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volume 15

Eurídice Figueiredo

Santa Maria - 2015

Em torno de roland barthes:

da “morte do autor” ao nascimento do

leitor e a volta do autor

ISSN 1981-6987ISBN

REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIAProf. Paulo Afonso Burmann

VICE-REITORProf. Paulo Bayard Dias Gonçalves

DIRETOR DO CENTRO DE ARTES E LETRASPedro Brum Santos

VICE-DIRETOR DO CENTRO DE ARTE E LETRASClaudio Antônio Esteves

COORDENADORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRASSara Regina Scotta Cabral

EDITORAPrograma de Pós-Graduação em Letras

COMITÊ EDITORIALAmanda Eloina SchererMarcia Cristina CorrêaAndré Soares VieiraGraciela Rabuske HendgesLarissa Montagner CervoEnéias Farias TavaresSara Regina Scotta CabralPedro Brum Santos

PROJETO GRÁFICOLilian Landvoigt da Rosa

EDITOR RESPONSÁVELAndré Soares Vieira

DIAGRAMAÇÃOFlavio Teixeira Quarazemin

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃOAndré Soares Vieira

SUMÁRIO

Apresentação....................................................09

Introdução (desfazer o clichê).........................17

O intertexto da “morte do autor”.....................19

A recepção crítica da “morte do autor” na França...............................................................36

Intencionalidade do autor ou ato de leitura?...40

O ato de leitura e a estética da recepção............44

A volta do autor.................................................51

Considerações finais........................................65

Referências.......................................................68

Política editorial................................................73

Volumes publicados.........................................74

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APRESENTAÇÃO

Desde sua publicação em 1968, na revista Manteia, o célebre artigo de Barthes “A morte do autor” tornou-se um dos títulos mais mencionados e, para ser justo com o seu destino, mais alterados e até mesmo deturpados do grande crítico fran-cês, chegando na última década a ser entendido como uma espécie de atestado de óbito definitivo da existência da autoria. Escrito no contexto crítico e linguístico europeu dos anos sessenta, no qual emergiram diversas reflexões que indagavam so-bre a natureza do texto e dos sujeito da escrita, o artigo talvez não tenha recebido do próprio autor a importância que as próximas gerações lhe deram. Phillippe Roger assinalou que sua publicação em uma revista de menor importância à época seria um indício de que o próprio Barthes não atribuía grande importância à sua boutade sobre “a morte do au-

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tor”. Talvez seja verdade, mas Barthes, um autor sensível como ninguém às fórmulas da linguagem, não usava palavras em vão e não deve ter usado em vão o seu título. Com efeito, se o conteúdo da reflexão pouco teria a ver com suas interpretações futuras, o título a “morte do autor” replicava o ideo-logema da iconoclastia rebelde dos anos sessenta, com sua menção bombástica à morte do autor. Seu artigo e o enraizamento de sua reflexão eram mais profundos, mas mesmo assim o caráter iconoclasta do seu título não passaria desapercebido às próxi-mas gerações que trataram de alterar a reflexão de Barthes em favor de suas próprias ideias.

O atual ensaio da professora Eurídice Fi-gueiredo, que a Série Cogitare tem a honra de publi-car, chega em um momento oportuno, quando uma compreensão viciada da reflexão sobre a morte do autor tende cada vez mais a se cristalizar em cli-chês. De fato, ouve-se nas opiniões correntes – até mesmo entre estudantes e pesquisadores - mais o caráter bombástico do título do artigo de Barthes (e de Foucault) do que qualquer reflexão seminal. A morte do autor é com frequência associada, nes-se contexto de leitura à revelia, à morte da “autori-dade”, da hierarquia “cultural”. O autor não seria, nesta leitura, senão a replicação servil, no terreno mais restrito da alta cultura, da autoridade política na hierarquia do poder político. Neste caso, a morte do autor seria, para alguns, boa; para outros, péssi-ma. Boa porque constituiria uma denúncia ao autor instrumentalizado. Ruim porque seria uma destrui-ção de constatações de ordem estética que tinham certa autonomia em relação ao político. Nesse caso o autor seria o “autor burguês” ou, ainda melhor, a autoridade canônica contra a qual a geração ses-sentista se insurge. Consequência: todas as gera-ções seguintes, em ondas cada vez mais renovadas,

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num processo histórico imitativo no qual proliferam os slogans mais do que a reflexão, passam a re-verberar, como ventríloquos apressados, a pulsão simplificadora que de algum modo está no título do artigo – embora não nas suas ideias.

O uso político do título do artigo de Bar-thes – e de Foucault em particular – tornou-se um problema. Contudo, como bem assinala Eurídice Figueiredo, quando setores tradicionalmente con-siderados progressistas dos estudos literários, acu-saram o artigo de destruir a noção de autoria “no momento em que a voz autoral feminina estava co-meçando a crescer”, associando o próprio Barthes a uma posição “falocrata-patriarcal que queria im-pedir a eclosão da voz das mulheres”. A crítica femi-nista, no caso, era apenas um dos exemplos em que essa interpretação podia ser encontrada. Súbito, a ideia de uma morte do autor estaria “despoderan-do” a formação de um “anticânone” alternativo aos que haviam sido erigidos pela modernidade român-tica e moderna. Eurídice Figueiredo expressa sua perplexidade diante dessas leituras que ela lê como fruto da desinformação de alguns.

O atual ensaio de Eurídice Figueiredo é, em parte, uma defesa das formulações mais com-plexas e mais finas de Barthes. É um ensaio que ni-tidamente se distancia da Babel interpretativa que se enroscou ao redor das mágicas palavras “autor” e “morte” – nas quais parece retinir ideias como “a morte de Deus” (e outras). Entretanto, mais impor-tante nesse ensaio é um instrumento notável para a leitura do problema: Eurídice nos coloca a par de como a reflexão sobre a autoria assumiu contornos cada vez mais complexos na década de sessenta e se desenvolveu por direções diferentes nas décadas seguintes. Mais importante ainda, o ensaio consti-tui uma notável limpeza de campo que é essencial

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nesse momento: deveria ser lida por todo o aluno que se inicia no assunto. Trata-se de um guia de cor-reção do espírito.

Eurídice Figueiredo lembra, acerca do ar-tigo de Barthes, que o problema da autoria era já objeto de estudo de vários teóricos na época, en-tre os quais Émile Benveniste. Embora Benveniste não tenha tratado da morte do autor, ele apresen-ta, em Problemas da linguística geral, de 1966, as bases do pensamento linguístico que Barthes tem-porariamente adota. Colocações como a de que a subjetividade “não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem” revelam a crescente centralidade do discurso no pensamento. Nessa lógica, se o sujeito é proprieda-de fundamental da linguagem, o que está em jogo são justamente as posições entre eu e outro, que só existem pela inscrição das “formas pronominais” da língua. Nessa reflexão proposta por Benveniste, o “eu” é instância do discurso, de modo que é atra-vés da linguagem que o homem se constitui como sujeito. Eurídice conduz a nossa atenção às várias teorias do período, enfatizando, de um lado, como elas privilegiam uma abordagem da linguagem na constituição do sujeito e, por outro lado, dissolvem o papel do sujeito como ator criativo “autônomo”.

É na teoria que Julia Kristeva desenvolve, via sua leitura de Bakhtin, a noção de intertextua-lidade: a intertextualidade marca o anonimato do agente autoral que de fato se reduz ao código pelo qual ele se constitui. Se todo o texto é parte da lín-gua e se a língua é um código do qual não se pode fugir, então a autoria e a subjetividade enquanto tais são apenas um fenômeno secundário derivado do código. A teoria da intertextualidade ressalta de fato a recorrência linguística e tende a levar a uma espécie de delírio do mesmo ou de repetição. Não

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há lugar para o autor nesse processo, e a análise textual torna-se necessariamente pluralista. Eurídi-ce Figueiredo mostra que, na ampla discussão do assunto, há, de um lado, uma negação da própria antologia do sujeito enquanto tal – pois o próprio eu não é formulável sem a linguagem – e, por outro lado, há, por parte desses teóricos, uma tomada de consciência cada vez mais notável dos “mecanis-mos internos” da linguagem e mesmo da subjetivi-dade que, na verdade, são apenas uma apropriação renovada de discursos previamente construídos. Por um lado, o próprio sujeito desaparece e, por outro, coloca-se em seu lugar a intertextualidade, uma espécie de coletividade retórica. Eurídice Fi-gueiredo assinala um desenvolvimento semelhante no pensamento de Jacques Derrida para o qual o sujeito da escrita “é um sistema de relações entre as camadas: do bloco mágico [de Freud], do psíqui-co, da sociedade e do mundo”, de modo que o su-jeito clássico ali não é mais encontrado. A escritura constitui uma “disseminação”, um engendramento e uma dispersão de sentidos. Em Blanchot encon-trar-se-iam também alguns elementos que com-pletam a reflexão de Barthes. A pergunta, feita por Blanchot, de quem é Samuel Beckett, por exemplo, é irrespondível, pois a escritura do teatro do absur-do o colocou “para fora de si”, transformando-se em algo que é de outra ordem.

Tais questões, como a autora assinala, nos remetem ao chamado problema da represen-tação, porquanto a escrita de si tradicionalmente se pretendeu como uma forma de representação. O nome de Mallarmé e de outros de seus contempo-râneos é lembrado como casos sintomáticos dessa crise. Para Mallarmé, com efeito, “a palavra não é capaz de representar o referente”, pois seu caráter de referente designa muito mais que a coisa que

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está ausente. É fato que o interesse de Mallarmé pela produção da obra pura o leva a ver a palavra como significância que carrega do significante me-nos do que seus referentes. Eurídice discute longa-mente também o texto seminal de Michel Foucault, lembrando suas diferenças com o de Barthes. Em Foucault, o autor é tirado do centro tenso da escri-tura, retirando “ao sujeito o papel de fundamento originário e analisando-o como um função variável e complexa do discurso.”

O conjunto desses teóricos constitui os eventos contemporâneos à publicação de “A morte do Autor”. No entanto é possível notar que houve, a partir da formulação de Foucault, cada vez mais uma historicização das reflexões sobre a autoria, a qual, em Barthes, convém lembrá-lo, estava muito mais inscrita numa indagação sobre a (não) perma-nência ontológica do sujeito da escritura na sua “obra”. A autora nos lembra que Compagnon bus-cou colocar a formulação barthesiana no contexto do momento de 1968, na esteira disseminadora da desconstrução antiautoritária da primavera. O au-tor teria sido identificado, segundo Compagnon, ao indivíduo burguês, à pessoa psicológica, à vida e à biografia do escritor. Eurídice discorda dessa leitura, lembrando entre outras coisas que Barthes se man-teve à distância dos movimentos de 1968.

Eurídice Figueiredo nos mostra que um dos problemas que emergem no seio dessa discussão, que está na verdade no centro vital da discussão sobre o sujeito “autor”, é o problema da intencio-nalidade. Rejeitar a intencionalidade é sem dúvida criticar a ideia de uma vontade monolítica pré-freu-diana que tem sob controle todas as funções da au-to-interpretação. Segundo a autora, Barthes estava ciente de que não é possível formular claramente a centralidade de um sujeito monolítico, de modo que

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mesmo isso a que chamamos de intenção do autor não pode ser confundido com os efeitos de fato de sua obra. Haveria entre o escrever e o ler, entre o produzir e o produto, uma difração notável que reve-la a fragilidade da escrita de si.

