno subia na direção do céu. No alto da colina, rochas denteadasbrilhavam,cordelaranja,sobosol.Estrela Azul voltou a parar. Escolheu para sentar uma pedra aquecida
pelosol,achatadaelargabastanteparaqueoscincofelinosdescansassem,ladoalado.–Vejam–elamiou,apontandocomonariznadireçãodaencostaescura.
–ABocadaTerra.PatadeFogoolhouparacima.Obrilhodosolpoenteocegoueaencosta
ficouenvolvidaemsombras.Osgatosesperaramemsilêncio.Aospoucos,enquantoosolsepunhanas
PedrasAltas, Pata de Fogo começou a decifrar a entrada da caverna, umburacoquadradoenegroquebocejava,sombrio,sobumarcodepedras.–Vamosesperaratéquealuafiquemaisalta–mioualíder.–Setiverem
fome,podemcaçar;depois,descansemumpouco.PatadeFogoficousatisfeitopelaoportunidadedeacharcomida.Estava
faminto.PataCinzenta,tambémcomfome,pulounadireçãodeumamoitadeurzes,seguindoocheirodensodepresanoar.PatadeFogoePataNegraoseguiram,enquantoGarradeTigretomouadireçãooposta.EstrelaAzulficouondeestava, sentada imóvelesilenciosa,olhandosempiscarparaaBocadaTerra.Os três aprendizes voltaram commuitas presas frescas. ComGarra de
Tigreseagacharamnaencostarochosaefizeramumbanquete.Mas,apesardeacaçadatersidofácil,nenhumgatofaloumuito;oaraindaerapesado,cheiodetensãoeansiedade.Finalmente os felinos descansaram ao lado da líder, até o calor
desaparecerdarochaondeestavamesombras friasenegrasdominaremtudo.SóentãoEstrelaAzulordenou:–Venham.Estánahora.
CAPÍTULO15
ESTRELA AZUL SE levantou e começou a caminhar na direção da Boca daTerra.GarradeTigre,aseulado,acompanhavacadapassada.–Venha,PataNegra–PataCinzentaconvocouoamigo,aindasentadona
rocha, com olhos fixos nas pedras. Atendendo ao chamado, Pata Negralevantou-seecomeçouacaminhardevagar.PatadeFogopercebeuqueelequase não falara durante toda a jornada. Será que estava apenaspreocupadocomoClãdasSombrasouseriaalgumoutroproblema?OsfelinoslevaramapenasalgunsminutosparaalcançaraBocadaTerra.
PatadeFogo,da soleira, olhouparadentro.A escuridãoalémdoarcodepedras era maior do que a da noite mais cheia de nuvens. Estreitou osolhos,tentandoadivinharaondeotúnelialevar,masnadaconseguiuver.Ao ladodele,PataCinzentaePataNegra,nervosos,esticavamacabeça
para dentro e para fora da entrada. Até Garra de Tigre pareciadesconfortável ante o buraco negro. – Como vamos nos guiar nessaescuridão?–perguntou.– Vou achar o caminho – respondeuEstrelaAzul. – Sigammeu cheiro.
Pata Negra e Pata Cinzenta, fiquem aqui fora, de guarda. Pata de Fogo,venhacomigoecomGarradeTigreatéaPedradaLua.PatadeFogotremeudeemoção.Quantahonra!Ogatoolhoudeviéspara
GarradeTigre.Oguerreiro,orgulhoso,estavacomoqueixolevantado,masoaprendiz farejavaneleumcertocheirodemedo,queaumentouquandoEstrelaAzuldeuumpassonadireçãodaescuridão.GarradeTigrebalançouacabeçapoderosaeseguiualíder.Depoisdeum
ligeiroacenoaosoutrosaprendizes,PatadeFogoseguiuatrás.Dentrodacaverna,seusolhosaindanadapodiamperceber.Aescuridão
total e absoluta parecia estranha,mas ele ficou surpreso ao ver que nãotinhamedo.Avontadededescobriroquehaviaaliadianteeramaisforte.Oarfrioeúmidoentravaatravésdopeloespessoechegavaatéosossos,
enrijecendoosmúsculos.Nemasnoitesmaisfriaseramgeladascomooardacaverna.Estechãojamaisconheceuocalordosol,pensouPatadeFogo,tendo sob os pés a rocha lisa como gelo. A cada respiração, um arcongelanteenchiaseuspulmões,deixando-ozonzo.OaprendizseguiuEstrelaAzuleGarradeTigrepelaescuridão,guiando-
seapenaspeloolfatoepelo tato.Passaramporumtúnelquedesciacadavezmais,fazendocurvasparaumlado,depoisparaooutro.Osbigodesde
Pata de Fogo tocavam a lateral da caverna, indicando-lhe onde andar eondevirar.SeunarizlhediziaqueEstrelaAzuleGarradeTigreestavamàfrente,aapenasumacaudadedistância.Continuavam andando.Quanto já percorremos?, perguntava-se Pata de
Fogo,quesentiuumacomichãonosbigodes.Oarnasnarinaspareciamaisfresco que antes. Voltou a farejar, aliviado por sentir o cheiro domundofamiliarnasuperfície:turfa,caçaeurza.Deviahaverumburaconotetodotúnel.–Ondeestamos?–miounaescuridão.– Entramos na caverna da Pedra da Lua – respondeu Estrela Azul
docemente.–Espereaqui.Logovaiserluaalta.PatadeFogosentounapedrafriaeesperou.Ouviaarespiraçãoregular
deEstrelaAzuleoarfarmaisrápidodeGarradeTigre,recendendoamedo.Desúbito,comumclarãomaisofuscantedoqueosolpoente,acaverna
seiluminou.OsolhosdePatadeFogoestavambemarregaladosdepoisdaescuridãodotúnel.Ele logoosfechouaosentira luz,brancae fria.Entãoabriu-osdevagar,emfendasestreitas,eperscrutouàfrente.Viuumarochabrilhante,quecintilavacomosefossefeitadeincontáveis
gotasdeorvalho.APedradaLua! PatadeFogoolhouà volta.Na luz friarefletidadapedra,identificouoslimitessombriosdeumacavernadetetoalto.APedradaLuaerguia-sedomeiodochão;tinhatrêscaudasdealtura.EstrelaAzulolhavaparacima,comopelocompletamentebrancosobo
brilhodaPedradaLua.Até apelagemescuradeGarradeTigrebrilhavacomo prata. Pata de Fogo seguiu o olhar da líder. No alto do teto, umaaberturarevelavaemumestreitotriânguloocéudanoite.O luar lançavapelo vão um raio de luz que chegava à Pedra da Lua, fazendo-a cintilarcomoumaestrela.Aoseulado,PatadeFogofarejouemGarradeTigreumcheirodemedo
crescente, que se tornou dominante. Será que o guerreiro percebia alialguma coisa a mais, algo realmente perigoso? Captou um movimentorápido,sentiuumapelagempassareouviuospassosdefugadeGarradeTigrevoltandocorrendoparaaentrada.–PatadeFogo?–chamouEstrelaAzul,calmaetranquila.– Estou aqui – ele respondeu, nervoso. O que teria amedrontado o
guerreiro?–EstrelaAzul?–voltouachamaroaprendiz,aonãoouvirresposta.Seu
coraçãodisparou,fazendoosangueestrondearnasorelhas.–Estátudobem,jovemguerreiro;nãotenhamedo–murmuroualíder.A
voz calma o tranquilizou um pouco. – Acho que Garra de Tigre ficousurpresocomaforçadaPedradaLua.Nomundodecima,GarradeTigreéumguerreirodestemidoepossante,mas,aquiembaixo,ondeosespíritosdo Clã das Estrelas falam, um gato precisa de outro tipo de força. O quevocêsente,PatadeFogo?O aprendiz farejou o ar comvontade e obrigou-se a relaxar o corpo. –
Apenasminhaprópriacuriosidade–admitiu.–Ótimo–comentouEstrelaAzul.Pata de Fogo voltou a olhar a Pedra da Lua. Os olhos tinham se
acostumadoaobrilhoeelenãoestavamaisofuscado.Naverdade,apedraodeixava calmo. Com ummovimento da cauda, lembrou-se do sonho. Eraaquelaabrilhanteboladeluzquetinhavisto!Encantado,PatadeFogoobservouEstrelaAzuliratéapedraedeitar-se
aoladodela.AlíderesticouacabeçaetocouaPedradaLuacomofocinho.Poruminstante,seusolhosazuiscintilaramcomoreflexodapedra,antesque ela os fechasse. Descansou a cabeça sobre as patas; as pálpebras semexiam,aspatastremiamdevezemquando.Estariadormindo?EntãoPatade Fogo se lembrou das palavras de Pata Cinzenta: “os novos líderesprecisam dormir perto da pedra e, enquanto dormem, têm sonhosespeciais”.Esperou.Alinãofaziatantofrio,mas,mesmoassim,eletremia.Nãotinha
amenor ideia de quanto tempo havia passado,mas, de repente, a rochaparoudebrilhar.Acaverna,maisumavez,mergulhounaescuridão.PatadeFogoolhouparaaaberturanoteto.Aluatinhacaminhado,estavaforadevista.Sórestavampequeníssimasestrelasbrilhandonobreu.PatadeFogosóconseguiadiscernirolevecontornodalíder,deitadaao
ladodaPedradaLua.Queriachamá-la,masnãoousavaquebrarosilêncio.Depoisdemomentosintermináveis,elaochamou.–PatadeFogo?Você
aindaestáaí?–Avozpareciadistanteeagitada.–Estou,EstrelaAzul.–Elepercebeuqueelaseaproximava.–Depressa–elaciciou.PatadeFogosentiuapelagemdalíderroçá-loao
passar.–Precisamosvoltaraoacampamento.Pata de Fogo correu atrás de Estrela Azul, impressionado com a
velocidade com que ela se precipitava nomeio da escuridão. Seguia seucheiro às cegas, subindo cada vez mais através do túnel, até que ela oconduziuasalvoparaomundoexterno.
Garra de Tigre os esperava na entrada, ao lado de Pata Cinzenta e PataNegra.Oguerreirotinhaaexpressãofriaeopeloligeiramenteeriçado;masestavasentado,imóvelesolene.–GarradeTigre–cumprimentouEstrelaAzul,semmencionarafugado
guerreirodasprofundezas.Elerelaxouumpoucoeperguntou:–Oquevocêficousabendo?–Devemosretornarimediatamenteaoacampamento–mioubrevemente
EstrelaAzul.PatadeFogopercebeuumolhardedesesperonosolhosdalíder.Agora
voltava-lhe a terrível lembrança do sonho: gatos que fugiam, guerreirosgrandes e escuros, o pranto terrível do infortúnio. O aprendiz tentouignoraromedogélidoquetomavacontadeseusmúsculoseseguiuEstrelaAzulquandoelaeosoutrosfelinosdesceramaencostasombria,afastando-sedaBocadaTerra.Seráqueavisãodopesadeloestavaprestesasetornarrealidade?
CAPÍTULO16
VOLTARAMPELOCAMINHOporondetinhamvindo.Aluadesapareceraportrásde uma barreira de nuvens. Estava escuro,mas aomenos o Caminho doTrovãoseaquietara.Oúnicomonstroqueouvirampareciaestardistante.Osfelinosatravessaramjuntos,dirigindo-seàfronteiradooutrolado.PatadeFogo sentiaosmúsculos enrijecendode cansaçoàmedidaque
apressavam o passo. Estrela Azulmantinha um ritmo veloz, com o narizparaa frenteea caudaerguida.GarradeTigrecorriaa seu lado.PatadeFogo vinha um pouco atrás, com Pata Cinzenta; mas Pata Negra nãoconseguiaacompanharogrupo.–Mantenhaopasso,PataNegra!–resmungouPataCinzentaporsobreo
ombro.Pata Negra hesitou e então avançou, até alcançar os outros dois
aprendizes.–Vocêestábem?–perguntouPatadeFogo.– Estou, sim – resfolegou Pata Negra, sem olhar diretamente para o
amigo.–Sóumpoucocansado.Desceramumfossoprofundoesubiramdooutrolado.– O que Garra de Tigre disse quando saiu da caverna? – Pata de Fogo
miou,tentandonãoparecercuriosodemais.–Elequeriatercertezadequeaindaestávamosguardandoaentrada–
respondeuPataCinzenta.–Porquê?Pata de Fogo hesitou, mas perguntou: – Você percebeu algum cheiro
esquisitonele?– Só o cheiro úmido da velha caverna – respondeu Pata Cinzenta,
parecendosurpreso.–Acheiqueeleestavaumpouconervoso–arriscouPataNegra.–Nãoeraoúnico!–PataCinzentamiou,olhandoparaogatonegro.–Oquevocêquerdizercomisso?–perguntouPataNegra.–Équeultimamenteopelodoseupescoçoseeriçasemprequevocêovê
– murmurou Pata Cinzenta. – Você quase desmaiou ao vê-lo sair dacaverna.–Équeelemesurpreendeu, foi só isso–protestouPataNegra.–Você
temdeadmitirquefoimeioapavorantelánaBocadaTerra.
–Éverdade–concordouoamigo.Os gatos deslizaram sob uma cerca até uma plantação de milho, que
brilhavaprateadaaoluar,eseguiramofossoqueacircundava.–Comoéládentro,PatadeFogo?–perguntouPataCinzenta.–Vocêviu
aPedradaLua?–Vi,sim.Foiimpressionante!–PatadeFogosentiuopeloformigarcom
alembrança.PataCinzentalançou-lheumolharadmirado.–Entãoéverdade!Arocha
realmentebrilhasobaterra.Pata de Fogo não respondeu. Fechou os olhos por um instante,
saboreando a imagem da Pedra da Lua, que lhe ofuscava a mente. Foiquandoimagensdosonholhevieramàcabeçaeseusolhossearregalaram.EstrelaAzultinharazão:precisavamvoltaromaisdepressapossível.Mais à frente, Garra de Tigre e Estrela Azul tinhampulado uma cerca,
saindodaplantaçãodemilho.Osaprendizesosseguiram,espremendo-sesobacerca,natrilhadeterra.EraocaminhoquepassavapeloninhodosDuas-Pernas epelos cães.PatadeFogoviuEstrelaAzul eGarradeTigreandando mais à frente, incansáveis, suas silhuetas recortadas contra ohorizontetingidodevermelho.Osollogosurgiria.– Vejam! – gritou ele para Pata Cinzenta e Pata Negra. Um gato
desconhecidotinhapuladonafrentedosdoisguerreiros.– É um isolado! – ciciou Pata Cinzenta. Os três aprendizes correram
naqueladireção.O estranho eramalhado de branco e preto retinto, mais baixo que os
guerreiros,masbemmusculoso.–EsteéCevada!–explicouEstrelaAzul,quandoeleschegaram.–Elevive
pertodoninhodosDuas-Pernas.–Olá!–miouogato.–Fazalgumasluasquenãovejonenhumgatodoseu
clã.Comovaivocê,EstrelaAzul?– Vou bem, obrigada. E você, Cevada? Como está a caça desde que
passamosporaquiaúltimavez?–Não tãomal– respondeuogato, comumbrilhoamigávelnoolhar. –
UmacoisaboaarespeitodosDuas-Pernaséquevocêsemprevaiacharummonte de ratos perto deles. – O gato preto e branco continuou: – Vocêpareceestarcommaispressaquedecostume.Estátudobem?GarradeTigreolhouparaCevada.Umgrunhidosooufundonoseupeito.
PatadeFogoviuqueoguerreiro ficoudesconfiadocomacuriosidadedoisolado.–Nãogostodeficarmuitotempolongedomeuclã–respondeuEstrela
Azul,comdelicadeza.–Comosempre,EstrelaAzul,vocêestáligadaaoclãcomoumarainhaa
seusfilhotes–observouCevada,tambémamigável.–Oquequer,Cevada?–perguntouGarradeTigre.Cevadalançou-lheumolharreprovador.–Sóqueriaavisarqueagorahá
dois cães aqui. É melhor voltarem pela plantação de milho, em vez deatravessaremoquintal.– Já sabemos sobre os cães. Nós os vimos mais cedo… – começou,
impaciente,GarradeTigre.– Agradecemos pelo aviso – interrompeu Estrela Azul. – Obrigada,
Cevada.Atéapróximavez.Cevadabalançouacauda.–Tenhamumaviagemsegura–miou,voltando
paraatrilha.–Venham–ordenoualíder,desviando-sedatrilhaepassandonomeio
dagramaalta,entreocaminhoeacercaquedavanaplantaçãodemilho.Ostrêsaprendizesaseguiram,masGarradeTigrehesitou.–Vocêconfianapalavradeumisolado?–perguntou.EstrelaAzulvirou-seeoencarou.–Vocêprefereenfrentaroscães?–Estavamamarradosquandopassamosporelesmaiscedo–observou
GarradeTigre.– Podem estar soltos agora. Vamos por aqui – miou Estrela Azul. E,
passandoporbaixodacerca,saiunocampo.PatadeFogoseesgueiroulogoatrás,seguidoporPataCinzenta,PataNegrae,finalmente,GarradeTigre.Aessaalturaosoljátinhaaparecidonohorizonte.Asárvoresbrilhavam
comoorvalho,prometendoumoutrodiaquente.Osgatoscaminhavamnabeiradofosso.PatadeFogoolhavaparabaixo
navalaprofunda,íngremeecheiadeurtigas.Sentiaocheirodecaça.Haviaalgumacoisa familiarnoodoramargo,maseraumcheiroquenãosentiahaviamuitotempo.UmgritoensurdecedorfezPatadeFogosevirar.PataNegrasedebatiae
arranhavaaterra.Algumacoisatinhaseguradosuapernaeopuxavaparaofosso.–Ratos!–disparouGarradeTigre.–Cevadanosenviouparaumacilada!
Antes que pudessem reagir, os cinco felinos foram cercados. Enormesratosmarronssurgiramdoburaco,comguinchosestridentes.PatadeFogoviaseusdentesafiadosbrilhandonaluzdoamanhecer.Derepente,umdelespulounoombrodePatadeFogo.Umadoragudao
atravessouquandooratoafundou-lheosdentesnacarne.Outroagarrou-lheapernaentremandíbulaspoderosas.PatadeFogosejogounochão,contorcendo-seloucamente,tentandose
soltar. Sabia que os ratos não eram fortes como ele, mas eram muitos.Gritos, cicios e cusparadas diziam que os outros também tinham sidoatacados.PatadeFogoreagiuferozmentecomasgarras,dilacerandoumratoque
seguravasuaperna.Maslogooutroagarrou-lheacauda.Rápidocomoumraio, acelerado por medo e raiva, Pata de Fogo lutou, atacando osagressores.Virandoacabeçapara trás, afundouosdentesnoratoqueseatiraranosseusombros.Sentiunabocaosossosdopescoçodoanimalseestraçalharemeocorpoamolecer,antesdecairnatrilhadeterra.PatadeFogoarfoudedorquandomaisumratopulounassuascostas,
cravando-lheosdentes.Pelocantodoolho,percebeuumlampejodepelobranco passar correndo. Por ummomento ficou confuso; então sentiu oratoserafastadodeseupelo.Virou-seeviuCevadaatirandooroedornofosso.Semhesitar, Cevada olhou à volta e correu na direção de EstrelaAzul,
que se contorcia no chão, coberta de ratos. Num instante, Cevadaabocanhouaespinhadeumdeles, conseguindodesgrudá-loda líder comfacilidade. Cuspiu o roedor no chão e logo agarrou outro com a boca,enquantoagataescapuliaporbaixodele.PatadeFogocorreunadireçãodePataCinzenta,atacadodosdoislados
pordoisratosmenores.Investiusobreoqueestavamaisperto,matando-ocomumamordida.PataCinzentaconseguiusevirareimobilizarooutronochãocomsuasgarras.Travouoratocomosdenteseojogounofossocomtodaaforça.Elenãovoltou.–Estãofugindo!–GarradeTigregritou.Defato,osoutrosratosserefugiaramnasegurançadavala.PatadeFogo
ouviuobarulhodepequenaspatasdescendopeloburaco,desaparecendonas urtigas. As mordidas no ombro e na perna traseira doíam bastante.Com cuidado, o aprendiz lambeu a pelagem, molhada e manchada desangue,cujocheirointensosemisturavacomofedordosratos.
