COGNOSCER TODAS Y TAN INFINITAS NACIONES: UMA ANÁLISE SOBRE AS FONTES E A COMPOSIÇÃO DA...

199
VINICIUS MUHLETHALER BEIRE COGNOSCER TODAS Y TAN INFINITAS NACIONES: UMA ANÁLISE SOBRE AS FONTES E A COMPOSIÇÃO DA APOLOGÉTICA HISTORIA SUMARIA DE BARTOLOMÉ DE LAS CASAS (1522-1559) Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Mestre em História. Área de concentração: História Cultural. Orientador: Prof. Dr. José Alves de Freitas Neto 1

description

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Mestre em História. Área de concentração: História Cultural.

Transcript of COGNOSCER TODAS Y TAN INFINITAS NACIONES: UMA ANÁLISE SOBRE AS FONTES E A COMPOSIÇÃO DA...

Apresentao

Vinicius Muhlethaler Beire

Cognoscer todas y tan infinitas naciones:

Uma anlise sobre as fontes e a composio da Apologtica Historia Sumaria de Bartolom de Las Casas (1522-1559)

Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Histria, no Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obteno do Ttulo de Mestre em Histria.

rea de concentrao: Histria Cultural.Orientador: Prof. Dr. Jos Alves de Freitas Neto

Banca de Defesa:

Prof. Dr. Jos Alves de Freitas Neto DH/IFCH/UNICAMP

Prof. Dr. Leandro Karnal DH/IFCH/UNICAMP

Profa. Dra. Janice Theodoro FFLCH/USP

Suplente

Profa. Dra. Eliane Moura da Silva DH/IFCH/UNICAMPCampinas, 2008

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

Ttulo em ingls: Cognoscer todas y tan infinitas naciones: an analysis on written essay of the Bartolom de Las Casas Apologtica Historia Sumaria (1522-1559).

Casas, Bartolome de las - 1474-1566

Chronicles History and criticism

Christianity Latin America

Palavras chaves em ingls (keywords) :

rea de Concentrao: Histria cultural

Titulao: Mestre em Histria

Jos Alves de Freitas Neto, Leandro Karnal, Janice Theodoro.

Banca examinadora:

Data da defesa: 19-02-2008

Programa de Ps-Graduao: Histria

A Comisso Julgadora da do trabalho de Defesa da Dissertao de Mestrado, em sesso realizada em 19 de fevereiro de 2008, considerou o candidato aprovado.Prof. Dr. Jos Alves de Freitas Neto__________________________________

Prof. Dr. Leandro Karnal___________________________________________

Profa. Dra. Janice Theodoro________________________________________Aos dois,

porque a memria mais forte que a histria.

Em quase todos os meus sonhos, ainda moro com meus pais.

memria do professor Hctor Bruit, com admirao e gratido por ter sido um dos responsveis pelo meu interesse em Las Casas.

Agradecimentos

Esta pesquisa fruto de um trabalho em equipe, que no se restringiu somente aos meus professores e colegas, mas tambm aos meus amigos e familiares. No teria chegado at aqui sem vocs.

Primeiramente ao Prof. Dr. Jos Alves de Freitas Neto, mais conhecido como Z Alves pelos alunos da UNICAMP, orientador e (por que no?) co-autor desta dissertao, jovem filsofo e historiador, que com humildade, simpatia e dedicao vem conquistando o corao de docentes, funcionrios e alunos. Sua erudio e excelente didtica foram as maiores responsveis pelo contedo deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Leandro Karnal, meu orientador durante a graduao, e certamente um dos maiores intelectuais brasileiros da atualidade. Com um olhar atento e irnico, quebra o protocolo acadmico com muito bom humor, sem deixar de demonstrar grande erudio. Um intelectual diversificado e tambm responsvel por uma nova e diferenciada gerao de mestres e doutores.

Ao Prof. Dr. Hctor Bruit, falecido em 2007, meu professor durante um breve perodo, e o qual tive o prazer de conhecer pessoalmente nos ltimos anos de sua vida. Um dos pioneiros dos trabalhos de Histria da Amrica no Brasil. Sua tese de livre-docncia contribuiu muito para este trabalho, sem esquecer tambm que foi o responsvel pelo meu interesse em Bartolom de Las Casas, ao citar a importncia da Apologtica Historia Sumaria, em 2003.

Profa. Dra. Eliane Moura, pertencente minha banca de qualificao, minha professora em muitas disciplinas que cursei. Ajudou-me em diversos momentos, tanto naqueles referentes a esta pesquisa, quanto em assuntos mais burocrticos, mesmo os mais difceis. Guardo respeito e admirao, e agradeo pelo convvio que tivemos nesses meus sete anos de UNICAMP.

Entre outros professores, no posso deixar de citar a Profa. Dra. Margareth Rago, cuja contribuio intelectual, mesmo indiretamente, encontra-se aqui presente; como tambm ao Prof. Dr. talo Tronca, excelente e peculiar autor, com quem mantive um bom convvio em conversas na cantina do IFCH. Alm de tantos outros, os quais contriburam (e vo continuar a contribuir) para a minha formao.

No posso deixar de agradecer tambm Profa. Dra. Janice Theodoro, professora da USP que aceitou fazer parte desta banca de mestrado, e cujas poucas palestras s quais assisti, instigaram-me a procurar novas abordagens para o futuro.

Aos colegas diretos Anderson do Reis, cuja dissertao sobre Motolnia me auxiliou bastante; ao Luiz Estevam Duda Fernandes, colega-professor e amigo; a todos os parceiros desde a graduao, como Rogrio Bonf; aos outros amigos da ps-graduao como o Fbio Gavio e Eliane Morelli; alm do Mrcio e dos irmos Robertim e Robinho, ps-graduandos das Cincias Sociais. Todos compartilharam comigo diversos momentos referentes a esta pesquisa. Aos companheiros de vivncia em Campinas nesses sete anos, como Heraldo Jnior, Alex Brasil, Newton e Felipe Bueno, presentes em diversas ocasies importantes.

Aos meus pais, Sonia e Marcellus, que sempre frisaram a importncia de se estudar, e que nunca me cobraram uma profisso que s lhes interessasse por ser lucrativa, como simples vaidade pessoal. Agradeo pelo auxlio em todos esses anos, e desejo sempre demonstrar aos outros a educao que recebi de vocs.

Ao meu irmo, artista diversificado, que em conversas informais auxiliou-me a perceber novas perspectivas. minha v Celinha, outra defensora do bom estudo, e que tambm me ajudou na viagem Europa. minha outra av, Terezinha, que me recebeu em Roma com sua hospitalidade caracterstica, e me auxiliou muito nos gastos da viagem. Aos recm-casados Bruno e Melina, que tambm estavam na Itlia e me receberam com muito carinho. Aos beneditinos brasileiros que moram em Roma, dom Andr e dom Romano, que me arrumaram uma vaga no mosteiro de sua ordem em Madrid, como tambm ao padre espanhol Jos Mara, que me recebeu durante aqueles dez dias para pesquisa na Biblioteca Nacional espanhola.

No posso deixar de citar minhas tias Mnica e Simone, o meu tio Alexandre Vidigal, com quem tive timas conversas, magistrado com doutorado em Direito Internacional dos Direitos Humanos, pelo Instituto Bartolom de Las Casas da Universidad Carlos III de Madrid. Dentre outros parentes e amigos, agradeo ao Grson; Ivone, minha segunda me; Dona Vivi, segunda me da minha me; ao futuro diplomata Davi Balduno Alvarenga Ala, jovem intelectual das Relaes Internacionais; Izabel Cristina e ao seu tio Dom Thomaz Balduno, bispo emrito da diocese de Gois, o tio Paulo para a famlia, dominicano assim como Las Casas, que tive o prazer de conhecer e em alguns momentos conversar a respeito deste trabalho.

Adriana, uma das pessoas mais doces que j conheci, por quem sinto muito amor e admirao. Este trabalho tambm seu.

Agradeo a todos vocs, assim como tambm queles que no pude citar nominalmente porque a lista seria muito longa.

sempre bom lembrarque um copo vazio

est cheio de ar.

sempre bom lembrarque o ar sombrio de um rosto est cheio de um ar vazio.

Vazio daquilo que no ar do copo

ocupa um lugar.

Gilberto GilResumo

Esta pesquisa uma anlise sobre a Apologtica Historia Sumaria, de Bartolom de Las Casas, um tratado sobre continente e seus respectivos habitantes, finalizado na dcada de 1550. O enfoque e as fontes utilizadas para sua elaborao foram o nosso objeto de estudo principal. Visamos especificar a sistematizao de seu discurso, responsvel por uma representao do indgena, complementar concepo de gentes inocentes da Brevsima Relacin de Destruccin de las Indias, seu trabalho mais conhecido. Dentre os aspectos destacados nesta nossa anlise, poderamos citar a relao entre natureza e seus habitantes para justificar sua retrica de defesa do indgena; o uso de outros cronistas como fontes selecionadas pelo frade dominicano; o conceito das repblicas indgenas como ponto de equivalncia entre europeus e americanos; e as controvrsias religiosas. Portanto, discutimos esses pontos encontrados na Apologtica para tentar compreender este desdobramento do objetivo lascasiano de apresentar mais argumentos em defesa do indgena.

Abstract

This study is an analysis on Dominican Bartolom de Las Casas Apologtica Historia Sumaria. It is a thesis about the American continent and its natives, finished in 1550s. His approaches and the wellspring of information that had been used by the friar were our first object. We decided to specify his written essay, which was responsible for other representation of the indigenes that supplements the ingenuous peoples notion of the Brevsima Relacin de Desctruccin de las Indias, his best known work. The main topics that we considered were: the analogy between nature and habitant to justify his rhetoric Indian support; the historical documents selected; the Indian republics concept, which was used to put on the same level American and European people; and the religious controversies. Therefore, we discussed those points of the Apologtica, to try to comprehend the development of the Las Casas purpose.Sumrio

Introduo

191. As diversas faces do defensor do indgena

272. O indgena e seu continente

392.1

Ilha Hispaniola: a natureza e a capacidade racional de seus respectivos habitantes

422.2 As prudncias

522.3 A capacidade dos ndios para receber o Evangelho e os quatro tipos de barbrie: apndice da Apologtica

563.