O que coroa paradoxalmente o ensaio da professora Eurídice Figueiredo é sua delicada descrição do que se poderia chamar a “virada” de Barthes. De fato, Barthes estava tão imbuído do problema da morte do autor que acabou, por vias in-diretas, resgatando algo que é da ordem do sujeito (e talvez até mesmo de alguma forma de autoria ou-tra) e isso ocorre de um modo que é surpreendente para nós e que foi certamente surpreendente para aqueles contemporâneos de Barthes que acompa-nharam a evolução de sua reflexão. Eurídice analisa de forma cuidadosa e precisa o modo como Barthes paulatinamente passa para uma escritura do sujei-to. Assim em Sade, Fourier, Loyola, ele inventa, se-gundo a autora, o neologismo “biografema”, o sinal, a marca corporal, não obrigatoriamente fechada, de uma narrativa que é “esburacada”... Barthes fala de uma “volta amigável ao autor” que não é mais o Autor institucional, mas um ente que reúne uma sé-rie de encantos, pormenores fragmentários que são como que fulgures rútilos repentinos que escapam no meio da parafernália intertextual de todos os tex-tos. O eu, se muito, era aquilo que apareceria como um fulgor. A ideia surge numa forma quase irônica em Roland Barthes por Roland Barthes, quando o “autor” se refere aos “traços miúdos reunidos em cenas fugidias”: uma escrita da anamnese, biogra-femas vivos que Barthes desenvolverá quase na for-ma de uma nostalgia corporal em muitos de seus escritos, entre os quais o seu Fragmentos de um dis-curso amoroso e no primoroso A câmara clara, no qual a memória da mãe morta irrompe nas páginas

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finais de um livro, um aparecimento que, contudo, não era esperado – e assim surpreende até mesmo por seu pathos cuja irrupção inesperada, melancó-lica e desesperada, lembra o pathos de Montaigne ao falar de seu amigo Étienne de la Boétie, cuja morte, ele percebia, havia esvaziado inteiramente seus dias.

O resgate sensacional da virada de Bar-thes – esse novo olhar sobre o autor que já não é mais o Autor – com o qual a professora Eurídice Figueiredo nos regala, assim como o seu resgate do contexto daquele seu texto seminal constitui ao meu ver uma notável limpeza de campo – um tra-balho necessário e esclarecedor, diria mesmo útil para aqueles que se aventuram nesses meandros. Se Barthes é um pouco culpado de ter sido tão mal interpretado – afinal não é uma boa ideia dar nome a um artigo de “morte do autor” – aqui temos um antídoto ao wishful thinking de muitos críticos mo-dernos que desconhecem ou não querem ver a vira-da desse espírito e até dessa alma livre que foi a de Roland Barthes.

Lawrence Flores PereiraProfessor do Programa de Pós-Graduação

em Letras da UFSM

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INTRODUÇÃO (Desfazer o clichê)

Houve uma excessiva banalização do uso da expressão “a morte do autor”, de Roland Bar-thes1. Na minha experiência de professora e pesqui-sadora, li inúmeras vezes em teses, dissertações, artigos e projetos de pesquisa, referências ao céle-bre artigo de Barthes, “A morte do autor” (publica-do em 1968), que demonstravam claramente que a compreensão era limitada, quiçá nula. Em alguns casos podia-se perceber, talvez, um pouco de má fé. Num projeto de pesquisa sobre a violência na 1 Agradeço a Philippe Roger, Daniel Link e Evando Nascimento pelas contribuições à minha reflexão no debate após minha apre-sentação de parte deste artigo no colóquio internacional “Roland Barthes plural”, realizado em São Paulo de 23 a 26 de junho de 2015. Philippe Roger lembrou que o artigo de Barthes, publicado inicialmente em inglês, em 1967, foi publicado em francês numa revista sem grande importância, a Manteia, o que demonstraria que Barthes não atribuía muita importância ao artigo nem à sua provocação na boutade “a morte do autor”.

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literatura, que avaliei para o CNPq, havia na biblio-grafia o artigo do Barthes. O que estaria ele fazendo naquele projeto? Será que a pessoa achava que o autor tinha sido assassinado? Isso pode parecer uma piada, mas desconfiei realmente de que o pes-quisador não tinha lido o artigo, pois sua linha teó-rica era bem outra e o artigo não fazia sentido na-quele contexto. Mais recentemente, numa banca de Doutorado, ouvi, de uma respeitada pesquisadora/professora feminista, que o artigo de Barthes tinha sido publicado no momento em que a voz autoral feminina estava começando a crescer, ou seja, ela atribuía a Barthes uma posição falocrata-patriarcal que queria impedir a eclosão da voz das mulheres. Ela falava sério. E para terminar a série de usos in-discriminados da expressão meio boutade de Bar-thes, eu citaria o artigo do José Castello, no seu blog do jornal O Globo, postado no dia 8/4/2015, e inti-tulado justamente “A morte do autor”. O post sequer menciona o artigo de Barthes, e trata fundamen-talmente do fato de autores brasileiros aceitarem que seus livros sejam editados pelos tradutores americanos, ou seja, que sejam adaptados. “O edi-tor passa a ocupar, também, o papel do leitor, mais ainda: o escritor escreve agora para se submeter ao julgamento de seu editor” (CASTELLO, 2015). O que contaria, para o escritor brasileiro, segundo o artigo, é penetrar no mercado editorial norte-americano. Em suma, o sucesso da fórmula de Barthes paga o seu preço.

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O INTERTEXTO DA “MORTE DO AUTOR”Emile Benveniste

No momento da produção do texto de Bar-thes, outros teóricos estavam pensando essa ques-tão e estão presentes neste e em outros artigos de Barthes. Na impossibilidade de tratar de todos, que-ro começar pelo impacto dos estudos linguísticos de Émile Benveniste2 que, em seu livro Problemas de Linguística Geral (de 1966), afirma que “a definição comum dos pronomes pessoais como contendo os três termos eu, tu, ele, abole justamente a noção de ‘pessoa’” (BENVENISTE, 2005, p. 277). “Pessoa” e “realidade” aparecem sempre entre aspas no estu-do de Benveniste porque tudo se define unicamente no discurso, ou seja, no plano da enunciação. Em relação ao “sujeito que fala”, ele escreve:

2 Ver também o artigo de Barthes “Por que gosto de Benveniste”, em O rumor da língua.

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Assim, pois, é ao mesmo tempo original e fun-damental o fato de que essas formas ‘pronomi-nais’ não remetem à ‘realidade’ nem a posições ‘objetivas’ no espaço e no tempo, mas à enun-ciação, cada vez única, que as contém, e refli-tam assim o seu próprio emprego (BENVENISTE, 2005, p. 280).

Para Benveniste, “o fundamento da subje-tividade está no exercício da língua” (BENVENISTE, 2005, p. 288); o eu que designa o sujeito se constrói como instância do discurso. “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito do ‘ego’” (BENVENISTE, 2005, p. 286)3. Benveniste prossegue:

A ‘subjetividade’ de que tratamos aqui é a capa-cidade do locutor para se propor como ‘sujeito’. Define-se não pelo sentimento que cada um experimenta de ser ele mesmo (...) mas como a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que asse-gura a permanência da consciência. Ora, essa ‘subjetividade’, quer a apresentemos em feno-menologia ou em psicologia (...), não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fun-damental da linguagem. É ‘ego’ que diz ‘ego’. Encontramos aí o fundamento da ‘subjetivida-de’ que se determina pelo status linguístico da ‘pessoa’ (BENVENISTE, 2005, p. 286).

Julia Kristeva

Além da percepção linguística inovadora de Benveniste, que ia também ao encontro do que Fou-cault desenvolveria no artigo “O que é um autor?” e, principalmente, no livro A arqueologia do saber,

3 Lacan dirá algo semelhante numa perspectiva psicanalítica.

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havia ainda a teoria do texto de Julia Kristeva, com o conceito de intertextualidade, inspirado, segundo ela, no dialogismo de Bakhtin. Como se sabe, Kriste-va foi a introdutora do pensamento do autor russo na França no início dos anos 1970. No artigo “A palavra, o diálogo e o romance”, de 1966, publicado no livro que no Brasil recebeu o título de Introdução à Se-manálise, Kristeva discute o pensamento de Mikail Bahktin acerca do romance. Aí se encontra a célebre frase “todo texto se constrói como mosaico de cita-ções, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1969, p. 85) 4.

Algumas considerações de Kristeva con-vergem com as ideias desenvolvidas por Barthes sobre o autor, como, por exemplo, quando afirma que o sujeito da narração se reduz “a um código, a uma não-pessoa, a um anonimato (o autor, sujeito da enunciação) que se mediatiza por um ele (o per-sonagem, sujeito do enunciado)” (KRISTEVA, 1969, p. 95) 5. O autor enquanto sujeito da narração se metamorfoseia porque ele se inclui no sistema da narração, sendo o mediador entre o sujeito (autor) e o destinatário (leitor).

Ele se torna um anonimato, uma ausência, um branco, para permitir que a estrutura exis-ta como tal. Na própria origem da narração, no próprio momento em que o autor aparece, nós encontramos a experiência do vazio. (...) A partir desse anonimato, desse zero, em que se situa o autor, o ele do personagem vai nascer. Em estágio mais tardio, ele se tornará o nome próprio (N). No texto literário o 0 não existe, o

4 Tradução minha. (...) tout texte se construit comme mosaïque de citations, tout texte est absorption et transformation d’un autre texte.5 Tradução minha. Le sujet de la narration (S) y est entraîné, se réduisant ainsi lui-même à un code, à une non-personne, à un anonymat (l’auteur, le sujet de l’énonciation) qui se médiatise par un il (le personnage, sujet de l’énoncé).

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vazio é subitamente substituído por ‘um’ (ele, nome próprio) que é dois (sujeito e destinatá-rio). É o destinatário, o outro, a exterioridade (...) que transforma o sujeito em autor, ou seja, que faz passar o S [sujeito] pelo estágio de zero, de negação, de exclusão que constitui o autor. As-sim, no vaivém entre o sujeito e o outro, entre o escritor e o leitor, o autor se estrutura como significante e o texto como diálogo de dois dis-cursos (KRISTEVA, 1969, p. 95)6.

Barthes e Kristeva tinham, na época, uma grande afinidade, como se pode depreender do arti-go sobre a teoria do texto que Barthes fez, em 1973, para a Enciclopédia Universalis (incluído na edição brasileira de Inéditos – vol. 1 - Teoria). Barthes apre-senta uma boa síntese das premissas da nova críti-ca, como o questionamento da intencionalidade, a desconstrução da metafísica da verdade e do cogito cartesiano, substituído pela visão de um sujeito plu-ral. Ele usa a metáfora da teia de aranha para carac-terizar a maneira como o sujeito se situa e se desfaz, como uma aranha em sua teia; recusando a metáfo-ra da filiação – em que o autor é o pai do texto -, Bar-thes prefere a metáfora da rede, do campo plural de significações, já que “a obra não para, não se fecha; trata-se menos, portanto, de explicar, ou mesmo de descrever do que de entrar no jogo dos significantes 6 Tradução minha.Il devient un anonymat, une absence, un blanc, pour permettre à la structure d’exister comme telle. A l’origine même de la narration, au moment même où l’auteur apparaît, nous rencontrons l’expérience du vide. (...) A partir de cet anonymat, de ce zéro, où se situe l’auteur, le il du personnage va naître. A un stade plus tardif, il deviendra le nom propre (N). Donc, dans le texte littéraire, le 0 n’existe pas, le vide est subitement remplacé par ‘un’ (il, nom propre) qui est deux (sujet et destinataire). C’est le desti-nataire, l’autre, l’extériorité (...) qui transforme le sujet en auteur, c’est-à-dire qui fait passer le S par ce stade de zéro, de négation, d’exclusion que constitue l’auteur. Aussi, dans ce va-et-vient entre le sujet et l’autre, entre l’écrivain et le lecteur, l’auteur se structure comme signifiant, et le texte comme dialogue de deux discours.

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(...); a análise textual é pluralista” (BARTHES, 2004b, p. 285). O sujeito/autor é “clivado, deslocado sem cessar – e desfeito – pela presença-ausência de seu inconsciente” (BARTHES, 2004b, p. 288). Assinala também a importância do leitor, ignorado pela críti-ca clássica, que só se interessava pela produção da obra e pela figura do autor.

Mikhail Bakhtin

No artigo “O autor e a personagem” (publi-cado postumamente na Rússia em 1979) Bakhtin discute algumas questões que estão bastante próxi-mas das ideias de Barthes. Houve uma reflexão que correu paralelamente, não se trata de influência de uns sobre outros: tanto o formalismo russo quanto o pensamento de Bakhtin guardam semelhanças com as novas teorias críticas francesas.

