Coelho (2000) Cap4

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H67399 História de Portugal / José Mattoso… [et al]; José Tengarrinha, organizador. -- Bauru, SP : EDUSC ; São Paulo, SP : UNESP; Portugal, PO : Instituto Camões, 2000. 371p.; 23cm. -- (Coleção História) > ISBN UNESP 85-7139-278-0 ISBN EDUSC 85-7460-010-5 1. Portugal - História. I. Mattoso, José. II. Tengarrinha, José. III. Título. IV. Série. CDD 946.9 Copyright © 2000 EDUSC Direitos de publicação reservados à: Editora da Universidade do Sagrado Coração (EDUSC) Rua Irmã Arminda, 10-50 17044-160 – Bauru – SP Tel.: (0xx14) 235-7111 Fax: (0xx14) 235-7219 Home page: www.usc.br E-mail: [email protected] Fundação Editora da UNESP Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 232-7171 Fax: (0xx11) 232-7172 Home page: www.editora.unesp.br E-mail: [email protected] Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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H67399História de Portugal / José Mattoso… [et

al]; José Tengarrinha, organizador. --Bauru, SP : EDUSC ; São Paulo, SP : UNESP;Portugal, PO : Instituto Camões, 2000.371p.; 23cm. -- (Coleção História)

>ISBN UNESP 85-7139-278-0ISBN EDUSC 85-7460-010-5

1. Portugal - História. I. Mattoso, José.II. Tengarrinha, José. III. Título. IV. Série.

CDD 946.9

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NAVEGAÇÃO, COMÉRCIO E CONQUISTA

No discurso histórico, aquilo que designamos e explicamos comoacontecido escapa-se pelas malhas da teia explicativa, esconde-se por trásde cada palavra, a da época, que não comporta exatamente os significa-dos de hoje, e as de hoje, ainda que com o mesmo som, que somam no-vos conteúdos aos conteúdos de outrora. Para nos aproximarmos dos ve-lhos conceitos temos que iluminar e vencer a resistência das palavras, vi-vidas em tempos diferentes, e com palavras antigas e novas lançar denovo a teia que prenda as relações dos acontecimentos.

Em substância, o passado é apreendido com conceitos que hoje re-cuperamos e novamente fabricamos. Estes novos conceitos permitem li-gar logicamente o passado ao presente e a sua legitimidade provém da lo-calização inevitável no atual do falante ou escrevente. Só que este nãopode retirar da mesa de jogo do discurso as cartas legadas pelo passadocom as suas figuras e sentido.

Vem esta fala a propósito do movimento social, protagonizado peloseuropeus, iniciado no século XV pelos portugueses, seguidos pelos outrosibéricos, e voltado para a exploração dos vários continentes. Este movi-mento tem recebido diferentes designações. Assim, enquanto o rei D. Ma-nuel de Portugal, como é sabido, se intitulava “rei de Portugal e dos Algar-ves daquém e dalém mar em África, senhor da Guiné, da navegação, co-mércio e conquista de Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”, os vocábulos queneste século passaram a designar esse prodigioso movimento coletivo fo-ram descobrimentos, expansão, evangelização, império, encontro de civi-lizações, dialética do outro e do mesmo, civilizar, esclavagismo, colonialis-mo, construção de novas nações e países, tempo da descoberta do nu e dasvergonhas, passagem do particular ao universal, que sei eu, ou, tendo emconta o objeto, além-mar, ultramar, nosso mar, colônias ou, colocando-nos no nível dos impulsos, espírito de cruzada, fome do ouro e das rique-zas, estratégia planetária antimuçulmana e antiturca, morrer pela fé.

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capítulo 4

OS ARGONAUTAS PORTUGUESESE O SEU VELO DE OURO(SÉCULOS XV-XVI)

Antônio Borges Coelho*

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A palavra invasão, usada correntemente a propósito da expansãodos povos asiáticos – invasão dos bárbaros, dos árabes, dos mongóis e dosturcos ou então invasões francesas–, nunca foi usada na primeira expan-são européia. E se nos séculos XV e sobretudo XVI não faltaram invasõesno sentido de entradas violentas com ocupação de território, na verdade,o estabelecimento dos portugueses no Oriente não envolveu a ocupaçãoem massa de territórios e das suas gentes.

A lista dos vocábulos não está fechada. E na sua escolha, perfilam-se os rostos da diferença, a espada e o punhal do combate ideológico. Porexemplo, os evangelizadores estremecem quando ouvem falar na fomedo ouro e das riquezas ou porventura na descoberta do nu e das vergo-nhas. Pelo seu lado, o colonizador e o colonizado entreolham-se descon-fiados por trás das palavras. O colonizador não se revê, em geral, no co-lonialismo e faz orelhas moucas ao esclavagismo e o ex-colonizado temaversão ao termo descobrimentos. Esconjuram-se as contradições sociais,mas enaltece-se a dialética do outro e do mesmo. O termo civilizar é umresto à mercê do caixote do lixo da História mas que alguns gostariam dever recuperado. A expressão encontro de culturas, encontro real, permi-te aplacar as consciências sensíveis, mas o encontro envolveu sempreconfronto e também destruição de culturas.

Durante alguns séculos, os territórios extra-europeus dominadospelos portugueses foram designados como Conquistas. João de Barrosusou freqüentemente a expressão Descobrimentos e Conquistas. Os títu-los do rei D. Manuel, atrás evocados, indicam a intenção e uma práticapolítica, comercial e militar embora a realidade ultrapasse o ditado dasbandeiras. A intenção aparece de rosto descoberto mas os escreventes jus-tificam-na desde logo pela missão divina de dilatar a fé, mesmo quandoela é recusada de armas na mão.

Antes da segunda viagem de Vasco da Gama, houve pareceres demuita dúvida sobre se seria proveitosa uma conquista tão remota e detantos perigos. E aos que aduziam o argumento ideológico de propagaçãoda fé, respondiam os contraventores: como se podia esperar que os povosasiáticos aceitassem “a nossa doutrina, ainda que católica fosse, por sercom mão armada e não por boca de apóstolos, mas de homens sujeitosmais a seus particulares proveitos que à salvação daquele povo gentio?”1

Na expansão portuguesa houve de tudo um pouco: descobrimen-tos, em absoluto, e não apenas para os europeus, de novas terras, novosmares, novas estrelas, como diria Pedro Nunes, e viagens de descobri-mento; evangelização com mão armada e também com martírio e novosmétodos lingüísticos; transfega e troca de riquezas, de idéias, de técnicas,de animais e de plantas; guerra e paz armada com violência extrema detodas as partes; fome de honra; coragem para além do que pode a força

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humana; altruísmo, sacrifício; antropofagia no limite e recusa dela; trocade idéias, de cerimônias, de vocábulos; confronto de culturas.