As fontes utilizadas por Las Casas sobre a Nova Espanha

593.1

Sobre as fontes utilizadas por Las Casas

603.1.1

Motolina

613.1.2

Mendieta e a obra annima

63

3.1.3

Outra fonte americana incerta

673.1.4

Pedro Mrtir de Anglera e Ramn Pan

683.1.5

Outros cronistas

734. A boa e ordenada repblica encontrada nas ndias

794.1 As caractersticas essenciais da boa e ordenada repblica (os argumentos a priori)

814.2 Os argumentos a posteriori e os dois maiores exemplos de boa e ordenada repblica

844.2.1Nova Espanha

864.2.2 Do sul da Nova Espanha at o Peru

895. A religiosidade indgena e o manuseio da obra de Motolina

955.1

Las Casas e Motolina

965.2A quinta parte da boa e ordenada repblica

1015.2.1Deuses, templos, sacerdotes

1035.2.2

Sacrifcios

109Consideraes Finais

123Fontes

127Bibliografia

129IntroduoEl caudal informativo de esta obra es extraordinario, teniendo presente que el padre Las Casas fue un hombre con una actividad fuera de lo comn y en unos momentos en los que las fuentes histricas, teolgicas y jurdicas no estaban al alcance de cualquiera, y menos en el Nuevo Mundo Es cierto que muchos que los autores citados por Las Casas se repiten, tanto en la Historia de las Indias, como en el De unico vocationis modos o en la Apologa; pero la abundancia de esta documentacin va acompaada de un dominio o, si queremos, de un trato familiar con los autores ms representativos de las pocas que le precedieron y de la suya propia (...) Las fuentes bibliogrficas de la Apologtica nos sitan ante un Las Casas humanista, cultivador de la historia y la literatura clsica en su dimensin ms universalJess A. Barreda, Documentacin Bibliogrfica de la Apologtica Historia

Nosso trabalho teve como objetivo um estudo sobre a Apologtica Historia Sumaria, escrita pelo dominicano Bartolom de Las Casas (1484-1566), com reflexes a partir dos enfoques principais e das fontes manuseadas para sua confeco. A Apologtica trata-se de um extenso tratado sobre o Novo Mundo, com caractersticas marcantes no que se refere a um desdobramento de seu argumento de defesa. Visamos especificar a sistematizao de seu discurso, responsvel por uma determinada fundamentao e representao do indgena, complementar concepo de gentes inocentes encontrada, por exemplo, na Brevsima Relacin de Destruccin de las Indias, seu texto mais conhecido.

Las Casas era natural de Sevilha, filho de um modesto mercador, Pedro de Las Casas, que viajou na segunda expedio de Cristvo Colombo ao Novo Mundo, em 1493. Nascido por volta de 1484, ou 1474, estudou Latim e Humanidades na Universidade de Salamanca. Embarcara rumo ao Novo Mundo, em 1502, na expedio comandada por Nicols de Ovando. Residiu inicialmente na Ilha Hispaniola, retornando Europa entre os anos de 1503 e 1510. Neste primeiro momento em que habitara o Novo Mundo, exercera a funo de encomendero, ou seja, utilizando-se do trabalho forado indgena, ao contrrio do que criticaria posteriormente.

O momento mais importante, porm, segundo sua prpria narrao, foi a profunda transformao de seu carter a partir da dcada de 1510. A 30 de novembro de 1511, quando escutou os sermes do Padre Antonio de Montesinos, um dominicano, que criticava queles que eram violentos com os indgenas, o ento sacerdote secular Las Casas passou a questionar se era vlida a prtica das encomiendas segundo os ensinamentos cristos, apesar de continuar a ter indgenas a seu servio.

Aps sua participao na invaso de Cuba como capelo, em 1514, onde teria testemunhado diversas atrocidades cometidas pelos espanhis, tornou-se um forte crtico dos maus tratos sofridos pelos nativos do Novo Mundo. Durante os seis anos seguintes, passou a elaborar determinados planos no intuito de se conciliar os interesses tanto dos conquistadores quanto dos indgenas. Acabou formulando um plano de colonizao pacfica, solicitando uma determinada regio no continente onde poderia catequizar o indgena ao seu modo, ou seja, sem a necessidade de maus tratos. Em poucos anos, conseguiu uma autorizao para se estabelecer na regio da Tierra Firme, na Costa de las Perlas (atual Venezuela). Era, na verdade, um projeto experimental, o qual no teve um desfecho agradvel, tornando-se sua primeira e maior derrota.

A regio j havia sido explorada por outros espanhis, que por sua vez mantinham uma relao bastante beligerante com os indgenas. Inicialmente, Las Casas tentara recorrer Coroa o controle daquelas terras sem a presena destes conquistadores, algo que no conseguiu. Ao final, acabou renunciando, e em janeiro de 1522, cerca de quinze dias aps a sada do padre daquela regio, seus antigos companheiros foram atacados pelos indgenas. Seu projeto revelou-se um fracasso, tornando-se o principal exemplo segundo seus crticos posteriores de que suas teorias no resultavam em prticas viveis.

Em 1523, juntou-se ordem dos dominicanos, dedicando sua vida aos estudos teolgico-jurdico-filosficos (STOFFELS, 1992, p. 38), ainda com o mesmo objetivo de lutar a favor dos direitos dos habitantes do Novo Mundo.

.En el campo profesional estricto, la mutacin tcnica y tctica fue tambin drstica. Las Casas dedicar sus aos de retiro y de meditacin conventual, en rgimen de dedicacin exclusiva, al estudio y a la preparacin logstica de sus futuras actuaciones como abogado de indios (ABRIL CASTELL, 1992, p. 39).

Em outras palavras, poderamos afirmar que aps o fracasso do que colocara em prtica na Tierra Firme, o agora frei Bartolom passa a elaborar seu argumento de defesa fundamentado nos debates filosficos de sua poca.

Foram cerca de vinte anos em que habitou o monastrio de sua ordem na Ilha Hispaniola, perodo em que comeara a escrever Historia de las Indias e Apologtica, como tambm De unico vocationis modo.

Como es sabido, el P. Las Casas empez a trabajar en su Historia de las Indias en 1527 mando viva en un monasterio de su Orden en la Isla Espaola, hoy Santo Domingo. Pero de cuatro se sabe acerca de los propsitos que entonces tena el autor, debe concluirse que nada de los que redact entre los aos de 1527 y 1531 figura ahora en la Apologtica (OGORMAN, 1971, p. XVIII).

Em relao Apologtica, nascia um projeto de se realizar um estudo detalhado sobre os povos indgenas, com elementos antes previstos para a Historia de las Indias, mas que se tornou a Apologtica Historia Sumaria apresentada separadamente, como atualmente a conhecemos. (JOSAPHAT, 2000, p. 187)

Durante esse mesmo perodo tambm percorrera outras regies como: novamente a Ilha Hispaniola, Nicargua, Guatemala e Mxico, onde se encontrou com Hernn Corts. Nessa poca, o nmero de indgenas mortos chegava ao seu auge, ocasionadas tanto pelas guerras de conquista, quanto devido s epidemias que dizimavam enormes contingentes por vrias regies. Mesmo que houvesse se dedicado aos estudos para construir melhor seus argumentos, Las Casas no dispensaria outra atitude mais imediata na sua ambio de defender o indgena.

Retornou Espanha em 1540. A notcia das inmeras mortes no continente j havia atravessado o Atlntico, fazendo com que Las Casas novamente acreditasse numa possvel suspenso das encomiendas. Em 1542, publicou o seu relato mais conhecido, a Brevsima Relacin de la Destruccin de las Indias de Castela, que causara algumas agitaes na Coroa, sendo uma delas, a troca das Leis de Burgos (1542), que inclua o Requerimiento, pelas Leis Novas (1542-43).Despus de que todos los indios de la tierra desta isla fueron puestos en la servidumbre e calamidad de los de la Espaola, vindose morir y perecer sin remedio, todos comenzaron a huir a los montes; otros, a ahorcarse de desesperados, y ahorcbanse maridos e mujeres, e consigo ahorcaban los hijos; y por las crueldades de un espaol muy tirano (que yo conoc) se ahorcaron ms de doscientos indios. Pereci desta manera infinita gente (LAS CASAS, Brevsima Relacin, 1992, p. 20).

Nela, o religioso retrata, de forma trgica, a violncia com que os espanhis submetiam as populaes nativas. Dentre suas descries, poderamos citar soldados que testavam o fio das espadas partindo inocentes ao meio, assim como bebs que tinham suas cabeas arrebentadas nas pedras. Um manuscrito de divulgao, apresentando um modus operandi do colonizador espanhol, na qual no haveria qualquer forma de variao, independente do grupo indgena, de suas prticas e do espao geogrfico que se situava. Seu sucesso foi alm da pennsula ibrica quando, nos anos 1590, o gravurista huguenote Theodor de Bry fez uma srie de imagens baseadas nesses relatos. Desde ento, passaram a ilustr-la, tornando-se, futuramente, a principal referncia iconogrfica sobre o modo como ibricos catlicos tratavam os indgenas.

A crise de conscincia das autoridades espanholas em justificar o poder no continente (SEED, 1999, p. 103) novamente tornavam Las Casas esperanoso a respeito de uma colonizao pacfica. Neste mesmo ano, tornou-se bispo. Fora nomeado para a Cidade Real de Chiapas (no atual Mxico), em 1545. Ao crescer dentro da hierarquia eclesistica, passou a enfrentar mais queles que usufruam do trabalho forado indgena. A principal delas fora a suspenso da execuo de sacramentos aos que viviam da encomienda, como tambm aos outros que no reconheciam a igualdade de direito entre ambos. Certamente essas medidas tornaram-se impopulares porque grande parte do pblico de leigos e sacerdotes seculares da regio lucrava com esse tipo de trabalho servil. A continuidade de seu bispado ficou ameaada.

Acabou retornando Espanha, nunca mais voltando ao Novo Mundo. Na Europa, entrara em contato com diversas discusses a respeito da natureza dos indgenas, como aquelas que julgavam ser vlido ou no lhes ser aplicado o conceito aristotlico de barbrie. O padre Juan Gins de Seplveda, autor de Tratado de las Justas Causas de la Guerra Contra los Indios (SEPLVEDA, 1992), cujas idias eram muito discordantes em relao s de Las Casas, tornou-se seu principal adversrio. Quando a tese de ambos fora debatida na chamada Controvrsia de Valladolid, no incio da dcada de 1550, a discusso acirrou-se ainda mais. O estudioso Edmundo OGorman destacou este ltimo momento da vida pblica de Las Casas da seguinte forma:Llegamos as al ao crucial de 1552, crucial porque inicia la etapa de escritor propiamente dicha en la vida de Las Casas (...) En desahogo de esa parte de su programa, el P. Las Casas escribi primero una descripcin de la Isla Espaola dentro del libro primero de la Historia y casi seguramente en su final. Ahora bien, para explicar el siguiente paso debemos suponer que el autor repar en que la descripcin de las nuevas tierras no era asunto tan incidental al relato histrico como haba pensado, ya que de ese modo se le proporcionaba al lector una idea del escenario donde se desarrollaron los acontecimientos. Sin embargo, para lo gran adecuadamente ese nuevo objetivo, la descripcin geogrfica ya no debera hacerse por regiones parciales intercaladas en el texto de la Historia, sino tendra que abarcar en conjunto todas las nuevas tierras. Por otra parte, el lugar indicado para insertar esa especie de introduccin era inmediatamente despus de haberse relatado el hallazgo de dichas tierras. Y en efecto, tanto el texto de la Historia como el de la Apologtica muestran huellas de que ese fue el nuevo plan adoptado por el autor (1971, p. XIX).

O debate de Valladolid, onde as teses de Las Casas e Seplveda foram discutidas abertamente, tornou-se uma espcie de palco do grande conflito entre os dois autores. Porm, importante ressaltar que essa caracterstica conflituosa do debate provavelmente no acontecera. Antes de somente ser um tribunal que buscasse reconhecer ou no a capacidade intelectual do indgena, o debate de Valladolid era algo muito mais centrado na discusso filosfica e teolgica da colonizao. De certo modo distante da burocracia colonial implantada pela coroa espanhola do sculo XVI. Neste mesmo perodo, finalizara suas maiores obras: Historia de las Indias e Apologtica Historia Sumaria.