Pata de Fogo procurou Pata Negra. Pata Cinzenta estava na beira dasurtigasencorajandoPataNegraquesaíadavala,cheiodelamaedolorido,com um rato pequeno ainda pendurado na cauda. Pata de Fogo pulou eacaboucomoroedorrapidamente,enquantoPataCinzentaajudavaapuxaroamigodofundodofosso.PatadeFogocomeçouaprocurarEstrelaAzul.PrimeiroviuCevada,no
altodofosso,olhandoparabaixo,àprocuradeoutrosratos.Alíderestavacaídaaliperto.Alarmado,o aprendiz correuparao ladodelaeviuqueapelagemcinzaeespessaatrásdoseupescoçoestavaempapadadesangue.–EstrelaAzul?–chamou.Agatanãorespondeu.UmgritofuriosofezPatadeFogoolharparacima.GarradeTigrepulousobreCevada, imobilizando-onochão.–Vocênos
mandouparaumacilada–rosnou.–Nãosabiaqueosratosestavamaqui!–disparouCevada,arrastandoas
patasnapoeira,lutandoparaselevantar.–Porquenosmandouporessecaminho?–cobrouGarradeTigre.–Oscães!–Estavamamarradosquandopassamosporelesmaiscedo!–OsDuas-Pernas os soltam à noite para proteger os ninhos. – Cevada
arfava,tentandorespirarsobasenormespatasdoguerreiro.–GarradeTigre!EstrelaAzulestáferida!–PatadeFogoavisou.Imediatamente o guerreiro soltou Cevada, que se levantou e sacudiu a
poeiradapelagem.GarradeTigrefoiparaoladodeEstrelaAzulecheirousuasferidas.–Háalgoquepossamosfazer?–perguntouPatadeFogo.–ElaestánasmãosdoClãdasEstrelasagora–miou,solene,oguerreiro,
dandoumpassoparatrás.PatadeFogo,emchoque,arregalouosolhos.GarradeTigrequeriadizer
quealíderestavamorta?Seupeloseeriçouaoolharparaagata.TeriasidoesseoavisodosespíritosnaPedradaLua?PataCinzentaePataNegra,aterrorizados,sejuntaramaelesaoladode
EstrelaAzul.Cevadaficouatrás,esticandoopescoçoparaveroqueestavaacontecendo.Os olhos de Estrela Azul estavam abertos, mas vidrados, e seu corpo
cinzajaziaimóvel.Pareciaquenemrespirava.
–Estámorta?–murmurouPataNegra.–Nãosei.Precisamosesperarparaver–respondeuGarradeTigre.Oscincofelinosficaramaguardando,enquantoosolcomeçavaasubirno
céu. Pata de Fogo, em silêncio, pediu aoClã dasEstrelas paraproteger alíder,mandá-ladevoltaparaeles.Foi quando Estrela Azul semexeu. A ponta da cauda estremeceu e ela
ergueuacabeça.–EstrelaAzul?–miouPatadeFogo,comavoztremendo.–Estátudobem–disseagata,comavozrouca.–Aindaestouaqui.Perdi
umavida,masnãofoianona.Pata de Fogo transbordou de alegria. Olhou para Garra de Tigre,
esperando ver seu rosto cheio de alívio, mas o guerreiro permaneciainexpressivo.–Certo–miouGarradeTigre,emtomdecomando.–PataNegra,arrume
teias de aranha para colocar nas feridas de Estrela Azul. Pata Cinzenta,apanhecravo-da-índiaoucavalinha.–Osdoisaprendizesforamcorrendo.–Cevada,achomelhorvocêiremboraagora.PatadeFogoolhouparaoisolado,quetinhalutadotãobravamentepara
ajudá-los.Queriaagradecer-lhe,mas,anteoolharferozdeGarradeTigre,não ousou. Em vez de falar, Pata de Fogo apenas dirigiu um aceno decabeça a Cevada, que pareceu compreender, pois acenou de volta e saiusemdizermaisnada.Estrela Azul continuava deitada no chão. – Estão todos bem? –
perguntou,comavozfraca.GarradeTigrefezquesimcomacabeça.PataNegravoltou,comumaespessateiadearanhaembrulhadanapata
esquerda.–Aquiestá–miou.–PossocolocarasteiasdearanhanasferidasdeEstrelaAzul?–Patade
FogoperguntouaGarradeTigre.–PresaAmarelamemostroucomosefaz.– Está bem– concordou o guerreiro, que se afastou e voltou a olhar a
vala, esticando as orelhas para tentar descobrir se ainda havia ratos porperto.Pata de Fogo tirou umpunhado de teia de aranha da pata do amigo e
começouapressioná-lacomforçanosmachucadosdeEstrelaAzul.Agatatensionouocorpocomotoque.–SenãofosseporGarradeTigre,
essesratosteriammecomidoviva–reclamou,avozcarregadadedor.
–NãofoiGarradeTigrequeasalvou.FoiCevada–murmurouoaprendizaoretirarmaisteiadearanhadePataNegra.–Cevada?–espantou-seEstrelaAzul.–Eleestáaqui?– Garra de Tigre omandou embora – respondeu Pata de Fogo em voz
baixa.–EleachaqueCevadanosenviouparaumacilada.–Eoquevocêacha?–perguntoualíder,comavozrouca.PatadeFogonão levantouo rosto, concentradoemcolocarna feridao
últimopedaçodeteiadearanha.–Cevadaéumisolado.Oqueeleganharianosmandandoparaumaciladaapenasparadepoisnossalvar?–elemiou,finalmente.EstrelaAzulabaixouacabeçaefechouosolhosnovamente.Pata Cinzenta voltou trazendo um pouco de cavalinha. Pata de Fogo
mascou as folhas e cuspiu o sumonas feridas de Estrela Azul. Sabia queaquilo ia debelar a infecção, mas ainda preferia que Folha Manchadaestivesseali,ajudandoacurarcomseuconhecimentoesuasegurança.– Deveríamos descansar aqui enquanto Estrela Azul se recupera –
ponderouGarradeTigreseaproximando.–Não–disseagata.–Devemosvoltaraoacampamento.–Contraindoos
olhosporcausadador,levantou-secomesforço.–Vamoscontinuar.A líderdoClãdoTrovão foimancandoaté abeirado campo.Garrade
Tigrecaminhavaaseulado,orostofechadoempensamentosinsondáveis.Osaprendizestrocaramolharesansiososeseguiramosdois.– Já fazmuito tempoque a vi perder uma vida, EstrelaAzul – Pata de
FogoentreouviuGarradeTigremurmurar.–Quantasvocêjáperdeu?Pata de Fogo não pôde deixar de ficar surpreso com a curiosidade
explícitadoguerreiro.–Estafoiaquinta–respondeu,serena,alíder.Pata de Fogo retesou as orelhas, mas Garra de Tigre não replicou.
Continuouaandar,perdidoempensamentos.
CAPÍTULO17
OSOLALTOCHEGOUefoiemboraenquantoosfelinospassavampelasantigaszonas de caça do Clã dos Ventos. O silêncio pesadomostrava que aindaestavam deprimidos depois da luta com os ratos. Pata de Fogo tinhaarranhõesemordidasportodoocorpo.ViuquePataCinzentamancava,àsvezes pulando em três patas para poupar a pata traseira ferida.Mas suamaiorpreocupaçãoeraEstrelaAzul,queandavacadavezmaislentamente,masserecusavaapararedescansar.Orostotriste,crispadodedor,diziaaPatadeFogoqueelanãoviaahoradechegaraoacampamentodoClãdoTrovão.– Não se preocupe com os guerreiros do Clã das Sombras – ela miou
entredentesquandoGarradeTigreparouparafarejaroar.–Vocênãovaiencontrarnenhumdelesaquihoje.Comoelapodiatertantacerteza?–perguntou-sePatadeFogo.Escolheram com cuidado o caminhopara descer a colina, uma encosta
pedregosaque levavaàsQuatroÁrvores e se juntavana trilha conhecidaqueconduziaaolar.ErafimdetardeePatadeFogocomeçouatersaudadedeseuninhoedeumaboaporçãodepresafresca.–AindasintoofedordoClãdasSombras–murmurouPataCinzentapara
PatadeFogoquandocaminhavampelaszonasdecaçadoClãdoTrovão.–TalvezabrisaotenhatrazidodoterritóriodoClãdoVento–sugeriu
PatadeFogo.Eletambémsentiaocheiroeseusbigodestremiam.Derepente,PataNegraparouemioubaixinho:–Estãoouvindoisso?Pata de Fogo retesou as orelhas. Primeiro ouviu apenas os sons
familiaresdafloresta–folhasfarfalhando,umpomboquearrulhava.Então,sentiuosangueesfriar.Adistânciaouviugritosdeumabatalhaviolentaeuivosagudosdefilhotesapavorados.–Depressa!–clamouEstrelaAzul.–ÉcomooClãdasEstrelasmeavisou.
Nossoacampamentoestásendoatacado!–Elatentoupularparaa frente,mascaiu.Levantou-seeprosseguiu,mancando.GarradeTigreePatadeFogoseapressaram,ladoalado.PataCinzentae
Pata Negra os seguiram, com o pelo da cauda eriçado, duas vezes maisespesso que o normal. Pata de Fogo esqueceu a própria dor no caminhoparaoacampamento.Suaúnicapreocupaçãoeraprotegeroclã.Os sons da batalha ficavam cada vez mais altos à medida que ele se
aproximavadaentradadoacampamento;o fedordoClãdasSombras lheenchia as narinas. Estava bem atrás de Garra de Tigre quando os felinosatravessaramotúnelechegaramàclareira.Ali depararam com o frenesi do combate, os gatos do Clã do Trovão
lutandofuriosamentecomosguerreirosdoClãdasSombras.Nãoseviamos filhotes; Pata de Fogo esperava que se encontrassem em segurança,escondidos no berçário. Imaginou que os anciãosmais fracos estivessemprotegidosdentrodotroncoocodaárvorecaída.Todos os cantos do acampamento pareciam em atividade, cheios de
guerreiros.PatadeFogoviuPeledeGeadaeFlorDouradamordendoumenormegatocinzaedando-lhepatadas.MesmoajovemrainhaCaraRajadalutava, embora estivesse prestes a dar à luz. Risca de Carvão estavaatracado com um guerreiro negro numa luta feroz. Três dos anciãos,Orelhinha, Retalho e Caolha, bravamente deitavam as unhas numa gataatartarugada,duasvezesmaisrápidaeferozdoqueeles.Osfelinosqueretornavamselançaramnabatalha.PatadeFogoocupou-
sedeumarainhaguerreiramalhada,muitomaiordoqueele,eenfiou-lhecomvontadeosdentesnaperna.Elagritoudedoreoatacoucomasgarrasafiadaseosdentesàmostra,prontaparaatingirseupescoço.Oaprendizsecontorceu e abaixou para evitar a mordida. A gata não conseguiuacompanharavelocidadedeleque,então,apegouportrásejogounochão.Com as potentes patas traseiras, ele cravou as garras nas costas daoponente,que,urrandodedor, conseguiusedesvencilhareprecipitou-seàscarreirasparaadensavegetaçãoquerodeavaoacampamento.PatadeFogoolhouàvoltaparaverseEstrelaAzultinhachegado.Apesar
dosferimentos,elalutavacomoutrogatomalhado.Oaprendiznuncatinhavistoa líderembatalha,mas,mesmo ferida,eraumaoponentepoderosa.Suavítimatentavaescapar,masEstrelaAzulaapertavacomtantafirmezae enfiava-lhe as garras tão ferozmente, que Pata de Fogo entendeu queaquelascicatrizesiriampermanecerpormuitasluas.FoiquandoeleviuumgatobrancodoClãdasSombras,depataspretas
retintas,arrastandodoberçárioumanciãodoClãdoTrovão.PatadeFogolembrou-se daquelas patas incrivelmente negras que vira na Assembleia.Pé Preto! O representante do Clã das Sombras rapidamente liquidou oancião,encarregadodecuidardosfilhotes,einvadiuoninhodasamoreirascomumadasenormespatas.Osfilhotesgritavamemiavam,indefesos,poissuas mães lutavam na clareira contra os outros guerreiros do Clã dasSombras.
Pata de Fogo se preparava para pular na direção do berçário quandouma garra rasgou dolorosamente seu flanco; virou-se e viu uma gataatartarugadamagricela pular em cima dele. Quando o aprendiz bateu nochão,tentouavisaraosoutrosgatosdoclãqueosfilhotescorriamperigo.Lutandocomtodasasforçasparaescapardaagressora,virouacabeçaparaolharoninhodeamoreiras.Pé Preto já tinha tirado dois filhotes dos berços e se preparava para
pegarumterceiro.PatadeFogonãopôdevermaisnada,poisagataatartarugadaarranhou-
lheabarrigacomasgarrasafiadas.Elecambaleounaspataseseagachou,como se tivesse sido derrotado. O truque já tinha funcionado antes efuncionouagoratambém.Quandoagataoagarrou,triunfante,ecomeçoualheenfiarosdentesnopescoço,PatadeFogodeuumpuloparacima,comtodo o vigor, e conseguiu jogar longe a oponente. Com um giro rápido,saltou para cima da guerreira, deixando-a sem ar. Dessa vez, não tevecompaixãoeenfiouosdentesnoombrodagata,quesaiugemendorumoàvegetação.Pata de Fogo saltou, correu para o berçário e enfiou a cabeça para
dentro. Pé Preto não estava à vista. Dentro do ninho, agachada sobre osfilhotes apavorados, estava Presa Amarela, com a pelagem cinza todasalpicadadesangueeumdosolhosterrivelmenteinchado.Elaolhouparaoaprendizcomumcicioferoz;aoreconhecê-lo,gritou:–Elesestãobem.Vouprotegê-los.Ao vê-la acalmando os filhotes indefesos, Pata de Fogo lembrou-se da
terrível advertência de Estrela Partida a respeito damaldade do Clã dasSombras Ele não tinha tempo para pensar sobre aquilo agora. Teria deconfiaremPresaAmarela.Assentiurapidamentecomacabeçaesaiudasamoreiras.AgorahaviaapenaspoucosfelinosdoClãdasSombrasnoacampamento.
PataNegraePataCinzentalutavamladoalado,dilacerandoumgatonegroqueacaboufugindopelosarbustos.NevascaeRiscadeCarvãoexpulsaramos dois últimos invasores, deixando neles alguns arranhões e mordidasextras.PatadeFogosentou,exausto,eolhouoacampamentodevastado.Havia
sanguenaclareiraechumaçosdepelagemnochão.Omurodevegetaçãodoentornotinhaburacosporondeosinvasoreshaviamentrado.Umaum,os felinosdoClãdoTrovãosereuniramsobaPedraGrande.
Pata Cinzenta sentou perto de Pata de Fogo, com os flancos arfando e osangue pingando de uma orelha rasgada. Pata Negra deixou-se cair ecomeçoualamberumaferidanacauda.Asrainhascorreramatéoberçáriopara se certificar de que os filhotes estavam bem. Pata de Fogo ficouaguardando ansioso que elas voltassem, pois nada conseguia ver com osoutros felinosbloqueando-lhe a visão.Acalmou-se aoouvir gritos e rom-ronsdealegriavindosdoninhodeamoreiras.Pele de Geada voltou abrindo caminho entre a multidão, seguida por
PresaAmarela. A rainha branca deu umpasso à frente e disse: –Nossosfilhotesestão todosa salvo,graçasaPresaAmarela.UmguerreirodoClãdasSombrasmatouabravaCaudaCor-de-Rosaeestavatentandotirarosfilhotesdoninho,masPresaAmarelaoexpulsou.–NãoeraumguerreiroqualquerdoClãdasSombras–destacouPatade
Fogo,querendoqueoclãsoubessequantotodosdeviamaPresaAmarela.–Euovi.EraPéPreto.–O representantedoClãdas Sombras! –miouCaraRajada, que lutara
tãobravamenteparaprotegerosbebêsqueestavacarregandonabarriga.OgruposeagitouquandoEstrelaAzul,mancando,deuumpassoàfrente,
nadireçãodosaprendizes.AexpressãosériadalíderbastouparaPatadeFogoperceberquealgumacoisaestavaerrada.–FolhaManchadaestácomCoraçãodeLeão–dissebaixinho.–Ele foi
ferido na batalha, e parece grave. – A líder virou a cabeça na direção dasombradooutro ladodaPedraGrande, onde jazia o guerreiro, um fardoinertedepelodouradocheiodeterra.Um grito abafado surgiu na garganta de Pata Cinzenta, que correu na
direçãodeCoraçãodeLeão.FolhaManchada,atéentãodebruçadasobreorepresentante do clã, afastou-se para que o jovem aprendiz lambesse omentorpelaúltimavez.QuandoogritodedordePataCinzentaecoounaclareira,opelodePatadeFogoformigou,tornando-sefrioosanguequelhecorrianasveias.Eraogritoqueouviraemsonho!Porummomento, suacabeçagirou;depois,elesesacudiu.Precisava ficarcalmo,paraobemdePataCinzenta.Pata de Fogo olhou para Estrela Azul, que acenou para ele
afirmativamente,ecaminhouatéoamigo,pertodaPedraGrande,parandoporuminstanteaoladodeFolhaManchada.Acurandeirapareciaexaustae tinhaosolhos cheiosde tristeza. –Não
posso ajudar Coração de Leão agora – disse ela em voz baixa. – Ele está
prestesasejuntaraoClãdasEstrelas.–Elaapertouocorpocontraoflancodojovem,quesesentiuconfortadopelotoquedapelagemquente.Osoutrosfelinosolhavamemsilêncioenquantoosolsepunhadevagar
atrásdas árvores.Enfim,PataCinzenta sentoue anunciou: –Ele se foi! –Dizendoisso,deitou-seaoladodocorpodeCoraçãodeLeãoedescansouacabeçanaspatasdianteiras.Orestodoclãseaproximouemsilêncioparaprestarasúltimashomenagensaoamadorepresentante.PatadeFogosejuntouaogrupo.LambeuopescoçodeCoraçãodeLeãoe
murmurou:–Obrigadoporsuasabedoria.Vocêmeensinoumuitacoisa.–Então,sentouaoladodePataCinzentaecomeçoualambercomcarinhoasorelhasdoamigo.Estrela Azul esperou até que os outros felinos saíssem antes de se
aproximar.PataCinzentanãoparecianemsequernotarapresençadalíder.PatadeFogodesviouoolharquandoagatadisseasúltimaspalavrasparaovelhoamigo.–Ah!Oquevoufazersemvocê,CoraçãodeLeão?–sussurrou,antesde
voltarmancando para sua toca. Agachou-se do lado de fora, como olhartriste perdido na distância. Nem tentou lamber e limpar a pelagemmachucadaemanchadade sangue.Pelaprimeiravez,PatadeFogoviu alíderparecercompletamentederrotada.Umarrepiopercorreuoseucorpo.FicoualisentadocomPataCinzentaeCoraçãodeLeãoatéaluaalta.Pata
Negra seachegoue, juntos, fizeramcompanhiaaoamigoemsua tristeza.GarradeTigreaproximou-seelambeuCoraçãodeLeãorapidamente.PatadeFogoesperouparaouviraspalavrasqueelediriaaocompanheiro,maso guerreiro permaneceu em silêncio enquanto lambia a pelagemmachucada.PatadeFogoficouconfusoaoperceberqueosolhosdofelinopareciamfixosemPataNegra,enãonorepresentantemorto.Folha Manchada percorreu o acampamento com passadas suaves,
cuidandodosferimentosedosnervosabalados.PatadeFogoviuqueelaseaproximou duas vezes de Estrela Azul, mas a líder mandou que ela seocupassedosoutrosfelinos.Apenasquandoacurandeirahaviacuidadodetodososoutrosgatos,EstrelaAzulpermitiuquetratassedesuasmordidasearranhões.Quando terminou, Folha Manchada voltou à sua toca. Estrela Azul se
levantou e caminhou lentamente até a Pedra Grande. Os gatos do clãpareciamestaresperandoporela.Assimquealídersecolocounolugardesempre,elescomeçaramase juntarnaclareira, silenciosose sombrios,o
quenãoerahabitual.PatadeFogoePataNegraseesticaramesejuntaramaogrupo,deixando
PataCinzentaparatrás,comocorpodeCoraçãodeLeão.Oaprendizcinzaaindaestavadeitadocomofocinhoapoiadonapelagemcadavezmaisfriadomentor.PatadeFogoimaginouque,dessavez,EstrelaAzuldesculpariaaausênciadePataCinzentanareunião.–Jáéquaseluaalta–miouEstrelaAzulquandoPatadeFogosecolocou
pertodePataNegra.–E,maisumavez,émeudever–muito,muitíssimomais cedodoque eupretendia – indicar onovo representantedoClãdoTrovão–dissealíder,comavozcansadaeabaladapelatristeza.PatadeFogofitouguerreiroporguerreiro.Estavamtodosolhandopara
Garra de Tigre, cheios de antecipação. Até Nevasca tinha se virado paraobservarogatomalhado.Pelaexpressãoousadaquetrazianorostoepelaexpectativa que vibrava nos seus bigodes, Garra de Tigre, pelo visto,concordavacomeles.EstrelaAzulrespiroufundoecontinuou:–Digoessaspalavrasdiantedo
corpodeCoraçãodeLeão,paraqueseuespíritopossaouvi-laseaprovarminhaescolha.–Elahesitou.–NãomeesquecidecomoumgatovingouamortedeRaboVermelhoenostrouxeseucorpodevolta.OClãdoTrovãoprecisaagora,maisdoquenunca,dessa lealdadedestemida.–A líder fezumanova pausa e anunciou em voz alta e clara: – Garra de Tigre será onovorepresentantedoClãdoTrovão.Ouviu-se um grito de aprovação, destacando-se as vozes de Risca de
CarvãoedeRaboLongo.Sentadocalmamente,comosolhos fechadoseacauda enrolada à sua volta, Nevasca balançava a cabeça lentamente, emaprovação.Com os olhos semiabertos, Garra de Tigre levantou o queixo com
orgulho,ouvindoasmanifestaçõesdoclã.Então,andoudevagarnomeiodamultidão,aceitandooscumprimentoscomeconômicosacenosdecabeça,epulouparaaPedraGrande,colocando-seaoladodeEstrelaAzul.–ClãdoTrovão!Estouhonradoemaceitarocargoderepresentante.Jamaisespereichegaraposiçãotãoalta,mas,peloespíritodeCoraçãodeLeão,prometoservir a vocês da melhor maneira possível – disse Garra de Tigre, quesolenementesecurvou, fixandoosolhosgrandeseamarelosnamultidão;emseguida,puloudaPedraGrande.PatadeFogo,aoouvirPataNegraaseuladomurmurar“Ah,não!”,virou-
se,curioso,paraoamigo.