Bakhtin afirma que não cabe ao artista explicar sua obra, em outras palavras, ele vai ao en-contro da postulação de que o autor não é o pai do texto, não é o detentor dos sentidos do texto. “Por isso o artista nada tem a dizer sobre o processo de criação, todo situado no produto criado, restando a ele apenas nos indicar a sua obra; e de fato, só aí iremos procurá-lo” (BAKHTIN, 2003, p. 5). Assim, quando um escritor comenta um livro seu, como é cada vez mais comum em nosso mundo excessiva-mente midiatizado, não é o autor quem pronuncia aquelas palavras, é o crítico ou o comentador que também existem naquele mesmo sujeito real, de carne e osso. O produtor do texto não estava total-mente consciente daquilo que estava sendo criado, é só a posteriori, enquanto leitor, que ele poderá di-zer alguma coisa sobre sua criação. E o que ele diz não é nem melhor nem pior, nem mais verdadeiro nem mais exato do que as afirmações de um ou-

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tro leitor/crítico/comentador. Bakhtin distingue as duas funções, um se torna independente do outro e “veremos com absoluta evidência o quanto é incerto o material que deve emanar dessas declarações do autor sobre o processo de criação da personagem” (BAKHTIN, 2003, p. 6).

É preciso enfatizar, como já fizera Proust, a diferença entre o autor-criador e o autor-pessoa, entre o autor subsumido no ato da criação e o es-critor, sujeito empírico. Se o personagem, ainda que autobiográfico, de um romance é acabado, o sujeito empírico que, pretensamente, aí é representado, é inacabado, ele está em constante devir, em cons-tante transformação. Aquele personagem autobio-gráfico já se desvinculou de sua origem, já se tornou um dispositivo no processo de leitura, já é objeto do olhar-leitor. Como escreve Bakhtin: “para viver preci-so ser inacabado, aberto para mim – ao menos em todos os momentos essenciais -, preciso ainda me antepor axiologicamente a mim mesmo, não coin-cidir com a minha existência presente” (BAKHTIN, 2003, p. 11).

Ainda que muitas vezes se tenda a con-fundir o personagem autobiográfico com o escritor real, é preciso reafirmar que o sujeito só se cons-titui em confronto com o outro, a identidade não existe sem alteridade. Assim, para escrever sobre a própria vida o escritor tem de se tornar outro, tomar distância e olhar o si com o olhar exterior; em ou-tras palavras, para que haja mediação pela lingua-gem é preciso haver dois em posição de confron-to, de cotejo, quiçá de luta. Bakhtin sublinha essa distância com muita argúcia quando escreve que o autor “deve tornar-se outro em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro” (BAKH-TIN, 2003, p. 13). Ou ainda: “Um acontecimento es-tético pode realizar-se apenas na presença de dois

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participantes, pressupõe duas consciências que não coincidem” (BAKHTIN, 2003, p. 20).

Jacques Derrida

Percebe-se no artigo de Barthes sobre a nova crítica para a Enciclopédia Universalis a pre-sença do pensamento de Jacques Derrida, seja ao se referir à metafísica da verdade, ao cogito carte-siano e ao parricídio da escrita. Em Gramatologia e em A escritura e a diferença, ambos publicados em 1967, Derrida começava a traçar seu projeto de desconstrução da metafísica ocidental a partir de alguns filósofos como Platão e Rousseau (entre outros) e de alguns poetas, como Mallarmé: crítica ao fonocentrismo, que privilegia a voz em detrimen-to da escrita, crítica ao logocentrismo. Passando também pela Psicanálise e pela Linguística, Derrida questiona o sentido do sujeito clássico e analisa a situação do escritor no sistema de relações em que ele está inserido.

O ‘sujeito’ da escrita não existe se se entender por isso alguma solidão soberana do escritor. O sujeito da escrita é um sistema de relações en-tre as camadas: do bloco mágico [de Freud], do psíquico, da sociedade, do mundo. No interior dessa cena, a simplicidade pontual do sujeito clássico é inencontrável. Para descrever esta estrutura, não basta lembrar que se escreve sempre para alguém; e as oposições emissor--receptor, código-mensagem, etc. constituem instrumentos muito grosseiros. Será em vão que se buscará no ‘público’ o primeiro leitor, ou seja, o primeiro autor da obra. E a ‘sociologia da literatura’ não percebe nada da guerra e das ar-timanhas de que a origem da obra é o objeto en-tre o autor que lê e o primeiro leitor que dita. A

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socialidade da escrita como drama requer uma outra disciplina (DERRIDA, 1967a, p. 335)7.

Em A disseminação, de 1972, no capítulo “A farmácia de Platão”, Derrida se refere ao binômio leitura-escrita no mesmo sentido que Barthes e a nova crítica faziam. “Se há uma unidade da leitura e da escrita, como se pensa facilmente hoje, se a leitura é a escrita, essa unidade não designa nem a confusão indiferenciada nem a identidade tranqui-la; o é que junta a leitura à escrita deve passar às vias de fato” (DERRIDA, 1972, p. 72).8 Nesse livro, Derrida propõe o conceito de disseminação para substituir o de polissemia porque o termo disse-minação (retomado por Barthes no artigo sobre a teoria do texto), em sua etimologia contém o étimo de semente, implicando, assim, a germinação, o en-gendramento e a dispersão de sentidos.

Se não há unidade temática ou sentido total para se reapropriar além das instâncias textu-ais, em um imaginário, uma intencionalidade ou um vivido, o texto não é mais a expressão ou a representação (feliz ou não) de alguma verdade

7 Tradução minha. Le sujet de l’écriture est un système de rapports entre les couches: du bloc magique, du psychique, de la société, du monde. A l’intérieur de cette scène, la simplicité ponctuelle du sujet classique est introuvable. Pour décrire cette structure, il ne suffit pas de rappeler qu’on écrit toujours pour quelqu’um; et les oppositions émetteur-récepteur, code-message, etc., restent de forts grossiers instruments. On chercherait en vain dans le ‘public’ le premier lecteur, c’est-à-dire le premier auteur de l’oeuvre. Et la ‘sociologie de la littérature’ ne perçoit rien de la guerre et des ruses dont l’origine de l’oeuvre est ainsi l’enjeu, entre l’auteur qui lit et le premier lecteur qui dicte. La socialité de l’écriture comme drame requiert une tout autre discipline.8 Tradução minha. S’il y a une unité de la lecture et de l’écriture, comme on le pense facilement aujourd’hui, si la lecture est l’écri-ture, cette unité ne désigne ni la confusion indifférenciée ni l’iden-tité de tout repos; le est qui acouple la lecture à l’écriture doit en découdre..

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que viria se difratar ou se reunir numa literatura polissêmica. É este conceito hermenêutico de polissemia que se deveria substituir pelo de dis-seminação (DERRIDA, 1972, p. 294).9

A outra linhagem à qual se filia Barthes é aquela que vai de Mallarmé a Blanchot, passando por Proust e Valéry, autores que buscaram um apa-gamento da figura do autor num momento em que se privilegiava a explicação do texto em função dos dados biográficos do escritor.

Maurice Blanchot

Algumas das premissas sobre a morte do autor já apareciam na obra de Maurice Blanchot, que em O livro por vir (edição original de 1959) co-locava questões relevantes sobre o fim da literatura. Vou me deter em três dos últimos artigos do livro de Blanchot, “A busca do ponto zero”, “Onde agora? Quem agora?” e “Morte do último escritor”. Ao ana-lisar O inominável de Beckett, Blanchot pergunta quem está condenado a falar sem repouso, vivendo uma experiência sob a ameaça do impessoal por-que sem nome. Quem fala, o próprio autor, Samuel Beckett? E ele continua:

Mas quem poderá designar esse nome se, de qualquer maneira, aquele que escreve já não é Beckett, mas a exigência que o arrastou para fora de si, o desapossou e o desalojou, entre-gou-o ao fora, fazendo dele um ser sem nome, o

9 Tradução minha. S’il n’y a donc pas d’unité thématique ou de sens total à se réapproprier au-delà des instances textuelles, dans un imaginaire, une intentionnalité ou un vécu, le texte n’est plus l’expression ou la représentation (heureuse ou non) de quelque vé-rité qui viendrait se diffracter ou se rassembler dans une littérature polysémique. C’est à ce concept herméneutique de polysémie qu’il faudrait substituer celui de dissémination.

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Inominável, um ser sem ser que não pode nem viver, nem morrer, nem cessar, nem começar, o lugar vazio em que fala a ociosidade de uma fala vazia e que é recoberta, bem ou mal, por um Eu poroso e agonizante (BLANCHOT, 2005, p. 312).

Assim, fica claro que o autor que escreve não se confunde com o ser empírico que tem o nome do autor. Sobre Proust ele escreve algo semelhante:

Mas quem fala aqui? Será Proust, o Proust que pertence ao mundo, que tem ambições sociais das mais vãs, uma vocação acadêmica, que ad-mira Anatole France, que é cronista mundano no Figaro? (...) Dizemos Proust, mas sentimos que é o totalmente outro que escreve, não so-mente uma outra pessoa, mas a própria exi-gência de escrever, uma exigência que utiliza o nome de Proust mas não exprime Proust, que só o exprime desapropriando-o, tornando-o Ou-tro (BLANCHOT, 2005, p. 306).

Blanchot está fundamentalmente ancora-do na questão da crise da representação e da morte do autor iniciada no fim do século XIX por poetas como Rimbaud e Mallarmé. A palavra em Mallarmé não é capaz de representar o referente; sendo puro significante, ela designa antes a ausência da coisa, ou seja, os objetos se desvanecem junto com o po-eta. No artigo “Crise de vers” em “Variations sur un sujet” Mallarmé escreve:

A obra pura implica o desaparecimento elocutó-rio do poeta, que cede a iniciativa às palavras, pelo choque de sua desigualdade mobilizadas; elas se incendeiam de reflexos recíprocos como um rastro virtual sobre pedrarias, substituindo a respiração perceptível no antigo sopro líri-co ou na direção pessoal entusiasta da frase

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(MALLARMÉ, 1945, p. 366) 10.

Mallarmé, obcecado pelo branco – página branca, cisne branco, neve – usa tantas metáforas que apontam para a ausência, o vazio, o silêncio, a impossibilidade de expressão. O poeta que almeja realizar sua grande Obra, o Livro, é condenado ao fracasso, aos fragmentos. Ele escreve ainda: “Eu digo: uma flor! E, fora do esquecimento em que mi-nha voz relega algum contorno, enquanto outra coi-sa sobre os cálices, musicalmente se levanta, a pró-pria ideia e suave, a ausência de todos os buquês”11 (MALLARMÉ, 1945, p. 368).

Já Rimbaud é o poeta vidente que aban-dona a poesia aos 20 anos, desiludido, sem outra explicação senão alguns sinais impressos em seus poemas, como em “Sangue mau”: “Minha jornada terminou; deixo a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões (...). Vamos! A marcha, o fardo, o de-serto, o tédio e a cólera” (RIMBAUD, 1964, p. 119-120).12 Ele já não acreditava na força da palavra poética para transformar o mundo. É na trilha da po-ética de Mallarmé e Rimbaud que se situa Blanchot.

A obra exige que o homem que escreve se sa-crifique por ela, se torne outro, se torne não um outro com relação ao vivente que ele era,

10 Tradução minha. “L’oeuvre pure implique la disparition élocu-toire du poète, qui cède l’initiative aux mots, par le heurt de leur inégalité mobilisés; ils s’allument de reflets réciproques comme une virtuelle traînée sur des pierreries, remplaçant la respiration perceptible en l’ancien souffle lyrique ou la direction personnelle enthousiaste de la phrase”.11 Tradução minha. “Je dis: une fleur! et, hors de l’oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que quelque chose d’autre que les calices sus, musicalement se lève, idée même et suave, l’absence de tous les bouquets”.12 Tradução minha. “Ma journée est faite; je quitte l’Europe. L’air marin brûlera mes poumons (...). Allons! La marche, le fardeau, le désert, l’ennui et la colère”.

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o escritor com seus deveres, suas satisfações e seus interesses, mas que se torne ninguém, o lugar vazio e animado onde ressoa o apelo da obra” (BLANCHOT, 2005, p. 316).