Enquanto a Europa mergulhava em intermináveis guerras de podersob bandeiras religiosas, o que fazia correr então os portugueses? A fomedo ouro e das riquezas, o cheiro da canela, a fama, o medo com as suascorreias de obediência, a ânsia de poder, a fé em Deus, essencial para es-conjurar os demônios e a morte e para o perdão dos horrorosos pecados,o espírito de aventura, o desejo de ir mais além, o apelo do desconhecido.

Tudo isso e muito mais impulsionou a corrida. Mas se quisermostomar o velo de oiro dos novos argonautas teremos que dourar a talha,adoçar o açúcar, iluminar o dorso dos escravos ou a beleza das escravas,espirrar com a pimenta e as especiarias, fazer cintilar as pedras preciosas.As crenças, a coragem e o medo constituíam o ser, a própria armadurados sujeitos mas evidentemente cercavam e penetravam as coisas, conde-navam e absolviam as ações.

Não é possível desatar os nós, todos os fios estão ligados. Mas semas estradas que o comércio e o dinheiro abriam, sem as descobertas naconstrução naval e na arte de navegar, sem a riqueza acumulada para pa-gar os navios, as mercadorias, as armas, os mantimentos, o soldo, que fa-ria o desejo e a vontade? Fazia-se ao mar mas não navegava e a fé sosso-brava nas primeiras braçadas.

Tomei o ditado: Navegação, Comércio e Conquista. É a bandeira ma-nuelina. Houve navegação, fantástica, guiada pelos instrumentos que me-diam o Sol e as estrelas. Houve comércio, desigual, com monopólios e sucu-lentas presas. Houve conquistas, nunca concluídas, de cidades, de territórios.

Por que não escolher o termo Descobrimentos? Para não tomar aparte pelo todo. E a palavra Expansão? É operacional, um vocábulo con-tinente, vaso, utensílio que pode transportar sem afetar significativamen-te os diferentes conteúdos.

CARAVELAS E FALCÕES

A expansão portuguesa dos séculos XV a XVIII, a tal do comércio edas conquistas, com descoberta de caminhos marítimos, desce da terrapara o mar e olha depois do mar para a terra. Um olhar espantado e ino-cente: “nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar as vergonhas”e têm “nisto tanta inocência como têm em mostrar o rosto”, escrevia PeroVaz de Caminha. Um olhar de milhafre: “Senhor, os veludos de Meca eáguas rosadas dos caixões, que aqui te trazem, – dizia um magnate de Ben-gala – roubam os portugueses pelo mar, tomando os peregrinos que vãopara a santa casa de Meca; e são ladrões mui subtis, que entram nas terras

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com mercadorias a vender e comprar, e dádivas de amizades, andam es-piando as terras e gentes, e depois com gente armada as vão tomar, ma-tando e queimando, e fazendo tais males que ficam senhores das terras”.2

A expansão grega teve um suporte marítimo e de algum modo aromana. Marítima é a expansão dos normandos. Mas na expansão euro-péia, iniciada com os portugueses no século XV, a que abre os mares douniverso, os navios são o veículo, a casa, a fortaleza, o templo, a oficina,a tenda e o armazém das mercadorias e da pólvora, o tronco dos escra-vos, o porta-navios, o caixão.

Os portugueses não se deslocam como horda nem se organizamcomo legião. No desfraldar das velas, os seus navios lembram aves de ra-pina prestes a cair sobre a presa. Quando os azenegues viram os primei-ros navios portugueses, julgaram, no dizer de Cadamosto, que eram enor-mes pássaros de asas brancas; outros diziam que eram fantasmas que pelanoite navegavam 100 milhas e mais. Os olhos pintados na proa eram ver-dadeiros, viam e guiavam os navios na noite e no dia do Oceano.

A expansão portuguesa envolveu milhares de navios de comércioe de guerra. Saíram da Ribeira de Lisboa, da Outra Banda, do Porto, doAlgarve, de Cochim, de Goa, de Malaca, do Salvador. A sua constituiçãoe formas desiguais ficaram assinaladas na galeria dos nomes: barca, bari-nel, batel, bergantim, caravela, caravelão, carraca, catur, esquife, fusta,galé, galeaça, galeão, galeota, junco, nau, patacho, taforeia, urca, zavra…

A caravela, navio de vela latina e pequeno calado, constituiu aembarcação por excelência da exploração e descoberta do Atlântico. Etambém o navio rápido próprio para levar e trazer informações. Enquan-to uma nau da carreira da Índia demorava cerca de 6 meses na viagemde ida, em 1516 a caravela de Diogo de Unhos gastou menos de 6 mesesna ida e no regresso. A caravela serviu também como navio de guerra.Comboiava as pesadas naus da Índia e da América na fase final da via-gem rumo à costa portuguesa. Uma caravela da Índia, na primeira me-tade do século XVI, podia dispor de 21 tripulantes, assim distribuídos se-gundo a ordem dos vencimentos: o capitão, o bombardeiro, o mestre epiloto, o carpinteiro, o calafate, o escrivão, o barbeiro, o tanoeiro e osdois homens do capitão, os quatro marinheiros e os sete grumetes. Obombardeiro ultrapassava o vencimento do piloto marcando bem o pa-pel essencial da artilharia.3

A nau, navio de carga armado, passou dos 120 tonéis da nau S. Ga-briel de Vasco da Gama para 450 e até mil tonéis do final do século XVI.No seu bojo carregaram os portugueses para Ocidente muitas riquezas daÍndia. O valor da carga podia atingir os 3 milhões de cruzados ouro. A nauFlor de la Mar em que D. Francisco de Almeida combateu na batalha deDiu haveria de morrer sepultando consigo nas águas de Samatra as gulo-sas riquezas colhidas por Afonso de Albuquerque na tomada de Malaca.