PataNegraestavadecabeçabaixae sussurrou:–Elanuncadevia tê-loescolhido!– Você está se referindo a Garra de Tigre? – Pata de Fogo perguntou
baixinho.–ElequerserrepresentantedesdequecuidoudeRaboVermelho–miou
PataNegra,calando-sederepente.–Comoassim,cuidoudeRaboVermelho?–perguntouPatadeFogo,com
mildúvidasnacabeça.OquePataNegrasabia?SeriaverdadeiroorelatodabatalhacontraoClãdoRioqueelecontaranaAssembleia?SeriaGarradeTigreoculpadodamortedeRaboVermelho?
CAPÍTULO18
–VOCÊESTÁCONTANDOAPatadeFogocomoprotegiRaboVermelho?Pata de Fogo sentiu um arrepio gelado ondear a pelagem atrás do
pescoço.PataNegra ficou agitado, comos olhos arregalados demedo. Garra de
Tigre debruçou-se sobre eles, mostrando os dentes em um rosnadoameaçador.PatadeFogodeuumpuloeencarouonovorepresentante.–Eleestava
dizendo que gostaria que você tivesse ficado aqui para tomar conta deCoraçãodeLeãotambém,sóisso!–miou,raciocinandorápido.Oguerreiroolhoudeumparaooutroeseafastoulentamente.Osolhos
verdes de Pata Negra nublaram-se de pavor; ele começou a tremer semcontrole.–PataNegra?–miou,alarmado,PatadeFogo.Mas o amigo nem sequer levantou o olhar. Com a cabeça baixa,
aproximou-se lentamente de Pata Cinzenta e agachou-se perto dele,apertandoocorpomagronapelagemespessadocompanheiro,comose,derepente,sentissefrio.PatadeFogoolhoudesoladoparaosdoisamigos,aconchegadosaolado
docorpodeCoraçãodeLeão.Semsaberoquefazer,tambémseaproximouejuntou-seaosoutrosaprendizes,prontoparapassaralitodaanoite.À medida que a lua se movia no céu, os outros felinos se uniram na
vigília. Por último chegouEstrelaAzul, quando o acampamento já estavacalmo e tranquilo. Em silêncio, sentou um pouco afastada, fitando orepresentantemortocomumaexpressãotãotristequePatadeFogotevededesviaroolhar.Ao amanhecer, um grupo de anciãos foi buscar o corpo de Coração de
Leãoparalevá-loaolocaldoenterro.PataCinzentaosseguiuparaajudaracavarasepulturaondeograndeguerreiroiriadescansar.Pata de Fogo bocejou e se espreguiçou. Estava gelado até os ossos. A
estação das folhas caídas se aproximava e a floresta estava coberta deneblina;mas,acimadasfolhas,oaprendizviuocéurosadodoamanhecer.ObservouPataCinzentadesaparecercomosanciãosnavegetaçãocheiadeorvalho.Pata Negra levantou-se e voltou correndo para a toca dos aprendizes.
PatadeFogooseguiudevagareoencontrouenroscado,comofocinhosobacauda,comosedormisse.PatadeFogoestavacansadodemaisparafalar.Ajeitouomusgonacama
eseacomodouparaumlongosono.
–Levantem-se!Pata de Fogo escutou Pata de Poeira chamando na entrada da toca e
abriuosolhos.PataNegrajáestavasentado,comasorelhaseriçadas.PataCinzenta,aseulado,nãoparavadesemexer.PatadeFogoficousurpresoaosedepararcomaformacinzaefamiliar.NãoouviraogatovoltardepoisdoenterrodeCoraçãodeLeão.– Estrela Azul convocou outra reunião – avisou Pata de Poeira,
abaixando-seesaindopelassamambaias.Ostrêsaprendizesrastejaramparaforadatocaquentinha.Osol jánão
estava apino e o ar se tornaramais frio. PatadeFogo tiritava, a barrigaroncando.Nãoselembravadaúltimavezquetinhacomidoeimaginouseteriaoportunidadedecaçarhoje.Pata de Fogo, Pata Cinzenta e Pata Negra rapidamente se juntaram à
multidãoreunidasobaPedraGrande.GarradeTigre,aoladodeEstrelaAzul,falava:–Duranteabatalha,nossa
líderperdeuoutravida.Agoraque lhe sobraramapenasquatrodasnovevidas, vou nomear um guarda-costas para acompanhá-la o tempo todo.Nenhumgatotempermissãodeseaproximarseosguardasnãoestiverempresentes. –Osolhos corde âmbardo representantepiscaramparaPataNegraedepoisparaorestodamultidão.–RiscadeCarvãoeRaboLongo–continuou,desviandooolharparaosguerreiros–,vocêsserãoosguarda-costasdeEstrelaAzul.Osdoisgatosconcordaramesentaram,imponentes.Estrela Azul falou, e sua voz soou delicada e calma depois do grito de
comandodo representante: –Obrigada,GarradeTigre, por sua lealdade.Masoclãprecisacompreenderquecontinuoaqui,aapoiá-lo.Nenhumgatodeve hesitar em me procurar, e fico feliz em falar com qualquer um,estando ounão comguarda-costas. –Os olhos faiscaram rapidamente nadireção do representante. – Como determina o código dos guerreiros, asegurança do clã é mais importante do que a de qualquer membroindividualmente. – Fez uma pausa e seu olhar cor do céu deteve-serapidamente em Pata de Fogo. – E agora quero convidar Presa Amarela
parajuntar-seaoClãdoTrovão.Miados de surpresa se elevaram entre alguns guerreiros. Estrela Azul
olhou para Pele de Geada, que acenou, concordando. As outras rainhasolhavamemsilêncio.A líder continuou: – Suas ações na noite passada provaram que ela é
corajosa e leal. Se ela o desejar, vamos recebê-la como membro efetivodesteclã.Deondeestava,àbeiradamultidão,PresaAmarelaolhouparaalíderdo
clãemurmurou:–Estouhonrada,EstrelaAzul,eaceitooconvite.–Ótimo–mioualídercomavozfirme,indicandoqueoassuntoestava
encerrado.PatadeFogo ronronoudeprazeredeuumacutucadade leveemPata
Cinzenta. Ficou surpreso ao perceber quanto significava para ele ademonstração pública de confiança que Estrela Azul concedera a PresaAmarela.Alídervoltouafalar.–Nanoitepassada,conseguimosnosdefendercom
sucesso do ataque do Clã das Sombras, mas eles ainda são uma grandeameaça.Otrabalhodereparoquecomeçamosnestamanhãvaicontinuar.As fronteiras serão patrulhadas o tempo todo.Não devemos achar que aguerraacabou.GarradeTigreficoudepé,comacaudalevantada,eolhouparaosgatos
reunidosabaixo.–OClãdasSombrasatacouenquantoestávamosforadoacampamento–grunhiu.–Escolherambemomomento.Comosabiamqueoacampamentoestavaindefeso?Elestêmolhosaquidentro?Pata de Fogo congelou, horrorizado, quando o guerreiro fixou o olhar
cortanteemPataNegra.AlgunsfelinosseguiramoolhardeGarradeTigreefitaram,confusos,oaprendiz,queolhavaparaochão,movimentandoaspatas,nervoso.O representante continuou: – Ainda falta um pouco para o pôr do sol.
Precisamosnosconcentraremreconstruiroacampamento.Enquantoisso,se suspeitarem de alguma coisa, ou de alguém, falem comigo. Estejamcertosdequequalquercoisaquemedisseremserámantidaemsigilo.–Fezum aceno, dispensando o clã; voltou-se e começou a falar baixinho comEstrelaAzul.Os gatos se dispersaram e começaram a se movimentar pelo
acampamento,avaliandoosdanoseformandogruposdetrabalho.– Pata Negra! – chamou Pata de Fogo, ainda chocado com a sugestão
maldosadeGarradeTigredequeopróprioaprendizteriatraídooclã.MasPata Negra já tinha ido embora. O amigo o viu oferecendo ajuda aMeioRaboeaNevasca,antesdeseapressaracatargalhosparataparosburacosnomurodafronteira.EraevidentequePataNegranãoqueriafalar.– Vamos ajudá-lo – sugeriu Pata Cinzenta, com a voz desanimada e
exaustaeosolhosopacos.–Vávocê.Voudaquiapouco–respondeuPatadeFogo.–Primeiroquero
verseestátudobemcomPresaAmareladepoisdalutacomPéPreto.O gato procurou Presa Amarela no ninho, perto da árvore caída. Ela
estavaesticadanasombra,comumolharpensativo.–PatadeFogo–ronronouaovê-lo.–Ficofelizquetenhavindo.–Queriasaberseestátudobemcomvocê.–Oshábitosantigosdurammaisdoqueoscheirosantigos,nãoé?–miou
PresaAmarela,comumlampejodesuavelhaespirituosidade.–Achoquesim–confessouoaprendiz.–Comosesente?–Essaantigaferidadapernavoltouadoer,masvouficarbem.–ComoconseguiuexpulsarPéPreto?–perguntouPatadeFogo,incapaz
deesconderaadmiração.–PéPretoéforte,masnãoéumlutadorinteligente.Foimaisdesafiador
lutarcomvocê.PatadeFogoprocurouemvãoobrilhodehumornosolhosdagata.Elacontinuou:–Euoconheçodesdequeerafilhote.Elenãomudou.Tem
energia,masnãocérebro.Pata de Fogo sentou a seu lado e ronronou: – Nãome surpreendeu o
convitedeEstrelaAzulparavocêsejuntaraoclã.Vocêrealmenteprovousualealdadenanoitepassada.PresaAmarelamexeuacauda.–Umgatorealmentelealtalvezlutasseao
ladodoseuclãdeorigem.– Se fosse assim, eu estaria lutando pelos meus Duas-Pernas! –
argumentouPatadeFogo.PresaAmarelaolhou-ocomadmiração.–Disse-obem,meu jovem.Mas
vocêsemprefoiumfilósofo.PatadeFogoficoutriste,poislembrou-sedequeCoraçãodeLeãodiziaa
mesmacoisa.EleperguntouaPresaAmarela:–VocêsentefaltadoClãdasSombras?A gata pestanejou e finalmente miou. – Sinto falta do antigo Clã das
Sombras.Decomocostumavaser.–AtéEstrelaPartidasetornarlíder?–perguntou,curioso,oaprendiz.–É–admitiuPresaAmarela,comsuavidade.–Elemudouoclã.–Agata
soltouuma risadaofegante. –Ele sempre teve lábia. Sequisesse, poderiafazervocêacreditarqueumcamundongoéumcoelho.Talvezpor issoeufosse tãocegaàssuas falhas–disseagata, comoolhardistante,perdidanaslembranças.–Aposto que você não adivinha quemé o novo curandeiro do Clã das
Sombras!–miouPatadeFogo, lembrando-se,derepente,doquesouberanaAssembleia.Pareciaquemuitasluashaviamsepassado.Suas palavras pareceram trazer Presa Amarela ao presente. – Nãome
digaqueéNarizMolhado?–elamiou.–Acertou!A gata balançou a cabeça. – Mas ele não consegue curar o próprio
resfriado!–FoioquePataCinzentadisse!–Porummomento,ronronaramjuntos,
divertidos. O aprendiz se levantou. – Vou deixá-la descansar agora. Seprecisardemaisalgumacoisahoje,ésóchamar.Presa Amarela levantou a cabeça. – Só mais uma coisa, Pata de Fogo;
soubequevocêesteveenvolvidoemumalutacomratos.Elesoferiram?Estátudobem.FolhaManchadatratoudosmeusferimentoscomcravo-
da-índia.–Às vezes, cravo-da-índia não basta paramordidas de ratos. Encontre
uma moita de alho selvagem e role em cima dela. Acho que você aencontraránãomuito longedaentradadoacampamento. Issovai extrairqualquer veneno que os ratos tenham deixado. Mas – acrescentousecamente – não creio que seus colegas de toca venham ame agradecerpeloconselho!– Não faz mal. Eu agradeço! Obrigado, Presa Amarela! – o aprendiz
ronronou.–Vácomcuidado,meujovem!–Agatamanteveoolharporuminstante;
então,descansouoqueixosobreaspatasdianteirasefechouosolhos.Pata de Fogo deslizou sob os galhos que rodeavam o ninho de Presa
Amarelaesedirigiuaotúneldetojos,àprocuradealhoselvagem.Osolsepunhaeeleouviuasrainhascolocandoosfilhotesparadormir.–Aondevocêpensaquevai?–grunhiuumavozsaídadassombras.Era
RiscadeCarvão.–PresaAmarelamedisseparair…–Nãorecebaordensdaquelavilã!Váajudarosoutroscomosconsertos.
Nenhum gato deve deixar o acampamento esta noite! – ordenou oguerreiro,chicoteandoacaudadeumladoparaooutro.– Está bem, Risca de Carvão – concordou o aprendiz, submisso,
abaixandoacabeça.–SacodeCarvão–murmuroubaixinho,dandoavoltaedirigindo-seaoslimitesdoacampamento,ondeviuPataCinzentaePataNegraocupados,remendandoumgrandeburaconomurodevegetação.–ComoestáPresaAmarela?–perguntouPataCinzentaquandoPatade
Fogoseaproximou.–Estábem.Aconselhou-mearolaremalhoselvagemparaneutralizaras
mordidasderato.Estavasaindoparaacharamoita,masRiscadeCarvãomemandouficarnoacampamento–explicouPatadeFogo.– Alho selvagem? – miou Pata Cinzenta. – Gostaria de experimentar.
Minhapernaaindaestálatejando.–Eupodiasairdefininhoetrazerumpouco–ofereceu-sePatadeFogo,
magoadocomomodogrosseirocomoRiscadeCarvãootrataraegostandodaoportunidadededesforra.–Ninguémvaiperceberseeupassarporesseburacoaqui.Vaidemorarsóunsdoispulosdecoelho.PataNegrafranziuatesta,masPataCinzentaconcordounumsussurro:–
Vamoslhedarcobertura.PatadeFogoagradeceucomofocinhoepuloupelovãonomuro.Foradoacampamento,dirigiu-separaamoitadealhoselvagem,guiado
facilmentepeloalertadocheiroforte.Aluasubianocéucordevioletaeosol mergulhava no horizonte. Uma brisa fria fazia ondular a pelagem dePatadeFogo.Derepenteelesentiuumcheirodegatotrazidopelovento.Comcuidado,farejou.SeriaoClãdasSombras?Não,apenasGarradeTigreeoutrosdoisfelinos.Voltouafarejaroar.RiscadeCarvãoeRaboLongo!Oqueestariamfazendoali?Curioso,oaprendiz colocou-seemposiçãode tocaia.Esgueirou-sepela
vegetação, pata ante pata, mantendo-se a favor do vento para não serdetectado.Osguerreirosestavamnasombradeumamoitadesamambaias,com as cabeças bem próximas. Logo Pata de Fogo estava perto bastanteparaouvi-los.–OClãdasEstrelasétestemunhadequemeuaprendiz,desdeo início,
mostrou poucas possibilidades, mas nunca esperei que se tornasse um
traidor!–grunhiuGarradeTigre.OsolhosdePatadeFogosearregalaram,eele ficoutãoespantadoque
suapelagemsearrepiou.Pelovisto,GarradeTigrepretendiafazermaisdoqueapenasacusarPataNegradetrairoclã!– Por quanto tempo você disse que Pata Negra ficou desaparecido
duranteaviagematéaBocadaTerra?–perguntouRiscadeCarvão.– O suficiente para ter ido até o acampamento do Clã das Sombras e
voltar–foiarespostaameaçadoradorepresentante.OpelodacaudadePatadeFogoseeriçouderaiva:Issoéimpossível!Ele
esteveconoscootempotodo!,pensou.AvozdeRaboLongo,agitada,tinhaagoraumtommaisalto:–Eledeve
ter contado a eles que a líder do Clã do Trovão e o guerreiromais fortetinhamsaídodoacampamento.Porquemaisatacariambemnaquelahora?– Somos o último clã a resistir ao Clã das Sombras. Precisamos
permanecer fortes – ronronou Garra de Tigre, num tom de voz agoraaveludado.Esperouemsilêncioporumaresposta.FoiRiscadeCarvãoque se apressou a responder, como se ainda fosse
aprendizdeGarradeTigreeestivesserespondendoaumaperguntasobretécnicasdecaçada.Aoouvir suaspalavras,PatadeFogo ficousemar,detantomedo.–EoclãestariaemmelhorsituaçãosemumtraidorcomoPataNegra.–Devodizerqueconcordocomvocê,RiscadeCarvão–murmurouGarra
de Tigre, com a voz grave de emoção. – Mesmo sendo meu próprioaprendiz… – o guerreiro desconversou, como se estivesse por demaisaborrecidoparacontinuar.Pata de Fogo já tinha ouvido bastante. Esquecendo totalmente o alho
selvagem, voltou na direção do acampamento, o mais rápida esilenciosamentepossível.Decidiu não contar a Pata Negra o que tinha ouvido. Ele ficaria
apavorado.PatadeFogopensavarapidamente.Oquepoderiafazer?GarradeTigreeraorepresentantedoclã,umgrandeguerreiro,popularentreosfelinos. Ninguém daria importância às acusações feitas por um aprendiz.Masoamigoestavaemgrandeperigo.PatadeFogosacudiu-se, tentandocolocar as ideias em ordem. Só havia uma coisa a fazer: contar a EstrelaAzul tudo o que ouvira e tentar convencê-la de que estava dizendo averdade!
CAPÍTULO19
PATA CINZENTA E PATANEGRA ainda estavam remendando o buraco quandoPatadeFogoveiotercomeles.Tinhamdeixadoumespaçolargosuficienteparaoamigovoltar.–Nãotivesortecomoalho–PatadeFogoarquejavaquandoentroude
mansinho.–RiscadeCarvãoestavaporlá,àespreita.–Nãofazmal–miouPataCinzenta.–Podemosapanharamanhã.–VouconseguircomFolhaManchadaumpoucodepapoulaparavocê–
ofereceu Pata de Fogo, preocupado com o olhar apático do amigo e comseusmúsculos,quepareciamdurosdemedo.–Não,nãosepreocupe.Vouficarbem–miouPataCinzenta.– Não custa nada – Pata de Fogo insistiu; antes que o amigo pudesse
dizeralgumacoisa,rumouparaatocadacurandeira.Folha Manchada circulava na sua pequena clareira, com os olhos
nubladosdetristeza.–Tudobemcomvocê?–perguntouogato.– Os espíritos do Clã das Estrelas estão inquietos. Acho que estão
tentandomedizeralgumacoisa–elareplicou,agitandoacaudasemparar.–Comopossoajudar?– Acho que Pata Cinzenta ficaria melhor com algumas sementes de
papoulaparaaperna.Asmordidasdosratosaindaestãodoendo–explicouoaprendiz.– A dor da perda de Coração de Leão torna piores as feridas.Mas ele
ficará bom a tempo; não se preocupe. Enquanto isso, você tem razão, assementesdepapoulavãoajudar.–FolhaManchadafoiatésuatocaepegouumacabeçasecadepapoula,quecolocoucuidadosamentenochão.–Dêaeleumaouduassementes.Bastasacudirestacabeça–elamiou.–Obrigado–agradeceuPatadeFogo.–Temcertezadequeestábem?– Vá cuidar do seu amigo – disse a curandeira, evitando o olhar do
aprendiz.PatadeFogoapanhouacabeçadepapoulaentreosdentesecomeçoua
seafastar.–Espere–FolhaManchadaciciouderepente.Oaprendizvirou-se,esperançoso,eencontrouseuolharcordeouro.Ela
ofitoucomamesmaintensidade.