Assim, ele imagina a morte do último es-critor, um Rimbaud ainda mais mítico do que o ver-dadeiro (BLANCHOT, 2005, p. 319), um escritor con-denado ao silêncio. A crise da representação, que se iniciara no fim do século XIX, só fez se acentuar em consequência dos traumas advindos das duas guerras por que passou a Europa. A obra de Beckett – assim como de outros escritores dos anos 1950 - se situa nesse contexto de desesperança, de disto-pia, com o esfacelamento do sujeito e da linguagem. Blanchot vê o desaparecimento da literatura devi-do ao “recuo do silêncio” no “grande tumulto das cidades” onde prevalece uma fala vazia, uma “fala secreta sem segredo” (BLANCHOT, 2005, p. 320). A literatura que surge nessa tagarelice coletiva não é mais aquela que tirava o autor fora de si, levando-o muitas vezes à desrazão ao buscar a Beleza. Blan-chot concebe o escritor como um ser que sacrifica sua vida porque vive atravessado por fantasmas que habitam seu mundo imaginário. Ao contrário de Freud, que acreditava que o homem podia sublimar suas angústias através da arte, Blanchot considera-va que quanto mais o artista adentra o mundo da ficção, mais obcecado ele fica; ele evoca os casos de Nerval, Hölderlin e Goya que atravessaram o espelho em busca do Belo (BLANCHOT, 2005, p. 315-316).

Apesar dos pontos em comum, o pensa-mento de Blanchot se situa muito mais na tradição da Estética que se cruza, naquele momento de cri-se, com o domínio da Ética enquanto as afirmações de Barthes em relação à morte do autor se inseriam mais no contexto da Linguística e visavam abrir es-

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paço para o leitor, contrapondo-se, assim, à História da Literatura que se fazia na França, a qual privile-giava o autor e a obra.

Michel Foucault

O artigo “A morte do autor” de Barthes foi seguido, um ano depois, pelo artigo “O que é um autor?”, de Michel Foucault. Não obstante a seme-lhança do questionamento do papel do autor, o en-foque de Foucault era bem diferente do de Barthes e de Blanchot. A obra de Foucault se inscreve na Filosofia da História, enquanto tal ele usava a arte para pensar questões sociais expressas por vários tipos de discurso.

Foucault começa sua argumentação to-mando emprestada a frase de Beckett “Que importa quem fala, disse alguém, que importa quem fala” para afirmar que a escrita naquele momento havia se libertado do tema da expressão e só se referia a si própria, sem se deixar aprisionar na forma da in-terioridade. A referência cabe bem aos modelos for-malistas e anti-psicologizantes do nouveau roman francês e do teatro do absurdo (de que fazia parte Beckett), que enfatizavam muito mais a aventura da escrita do que a escrita das aventuras, na célebre boutade de Jean Ricardou. A literatura vivia numa era da suspeita, conforme o título do livro de Natha-lie Sarraute, L’ère du soupçon. Para Foucault, “na escrita, não se trata da manifestação ou da exal-tação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está sempre a desaparecer” (FOUCAULT, 1992, p. 35). Tal como Blanchot, ele assinala o parentesco da escrita com a morte, que se manifesta “no apagamento dos ca-racteres individuais do sujeito que escreve (...); a

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marca do escritor não é mais do que a singularidade da sua ausência” (FOUCAULT, 1992, p. 36).

Ele afirma que não basta falar da morte do autor, o conceito de obra é tão problemático quanto a individualidade do autor. Não basta questionar a intencionalidade do autor (o seu querer dizer), não basta atribuir à crítica um papel hermenêutico ou exegético, o desaparecimento do autor está subme-tido “à clausura transcendental” (FOUCAULT, 1992, p. 41). Para Foucault, trata-se, pois, de “localizar o espaço deixado vazio pelo desaparecimento do au-tor, seguir de perto a repartição das lacunas e das fissuras e perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto” (FOUCAULT, 1992, p. 41).

Barthes, em artigo de 1971, também cri-tica o uso do termo “obra”, preferindo sempre falar de texto. “O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido; um plural irredutível” (BARTHES, 1988, p. 74). Enquanto a obra estaria presa a um processo de filiação, em que o autor é o seu pai e proprietário, o texto é lido sem a inscrição do Pai, numa relação com outros textos (intertextualidade). O autor, ao se colocar no romance, por exemplo, torna-se um “autor de papel”, “o eu que escreve o texto, também, nunca é mais do que um eu de papel” (BARTHES, 1988, p.76). Ao fazer isso, Fou-cault e Barthes dessacralizavam tanto a figura do autor quanto o estatuto da obra literária. No entan-to, se para Foucault esse esvaziamento se dava em proveito de uma compreensão do discurso como acontecimento, fazendo parte de um processo mui-to mais coletivo e histórico, para Barthes essa des-sacralização tirava o foco da produção textual para visar a recepção (o leitor).

Um aspecto que Foucault focaliza com

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destaque, diferentemente de Barthes e Blanchot, é a questão do nome do autor, que não é a mes-ma coisa que o nome de uma pessoa qualquer; um nome de autor exerce uma função classificatória que serve para delimitar um certo corpus (a obra de tal autor) e determinar a sua recepção pelo pú-blico leitor. “A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funciona-mento de alguns discursos no interior de uma socie-dade” (FOUCAULT, 1992, p. 46). O autor (ou, o que Foucault chama de função autor) surgiu no fim do século XVIII quando se instaurou um regime de pro-priedade dos textos: do lado negativo da questão, o autor se tornou responsável por seus livros, poden-do ser punido por suas transgressões (basta pensar nas ameaças aos filósofos como Voltaire, Rousseau, Diderot); do lado positivo, ele adquiriu uma certa aura (até mesmo por suas transgressões).

Na mesma época operou-se um quiasma entre a produção científica, que perde a função au-tor, e a produção literária, em que se exacerba a função autor. A formação do autor tem a ver com a projeção, “em termos mais ou menos psicologizan-tes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os textos que estabe-lecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efetuamos” (FOU-CAULT, 1992, p. 51). A prática crítica se aproxima das técnicas usadas na exegese cristã, com critérios semelhantes àqueles empregados por São Jerôni-mo (valor, coerência conceptual ou teórica, unidade estilística e momento histórico).

De um ponto de vista mais formal, o tex-to tem signos que remetem à função autor, como os pronomes pessoais, os advérbios de tempo, a conjugação verbal. No romance há algumas con-venções que atestam que o eu não remete ao au-

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tor real, empírico, mas a um narrador ou a um alter ego. “Seria tão falso procurar o autor no escritor real como no locutor fictício; a função autor efetua-se na própria cisão – nessa divisão e nessa distância”. Em suma, “todos os discursos que são providos da função autor comportam esta pluralidade de ‘eus’” (FOUCAULT, 1992, p. 55). A proposta de Foucault em relação ao autor é “retirar ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento originário e de o analisar como uma função variável e complexa do discurso” (FOUCAULT, 1992, p. 70).

Como se pode ver, tanto Barthes quanto Foucault esvaziaram a função autor de sua carga de sujeito pleno e detentor da origem e do sentido do texto, colocando o texto em relação e em circulação com outros textos; ao mesmo tempo, eles esvazia-ram a carga psicologizante da crítica biográfica que buscava explicações vivenciais aos sentidos que emanavam do texto. O discurso sobre o autor em Foucault se situa no campo da História porque ele trata tanto do autor de textos literários quanto do au-tor das Ciências; a discussão está centrada na fun-ção-autor, ou seja, no papel desempenhado social-mente pelo autor enquanto produtor de discursos.

Barthes assinala que o aparecimento do autor está associado ao humanismo moderno, ini-ciado no Renascimento, e deriva da ideia mesma de “pessoa humana” (BARTHES, 1988). Aqui há uma confluência do pensamento de Barthes com o de Foucault, que mostra as transformações ocorridas na era clássica, ensejando o surgimento da figura do autor (de literatura). Ele diz que

houve um tempo em que textos que hoje cha-maríamos ‘literários’ (...) eram recebidos, pos-tos em circulação e valorizados sem que se pusesse a questão da autoria; o seu anonimato

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não levantava dificuldades, a sua antiguidade, verdadeira ou suposta, era uma garantia sufi-ciente (FOUCAULT, 1992, p. 48).

Os textos científicos, ao contrário, neces-sitavam do respaldo do nome do autor. No século XVII ou no XVIII produziu-se, segundo Foucault, um quiasma: “começou-se a receber os textos científi-cos por si mesmos (...) mas os discursos ‘literários’ já não podem ser recebidos se não forem dotados da função autor” (FOUCAULT, 1992, p. 49).

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A RECEPÇÃO CRÍTICA DA “MORTE DO AUTOR” NA FRANÇA

Em resumo, de maneira sumária, esse é o caldo em que se insere o artigo de Barthes e a inter-locução que ele mantinha naquele período. Cumpre agora ver como o artigo foi recebido na França nos anos subsequentes. Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico, confunde a morte do autor com au-tor anônimo, associando o pensamento de Barthes ao da revista Tel Quel e ao de Paul Valéry. Para Valéry a formação e as flutuações do leitor constituiriam o verdadeiro sujeito da história da literatura e não o autor (LEJEUNE, 1975, p. 336); entretanto, segundo Lejeune, apesar de sonhar com uma literatura anô-nima, Valéry não a teria praticado, já que entrou para a Academia Francesa. Lejeune não explica qual é a contradição entre as ideias de Valéry e sua entrada para a Academia. Ele estabelece uma correlação en-tre Valéry e Barthes: “O grupo da revista Tel Quel, ao

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colocar em questão a noção de autor (substituindo-a pela de scripteur [escrevente], faz algo semelhante, mas nem por isso pratica de fato a coisa” (LEJEUNE, 1975, p. 34; 2008, p. 34 para esta tradução). E atri-bui ao conjunto dos participantes de Tel Quel uma noção que é de Barthes, entendendo que “a morte do autor” seria sinônimo de obra anônima13. Philippe Roger, no debate após minha apresentação de par-te deste texto no colóquio “Roland Barthes plural”, contou uma anedota: disse que foi convidado a falar sobre o artigo de Barthes “A morte do autor” em um evento sobre o anonimato em obra de arte em um museu de Genebra, o que demonstra que os mal--entendidos sobre o significado do texto continuam.

Já Antoine Compagnon usa a afirmação de Barthes de que o aparecimento do autor está asso-ciado ao humanismo moderno, iniciado no Renasci-mento (ideia que é, aliás, muito mais desenvolvida por Foucault), como um dado ideológico que teria levado Barthes a “matar” o autor. “Esse era o ponto de partida da nova crítica: o autor não era senão o burguês, a encarnação da quintessência da ide-ologia capitalista” (COMPAGNON, 2010, p. 50). Ele associa a morte do autor aos acontecimentos de maio de 1968.

Estamos em 1968: a queda do autor, que assi-nala a passagem do estruturalismo sistemático ao pós-estruturalismo desconstrutor, acompa-nha a rebelião antiautoritária da primavera. Com a finalidade de, e antes de executar o au-tor, foi necessário, no entanto, identificá-lo ao indivíduo burguês, à pessoa psicológica, e as-sim reduzir a questão do autor à da explicação do texto pela vida e pela biografia, restrição que

13 A escritora italiana Elena Ferrante busca o anonimato por não querer se mostrar num momento em que o escritor é extremamente midiático; não se sabe nem mesmo se o seu nome é autêntico ou se é um pseudônimo.

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a história literária sugeria, sem dúvida, mas que não recobre certamente todo o problema da in-tenção, e não o resolve em absoluto (COMPAG-NON, 2010, p. 51)14.]

Esta não é a questão: em nenhum momen-to Barthes e Foucault tratam do autor como “indiví-duo burguês”; muitos elementos entram na compo-sição da “morte do autor”, mas não este, ideológico. Chega a ser desconcertante sugerir que é pelo viés da contestação política que se pode compreender a morte do autor. Por outro lado, falar de 1968 consti-tui uma falácia, já que Barthes se manteve distante dos acontecimentos, como atestam seus biógrafos.

Como o foco principal de Compagnon é hermenêutico, ele postula a existência da intencio-nalidade do autor ao escrever seu texto. Sua crítica da proposição de Barthes passa ao largo porque Compagnon pensa no autor como consciência pen-sante, cujas intenções parecem inequívocas.