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O galeão era um vaso de guerra também usado em transportecomo o galeão grande S. João que naufragou próximo do Cabo da BoaEsperança. Mais comprido, de menor calado e portanto mais veloz que anau, dispunha de um temível poder de fogo. Por exemplo, o galeão S. Di-nis, de trezentos tonéis, construído na Índia pelo governador Diogo LopesSequeira (1518-1521), comportava 71 peças de artilharia, a saber 21 ca-melos debaixo da ponte, 12 por banda, 2 por popa, 4 na tolda, 2 sobre operpau e 4 na ponte e ainda 9 falções e 20 berços, enquanto em 1525 Co-chim dispunha de 286 peças de artilharia, Goa de 188, Malaca de 1666.4

A expansão marítima dos portugueses e europeus promoveu emtodos os mares combates e ferozes guerras marítimas. Os seus navios le-varam aos pontos mais distantes do globo o espantoso ribombar da arti-lharia. Esta tomava formas várias, adaptadas aos diferentes fins. Os pe-dreiros lançavam balas de pedra para bater obstáculos a curtas distâncias;em batalhas navais ou de sítio, os canhões atiravam balas de ferro fundi-do de intenso poder perfurante; e as colubrinas, de tubo comprido, ba-tiam objetivos a maiores distâncias. Peças de arte em bronze, semeadorasda morte, receberam nomes estranhos como se os nomes aumentassem acarga da pólvora e do medo: selvagem, camelo, camelete (pedreiros); águia,serpe, espera, meia-espera (canhões); aspre, sagre, moirana, falcão, falco-nete, esmeril; e berços ou falcões mais pequenos.5

OS NAVEGANTES

O grosso da população das naus da Carreira da Índia era constituí-da por mareantes e militares e também por pequenos núcleos de merca-dores profissionais e de religiosos. Os militares podiam virar marinheirose os marinheiros soldados bem como os mercadores e os clérigos. Nos na-vios de menor tonelagem que cruzavam o Atlântico eram poucos os mi-litares, mais os passageiros.

Não faltaram meninos na aprendizagem da vida como AntônioCorreia, filho do feitor Aires Correia, assassinado em Calecut. São raras asmulheres. Na terceira viagem de Vasco da Gama embarcaram algumas àsescondidas. Luís de Camões, numa das suas cartas, convida as mulheresde vida fácil a tentarem na Índia a sua sorte. E havia sempre as órfãs del-rei exportadas para os vários pontos do império.

Nas viagens de regresso não faltavam as escravas. Senhoras, pou-cas mas algumas. D. Leonor, mulher de Manuel de Sousa Sepúlveda,naufraga no Cabo da Boa Esperança. E quando os negros lhe tiraram aroupa por força, cobriu-se com os longos cabelos e a areia da cova queabriu para enterrar viva a nudez.

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O capitão do navio assumia o comando supremo da comunidadenavegante e do corpo militar. Mas o responsável pela navegação era opiloto, assessorado pelo mestre na direção da equipagem. O piloto eranão só o responsável máximo pela segurança do navio, o técnico quemedia, numa manobra complexa, o seu avanço diário, como o investi-gador empírico continuamente registando os acidentes e acontecimen-tos que fugiam à norma. As suas observações podiam ser discutidas emterra por cientistas como Pedro Nunes. Outras vezes eram os cientistasque se faziam ao mar como José Vizinho, Duarte Pacheco ou o futurovice-rei D. João de Castro.

O corpo militar atuava no mar e na terra mas a sua base e retaguar-da estava no mar. As espadas e lanças dos capitães e escudeiros continua-vam a rasgar as carnes e a aparar os golpes mas, na milícia marítima e dedesembarque, incorporavam-se em ritmo crescente corpos especializadosno manuseio das armas de fogo. Os besteiros, numerosos nos primeirosanos, são ultrapassados pelos espingardeiros e o pequeno corpo de bombar-deiros. Os ferreiros, os calafates, os tanoeiros constituíam tropas auxiliaresque a todo o momento podiam integrar a primeira linha de combate.

Na armada que em 1525 patrulhou a costa do Malabar teriam en-trado 2.181 homens assim distribuídos: homens do mar 451; homens dearmas 1.254; trombetas 18; ferreiros portugueses 30; carpinteiros portu-gueses da Ribeira 23; calafates portugueses 36; tanoeiros 15; espingardei-ros de número 204; bombardeiros 150.6

Pouco depois, em 1531, na ilha de Bombaim, o governador Nunoda Cunha fez alarde da armada que se dirigia a Baçaim e a Diu, a maiorque se juntou na Índia. Contaram-se 400 velas, entre elas 5 juncos, 8naus do reino, 14 galeões, 2 galeaças, 12 galés reais, 16 galeotas e mais228 embarcações a vela e remo bergantins, fustas e catures, sem contaras naus, zambucos e cotias de taberneiros da gente da terra. Os comba-tentes somavam mais de 3.560 homens de armas portugueses a que sejuntavam 2 mil combatentes malabares e canarins de Goa e 8 mil escra-vos de peleja. Os espingardeiros subiam a mais de 3 mil. Aos combaten-tes juntavam-se os homens do mar, avaliados em mais de 1.450 portu-gueses com pilotos e mestres e 4 mil marinheiros da terra remeiros, foraos mareantes dos juncos que passavam de 800. Somando as mulheres ca-sadas e solteiras e a gente que ia com suas mercadorias e mantimentos avender passavam de 30 mil almas.7

Ao lado dos homens de espada e lança, protegidos por armadura de ma-lha e aço, com as armas transportadas por escravos guerreiros, perfilavam-se oshomens da artilharia, espingardeiros e bombardeiros. Os espingardeiros ganha-vam importância crescente. Por outro lado, milhares de combatentes malaba-res morriam lutando sob a bandeira do rei de Portugal. E também os escravos.