–PatadeFogo–elamiou–,oClãdasEstrelasfaloucomigo, luasatrás,antesdevocêse juntaraoclã.Sintoquedesejamque lhediga issoagora.Elesdizemqueapenasofogopodesalvarnossoclã.PatadeFogo,perplexo,olhoufirmeparaFolhaManchada.Aestranhapaixãonosolhosdacurandeiraesmaeceu.–Cuide-se,Patade
Fogo–elamioucomseutomdevozhabitual,dando-lheascostas.–Atémais–respondeuogato,hesitante.Pata de Fogo voltou pelo túnel de tojos, com as estranhas palavras da
gata ecoando em sua mente. Mas, para ele, não faziam sentido. Por quepartilhara o assunto com ele? Afinal, o fogo era inimigo de todos os quemoravamna floresta. Frustrado, sacudiu a cabeça e se dirigiu à toca dosaprendizes.
–PataCinzenta!–cochichouPatadeFogonaorelhadoamigo,quedormia.Tinham sido autorizados a descansar por toda a manhã, depois de terpassado a maior parte da noite remendando o muro. Garra de Tigreordenaraqueestivessemprontosparacomeçarotreinamentonosolalto.Aluz forte e amarela entrandopela toca avisava aPatadeFogoque já eraquasehora.Ele tiveraumanoiteagitada.Sonhos invadiamsuamentecadavezque
adormecia – sonhos confusos, indistintos, mas cheios de escuridão eameaça.– Pata Cinzenta! – voltou a chamar Pata de Fogo.Mas o amigo não se
mexia: tinha comidoduas sementesdepapoula antesdedormir e estavaemsonoprofundo.–Estáacordado,PatadeFogo?–miouPataNegradoseuninho.Pata de Fogo cuspiu em silêncio. Queria ter falado com Pata Cinzenta
antesdePataNegraacordar.–Estou,sim!–respondeu.PataNegrasentounacamademusgoeurzeecomeçouase lavarcom
rápidaslambidas.–Vocêvaiacordá-lo?–perguntou,apontandoparaPataCinzenta.Ouviu-seumavozguturaldo ladode forada toca:–Esperoquesim!O
treinamentojávaicomeçar!PatadeFogoePataNegrapularam.–PataCinzenta,acorde!–dissePatadeFogo,cutucandooamigo.–Garra
deTigreestáesperando!Pata Cinzenta levantou a cabeça; tinha os olhos ainda pesados e
sonolentos.–Jáestãoprontos?–cobrouGarradeTigre.Pata de Fogo e Pata Negra saíram rastejando da toca, piscando ao
encontraraluzdosol.Orepresentanteestavaaoladodotocodeárvore.–Ondeestáooutro?–Jávem–dissePatadeFogo,numtomdefensivo,paraprotegeroamigo.
–Acaboudeacordar.– O treinamento vai fazer bem para ele – grunhiu o guerreiro. – Já
lamentousuficiente.PatadeFogo sustentoupor alguns instanteso ameaçadorolhar corde
âmbar. Pelo espaço de uma batida de coração, guerreiro e aprendiz seolharamcomoinimigos.PataCinzentasaiusonolentodatoca.–EstrelaAzulestaráprontaemuminstante,PatadeFogo–disseGarra
de Tigre. As palavras fizeram o aprendiz esquecer a raiva. Sua primeirasessãodetreinamentocomalíder!Ficoutodoempolgado.Achavaquesuamentorapassariaalgumtempoemrepouso,porcausadosferimentos.– Pata Cinzenta – continuou Garra de Tigre –, você pode se juntar à
minhasessãodetreinamento.Achaqueestáapto,PataNegra?–perguntouoguerreirocomumolharzangado.–Afinal,vocêsearranhounasurtigasenquantoestávamoslutandocomaquelesratos.PataNegraolhouparaochão.–Estoubem–miou.Pata Cinzenta e Pata Negra seguiram o representante e saíram do
acampamento.PataNegramanteveacabeçabaixaaodesaparecerpelotúneldetojos.Pata de Fogo sentou e ficou esperandoEstrelaAzul, que não demorou
muito. A rainha cinza saiu da toca e cruzou a clareira com um andardelicado.Apelagemaindaestavafoscaondeosferimentoseramrecentes,mas ela não demonstrava sentir dor no caminhar confiante. – Venha –chamou-o.Pata de Fogo ficou surpreso de vê-la sozinha. Risca de Carvão e Rabo
Longonãoestavamporperto.Umpensamentolhepassoupelacabeçaesuaempolgação de repente transformou-se em ansiedade – ali estava umaoportunidadeparacontaràlíderoqueouvirananoiteanterior.
Eleaalcançouquandoelasedirigiaaotúneldetojos.Colocou-seatrásdagatae,hesitante,perguntou:–Osseusguardasvãosejuntaranós?Estrela Azul respondeu sem olhar para trás: – Dei ordens a Risca de
Carvão e a Rabo Longo para ajudarem nos reparos necessários noacampamento.NossaprioridadeéasegurançadabasedoClãdoTrovão.O coração do aprendiz acelerou. Assim que saíssem do acampamento,
contariasobrePataNegra.Osdoisseguiramatrilhaparaovaledotreinamento.Ocaminhoestava
cobertodefolhasdouradasrecém-caídas,quefarfalhavamsobaspatas.AmentedePatadeFogo se acelerou, àprocuradaspalavras adequadas.Oque diria à líder? Que Garra de Tigre estava tramando se livrar de seuaprendiz? E o que diria quando Estrela Azul perguntasse o motivo?Conseguiria dizer claramente que suspeitava que Garra de Tigre mataraRaboVermelho?Mesmosemprovas,anãoserorelatoempolgadodePataNegranaAssembleia?Quandochegaramaovalearenoso,PatadeFogoaindanãotinhafalado.
Ovaleestavavazio.Ao chegar ao centro do vale, Estrela Azul explicou: – Pedi a Garra de
Tigrepara fazerasessãode treinamentoemoutraparteda florestahoje.Queromeconcentrarnassuashabilidadesdelutaequevocêseconcentrenelastambém,oquesignificaquenãodevehaverdistrações.Precisofalarcomelaagora,pensouoaprendiz.ElaprecisasaberquePata
Negra está correndoperigo.Aspataspinicavam, ansiosas.Não terei outraoportunidadecomoesta…PatadeFogopercebeuummovimentosúbitocomocantodoolho.Um
risco cinza passou pelo seu focinho e ele caiu para a frente quando suaspatas dianteiras foram derrubadas por uma leve rasteira. Ele vacilou,reequilibrou-se, girou o corpo e viu Estrela Azul sentada calmamente aoseulado.–Possotersuaatençãoagora?–elareclamou.–Claro,EstrelaAzul,medesculpe!–apressou-seemresponder,fitando-
lheosolhosazuis.– Assim está melhor. Pata de Fogo, já faz muitas luas que você está
conosco. Tenho observado você lutar. Com os ratos, foi ágil; com osguerreirosdoClãdasSombras,foiferoz.Mostrou-semaisespertoquePataCinzentadesdeoprimeirodiaetambémderrotouPresaAmarelacomsuainteligência. – A líder fez uma pausa e então abaixou a voz num intensociciar:–Masumdiavaiencontrarumoponentetãobomquantovocê;ágil,
ferozeinteligente.Émeudeverprepará-loparaessedia.PatadeFogoconcordoucomacabeça,detodoenvolvidopelaspalavras
da líder, os sentidos inteiramente despertos. Todos os pensamentos arespeitodePataNegraeGarradeTigrehaviamdesaparecidoeosodoresdemusgoeospequenosbarulhosdaflorestaoinundavam.–Vamosvercomovocêluta–ordenouEstrelaAzul.–Ataque-me.PatadeFogoaolhou,medindo-adecimaabaixoeimaginandoamelhor
maneira de começar. Estrela Azul estava a menos de três coelhos dedistância.Elaeraodobrodeleemtamanho;assim,seriaumdesperdíciodeesforço começar com as patadas usuais e os golpes de luta. Mas seconseguisse dar um pulo forte e direto em suas costas, poderia fazê-laperderoequilíbrio.Nemporummomentoelaafastaradeleospenetrantesolhosazuis.PatadeFogopegouimpulsoesaltou.A intenção era cair em cheio nos ombros da gata, mas ela estava
preparada para o golpe e agachou rapidamente. Ao ser atingida, EstrelaAzulroloue ficoudebarrigaparacima.Emvezdeaterrissarnosombrosdela, ele se esborrachou na barriga da líder. Com as quatro patas, ela oatirou longe com facilidade. O aprendiz sentiu-se como um filhoteimpertinente despachado sem cerimônia. Seu corpo bateu com força nochão duro e ele ficou ali largado, antes de se pôr de pé de formadesajeitada.–Estratégiainteressante,masseusolhosdeixaramtransparecerqualera
o alvo – observou Estrela Azul ao se levantar, sacudindo a poeira dapelagemespessa.–Agora,tentedenovo.DessavezPatadeFogoolhouparaosombrosdagata,masoalvoeramas
patas. Quando Estrela Azul agachasse, ele a atingiria. Sentiu uma grandesatisfaçãoaopular,masosentimentosetransformouemconfusãoquandoa líder inesperadamente saltounoar, deixando-oesborrachar-seno chãoondeelaestiverahaviaapenasumabatidadecoração.Agatateveperfeitanoção do tempo; quando o aprendiz aterrissou, ela voou para cima dele,deixando-osemfôlego.– Agora tente alguma coisa que eu não esteja esperando – ela falou
baixinho ao seu ouvido, soltando-se dele e se afastando com um brilhodesafiadornosolhos.Pata de Fogo se levantou, arfando, e sacudiu-se, zangado. Nem Presa
Amarelatinhasidotãoastuta.Comumsilvo,voltouapular.Dessavez,aovoaremcimadeEstrelaAzul,eleesticouaspatasdianteiras.Elaergueu-se
naspatas traseiras e, usandoasdianteiras, atirou-o longe.Quando seviuescorregando,PatadeFogoarranhouaareiacomaspatasdetrás,maseratardedemais,eelecaiupesadamentedelado.–PatadeFogo–miouEstrelaAzulcalmamenteenquantoelemaisuma
vez se atrapalhava com as próprias patas –, você é forte e rápido, masprecisa aprender amanter o controle da velocidade e do peso do corpo,paraquenãosejatãofácilfazê-loperderoequilíbrio.Tentedenovo.Pata de Fogo se afastou, acalorado, cheio de poeira, ofegante. A
frustração tomou conta dele. Estava determinado a levar amelhor dessavez.Agachou-sedevagarecomeçoua rastejarnadireçãodeEstrelaAzul.Ela percebeu o movimento e deu um silvo na cara do gato quando elechegouperto.Oaprendizlevantouumapataedesferiuumgolpenaorelhaesquerdadalíder.Elaseabaixouparaevitarapancadae,depénaspatastraseiras, ficoumais alta do que ele. Rapidamente Pata de Fogo ficou debarriga para cima, escorregou para baixo do corpo da gata e, nummovimento rápido, chutou-lhe a barriga com as patas traseiras. EstrelaAzul foi atirada longe e caiu de costas no chão arenoso, com um uivogutural.Pata de Fogo girou no ar e pulou de pé. Estava exultante. Então viu
Estrela Azul deitada no chão e, pela primeira vez, lembrou-se de seusferimentos.Teriamreabertoporcausadele?Correuparaoladodalíderefitou-a.Paraseualívio,elalhedeuumolharcheiodeorgulho.–Estefoimuitomelhor–eladisse,ofegante.Emseguida, levantou-see
sacudiu-se.–Agoraéminhavez.Pulou na direção dele, jogando-o no chão. Afastou-se e deixou-o se
levantarantesdepulardenovo.PatadeFogoficoufirme,maselavoltouaderrubá-locomfacilidade.–Olheomeu tamanho,PatadeFogo!Não tente ficardepéquandoeu
atacar.Useainteligência.Vocêérápidobastanteparameevitar;entãofaçaisso!PatadeFogoselevantou,meiodesajeitado,epreparou-separamaisum
ataquedagata.Dessaveznãocravouaspatasnochãomacio,masergueu-seligeiramente,mantendoopesonosdedosdospés.QuandoEstrelaAzulvoounasuadireção,elesedesviou,ficoudepénaspatastraseirase,comasdianteiras,empurrounoarocorpodelaparatrás.Estrela Azul aterrissou com graça nas quatro patas e se virou –
Excelente!Vocêaprenderápido–ronronou.–Masessefoiummovimento
fácil.Vamosvercomosesainopróximo.Eles treinaramatéopôrdosol.PatadeFogodeuumsuspirodealívio
quandoouviuEstrelaAzulmiar:–Chegaporhoje.–Elapareciaumpoucocansadaeenrijecida,masaindaconseguiupularparasairdovalearenosocomfacilidade.Pata de Fogo escalou o vale atrás dela. Tinha osmúsculos doendo e a
cabeça rodando com tudo o que aprendera. Quando, juntos, seguiam atrilhaentreasárvores,elemalpodiaesperarparacontaraPataCinzentaea Pata Negra sobre sua sessão de treinamento. E foi apenas quandochegaramàfronteiradoacampamentoquePatadeFogopercebeuqueseesqueceradecontaraEstrelaAzulsobrePataNegra.
CAPÍTULO20
QUANDO PATA DE FOGO voltou ao acampamento, este já parecia um poucomelhor. Era evidente que grupos de gatos tinham passado o diaremendandoeconsertandosemparar.PeledeGeadaeFlorDouradaaindaestavamocupadas,reforçandoasparedesdoberçário,masomuroexternovoltaraasersólidoeseguro.PatadeFogoatravessouaclareiraparaverseencontravaalgumapresa
fresca.PassouporPatadeAreiaePatadePoeira,quesepreparavamparasairnapróximapatrulha.– Desculpe – miou Pata de Areia, enquanto Pata de Fogo farejava,
esperançoso,aáreaderefeições.–Comemososdoisúltimoscamundongos.Pata de Fogo deu de ombros. Mais tarde caçaria alguma coisa para
comer. Voltou para a toca dos aprendizes, onde encontrou Pata Cinzentarecostadonotocodeárvore,lambendoumapata.–OndeestáPataNegra?–PatadeFogoperguntou,sentando-seaolado
doamigo.–Aindanãovoltou,estácumprindoatarefa–respondeuPataCinzenta.–
Veja isto! – falou, levantando a pata para o amigo examinar. O curativoestavarasgadoesangrando.–GarradeTigrememandoupescareeupiseinumapedrapontudanoriacho.–Parecebemprofundo.ÉmelhorpediraFolhaManchadaparadaruma
olhada–sugeriuPatadeFogo.–Porfalarnisso,paraondeGarradeTigremandouPataNegra?–Não tenho ideia! Eu estava com água fria até a barriga –murmurou
PataCinzenta,queselevantouesaiumancandonadireçãodatocadeFolhaManchada.Pata de Fogo se instalou e, com os olhos fixos na entrada do
acampamento, esperou por Pata Negra. Depois de ouvir a conversa dosguerreirosnanoiteanterior,nãopodiaafastarosentimentodequealgumacoisaterrívelestavaparaaconteceraoamigo.SeucoraçãodisparouquandoviuGarradeTigreentrarsozinhonoacampamento.Esperoumaisumpouco.Aluaestavaaltanocéu.SeráquePataNegrajá
nãotinhavoltado?PatadeFogolamentounãoterfaladocomEstrelaAzulquandoteveoportunidade.Agora,RiscadeCarvãoeRaboLongoestavamde guarda na toca da líder e, naturalmente, o aprendiz não queria quesoubessemdesuapreocupação.
GarradeTigre trouxerapresas frescaseaspartilhavacomNevascanointeriordatocadosguerreiros.PatadeFogopercebeuqueestavafaminto.Talvezdevessesairparacaçar;quemsabecruzassecomPataNegraforadoacampamento. Enquanto pensava no que fazer, viu PataNegra chegandoapressado. Sentiu um arrepio de alívio, e não só porque o amigo traziapresafrescaentreosdentes.Orecém-chegadodirigiu-sediretamenteaPatadeFogoedeixoucairo
bocadonochão.–Obastanteparanóstrês!–miou,orgulhoso.–Edevesermaisquegostoso…veiodoterritóriodoClãdasSombras.PatadeFogoengasgou.–VocêpassounoterritóriodoClãdasSombras?–Eraaminhatarefa–explicouPataNegra.–GarradeTigremandouvocêcaçarnoterritórioinimigo!–PatadeFogo
malpodiaacreditar. –PrecisamoscontaraEstrelaAzul. Isso foiperigosodemais!À menção do nome da líder, Pata Negra balançou a cabeça. Tinha os
olhos apavorados, sombreados demedo, e sibilou: – Não diga nada, estábem?Eusobrevivi!Atéconseguialgumapresa.Issoétudo.–Vocêsobreviveudestavez!–disparouPatadeFogo.–Shhh!GarradeTigreestáolhando.Comaasuaparteefiquequieto!–
ralhouPataNegra.PatadeFogodeudeombrosepegouumpedaçodecaça.PataNegra comeu depressa, evitando olhar o amigo. –Devemos guardarumpoucoparaPataCinzenta?–perguntoudepoisdeumtempo.– Ele foi ver Folha Manchada – Pata de Fogo resmungou com a boca
cheia.–Cortouapata.Nãoseiquandovaivoltar.–Guardeparaelequantovocêquiser–retrucouPataNegra,parecendo
repentinamenteesgotado.–Estoucansado;precisodormir.–Levantou-seesedirigiuparaatoca.PatadeFogoficoudoladodefora,observandoorestodoacampamento
se preparar para a noite. Tinha de contar a Pata Negra o que ouvira naflorestananoiteanterior.Oamigoprecisavasaberquecorriaperigo.Garra de Tigre estava deitado ao lado de Nevasca, trocando lambidas,
mascomoolhonatocadosaprendizes.PatadeFogobocejouparamostraraGarradeTigrequeestavaexausto;entãolevantou-seeentrounatoca.PataNegraestavadormindo,e,pelotremelicardaspatasebigodes,via-
sequeestavasonhando.PatadeFogosabiaqueosonhonãoerabom,pelosligeirosmiadosepequenosguinchosqueoamigoemitia.Desúbito,ogatopreto se levantou, com os olhos arregalados de pavor. A pelagem estava
totalmentearrepiada,ascostasemarco.–PataNegra!–alarmou-sePatadeFogo.–Acalme-se.Vocêestánanossa
toca.Sóeuestouaqui!PataNegraolhouàvolta,assustado.–Soueu!–PatadeFogorepetiu.PataNegrapiscouepareceu reconheceroamigo;emseguida, jogou-se
noleito.–PataNegra–miou,sério,PatadeFogo.–Háumacoisaquevocêprecisa
saber.Umacoisaqueouvinanoitepassadaquandosaíparaprocuraralhoselvagem. – Pata Negra desviou o olhar, ainda tremendo por causa dosonho,masPatadeFogoinsistiu.–PataNegra,ouviGarradeTigredizeraRiscadeCarvãoeaRaboLongoquevocê traiuoClãdoTrovão.AfirmouquevocêescapousorrateiramenteduranteaviagemparaaBocadaTerraecontouaoClãdasSombrasqueoacampamentoestavadesguardado.Pata Negra girou o corpo para encarar o amigo. – Mas não fiz isso! –
exclamou,horrorizado.–Claroquenãofez!–concordouPatadeFogo.–MasRiscadeCarvãoe
Rabo Longo acreditam que sim, e Garra de Tigre os convenceu de quedevemselivrardevocê.PataNegraresfolegava,semconseguirfalar.–Porqueelequerselivrardevocê,PataNegra?–perguntougentilmente
PatadeFogo.–Eleéumdosguerreirosmaisfortesdoclã.Queameaçavocêrepresenta para ele? – Pata de Fogo suspeitava já saber a resposta,masqueria ouvir a verdade do próprio Pata Negra. Esperou enquanto o gatogaguejavaatrásdepalavras.Finalmente, Pata Negra aproximou-se lentamente de Pata de Fogo e
cochichouemseuouvido:–PorquenãofoiorepresentantedoClãdoRioquematouRaboVermelho;foiGarradeTigre.Emsilêncio,PatadeFogosinalizouqueestavaentendendo,ePataNegra
continuou, comosbigodesagitadosde tensão. –RaboVermelhomatouorepresentantedoClãdoRio…–EntãoGarradeTigrenãomatouCoraçãodeCarvalho–PatadeFogo
nãoseconteveeinterrompeu.Pata Negra balançou a cabeça. – Não, não matou! Depois que Rabo
Vermelhomatou Coração de Carvalho, Garra de Tigrememandou voltarparaoacampamento.Euqueriaficar,maseleuivouparaeuir;entãocorri
para as árvores.Devia ter continuado a correr,masnãopodia ir emboraenquantoaindaestivessemlutando.Mevireie,rastejando,fuiverseGarradeTigreprecisavadeajuda.Quandomeaproximei,todososguerreirosdoClã do Rio tinham fugido, restavam apenas Rabo Vermelho e Garra deTigre.RaboVermelhoestavaobservandooúltimoguerreiro fugireGarradeTigre…–PataNegrafezumapausa,depoisresfolegou–GarradeTigrep-pulou em cimadele, cravando-lheosdentesnanuca, eRaboVermelhocaiumorto no chão. Foi quando corri. Não sei se Garra de Tigreme viu.Continueiemdisparadaatéchegardevoltaaoacampamento.–PorquenãocontouaEstrelaAzul?–PatadeFogopressionou,gentil.–Seráqueelaacreditariaemmim?–PataNegraduvidou,revirandoos
olhos.–Vocêacreditaemmim?– Claro que sim – Pata de Fogo miou. Lambeu Pata Negra entre as
orelhas, tentando acalmar e confortar o amigo. Teria de achar outraoportunidadeparafalaraEstrelaAzuldatraiçãodeGarradeTigre.–Nãose preocupe, vou esclarecer a situação – prometeu. – Enquanto isso, nãosaiadepertodemimoudePataCinzenta.–PataCinzentasabequeelesqueremseverlivresdemim?–Aindanão.Masvouterdecontaraele.PataNegracalou-see,ajeitando-sesobreabarriga,fitouovazio.– Está tudo bem, PataNegra – ronronou Pata de Fogo, tocando como
narizocorpomagrodoamigo.–Vouajudá-loasairdessasituação.
