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    J . M. COETZEE

    A vida dos animaisIntroduo e organ izaoAmy GutmannTraduoJos Rubens Siqueira

    2" edi ol" reimpresso

    ~I~COMPANHIA-DAS LETRAS

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    Copyright '999 by Prineeton University PressT tulo orig in alThe lives of animaIsCap aJo o Baptista da Costa Aguiarsobr esem ttulo ('989) leo sobre tela de Fbio Miguez.220 x 3 20 em. So Paulo, coleo do artista.Pr eparaoBeth KaphanRev is oAna Maria BarbosaBeatriz de Freitas MoreiraTodo s o s d ire ito s s o r es erv ado s. N enhu ma parte des te livr opode se r re pr odu zid a Oll tra nsm itida se m autorizao da edi tor a.Dados Internacionais d e C ll

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    ra da razo, confrontava-se com o rugir do leo, com o mugirdo touro. O homem guerreou o leo e o touro, e, depois de mui-tas geraes, venceu definitivamente essa guerra. Hoje essas cria-turas no tm mais poder. Aos animais s restou seu silnciopara nos confrontar. Gerao aps gerao, heroicamente, nos-sos cativos se recusaram a falar conosco. Todos, menos PedroRubro, todos, menos os grandes macacos.

    "Porm, como os grandes macacos, ou alguns deles, nos pa-recem a ponto de desistir de seu silncio, ouvimos vozes huma-nas se levantarem afirmando que os grandes macacos deveriamser incorporados grande famlia dos homindeos, como criatu-ras que partilham com o homem a faculdade da razo.' E sen-do humanas - ou humanides - essas vozes afirmam aindaque os grandes macacos deveriam receber direitos humanos, oudireitos humanides. Que direitos especialmente? Pelo menosos mesmos direitos que atribumos aos espcimes defeituosos daespcie Homo sapiens: o direito vida, o direito a no ser sujei-to a dor ou dano, o direito a igual proteo perante a lei. "

    "No era por isso que Pedro Rubro estava batalhando quan-do escreveu, por intermdio de seu amanuense Franz Kafka, ahistria que, em novembro de 1917 , ele se props ler perante aAcademia de Cincia. Fosse o que fosse, o seu relato Acade-mia no era um pedido para ser tratado como um ser humanomentalmente deficiente, um simplrio.

    "Pedro Rubro no era um investigador do comportamentoprimata, mas um animal marcado e ferido apresentando-se co-7 Cf. Stephen R. L. Clark, "Apes and the Idea ofKindred", in The Great Ape P ro -iec t, ed. Paola Cavalieri e Peter Singer, Londres , Fourth Estate, 1993 , pp. 113 -25.8 Cf. Gary L. Francione: "Por mais inteligentes que sejam os chimpanzs, go-rilas e orangotangos, no h provas de que possuam a habilidade de com etercrimes, e nesse sentido devem ser tratados como crianas ou incompetentesmentais". "Personhood, Property and Legal Cornpetence", in Cavalieri e Sin-ger, Gr eat Ape P ro je ct, p . 256.

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    m O testemunha falante diante de uma platia de acadmicos.No sou um filsofo da mente, mas um animal que quer mos-trar, e ao mesmo tempo no o quer, perante uma platia de aca-dmicos, uma ferida que oculto sob minhas roupas, mas quetoca a cada palavra que pronuncio."Se Pedro Rubro tomou para si realizar a rdua descida dosilncio dos animais para a tagarelice da razo com o esprito dobode expiatrio, do escolhido, o seu amanuense era um bodeexpiatrio de nascena, com um pressentimento, um Vorge fhl,do massacre do povo escolhido que iria ter lugar to imediata-mente aps sua morte. Permitam-me, portanto, demonstrar mi-nha boa vontade, apresentar minhas credenciais, fazendo umgesto na direo do academicismo ao brind-l os com minhas es-peculaes cadmicas, apoiadas em notas de roda p" - nessemomento, num gesto nem um pouco caracterstico de sua me,ela ergue o texto da palestra e o brande no ar - "sobre as ori-gens de Pedro Rubro."Em 19 12 , a Academia Prussiana de Cincias fundou, nailha de Tenerife, uma estao dedicada experimentao da ca-pacidade mental dos macacos, principalmente dos chimpan-zs. A estao funcionou at 1920."Um dos cientistas que trabalhava l era o psiclogo Wolf-gang K hl er. Em 1917, Kohler publicou uma monografia intitu-lada A mentalidad e d os m acacos, descrevendo seus experimen-tos. Em novembro do mesmo ano, Franz Kafka publicou 'Umrelato a uma academia'. No sei se Kafka leu o livro de Khler.Ele no faz nenhuma referncia a isso em suas cartas e dirios,e sua biblioteca desapareceu durante a era nazista. Em 19 82 ,cerca de duzentos livros seus reapareceram. O livro de K hl erno estava entre eles, mas isso no prova nada."9 Patrick Bridgwater afirma que a origem do "Relato" est na leitura que Kaf-ka fez de Haeckel em tenra idade, sendo que a idia para uma histria sobre