Las Casas, durante mais de cinqenta anos, dedicou-se defesa de uma colonizao pacfica, acreditando na igualdade entre indgenas e europeus. A crena numa catequese gradual e harmnica, sem encomiendas, e contrria ao contedo encontrado no Requerimiento, fora uma constante, pelo menos a partir de 1511. Uma vida longa, em que os perodos de grande mobilidade, dentro ou fora das ndias de Castela, conviveram paralelamente com os momentos de recluso. Assim como seus objetivos, mesmo que sempre associados defesa do indgena, foram distintos segundo as circunstncias de cada momento.

Faleceu em 1566, e o restante de sua obra s fora publicado em 1875, incluindo a Apologtica que, certamente, finalizou seus ltimos argumentos sobre o indgena. O monarca espanhol Filipe II, influenciado pelo movimento de Contra-Reforma do Conclio de Trento (1545-1564), comeara a proibir as publicaes referentes aos indgenas. Uma tentativa de se evitar a disseminao das supersties contrrias f catlica. Com isso, escritos de diversos cronistas do perodo no circularam mais pela Europa, e s passaram a ser publicados a partir do sculo XIX.

* * *

Como dito anteriormente, nosso principal objetivo a exposio de determinados aspectos encontrados na Apologtica, que permitem refletir sobre a composio do discurso lascasiano em suas fontes e enfoques.

O primeiro captulo tem como tema uma breve discusso bibliogrfica sobre Las Casas, com destaque para o sucesso editorial da Brevsima Relacin frente ao restante de sua obra, responsvel pela construo de uma determinada imagem do religioso, alm da exposio de algumas interpretaes realizadas, incluindo as que foram feitas no Brasil.

O segundo captulo tem como tema a natureza do Novo Mundo e de seus respectivos habitantes, que por sua vez a grande introduo da Apologtica. Discutimos a forma como defendia a idia de que aquele ambiente, por si s, tornava os indgenas preparados para receber a catequizao, pelo fato de no ser degradado, ao contrrio do que era defendido por parte de seus adversrios.

Aps realizar esta primeira exposio, Las Casas recorreu a uma srie de fontes para demonstrar como eram organizadas as sociedades indgenas. De certa forma, este trabalho mais emprico estendeu-se at o final da Apologtica, podendo ser definido como o argumento humano, enquanto o anterior seria o fsico. O terceiro captulo tem como tema a exposio de parte dessas fontes, concentradas naquelas referentes Nova Espanha, com uma reflexo sobre o modo como o religioso selecionava suas informaes.

O quarto captulo, relacionado a este pressuposto mais humano, tem como tema a boa e ordenada repblica, definio aristotlica utilizada nos debates sobre a capacidade dos indgenas. O frade discutiu tal conceito, tentando demonstrar que aquelas sociedades estavam adequadas a este modelo terico, essencial como complemento de sua retrica.

No quinto captulo, abordamos a religiosidade indgena, item igualmente importante em relao aos demais, recordando que idolatrias persistentes poderiam justificar colonizaes mais repressoras. No deixou de ser um tema integrado discusso sobre a repblica bem ordenada, mas ao ser exposto numa longa seqncia de pginas, conquistou sua independncia e preponderncia. Os escritos de Motolina, autor cujos textos foram os mais utilizados pelo dominicano, foram trabalhados e discutidos neste captulo tambm. Podemos refletir tanto no modo como ambos os religiosos concebiam aquelas crenas, quanto na maneira em que tais escritos foram manuseados.

Deste modo, pretendemos refletir sobre a Apologtica, enfocando nossa anlise no modo como ela fora escrita, como tambm no manuseio das fontes utilizadas na sua elaborao que poderiam nos ajudar a compreender um determinado desdobramento do argumento de defesa do indgena encontrado nesta obra. Captulo 1As diversas faces do defensor do indgena...advirtase que nuestra obligacin ya no consiste en tratar de explicarlo, que esa y no la de juez es la misin propia al historiador...Edmundo OGorman, Prlogo de Los indios de Mxico y Nueva Espaa Antologa

A Historia de las Indias caracteriza-se por ser uma narrao sobre os primeiros anos da conquista, incluindo informaes autobiogrficas. No entanto, haveria sua segunda parte, a qual se tornou uma obra independente: Apologtica Historia Sumaria; seu trabalho mais extenso, e paradoxalmente pouco conhecido em comparao curta Brevsima Relacin, que ainda a referncia mais forte sobre sua retrica de defesa.

Las Casas tornou-se um sucesso editorial ao longo desses ltimos sculos. Seus relatos sobre os primeiros anos da conquista espanhola so uma das fontes mais conhecidas, entretanto, o que foi mais difundido representa pouco em comparao ao restante de seus escritos. Os relatos encontrados na Brevsima Relacin tiveram um movimento prprio, que contribuiu para uma determinada memria da conquista.

As crnicas sobre os primeiros anos de contato com o Novo Mundo, de um modo geral, foram recuperadas no sculo XIX, em paralelo ao surgimento das repblicas americanas independentes.

Nos referimos muy especialmente al indigenismo que naci al tiempo de la emancipacin de las colonias americanas, todava hoy tan poderoso, y a su contraparte, el hispanismo aorante de pasadas glorias, no menos vigente (...) De la anterior breve resea resulta que la ya secular polmica entorna al P. Las Casas no obedece al simple capricho de las pasiones, sino que es un reflejo de la gran pugna que provoc el adivinamiento de la modernidad (OGORMAN, 1971, p. XV).

As crnicas encontravam-se esquecidas desde a segunda metade do sculo XVI, quando Felipe II proibira a publicao desses escritos, ao alegar que disseminavam supersties. O restante da obra do dominicano foi tambm recuperado naquele momento, enquanto a Brevsima Relacin j circulava h mais de trezentos anos. Certamente, as interpretaes sobre o frade giram em torno desse texto at os dias de hoje.

Durante o sculo XX, tornou-se o cronista mais pesquisado, passando tambm a ser utilizado, por exemplo, pela esquerda latino-americana, direta ou indiretamente. Diego Rivera, por exemplo, muralista mexicano e comunista, retratara o frade junto aos demais personagens da histria mexicana no mural La Conquista, de 1930, encontrado no Palcio Nacional da Cidade do Mxico. Las Casas encontra-se defendendo, com uma cruz, os indgenas da fria de Hernn Corts.

possvel afirmar que Las Casas seja um daqueles autores muito famosos que acabam sendo rotulados. Janice Theodoro destacara este distanciamento a respeito da obra de Las Casas devido a estas interpretaes dualistas:Bartolom de Las Casas, um dos personagens da histria da Amrica (sculo XVI) mais citados. Grande parte dos estudos sobre sua obra encobre, ao realizar simplificaes dualistas, uma leitura que no nos permite conhecer com mais profundidade a forma (retrica), o lugar, o tempo, e os objetivos de Las Casas (...) uma reflexo em torno de um tema que vem tocando os coraes de muitos homens desde o sculo XVI at os dias de hoje: universalizao de determinados conceitos que tornassem vivel a comunicao entre os homens (2003, p. 11).

So definies que seriam conhecidas por muitos, mas que reduzem o contedo abordado. O mexicano Enrique Florescano, por exemplo, na sua obra Memoria Mexicana, no tinha como objetivo discutir Las Casas. Alis, nem dedicou um captulo para isso. Mas, para quem esmiuou o passado mexicano, foi inevitvel no esbarrar no frade. Dedicou algumas linhas a ele, principalmente quando expusera uma breve descrio sobre as Controvrsias de Valladolid. Florescano fizera o seguinte comentrio sobre o frade:se manifest contra la conquista armada y la esclavizacin de los pueblos, y estableci las bases para la moderna teora del derecho internacional, basada en la aceptacin de una naturaleza humana comn y en la igualdad de los derechos de cada individuo (2003, p. 313).

Mesmo no sendo um especialista em Las Casas, o mexicano realizara uma interpretao semelhante a muitas, principalmente aquelas que enxergam na obra do religioso as futuras bases para o moderno direito internacional. Vidal Abril Castell, um dos organizadores da Apologtica publicada pela Alianza Editorial, em 1992, estendera esta definio:

Bartolom de Las Casas siegue siendo ante la conciencia mundial de hoy en da el mximo exponente histrico en este redescubrimiento histrico, por parte la Espaa del XVI, de los derechos bsicos del hombre y de las comunidades menores, y l mximo defensor histrico de esos derechos ante cualquier instancia de poder poltico nacional, supranacional o mundial. Ha quedado convertido as (ante la conciencia humana global de su tiempo y de todos los tiempos) en el prototipo de Defensor de las minoras y de los pueblos oprimidos y en el Padre de los Derechos Humanos en la Historia de la Humanidad (1992, p. 180).

Certamente estas consideraes foram alm da Brevsima, realizadas sobre o conjunto de textos produzido pelo padre. Entretanto, a fora da narrativa trgica daquele texto contribuiu para a consolidao da figura do defensor sui generis do indgena.

H duas imagens consagradas, que no deixam de ser esteretipos quando realizadas em leituras mais parciais. A primeira a do religioso compassivo, aquele que em pleno sculo XVI percebeu nitidamente o momento em que vivia, a ponto de denunciar todas as atrocidades cometidas contra os indgenas, sendo at mesmo proftico, no sentido de prever que tamanha destruio seria responsvel por muito dos problemas atuais do continente. Uma segunda viso seria uma crtica a esta primeira, a partir da idia de que o frade exagerava nas suas denncias, e que sua vida anterior de encomendero tornavam-no incoerente, alm de pouco conhecer a realidade das comunidades indgenas.

Se a dualidade de interpretaes facilita a localizao de Las Casas neste embate historiogrfico, parece-nos que devemos evitar as simplificaes destas abordagens. Para o historiador: no h porque ser isso ou aquilo. Cada grupo tem seus interesses na defesa de seus legados.

Dentre as interpretaes que apontaram as supostas incoerncias do cronista, questionando at mesmo seu carter esto Menndez Pidal que afirmou que Las Casas ...fue el hombre ms admirador de s mismo que ha existido, se pas la vida alabando sus propias virtudes, su intelecto y sus grandes hechos (MENNDEZ-PIDAL: 1963, p. VII). Os crticos de Las Casas enxergaram em Seplveda, seu oponente em Valladolid, maiores qualidades. Menndez Pidal, autor de El Padre Las Casas, su Doble Personalidad, afirmava ainda: ...Las Casas siente manifiesta repugnancia hacia el trato con el indgena, el indio para Las Casas no tiene otro inters que el de ser atropellado por el espaol... (ibid., p. 324). O intelectual espanhol, nesta mesma obra, chegou a apontar uma possvel parania do religioso. A intensidade de suas atitudes demonstraria tal caracterstica, a ponto de se tornar arbitrrio e incoerente.