PataCinzentaentrounatocaquandoodiaamanheceu.PatadeAreiaePatade Poeira tinham voltado da patrulha havia pouco tempo e dormiam emseusninhos.–Olá!–miouPataCinzenta,parecendomaisanimadodoquenosúltimos
dias.PatadeFogoacordoudeimediatoeronronou:–Vocêparecemelhor.PataCinzentalambeuaorelhadePatadeFogo.–FolhaManchadapassou
umpoucodevisconocorteememandouficardeitadoporhoras,semmemexer. Devo ter adormecido. Aliás, espero que aquele pintassilgo lá forasejaparamim;estoumorrendodefome!–Ésim;PataNegraocaçou.GarradeTigreomandouparaa…–Calemaboca,vocêsdois–rosnouPatadeAreia.–Algunsdenósestão
tentandodormir.
Pata Cinzenta revirou os olhos. – Venha, Pata de Fogo – miou. – CaraRajadatevefilhotes;vamosvisitá-los.PatadeFogoronronoudeprazer.Enfim,algumacoisaparacelebrarno
ClãdoTrovão.OlhouparaPataNegra,queaindaestavadormindo,esaiudatoca sem fazer barulho. Acompanhado de Pata Cinzenta, atravessou aclareiranadireçãodoberçário.Osolnascendofezsuapelagembrilharcomocaloreeleseespreguiçoucomvontade,revelandoaflexibilidadedesuaespinhaeaforçadesuaspernas.–Paredeseexibir!–PataCinzentareclamousobreosombros.Patade
Fogoparoudesealongareseguiuoamigo.Nevasca estava sentado do lado de fora do berçário, guardando a
entrada.–Vieramverosbebês?–miouàaproximaçãodePatadeFogoedePataCinzenta.PatadeFogofezquesim.Nevasca instruiu:–Queentreumdecadavez,ooutro terádeesperar.
EstrelaAzulestácomelaagora.–Vocêpodeirprimeiro–PatadeFogoofereceu.–Enquantoisso,vouver
PresaAmarela.–Despediu-sedeNevascacomumaeducadamesuraesaiunadireçãodoninhodagata.PresaAmarela estava limpandoatrásdasorelhas, concentrada, comos
olhossemicerrados.–Nãomedigaqueestáesperandochuva!–PatadeFogoprovocou.Presa Amarela olhou para ele e replicou: – Você anda ouvindomuitas
históriasdosanciãos.Porquerazãoumgatolavariaasorelhassevaipegarchuvadequalquermaneira?OsbigodesdePatadeFogosemexeram,divertidos.–Nãovaiveranova
ninhadadeCaraRajada?–perguntou.Presa Amarela se retesou e balançou a cabeça. – Não acho que seria
muitobem-vinda–grunhiu.–Maselessabemquevocêsalvou…–PatadeFogocomeçou.–Asgatassuperprotegemseus filhotesrecém-nascidos,principalmente
quandosetratadaprimeiraninhada.Achoquevouficardelonge–PresaAmarelaocortounumtomquenãodavachanceanenhumaponderação.–Comoquiser.Maseuvouvê-los.Deveserumbomsinal,filhotesnovos
noacampamento.PresaAmareladeudeombros.–Podeser–murmurou,sombria.
PatadeFogovirou-seevoltouparaoberçário.Nuvenstinhamencobertoo sol, tornando o ar mais fresco. Uma forte brisa movimentava a suapelagemeespalhavaasfolhaspelaclareira.Estrela Azul estava sentada do lado de fora do berçário. Atrás dela, a
caudadePataCinzentaacabavadedesaparecernaentradaestreita.–PatadeFogo–agatacumprimentou–,veioverosmaisnovosguerreirosdoClãdoTrovão?–Alídertinhaavozcansadaetriste.PatadeFogoficousurpreso.Osbebêserammesmoumaboanotíciapara
oClãdoTrovão?–Vim,sim–respondeu.–Quandoterminaravisita,venhaatéminhatoca.–Sim,EstrelaAzul–miouoaprendizenquantoa líder seafastava.Ele
sentiuapelagempinicar.AliestavaoutraoportunidadeparafalarsozinhocomEstrelaAzul.Quemsabe,afinal,oClãdasEstrelasestavaaseulado.Pata Cinzenta se afastou da entrada do berçário. – São realmente uma
graça–comentou.–Masagoraestoumortodefome.Vousairecaçarumaspresas frescas. Se conseguir, guardarei algumas para você! – disse,piscandocomcarinhoparaPatadeFogoesedistanciando.Pata de Fogo ronronou um até logo e olhou para Nevasca, que, com a
cabeça,deu-lhepermissãoparaentrarnoberçário.Esgueirando-sepelaentradadiminuta,PatadeFogodeparoucomquatro
gatinhos minúsculos, aconchegados no ninho fundo preparado por CaraRajada. Exceto umdeles, compelo cinza escuro, todos tinhama pelagemcinza clara commanchas escuras, exatamente como amãe.Miavam e seenroscavamjuntoàbarrigadeCaraRajada,comosolhosbemfechados.–Comosesente?–PatadeFogoperguntoubaixinho.–Umpoucocansada–respondeuolhandocomorgulhoparaaninhada.–
Masosbebêssãotodosfortesesaudáveis.–OClãdoTrovãotemsorteemtê-los–PatadeFogoronronou.–Estava
falandosobreelescomPresaAmarela.Cara Rajada não respondeu, e Pata de Fogo percebeu o lampejo de
preocupaçãonosolhosdagataquandopuxavaumgatinhofujão.Pata de Fogo sentiu no estômago um tremor de ansiedade. Embora
EstrelaAzultivesseaceitadoPresaAmarelanoClãdoTrovão,pareciaqueavelha gata ainda não contava com a confiança de todos. Com o focinho,tocou carinhosamente a lateral de Cara Rajada, virou-se e voltou para a
clareira.A líder do clã esperava Pata de Fogo na entrada da toca. Rabo Longo
estava sentado ao lado dela. O guerreiromalhado encarou Pata de Fogocom firmeza, mas o aprendiz o ignorou e olhou com expectativa paraEstrelaAzul.–Entre–elamiou,virando-separa indicarocaminho.PatadeFogofoi
atrás.RaboLongoimediatamenteselevantou,comosefossesegui-los.Estrela Azul o olhou por sobre o ombro emiou: – Acho que estarei a
salvocomo jovemPatadeFogo.–RaboLongopareceu inseguroporuminstante;emseguida,sentoudoladodefora.PatadeFogo jamaisestiverana tocadeEstrelaAzul. Seguiu-a comum
andarmaciopelo líquenquecobriaaentrada.–OsbebêsdeCaraRajadasãoadoráveis–ronronou.Estrela Azul estava séria. – Podem ser adoráveis, mas significammais
bocasparaalimentar,eaestaçãosemfolhaslogovaichegar.–Olhouentãopara Pata de Fogo, que não conseguia disfarçar a tristeza pelo tommelancólico da líder. – Ah, não preste atenção no que eu digo – miouEstrela Azul, balançando a cabeça, impaciente. – O primeiro vento friosempreme preocupa. Venha, fique à vontade. – Ela inclinou a cabeça nadireçãodochãosecoearenoso.PatadeFogoseacomodousobreabarrigaeesticouaspatasàfrente.EstrelaAzul andava lentamenteemcírculos emseuninhodemusgo. –
Aindaestoudoloridadanossasessãodetreinamentodeontem–admitiuquandofinalmenteseaquietoueenroscouacaudaàvoltadaspatas.–Vocêlutoubem,meujovem.Pelaprimeiravez,PatadeFogonãoparouparasedeliciarcomoelogio.
Seucoraçãoestavadisparado.AqueleeraomomentoperfeitoparafalaràlíderdosseusmedosarespeitodeGarradeTigre.Ele levantouoqueixo,prontoparafalar.Mas foiEstrelaAzulque falouprimeiro, comoolharalémdele, fixona
parededatoca.–AindasintoofedordoClãdasSombrasnoacampamento–murmurou.–Esperavanuncaverodiaemqueosinimigosinvadiriamocoração do Clã do Trovão. – Pata de Fogo concordou em silêncio,percebendoqueEstrelaAzuliacontinuar.– E tantas mortes – ela suspirou. – Primeiro, Rabo Vermelho, depois
Coração de Leão. Ao menos agradeço ao Clã das Estrelas porque osguerreiros quenos restaram são fortes e leais como eles. Aomenos com
GarradeTigre como representante, o Clã doTrovão ainda é capazde sedefender.OcoraçãodePatadeFogopesoueumventogeladooinvadiuàmedidaqueEstrelaAzulcontinuava.–Houveumtempo,quandoGarradeTigre era um jovem guerreiro, que temi pelo ímpeto de sua paixão. Talenergia precisa ser bem canalizada.Mas agora estou orgulhosa de ver orespeitoqueoclãtemporele.Seiqueéambicioso,masaambiçãofazdeleumdosfelinosmaiscorajososquejátiveahonradeterameuladonumabatalha.PatadeFogosoubeimediatamentequenãopodiacomentarcomEstrela
AzulsuassuspeitasarespeitodeGarradeTigre.Nãoquandoelacontavacomseurepresentanteparaprotegertodooclã.Primeiro,elemesmo,Patade Fogo, teria de salvar Pata Negra. Respirou fundo e pestanejou; dessemodo,quandoalídervirou-seeofitoudiretamentenosolhos,nãohaviaalivestígiodeespantooudesapontamento.As palavras seguintes de Estrela Azul foram emitidas em tom baixo e
cheiodepreocupação.–VocêsabequeEstrelaPartidavaivoltar.EledeixouclaronaAssembleiaqueexigedireitosdecaçaemtodososterritórios.–Nóso rechaçamosumavez. Podemosvoltar a fazê-lo –PatadeFogo
insistiu.–Éverdade.–EstrelaAzulconcordoucomumacenoesquisito.–OClã
dasEstrelasvaihonrarsuacoragem,jovemPatadeFogo.–Fezumapausaelambeuumdosferimentosnoflanco.–Achoquevocêprecisasaberque,nabatalhacomosratos,nãofoiminhaquintavidaqueperdi,masasétima.PatadeFogocolocou-seimediatamentedepé,chocado.EstrelaAzulcontinuou.–Deixeioclãacreditarquesetratavademinha
quintavidaporquenãoqueroquetemampelaminhasegurança.Maisduasvidasetereideabandoná-losemejuntaraoClãdasEstrelas.Pata de Fogo raciocinava velozmente. Por que ela estaria lhe dizendo
aquilo?–Obrigadoporpartilharissocomigo,EstrelaAzul–eleronronou,respeitoso.A líder fez um gesto com a cabeça. – Estou cansada agora – falou
bruscamente. – Vá embora. Pata de Fogo, espero quenão comente sobreestaconversacomninguém.–Claroquenão,EstrelaAzul–respondeuoaprendizaosairpelacortina
delíquen.RaboLongoaindaestavasentadoàentrada.PatadeFogopassouporele
esedirigiuàsuatoca.NãosabiaquepedaçodaconversacomEstrelaAzul
odeixaramaisperplexo.Deteve-seaoouvirumgritodehorrorvindodoberçário.PeledeGeada
veioaospulosatéaclareira,comacaudaerguidaeosolhosarregaladosemalarme.–Meusfilhotes!Alguémlevoumeusfilhotes!Garra de Tigre saltou na direção dela e convocou o clã. – Depressa,
vasculhem o acampamento! Nevasca, fique onde está. Guerreiros,patrulhemafronteiradoacampamento.Aprendizes,procurememtodasastocas.PatadeFogocorreuatéatocamaispróxima,adosguerreiros,eforçoua
entrada. Estava vazia. Apalpou as camas,mas ali tambémnãohavia nemsinalnemcheirodosbebêsdePeledeGeada.Saiu,dirigindo-serapidamenteàprópriatoca.PataNegraePataCinzenta
já estavam lá, deslocando os ninhos, farejando todos os cantos. Pata dePoeira e Pata de Areia vasculharam a toca dos anciãos. Pata de Fogodeixou-os encarregar-se disso e passou de ummonte de grama a outro,enfiandonelesonariz,ignorandooespetardasurtigas.Nãohaviasinaldosfilhotes.Olhouàvoltadoslimitesdoacampamento.Osguerreirosandavamparatráseparaafrente,farejandosofregamenteoar.Derepente,PatadeFogolocalizouPresaAmarelaadistância.Elatentava
atravessarum trechodomurode samambaias ondenãohavia vigilância.Provavelmentesentiraalgumcheiro,pensou,ecorreunadireçãodagata,cuja cauda desapareceu no verde. Quando ele alcançou o muro desamambaias, ela já havia partido. Pata de Fogo farejou o ar. Não haviacheirode filhotes, apenas o odor amargodomedodePresaAmarela.Doqueelateriamedo?–perguntou-seoaprendiz.O grunhido de Garra de Tigre surgiu dos arbustos atrás do berçário.
Todos os gatos rumaram para lá às pressas, Pele de Geada à frente.Amontoaram-se entre cotoveladaspara tentar enxergar atravésdadensavegetação.PatadeFogoenfiouonarizeviuGarradeTigresobreumfardoimóveldepelagemsalpicada.FolhaManchada!PatadeFogoolhou,incrédulo,ocorposemvida.Umsentimentodefúria
tomoucontadele,comosefosseumanuvemescura;sentiuosanguelatejarnasorelhas.Quemteriafeitoaquilo?EstrelaAzulabriu caminhonamultidãoe inclinou-se sobreo corpoda
curandeira – Ela foi morta pelo golpe de um guerreiro –miou, com vozsuave.
Pata de Fogo levantou o pescoço e viu uma única ferida por trás dopescoço de Folha Manchada. Sua cabeça girou e ele, de repente, nãoconseguiaconcatenarasideias.Em meio à tristeza, Pata de Fogo ouviu um murmúrio no fundo da
multidão, que cresceu até se tornar um único e cortante uivo. – PresaAmarelasefoi!
CAPÍTULO21
–PRESAAMARELAMATOUFolhaManchadaelevoumeusfilhotes!–gritouPeledeGeada.Asoutrasrainhascorreramparaseu ladoetentaramacalmá-lacom lambidas e carinhos, mas Pele de Geada afastou-as e exprimiu seulamentoaocéuqueescurecia.Comose respondesse,o céuagitou-secomumestrondoterrível,eumventofrioondeouapelagemdosfelinos.–PresaAmarela!–sibilouGarradeTigre.–Sempresoubequeerauma
traidora.Agora sabemos como conseguiu liquidar o representantedoClãdasSombras.Foiumaarmaçãoparaelaseinfiltrarfurtivamentenonossoclã!Raiosintensosrasgavamocéu,pontuandoaspalavrasdeGarradeTigre
com um clarão branco e brilhante; estrondos de trovão percorriam afloresta.PatadeFogonãoconseguiaacreditarnoqueestavaouvindo.Mortificado
de tristeza, sua mente rodopiava. Será que Presa Amarela realmentemataraFolhaManchada?Acimadosmurmúriosestupefatos,RiscadeCarvãomiavaalto.–Oque
vocêacha,EstrelaAzul?Osgatosfizeramsilêncioeseviraramparaalíder.O olhar de Estrela Azul percorreu a multidão de felinos e finalmente
parou no corpo de Folha Manchada. As primeiras gotas de chuvacomeçaram a cair, brilhando como gotas de orvalho na pelagem aindalustrosadacurandeira.EstrelaAzulpestanejou.A tristeza tomoucontade seu rostoe,porum
instante,PatadeFogotevemedodequeessanovamorteaarrasasse.Mas,quando seus olhos se abriram, brilhavam com uma ferocidade quemostrava sua determinação em buscar vingança por esse ataque cruel.Levantou a cabeça. – Se Presa Amarela tiver matado Folha Manchada esequestradoosfilhotesdePeledeGeada,serácaçadasemmisericórdia.–Amultidão miou, aprovando. – Mas precisamos esperar. – Estrela Azulcontinuou. –Está chegandouma tempestade enão estoupreparadaparaarriscarmaisvidas.SeoClãdasSombrasestivercomnossosfilhotes,nãocausarão nenhum dano imediato. Não vão machucá-los. Suspeito queEstrela Partida queira fazer deles recrutas de seu próprio clã, ou reféns,para nos forçar a deixá-lo caçar em nosso território. Assim que o mautempopassar,umapatrulhasairánoencalçodePresaAmarelaparatrazer
devoltaosfilhotes.– Não podemos perder tempo, ou o cheiro vai se dissipar na chuva! –
protestouGarradeTigre.Estrela Azul, impaciente, balançou a cauda. – Se enviarmos um grupo
para persegui-la agora, nosso esforços serão vãos, de qualquer maneira.Com toda esta umidade, o cheiro já terá se perdido quando estivermosprontos para sair. Se esperarmos até a tormenta passar, teremos maischancedesucesso.Ouviram-se murmúrios de concordância entre o clã. Embora o sol
estivesse quase a pino, o céu estava cada vezmais escuro. Nervosos porcausadosraiosetrovões,osgatospreferiramouviroconselhodalíder.EstrelaAzulolhouparaorepresentante.–Porfavor,gostariadediscutir
os planos com você, Garra de Tigre. – O guerreiro fez que sim e,caminhandocomumjeitoarrogante,dirigiu-seàtocadalíder;masEstrelaAzuldeixou-oireesperou.OlhouparaPatadeFogo,sinalizando,comumbalançardecaudaeummovimentodosbigodes,quequeriafalarcomeleemparticular.OsoutrosfelinossereuniramàvoltadeFolhaManchadaecomeçarama
lambero corpoda curandeira, seus lamentos se sobrepondoaos trovões.Estrela Azul abriu caminho entre eles e dirigiu-se ao túnel de tojos, quelevavaàtocadeFolhaManchada.Pata de Fogo, sem ruído, abriu caminho entre a multidão de gatos,
entrandona toca.Estavamuito escuro sobas samambaias.A tempestadetinhaescurecidoocéudamanhã;assim,pareciaqueanoitetinhachegado.A chuva caía mais pesada, fazendo barulho nas folhas, mas, ao menos,estavamprotegidosnaclareiradeFolhaManchada.– Pata de Fogo – miou Estrela Azul em tom de urgência quando ele
chegou–,ondeestáPresaAmarela?Vocêsabe?PatadeFogomalaouvia.Nãopodiadeixardelembraraúltimavezque
fora àquela clareira. A imagemde FolhaManchada saindo da toca com apelagem brilhando à luz do sol queimava em suamente, e ele fechou osolhosparapreservá-la.–PatadeFogo–disseEstrelaAzul,chamandosuaatenção–,deixeseu
lamentoparamaistarde.Pata de Fogo se sacudiu. – Eu… Eu vi Presa Amarela ultrapassar a
fronteira do acampamento depois do sumiço dos filhotes. AcreditarealmentequeelatenhamatadoFolhaManchadaesequestradoosfilhotes?