No topos da morte do autor, confunde-se o autor biográfico ou sociológico, significando um lugar no cânone literário, com o autor, no sentido her-menêutico de sua intenção ou intencionalidade, como critério da interpretação: a ‘função do au-tor’ de Foucault simboliza com perfeição essa redução (COMPAGNON, 2010, p. 52).

Compagnon reconhece, porém, que a mor-te do autor trouxe, como consequência, aspectos positivos, como a “polissemia do texto, a promoção do leitor, e uma liberdade de comentário até então desconhecida”, mas ele faz uma ressalva: “por fal-ta de uma verdadeira reflexão sobre a natureza das relações de intenção e de interpretação, não é do 14 Os biógrafos de Barthes, a começar do primeiro, Louis-Jean Cal-vet (1990), assinalaram que ele não participou nem se interessou pela revolta de maio de 1968.

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leitor como substituto do autor de que se estaria fa-lando?” (COMPAGNON, 2010, p. 52). Sua pergunta não deixa de ter sentido embora as respostas, de-pendendo do autor que as faça, formem um grande emaranhado. Entretanto, o que parece irrefutável é o fato de o leitor não substituir o autor; o que ele faz é atualizar o sentido do texto e, nesse sentido, ele faz viver o texto, como o instrumentista que, tocan-do a partir da partitura, faz pulsar a música.

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INTENCIONALIDADE DO AUTOR OU ATO DE LEITURA?

A intencionalidade é criticada por Barthes porque não se pode nunca saber as verdadeiras intenções do autor, não se pode interrogar o autor sobre algo que lhe escapa pois, como a Psicanálise demonstrou, pode-se ter a intenção de dizer uma coisa e acabar dizendo outra, porque o homem não controla o seu inconsciente. O sujeito, seja ele autor ou leitor, não é mais o “sujeito pensante da filosofia idealista, mas sim despojado de toda unidade, per-dido no duplo desconhecimento do seu inconscien-te e da sua ideologia, e só se sustentando por um carrossel de linguagens”, afirma Barthes no artigo “Sobre a leitura” (de 1976) (BARTHES, 1988, p. 51).

Em “Escrever a leitura” (de 1970) Barthes critica a tradição pela qual o autor é o “eterno pro-prietário de sua obra” que controlaria o sentido úni-co e verdadeiro do seu texto. De acordo com esta

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posição hierarquizada, o leitor não é livre de enten-der a seu modo o texto, ele é forçado a descobrir o que o autor quis dizer. Barthes volta a essa questão em “Da obra ao texto” (de 1971) em que ele assina-la que se considera que o autor é o pai e proprietário de sua obra (que, neste artigo, ele distingue do tex-to, que estaria mais aberto ao leitor).

Em Crítica e verdade (que é de 1966, por-tanto, anterior ao artigo “A morte do autor”) Barthes já refletia sobre a relação autor-leitor, criticando a ideia, muito comum, de que o escritor detém o sen-tido de sua obra. É curioso como a doxa continua na academia nos dias de hoje: basta pensar em como nossos estudantes (nossos colegas?) usam a en-trevista do escritor para provar “a verdade” do que é dito no texto. Ora, não podemos acreditar em tudo o que diz o escritor em suas entrevistas; por outro lado, o que fazer quando se trata de escritor morto? A busca do sentido do texto torna-se uma tarefa in-sana porque, como afirma Barthes, se quer “fazer falar o morto ou seus substitutos, seu tempo, seu gênero, o léxico, em suma, tudo o que é contempo-râneo do autor, proprietário por metonímia do direito do escritor passado sobre sua criação” (BARTHES, 1966, p. 59)15.

Barthes distingue o leitor do leitor-crítico, um leitor já escritor, que vai fazer não uma tradu-ção ou uma explicação do texto, mas uma perífra-se; ele não pode pretender atingir “o fundo da obra porque esse fundo é o próprio sujeito, quer dizer, uma ausência”; esse fundo não é nem um “explícito puro” que, ao ser encontrado, nada mais haveria a dizer sobre o texto, nem um “segredo último”, que, igualmente, se pudesse ser encontrado, nada mais 15 Tradução minha. (...) on veut à tout prix faire parler le mort ou ses substituts, son temps, le genre, le lexique, bref tout le contem-porain de l’auteur, propriétaire par métonymie du droit de l’écrivain passé sur sa création.

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haveria a buscar; em suma, “o que quer que se diga da obra, nela resta sempre, como em seu primeiro momento, linguagem, sujeito, ausência” (BARTHES, 1966, p. 72)16. E o leitor é aquele sujeito atravessa-do pelas múltiplas linguagens do texto (BARTHES, 1988, p. 51).

Giorgio Agamben, retomando as reflexões de Benveniste e Foucault em seu livro O que resta de Auschwitz, e ainda que não cite Barthes, vai no mesmo sentido afirmando que se a filosofia levar a sério o fato de o eu ser uma função discursiva, “eu falo”, isso significa “deixar de pensar a linguagem como comunicação de um sentido ou de uma ver-dade por parte de um sujeito que é seu titular e seu responsável”. Desse modo, a intencionalidade des-se sujeito já está comprometida porque no lugar do sujeito está um vazio.

A enunciação assinala, na linguagem, o limiar entre um dentro e um fora, o fato de ter lugar como exterioridade pura; e a partir do momen-to em que os enunciados se tornam referência principal da investigação, o sujeito fica dissol-vido de qualquer implicação substancial e se torna pura função ou pura posição (AGAMBEN, 2008, p. 142).

No artigo “O autor como gesto” (em Profa-nações) Agamben lembra que para Foucault o autor ocupa o lugar do morto. “Existe um sujeito-autor e, no entanto, ele se atesta unicamente por meio dos sinais de sua ausência” (AGAMBEN, 2007, p. 58). O

16 Tradução minha. La critique n’est pas une traduction, mais une périphrase. Elle ne peut prétendre retrouver le ‘fond’ de l’oeuvre, car ce fond est le sujet même, c’est-à-dire, une absence: toute mé-taphore est un signe sans fond, et c’est ce lointain du signifié que le procès symbolique, dans sa profusion, désigne (...): quoi qu’on dise de l’oeuvre, il y reste toujours, comme à son premier moment, du langage, du sujet, de l’absence.

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lugar, ou o ter lugar, “está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tem-po, infinitamente fogem disso. (...) Pois tão ilegítima quanto a tentativa de construir a personalidade do autor através da obra é a de tornar seu gesto a cha-ve secreta da leitura” (AGAMBEN, 2007, p. 62-63).

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O ATO DE LEITURA E A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

Essa questão do leitor estava sendo pen-sada ao mesmo tempo na Alemanha pelos autores da chamada “estética da recepção”. Os teóricos li-gados à estética da recepção se dividem em duas categorias: a que deriva da fenomenologia do ato individual de leitura, em que se situam Roman In-garden e, em seguida, Wolfgang Iser, e a que se in-teressa pela hermenêutica da reação do público ao texto, como é o caso de Hans Georg Gadamer e por seu discípulo Hans Robert Jauss.

Iser em O ato da leitura: uma teoria do efei-to estético, destaca o papel do leitor. Ele afirma que não se trata de buscar uma significação preexistente no texto, antes há que se pensar nos efeitos que o texto suscita no leitor, nos apelos que lança ao lei-tor. Luiz Costa Lima assinala, no prefácio ao livro que

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organizou sobre a estética da recepção, a importân-cia da leitura nas análises de Iser, tendo em vista a indeterminação do texto, ou seja, o texto ficcional contém vazios que devem ser preenchidos no ato de leitura. Citando parcialmente Iser, ele escreve:

Dizer, portanto, que o significado do texto lite-rário é engendrado no processo de leitura (...) significa que o texto não é ‘expressão de algo outro’ (...) anterior e independente dele. Como, não o sendo, será então capaz de apelar para o sentido que o leitor lhe concederá? É capaz de tal apelo porque o texto contém um grau interno de indeterminação (...), que o distingue tanto de um teorema como de uma mensagem pragmá-tica (LIMA, 2002, p. 24).

O que Iser chama (seguindo Ingarden) de indeterminação pode ser associado ao conceito de polissemia na obra crítica de Barthes, polissemia que pressupõe, justamente, a riqueza e a pluralida-de de sentidos contidos no texto literário. Iser con-sidera que o efeito que o texto provoca no leitor já está presente na própria obra, o que pode ser pro-blemático porque não se sabe até que ponto o leitor é livre de ler a partir de seu próprio repertório e até que ponto esse efeito já estaria pré-determinado vi-sando um leitor ideal, capaz de apreender aquele sentido ou aquele efeito de sentido. A polissemia é um conceito mais neutro (termo que condiz com a concepção geral de Barthes sobre o neutro). Um outro conceito que me parece produtivo é o de in-decidibilidade, usado por Derrida, que aponta para a multiplicidade de sentidos em que não se pode afirmar categoricamente que tal sentido é mais cor-reto ou justo do que outros. De certa maneira, o indecidível é próximo do neutro porque ocupa uma posição intervalar.

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O outro autor da estética da recepção, Hans Robert Jauss, enfatiza o papel da leitura ao longo da história. No livro Por uma estética da re-cepção17, ele compara a obra a uma partitura musi-cal que deve ser interpretada, como fez Barthes no artigo “Da obra ao texto” (de 1971).

A obra literária não é um objeto existente em si mesmo, que apresentaria em qualquer mo-mento a todo observador a mesma aparência; um monumento que revelaria ao observador passivo sua essência intemporal. Ela é feita, an-tes, como uma partitura, para despertar a cada leitura uma ressonância nova que arranca o tex-to de sua materialidade das palavras e atualiza sua existência (JAUSS, 1978, p. 47)18.

A perspectiva de Jauss é diferente da de Iser e de Barthes, ele pensa a obra na perspectiva da histó-ria literária, mas há alguns pontos em comum: a obra não é um objeto material que tenha uma essência in-temporal; o leitor não é passivo; o leitor, ao atualizar a existência da obra, lhe confere novos sentidos. Jauss aponta Barthes como pioneiro na França na crítica ao lansonismo19 universitário; em sua interpretação de Racine, despojando a obra da exegese histórica e das ingenuidades da psicologia da criação literária, Bar-thes “elabora uma espécie de antropologia estrutural da tragédia clássica” (JAUSS, 1978, p. 110).17 Os textos aí incluídos foram publicados na Alemanha no início dos anos 1970; a tradução francesa é de 1978.18 Tradução minha. L’oeuvre littéraire n’est pas um objet existant en soi et qui présenterait en tout temps à tout observateur la même apparence: un monument qui révélerait à l’observateur passif son essence intemporelle. Elle est plutôt faite, comme une partition, pour éveiller à chaque lecture une résonance nouvelle qui arrache le texte à la matérialité des mots et actualise son existence.19 Gustave Lanson (1857-1934). Professor e crítico literário, é con-siderado o criador da história literária. Baseado no determinismo sócio-histórico, sua análise da obra privilegiava a biografia do autor.

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Muito criticado por Raymond Picard, que representava, justamente, a exegese histórica pra-ticada na Sorbonne, Barthes respondeu-lhe no livro Crítica e verdade, explicitando seu esforço de liberar a obra das limitações da intencionalidade; ao fazer isso, ele pode reencontrar o “tremular mitológico dos sentidos” (BARTHES, 1966, p. 60). O mundo se transforma, a obra permanece inalterada, mas não é lida mais da mesma maneira; a percepção do público que vai hoje à Comédie Française assistir a uma peça de Racine não é a mesma da do públi-co do século XVII, nem a interpretação dos atores é a mesma. Cabe ao leitor/espectador assegurar ou não perenidade às obras do passado tendo em vis-ta a possibilidade de elas continuarem significando algo, continuarem suscitando emoção e reflexão. No prefácio a Sobre Racine (que é de 1960), Barthes reflete sobre a recepção ao longo da história:

Escrever é abalar o sentido do mundo, aí dispor uma interrogação indireta à qual o escritor, em um último suspense, se abstém de responder. A resposta só é dada por cada um de nós, levando assim sua história, sua linguagem, sua liberda-de; mas como história, linguagem e liberdade mudam infinitamente, a resposta do mundo ao escritor é infinita: nunca cessa o ato de res-ponder ao que foi escrito fora de toda resposta: afirmados, em seguida colocados em rivalida-de, depois substituídos, os sentidos passam, a questão permanece (BARTHES, 1963, p. 11).20

A convergência do pensamento de Barthes 20 Tradução minha. Écrire, c’est ébranler le sens du monde, y dispo-ser une interrogation indirecte, à laquelle l’écrivain, par un dernier suspens, s’abstient de répondre. La réponse, c’est chacun de nous qui la donne, y apportant son histoire, son langage, sa liberté; mais comme histoire, langage et liberté changent infiniment, la réponse du monde à l’écrivain est infinie: on ne cesse jamais de répondre à ce qui a été écrit hors de toute réponse: affirmés, puis mis en rivalité, puis remplacés, les sens passent, la question demeure.