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Na batalha de Diu, D. Francisco de Almeida esforçou os “valentesescravos que ajudam seus senhores pelejando”. E prometeu-lhes que semorressem no combate seriam pagos a seus donos a 50 cruzados; se fi-cassem vivos e obtivessem nesse ano a alforria, obteriam as liberdadesde escudeiros; se ficassem aleijados e não pudessem servir, seriam pagoscomo os mortos; se ainda pudessem servir, valeriam 20 cruzados paraos seus donos.8

Também na armada, atrás referida, para Baçaim e Diu, o governa-dor Nuno da Cunha ordenou aos capitães que, quando desembarcassempara o combate, quem tivesse escravo homem que o levasse consigo, paradesembarcá-lo e ajudá-lo a levar suas armas e seu almoço, e para que, seo ferissem, o ajudassem a levá-lo e a curá-lo.9

A morte era uma visita diária. Manuel de Lima escrevia em 1533ao rei que já lhe tinham morrido quinze criados de seu pai. Gente com esem nome ia ao encontro da fortuna e com a salvação e perdição das al-mas e em todo o lado encontrava a morte: o bispo Pero Sardinha mortoe devorado pelos índios junto do rio Cururipe; D. Francisco de Almeidano Cabo da Boa Esperança; o marechal Fernando Coutinho no palácio doSamorim; Jerônimo de Lima na segunda conquista de Goa. Jerônimomorreu esvaído em sangue encostado a um muro da cidade. E incitava oirmão João de Lima que viera em seu socorro: “Adiante, senhor irmão,não é tempo de deter que eu em meu lugar fico”.10

BASES E FORTALEZAS

Os navios dos argonautas portugueses necessitavam de bases, an-seavam por terra. Para tratar das feridas, para satisfazer a fome física e se-xual, para renovar os navios e os abastecimentos, para firmar os pés e re-clinar a cabeça sem o balanço das ondas e a ameaça de corte pelas espa-das inimigas, para ligar o ponto de chegada ao ponto de partida.

A expansão portuguesa avançava marcando no espaço as bases e asfortalezas: Ceuta, Alcácer, Tânger, Arzila, Madeira, Açores, Canárias, Ar-guim, Cabo Verde no Mediterrâneo Atlântico; Axém, S. Jorge da Mina, S.Tomé, Luanda, Fernando de Noronha, Pernambuco, Salvador no Atlânti-co Central e Sul; Moçambique, Quíloa, Socotorá, Cochim, Goa, Cananor,Chaúl, Ormuz, Baçaim, Diu, Ceilão, Malaca, Ternate, Macau e tantas ou-tras nos mares orientais.

Se iluminarmos o espaço pela coordenada tempo, num primeiromomento, no designado período henriquino, assistimos à conquista doque Pierre Chaunu chamou Mediterrâneo Atlântico balizado pelos seusarquipélagos. Num segundo período, que se dilata até o final do século

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XV, as caravelas e outros navios prosseguem a conquista do AtlânticoCentral e Sul, conquista do mar que a terra era só lugar do trato e do sal-to dos escravos, atingem a face americana do Atlântico e sulcam as pri-meiras águas do Índico. Na primeira metade do século XVI, lançam os pri-meiros fundamentos do Brasil, sulcam trovejando as águas do Índico,alargam-se aos mares da Ásia e da Oceania.

Algumas destas bases, as das ilhas atlânticas, a imensidão do Brasiltornam-se terras de colonização, de liberdade e refúgio para os europeusque as demandavam e purgatório de mulatos e inferno de negros, usan-do as palavras de Francisco Manuel de Melo. Quanto ao império asiático,é um colar de cidades da beira-mar, com terra firme só em Baçaim, Goae durante algum tempo boa parte de Ceilão.

Muitas das fortalezas estão ainda hoje marcadas no terreno. EmCeuta, Tânger, Arzila, na espantosa Mazagão. Safim era rodeada por 75torres pelo sertão e mais oito pelo mar. Em S. Jorge da Mina, levaram-seas pedras aparelhadas de Lisboa. Foi só montar a fortaleza ao abrigo dasespingardas. Na fortaleza de Malaca, Francisco de Albuquerque usou pe-dras de cantaria retiradas da mesquita grande e das mesquitas pequenase as pedras tumulares dos muçulmanos. Os alicerces da torre de mena-gem tinham vinte pés de largo e os alicerces da fortaleza, assente na ro-cha viva, doze pés. Nos cantos, ergueram-se torres quadradas que corriamno andar do muro. A torre de menagem media, até o primeiro sobrado,vinte pés, até o segundo, quinze, até o terceiro, doze e até o último so-brado, oito pés. Assente nas pedras das crenças muçulmanas, a torre demenagem ficava sobre a praia e podia varejar com a artilharia o outeiroque lhe ficava defronte.11

FUNDAMENTOS E MODELOS

Desde cedo, pescadores e marinheiros dos navios mercantes portu-gueses dominaram a sua plataforma marítima. E a primeira iniciativa noAtlântico em direção ao sul surgiu em 1340 com a expedição luso-caste-lhana-italiana às Canárias de que o escritor Boccaccio nos deixou um im-pressivo testemunho.

Mas o arranque da expansão portuguesa ocorre com a conquista deCeuta em 1415. Aparentemente o impulso é ainda o da Reconquista masas diferenças estão à vista. A conquista de Ceuta envolve a mobilizaçãode uma frota européia e, para lá do exército dos nobres, o entusiasmo deum exército dos concelhos, em particular do de Lisboa e do Porto e a par-ticipação, à sua custa, de alguns mercadores italianos e ingleses.

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Depois, a manutenção da praça e a necessidade de prover a sua de-fesa promoveram desde logo a criação de uma direção político-militar emsolo nacional, voltada para o mar e que a todo o momento mobilizava osrecursos marítimos. Com o passar do tempo, esta direção consolida-secomo a cabeça organizadora e centralizadora de frutuosas operações cor-sárias no Estreito de Gibraltar e também da redescoberta das ilhas atlânti-cas e do seu povoamento, de novas conquistas em Marrocos e de viagensde corso e descobrimento na costa africana para lá do Cabo Bojador.

Entretanto, ao longo do século XV, foram-se definindo os modelosque a expansão portuguesa iria desenvolver nos séculos XVI e XVII.

O primeiro modelo encontrou na conquista e conservação de Ceu-ta e das outras praças marroquinas as linhas definidoras. À primeira vistaparece inserir-se, como dissemos, nos velhos passos da Reconquista: con-quista de terras, de homens e de riquezas. Mas a novidade está no papelcrescente do território marítimo. O socorro e a proteção das praças con-quistadas estão no mar. E o mar é defendido pelas fortalezas. A tentativade conquista das Canárias e as primeiras viagens de assalto às costas paralá do Bojador são ainda operações de guerra, de conquista e de saque.

O segundo caminho rasga-se com a colonização da Madeira e dosAçores. Inicialmente esta colonização assentou em terra livre com o sóencargo da dízima a Deus e organizada na pequena exploração campone-sa ou na média com trabalho assalariado dos braceiros e a introdução dotrabalho escravo.