– Não sei – admitiu Estrela Azul, olhando-o firmemente. – Quero quevocêaencontreeatragadevolta,viva.Precisosaberaverdade.–NãovaimandarGarradeTigreatrásdela?–PatadeFogonãocontevea
pergunta.–GarradeTigreéumgrandeguerreiro,mas,nessecaso,alealdadeque
dispensaaoclãpodeobscurecerseudiscernimento–explicoualíder.–Elequerdaraoclãavingançaqueoclãdeseja.Nenhumgatopodeculpá-loporisso. O clã acredita que fomos traídos por Presa Amarela, e se Garra deTigre acha que pode restaurar a confiança de todos entregando-lhes seucadáver,éexatamenteoquefará.Pata de Fogo concordou em silêncio. Ela estava certa: Garra de Tigre
matariaPresaAmarelasemhesitar.Estrela Azul parecia implacável naquele momento. – Se descobrir que
Presa Amarela nos traiu, eu mesma vou matá-la. Mas se isso não tiveracontecido… – Os olhos azuis queimaram em Pata de Fogo. – Não voudeixarumgatoinocentemorrer.–Mas,esePresaAmarelanãovoltar?–miouPatadeFogo.–Elavoltará,sevocêpedir.Pata de Fogo ficou impressionado com a confiança que Estrela Azul
depositavanele.Sentiupesarsobresiofardodaenormetarefaqueelalheimpunha, e ficou pensando se tinha coragem suficiente para cumpriraquelamissão.–Vádeumavez!–elaordenou.–Mastenhacuidado;vocêestarásozinho
epodehaverporaípatrulhasinimigas.Essatempestadevaimanternossosguerreirosnoacampamentoporumtempo.Oaprendizsaiudaclareiraàspressas.Trovõesrugiamsobresuacabeça.
A chuva caía forte, e as gotas batiam em sua pelagem como pedraspequeninas.OclarãodeumrelâmpagoiluminouorostodeRiscadeCarvãoedeRaboLongo,queoobservavam.Pata de Fogo passou pelo berçário num pulo. Não podia partir sem
lamberFolhaManchada.Osoutrosfelinostinhamcorridoparaseproteger,abandonando o corpo da curandeira sob a chuva torrencial enquanto seabrigavamsobassamambaiasencharcadas,miandoseumedoesuaperda.Pata de Fogo enterrou o focinho no pelo molhado da curandeira e
inspirouseuperfumepelaúltimavez.–Adeus,minhadoceFolhaManchada–murmurou.SuasorelhasseretesaramquandoouviuasvozesdePeledeGeadaede
Cauda Sarapintada, que conversavam ali perto. Ficou imóvel, tentandoouviroquediziam.–PresaAmareladevetertidoajuda–grunhiuCaudaSarapintada.–AlguémdoClãdoTrovão?–perguntou,ansiosa,PeledeGeada.–VocêouviuoqueGarradeTigrefaloudePataNegra.Talvezeletenha
algumacoisaavercomisso.Eumesmanuncamesentiàvontadecomele.OpelodaespinhadePatadeFogoeriçou-se.SeGarradeTigreespalhara
seus boatosmaldosos até o berçário, Pata Negra não estaria a salvo emnenhumlugardoacampamento.Pata de Fogo percebeu que precisava agir rapidamente. Primeiro
encontrariaPresaAmarela, depois cuidariadePataNegra. Correupara oúltimolugarondeavistaraPresaAmarela.Conheciatãobemseucheiroquepoderiaidentificá-loentreasfolhasencharcadasdechuva.Começouaabrircaminhoentreosarbustos,comabocaaberta,paradetectaraondelevavaorastrodagata.–PatadeFogo!Oaprendizpulouelogodepoisseacalmou,aoverquesetratavadePata
Cinzenta.–Estavaprocurandovocê!–miouoamigoaocorrernasuadireção.PatadeFogoafastou-secautelosamentedassamambaias.Pata Cinzenta tinha os olhos semicerrados, para evitar que a chuva,
escorrendo por sua pelagem longa, neles entrasse. – Aonde você vai? –miou.–ProcurarPresaAmarela–respondeuPatadeFogo.– Sozinho? – indagou o amigo, com o rosto largo carregado de
preocupação.Pata de Fogo pensou por ummomento e decidiu contar a verdade ao
amigo:–EstrelaAzulmepediuparatrazerPresaAmareladevolta.–Oquê?–PataCinzentapareciaemchoque.–Porquevocê?– Talvez ela ache que, conhecendo Presa Amarela melhor, possa
encontrá-lamaisfacilmente.– Um grupo de guerreiros não teria mais chances? – Pata Cinzenta
perguntou.–GarradeTigreéomelhorrastreadordoclã;sealguémpodetrazê-ladevolta,éele.– TalvezGarra deTigre não a trouxesse de volta –murmurouPata de
Fogo.
–Oquequerdizercomisso?–GarradeTigreestáatrásdevingança.Elesimplesmenteamataria.–MasseelamatouFolhaManchadaesequestrouosfilhotes…–Acreditamesmonisso?–perguntouPatadeFogo.PataCinzentaolhouparaoamigo,balançandoacabeça,confuso.–Você
achaqueelaéinocente?– Não sei – Pata de Fogo admitiu. – Tampouco Estrela Azul. Ela quer
descobriraverdade.Porissoestámandandoamim,nãoGarradeTigre.– Mas, e se elamandasse Garra de Tigre trazê-la de volta viva… – As
palavrasdePataCinzentaforamsufocadasporumtrovãoensurdecedorepeloclarãodeumrelâmpago,queiluminouasárvoresaoredor.Sobaluzofuscante,PatadeFogovislumbrouPeledeGeadaexpulsando
PataNegradoberçário.Orostodarainhabrancaestavacrispadodefúriaenquantoelasibilavaparao jovemgatoeseprojetavaparaa frenteparadarneleumamordidadeadvertêncianapernatraseira.–PataCinzentavirou-separaPatadoFogo:–Masoqueéisso?Pata de Fogo olhou fixamente para o amigo, com amente acelerada à
procura de uma nova ideia. Parecia que o tempo de Pata Negra tinha seesgotado,ePatadeFogoprecisavadaajudadePataCinzenta.Masseráqueo amigo acreditaria nele?O vento estava começando a rugir na copadasárvores,ePatadeFogoprecisouelevaravoz.–PataNegraestáemgrandeperigo.–Como?–Precisoafastá-lodoClãdoTrovão.Agora,antesquealgumacoisa lhe
aconteça.PataCinzentaficouconfuso.–Porquê?EPresaAmarela?–Nãohátempoparaexplicar–PataCinzentamiou,apressado.–Vocêvai
ter de confiar em mim. Deve haver um jeito de conseguir afastar PataNegra. Estrela Azul vai manter os guerreiros no acampamento até quepasseatempestade,masissonãonosdámuitotempo.–Eletentoupensarnos cantos escondidos da floresta alémdo território do Clã doTrovão. –Teremosdelevá-loparaumlugarondeGarradeTigrenãooencontreeelepossasobreviversemoclã.PataCinzentaolhouparaeleporuminstante.–QuetalcomCevada?– Cevada! – Pata de Fogo repetiu. – Está sugerindo que levemos Pata
Negra para o lugar dos Duas-Pernas? – Suas orelhas estremeceram de
empolgação.–É,talvezsejaamelhorideia.–Então,vamos–miouPataCinzenta.–Oqueestamosesperando?PatadeFogoficoualiviado.Jádeviasaberquepodiacontarcomaajuda
dovelhoamigo.Sacudiu-separatirarasgotasdechuvadacabeçaetocoucomofocinhoapelagemdePataCinzenta.–Obrigado–ronronou.–Agora,vamosbuscarPataNegra.Eleestavanatocadosaprendizes,enroscado,infeliz.PatadeAreiaePata
dePoeiratambémestavamemseusninhos,tensoseamedrontadoscomatormentaquecaía.–PataNegra–PatadeFogosibilouàentrada.PataNegra levantouosolhos.PatadeFogomovimentouasorelhaseo
gatonegrooseguiunatempestade.–Venha.Vamoslevá-loatéoCevada–PatadeFogomurmurou.–Cevada?–ogatoperguntou,espantado,estreitandoosolhosporcausa
dachuvaforte.–Porquê?– Lá você ficará mais seguro – respondeu Pata de Fogo, fitando-o
diretamentenosolhos.– Você viu o que Pele de Geada fez? – miou Pata Negra, com a voz
trêmula.–Euestavaapenasverificandoseosfilhotes…–Venha!–PatadeFogoointerrompeu.–Temosdenosapressar!OsamigosseentreolharamePataNegraagradeceu:–Obrigado,Patade
Fogo.–Emseguida,voltou-senadireçãodoventoeatravessouaclareira.Os três correram para a entrada do acampamento, com a pelagem
grudada no corpo por causa do vento avassalador. Quando entraram notúneldetojos,umavozoschamoudevolta.–Vocêstrês!Aondevão?EraGarradeTigre.Pata de Fogo girou o corpo, sentindo o coração disparar. Ficou
desesperado, imaginando o que poderia dizer, quando viu Estrela Azulcaminhando, resoluta, na direção deles. Ela franziu o cenho por uminstante;entãoseurostoseabriu.–Muitobem,PatadeFogo–elamiou.–Vejoqueconvenceuseusdois
amigosairemcomvocê.OClãdoTrovãotemaprendizesvalentes,GarradeTigre,jáqueestãodispostosacumprirumamissãocomumtempodesses.–Temcertezadequeéhoraparamissões?–argumentouoguerreiro.–UmdosfilhotesdeCaraRajadaestácomtosse.–AvozdeEstrelaAzul
eradeumacalmagelada.–PatadeFogoseofereceuparapegarumpoucodeunha-de-cavalo.–Elerealmenteprecisaqueosamigostambémvão?–perguntouGarra
deTigre.– Nessa tempestade, acho que ele tem sorte por ter companhia –
respondeuEstrelaAzul.FitouprofundamenteosolhosdePatadeFogoeoaprendiz,desúbito,deu-secontadaconfiançaquealíderdepositavanele.–Vocêstrês,podemir–elamiou.Agradecido, Pata de Fogo devolveu o olhar. – Obrigado – ronronou,
abaixando a cabeça. Lançando um rápido olhar aos companheiros,comandou o grupo pelos caminhos conhecidos na direção de QuatroÁrvores. O vento uivava entre os galhos e as árvores balançavam, ostroncos estalando e quebrando, como se fossem tombar a qualquermomento.Achuvacaíainclementepelasfolhas,ensopandoosfelinosatéocouro.Chegaram ao riacho, mas as pedras que normalmente usavam como
apoio,pulandodeumaemuma,tinhamdesaparecido.Osgatospararamnamargemeolharam,desanimados,paraorio–largo,marromeagitado.–Poraqui–miouPatadeFogo.–Háumaárvorecaída.Podemosusá-la
paraatravessar.–ConduziuPataCinzentaePataNegra rioacimaatéumtroncoqueficavaaapenasumpassodefilhoteacimadaáguaapressada.–Tenham cuidado para não escorregar! – Pata de Fogo advertiu. O troncoestava descascado, restando apenas amadeiramacia emolhada para osfelinos se equilibrarem. Com cuidado, os três gatos caminharam por ele.PatadeFogopulouparaooutroladoeficouobservandoosamigosatéqueelestambémchegassemasalvo.As árvores erammaioresdooutro lado,permitindoque se abrigassem
umpoucodatempestadeenquantocorriam,ladoalado.– Vai me dizer exatamente por que precisamos afastar Pata Negra? –
perguntou,ofegante,PataCinzenta.– Porque ele sabe que Garra de Tigre matou Rabo Vermelho! –
respondeuPatadeFogo.– Garra de Tigre matou Rabo Vermelho! – repetiu Pata Cinzenta,
incrédulo,parandoderepenteefixandooolharprimeiroemPatadeFogo,depoisemPataNegra.–NabatalhacomoClãdoRio–bufouPataNegra.–Euovi.–Masporqueelefariaisso?–PataCinzentaprotestou,voltandoaandar.
ComeçaramadesceraencostaquelevavaàclareiradasQuatroÁrvores.–Nãosei.Talvezpensassequepor issoEstrelaAzuloescolheria como
representante–opinouPatadeFogo,sobrepondoavozaovento.PataCinzentanãoreplicou,masseurostoanuviou-se.Osgatoscomeçaramasubiraencostaíngremequedavanoterritóriodo
ClãdoVento.Pulandoderochaemrochanoaclive,PatadeFogofalavacomPataCinzenta,quevinhaatrás.Queriaqueoamigocompreendesse comoera perigoso para PataNegra ficar no acampamento do Clã do Trovão. –OuviGarradeTigreconversarcomRiscadeCarvãoeRaboLongonanoiteemqueCoraçãodeLeão foimorto–eleuivou. –Elequer sever livredePataNegra.–Ver-selivredele?Vocêquerdizermatá-lo?–PataCinzentacaiusentado
numapedra.Pata de Fogo tambémparou e olhou para os amigos. PataNegra tinha
parado mais abaixo na encosta, com os flancos subindo e descendo, nabusca de ar. Parecia menor do que nunca com a pelagem encharcadapendendodocorpoextremamentemagro.–Vocêviu comoPeledeGeadasedirigiuaPataNegrahoje?–Patade
Fogo miou para Pata Cinzenta. – Garra de Tigre está dizendo a todo omundoquePataNegraétraidor.MaseleficaráasalvocomCevada.Agoravamos,precisamosnosapressar!EraimpossívelconversarnocampoabertodoterritóriodoClãdoVento.
Oventouivavaaoredordelesenquantoouviam-setrovões,raioscortandoo céu. Os três felinos abaixaram as cabeças e seguiram em frente, nocoraçãodatempestadePorfim,chegaramàbeiradoplanaltoquemarcavaofimdoterritóriodo
ClãdoVento.–Nãopodemoslevarvocêmaisadiante,PataNegra–miouPatadeFogo
nomeiodaventania.–TemosdevoltareencontrarPresaAmarelaantesqueatempestadepasse.PataNegraolhouatravésdachuvatorrencial,apavorado.Concordouem
silêncio.–VocêvaiconseguirencontrarCevadasozinho?–gritouPatadeFogo.–Vou,lembroocaminho–respondeuPataNegra.–Cuidadocomaquelescães–advertiuPataCinzenta.Pata Negra aquiesceu: – Pode deixar. – De repente, franziu o cenho. –
ComotemcertezaqueCevadavaimereceberbem?–Apenasdigaaelequeumavezvocêpegouumaserpente!–respondeu
Pata Cinzenta, tocando com carinho o ombro do amigo ensopado pelachuva.–Vá–apressouPatadeFogo,cientedequeotempoeracurto.Lambeuo
peitomagrodePataNegraedisse:–Nãosepreocupe; cuidareiparaquetodossaibamquevocênãotraiuoClãdoTrovão.–E seGarradeTigre vier atrás demim? –Mal se ouvia a vozdePata
Negranomeiodatempestadebarulhenta.Pata de Fogo fitou-o nos olhos. – Não virá. Direi a ele que você está
morto.
CAPÍTULO22
PATADEFOGOEPATACINZENTArefizeramocaminhodevoltaaoterritóriodoClãdoTrovão.Ambos estavamcompletamentemolhados e comos ossosmoídos,mas Pata de Fogomantinha o passo. A tormenta começava a sedissipar. Uma patrulha do Clã do Trovão logo sairia no encalço de PresaAmarela.Precisavamencontrá-laprimeiro.Océuaindaestavaescuro,emboraasnuvenscarregadascomeçassema
se movimentar para o horizonte. Pata de Fogo imaginou que devia serquasepôrdosol.–PorquenãovamosdiretoaoterritóriodoClãdasSombras?–sugeriu
Pata Cinzenta quando desciam a íngreme encosta na direção das QuatroÁrvores.– Precisamos primeiro encontrar o cheiro de Presa Amarela – Pata de
Fogoexplicou.–Esperoqueelenãonos leveaoacampamentodoClãdasSombras.PataCinzentaolhoudeviésparaoamigo,masnãorespondeu.Voltaramapassarpeloriacho,rumoaoClãdoTrovão.Nãoencontraram
o cheiro de Presa Amarela até atravessarem para a floresta de carvalho,pertodoacampamento.Agora que a chuva tinha finalmente parado, os odores perto deles
começavama reaparecer.PatadeFogoesperavaquea chuvanão tivesselevadototalmenteorastrodePresaAmarela.Paroueesfregouapontadonariznumasamambaia,reconhecendooodorfamiliar.OcheirodemedodePresa Amarela picou-lhe as narinas. – Ela veio por aqui! – miou,embrenhando-se na vegetação molhada, seguido por Pata Cinzenta. Achuvadiminuíraeostrovõesseperdiamnadistância.Otemposeesgotava.PatadeFogoseapressou.Para sua decepção, percebeu que o odor de Presa Amarela realmente
levavadiretoaoterritóriodoClãdasSombras.Seucoraçãoseentristeceu.SeriamverdadeirasasacusaçõesdeGarradeTigre?PatadeFogonutriaaesperançadequeopróximocheirooslevasseaumadireçãodiferente,masatrilhanãodeixavadúvidas.Pararam ao chegar ao Caminho do Trovão. Diversosmonstros rugiam
porali,vomitandojatosdeáguasuja.Osdoisgatoshesitaramnabeiradocaminholargoecinzaatéencontraremumabrecha.Então,atravessaramocaminhoeentraramnoterritóriodoClãdasSombras.
OscheirosquemarcavamafronteirafizeramformigarospésdePatadeFogo.PataCinzentaparoue,nervoso,olhouàvolta.–Semprepenseiqueteria
comigomaisalgunsguerreirosquandofinalmenteentrassenoterritóriodoClãdasSombras–confessou.–Vocênãoestácommedo,está?–murmurouPatadeFogo.–Vocênãoestá?Minhamãemuitasvezesmeadvertiusobreofedordo
ClãdasSombras.–Minhamãenuncameensinouessascoisas– comentouPatadeFogo.
Mas,pelaprimeiravez,estavaaliviadoporterapelagemcoladaaocorpode tãomolhada. Assim, Pata Cinzenta não poderia perceber o arrepio demedoquelhepercorriaaespinha.Osdois felinosseguiramvigilantes,alertasaqualquercoisaquevissem
ou ouvissem. Pata Cinzenta tentava detectar as patrulhas do Clã dasSombras, e Pata de Fogo, o grupo do Clã do Trovão, que, ele sabia, virialogo.A trilha do odor de Presa Amarela levava diretamente ao coração das
zonas de caça do Clã das Sombras. O bosque ali era escuro, a vegetaçãocheiadeurtigaseamoreiras.– Não consigo sentir o cheiro dela – reclamou Pata Cinzenta. – Está
molhadodemais.–Aliadiante–PatadeFogoassegurou.–Maspossosentirocheirodaquilo–PataCinzentadisparou,derepente.–Aquilooquê?–PatadeFogosibilou,parando,alarmado.–Cheirodefilhote.Aquitemsanguedefilhote!PatadeFogovoltouafarejar,procurandoocheirodaninhadadoClãdo
Trovão.–Tambémsinto–concordou.–Ealgumacoisamais!–Abaixouacaudanumúnicomovimento, advertindoPataCinzentapara ficarquieto.Então, em silêncio, sinalizou com os bigodes na direção de um freixoescurecidoadiante.AsorelhasdePataCinzentaestremeceram,inquisitivas.PatadeFogofez
um ligeirogestodecabeça.PresaAmarelaestavaabrigadaatrásdo largotroncodivididoaomeio.Comoporinstinto,osdoisgatossesepararam;cadaumfoiparaumlado
da árvore. Movimentaram-se com vagar pelo chão macio da floresta,usandotodosostruquesdotreinamentobásico,pisandodeleve,mantendo
oscorposbaixos.Entãopularam.Presa Amarela gritou, surpresa, quando os dois felinos aterrissaram a
seu lado, imobilizando-a no chão. A gata lutou para se soltar, cuspiu erecuou até umburaco escondido na base do tronco. Pata de Fogo e PataCinzentaseadiantaram,fechandoasaída.–EusabiaqueoClãdoTrovãoiameculpar!–elasibilou,comosolhos
disparandotodaasuaantigahostilidade.–Ondeestãoosfilhotes?–PatadeFogoperguntou.–Sentimosocheirodosanguedeles–exclamouPataCinzenta.–Vocêos
machucou?–Nãoestoucomeles–rosnouPresaAmarela,zangada.–Vimprocurá-
los e levá-losdevolta.Pareiporque tambémsenti cheirode sangue.Maselesnãoestãoaqui.PatadeFogoePataCinzentaseolharam.–Nãoestoucomeles!–insistiuPresaAmarela.–Porquefugiu,então?PorquematouFolhaManchada?–PataCinzenta
fezasperguntasquePatadeFogonãoconseguiadizeremvozalta.–FolhaManchadaestámorta?–EraevidenteochoquenavozdePresa
Amarela.OalíviotomoucontadePatadeFogo–Vocênãosabia?–gritou.–Comopoderia saber?Deixeioacampamentoassimque soubequeos
filhotestinhamdesaparecido.PataCinzentapareciadesconfiado,masPatadeFogosentiasinceridade
navozdaguerreira.–Seiquempegouosfilhotes–elacontinuou.–Sentiocheirodeleperto
doberçário.–Quemfoi?–PatadeFogoperguntou.– Cara Rasgada, um dos guerreiros de Estrela Partida. Enquanto os
filhotesestiveremcomoClãdasSombras,corremgrandeperigo.–Mas,certamente,nemoClãdasSombrasmachucariafilhotes!–Patade
Fogoprotestou.– Não tenha tanta certeza – disparou Presa Amarela. – Estrela Partida
pretendeusá-losparaguerrear.–Mastêmapenastrêsluasdeidade!–arquejouPataCinzenta.