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(e da chamada nova crítica francesa naquele mo-mento) com a de Iser e Jauss assinala a pertinência de valorizar a função do leitor na cadeia autor-obra--leitor. Jauss entende que o sentido ou a resposta que o leitor depreende podia estar colocado no texto de maneira ambígua ou totalmente indeterminada. É, aliás, pelo grau de indeterminação que se mede a eficácia estética da obra e, portanto, sua qualidade artística; então, questionar “a morte do autor” de Barthes com o argumento hermenêutico de inten-cionalidade do autor não leva em conta, justamente, a polissemia e a ambiguidade do texto.

Como afirma Jean Starobinski no prefácio do livro de Jauss, “a figura do destinatário e da re-cepção da obra está, em grande parte, inscrita na própria obra, em sua relação com as obras prece-dentes que foram conservadas a título de exemplos e de normas” (STAROBINSKI, 1978, p. 13). Esse contínuo, estudado por Jauss através de conceitos como o de “horizonte de expectativa”, estava implí-cito na obra de Barthes. Barthes não era um filóso-fo, não elaborou sistemas de pensamento; ensaísta, ele trabalhava, como em suas aquarelas, por finos traços, por insights gloriosos que lhe garantiram o sucesso no mundo intelectual e, ao mesmo tempo, provocaram algumas polêmicas. O título “A morte do autor”, uma boutade, sem dúvida, se prestava para os mal entendidos gerados e, por essa razão, ele voltou inúmeras vezes a essa questão, inclusive no seu último curso, A preparação do romance II.

Jean-Paul Sartre

Talvez seja interessante retroceder uns vinte anos para lembrar a reflexão de Sartre sobre o ato de leitura no livro Qu’est-ce que la littérature?

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(Que é a literatura?), publicado em 1948, que se in-sere no âmbito da Fenomenologia, como a obra de Iser, com a qual mantém algumas semelhanças21.

Sartre afirma que o objeto literário é um estranho pião que só existe em movimento; para fazê-lo surgir é preciso um ato concreto que se cha-ma leitura e ele só dura enquanto durar a leitura (SARTRE, 1948, p. 52) 22. Em outras palavras, é o ato de leitura que atualiza e dá vida ao texto escrito que, sem esse sopro de vida, é só um amontoado de traços. Os processos mentais do leitor são dife-rentes dos processos mentais do autor; enquanto o leitor aguarda, ansioso, o desenrolar do narrado, o autor compõe com palavras aqueles acontecimen-tos narrados.

Talvez a crítica que se poderia fazer a Sar-tre se relaciona com o fato de ele acreditar que o escritor conhece as palavras antes de escrevê-las. Barthes (e outros pensadores como Derrida) diria que as palavras surgem no momento mesmo da composição, ou seja, o autor não sabe o que vai es-crever enquanto não escreve efetivamente. O autor conhece as palavras, é claro, mas não sabe que pa-lavras vai empregar, não tem um controle absoluto sobre o processo. O autor projeta e controla sem dú-vida, mas muita coisa lhe escapa, foge a sua inten-ção. Enquanto teórico da fenomenologia, Sartre não podia deixar de pensar na intencionalidade, como faz, também, Compagnon.

Não obstante todas as diferenças, deriva-das de posições filosóficas diferentes, Sartre já pos-

21 Barthes nutria grande admiração por Sartre no início de sua carreira, admiração que nunca encontrou ressonância em Sartre, que preferiu ignorá-lo. 22 Tradução minha. Car l’objet littéraire est une étrange toupie, qui n’existe qu’en mouvement. Pour la faire surgir, il faut un acte concret qui s’appelle la lecture, et elle ne dure qu’autant que cette lecture peut durer.

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tulava a indissociabilidade entre criador e leitor. Se o autor escrevesse e não tivesse leitor, seu produto seria nulo porque “a operação de escrever implica a de ler como seu correlato dialético e esses dois atos conexos necessitam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará sur-gir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só existe arte para e por outro” (SARTRE, 1948, p. 55). 23

O ato de leitura para Sartre não é uma ope-ração mecânica, ele desvela o objeto literário e, ao desvelar, o leitor se torna também um criador, pois à medida que vai desvelando, ele vai inventando junto com o autor, que funciona como um guia. Já que a escrita só se perfaz na leitura, já que é através da consciência do leitor que o autor pode se perceber como essencial à sua obra, toda obra literária, para Sartre, é um apelo. Para Sartre, sem o leitor o autor não vive, ou em termos que empregaria Barthes, o autor morre para ceder lugar ao leitor que, ele sim, dará vida à sua obra.

23 Tradução minha. Mais l’opération d’écrire implique celle de lire comme son correlatif dialectique et ces deux actes connexes né-cessitent deux agents distincts. C’est l’effet conjugué de l’auteur et du lecteur qui fera surgir cet objet concret et imaginaire qu’est l’ouvrage de l’esprit; il n’y a d’art que pour et par autrui.

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A VOLTA DO AUTOR

Barthes se contrapõe à crítica que enfa-tizava o peso da biografia para a compreensão da obra do escritor, visão crítica predominante na Fran-ça na primeira metade do século XX. Na verdade, trata-se de um movimento pendular que já vinha desde o século XIX: entre os que defendiam o uso da biografia estava Sainte-Beuve, entre os que o criticavam, destacavam-se Mallarmé, cujo projeto estético privilegiava a busca da linguagem adequa-da, perfeita, para atingir a Beleza, e Proust, como se pode ver no seu livro Contre Sainte-Beuve.

Proust, em sua argumentação contra o método de Sainte-Beuve, indica que o erro do críti-co tinha sido o de buscar descobrir o autor através do estudo do homem, com a ajuda de depoimentos daqueles que o haviam frequentado. Sainte-Beuve teria avaliado mal os escritores, mesmo os seus

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contemporâneos, que conheceu bem (como Bau-delaire), tendendo a preferir os medíocres, os que agradavam o público de sua época.

Além dessa confusão entre o escritor em-pírico e o escritor-criador, a crítica biográfica tentava detectar a voz do autor, que faria confidências de maneiras mais ou menos disfarçadas pela ficção. É contra a escuta dessa voz que se colocou Barthes, preferindo privilegiar, como Mallarmé e Valéry, a lin-guagem, ou seja, como o sujeito é falado pela lin-guagem. Como já dizia o próprio Proust, e que seria retomado por Barthes, o que conta na literatura não é propriamente o que está nas palavras, mas o que está entre as palavras (PROUST, 1954, p. 157).24

Para Barthes a “escrita é a destruição de toda voz, de toda origem. A escrita é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (Barthes, 1988, p. 65)25. Assim, a partir do momen-to em que o narrado se torna texto e é dado ao públi-co, começa a morte do autor. Ao tirar o foco do autor, Barthes privilegiava o leitor, aquele que teria o en-cargo de dar sentido ao texto no processo de leitura: “o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escrita; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino” (Barthes, 1988, p. 70). O leitor encarna essa travessia ou esse atraves-samento de textos e linguagens; o leitor pode ser, em última instância, um escritor, porque ninguém se torna escritor sem ser leitor, o desejo de escre-24 Tradução minha. “Seulement ce n’est pas dans les mots, ce n’est pas exprimé, c’est tout entre les mots, comme la brume d’un matin de Chantilly ».25 Tradução modificada por mim. O tradutor usa a palavra “escri-tura” para écriture; eu prefiro usar “escrita”, termo mais comum da língua portuguesa. Creio que esta é a tendência atual.

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ver nasce da leitura, como assinalou com acuidade Kristeva no seu conceito de intertextualidade que considera que o texto é um “mosaico de citações”.

O retorno do autor começa no livro Sade, Fourier, Loyola, no qual Barthes cunha o neologis-mo “biografema”. Ele considera nos três autores estudados apenas alguns traços corporais26, assim como ele destacara, na biografia de Michelet, a en-xaqueca do historiador; “o sujeito é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte”. Da mesma maneira, ele sonha que, após a sua morte, algum biógrafo faça dele uma biografia “esburacada”, reduzida “a alguns pormenores, a al-guns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biogra-femas’” (BARTHES, 2005a, p. xvii).

O prazer do texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não é por certo aquele que foi identificado por nossas ins-tituições (...); nem mesmo o herói de uma bio-grafia ele é. O autor que vem de seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de al-guns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontí-nuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopeia de um destino; não é uma pessoa (civil, moral), é um corpo (BARTHES, 2005a, p. xvi).

Barthes retomaria a noção de biografema em outros textos. Em Roland Barthes por Roland Barthes, ao se referir aos “traços miúdos reunidos em cenas fugidias”, cuja “combinação delicada-mente dosada” vai definir se um amigo é amável ou não (Barthes, 2003, p. 78). Ele associa o biografe-ma ao haicai e à anamnese factícia. 26 “o regalo branco de Sade, os vasos de flores de Fourier, os olhos espanhóis de Inácio”.

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Chamo de anamnese a ação – mistura de gozo e de esforço – que leva o sujeito a reencontrar, sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade de lembrança: é o próprio haicai. O biografema (ve-ja-se SFL, p. 13) nada mais é do que uma anam-nese factícia: aquela que eu atribuo ao autor que amo (BARTHES, 2003, p. 126. Grifos do autor).

Também em A câmara clara o biografema volta na comparação entre fotografia e História: “Do mesmo modo, gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de ‘biografemas’; a fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema tem com a biogra-fia” (BARTHES, 1984, p. 34).

Na esteira de Régine Robin, podem-se as-sociar duas noções criadas por Barthes, a de bio-grafema e a de punctum: não a completude de uma história, não a foto toda, mas pequenos detalhes, algumas inflexões, que emocionam numa biografia ou numa foto. “O biografema faz emergir um conjun-to de objetos parciais, um infrassaber não categori-zado, um imaginário” (ROBIN, 1989, p. 157).27 Vale lembrar que em A câmara clara Barthes usou dois conceitos para analisar a relação que temos diante da fotografia: o studium seria aquilo que o sujeito pode compreender com sua bagagem cultural; já o punctum designa aquele pequeno elemento na foto que provoca emoção, que punge. Barthes, ao olhar as fotos da mãe, recém-falecida, não conse-guia reencontrá-la, pois nenhuma delas lhe devolvia a verdade de sua mãe; de repente, algo numa foto da mãe menina o emocionou (ela tinha o punctum).

A volta do sujeito se completa no percurso de Barthes quando ele publica Roland Barthes por 27 Le biographème fait émerger un ensemble d’objets partiels, un infra-savoir non catégorisé, un imaginaire.

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Roland Barthes, um livro de fragmentos, em forma de aforismos, máximas, anamneses, comentários ensaísticos, no qual predomina o uso da terceira pessoa. Há nele um hibridismo genérico que mistu-ra ensaio, fotografia e recordações pessoais. Não é confessional, trata de alguns assuntos como amor e sexo de maneira distanciada; em alguns poucos momentos podem-se sentir os afetos que o movem, seu sentimento de ser marginal quando diz que o natural na França é ser católico, casado e ter um bom diploma, ou seja, tudo o que ele não era 28.