Houve tambm outros estudos j influenciados pelos estudos etnolgicos recentes, dentre os quais podemos citar Tzvetan Todorov, afirmando que Las Casas ama os ndios (...) E cristo (...) Entretanto, essa solidariedade no bvia (...) justamente por ser cristo no via claramente os ndios... (1999, p. 165), em contraponto ao cronista Durn, cujo conhecimento da cultura indgena mais ntimo... (ibid., p. 199), retirando de Las Casas a sua capacidade de conhecer o indgena. Janice Theodoro, analisando estas abordagens, destacou a no preocupao de Las Casas em conhecer a cultura dos indgenas ao nosso modo: importante notar que a obra de Las Casas expressa um apego extremo s convenes estilstica da poca, resguardando-se de qualquer indagao cultura ndia. No interessa para Las Casas descrever costumes da vida dos ndios, ou procurar compreender seu universo ritual, ou ainda, o sentido dos mitos de fundao. Interessava a ele da retrica para derrotar seu intelocutador. O xito obtido atravs da forma com que elabora sua argumentao transforma-o em heri. No pelo que ele fez de generoso em seu trabalho missionrio, mas pela sua capacidade de nos comover. Ou seja, preferimos navegar em meio a uma retrica conhecida, e acompanhar as emoes por ela sugeridas, a enfrentar o desconhecido, partindo em busca da compreenso de outros padres cognitivos necessrios compreenso parcial das culturas americanas (...) Como nos lembra Robert Ricard, as atividades de Las Casas na Amrica foram bem pouco missionrias. (1992, p. 90)

Sobre essa mesma idia de conhecer, Jos Alves de Freitas Neto complementou tal constatao, historicizando a idia de conhecer no sculo XVI, que seria distinta em relao atual: H uma distinta concepo de amor nas vises de Todorov e de Las Casas. O ltimo, dentro da perspectiva crist, refora a questo da ao, o amor deve vir acompanhado de gestos e dedicao. O primeiro com uma concepo que associa amar e conhecer, em que atitude racionalista, cartesiana, seria determinante (2003, p. 159).

OGorman tambm destacou outros pontos baseado em questes contemporneas do que aquelas do sculo XVI, e conseqentemente os equvocos ocasionados por elas:Se comprende fcilmente que un Royal o un Mier hayan izado al P. Las Casas en defensa, el uno de su humanismo desta, el otro, de su indigenismo poltico, ambos impulsionados por la fobia hacia lo que, para ellos, significaba la monarqua espaola: y se entiende que todava un Llorente y un Menndez y Pelayo enjuiciaran al P. Las Casas a la luz del liberalismo y del conservadorismo que, respectivamente, los tiene. Pero a nosotros nos parece que no en balde ha llovido tanto desde entonces en el campo de las especulaciones filosficas para no haber despertado en nosotros una conciencia que nos apreneia a comprender el pasado dentro dl mbito cultural propio a la poca de que se trate (1971, p.XV-XVI)

Las Casas foi objeto de reflexo de historiadores americanistas no Brasil. O pioneiro e o maior estudioso especfico sobre o dominicano foi o chileno Hctor Bruit, professor da UNICAMP, autor de Bartolom de Las Casas: a simulao dos vencidos. Bruit sempre frisou a qualidade do argumento lascasiano. importante ressaltar que Las Casas foi interpretado por muitas leituras utilitaristas, mesmo aquelas que apontavam qualidades na sua retrica trgica de defesa. Bruit, nesta sua tese de livre docncia, props-se a realizar um estudo bastante detalhado sobre os aspectos polticos do pensamento lascasiano e, mesmo sendo um defensor da existncia de um tratado poltico para o Novo Mundo realizado pelo frade, no se deixou levar por uma leitura apaixonada de suas idias. Mas tambm no se viu impedido de criticar aquelas leituras mais degrantantes sobre a figura de Las Casas.

Las Casas, campeo da evangelizao, compreendeu com nitidez o processo histrico que viveu com tanta paixo e no se deixou iludir nem por suas idias que parecem utpicas e at ingnuas (1994, p. 90). ...Tanto Menndez Pidal como Todorov ignoravam voluntariamente uma obra fundamental do frade: Apologtica Historia de las Indias. Quase mil pginas relacionadas s culturas indgenas. Aqui o frei mostrou seu profundo conhecimento de geografia americana, seu saber etnolgico e sua condio de humanista a toda prova. Todorov desqualifica a obra pelo ttulo, isto , uma apologia e no uma histria (2003, p. 17-18).

Sobre este tratado poltico lascasiano para a Amrica, Bruit expusera as influncias de Las Casas para a elaborao de sua tese. O pensamento escolstico, fortemente presente entre os intelectuais de sua ordem, tornaram-se as principais referncias tericas de seu pensamento. Curiosamente, estas mesmas referncias eram utilizadas por parte de seus adversrios, apesar do humanismo renascentista j se encontrar presente nessas outras anlises e pouco em Las Casas. Mesmo que, aos nossos olhos, o discurso lascasiano parea-nos mais progressista pelo fato de defender uma igualdade entre indgenas e europeus, na verdade, algo que Bruit expusera corretamente, era um discurso conservador naquele momento:

o pensamento poltico de Las Casas se nutriu dessas teorias, as da baixa Idade Mdia, como as formuladas na primeira metade do sculo XVI (...) Sem embargo, suas idias sobre o nascimento da sociedade poltica e, especialmente, sobre o consenso como frmula legitimadora do domnio superaram o pensamento de Vitoria e Surez (...) Em resumo, os pensadores espanhis em geral, e os da escola de Salamanca em particular, deram uma contribuio indiscutvel ao conceito de igualdade de direitos e deveres entre os homens; idia da liberdade das pessoas para mobilizarem-se entre os diferentes territrios do mundo; ao conceito de liberdade poltica dos povos; ao princpio da origem popular do poder real. (1994, p. 98).

O fato de Las Casas nutrir-se dessas referncias mais conservadoras, e menos pelo pensamento humanismo de seu tempo, reforam ainda mais uma caracterstica encontrada em sua obra, que muitas vezes no recordada pelos seus crticos: Las Casas nunca defendeu a idia de independncia daqueles povos, mas sim uma aceitao voluntria da catequizao e da soberania do monarca cristo espanhol por parte daquelas comunidades indgenas, sem o uso da violncia.A aceitao voluntria da f, por parte dos ndios, era o requisito bsico e prvio para que se pudesse exercer sobre eles o domnio poltico. Em outras palavras, o poder poltico dos reis de Castela sobre a Amrica devia ser conseqncia do domnio espiritual da Igreja, domnio este que tambm passava pelo consenso dos ndios. Uma vez cristianizados, por ficar dentro da esfera da Igreja, os ndios ficariam sob o poder poltico do rei espanhol (...) .estabelecer o domnio poltico para logo propagar a f, no era possvel para Las Casas, porque no existiam razes plausveis de qualquer natureza que justificassem esse ato, nem por parte dos ndios, nem por parte dos cristos. (ibid., p. 102).

Seu projeto de captao indgena era pacfico, assim como o processo de evangelizao, que por sua vez seria a ltima etapa para que os indgenas fossem finalmente definidos como servos de Castela de fato. Segundo Bruit:

s depois de serem evangelizados, os nativos ficavam sob a jurisdio do rei espanhol. O reconhecimento dessa autoridade limitaria a jurisdio e liberdade dos ndios, mas, em compensao, os benefcios desse reconhecimento eram maiores que as perdas. O rei cristo, cumprindo a misso evangelizadora, tiraria os ndios da idolatria, reformaria algumas prticas que faziam defeituosos os governos americanos. A autoridade do prncipe cristo conceder-lhes-ia mais liberdade do que eles tinham. (ibid., p. 104).

Portanto, estariam expostas as qualidades principais do argumento de defesa lascasiano de que o indgena seria apto para receber a nova religio e reconhecer a soberania do monarca espanhol. Mas o ponto mais importante do trabalho de Bruit, que segundo ele no foi plenamente compreendido, era o de que Las Casas denunciava no apenas os abusos contra os indgenas, mas principalmente que havia aparatos jurdicos na Coroa espanhola que no eram respeitados. Para Bruit, a noo de uma terra onde as leis so conhecidas, mas no compreendidas era o principal apelo de denncia lascasiana. Desse modo, a elevao do indgena condio de sdito e a observncia desse pressuposto era primordial.

Diferentemente de Bruit, Janice Theodoro no elaborou uma tese especfica sobre Las Casas. Em seu trabalho, h uma abordagem mais ampla, relacionada a diversos temas referentes Histria da Amrica, no especificadas num s autor (apesar do prprio Bruit no ter utilizado apenas Las Casas ao elaborar sua tese). Dentre suas principais idias, os primeiros comentrios j demonstram um determinado olhar sobre a Amrica:

Ocorre que existe uma Amrica vivente que est ancorada no policulturalismo e que no perde sua identidade ao enfrentar o convvio intercultural. Portanto, esta Amrica Latina, com forte ancestralidade ndia, no precisa nutrir-se politicamente proclamando o que no : independente. O processo de diferenciao cultural latino-americano de que somos fruto, ao mesmo tempo que garante aos diferentes povos especificidade, confere a cada um deles condies de responder aos desafios impostos pela modernidade (THEODORO, 1992, p. 6-7).

Suas consideraes, mesmo no diretamente relacionadas a Las Casas, auxiliam-nos a compreender um conjunto de interpretaes que seriam responsveis por uma determinada imagem tanto do continente, quanto de seus habitantes, o qual tambm estaria presente nas anlises a respeito do frade. Por que o sucesso da descrio trgica? Por que sua narrativa se encaixa num discurso anticolonial posterior?

A repercusso do texto lascasiano no foi pouca, e foi inevitvel que Janice Theodoro pelo menos esbarrasse na Brevsima Relacin:

Um dos textos mais utilizados nos livros que procuram elaborar um panorama da histria da Amrica a Brevsima relao da destruio das ndias (...) Este texto, impresso pela primeira vez em 1552, fazendo parte dos Tratados, o primeiro dentre os nove. Atravs deles, Las Casas torna pblica a batalha escolstica travada em 1550 e 1551 com Juan Gins de Seplveda, procurando provar que a proposio de Aristteles, segundo a qual alguns homens eram escravos por natureza, no dizia respeito s populaes ndica da Amrica (...) A fora retrica do texto provocou indignao dos dois lados do Atlntico. Difundiu-se na Europa a legenda negra, sustentada pela idia da destruio das culturas ndias e de grande parte da populao americana. O texto de Las Casas era de tal modo convincente que os outros relatos procuram ter importncia menor (ibid., p. 88).

Autores religiosos brasileiros tambm estudaram Las Casas. Houve um trabalho mais restrito sobre a figura do defensor do indgena de fato, at mesmo tratado como um perfeito autor cristo de seu tempo. o trabalho do frei Carlos Josaphat, que no economizou suas palavras para falar de Las Casas. Como o homem empenhado em livrar e limpar a Amrica, varrendo dela a idolatria do ouro, a ganncia daninha e opressora (JOSAPHAT, 2000, p. 11).

O autor ainda situa as qualidades, o surgimento do grande projeto antropolgico de uma de suas obras, que seria a Apologtica. Josaphat foi um dos poucos autores que dedicaram mais de uma pgina sobre esta obra nos ltimos quatrocentos e cinqenta anos:

A formao dominicana de Las Casas realiza a plena harmonia de sua pessoa, de seus projetos e sobretudo do grande projeto que sua vida. Sua audcia no plano intelectual to grande quanto no campo apostlico, missionrio, bem como na luta dos direitos humanos. Ele planeja suas grandes obras de teologia, de teologia missionria, de teologia da histria e da promoo humana. Elabora especialmente sua viso humana e evanglica da evangelizao e da colonizao, o nico modo de atrair todos os povos verdadeira religio. E comea a gestao de sua teologia da histria, o que ser mais tarde a Histria das ndias, donde se desdobrar a dimenso etnolgica: A Apologtica Histria Sumria. (ibid., p. 84).