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    "No sou doutora em Kafka. Na verdade, no sou doutoraem nada. Minha posio no mundo no depende de eu estarcerta ou errada em relao suposio de que Kafka leu o livrode Khler. Mas eu prefi ro acreditar que leu, e a cronologia tor-na minha especulao ao menos plausvel."De acordo com seu prprio relato, Pedro Rubro foi captu-rado no continente africano por caadores especializados no co-mrcio de macacos, e despachado para um instituto cientficoultramarino. Eram esses os macacos com que Khler trabalha-va. Tanto Pedro Rubro como os macacos de Khler passavampor um perodo de treinamento destinado a humaniz-los, Pe-dro Rubro foi aprovado com louvor em seu curso, embora tenhapagado um alto preo por ele. A histria de Kafka trata disso: fi-camos sabendo no que consiste este preo por meio das ironiase silncios da histria. Os macacos de Khler no se saram tobem. Mesmo assim, adquiriram pelo menos um arremedo deeducao.

    "Permitam que lhes relate o que alguns dos macacos de Te-nerife aprendiam com seu mestre Wolfgang Khler, particular-mente Sulto, o melhor de seus alunos, em certo sentido umprottipo de Pedro Rubro.

    "Sulto est sozinho em seu cercado. Est com fome: a c o-mida, que costumava chegar com regularidade, inexplicavel-mente deixou de vir.

    "O homem que costumava alim ent - lo, e que agora paroude faz-Io, estica um fio trs metros acima do cho de seu cer-cado e nele pendura uma penca de bananas. Arrasta para den-

    um macaco falante ele obteve do escritor M. M. Seraphim. "Rotpeters Ah-nherren", De utsc he Vierte lahr ss chrift , 56, 198 2 , p. 459 . Sobre a cronologia daspublicaes de Kafka em 19 17, veja [oachim Unseld, Franz Ka fka: E in Sch-riftste ller leben, Munique, Hanser, 198 2 , p. 14 8. Sobre a biblioteca de Kafka,veja Karl, Franz K afka , p. 63 2 -

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    tro do cercado trs caixotes de madeira. Depois desaparece, fe-chando o porto, mas permanecendo nas proximidades, pois ossvel sentir seu cheiro.p b" P' bSulto sa e: agora e precIso pensar. or ISSOas ananas es-to ali no alto. As bananas esto ali para fazer pensar, para em-purrar o sujeito at os limites do pensamento. Mas o que se devepensar? Algo como: por que ele est me deixando passar fome?Ou: o que foi que eu fiz? Por que ele parou de gostar de mim?Ou ainda: por que ele no quer mais estescaixotes? Mas nenhumdesses o pensamento correto. At um pensamento mais com-plicado - por exemplo: qual o problema dele, que conceitoerrado ele faz de mim que o leva a acreditar que mais fcil pa-ra mim chegar at uma penca de bananas pendurada num fiodo que pegar s bananas do cho? -, at isso e st errado. O pen-samento certo : como usar os caixotes para chegar s bananas?"Sulto arrasta os c aixotes at posicion-los sob as bananas,empilha um em cima do outro, sobe na torre que construiu e pe-ga as bananas. Pensa: ser que agora ele vai parar de me castigar?

    "A resposta : no. No dia seguinte, o homem pendura ou-tra penca de bananas no fio, mas tambm enche os caixotes depedras, de forma que fiquem pesados demais para arrastar. Oque se deve pensar no : por que ele encheu os caixotes de pe-dras? O que se tem de pensar : como se faz para usar os caixo-tes para pegar as bananas, apesar de estarem cheios de pedras?