–Issonãooimpediuantes.Elevemtreinandofilhotesdetrêsluasdesdequesetornoulíder.Comcincoluaseleosmandalutarcomoguerreiros!– São pequenos demais para lutar! – Pata de Fogo protestou. Mas
desenhounamenteospequeninosaprendizesqueviranaAssembleia.Nãoeramsópequenos;eramfilhotes!PresaAmarelasibiloucomescárnio:–EstrelaPartidanãoligaparaisso.
Ele temmuitos filhotesparadesperdiçare, seacabaracota,poderoubardosoutrosclãs!–Avoztranspiravaraiva.–Afinal,estamosfalandodeumgatoquematoufilhotesdopróprioclã!PatadeFogoePataCinzentaestavamatônitos.–SeelematouosfilhotesdoClãdasSombras,porquenãofoipunido?–
PatadeFogo,afinal,perguntou.–Porquementiu–grunhiuPresaAmarela.Oamargorenrijeceusuavoz.
–AcusouamimdocrimeeoClãdasSombrasacreditou!PatadeFogoderepentecompreendeu.–PorissofoiafastadadoClãdas
Sombras? – perguntou. – Você precisa voltar conosco e dizer tudo isso aEstrelaAzul.–Nãoantesderesgatarosfilhotes!–disparouPresaAmarela.PatadeFogolevantouacabeçaefarejouoar.Achuvatinhaparadoeo
vento diminuía. A patrulha do Clã do Trovão já estaria a caminho. Nãoestavamasalvoali.PataCinzentapareciachocadocomaacusaçãodePresaAmarela.–Como
équeumlídermatafilhotesdopróprioclã?–perguntou.–EstrelaPartida insistia emdar-lhesum treinamento árduo eprecoce
demais. Levou dois filhotes para ensinar práticas de batalha. – PresaAmarela, arquejante, deu um suspiro profundo. – Tinham apenas quatroluasdeidade.Jáestavammortosquandoeleostrouxedevoltaparamim.Tinham arranhões e mordidas de um guerreiro formado, não deaprendizes.Elemesmodeveterlutadocomosfilhotes.Nãohavianadaqueeupudessefazer.Quandoamãechegou,EstrelaPartidaestavacomigo.Eledissequemeencontraraobservandooscorposmortos.–Suavozfalhoueelaolhouparaolado.–PorquenãocontouaelaquetinhasidoEstrelaPartida?–perguntou
PatadeFogo,semacreditar.PresaAmarelabalançouacabeça.–Nãopodia.–Porquenão?
Avelhagatahesitou.Quandofalou,tinhaavozpesada,sentida.–EstrelaPartidaéolíderdoClãdasSombras.SeupaieraonobreEstrelaAfiada.Apalavradeleélei.PatadeFogodesviouoolhareostrêsgatossentaramemsilêncioporum
momento.Então,PatadeFogomiou:–Vamos resgataros filhotes juntos.Estanoite.Masnãopodemosficaraqui.SintoocheirodapatrulhadoClãdoTrovão se aproximando. –Ele fezumapausa. – SeGarradeTigre estivercomeles, PresaAmarelanão teránenhuma chance. Ele vaimatá-la antesquepossamosexplicaralgumacoisa.Presa Amarela olhou para ele, novamente alerta e determinada. – Há
turfaporaqui;estarámolhadaapósachuva.Vaidisfarçarnossosodores–disse.Elapulounumamoitadesamambaias,seguidadepertoporPatadeFogo
ePataCinzenta.Ouviamofarfalhardavegetaçãoaolonge.Nãoeramaisovento quemaltratava os arbustos,mas umapatrulha que se aproximava,certamente com sede de vingança e atiçada pelas mentiras de Garra deTigre.Uma calmaria suspeita tomou conta da floresta e uma neblina fina
começouaseformarentreostroncosdasárvores.PatadeFogosacudiuasgotículasdapelageme, impaciente, tiroudopeitoumpedaçodecascadeárvore.Presa Amarela os conduziu para dentro da floresta. O chão se tornava
cadavezmaisencharcadoeosgatoscomeçaramaafundaraspatasnaturfamacia.OcheiroúmidoobstruíaasnarinasdePatadeFogo,mas,aomenos,aquiloiadisfarçaratrilhaquedeixavam.Atrásdeles,obarulhodosfelinosaumentava.–Depressa,aquiembaixo–PresaAmarelaapressou-os,abaixando-sesob
um arbusto de folhas largas. Os três gatos se agacharam sob a árvore,recolhendo as caudas. Pata de Fogo ficou tão quieto quanto possível,tentandoignorarochãototalmentemolhadoqueencharcavaapelagemdesuabarrigaeprestandoatençãoaobarulhodapatrulhadoClãdoTrovão,cadavezmaispróxima.
CAPÍTULO23
PATADEFOGOCONSEGUIUidentificarapresençadediversosgatosnapatrulha,andando rápido. Não pôde reconhecer, no entanto, os odores individuaisdosfelinosnomeiodosodoresterraisdobrejo,massabiaquesetratavadoClã do Trovão. Prendeu a respiração quando ouviu as passadas seaproximaremeseafastaremrápido.–Vamosmesmo tentar resgataros filhotes sozinhos?–disse,baixinho,
PataCinzenta.Presa Amarela respondeu primeiro: – Talvez consiga alguma ajuda
dentrodoClãdasSombras.NemtodososgatosapoiamEstrelaPartida.PatadeFogoretesouasorelhas,ePataCinzenta,surpreso,movimentou
acauda.– Quando se tornou líder – explicou Presa Amarela –, Estrela Partida
obrigou os anciãos a deixarema segurança do interior do acampamento.Tiveram de ir para a fronteira e caçar por si mesmos. São gatos quecresceramdeacordocomocódigodosguerreiros.Algunsdelespodemnosajudar.PatadeFogofitoucomfirmezaosvelhosolhos,pensandocomrapidez.–
EpossoconseguirconvencerogrupodecaçadoClãdoTrovãoanosajudartambém – miou. – Se conseguir falar com eles antes que vejam PresaAmarela,possofazê-losacreditarnaversãodela.PataCinzenta,esperenofreixomorto,ondesentimoscheirodesanguedos filhotes,atéqueumdenósretorne.Pata Cinzenta parecia preocupado. –Mas você acredita realmente que
PresaAmarelavaivoltarcomajuda?–murmurouparaPatadeFogo.–Vocêstêmdeacreditaremmim–grunhiuPresaAmarela.–Vouvoltar.PataCinzentaolhouparaPatadeFogo,queconcordoucomacabeça.Semmaisdizer,PresaAmarelapassoucorrendopelosdoisaprendizese
desapareceunosarbustos.–Seráquefizemosacoisacerta?–perguntouPataCinzenta.–Nãosei–PatadeFogoadmitiu.–Sefizemos,somosheróiseosfilhotes
estãosalvos.Seestivermoserrados,podemosnosconsiderarmortos.
PatadeFogocorreuatrásdapatrulha,pertodasamoreiras,passandoportojosenomeiodeurtigas.Atrilhaerafácildeseguir.Oszangadosfelinos
do Clã do Trovão não estavam tentando disfarçar sua presença noterritóriodoClãdasSombras.Nocéu,aespessacamadadenuvenstinhafinalmentesedissipado.Além
das copas das árvores, o Tule de Prata brilhava no céu noturno. A luaacabavadenascer,mas sua luz frianãopenetravanabrumaque tomavacontadavegetaçãosombria.PatadeFogoseconcentrounoodorquehaviaadiante.Sentiuocheirode
Nevasca.Voltouafarejar.GarradeTigrenãoestavacomeles.Correuparaalcançá-lose,detendo-sederepente,paroulogoatrásdobandodoClãdoTrovão.Os guerreiros se viraram e o olharam de forma penetrante, com a
pelagemarrepiadaeasorelhasagressivamenteabaixadas.RiscadeCarvãoestavacomeles,alémdajovemPelodeRatoedoguerreiromalhadoVentoVeloz. Pelo de Rato não era a única representante feminina na patrulha.PeledeSalgueirotambémestavalá.–PatadeFogo!–grunhiuNevasca.–Oqueestáfazendoaqui?Pata de Fogo arfou, procurando ar. – Estrela Azul me mandou! –
arquejou.–ElaqueriaqueeuencontrassePresaAmarelaantesde…Nevascaointerrompeu.–Ah!EstrelaAzuldissequeeupodiaencontrar
um amigo aqui. Agora compreendo o que ela quis dizer –miou, olhandointrigadoparaoaprendiz.–GarradeTigreestáporperto?–perguntouPatadeFogo,sentindoum
formigamentodeorgulhoquandoosgatostrocaramolhares.Nevasca olhou curiosamente para Pata de Fogo. – Estrela Azul insistiu
que era necessário ele ficar no acampamento para proteger os outrosfilhotes.Pata de Fogo logo entendeu, aliviado. Miou com urgência: – Nevasca,
preciso de sua ajuda. Posso levar você até os filhotes. Pata Cinzenta estáesperandopormim.Planejamosresgatá-losestanoite.Vocêsvêmconosco?–Claroquesim!–Osguerreirosagitaramascaudas,empolgados.–IssosignificaatacardesurpresaoacampamentodoClãdasSombras–
PatadeFogoadvertiu.–Vocêpodenosguiaratélá?–VentoVelozperguntou,ansioso.– Não, mas Presa Amarela pode. E ela prometeu trazer ajuda de seus
antigosaliadosnoacampamento.PeledeRatooencaroue,zangada,balançouacauda.–VocêachouPresa
Amarela?–sibilou.–Nãoestouentendendo–miouNevasca,confuso.–Atraidoravaiajudar
aresgatarosfilhotesqueroubou?Pata de Fogo respirou fundo para se acalmar e então, mirando
firmementeosolhosdeNevasca,explicou:–PresaAmarelanãoos levou.NemmatouFolhaManchada.Elaquernosajudararesgatarosfilhotes.Nevascadevolveu o olhar e pestanejou. –Vána frente, Pata de Fogo –
ordenou.
PataCinzentaestavaesperandopertodofreixo,andandosempararàvoltado tronco podre. Parou assim que viu a patrulha surgir da bruma eestremeceuosbigodesnumasaudação.–AlgumsinaldePresaAmarela?–perguntouPatadeFogo.–Aindanão–respondeuPataCinzenta.– Não sabemos qual é a distância para o acampamento do Clã das
Sombras–PatadeFogoapressou-seemdizer,aoverNevascaseretesaraseulado.–Elapodeestarvoltandonestemomento.–Oupodeestaralegrementetrocandolambidascomseuscamaradasdo
Clãdas Sombras enquanto ficamosaqui comobobosesperandopara cairnumaemboscada!–miouPataCinzenta.Nevasca observou os dois aprendizes. As orelhas do guerreiro se
mexiam,nervosas.–PatadeFogo?–cobrou.–Elavaivoltar–prometeuoaprendiz.– Disse-o bem, jovemPata de Fogo – Presa Amarela surgiu de trás do
freixoesentou-se.–Vocênãoéoúnicoqueconseguechegardemansinho,semninguémperceber–elamiouparaPatadeFogo.–Lembra-sedodiaemquenosconhecemos?Daquelavezvocêtambémestavaolhandoparaadireçãoerrada.Outros três felinos do Clã das Sombras saíram de trás da árvore e se
colocaramcalmamentedeambosos ladosdePresaAmarela.OsgatosdoClãdoTrovãosearrepiaram,alertasedesconfiados.Os gatos dos dois clãs se olharam em silêncio. Pata de Fogo estava
inquieto e desconfortável, sem saber direito o que fazer. Afinal, um dosfelinosdoClãdasSombras,umgatocinza,falou.Seucorpoeracompridoemagro,apelagemopaca.–Viemosparaajudá-los,nãoparalhesfazermal.Vocêsvieramporcausadosfilhotes;vamosajudararesgatá-los.
–Oquevocêsganhamcomisso?–perguntouNevasca,desconfiado.– Queremos ajuda para nos livrar de Estrela Partida. Ele quebrou o
códigodosguerreiroseoClãdasSombrasestásofrendo.–Entãoé simplesassim?–grunhiuVentoVeloz.–Bastachegarmosao
seuacampamento,pegarosfilhotes,matarseulíderevoltarparacasa.–Vocêsnãovãoencontrartantaresistênciaquantopensam–murmurou
ogatocinza.Presa Amarela se levantou. – Deixe-me apresentar-lhes meus velhos
amigos – elamiou, abrindo caminho entre os gatos do Clã das Sombras.Colocou-seàfrentedogatocinza.–EsteéPelodeCinzas,umdosanciãosdoclã.– Este éManto da Noite, um guerreiro que já era experiente antes de
EstrelaAfiadasermorto.–Eladeuumavoltaaoredordeumfelinopretomaltratado.–Eestaéumadasnossasrainhasmaisvelhas,NuvemdaAurora.Doisde
seusfilhotesmorreramaoexpulsaroClãdoVento.Nuvem da Aurora, uma pequena gatamalhada, cumprimentou-os com
ummiadoedisse:–Nãoqueroperdernenhumoutrofilhote.Nevascalambeurapidamenteopeitoparaabaixarapelagem.–Vê-seque
são guerreiros competentes, já que conseguiram nos alcançar sem quenotássemos.Massãosuficientes?PrecisamossaberoquevamosenfrentarquandoatacarmosoacampamentodoClãdasSombras.–Osvelhoseosdoentesestãoaospoucosmorrendodefome–miouPelo
deCinzas.–Asperdasentreosfilhotessãomaisdoquepodemossuportar.–Masseasituaçãoestátãoruim–disse,derepente,RiscadeCarvão–,
comooClãdasSombrastemdemonstradotantaforçaultimamente?EporqueEstrelaPartidacontinuacomolíder?–EstrelaPartidaestárodeadoporumpequenogrupodeguerreirosde
elite – respondeu Pelo de Cinzas. – São os que devemos temer, porquemorreriamporelesempestanejar.Osoutrosguerreirosobedecemàssuasordens apenas porque têm medo. Lutarão ao lado dele enquantoacreditarem que Estrela Partida vai vencer. Se acharem que vai serderrotado…– Vão lutar contra ele, não por ele! – Risca de Carvão completou,
indignado,afrasedoancião.–Quetipodelealdadeéessa?ApelagemdosfelinosdoClãdasSombrascomeçouaseeriçar.
– Nosso clã não foi sempre assim – interrompeu Presa Amarela. –Quando Estrela Afiada o liderava, éramos temidos por nossa força. Mas,naqueletempo,aforçavinhadocódigodosguerreirosedalealdadeaoclã,não demedo e desejo de sangue – A velha curandeira suspirou. – Se aomenosEstrelaAfiadativessevividomaistempo…– Como ele morreu? – perguntou Nevasca, curioso. – Houve muitos
boatosnasAssembleias,masninguémpareciasaberaocerto.Os olhos de Presa Amarela se nublaram de pesar. – Ele caiu numa
emboscadadeumapatrulhadeguerreirosdeoutroclã.Nevascaassentiucomummovimentodecabeça.–Éoqueamaioriados
gatos andava pensando. Realmente são tempos difíceis estes em que oslíderessãoatacadosnoescuro,nãonumabatalhaabertaehonrada.PatadeFogofranziuocenho,imaginandoprontamentediferentesplanos
deluta.–Háalgumapossibilidadedepegarmososfilhotessemalertartodooclã?–perguntou.NuvemdaAurorarespondeu:–Sãoguardadosdeperto.EstrelaPartida
está esperando que o Clã do Trovão tente resgatá-los. Vocês nãoconseguirãopegá-losemsegredo.Aúnicaesperançaéoataqueaberto.– Então devemos concentrar o ataque em Estrela Partida e em sua
segurançainterna–miouNevasca.PresaAmarelatinhaumasugestão.–OsguerreirosdoClãdasSombras
me levariam até o acampamento. Poderiam dizer que me capturaram.Precisamos ter certeza de que Estrela Partida e seus guerreiros estarãofora das tocas. A notícia da minha captura vai levá-los até a clareira.Quandoestiveremtodosacéuaberto,dareiosinalparaatacarem.Nevasca ficou em silêncio por um instante. Finalmente aquiesceu,
mostrando um semblante sério quando encarregou seus guerreiros doataque. – Muito bem, Presa Amarela – miou. – Por favor, leve-nos aoacampamentodoClãdasSombras.
CAPÍTULO24
PRESAAMARELA SE VIROU e entroupelas samambaias.Nevasca e os outros aseguiram.PatadeFogoformigavadeempolgação.Nãosentiaofrioúmidonoarejá
haviamuitotempoquenãopensavaemcansaço.Presa Amarela guiou-os até um pequeno vale rodeado por densa
vegetaçãoemostrouaentradaparaoacampamentodoClãdasSombras.Amassa trançada de amoreiras parecia muito diferente do túnel de tojosbem-feito que levava ao acampamento do Clã do Trovão. Os limites doacampamento estavam cheios de buracos e fendas; o fedor de carneputrefatavinhanadireçãodeles.–Vocêscomemcomidadecorvo?–sussurrouPataCinzenta,retorcendo
olábio.– Nossos guerreiros são treinados para atacar, não para caçar –
respondeuPelodeCinzas.–Comemosqualquercoisaqueencontramos.–ClãdoTrovão, escondam-senaquelamoitadeamoreirasali – sibilou
PresaAmarela. – Está cheia de cogumelos venenosos que vão encobrir oseucheiro.Esperemaquiatémeouviremchamar.Eladeuumpassopara trás, colocando-seno centrodogrupo, comose
fosse uma prisioneira, e deixou os outros gatos do Clã das Sombrasconduziremacaminhada.Rumaramparaoacampamentoemsilêncio.Os felinos do Clã do Trovão, tensos e alertas, se colocaram entre os
cogumelos. Pata de Fogo sentia a pelagem pinicar. Olhou para PataCinzenta,aseulado.Opeloespessonanucadoamigoestavadepé,ePatadeFogooouviaarfar,reprimindooentusiasmo.De repente, uma gritaria surgiu no acampamento do Clã das Sombras.
Semhesitar, os felinos do Clã doTrovão pularamde seus esconderijos ecorreramparaaentrada.Presa Amarela, Pelo de Cinzas, Nuvem da Aurora e Manto da Noite
estavamemumaclareiradechão lamacento, lutandocomseisguerreirosdeaparênciaterrível.PatadeFogoreconheceuentreelesEstrelaPartidaeseu representante, Pé Preto. Os guerreiros pareciam famintos e commarcas de batalha, mas Pata de Fogo via seus músculos fortes sob apelagemremendada.Àvoltadaclareira,reuniam-segruposdefelinosesquálidosqueolhavam
para o espetáculo de selvageria sem entender direito o que estavaacontecendo. Os corpos magros pareciam encolher diante da violência,enquanto seus olhos embaciados simplesmente observavam, chocados econfusos.Pelocantodoolho,PatadeFogoviuNarizMolhadorecuareseescondersobumarbusto.AosinaldeNevasca,osfelinosdoClãdoTrovãopularamparalutar.Pata de Fogo agarrou um gato prateado, mas o felino se sacudiu,
conseguindo se soltar. Pata de Fogo tropeçou e o guerreiro do Clã dasSombras partiu para cima dele, segurando-o com garras tão afiadas quepareciamespinhos.Eleconseguiusevirareafundarosdentesnacarnedoinimigo. O grito do guerreiro indicava que ele encontrara carne tenra, emordeuaindamais forte.Oguerreirovoltoua guinchar, soltando-se comviolênciaefugindoparaosarbustos.PatadeFogoficoudepé.UmjovemaprendizdoClãdasSombrassaltou
emcimadelevindodolimitedoacampamento,comsuapelagemmaciadefilhoteinflamadademedo.PatadeFogopôsasgarrasdeforaeojogoulongecomfacilidade.–Esta
briganãoésua–sibilou.NevascajátinhaimobilizadoPéPretonochãoemordeu-ocomvontade.
Ferido,orepresentantefugiunadireçãodaentradadoacampamentoedaliparaasegurançadafloresta.–PatadeFogo!–OaprendizouviuNuvemdaAuroragritarseunome.–
Cuidado! Cara Rasgada está… – Não ouviu o resto. Um gato marrom ecorpulento caiu em cima dele. Cara Rasgada! Pata de Fogo enterrou asgarrasno chão e girou o corpopara lutar.O guerreiro quematara FolhaManchada!Araivatomoucontadoaprendiz,quesejogouemcimadogatomarrom.PatadeFogoempurrouoguerreiroparaochãoeimprensousuacabeça
naterra.Cegopela fúria,preparou-separaenterrarosdentesnopescoçode Cara Rasgada. Mas, antes que pudesse desferir o golpe de morte,NevascaojogouparaoladoeagarrouoguerreirodoClãdasSombras.– Os guerreiros do Clã do Trovão não matam, a não ser que sejam
obrigados–grunhiunaorelhadePatadeFogo.–Apenasprecisamosquesaibamquenãodevemmaisapareceraqui!–Deuemumamordida ferozemCaraRasgada,quesaiugritandodoacampamento.Aindacomraiva,PatadeFogoolhoufuriosamenteàvolta.Osguerreiros
deEstrelaPartidatinhamidoembora.