O terceiro caminho definiu-se com o estabelecimento da feitoria ecastelo de Arguim e da feitoria e castelo de S. Jorge da Mina. Protegidaspor fortalezas, erguidas em ilhas ou cabos facilmente defensáveis porquem dominava o mar, as feitorias assumiam o exclusivo do trato. Maistarde na Índia este modelo dará lugar a uma rede de alfândegas, protegi-das por cidades e fortalezas, que sangram uma parte significativa do co-mércio marítimo asiático.

RESERVA DO MUNDO A “DESCOBRIR”

Do ponto de vista diplomático e político, o principal acontecimen-to do século XV, no que se refere à expansão portuguesa, é o estabeleci-mento da primeira reserva do mundo descoberto e por descobrir, reservaafeta em exclusivo aos portugueses pela bula Romanus Pontifex, de 8 de ja-neiro de 1455, e alargada aos ibéricos pelo Tratado de Tordesilhas de 1494.

Na citada bula, o papa Nicolau V fundamenta a atribuição aos por-tugueses da reserva da navegação para lá dos Cabos Não e Bojador, prote-gendo-a com os raios eclesiásticos, alegando os grandes trabalhos, pre-

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juízos e despesas do Infante D. Henrique e do rei de Portugal. Havia 25anos que enviavam navios ligeiros, a que chamam caravelas, com gen-tes desses reinos e províncias marítimas a demandar as bandas meridio-nais e o polo antártico. Muitos guinéus e outros negros, tomados por for-ça e alguns também por troca de mercadorias não–proibidas, foram leva-dos para os ditos reinos onde em grande número foram convertidos à fécatólica.

A reserva de navegar, conquistar, comerciar é instituída em regimede monopólio henriquino-régio. Tal exclusivo não significava que só osnavios do infante ou do rei pudessem navegar e comerciar nessas para-gens. No essencial, o monopólio garantia a cobrança do quinto das mer-cadorias pela Ordem de Cristo, de que o infante era o governador, e re-servava a navegação e o comércio para essa área do globo para aqueles aquem, mediante contrapartidas materiais, fosse dada licença, em primei-ro lugar aos escudeiros e mercadores ligados à casa senhorial henriquina.

No final da vida, em 26 de dezembro de 1457, o Infante D. Henri-que reúne em Tomar o cabido da Ordem de Cristo e faz o balanço, escri-to na primeira pessoa, dos primórdios da expansão marítima:

Os trabalhos dos homens principalmente devem ser por serviço de Nosso Se-nhor Deus e assim de seu Senhor porque hajam de receber galardão de glória (e)em este mundo honra e estado.

Quem estabelece o que é serviço do Senhor são os senhores deste mundo esão eles que neste mundo distribuem glória, honra e estado.

E prossegue:

E sendo certo como, desde a memória dos homens, se não havia algumanotícia na Cristandade dos mares, terras e gentes que eram além do Cabo de Nãocontra o meio dia, me fundei de inquirir e saber parte, de muitos anos passadospara cá, do que era desde o dito Cabo Não em diante, não sem grandes meus tra-balhos e infindas despesas, especialmente dos direitos e rendas cuja governança as-sim tenho, mandando per os ditos anos muitos navios e caravelas com meus cria-dos e servidores, os quais, por graça de Deus, passando o dito Cabo de Não avantee fazendo grandes guerras, alguns recebendo morte e outros postos em grandes pe-rigos, prouve a Nosso Senhor me dar certa informação e sabedoria daquelas par-tes desde o dito Cabo de Não até passante toda a terra de Berberia e Núbio e assimmesmo per terra de Guinea bem trezentas léguas, de onde até agora, assim no co-meço por guerra como depois por maneira de trauto de mercadoria e resgates, évindo à Cristandade mui gram número de infiéis cativos, do qual, dando grandeslouvores a Nosso Senhor, a mor parte são tornados à sua santa fé. E está bem apa-relhado para muitos mais virem e serem feitos cristãos, além das mercadorias, ouro

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e outras muitas coisas que de lá vêm e se cada dia descobrem muito proveitosas aestes reinos e a toda a Cristandade.12

O Infante D. Henrique vangloria-se de ser o primeiro com infindostrabalhos e despesas a indagar dos mares, terras e gentes que viviam alémdo Cabo Não. Mas o seu ponto de referência é o da Cristandade ociden-tal. A Cristandade não tinha notícia das novas terras e agora tirava pro-veito das ricas mercadorias. Com morte e perigo dos seus servidores, ascaravelas portuguesas, por guerra e depois também por trato de merca-dorias, avançara bem 300 léguas por terras de Guiné, confirmando oavanço dos navios portugueses até a Serra Leoa. O principal rendimentoda guerra e do trato provinha dos escravos, equiparados ao ouro e outrasmercadorias proveitosas. Os “infiéis” ficavam com os corpos cativos masos seus donos tratavam-lhes da alma.

OS REIS EMPRESÁRIOS

Os 40 anos dos governos dos reis D. João II e D. Manuel (1481-1521) cobrem momentos extremamente fecundos na história da Huma-nidade. É o tempo das grandes viagens e descobertas marítimas: a de Bar-tolomeu Dias que, na tábua das naus, sem combate com os homens mastão só com os elementos, verificou a ligação do Atlântico e do Índico; aviagem de Cristóvão Colombo que ligou permanentemente a Europa,ávida de ouro e prata, a um novo continente, a América; a de Vasco daGama que duradouramente uniu pelos oceanos e pelas naus da pimentao Ocidente ao Oriente; a viagem de Pedro Álvares Cabral que ligou Lis-boa e a Europa ao Atlântico Sul; a viagem de Fernão de Magalhães que,pela primeira vez, circunavegou a Terra.

As descobertas marítimas, o devassar das estradas líquidas dos ma-res e dos rios tornavam a Terra finita, destapavam-lhe o corpo todo, reve-lavam aos europeus novos povos, novos climas, novos cultos, novas téc-nicas, novas plantas, novos animais, novas estrelas e muito ouro, prata,pedras preciosas, pimenta e canela, têxteis, porcelanas da China.

Em 1472, os monopólios estabelecidos na costa ocidental africanaeram os do resgate do castelo de Arguim, o das pescarias do Cabo Bran-co, o da costa africana fronteira à ilha de Santiago, o do resgate do ouroe dos escravos em S. Jorge da Mina e ainda o arrendamento do comércioda malagueta. As Casas que centralizavam esse comércio, a de Arguim eda Mina, inicialmente sediadas em Lagos, são transferidas por D. João IIpara Lisboa que se torna a dinamizadora principal das navegações, co-mércio e conquistas. É o tempo do primeiro ciclo do ouro e dos escravos,

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na expressão do historiador Lúcio de Azevedo. A caça ao escravo fará de-saparecer como a população das Ilhas Canárias. Os choros e gritos dos es-cravos negros e mouros, separados das mulheres e dos filhos no partir doslotes, eram abafados pela fé que se justificava com a salvação das almas.