Apesar de todas as denegações, o livro fornece muitos dados autobiográficos através da “encenação de um imaginário” (BARTHES, 2003, p. 121) em diferentes graus: canhoto, nulo em Mate-mática, ele era leitor mais de Literatura do que de Ciências e Filosofia e leu muito menos do que um autor de grande cultura deveria ter lido. Algumas lembranças de infância são evocadas: ficou sozinho em um buraco e teve de ser salvo pela mãe, tomou banho de mar e se queimou com as medusas, re-memora os odores da cidade natal, Bayonne. É ver-dadeiramente uma autobiografia esburacada, como ele queria, com biografemas selecionados.

O destaque em termos autobiográficos seriam as fotografias presentes no início do livro: através das fotos o leitor tem a genealogia do autor, os ancestrais, a mãe, o pai, o próprio Barthes em todas as idades, fotografias que o “sideram” (que pungem?). As legendas se encontram em defasa-gem em relação às imagens: ora remetem a um outro tempo (diante das fotos dos avôs jovens, o comentário se refere ao fim da vida deles), ora re-metem ao segundo plano, onde estaria o punctum 28 Apesar de seu brilhantismo e de seu sucesso, Barthes se res-sente (talvez) de algumas frustrações referentes aos diplomas e cargos que não obteve devido à tuberculose que o acometeu em 1934 e o perseguiu ao longo da vida.

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(a empregada no fundo o fascina, a moita atrás de sua foto adolescente evoca cenas de sexualidade infantil). Aí está o pai, morto durante a guerra, as-sunto que reaparece na passagem sobre o Liceu Louis-le-Grand. A ausência de pai, como no caso de Sartre (As palavras) e de Camus (O primeiro ho-mem), teria significado falta de conflito edipiano? As fotos da infância conduzem à obra de Proust, seu quase contemporâneo, seu duplo ideal: ele gostaria de escrever sua autobiografia “esburacada”, como Proust (BARTHES, 2005a, p. xvii). Diante de suas fo-tos mais atuais, simplesmente a impossibilidade de se reconhecer, colocando o problema da identidade (quem sou eu?). Ele lê em suas fotos tristeza e tédio.

Escrever uma autobiografia é forçosamen-te passar pelo Imaginário, se imaginar e se repre-sentar, o que Barthes procura evitar através de uma escrita fragmentada e díspar, já que os fragmentos têm caráter diferente, passando do aforismo à máxi-ma, do ensaio à anamnese, da revisão de sua obra a seus projetos futuros. E, no entanto, ao se dar conta do sentimento de insegurança que o toma no momento em que escreve, devido à total liberdade que tem após ter abandonado todos seus mentores e/ou ciências tutelares (marxismo, psicanálise, lin-guística, semiologia) ele afirma que cai no pior ima-ginário, o psicológico (BARTHES, 2003, p. 118).

O sujeito desdobrado que busca assinar seu imaginário no livro se esforça para se desviar da imagem fixa, joga lucidamente com aspas, pa-rênteses, ironias, mas percebe que “o imaginário vem a passos de lobo, patinando suavemente sobre um pretérito perfeito, um pronome, uma lembrança, em suma, tudo o que pode ser reunido sob a própria divisa do Espelho e de sua Imagem: Quanto a mim, eu” (BARTHES, 2003, p. 120-121).

A relação autobiografia e imaginário apare-

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ce assim: há um constrangimento do autor em falar de si e, de outro lado, há o fantasma do leitor pre-sumido, cuja complacência não pode ser medida de antemão. Uma certa vergonha ou timidez do autor se manifesta também em função da probabilidade de um olhar (voyeur) que o objetaria. O jogo do olhar pode ser tanto de reconhecimento quanto de reifi-cação e o autor, ao produzir sua autobiografia, não controla as reações de seus prováveis leitores.

Régine Robin considera que se trata de “um biográfico sem biografia, de um imaginário es-vaziado de toda imago”; se o eu tem dois aspectos, o si (soi) e o eu (moi), o si corresponde ao fixo e ao acabado, o eu é aberto ao inacabado, ao biografe-ma, ao indecidível (ROBIN, 2004, p. 63). Robin as-simila assim o si (soi) ao studium e o eu (moi) ao punctum, o si (soi) à biografia (na sua completude) e o eu (moi) ao biografema (ao fragmentário, ao deta-lhe). Para Barthes, a subjetividade não se confunde com o narcisismo, nem se opõe à objetividade: “o sujeito se coloca alhures, e a ‘subjetividade’ pode voltar num outro trecho da espiral: desconstruída, desunida, deportada, sem ancoragem: por que eu falaria mais de ‘mim’ já que ‘mim’ não é mais ‘si’?” (BARTHES, 2003, p. 185). Françoise Gaillard acen-tua que o livro não é propriamente uma autobiogra-fia, mas uma biografia do eu, restituindo à palavra biografia o seu sentido etimológico, em que bio de-signa a “vida no que tem de mais orgânico: o corpo” (apud DOSSE, 2009, p. 308).

Em oposição à metafísica clássica, que não tinha medo de falar de dois homens dentro de si (que acabavam se reconciliando), Barthes afirma que falar do sujeito dividido hoje significa outra coi-sa: “é uma difração que se visa, uma fragmentação em cujo jogo não resta mais nem núcleo principal, nem estrutura de sentido: não sou contraditório,

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sou disperso” (BARTHES, 2003, p. 160). A questão que se coloca aqui diz respeito não propriamente ao sujeito-autor, mas ao sujeito tout court, o sujeito fragmentado, que vai além da simples contradição porque são muitas as pontas que constituem seu ser, o eu é uma invenção constante em seu devir. “Não digo: ‘Vou descrever-me’, mas: ‘Escrevo um texto e o chamo de R.B.’. Dispenso a imitação (a descrição) e me confio à nominação. Então eu não sei que no campo do sujeito não há referente?” (BARTHES, 2003, p. 69).

Há um certo pudor de Barthes em falar de si, como se não fosse realmente autorizado a fa-zê-lo, como se isso fosse reservado ao espaço do diário (ou do romance, quando mediatizado por um personagem). Aliás, a primeira frase do livro (no ver-so da capa da edição francesa) é: “Tudo isto deve ser considerado como dito por um personagem de romance”, ou seja, ele toma distância de si, ou me-lhor, pede que o leitor tenha um recuo em relação à identidade autor-narrador-personagem. O livro se-ria uma exposição de seu Imaginário. “Em seu grau pleno, o Imaginário se experimenta assim: tudo o que tenho vontade de escrever a meu respeito e que finalmente acho embaraçoso escrever. Ou ainda: o que só pode ser escrito com a complacência do lei-tor” (BARTHES, 2003, p. 122).

Pergunta de Barthes no artigo “Deles a nós”, publicado nos Inéditos, vol. 2. Crítica: “como escrever sem ego? É minha mão que traça, não a do vizinho” (BARTHES, 2004c, p. 224). O que não é mais possível na modernidade: o ego, a narrati-va. Mas Barthes deixa isso um pouco para trás e sem querer voltar ao sujeito clássico, ele abandona a atitude arrogante do passado. “Sem renunciar a ser moderno, Barthes defende uma volta ao sujeito cuja ambiguidade de certas formulações oculta a

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plena epifania”29. Ou seja, há “uma verdadeira rea-bilitação da subjetividade” (COSTE, 2009, p. 40). É impossível escrever sem ego. Para Coste, o ego faz uma volta através da palavra corpo, que lhe dá uma forma aceitável, diferente do cogito cartesiano e do “ça parle” de Lacan, sujeito do inconsciente. “Mas, sobretudo, graças ao corpo, é justamente o ‘sujei-to’ como totalidade que se encontra restaurado na sombra vergonhosa de um ego que não disse sua última palavra” 30 (COSTE, 2009, p. 41).

E já que é o corpo que define o novo su-jeito barthesiano, há um ponto do corpo que trai a precariedade da felicidade: a dor de cabeça. A ca-beça: lugar simbólico da vida intelectual. No caso de Barthes: a hiperatividade intelectual, próxima da autoanálise e da lucidez de Valéry. “Meu corpo só existe para mim mesmo sob duas formas correntes: a enxaqueca e a sensualidade” (BARTHES, 2003, p. 74). Esses dois polos, da dor e do prazer, individu-alizam seu corpo. O conhecimento e o sentimento passam pelo corpo, um corpo que impõe desejos, impulsos e limitações. O sujeito não controla seu inconsciente, não controla sua fala, não podendo, portanto, ter qualquer certeza sobre a autenticidade do que diz. A inocência de Rousseau, que acreditava poder dizer toda a verdade nas Confissões, foi per-dida na avalanche das considerações teóricas de Freud, Marx, Nietszche com as quais Barthes está em sintonia profunda.

Este livro não é um livro de ‘confissões’; não

29 Tradução minha. “Sans renoncer à être moderne, Barthes plai-de pour un retour du sujet dont l’ambigüité de certaines formula-tions voile la pleine épiphanie (...), c’est une véritable réhabilitation de la subjectivité qu’il nous propose”.30 Tradução minha. “Mais, surtout, grâce au corps, c’est bel et bien le ‘sujet’ comme totalité qui se trouve restauré dans l’ombre hon-teuse d’un ego qui n’a pas dit son dernier mot”.

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porque ele seja insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de ontem; esse sa-ber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim nunca é a última palavra: quanto mais sou ‘sincero’, mais sou interpretável, sob o olhar de instâncias diferentes das dos antigos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma úni-ca lei: a autenticidade. Essas instâncias são a História, a Ideologia, o Inconsciente. Abertos (...) por esses diferentes futuros, meus textos se desencaixam, nenhum vem coroar o outro; este aqui não é nada mais do que um texto a mais, o último da série, não o último do senti-do: texto sobre texto, nada é jamais esclarecido (BARTHES, 2003,p. 137).

O livro inova em termos genéricos porque hibridiza romance, ensaio e autobiografia, à seme-lhança de Proust, na análise que ele próprio faz da obra de Proust. No artigo “Durante muito tempo, fui dormir cedo” Barthes assinala, de um lado, o hibri-dismo genérico que advém da hesitação de Proust entre as formas do ensaio e do romance, cuja re-sultante seria a criação de um terceiro gênero; por outro lado, o desvio dos fatos vividos. “Essa desor-ganização da biografia não é a sua destruição. Na obra, numerosos elementos da vida pessoal são conservados, de maneira identificável, mas esses elementos estão de certo modo desviados” (BAR-THES, 1988, p. 287). Talvez o desvio mais significa-tivo seja o do eu enunciador: trata-se de um eu que não se lembra da vida passada como na autobio-grafia tradicional, o eu enunciador narra seu desejo de escrever, não sua vida propriamente dita. Assim, as relações entre os dois estão esgarçadas, deslo-cadas. Em outro artigo, “Vidas paralelas”, inspirado pela biografia de Proust escrita por George Painter, Barthes estabelece um paralelismo entre a vida vi-

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vida e a vida escrita: entre as duas não há analogia, mas homologia. Ao contrário do que afirma a doxa, que a arte imita a vida, “não é a vida de Proust que encontramos em sua obra, é sua obra que encontra-mos na vida de Proust” (BARTHES, 2004c, p. 173).

O que ele diz de Proust pode ser aplicado a Roland Barthes por Roland Barthes com a dife-rença que o romance de Proust tem intrigas e per-sonagens, que se entrelaçam de maneira a atingir uma completude (aliás, interminável e inatingível devido à morte que chega) enquanto no livro de Barthes só há fragmentos que, se montados, não fecham o puzzle. Em vez de personagens, o que se vê é o desdobramento de vários Barthes: doravante o sujeito só pode ser pensado em sua multiplicidade e dispersão. Até o Je est un Autre de Rimbaud foi ultrapassado pelo estilhaçamento do espelho: o eu são vários outros.

Embora feito, aparentemente, de uma sequên-cia de ‘ideais’, este livro não é o livro de suas ideias; é o livro do Eu, o livro de minhas resis-tências a minhas próprias ideias; é um livro recessivo (que recua, mas também, talvez, que toma distância). Tudo isso deve ser considerado como dito por uma personagem de romance – ou melhor, por várias (...). A substância deste livro, enfim, é, pois, totalmente romanesca. A in-trusão, no discurso do ensaio, de uma terceira pessoa que não remete entretanto a nenhuma criatura fictícia, marca a necessidade de remo-delar os gêneros: que o ensaio confesse ser quase um romance: um romance sem nomes próprios (BARTHES, 2003, p. 136).