Ouviu-se um uivo de fúria atrás de Pata Cinzenta, que deu um pulo eabriucaminho.PatadeFogoviuPresaAmarelaagarrandoEstrelaPartidacompatascheiasdelamaesangue.Ocorpodelesangravadeváriasferidas.Asorelhasestavamabaixadasnacabeçaeosbigodesrecolhidosparatrásquandoeleagachou,esmagadosobapegadapoderosadePresaAmarela.–Nuncapenseiqueseriamaisdifícilmatarvocêdoque foimatarmeu
pai!–elerosnou.PresaAmarelaseencolheucomosetivessesidopicadaporumaabelha,a
faceretorcida,derepente,porchoqueetristeza.Elarecolheuasgarrase,nomesmoinstante,girandoocorpomaciço,eleaarremessouparaolado.–VocêmatouEstrelaAfiada?–PresaAmarelalamuriou-se,comosolhos
arregalados,sempoderacreditar.Estrela Partida olhou-a friamente. – Você encontrou o corpo dele. Não
reconheceuminhapelagementreasgarras?PresaAmarelafitava-o,horrorizada.–Eleeraumlídercondescendentee
tolo.Mereciamorrer–continuouele.–Não – sibilou PresaAmarela, deixando cair a cabeça. Em seguida ela
estremeceu.OlhouparaEstrelaPartida,curvandoascostas.–EosfilhotesdeFlordeLuz?Tambémmereciammorrer?–perguntou,irritada.Estrela Partida grunhiu e se atirou sobre Presa Amarela, forçando sua
barrigano chão.A gatanemsequer tentou lutar contra as garras afiadascomo espinhos. Pata de Fogo, apavorado, viu que os olhos dela estavamembaçadosdetristeza.– Aqueles filhotes eram fracos – Estrela Partida sibilou, inclinando o
rostonadireçãodaorelhadePresaAmarela.–NãoteriamutilidadeparaoClãdasSombras.Seeunãoosmatasse,outroguerreiroofaria.Ouviu-se um lamento de tristeza de uma rainha malhada do Clã das
Sombras.EstrelaPartidaaignorou.–Eudeviatermatadovocêquandotiveoportunidade–disse,comraiva,paraPresaAmarela.–Talvezeutenhaumpoucodacondescendênciademeupai.Fuiumtolodedeixá-lasairvivadoClãdasSombras!–Elesejogouparaafrente,dentesàmostra,prontoparaenterrá-losnopescoçodagata.PatadeFogo foimaisrápido.PulounascostasdeEstrelaPartidaantes
que ele pudesse fechar as mandíbulas. Cravando as garras no peloemaranhadodoguerreiro,arrancou-odecimadarainhaexaustaeoatirounoslimitesdaclareira.EstrelaPartidagirounoareaterrissoudepé,encarandoPatadeFogo,
cuspindocomraiva.–Nãopercaseutempo,aprendiz!PartilheisonhoscomoClãdasEstrelas.Vocêterádemematarnovevezesantesqueeumereúnaaeles.Achamesmoqueéforteobastante?–Osolhosconfiantesbrilhavamemdesafio.PatadeFogodevolveuoolhar.Seuestômagosecontraiu.EstrelaPartida
era um líder de clã! Como podia o aprendiz esperar derrotá-lo? Mas osfelinos do Clã das Sombras, que a tudo observavam, tinham começado acaminharsembarulhoedevagarnadireçãodo lídervencido, rosnandoesibilandocomódio.Estavamarrasadosefamintos,masEstrelaPartidadeu-se conta de que estava em desvantagem numérica. Com ummovimentonervosodacauda,agachoueretrocedeupelosarbustos.Dassombras,seusolhosbrilhavamameaçadoramente,buscandoPatadeFogonamultidão.–Issonãoacabou,aprendiz–ciciouantesdeseviraresumirnafloresta
atrásdeseusguerreirosalquebrados.PatadeFogoolhouparaNevasca.–Devemosiratrásdeles?–miou.Oguerreirobalançouacabeça.–Achoqueentenderamamensagemde
quenãosãobem-vindos.MantodaNoite,oguerreirodoClãdasSombras,concordou.–Deixe-osir.
Seousaremmostraracaradenovo,oClãdasSombrasteráforçabastanteentãoparalidarcomelessozinho.Os demais felinos do Clã das Sombras se reuniram nas ruínas do
acampamento, prostrados ao perceberem que o líder se fora. Vai levartempoparareconstruiresseclã–pensouPatadeFogo.–Osfilhotes!PatadeFogoouviuPataCinzentamiaremumcantoafastadodaclareira.
Correu na direção do amigo, com Pelo de Rato e Nevasca em seuscalcanhares.Quandoseaproximaram,ouviramosmiadoslamurientosdosfilhotes vindos de sob uma pilha de folhas e galhos. Rapidamente, PataCinzentaePelodeRatovasculharamafolhagematédescobrirem,nofundodeumadepressãodoterreno,osfilhotesdesaparecidosdoClãdoTrovão.–Elesestãobem?–perguntouNevasca,abanandoacauda,ansioso.– Estão, sim – respondeu Pata Cinzenta. – A maioria tem apenas
pequenosarranhões.Masessefilhotemalhadotemumaferidaprofundanaorelha.Vocêpodeexaminar,PresaAmarela?A velha gata estava lambendo as próprias feridas, mas, ao ouvir o
chamado de Pata Cinzenta, correu para o lado do buraco onde o gatocuidadosamentecolocaraofilhote.
PatadeFogoajudouPataCinzentaaretirarosoutrosfilhotes.Oúltimoera uma gata cinza, como os vestígios de um fogo extinto. Elamiou e seretorceuquandoPatadeFogoacolocounochão.PelodeRatoreuniupertodelaosdemaisfilhotes,consolando-oscomlambidasecarinhos.PresaAmarela examinou bem a orelha rasgada. – Precisamos conter o
sangramento–miou.NarizMolhadosaiudassombras,comapatadianteiraenvoltaemuma
camada de teias de aranha, e entregou-as silenciosamente para PresaAmarela.Elaagradeceucomacabeçaecomeçouatrataromachucadodofilhote.MantodaNoiteaproximou-sedogrupodos felinosdoClãdoTrovão.–
VocêsajudaramoClãdasSombrasaselivrardeumlídercrueleperigoso;estamos agradecidos. Mas está na hora de abandonarem nossoacampamentoeretornaremaoseu.Prometoquesuaszonasdecaçaficarãolivres dos guerreiros do Clã das Sombras enquanto conseguirmosencontrarcomidasuficienteemnossoterritório.Nevascaaquiesceu.–Cacemempazporumalua,MantodaNoite.OClã
doTrovãosabequeprecisamdetempopararecomporseuclã.–Voltou-separaPresaAmarela.–Evocê,PresaAmarela?Quervoltarconoscoouficaraquicomseusvelhoscamaradas?Agataofitou.–Voltocomvocês.Olhouparaumcorteprofundonapata
traseira deNevasca. – Vão precisar de um curandeiro, para vocês e seusfilhotes.–Obrigado–ronronouNevasca.Comacauda,fezumsinalparaosfelinos
doClãdoTrovão,conduzindo-osparaforadaclareira.PelodeRatoePelede Salgueiro ajudaramos filhotes, que andavamaos tropeços, exaustos eassustados.PresaAmarela iaao ladodofilhotemalhado,erguendo-opelocangote sempre que escorregava. Pata de Fogo e Pata Cinzenta seguiamatrás. O cortejo atravessou as amoreiras, passou pela linha de cheiro doacampamentoerumouemdireçãoàfloresta.AluaaindaestavasurgindonocéutranquiloquandoogrupodoClãdo
Trovão começou a penosa caminhada de volta para casa; ao redor deles,montesdefolhasmarronsesvoaçavamnochãodafloresta.
CAPÍTULO25
ENCORAJADOS PELO ALÍVIO de voltar para casa, Pata de Fogo e Pata Cinzentacorreram na frente da patrulha em direção ao acampamento do Clã doTrovão. Pele de Geada estava deitada no meio da clareira, triste, com acabeça apoiada nas patas. Quando os dois aprendizes surgiram, elalevantou o nariz e farejou o ar. – Meus filhotes! – gritou. Levantou-sedepressaeultrapassouPatadeFogoePataCinzentaparaencontrarorestodogrupoquandosaíssemdotúnel.OsfilhotescorreramparaseaconchegaremPeledeGeada,queenroscou
nelesocorpomacioelambeuumaum,ronronandoalto.Presa Amarela parou na entrada do acampamento e observou em
silêncio.EstrelaAzul foiaoencontrodapatrulhaquevoltava.Olhouternamente
paraPeledeGeadaeseusfilhoteseentãotransferiuoolharparaNevasca:–Elesestãobem?–perguntou.–Estão,sim–miouNevasca.–Muitobem,Nevasca.RecebaashomenagensdoClãdoTrovão.Nevascainclinouacabeçaparaaceitaroelogioeacrescentou:–Masfoi
graçasaesseaprendizqueosencontramos.PatadeFogolevantouacabeçaeacaudacomorgulho,prontoparafalar,
mas ouviu-se o rosnado acusador de Garra de Tigre ressoando pelaclareira.–Porquetrouxeramdevoltaatraidora?–Oguerreiroaproximou-seda
patrulhadecididoepostou-seaoladodalíder.– Ela não é traidora – insistiu Pata de Fogo, olhando à volta do
acampamento. Os outros felinos haviam rapidamente se reunido naclareira para ver os filhotes e cumprimentar o grupo de caça. Alguns, aolocalizaremPresaAmarela,dirigiam-lheolharesdepuroódio.–ElamatouFolhaManchada!–disseRaboLongo,irado.–Vejamentre as garras de FolhaManchada – sugeriuPata Cinzenta. –
VãoencontrarapelagemmarromdeCaraRasgada,nãoapelagemcinzadePresaAmarela!Estrela Azul fez um sinal para Pele de Rato, que se distanciou da
multidão, correndo na direção do lugar onde jazia o corpo de FolhaManchada,queseriaenterradoaoamanhecer.Emmeioaumsilênciotenso,
oclãesperouqueelavoltasse.– Pata Cinzenta tem razão – dissePele deRato, arfando, ao retornar à
clareira.–FolhaManchadanãofoiatacadaporumgatocinza.Ummurmúriodesurpresapercorreuamultidão.–Masissonãosignificaquenãotenhaajudadoasequestrarosfilhotes!–
sibilouGarradeTigre.– Sem Presa Amarela jamais teríamos recuperado os filhotes! – disse
PatadeFogorispidamente, impacienteporcausadaexaustão.–Elasabiaque haviam sido levados por um guerreiro do Clã das Sombras. Estavaprocurando por eles quando a encontrei. Arriscou a vida voltando aoacampamento do Clã das Sombras. Foi dela o plano de batalha que noslevouaoacampamentoepermitiuquederrotássemosEstrelaPartida!OsfelinosouviramaspalavrasdePatadeFogoespantados.–Eleestácerto–Nevascamiou.–PresaAmarelaéaliada.–Ficofelizemouvirisso–murmurouEstrelaAzul,buscandooolharde
PatadeFogo.Omiado ansiosodePele deGeada soounamultidão. – Estrela Partida
estámorto?–Não,eleescapou–disseNevasca.–Masjamaisvoltaráa lideraroClã
dasSombras.PeledeGeadasuspiroualiviadaevoltouaaninharosfilhotes.NevascaolhouparaEstrelaAzul. –Prometi aoClãdas Sombrasqueos
deixaremos em paz até a próxima lua cheia – explicou. – A liderança deEstrelaPartidamergulhouoclãnocaos.EstrelaAzulconcordou:–Foiumaofertasábiaegenerosa.–A líderdo
ClãdoTrovãopassouporNevascaepelorestodapatrulha,aproximando-se de Presa Amarela. A gata abaixou os olhos quando Estrela Azul tocoucomofocinhosuapelagemcinzaeáspera.–PresaAmarela,queroquesubstituaFolhaManchadacomocurandeira
doClãdoTrovão–EstrelaAzulmiou.–Tenhocertezadequeencontrarásuafarmáciacomoeladeixou.Os outros felinos murmuravam entre si, agitando as caudas de
empolgação.PresaAmarelaolhouparaeles,ansiosa,enadadisse.Pele de Geada olhou de relance para as outras rainhas antes de fitar
PresaAmarelae,comvagar,acenoucomacabeça,emaprovação.PresaAmarelainclinou-serespeitosamenteparaagatabranca,antesde
sedirigiràsuanovalíder.–Obrigada,EstrelaAzul.OClãdasSombrasnãoémaisoclãqueconheci.OClãdoTrovãoéagoraomeuclã.PatadeFogosentiuumaondadesatisfaçãoaoverqueavelhagataque
ele passara a amar seria agora a curandeira de seu clã. Mas sua caudaabaixou quando ele compreendeu que jamais voltaria a ver FolhaManchadanaclareira,comapelagemmaciabrilhandoaosol,osolhoscordeâmbarcintilando,asaudá-lonachegada.–OndeestáPataNegra?–miouderepenteEstrelaAzul,sacudindoPata
deFogodesuaslembrançasagridoces.–Sim–GarradeTigremeteu-senaconversa.–Ondeestámeuaprendiz?
Éestranhoque tenhadesaparecido juntocomEstrelaPartida.–Deuumaolhadasignificativapeloclã.– Se acha que ele pode estar ajudando Estrela Partida – Pata de Fogo
mioudecidido–,estáenganado!GarradeTigreseretesou,comumbrilhoameaçadornosolhosamarelos.– Pata Negra está morto – continuou Pata de Fogo, deixando cair a
cabeça,comoseestivessepesadadetristeza.–EncontramosseucorponoterritóriodoClãdasSombras.Peloscheirosaoredor,devetersidomortoviolentamenteporumapatrulha.–OlhouparaEstrelaAzuleprometeu:–Voulhecontartudodepois.Presa Amarela disparou um olhar inquisidor a Pata de Fogo, que
retribuiu com um pedido silencioso para ela segurar a língua. A gataestremeceu rapidamente as orelhas, mostrando ter compreendido, edesviouoolhar.–NuncadissequePataNegra era traidor – sibilouGarradeTigre. Fez
umapausaepermitiuqueumaexpressãodepesar lhenublasseosolhosantesdevoltarasedirigiraorestantedoclã.–PataNegrapoderiatersidoumexcelenteguerreiro.Suamortetãoprematuraesuaperdaserásentidapormuitosdenósdurantemuitotempo.Palavras vãs!, pensouPatadeFogo comamargor.OquediriaGarrade
Tigre se soubesse quePataNegra estava a salvo,muito alémda floresta,caçandoratoscomCevada?EstrelaAzul quebrouo silêncio. – Sentiremos falta dePataNegra,mas
devemos pranteá-lo amanhã. Primeiro há um outro ritual que deve serrealizado, no qual sei que Pata Negra teria prazer em estar presente. –Virou-se para Pata de Fogo e Pata Cinzenta. – Vocês mostraram muitacoragemestanoite.Eleslutarambem,Nevasca?–perguntou.
–Comoguerreiros–respondeuNevasca,solene.OolhardeEstrelaAzulencontrouoolhardouradodoguerreiroeelafez
umligeirogesto.LevantouoqueixoefixouosolhosnafileiradeestrelasdoTuledePrata.Avozclaraepausadaseelevounaflorestasilenciosa:–Eu,EstrelaAzul, líderdoClãdoTrovão,conclamomeusancestraisguerreirospara que contemplem estes dois aprendizes. Eles treinaram arduamentepara compreender seu nobre código, e eu os entrego a vocês comoguerreiros.–OlhouparaPatadeFogoePataCinzenta,estreitandoosolhos.–PatadeFogo,PataCinzenta,prometemrespeitarocódigodosguerreirosedefenderesteclã,mesmoacustodesuasvidas?PatadeFogosentiualgumacoisaseagitardentrodele,umfogoqueardia
emsuabarrigaesoavaemseusouvidos.Derepenteentendeuquetudoquefizera pelo clã até então – todas as presas que perseguira, todos osguerreiros inimigos com quem lutara – convergia para aquele únicomomento.–Prometo–respondeucomavozfirme.– Prometo – disse também Pata Cinzenta, empolgado, com a pelagem
eriçada.–Então,pelospoderesdoClãdasEstrelas,douavocês seusnomesde
guerreiros. Pata Cinzenta, a partir de agora você será conhecido comoListraCinzenta.OClãdasEstrelashomenageia suabravura e sua força enós lhe damos as boas-vindas como um guerreiro do Clã do Trovão. –EstrelaAzuldeuumpassoàfrenteerepousouofocinhonoaltodacabeçainclinada de Listra Cinzenta. Ele abaixou-se ainda mais para lamberrespeitosamenteoombrodalíder;depoisseaprumouefoisereunircomosoutrosguerreiros.EstrelaAzulselevantoueobservouPatadeFogoporummomentoantes
defalar.–PatadeFogo,apartirdestemomentovocêseráconhecidocomoCoraçãodeFogo.OClãdasEstrelashomenageiasuabravuraesuaforçaenóslhedamosasboas-vindascomoumguerreirodoClãdoTrovão.–Elatocou-lhea cabeça como focinhoemurmurou: –CoraçãodeFogo, estouorgulhosadetê-locomomeuguerreiro.Sirvabemaoseuclã,meujovem.OsmúsculosdeCoraçãodeFogotremiamtantoqueelemalconseguiuse
inclinar para lamber o ombro de Estrela Azul. Ronronou, rouco, paramostrar sua gratidão; então, deslizou para se colocar ao lado de ListraCinzenta.Miados de homenagem soaram na multidão, e as vozes do clã se
elevaramnoarcalmodanoiteparacantarosnomesdosnovosguerreiros.
CoraçãodeFogo!ListraCinzenta!CoraçãodeFogo!ListraCinzenta!CoraçãodeFogoolhouparaosgatosdoclã,vendorostosquetinhamse
tornadotãofamiliaresnasúltimasluas.Eleosouviuchamarseunomeesesentiu inundado pela bondade e pelo respeito que viu brilhar em seusolhos.– Já é quase lua alta – miou Estrela Azul. – Pela tradição dos nossos
ancestrais, Coração de Fogo e Listra Cinzenta devem ficar em vigíliasilenciosaatéoamanhecere,sozinhos,guardaroacampamentoenquantodormimos.Coração de Fogo e Listra Cinzenta concordaram solenemente com um
aceno.Quandoorestodoclãcomeçouasedissipar,voltandoàstocas,Garrade
TigrepassoubruscamenteporCoraçãodeFogo,dizendobaixinhoemseuouvido: – Não pense que podeme vencer pela astúcia, gatinho de gente.CuidadocomoquevaidizeraEstrelaAzul.UmarrepiogeladodesceupelaespinhadeCoraçãodeFogo.EstrelaAzul
precisavasabersobreatraiçãodeGarradeTigre!QuandoGarradeTigreretornouàtocadosguerreiros,CoraçãodeFogo
deixouListraCinzentasozinhonaclareiraefoiprocuraralíder.Elaestavadoladodeforadatoca.–EstrelaAzul,seiqueestouquebrandoovotodesilêncio,masprecisofalarcomvocêantesdeiniciaravigília.EstrelaAzuloolhouebalançouacabeça.–Esteéumritualimportante,
CoraçãodeFogo.Falecomigopelamanhã.CoraçãodeFogoaquiesceucomumainclinaçãoprofundadecabeça.De
qualquer forma, Garra de Tigre não representava um problema quepudesseserresolvidoemumanoite.VoltouparaoladodeListraCinzentanomeiodaclareira.Osdoisamigostrocaramolhares,masnadadisseram.CoraçãodeFogoolhouparaaluanocéu.Seupelolaranjabrilhavacomo
prata no luar frio. À sua volta, arbustos e árvores estavam envoltos nabrumaquedeixavaapelagemúmida.CoraçãodeFogofechouosolhoseselembroudos sonhosque tinhana infância.Os cheirosda floresta fria emsuas narinas agora eram reais, e a vida de guerreiro se estendia à suafrente.Sentiuumaalegriaenormesurgirdaspatasepercorrer-lheocorpo.Então abriu os olhos comuma sacudida.Outropar de olhos brilhava emsuadireção,umbrilhoquevinhadatocadosguerreiros.GarradeTigre!Coração de Fogo devolveu o olhar sem piscar. Agora, ele era um
guerreiro.Tinhaum inimigono representantedoclã,masGarradeTigretinha nele um inimigo também. Coração de Fogo não era mais o jovemingênuoque se juntaraao clãalgumas luasatrás.Eramaioremais forte,maisrápidoemaissábio.SeestavadestinadoaseoporaGarradeTigre,quefosse.CoraçãodeFogoestavaprontoparaodesafio.
CONTINUA