Mas com a abertura da Rota do Cabo amplia-se extraordinariamentea transfega de riquezas e mercadorias mediante o comércio desigual e aoportunidade das presas. D. João II fora o rei da moeda dos “justos” de ouro,mas D. Manuel é o rei da pimenta e dos “portugueses” de ouro enquantoD. João III, no dizer do poeta Luís de Camões, “tudo pôde e tudo teve”.

Com as navegações, crescem as receitas do Estado e as dos particu-lares e desenvolvem-se as forças produtivas. Os cereais tornam-se um dosmaiores negócios do século. E radica-se uma agricultura especializada davinha, do azeite, voltada para mercados crescentes; surgem outros produ-tos agrícolas, alguns deles provenientes das novas explorações assentesno trabalho escravo. É o caso do açúcar. Intensifica-se o movimento pla-netário das plantas e dos animais.

O ouro da costa ocidental africana chega a Lisboa pelas caravelasque ligam esta cidade ao castelo de S. Jorge da Mina. O açúcar da Madei-ra e de S. Tomé circula nos mercados europeus. Riquezas consideráveis,provenientes, durante a guerra comercial marítima, do assalto a cidadescomo Quíloa, Mombaça, Goa, Malaca, e a continuidade do comércio dapimenta e das drogas entontecem os dirigentes portugueses. SegundoJoão de Barros, na Rota do Cabo, os lucros comerciais atingiam cinco,vinte, cinqüenta vezes o valor do capital investido.

Uma nau da Índia custava em 1506 com a carga cerca de 8 contos deréis. Quando chegava ao Malabar, esses 8 contos passavam milagrosamen-te a 20. Mas esta mesma nau, quando regressava a Lisboa, tinha a sua car-ga avaliada em 100 contos de réis. Em termos nominais, uma nau da Índiavalia mais no regresso que as receitas do Estado no tempo deD. Afonso V. Também a alfândega de Lisboa que, no início do século XVI,rendia à volta de 9 contos, nos anos 1680, o seu rendimento subia para 115.

A expansão portuguesa tem fome de cobre, usado na artilharia, nasmoedas e nos sinos das novas e velhas igrejas; de ferro para as ferramen-tas e as armas; de estopa, de breu, de pregadura, de corda. Desenvolvem-se novas tecnologias e ferramentas especializadas. E se uma retaguardaeuropéia fornece trigo, produtos industriais, capitais, registam-se avançossignificativos na produção interna portuguesa, particularmente em seto-res de ponta. A indústria têxtil desenvolve-se na Beira interior, no AltoAlentejo e na periferia de Lisboa embora fique muito aquém do melhorda indústria têxtil européia e asiática. Mas o principal avanço registra-sena construção naval, na produção industrial do biscoito e no fabrico dasarmas. Portugal construía navios e fabricava armas em solo nacional e

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nos principais pontos do globo onde se estabelecia. São conhecidas asconseqüências políticas e militares, provocadas pelos portugueses, ao in-troduzirem no Japão as espingardas e outras armas de fogo.

A multiplicação da produção interna numa primeira fase da expan-são pode sentir-se na leitura dos forais manuelinos. Mas se tivéssemosdúvidas sobre o desenvolvimento das forças produtivas, pelo menos emalguns setores de ponta, bastaria lembrar as formidáveis esquadras, cons-truídas em Portugal, que demandaram os mares depois da abertura daRota do Cabo. Só nos primeiros 5 anos decorridos sobre a primeira via-gem de Vasco da Gama, rumaram a Oriente mais de sessenta navios po-derosamente equipados e artilhados.

Nos primeiros anos do século XVI, os portugueses venceram nomar a guerra comercial marítima contra os mouros, há séculos instaladosno terreno, e instauraram no Índico uma paz armada, periodicamenteviolada. Essa guerra não desalojou os muçulmanos nem tampouco des-tronou os reis orientais, com a exceção maior do rei de Malaca. Abriu foio mar aos seus navios, aos seus negócios e ao seu poder. Que o Estado daÍndia com a sua capital política e cultural em Goa e a capital da pimentaem Cochim assentava essencialmente numa rede de alfândegas que sealimentavam do comércio do Índico e do comércio que demandava o es-treito de Malaca. Ao longo de 20.000 km de costa, de Lisboa ao ExtremoOriente, passando pela América do Sul, estendiam-se as cidades, as feito-rias, as fortalezas. É um Império que não avança pela terra adentro, a nãoser na breve tentativa de conquista de Ceilão e na imensa colonização docontinente brasileiro.

Como cabeça deste império marítimo, Lisboa transformava-senuma das grandes metrópoles do planeta, sonora e multicolor, reunindogentes de todos os continentes e atraindo, pelas excelentes oportunidadesde multiplicar a riqueza, alguns dos principais mercadores europeus. Oseu poder assentava na rede de cidades atlânticas, americanas, africanase asiáticas, a que se ligava pelo longo mar, nas forças militares marítimasde intervenção, na artilharia e nas naus. Para sustentar todo este esforçomilitar ao serviço da navegação, da conquista e do comércio, Lisboa mo-bilizava os homens e os produtos do país interior e integrava no seu mun-do largos milhares de homens de África, da América e sobretudo da Ásia.

Não faltaram capitais europeus, italianos e alemães como não falta-ram capitais portugueses, em boa parte cristãos-novos, e capitais dos mo-radores de Goa e de Cochim. Também alguns fidalgos investiram. Desde asprimeiras viagens. Afonso de Albuquerque e seu primo Francisco de Albu-querque armaram cada um a sua nau na quinta viagem para a Índia.

Mas o rei era o maior empresário, o maior empregador, o maior in-vestidor e o distribuidor das riquezas do império. Na Rota do Cabo, é oEstado que arrisca e suporta os custos. Se se perdem navios e a carga da

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pimenta, a perda principal é do rei pois os mercadores europeus e portu-gueses têm os seus lotes assegurados na Casa da Índia. Se houver poucapimenta, os preços sobem e com a subida o ganho; se houver muita, ospreços descem mas mantêm uma margem de lucro. E é o Estado que su-porta o gasto com as fortalezas, as guerras, os funcionários e os soldados.Por outro lado, constituía um fornecedor e um cliente previlegiado dosmercadores e banqueiros.