    "D para comear a entender como funciona a cabea dohomem."Sulto remove as pedras de dentro dos caixotes, constriuma torre com os caixotes, sobe na torre, pega as bananas.

    "Enquanto Sulto continuar tendo os pensamentos errados,passar fome. At a sua fome ser to intensa, to avassaladora,que ele se veja forado a ter o pensamento correto, isto , comoconseguir pegar as bananas. Assim so testadas at o limite ascapacidades do chimpanz.

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    "O homem pe uma penca de bananas um metro para forada malha de arame do cercado. Joga uma vara para dentro docercado. O pensamento errado : por que ele parou de pendu-rar as bananas no fio? O pensamento errado (o pensamento er-rado-correto, todavia) : como usar os trs caixotes para pegar asbananas? O pensamento correto : como usar a vara para pegaras bananas?

    "Acada vez, Sulto levado a ter o pensamento menos in-teressante. Da pureza da especulao - por que os homens secomportam assim? - ele impiedosamente impelido ao racio-cnio mais baixo, prtico, instrumental - como usar isto paraconseguir aquilo? - e assim aceitao de si mesmo primordial-mente como um organismo com um apetite a ser satisfeito. Em-bora toda a sua histria, desde o momento em que sua me foimorta e ele foi capturado, passando pela viagem numa jaula ata priso neste campo, desta ilha, e os jogos sdicos que ali se rea-lizam com a comida, tudo o leva a questionar a justia do uni-verso e o lugar que nele ocupa esta colnia penal, na qual umregime psicolgico cuidadosamente planejado o leva para lon -ge da tica e da metafsica em direo ao humilde domnio darazo prtica. E de alguma forma, ao pal milhar esse labirinto deconstrangimento, manipulao e duplicidade, ele tem de enten-der que de jeito nenhum pode ousar desistir, porque em seus om-bros repousa a responsabilidade de representar a essncia maca-cal. O destino de seus irmos e irms pode ser determinado pelosresultados que ele obtiver.

    "Wolfgang K hl er provavelmente era um bom homem. Umbom homem, mas no um poeta. Um poeta teria entendido al-guma coisa ao ver os chimpanzs cativos girando em crculo norecinto, em tudo semelhantes a uma banda militar, alguns nuscomo no dia em que nasceram, outros cobertos por cordas ou ve-lhas tiras de pano que acharam por ali, como se estivessem ves-

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    tidos com esses trapos, outros ainda carregando pedaos de qual-quer coisa."(No exemplar do livro de K hle r que li, retirado de umabiblioteca, algum leitor indignado havia anotado margem, nes-te ponto: 'Antropomorfismo!'. Animais no sabem marchar, elequeria dizer, no sabem se vestir, porque no conhecem o sig-nificado de marchar, no conhecem o significado de ve stir -se.)

    "Nada em suas vidas pregressas acostumou esses macacosa olhar para si mesmos de fora, como se pelos olhos de algumque no existe. Na percepo de K o hl er , asfitas e os objetos noesto ali para que obtenham um efeito visual, porque fazem-nosparecer elegantes, mas sim para que obtenham um efeito ci n-tico, porque os tazem sen tir-se diferentes - qualquer coisa paraaliviar o tdio. Apesar de toda a sua simpatia e capacidade decompreenso, K hl er s consegue chegar at esse ponto - pon-to do qual um poeta poderia comear, partindo de algum sen-timento de compaixo pela experincia do macaco.

    "No seu ser mais profundo, Sulto no est interessado noproblema da banana. ? a mente do experimentador, obsessiva-mente voltada para o problema, que o fora a se concentrarnele. A questo que realmente o ocupa, como ocupa o rato e ogato e qualquer outro animal aprisionado no inferno de um la-boratrio ou de um zoolgico a seguinte: onde est a minhacasa e como chego l?"Calculem a distncia entre o macaco de Kafka - comSua gravata-borboleta, smoking e o bloco de notas da palestra -e aquele triste bando de cativos marchando no ptio de Teneri-fe. Quanto viajou Pedro Rubro! No entanto, podemos perguntar:a que ele teve de renunciar em troca do prodigioso superdesen-volvirnento do intelecto que obteve, em troca de seu domnioda etiqueta dos sales de conferncias e da retrica acadmica?A resposta : a muito, inclusive prole, sucesso. Se Pedro Ru-

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