Em O prazer do texto (2004a, p. 35), Bar-thes afirma que apesar da declarada “morte do au-tor”, o leitor deseja o autor, que não é sua repre-

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sentação nem sua projeção. Em outra passagem, Barthes postula que uma pesquisa sobre o sujeito pode passar por várias fases, e acaba por concluir que finalmente o sujeito volta, não como ilusão, mas como ficção, o que o aproxima mais da concepção do sujeito da autoficção contemporânea. “Talvez en-tão retome o sujeito, não como ilusão, mas como ficção. Um certo prazer é tirado de uma maneira da pessoa se imaginar como indivíduo, de inventar uma última ficção, das mais raras: o fictício da iden-tidade” (BARTHES, 2004a, p. 73. Grifos do autor). Ele declara, com efeito, no curso A preparação do romance II dado no Collège de France (1979-1980), que a volta do autor se dá a partir de O prazer do texto, momento em que há o desrecalque do autor.

Pareceu-me que, também à minha volta, um gosto se declarava, aqui e ali, por aquilo que poderíamos chamar – para não abordar os problemas das definições – a nebulosa biográ-fica (Diários, Biografias, Entrevistas persona-lizadas, Memórias etc.), maneira, sem dúvida, de reagir contra a frieza das generalizações, coletivizações, gregarizações, e de recolocar, na produção cultural, um pouco de afetividade ‘psicológica’: deixar falar o ‘Ego’, e não sempre o Superego e o Isso – A ‘curiosidade’ biográfi-ca desenvolveu-se então, livremente, em mim (BARTHES, 2005b, p. 168. Grifos do autor).

A volta do autor se afirma através desse gosto declarado pelas escritas de si, tanto em re-lação a seus autores prediletos (notadamente de Proust) quanto a seus próprios textos autobiográfi-cos. Se no artigo “Deliberação”, de O rumor da lín-gua, ele se indaga sobre a validade de se escrever diários, hábito que ele tinha de maneira esporádica, por não reconhecer valor literário ao diário (como

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Blanchot), depois de sua morte alguns de seus di-ários foram publicados. Além de Diário de luto que, como o título indica, tem fragmentos sobre o sen-timento de dor após a morte da mãe, saiu o livro Incidentes. Trata-se de um diário escrito em 1968 e 1969, quando vivia no Marrocos, e estava pronto para impressão na revista Tel Quel, segundo a nota dos editores. Nele, o diarista capta instantâneos da vida cotidiana, com ênfase no olhar que dirige aos corpos dos jovens marroquinos. Já “Noites de Paris”, diário publicado no mesmo livro Incidentes, foi escrito entre 24 de agosto e 17 de setembro de 1979, logo após a redação do texto teórico “Delibe-ração”. Nessas curtas anotações escritas 6 meses antes de sua morte, vemos um homem bastante melancólico, que busca na noite um prazer sempre insuficiente, insatisfatório.

Deixando alguns fragmentos de diários, Barthes constrói o seu futuro como fantasma para os que virão: da mesma maneira que André Gide representou o fantasma do escritor para ele, que seguia seu percurso, suas viagens, seus escritos, ele poderá se constituir no fantasma para os seus leitores. “Pois aquilo que o fantasma impõe é o es-critor tal como podemos vê-lo em seu diário íntimo, é o escritor menos sua obra: forma suprema do sa-grado: a marca e o vazio” (BARTHES, 2003, p. 92. Grifos do autor).

Barthes postula que se deve “substituir a história das fontes pela história das figuras: a origem da obra não é a primeira influência, é a primeira pos-tura: copia-se um desempenho, e depois, por meto-nímia, uma arte: começo a produzir reproduzindo aquele que eu gostaria de ser” (BARTHES, 2003, p. 115). Gide foi esse fantasma para ele: protestante, filho de pais de diferentes regiões da França (Nor-mandia e Languedoc no caso de Gide, Alsácia e Gas-

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conha, no caso de Barthes), escritor de profissão e pianista como hobby, “sem contar o resto”, ou seja, homossexuais que gostavam de ir aos países do nor-te da África (Marrocos, Argélia e Tunísia) nas férias em busca de uma vida mais simples com os jovens árabes. “O Abgrund gideano, inalteravelmente gidea-no, forma ainda em minha cabeça um formigamento teimoso. Gide é minha língua original, meu Ursupe, minha sopa literária” (BARTHES, 2003, p. 115).

Esses últimos livros e artigos de Barthes já apontam para as mudanças de paradigma que estavam se processando tanto nele enquanto autor quanto no mundo literário francês. Ele deixava para trás as fórmulas mais duras do estruturalismo em favor de uma valorização da subjetividade. Data do mesmo período o livro Le pacte autobiographique, de Philippe Lejeune, que considera que Roland Bar-thes por Roland Barthes “propõe um jogo vertigino-so de lucidez em torno de todos os pressupostos do discurso autobiográfico – tão vertiginoso que acaba por criar no leitor a ilusão de que não está fazendo o que entretanto está” (LEJEUNE, 2008, p. 65).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão do autor continua central nos debates atuais sobre as escritas de si. Se, na pers-pectiva da narratologia, há uma preocupação em distinguir o sujeito empírico daquele que fala de si nos relatos autobiográficos, no senso comum per-dura uma certa confusão entre narrador e autor, sobretudo quando se trata de narrativas em pri-meira pessoa. Um bom exemplo disso é o artigo “O autor como narrador”, de José Saramago, no qual ele afirma que o autor é o único que fala no texto, não existe narrador. Depois de vários comentários ácidos contra a narratologia, ele afirma que o au-tor narra tão somente a sua história pessoal. E, no entanto, ao tentar explicar de qual história pessoal se trata, Saramago exprime uma visão muito mais complexa e, portanto, bem próxima do pensamento de Barthes e de Proust. Vejamos o que ele escreve ao fim e ao cabo:

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Não o relato da sua vida, não a sua biografia, quantas vezes anódina, quantas vezes desinte-ressante, mas uma outra, a secreta, a profun-da, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que povo-am um passado que não é apenas seu, e por isso lhe escapará sempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que somos mesquinhos e pequenos é a tal ponto comum que nada de novo poderia ensi-nar a esse outro ser pequeno e grande que é o leitor (SARAMAGO, 1998, p. 27).

Apesar de todos os volteios de Saramago em sua postura pseudo ingênua contra os teóricos da literatura, ele adota uma posição semelhante à de Proust, que afirmava haver uma distância entre o homem e o escritor, já que “um livro é o produto de um outro eu, diferente daquele que manifesta-mos em nossos hábitos, na sociedade, em nossos vícios. Esse eu, se quisermos tentar compreendê-lo, é no fundo de nós mesmos, tentando recriá-lo em nós, que poderemos chegar a ele” (PROUST, 1954, p. 127)31. Para ele, a pessoa não é um bloco único, ela se compõe de várias pessoas superpostas, o que se acentua no caso dos poetas (PROUST, 1954, p. 169). Barthes também separa o sujeito empírico do eu que escreve e da própria obra: “eu não seria nada se não escrevesse. No entanto, estou em ou-tra parte, que não é aquela em que escrevo. Valho mais do que aquilo que escrevo” (BARTHES, 2003, 31 Tradução minha. “Qu’un livre est le produit d’un autre moi que celui que nous manifestons dans nos habitudes, dans la socié-té, dans nos vices. Ce moi-là, si nous voulons essayer de le com-prendre, c’est au fond de nous-mêmes, en essayant de le recréer en nous, que nous pouvons y parvenir ».

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p. 186. Grifos do autor). Essa afirmação de Barthes remete a Nietzsche que distingue o que ele é daqui-lo que ele escreve, uma coisa não se confundindo com a outra (apud DERRIDA, 1984-2005, p. 73-74).

Quando Blanchot se indagava para onde iria a literatura e anunciava a morte do último es-critor, ele se baseava na sua percepção do fim da poesia em benefício do romance que triunfava. A predominância do romance significava para ele que cada vez mais o escritor se refugiava no gênero mais domesticado para fugir do perigo que ameaça o autor que busca uma verdade que o joga fora de si. Ao se tornar inofensiva, a literatura morre (BLAN-CHOT, 2005, p. 299). Com o florescimento das es-critas de si, em que o EU passa a reinar absoluto, em que o autor busca exibir sua vida íntima sob a forma da extimidade, a alta literatura, tal como a concebia Blanchot, talvez esteja realmente próxima do fim. Mesmo Barthes, que parecia se interessar pelo novo, tinha como modelos autores clássicos como Tolstoi e Proust no seu horizonte de expectati-va ao pensar em si mesmo como autor de romance no curso A preparação do romance II. No mundo de hoje já não há, entretanto, lugar para autores como Tolstoi e Proust, Kafka e Joyce. A mão que digita no teclado de um computador já não é igual à mão que escrevia no papel, o corpo que se deixava fotogra-far algumas raras vezes já não é o mesmo corpo do autor midiático que dá entrevistas, comparece a feiras e bienais, dá depoimentos em programas de televisão e sites ou blogs da Internet. Ao retornar, triunfante, ele enterra o lado secreto e transgressivo da literatura.

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REFERÊNCIAS

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POLÍTICA EDITORIAL

A Série Cogitare foi criada com o objetivo de divulgar a contribuição de pesquisadores que tenham participado de atividades junto aos cursos de Mestrado e Doutorado em Letras da UFSM, na forma de palestras, conferências e outros trabalhos de pequena extensão. Também visam a produção de textos teóricos ou críticos produzidos por professores vinculados às linhas de pesquisa do PPGL - UFSM.

Esses trabalhos devem ser resultado de projetos vinculados às linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Letras, permitindo, assim, a divulgação de alguns resultados produzidos pela investigação nas áreas de Estudos Lingüísticos e Literários da UFSM.

A publicação de traduções deverá complementar os textos já pertencentes ao domínio público, relacionados à pesquisa desenvolvida pelo Programa, e que contribuam para fomentar novas perspectivas. Devem apresentar prefácio que justifique a importância do texto e sua vinculação com o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo tradutor.

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VOLUMES PUBLICADOS

Volume 1A Dama, a Dona e uma outra SórorMaria Lúcia Dal Farra

Volume 2Sartoris:A História na Voz de quem Conta a HistóriaVera Lucia Lenz Vianna

Volume 3A Fronteira e a Nação no Séc. XVIII: Os Sentidos e os DomíniosEliana Rosa Sturza

Volume 4O Outro no (In)traduzível / L’Autre dans l’Intraduisible(Edição Bilingüe)Mirian Rose Brum-de-Paula

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Volume 5Pero Sigo Siendo el Rey:Referente e Forma de RepresentaçãoFernando Villarraga Eslava

Volume 6Aquisição, Representação e AtividadeMarcos Gustavo Richter

Volume 7Da Corpografia: Ensaio Sobre a Língua/Escrita na Materialidade DigitalCristiane Dias

Volume 8Perspectivas da Análise de Discurso Fundada por Michel Pêcheux na França: Uma Retomada de Per-cursoAna Zandwais

Volume 9Mitos, Héroes y Ciudades: ecorridos Míticos por Al-gunas Urbes LiterariasPablo Molina

Volume 10Mário Peixoto: O Escritor de Permeio com a CríticaAndré Soares Vieira

Volume 11Manuscritos de linguistas e genética textual : quais os desafios para as ciências da linguagem? : exemplo através dos “papiers” de BenvenisteIrène Fenoglio

Volume 12Mário de Andrade: escritor difícil?

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Sonia Inez Gonçalves Fernandez

Volume 13De cegos que vêem e outros paradoxos da visão: Questões acerca da natureza e da visibilidadeAlcides Cardoso dos Santos

Volume 14Poesia de resistência à ditadura civil-militar (1964-1985)Cristiano Augusto da Silva Jutgla

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PPGL EDITORESUNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRASPrédio 16, Sala 3222 – Bloco A2Campus Universitário – Camobi

97105-900 – Santa Maria, RS – BrasilFone: 55 3220 8359

http://www.ufsm.br/ppgletrase-mail: [email protected]

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Gráfica Universitária UFSM2015