No Brasil, os particulares desempenharam um papel decisivo.Duarte Coelho investiu em Pernambuco capitais adquiridos na zona deMalaca e nos mares da China. Fernando de Noronha e outros cristãos-novos multiplicaram o seu capital com o comércio em exclusivo do pau-brasil e a exportação em grande escala de escravos negros para a Améri-ca Espanhola e o Brasil. João de Barros e o tesoureiro-mor Fernão Álva-res de Andrade organizaram, arrastados em boa medida pela febre doouro americano, a maior esquadra privada alguma vez levantada em Por-tugal e que sossobrou nas águas do Maranhão.

Mas o Estado português, ainda muito preso ao serviço e a bandei-ras ideológicas, não está preparado e responde mal às novas tarefas. O reié mercador mas não tem as manhas do mercador. Escolhe os altos fun-cionários da fazenda pela limpeza de sangue, pelas letras canônicas e teo-lógicas e não favorece os mercadores profissionais ligados ao comércio in-ternacional. A Casa da Índia era uma enorme empresa estatal de impor-tação e exportação mas, segundo o mercador banqueiro Duarte GomesSolis, não tinha sequer um livro de caixa.

O rei pagava os serviços em salários mas também com quintaladas,a atribuição de capitanias e de mercês à boca das alfândegas. O númerodas capitanias era limitado e em 1533, por exemplo, alguns capitães agra-decem desdenhosamente ao rei a promessa de ocuparem capitanias dalia 10 ou 15 anos. E capitães e funcionários roubavam os povos e o rei eroubavam comprando os soldos dos soldados. Antônio da Silveira, queenriquecera na capitania de Ormuz, pedia ao rei mais um ano porqueprecisava de se desendividar.13

A Índia era uma vinha que se vindimava de 3 em 3 anos, escreviaoutro correspondente do rei em 1533. Na verdade, o capitão de Ormuz,por exemplo, recebia de ordenado 600.000 réis anuais. Mas, ao cabo de 3anos, se fosse de “sã consciência”, poderia retirar forros 20.000 000 ou24.000.000 de réis, mais de dez vezes o respectivo ordenado. E se quises-se “alargar a consciência”, tinha muitas e grandes ocasiões para retirarmuito maior quantidade de dinheiro.14

Os homens amavam o dinheiro quase sobre todas as coisas mas oEstado mercador mantinha de quarentena os mercadores profissionais,diariamente ameaçados na vida e na fazenda. Por outro lado, as bandei-

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ras ibéricas, que ondulavam por uma monarquia universal católica, con-sumiam boa parte da riqueza. E vejam só. No século XVI veio mais pratae ouro das Américas do que a que tiveram todos os reis de Espanha des-de o tempo do rei Pelágio. Apesar disso, Carlos V quebrou em 1554, Fili-pe II em 1560, 1575, 1596 até que se acabou o crédito e não há memó-ria de um cerro tão rico em prata como o de Potosi. Em suma, o créditoe as forças da contratação sobrepunham-se ao poder das armas.15

A MENTE MOVE-SE

A expansão européia repercutiu-se profundamente nas mentali-dades e na ideologia. Mudavam-se os tempos e as vontades, atropela-vam-se os códigos da moral, mudavam-se as idéias, mudava-se a pró-pria mudança.

Os livros impressos constituem uma boa amostragem da “propa-ganda” e do universo mental das elites. No século XVI publicaram-se emPortugal cerca de 1.904 títulos. Os livros de doutrina e relativos à organi-zação da Igreja somavam 651. Juntando-lhes os livros de moral e os queserviam de material para as aulas, majoritariamente de Direito Canônico,o número subia a 1.099. As publicações relacionadas com os serviços doEstado e as de doutrina civil rondavam os 278. A literatura somava 139títulos, as biografias, hagiografias e orações fúnebres 98, os livros de filo-sofia-teologia ficavam pelos 38, os de astronomia, matemática com o re-positório dos tempos 31, os relatórios de viagens 23, os livros de questõesmédicas 18 e os relativos às artes e técnicas 14.16

O peso da Igreja no mundo do livro é esmagador e contrasta coma escassez das obras no terreno científico e técnico. Na aridez doutrináriasobressaem na literatura as obras maiores de Camões e Gil Vicente e umtratado científico de enorme relevância teórica, os Colóquios dos Simples edas Drogas de Garcia da Orta, publicados pela imprensa de Goa.

A febre da riqueza consomia largos estratos da sociedade. Todos osdias arriscavam a vida não só pela sobrevivência mas pela busca de rique-zas; todos os dias se exercitavam os diferentes modos da arte de furtar. Odinheiro medrava sobre o serviço, como escrevia ao rei D. João III, em1533, o vigário-geral da Índia: os que andam a ganhar dinheiro têm-no elevam muito boa vida e depois pedem as mercês; e os que servem são po-bres e pobres vivem. Tudo se comprava e vendia até os cargos públicos,as viagens, os soldos, os corpos.

A Igreja está muito preocupada com a ortodoxia e com a riqueza eo poder dos mercadores portugueses. No seu Tratado do Câmbio, o jesuítaFernão Rebelo defende que “nada se receba, por pouco que seja, à conta

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de empréstimo ou de demora em pagar”, pois implica o pecado mortal dausura. O pecado manchava a prática diária dos mercadores e banqueirosde que o rei era o primeiro cliente.

O alto clero e os fidalgos pretendiam reservar para si a direção dasociedade e mesmo os que provinham da esfera do dinheiro tinham devestir o hábito de Cristo ou adquirir as honras de fidalgo. No entanto, ospoderosos do dinheiro ridicularizavam a fidalguia dizendo que para obtê-la bastava uma assinatura do rei. Alguns comparavam vantajosamente oseu poder com o dos outros Estados.