Outro trabalho o de Jos Alves de Freitas Neto, Bartolom de Las Casas: a narrativa trgica, o amor cristo e a memria americana. A tese de Freitas Neto, orientado por Janice Theodoro, destacou o componente trgico de sua retrica, relacionando-o com a referncia crist do dominicano, que tambm acompanhou a formao desta memria da conquista. Contudo, Freitas Neto ainda frisou outras caractersticas semelhantes quelas apontadas por Hctor Bruit: ...A obra do dominicano no mascara seu componente poltico, pelo contrrio, evidencia, ao proclamar os direitos que pretendem defender, polemizando com os oponentes e enfrentando as disputas, prprias desse universo... (2003, p. 201).

A retrica inflamada tambm seria um componente poltico, ou seja, havia determinadas intenes ao utilizar aquele recurso narrativo, e no necessariamente esta opo significaria um desconhecimento sobre o Novo Mundo, ou mesmo parania, ou discurso poltico desvirtuado dos acontecimentos daquela poca. Para Freitas Neto, Las Casas se preocupou em criar uma determinada tica da conquista, aos quais todos aqueles conquistadores deveriam seguir, sem desvirtuar os ensinamentos cristos e, portanto, preservando a unidade discursiva entre meios e fins:Ao abordar a questo indgena, com os ingredientes de seu Cristianismo, atravs da perspectiva do amor cristo, reproduzindo um modelo narrativo que enfatiza o trgico, Las Casas construiu um discurso poltico e religioso. Esse discurso no ope meios e fins. Ao preservar uma unidade entre o que defendem, com objetivos finais para a colonizao da Amrica, e as denncias do modo como a conquista se realizava, Las Casas pde empreender um discurso de ampla repercusso e de fcil aceitao para os que compartilham de suas premissas (ibid., p. 217)

Outro estudo realizado recentemente, foi o de Marcelo Neves. Sua pesquisa de doutoramento, orientada por Joo Quartim de Moraes no Departamento de Filosofia da UNICAMP, abordou o tema da tolerncia em Las Casas. Segundo suas prprias palavras, seria uma tolerncia dentro dos limites do cristianismo catlico, que por sua vez pelo fato de ser catlico (universal) tambm seria tolerante, como tambm uma exigncia eclesial. (NEVES, 2006, pp. 241-242). Neves tambm frisou a predominncia de um aspecto mais teolgico do discurso lascasiano, superior s demais caractersticas encontradas na retrica do religioso: ...Las Casas no foi, propriamente, nem um historiador nem um filsofo. Sua maior preocupao foi teolgica e, com razo, pode ser chamado de telogo. Pensamos que, inclusive os dados de sua vida pessoal, so a expresso da sua inteno de ler e julgar os fatos da conquista luz da revelao crist, entendida segundo a tradio catlica... (ibid., p. 243)

O trabalho no contemplava uma obra especfica, mas privilegiava a existncia de um conceito dentro da tradio crist. Para Neves, a premissa de seres criados por Deus faria com que Las Casas visse a igualdade e a necessidade de se aplicar a tolerncia em relao aos supostos pecados indgenas. O bispo de Chiapas, portanto, seria um precursor de noes que viria a ser consagradas na tradio filosfica em sculos posteriores.* * *

Como pode ser observado, o debate ao redor de Las Casas no pequeno. Apesar do grande nmero de estudos, a idia do defensor do indgena, independentemente de sua coerncia ou no, nunca foi questionada, tanto para a exaltao, quanto para as crticas em relao a sua falta de compreenso do universo indgena. Finalizada na dcada de 1550, a Apologtica foi publicada, coincidentemente, tambm como uma grande resposta s crticas do humanista Juan Gins de Seplveda. ...consiste en un abundante acopio de material sobre la cultura indgena... terminada (...) a tiempo para esgrimirla contra Seplveda en la controversia de Valladolid... (HANKE, 1958, pp. 61-62).

Seu ttulo por extenso; Apologtica Historia Sumaria cuanto a las cualidades, dispusicin, descripcin, cielo y suelo destas tierras, y condiciones naturales, policas, repblicas, maneras de vivir e costumbres de las gentes destas Indias occidentales y meridionales, cuyo imperio soberano pertenece a los reyes de Castilla, auxiliam-nos a conceber contedo abordado, suas intenes principais, a partir das descries sobre o continente e seus habitantes, como tambm a respeito de suas repblicas, tendo como seu verdadeiro soberano o reino de Castela.

Las Casas cita o nome de alguns povos, aspectos de sua organizao poltica e social, explicitando as qualidades daquela gente que povoava as ndias de Castela. Isto no ocorre na Brevsima Relacin, na qual h um modelo de violncia e atrocidades narradas, que repetido em cada uma das regies descritas. Antes de ser somente uma nova reafirmao a respeito das qualidades dos indgenas, a Apologtica destacou-se por esta diferena de enfoque. O religioso apresentou um estudo mais especfico sobre o mundo indgena, como um argumento favorvel crtica do conceito de servos por natureza, definio muito defendida em meados do sculo XVI. Devido a isto, no deixou de discutir, essencialmente no eplogo, o conceito de barbrie aristotlico e a sua utilidade para as ndias de Castela, construindo uma retrica muito rica em referncias tanto europias quanto indgenas.

No estudo realizado por Barreda, h um total de 3030 referncias feitas por Las Casas na Apologtica. Muitos autores se repetem em relao a outros escritos como: Histria de las Indias, De nico vocationis modo, Apologa, cuja quantidade autores como Josaphat no conseguem deixar de constatar. A abundncia desta documentao vem acompanhada de um domnio dos autores mais representativos das pocas que o precederam de sua prpria. H uns 220 autores, sem contar os das Sagradas Escrituras. Las fuentes bibliogrficas da Apologtica nos situn ante un Las Casas humanista, cultivador de la historia y la literatura clsica en su dimensin ms universal (BARREDA, 1992, p. 215).

Mesmo trabalhando menos com ela do que Josaphat, Bruit acreditava que ao se excluir a Apologtica dos estudos sobre Las Casas, surge um estudo incompleto (1994, p. 17-18). Lewis Hanke (1958), tambm ressaltou que a Apologtica foi obra em que Las Casas mais se empenhou, tornando-se uma espcie de concluso final de todos seus argumentos anteriores. Durante vinte anos, o dominicano reelaborou referncias no intuito de reforar sua tese. Abril Castell expressou as caractersticas marcantes deste texto:

La experiencia acumulada por Las Casas (especialmente en cuanto colono-encomendero, agricultor y minero) y la reconversin moral que produjo en l proceso teolgico-religioso de su primera conversin, suministraron al abogado Las Casas las primeras bases de hecho y de derecho para defender la causa emprendida. Junto a la va de la conciliacin, recurri a poner en marcha verdaderos planes de formacin profesional de sus clientes: campaas de capacitacin humana, social, laboral e incluso empresarial de los indios (ABRIL CASTELL, 1992, pp. 37-38).

Ao contrrio do relato da violncia, enfocou-se na anlise da cultura indgena, como uma tentativa de se compreender o Novo Mundo e o seu papel para a coroa espanhola e para a Igreja Catlica, sem desqualificar as caractersticas encontradas. O comentador Miguel J. Abril Stoffels destacou esta caracterstica, ao indicar que Las Casas era um conhecedor das culturas indgenas, como tambm da legalidade vigente na Espanha, tanto no Novo Mundo quanto na metrpole. Outra caracterstica seria o uso da chamada da antropologia comparada, presente na Apologtica, capaz de desenvolver um ponto de vista mais indocntrico do que eurocntrico. (STOFFELS, 1992, pp. 198-199).

Citando a interpretao desses autores, alm de apontar caractersticas do prprio discurso lascasiano, notamos a existncia de um grande debate a respeito dessa narrativa da Amrica. Todavia, as discusses pouco incluram a Apologtica, estudo to vasto e relativamente distinto, no s em relao a Brevisima Relacin, como tambm em comparao aos outros textos escritos pelo frade.

Las Casas um autor muito citado, porm a Apologtica pouco citada. A procura dos referenciais da elaborao da obra pode ser indicador da sua preparao intelectual, em que as mudanas de perspectivas ao longo de sua vida de intensa atuao poltica na defesa do indgena proporcionaram-lhe uma reviso do modelo de colonizao. Por isso, podemos analisar os resultados desta investigao a partir de uma sistematizao que auxilie interpretar e contrapor o silncio sobre esta obra lascasiana e sobre a temtica que ele se props, indagando sobre sua forma de selecionar, recortar e argumentar na Apologtica.

Talvez a diferena que merece nossa ateno aps todo este debate, mas agora referente a Apologtica, onde poderamos encontrar os argumentos de fato para a defesa do indgena, assim como tambm os de direito, que no estariam somente presente em obras como a Apologa.

Seguindo as observaes dos estudiosos lascasistas pretendemos unir a perspectiva do argumento de defesa do indgena composio de uma obra que enaltece prticas, costumes e hbitos do Novo Mundo. A proposta de Las Casas, desta forma, insere a Apologtica no como uma obra dspare no conjunto de seus textos, mas antes, um apanhado de argumentao que orientou o frade desde sua converso causa indgena.Captulo 2O indgena e seu continente

Os caracteres que definem o homem, como a racionalidade, a sociabilidade, a liberdade, o bem comum, esto submetidos ao desenvolvimento histrico, em que fatores diversos participam acelerando ou retardando esse desenvolvimento. Las Casas deu muita importncia s questes geogrficas para explicar as diferenas entre os povos, mas pde romper o determinismo fsico, em seu pensamento, por meio da educao, que considerou como o elemento motor na evoluo dos povos. Para ele, nenhum povo estava excludo do processo geral da humanidade para uma etapa mais perfeita e mais civilizada, porque todos, por natureza, eram racionais, livres e sociveis, e a educao era o instrumento mais eficaz para acelerar o processo civilizatrio...

Hctor Bruit, Bartolom de Las Casas: a simulao dos vencidos.

O primeiro tema abordado na Apologtica a descrio fsica do ambiente encontrado alm-mar. Las Casas compartilhava da idia de que o meio teria uma relao direta com seus habitantes. Certamente, esta mesma constatao era utilizada pelos seus adversrios, porm num sentido negativo, em que o Novo Mundo seria um continente degradado, interferindo at mesmo no intelecto dos indgenas. Os primeiros captulos da Apologtica foram dedicados a esta discusso, cujo tema essencial seria natureza, concentrada na descrio praticamente nica da Ilha Hispaniola, territrio onde o frade permaneceu mais tempo fora da Espanha.

No concordava que os indgenas estariam sujeitos a essa influncia negativa. Por essa razo, a sua descrio sobre a Ilha Hispaniola, cujas qualidades se estendiam a todo Novo Mundo, configura um lugar privilegiado e quase paradisaco em que confluam as causas de tipo cosmolgico. Ao relatar as caractersticas geogrficas de um determinado continente, h tambm uma aluso Criao encontrada no livro Gnesis da Bblia, num processo narrativo muito semelhante. Logo, a Amrica seria uma obra de Deus e seus habitantes tambm, um aspecto moral que estaria, por exemplo, acima das temperaturas elevadas do continente.