Os homens que escreveram da nobreza em quatro partes a repar-tiram. Os mais chegados à pessoa e casa real. Os que militam na guerra.Os homens letrados e mais cientes. E os homens ricos. E se houverem dedizer a verdade, todas as três qualidades de homens, como não sejam ri-cos em seus negócios, não são estados seguros nem letras seguras; e piorcom fianças. E os mercadores ricos em todas as partes do mundo são es-timados porque são os mais úteis para a república.17

Milhares de portugueses embarcados nas naus corriam por suaconta como corsários os mares orientais e desertavam colocando-se aoserviço de reis mouros, indus e outros orientais, assumindo crenças quenegavam a água do batismo sem a secar da mente. Por outro lado, pelasportas de Goa, Cochim, Diu, Ormuz, Ceilão, Malaca, o Oriente entrava novestuário, na cozinha, nas idéias, no espetáculo dos poder. Insinuava-semesmo no mais profundo do território europeu.

Gil Vicente apelava ao combate contra a ostentação. Mas, na Índiae em Lisboa, os que se tinham em boa conta já não queriam andar a pé.Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque não hesitavam em metermãos à construção das fortalezas ou a remendar o taboado dos navios.Mas olhemos o governador Nuno da Cunha a desembarcar em Baçaim noano de 1531. Neste ritual de poder, juntam-se a Europa e a Ásia.

O governador ia armado em um cossolete branco dourado por partes, eseu gorjal de malha, e fralda, e em cima uma coira de cetim cremesimcom muitos cortes, e na cinta uma rica espada, e na cabeça um grandechapéu de guedelha vermelha, e nele uma grande medalha de ouro e pe-draria mui rica, e nela uma pluma branca com argentaria de ouro, e umrico colar de ombros de rocais esmaltado, e calças inteiras, cortadas, for-radas de cremesim, e sapatos franceses cremesins com fitas encarnadas egrossas pontas de ouro, e um bastão de pau dourado na mão esquerda,posto no quadril, que com tudo parecia formoso capitão; e a cavalo emuma faca branca, com guarnição de veludo preto franjada de ouro; e jun-to dele dois pagens bem armados, que lhe levavam sua lança, adarga, ca-

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pacete, como cumpria; e diante dele sua bandeira real de damasco bran-co e cruz de Cristo atrocelada de ouro.18

Nos primeiros tempos, o espírito da cavalaria perpassa em diferen-tes episódios e relatos. Na conquista fracassada de Adem, Garcia de Sou-sa escala a um alto cubelo da muralha e acaba por ficar cercado. Afonsode Albuquerque grita-lhe que desça e se salve pelas cordas que estavamsuspensas do muro. Garcia de Sousa respondeu: “Senhor, não sou eu ho-mem para descer senão como subi. E pois me não podeis valer se não comuma corda, valha-me Deus com seu favor que em lugar estou para isso”.19

Mas a nova mentalidade explode na Peregrinação de Fernão Men-des Pinto e noutros passos narrados pelos cronistas. Consumada a con-quista de Baçaim, Nuno da Cunha sentou-se sob uma alpendrada dosmouros recebendo os louvores da vitória. Alguns combatentes pediram-lhe que os armasse cavaleiros. E logo a murmuração e a zombaria se es-palharam pelo arraial. Aqueles pediam cavalaria não pela excelência e operigo dos atos praticados mas para acrescentamento das moradias. Echamavam-lhes cavaleiros de cruzado porque davam um cruzado àstrombetas e charamelas que no ato lhes tangiam.20

Uma última nota. A Reforma avançava no centro e norte da Euro-pa mas em Portugal não teve base popular de apoio. A religião judaica ti-nha raízes muito fundas. E depois da conversão forçada, a “infidelidadehebraica” lavrava em surdina e atingia mesmo camadas de cristãos-velhos.E se algumas idéias dos reformados como a recusa do culto dos santos edas imagens, a negação da confissão concordavam com as crenças judai-cas, os judeus de coração ou os que assumiram as velhas crenças nas ter-ras de exílio continuaram fiéis ao Deus único.

Por outro lado, para compreender o não alastramento em Portugalda Reforma, temos também de ter em conta a sua posição periférica e aaliança entre o Papado e as monarquias ibéricas. As bulas pontifícias ga-rantiam e sacralizavam a partilha entre os hispânicos do mundo recém-descoberto. E enquanto alguns teólogos, entre eles o cristão-novo DiogoPaiva de Andrade, redefiniam a doutrina da Igreja no Concílio de Trento,outros, como João de Barros, assumiam a idéia judaica de povo eleito, en-carnada agora no povo português. Deus, “em cujo poder estão todos osreinos e estados da terra ... tem olho naqueles que vertem seu sangue porconfissão da sua fé”.

A partir de 1630, a Inquisição vigiava e reprimia as idéias conside-radas heréticas enquanto a Universidade e os teólogos definiam o que erapara ter e crer. O espetáculo católico da fé alimentava-se em boa medidacom os restos das crenças e o dinheiro dos cristãos-novos. E o viver comum pé nas crenças e cerimônias católicas e outro no encontro das idéias

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e dos ritos judaicos, arrastou alguns cristãos-novos para o ceticismo e oateísmo enquanto Uriel da Costa proclamava que o melhor de todas as re-ligiões estava na lei natural. O seu Exemplo de Vida Humana mostra-noscomo abria caminho o deísmo moderno.

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NOTAS

1. JOÃO DE BARROS. Ásia. Década I. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1974.p.214.

2. CORREIA, G. Lendas da Índia. Porto: Lello & Irmão, 1975. v.III, p.479.

3. FELNER, L. Subsídios para a História da Índia Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1868.p.9.

4. Ibidem, p.26.

5. VARELA RUBIM, N. Artilharia Naval dos Descobrimentos. In: Dicionário de História dos Des-cobrimentos Portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994. v.I, p.92.

6. FELNER, L., op. cit., p.9.

7. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.392.

8. Ibidem, v.I, p.936.

9. Ibidem, v.III, p.394.

10. JOÃO DE BARROS, Década II, p.232.

11. CORREIA, G., op. cit., v.II, p.251.

12. MARQUES, S. Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Junta de Investigações Científicas doUltramar, 1944. v.I, p.544.

13. AS GAVETAS DA TORRE DO TOMBO, Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ul-tramar, 1974. v.X, p.180.

14. LIVRO DAS FORTALEZAS. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960. p.33.

15. GOMES SOLIS, D. Alegacion en favor de la Compañia de la India Oriental. Lisboa, 1955. p.58.

16. MACEDO, J. B. de Os lusíadas e a História. Lisboa: Editorial Verbo, 1979. p. 50.

17. SOLIS, D. G. Discursos sobre los comercios de las dos Indias. Lisboa, 1943. p.100.

18. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.468.

19. JOÃO DE BARROS. Década II. p.351.

20. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.472 .

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