O dominicano realizara uma generalizao a respeito das demais terras, com as justificativas tericas sobre as qualidades do ambiente fsico e sua relao com os indgenas, sempre adequada s causas de ordem universal e particular. ...Las Casas va a dedicar veintitantos captulos de su Apologtica Historia a explicar el modo de influencia que estas causas pueden tener en el ser humano... (QUERALT MORENO, 1976, p. 111). O modo como descreveu este territrio diferenciado tambm, pois no fora necessrio se basear nos escritos de outros autores, como foi realizado sobre as regies continentais, em que esta relao homem-natureza nem mesmo aparece.

De certa forma, poderamos afirmar que esta determinada abordagem fundamentada na Ilha Hispaniola j bastava tanto para o restante do Novo Mundo, quanto como o argumento fsico de toda Apologtica. Segundo suas referncias escolsticas, havia uma grande importncia neste destaque sobre a natureza do Novo Mundo, que teria uma relao muito direta com as sociedades que ali habitariam: [Toms de Aquino] la naturaleza tiene su origen en Dios en la inteligencia divina, por ello, tambin todo lo natural, y el derecho natural por tanto, participa de esa ley eterna radicada en el Supremo Hacedor (ibid., p. 19). E, ...Naturalmente, todo ello est encaminado a probar que los indios cumplen todas estas condiciones en sus tierras por las cuales es imposible devir que sean gente incapaces... (ibid., p. 112). ...Toms ter fornecido, assim as peas principais do dossi jurdico-poltico discutido durante todo sculo XVI na escolstica espanhola. Trata-se, no essencial, de dois tratados conexos com a Suma Teolgica: o tratado das leis (Ia, IIae qu.90-7) e o tratado de justia (de justitia et jure, Ia, IIae qu. 57-79), aos quais convm acrescentar as questes relativas aos infiis (IIa IIae, qu, 10 de infilitate in communi e qu. 12 de apostasia). (COURTINE, 1998, p. 295)

Apesar das passagens estarem mais voltadas para as caractersticas fsicas da ilha, e pouco sobre seus habitantes, o frade fizera menes sobre algumas prticas (principalmente aquelas que envolviam a relao do indgena com o ambiente como, por exemplo, a agricultura), alm de breves referncias a respeito da violncia sofrida pelos indgenas, exemplos os quais nunca foram abandonados pelo religioso. Demonstrava ter conhecimento direto de muitos fatos ocorridos naquele local.

A tentativa principal desses textos, assim como no restante da Apologtica, era demonstrar como o continente e seus povos eram equivalentes em vantagens e desvantagens em relao ao Velho Mundo. Consistia; primeiro, no estudo dessas causas essenciais da natureza pelas quais o homem teria disposio e habilidade natural para os atos do entendimento; segundo, no estudo de como o indgena estaria inserido nessas causas (OGORMAN, 1967, p. XXXVIII). A partir desta unidade metafsica do homem, Las Casas fundamentar sua acentuada defesa do gnero humano, e, poderamos dizer, de todas as naes, independentemente do nvel cultural e de seus costumes (QUERALT MORENO, 1976, p. 23).

Las Casas esforava-se para evitar o desmoronamento humano do Novo Mundo. A Apologtica seria mais um instrumento de luta contra os abusos de poder cometidos pelos conquistadores, a partir de um aprimoramento discursivo. Muitos estudos apontaram a imagem de que o trabalho do frade centrava-se mais no campo do direito e da religio. Mas o debate lascasiano tambm supunha uma discusso que no s envolvia elementos religiosos, jurdicos, polticos e morais, como tambm culturais. (STOFFELS, 1992, p. 186)

Stoffels fizera outra definio que nos auxilia a compreender como comportavam alguns tericos da colonizao espanhola daquele perodo: havia o bando oficialista e o bando indigenista, o primeiro encontrava-se constitudo num macrocosmo cultural-legal-jurdico e com interesses econmico-estratgicos importantes, no cedendo a favor das imposies pr-indigenistas. Em meados do sculo XVI (quando Las Casas finalizara a Apologtica), o lucro adquirido pelas encomiendas chegava ao seu auge, fazendo da Espanha a monarquia mais forte da Europa. Aos poucos, este bando ganhava mais fora dentro do cenrio colonial. O bispo de Chiapas precisava reagir novamente.

O argumento oficialista baseava-se na barbrie do indgena, muitas vezes na sua irracionalidade tambm, a qual exigia a tutela e a direo espanhola para terminar a misso civilizadora e evangelizadora. Sustentavam-se, segundo Stoffels, em dois princpios: Determinismo Geogrfico, em que as sociedades, num diferente habitat geogrfico, so necessariamente subdesenvolvidas desde o ponto de vista humano at cultural; e o Determinismo Humano, baseado na idia de que as caractersticas fsicas e as potencialidades aristotlicas (inteligncia, habilidade, bondade) eram deficientes nos indgenas, ou seja, seriam quase-humanos e nunca homens com plenas capacidades. Outro argumento seria do ponto de vista social, devido quase inexistncia de sociedades mais complexas, algo que aps a conquista do Mxico passara a tambm ser questionado.

Las Casas queria demolir esses pilares para construir um novo edifcio colonial. A Apologtica deveria demonstrar que o indgena no era um ser com capacidade racional quase nula, mas sim perfeitamente racional e social, capacitado para se organizar em sociedades to complexas, completas e funcionais, e que as diferenas de costumes, religio e sociedade, sacrifcios, etc, no significavam necessariamente irracionalidade ou vida viciosa. Em muitos aspectos as formas de vida indgena poderiam ser melhores que as europias. Probado hasta aqu que estas indianas gentes son de su naturaleza de buenos entendimientos por causas naturales, de aqu adelante quiero probar y demonstrar serlo asimismo por sus manifiestos propios efectos... (LAS CASAS, 1992, p. 463).

O debate foi se acirrando ao longo dos anos, e certamente a controvrsia de Valladolid foi um grande exemplo a respeito dos vrios debates que eram realizados sobre esse tema. Para o bando oficialista, seu ponto de fora no debate era a organizao e assentamento dos espanhis em grupos oligrquicos de fato. Para o bando indigenista, as armas para se utilizar no debate eram a religio, as tomadas de conscincia, a lei, a excomunho.

Apesar das suas propostas radicais: negao de sacramentos, excomunhes, a busca de reas exclusivamente destinadas a religiosos regulares, restituio de tudo que fora considerado roubado dos indgenas, evidencia-se que paralelamente havia outras intenes do frade, ou seja, propostas para o estabelecimento da colonizao no continente que respeitassem as comunidades indgenas. Mesmo que seu projeto de conquista pacfica tivesse sido um fracasso nos anos 1520, sua maturidade intelectual incorporava outros argumentos. Da mesma forma que o governo castelhano mudou vrias vezes sua estratgia de conquista e colonizao a partir de resultados medocres ou nulos, o dominicano tambm fazia o mesmo na Apologtica, tentando demonstrar que concepo de captao pacfica e religiosa do indgena funcionava e era perfeitamente vivel.

2.1 Ilha Hispaniola: a natureza e a capacidade racional de seus respectivos habitantes

Las Casas vivera muitos anos no monastrio dominicano da ilha. Praticamente toda essa vivncia perceptvel na leitura de suas descries. Dentre os contedos encontrados, h comentrios sobre o relevo, a vegetao, o clima, como tambm sobre os alimentos mais comuns. Existiriam vales, grandes montanhas e pequenos morros, vrios rios e arroios (os quais poderiam ser mais de trinta mil segundo o religioso), entre lagoas doces e salgadas. Quase todos os terrenos seriam muito frteis, assim como outros um pouco menos.

Nesta espcie de introduo de toda obra, o bispo separou, muitas vezes, o que descreve entre o que viu, e o que somente ouviu dizer. O perodo em que finalizara seu texto, algo que j foi frisado anteriormente, posterior ao momento o qual de fato esteve na Hispaniola. ...No me acuerdo qu tanto durar de ancho y largo esta cumbre, porque ha ms de cinquenta aos que estuve en ella; llamase Hayt (...) de la cual se denomin y nombr toda esta islas y as la nombraban todas las gentes de las islas comarcanas... (ibid., p. 312). Muitas vezes no se lembra de alguns nomes, ressaltando tambm que determinadas caractersticas no se encontravam mais da mesma forma como nos primeiros anos da conquista devido violenta explorao dos primeiros anos, que at provocaram a escassez de ouro em muitas das minas. Estava mais ciente sobre muitos fatos ocorridos naquele territrio, ao contrrio de outros que conhecia menos, ou somente ouviu dizer ou leu a respeito.

A Vega Real, uma vrzea que ocupa boa parte do territrio, constantemente mencionada como os possveis Campos Elsios terrenos:

tiene longura de mar a mar (ya va de oriente a poniente) ochenta grandes leguas, las cuales todas yo he andado por mis pies... esta asentada la ciudad de la Concepcin, que tambin llaman la ciudad de la Vega, cabeza de obispado, y fue la cabeza de toda las islas los primeros aos, pero despus muertos los indios fuese despoblando de espaoles, y por el trato y frecuencia de las navos al puerto de Sancto Domingo prevaleci la poblacin de aquella ciudad y as se hizo cabeza de la isla (ibid., p. 321).

Digo verdad, que han sido munchas y ms que munchas, que no las podra contar, las veces que he mirado esta Vega desde las sierras y otras alturas de donde gran parte della se seoreaba (...) no tena por vano el viaje desde Castilla hasta ac del que, siendo filsofo, curiosos o christiano devoto, solamente para verla y despus de vista considerada se bviese de tornar (ibid., p. 323).

Mesmo que tivesse finalizado a Apologtica nos anos 1550, deixando claro que haveriainformaes incompletas as quais jno se recordava com exatido, citou o momento em que iniciara seus escritos: A tres leguas desta vega, al cabo lo oriente, est el puerto de Plata y junto a l la villa que as se llama, y encima della en un cerro hay un monasterio de la Orden de Sancto Domingo, donde se comenz a escribir esta Historia el ao de mill y quinientos y veinte y siete. (ibid., p. 295-296).No que seria posteriormente separado em Apologtica Historia Sumaria e Historia de las Indias, haviaescritos iniciadoscerca de trinta anos antes.O cazabe (ou cazabi, como escrito pelo frade), o po feito da raiz yuca, tivera grande destaque nessas descries. Sua produo era iniciada pelo corte das razes, raspadas e depois raladas e deixadas para fermentar,formando um tipo de massa que dava origem ao po, muito apreciado pelo padre. Las Casas dedicara o captulo 11 ao cazabe, que aps a chegada dos espanhis, foi produzidode modo compulsrio pelos indgenas, e posteriormente substitudos pelos africanos. ...Despus de aquellos muertos (que mataron a los indios), sucedieron otros vecinos que hoy en esta isla hay, los cuales comenzaron a traer negros... (ibid., p. 336-337). Do cazabi, curiosamente, podia-se extrair um veneno, com o qual os ndios se suicidavam para no mais trabalhar.Sua manufaturatambmseria muito mais produtiva do que o de po de trigo comum.

Alm do cazabe, Las Casas tambm descreveu o consumo de animais como peixes, cobras no venenosas, mamferos marinhos prprios do Caribe (manatis), assim como outras razes. Havia tambm as diferentes frutas, muitas j trazidas de outros lugares e plantadas por l, assim como rvores ervas medicinais, que poderiam servir como remdios e venenos.

Neste incio da Apologtica, o frade tambm cita o nome das diferentes provncias da Ilha Hispaniola delimitadas pelos conquistadores: Bainoa, Guahaba, Marin, Marcorix de Bajo, Marcorix de Arriba o Cubao, Ciguayos, Higuey, Cayacoa, Aza, Yaquimo y Hanyguayagua, Iguamuco, Banique, Hatiey, Zahay, Xaragu y Caiguan, Cybao, Maguana, Bonao, Maniey, Arbol Gordo, Vega Real, Macao, Canabocoa, Saman y Magu. As descries fsicas deste local quase sempre foram separadas no limite de cada uma, ou seja, abordava uma por uma, destacando relevo, clima, rios, alimentos, animais, vegetao, o excesso de locais frteis, assim como tambm seus habitantes. O frade s no se recordava do nome de uma das provncias: El nombre que tena puesto por los indios no mir preguntallo cuando pudiera muy sabellos [d]ellos, y aun tiempo que yo haba comenzado a escrebir esta Historia; y as qued esto, como otras muchas cosas, por mi inadvertencia... (ibid., p. 295). A Vega Grande seria a regio em comum entre a maioria destas provncias, os Campos Elsios daquela terra, segundo suas prprias palavras.O princpio de uma origem nica, inserida na tradio judaico-crist da Criao, que igualaria todos os homens eram freqentes na obra de Las Casas. O dominicano acreditava que caractersticas fsicas lembravam muito a ndia, e certamente teriam feito parte dela no passado devido ao grande nmero de rvores semelhantes quelas encontradas na sia. Alm de fazer essa relao, Las Casas citou o nome tambm de alguns vegetais, muitos dos quais, provavelmente, seriam descendentes daqueles plantados por No.

Como j foi dito anteriormente, ao contrrio dasoutras regiesque tambm citou na Apologtica, a Ilha Hispaniola o territrio o qual Las Casas conhecera melhordevido sua experincia pessoal. No restante da obra, podemos notar que o uso do trabalho de outros cronistas foi indispensvel.Sem terminar de citar as demais caractersticas encontradas na ilha, e por sua vez as estendendo para regies mais prximas, o frade levantou diversos questionamentos sobre o restante das ndias de Castela, como tambm sobre seus respectivos habitantes. Essas mesmas descries referentes a um territrio especfico serviam como uma justificativa equivalente a todas as outras terras, na defesa de seu argumento fsico geral para todo o continente. Portanto, a discusso sobre as causas favorveis da ilha iriam se completar ao serem generalizadas a todas s ndias. Sobre essa mesma caracterstica, OGorman destacara: Pensamos que cuando Las Casas justifico por efectos de causas csmicas la excelencia de la Isla Espaola, debi comprender que esa misma justificacin le entregaba un irrebatible argumento a priori que demostraba la necesaria perfeccin orgnica y corporal de los habitantes naturales de esa isla, y por lo tanto, y esto es lo decisivo, su necesaria plenitud de capacidad racional. Y puesto que ese era el asunto central de todas sus preocupaciones a hacer la generalizacin que hizo respecto a todas las tierras de las Indias, porque de ese modo todos sus habitantes se beneficiaban de tan poderoso argumento; y ya engolosinado con esta perspectiva es natural que haya abandonado la brumosa tarea de proseguir con la descripcin geogrfica y dedicado de lleno a aprovechar la estupenda oportunidad que se le brindaba (O`GORMAN, 1971, p. XX).

Eram justificativas tericas das qualidades, e, de certa forma, um pequeno tratado, o qual mostrava que a Hispaniola estaria adequada em relao s causas de ordem universal e particular, assim como o restante do Novo Mundo. Esse o conceito de causa universal teria seus desdobramentos. Segundo os critrios apresentados pelo frade, cinco caractersticas atrapalhariam a habitao de algumas regies: excesso de terras alagadias, a existncia de terrenos estreis, os bichos ruins em excesso, o nmero elevado de montanhas ou vales e a m qualidade do ar. A localizao entre os cus tambm seria fundamental. Uma boa posio entre os astros era muito importante, assim como a influncia das temperaturas, que no poderiam ser muito altas a ponto de afetar ointelecto, tornando-os inferiores queles que habitavam regies mais frias.

De acordo com oseu raciocnio, influncias negativas como essas no ocorriam no Novo Mundo. Haveria regies quentes propcias ao homem e, alm disso, outras vantagens encontradas no Novo Mundo contrabalanariam o problema relativo s altas temperaturas, sendo a Ilha Hispaniola um bom exemplo. Era como se, implicitamente, quisesse afirmar que lugares quentes teriam qualidades tambm, ou que, no caso especfico desta ilha, haveria outras caractersticas que se sobreporiam s outras.

Existiam bons ares, pntanos, cobras, vales, montanhas, bons odores. Todas as estaes eram ensolaradas. Ventos marinhos do oriente purificariam o ar, enquanto os do norte (frios) fechavam os poros do corpo, preservando o calor interno. Havia poucos piolhos e pulgas, e a maior parte teria vindo da Europa. Os indgenas eram pouco castigados, mesmo no usando calados fechados (alpargatas). Os negros eram mais castigados pelas pulgas porque, segundo o frade, seriam mais sujos.

Apesar de ter destacado muito mais as qualidades encontradas na Hispaniola do que seus defeitos, o dominicano descrevera uma doena antiga que infeccionava os gnglios (bubas), provavelmente originria do Novo Mundo, que os assombrava. Mas ressaltara que, geralmente, seus povos eram muito mais saudveis do que os europeus. Recordou o fato de um homem hidrpico curar-se sozinho, muito provavelmente por apresentar uma sade superior.

O frade tambm afirmara que sua ilha era maior que a Inglaterra, Creta e Siclia (estava errado somente em relao primeira), comentando que nas trs existiriam menos qualidades em relao Hispaniola. A quantidade de guas era algo que tambm engrandecia uma determinada regio. A ilha estava repleta delas, podendo haver mais de trinta mil rios e crregos. Na extenso de suas comparaes, descreveraregies vizinhas, destacando as qualidades de Porto Rico, Cuba, Jamaica, Trinidad, Nicargua e Paria, frteis e formosas como a primeira. Estageneralizao das qualidades da ilha para todas as ndias Ocidentais seria,segundo Edmundo OGorman, um paradigma de todas as novas terras: admitia-se que haveria regies onde o ambiente no seria to privilegiado, e as poucas vantagens destas confirmariam a regra em relao s demais. (id., 1967, p. XXXVIII)

A cor dos indianos era mais negra do que a dos indgenas, logo estes teriam uma mais adequada, segundo Las Casas. O excesso de sol, que prejudicava a pele e o intelecto, era agravante. Mas os indgenas tinham mais vantagens neste sentido tambm porque a localizao celestial era melhor. Apresentando caractersticas naturais da ilha, depois as estendendo pelas regies vizinhas, Las Casas utilizava boa parte dos argumentos de sua poca para exaltar as qualidades do continente e de seus habitantes. Abordara uma por uma, inicialmente expondo afirmaes as quais no concordava, e posteriormente refutando as mesmas, caracterstica que se repete no decorrer de toda obra.A partir do captulo 23, aparece um esquema pontual e metdico do que seria a Apologtica na sua verso definitiva. ...Y de aqu es que segn la capacidad del cuerpo se mide la capacidad del nima, y as unos hombres tienen el nima ms perfecta o menos perfecta que otros... (LAS CASAS, 1992, p. 382). O tema de Las Casas passa a ser o argumento humano, no qual descreve que os indgenas tm formosura e propores benficas dados pela natureza.

Esta argumentao leva comprovao da existncia da capacidade de independncia e de auto-suficincia das comunidades indgenas. H uma grande exposio dos diferentes argumentos que aqueles chamados integrantes do bando oficialista deduziam como a incapacidade do ndio nos planos racional, religioso e social; posteriormente refutados com argumentos contrrios. Desta maneira, o frade examinara as justificativas discriminatrias, trocando-as pelas suas justificativas.

Para Las Casas, h seis causas naturais, essenciais para compreender as particularidades do Novo Mundo: a influncia dos cus, a disposio e qualidades das terras, a composio dos membros e rgos interiores, a clemncia e temperana e suavidade dos tempos, e a idade dos pais e sanidade da alimentao.

A primeira delas, a influencia de los cielos, era importante para o corpo, e conseqentemente tambm para a alma. ...el sol o los planetas en el dia de la concepcin de cada uno; desde all se comienza a tomar el indicio y, por el nacimiento de cada uno, de las condiciones e indicaciones del que nace... (ibid., p. 383). A localizao entre os corpos celestes poderia afetar ointelecto das pessoas. De fato, motivaria diferenas no grau de perfeio e nobreza da alma e, portanto, na capacidade de entendimento.Em essncia, as almas no seriam distintas, massua racionalidade s poderia se expressar atravs do corpo, sujeito influncia favorvel dos cus.

A segunda causa estaria associada idia da disposio e qualidade das terras. O conceito de que lugares frios ou quentes influenciariam o intelecto era muito comum. Mas Las Casas j refutava tais afirmaes na prpria exposio destas idias:como la virtud celestial sea materia y corprea y el entendimiento del hombre inmaterial y apartado de toda materia, y lo mismo la voluntad y con esto sea libre de donde depende que elecciones de los hombres son libres por lo cual ni el entendimiento ni la voluntad o influencias de las estrellas o cuerpos celestiales, sino accidental e indirectamente, como arriba fue dicho (ibid., p. 389).

A virtude celestial (dos corpos celestes) seria material e corprea, enquanto o entendimento do homem seria imaterial e apartado de toda matria. Logo, os homens seriam livres disso, ou melhor, mesmo sendo uma influncia negativa, seria pequena frente divina providncia. ...Y la naturaleza tiene que obrar as, porque es Dios quien acta a travs de ella, formando los hombres a su imagen y semejanza... (QUERALT MORENO, 1976, p. 107).A terceira causa, relacionada composio corporal, era de igual importncia em relao s demais. Las Casas ainda apontouquatro modosde se tratar o corpo: a moderao em beber e comer; a temperana em relao sensualidade; a moderao e cuidado com as coisas temporais e mundanas; e a carncia das perturbaes de paixes como ira, prazer, medo, temor, tristeza, medo, e outros.

A quarta causa estava relacionada ao tempo. Variaes excessivas de temperatura eram ruins. Regies muito frias seriam consideradas boas por fecharem os pros e preservarem o calor interno, mas as muito frias seriam igualmente ruins, por ficarem longe do zodaco, cujo vero era curto. A Ilha Hispaniola, assim como o restante das terras das ndias de Castela, seria mais harmnica neste sentido. Fizera tambm uma descrio sobre os costumes e hbitos de outros povos do mundo segundo esta quarta causa natural, destacando as qualidades indgenas frente a eles.

A quinta causa, referente idade dos pais, era tambm importante. Os pais deveriam estar com uma idade ideal na hora de conceber um filho. Nunca muito jovens e nem muito idosos, relembrando que esta faixa etria era maior para os homens. Isto era uma qualidade fundamental, e o desrespeito em relao a esta causa poderia afetar profundamente o intelecto de seus filhos. Finalmente, haveria a sexta causa, em que o frade destacara a importncia da alimentao.Delineou tambmuma relao entre o clima e algumas complixiones humanas como: melancolia (frio/seco), fleumtica (frio/mido), sangnea (quente/mido), colrica (quente/seco). Era clara a importnciado meio como forma de interferncia no intelecto, entretanto, eram conceitosque Las Casas sempre rebatia. Expunha para posteriormente refutar, sendo um modelo de dissertao constante at o ltimo captulo da Apologtica. Neste momento, podemos notar este primeiro objetivo da obra, ou talvez, a base em que fora estabelecida sua tese: um tratado sobre as relaes entre o ambiente fsico e os organismos vivos, com aplicao direta em relao aos indgenas, com o objetivo, j enunciado, de provar que so corporalmente perfeitos, portanto bons de entendimento.Las Casas relacionou as seis causas naturais com o continente e seus habitantes.A influncia dos cus atuava diretamente nos indgenas no melhor sentido, assim como a dos corpos celestiais tambm. Apesar de o clima ser quente na maior parte das terras, as qualidades intelectuais se encontravam preservadas. Era como se houvesse uma srie de fatores que contribussem para ointelecto do indgena, predominantes sobre aqueles que atrapalhavam. Todas as regies eram bem posicionadas abaixo dos astros.

Tinham corpos bem proporcionados. Na tica do frade, apesar de morenos, tinham boa compostura. Geralmente as prticas culturais consideradas estranhas eram correlacionadas com outras do Velho Mundo, ou do Velho Testamento. Obviamente, nem todos seriam perfeitos, mas citando a importncia do livre arbtrio, defendera a existncia de uma determinada pluralidade de prticas.

Comiam bem, apesar dos rituais em que se embebedavam. Mas destacara a bebedeira de No como um contraponto, ou seja, no era exclusividade indgena.Tinham moderao nos atos venreos, eram honestos com as mulheres e limpos. Havia injrias, mas todas aceitveis.A descrio de atitudes ruins semelhantes, ou mesmo piores, no Velho Mundo freqente em toda Apologtica.

Mesmo com os eventuais furaces, o clima era bom. Todos eram quase sempre alegres e teriam um sangue bom, porm, muitospadeciam de tristeza devido aos maus tratos dos espanhis:.conviene saber, el sufrimiento y paciencia que en los trabajos intolerables y nunca otros tantos ni tales, imaginados ni imaginables, que han de los espaoles padecidos, como esta Historia con verdad delante de Dios, que es y ser testigo y verdad de todo, testificar (...) las pestilencias que se han en algunas partes destas Indias engendrado, que es cierto proceder de la imaginacin y de la tristeza de los males presentes y pasados (...) poca estima y menosprecio y abatimiento que los nuestros espaoles destas domsticas y humanas gentes cobraron, no por ms de por verlas tan mansas (...) debindolas de amar y agradar, honrar y estimar y consolar por las dichas mismas causas (LAS CASAS, 1992, pp. 451-452).

As cabeas tinham boas medidas, crnios adequados que no atrapalhavam o intelecto. Apesar de casarem muito cedo, ...aunque los padres de los que nacieron de tanta edad como converna, y, por conseguiente, no por eso dejarn las gentes destas tierras de ser de buenos entendimientos para producir actos racionales e intellectuales... (ibid., p. 461), eram poucos os caso de problemas relacionados a isso. Mesmo, algumas vezes, no comendo muito bem, no sofriam de deficincia mental devido a isto. A idia de uma boa dieta do frade bastante associada importncia do consumo de protena animal. la mucha templanza y abstinencia que en sus comidas ordinaries tienen, y otras muchas cualidades que, segn por lo mucho que se ha referido, se puede colegir les favorecen... (ibid., p. 462).

Apontara tambm que pessoas que habitavam regies quentes e midas viveriam mais do que aquelas que moravam em regies muito frias.Estabelecera que o clima ideal para se viver seria o mais harmnico, e no necessariamente o menos quente, algo muito presente em todas as ndias de Castela. Sendo assim, estavam em condies perfeitas para que suas almas recebessem a f crist, assim como eram perfeitas no entendimento:queda, si no me engao, asaz evidente probado ser todas estas indianas gentes, sin sacar alguna, de su mismo natural, comn y muy generalmente, de muy bien proporcionados para recibir en s nobles nimas y recibirlas con efecto de la divina bondad y certsima Providencia, y por conseguiente, sin alguna duda, tener buenos y sotiles entendimientos, ms o menos menores o mayores, segn ms o menos causas de las seis susodichas en la generacin de los cuerpos humanos concurrieren (ibid., p. 462).

Segundo Queralt Moreno: La afirmacin primera de nuestro dominico, afirmacin fundamentalsima, es la de la especifica unidad del gnero humano. Para Las Casas todas las naciones y seres humanos son hombres y pertenecen a un mismo gnero de seres creados... (1976, p. 98): todas suas constataes caminhavam para esta concluso, o intelecto dos indgenas no estava prejudicado, e tudo aquilo que ainda no conheciam poderia ser ensinado sem maiores problemas. Portanto, no havia s a possibilidade de converso dos indgenas, mas tambm de educao.

Alm da capacidade racional como justificativa de defesa, Las Casas utilizara outras descries referentes organizao social, o que lhe abriu a possibilidade de realizar uma detalhada argumentao sobre a cultura dos povos do Novo Mundo, mediante uma sistemtica comparao com os povos antigos do Velho Mundo.Desta forma, surgia, segundo afirmou OGorman, umimportante desdobramento dentro da Apologtica, ou seja, definida a perfeita capacidade de intelecto dos habitantes do continente, o religioso precisava expor mais vantagens a partir dos feitos indgenas:Este tan importante cambio de enfoque dio el impulso definitivo al proceso que venamos rastreando, puesto que despert en Las Casas la idea fundamental que inspira la Apologtica o se ala de demostrar que los indios gozaban de plenitud de entendimiento, a base, primero, del vnculo necesario que existe entre la mayor o menor perfeccin de los hombres y las condiciones del ambiente fsico en que se cran y segundo, a base de un estudio de su cultura como manifestacin a posteriori de su capacidad racional. De ese modo, en efecto, mostrara que el indio no slo era capaz por sus condiciones corporales, es decir, considerado como ente de naturaleza, sino por sus obras, es decir, considerado como ente moral o histrico (1971, p. XX).2.2 As prudncias

Os objetivos de Las Casas rumaram a uma breve exposio mais terica antes de adentrar sobre os feitos indgenas. Realizara uma exposio sobre o conceito de prudncia, que seriam trs: monstica, referente ao regime racional da vida do indivduo; econmica (ou domstica), referente ao regime racional da vida familiar; e poltica, referente ao regime racional da vida em sociedade (LAS CASAS, 1992, p. 463).

O uso do conceito das diferentes prudncias era necessrio para adequar melhor sua retrica de defesa ao discurso daquela poca, no caso, aquele baseado no pensamento escolstico compartilhado tanto por Las Casas, quanto pelos seus principais adversrios. Em outras palavras, o dominicano necessitava de um argumento mais terico para justificar melhor suas consideraes sobre o Novo Mundo expostas anteriormente.

A partir do captulo 40, comeou a desmontar o argumento humano-histrico, que sustentava a incapacidade racional do ndio por suas obras e capacidades individuais. Os respectivos ttulos so:

De cmo el hombre se inclina naturalmente al bien. Acerca de las tres especies de prudencia: monstica, econmica y poltica; En el cual se contina la materia de la prudencia, etc; En donde se prueba que estas indianas gentes tenan prudencia monstica; En donde se prueba que tenan prudencia econmica; En el cual se prosigue la misma materia de cmo estas gentes tienen prudencia econmica; Sobre la prudencia poltica en el hombre y de cmo los indios muestran tenerla (ibid., p. 459-492).

A noo de prudncia supe uma capacidade racional, e mostrar empiricamente que os indgenas eram prudentes seria demonstrar que eram racionalmente capazes.

Os nativos do Novo Mundo teriam todas essas prudncias, citando as caractersticas que demonstravam isto. A partir do captulo 46, iniciou a anlise do ndio como ser social, a medio de sua capacidade de formar pleis ordenadas e funcionais mediante elementos que compunham a sociedade. Manifestase, pues, y queda clara la suficiencia y perfeccin de las repblicas, reinos y comunidades destas gentes... (ibid., p. 523). Os captulos 46 ao 48 foram fruto dessa teoria lascasiana quanto uma possvel doutrina antropolgica, fundamentada na idia de que a natureza no poderia criar monstros em todo continente porque deixaria de ser perfeita. ...no parece que la Divina Providencia quiere permitir que la naturaleza yerre haciendo monstruos en la especie de tan excelentes criaturas... (ibid., p. 538).

A prudncia poltica, tratada num extenso tratado de reviso da vida social das diversas naes, foi sempre comparada com o mundo antigo. De certa forma, possvel afirmar que ela se estende at o final da Apologtica porque foi a prudncia escolhida para ser trabalhada de fato no decorrer de sua tese. Tornou-se aquela que lhe serviu de modelo para que demonstrasse as qualidades dos ndigenas a partir de seus atos.

Ao mesmo tempo em que a lgica argumentativa de Las Casas pressupe a igualdade dos indgenas e, para tanto, aborda a capacidade de organizao poltica, o dominicano centra sua argumentao no princpio da providncia divina que tudo governa. Evidentemente, o argumento prprio de um religioso do sculo XVI, mas no deixa de transparecer, ao nosso olhar, uma autonomia extremamente limitada das organizaes indgenas.Toda sociedade deveria ser constituda de seis grupos de cidados: lavradores, artesos, guerreiros, homens ricos, sacerdotes, juzes e governantes. Para Las Casas esses grupos se congregariam em cidades. Como existiam comunidades muito pequenas, grupos dispersos e errantes, homens silvestres e solitrios, Las Casas deveria explicar que essa condio da vivncia na cidade no os atrapalhava. Para tanto utilizou muitos exemplos dos povos antigos. Desta explicao se deduzque todos os homens e naes, qualquer quefosse o estado de primitivismo social em que se encontravam, poderiam ser reduzidos vida poltica. OGorman relembra:

El fundamento de la tesis lo proporciona Cicern (De legibus, libro I) con la doctrina de que todas las naciones son de hombres y que todos son entes racionales y adems, aade Las Casas, todos fueron creados a semejanza de Dios. Establecida as la igualdad esencial del gnero humano, el autor encuentra el sitio lgico para articular sus tesis de monstruosidad, frecuentemente utilizada por l en las polmicas con sus adversarios y ya enunciada en el Argumento de la obra. Se trata, en resumen, de que los hombres mentecatos o carentes de razn son yerros de la naturaleza y en ese sentido son monstruos, es decir, excepciones rarsimas; y de all, la absurdo concluye Las Casas en que incurren, por implicacin, quienes sostienen la idea de la incapacidad contra el reparo que podra aducirse del hecho de que algunas naciones del Nuevo Mundo no viven en ciudades (1971, p. XXIII).Alm disso, Las Casas preenchia a lacuna aberta sobre o pouco nmero de ncleos urbanos, completando-a com Santo Agostinho: ...porque la verdadera ciudad son los hombres vivos si con amor, concordia y paz son coligados, no las paredes ni piedras muertas... (LAS CASAS, 1992, p. 523). Utilizando-se do que seria a verdadeira cidade crist, a Cidade Deus, que por sua vez no era a cidade terrena (mundana, satnica,