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927 1. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos Fundamentais e Controle da Constitucio- nalidade. São Paulo : Saraiva, 3ª ed., 2009, p. 209. 2. Robson Maia Lins. Controle da Constitucionalidade da Norma Tributária. São Paulo : Quartier Latin, 2005, p. 157 e 177 Coisa Julgada e Mudança da JurisprudÊnCia: resCisÃo, ineXistÊnCia ou perManÊnCia Marcelo de Lima Castro Diniz Mestre e Doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP . Professor do IBET, PUC/Londrina e Escola da Magistratura do Paraná 1. Introdução A Constituição de 1988 privilegiou o controle concentrado e abstrato da constitucionalidade das leis e atos normativos, mediante a previsão de ações diretas junto ao Supremo Tribunal Federal com ampla legitimação ativa (ADIN e ADECON). 1 As decisões proferidas em ADIN e ADECON tem eficácia vincu- lante e efeitos erga omnes. Eficácia vinculante significa “que os órgãos das outras instâncias do Poder Judiciário e os demais órgãos do Poder Executivo devem se portar de acordo com a decisão do STF”, enquanto o efeito erga omnes se relaciona com o “alcance subjetivo da decisão de inconstitucionalidade (e de constitucionalidade)”. 2 Ao lado do controle concentrado e

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1. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos Fundamentais e Controle da Constitucio-nalidade. São Paulo : Saraiva, 3ª ed., 2009, p. 209.2. Robson Maia Lins. Controle da Constitucionalidade da Norma Tributária. São Paulo : Quartier Latin, 2005, p. 157 e 177

Coisa Julgada e Mudança da JurisprudÊnCia: resCisÃo,

ineXistÊnCia ou perManÊnCia

Marcelo de Lima Castro Diniz

Mestre e Doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP. Professor do IBET, PUC/Londrina e Escola da Magistratura

do Paraná

1. Introdução

A Constituição de 1988 privilegiou o controle concentrado e abstrato da constitucionalidade das leis e atos normativos, mediante a previsão de ações diretas junto ao Supremo Tribunal Federal com ampla legitimação ativa (ADIN e ADECON).1 As decisões proferidas em ADIN e ADECON tem eficácia vincu-lante e efeitos erga omnes. Eficácia vinculante significa “que os órgãos das outras instâncias do Poder Judiciário e os demais órgãos do Poder Executivo devem se portar de acordo com a decisão do STF”, enquanto o efeito erga omnes se relaciona com o “alcance subjetivo da decisão de inconstitucionalidade (e de constitucionalidade)”.2 Ao lado do controle concentrado e

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abstrato, coexiste o controle difuso e concreto, exercitável por todos os órgãos do Poder Judiciário sempre à vista de um con-flito de interesses. O princípio da universalidade da jurisdição assegura o direito de ação por meio do qual poderão ser busca-das várias espécies de tutela jurisdicional (declaratória, conde-natória, constitutiva, mandamental), tendo como causa de pedir a (in) constitucionalidade, compreendida não apenas sob a perspectiva da validade, assim como da vigência, eficácia, inter-pretação e aplicação das normas constitucionais. Assim, desde o mandado de segurança preventivo e repressivo até a exceção de pré-executividade, passando-se pela ação declaratória, anu-latória, embargos à execução, consignação em pagamento, é viável a arguição da (in) constitucionalidade de normas tribu-tárias. É bem verdade que em processos judiciais tributários, o controle da constitucionalidade (difuso e concreto) se opera de modo que a inconstitucionalidade seja posta pelo contribuinte na causa de pedir e pelo juiz na fundamentação. Rui Barbosa3 dizia que no controle difuso e concreto a inconstitucionalidade constitui fundamento do direito reivindicado.

A pronúncia de inconstitucionalidade/constitucionalidade está reservada exclusivamente ao STF, por meio de ADIN e ADECON em controle abstrato (efeitos erga omnes) e Recurso Extraordinário em controle concreto (efeitos entre as partes). O STF pode também se pronunciar sobre a interpretação de determinado dispositivo constitucional visando à solução de caso concreto: não há, neste caso, contraste entre dispositivo legal ou normativo e texto constitucional, mas sim “interpreta-ção direta da Constituição”4.

O STF não se encontra vinculado de modo inexorável às suas próprias decisões: o STF pode modificar seu entendimento

3. Os atos inconstitucionais do congresso e do executivo. In: Trabalhos Jurí-dicos. Rio de Janeiro : Casa de Rui Barbosa, 1962, p. 81-24. Recurso Extraordinário 370.682-SC, Relator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes

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sobre determinada matéria5, sempre de modo fundamentado e presentes circunstâncias fáticas e jurídicas que justifiquem a alteração, exceto nos casos de declaração de inconstitucionalida-de, pois retirada a norma do sistema esta não pode mais retornar.

A complexidade do nosso sistema de controle de constitu-cionalidade pode, também, gerar perplexidades. Os órgãos do Poder Judiciário podem interpretar um dispositivo constitucio-nal de determinado modo e, posteriormente, o STF se pronun-ciar de modo diferente. Pode-se, por exemplo, decidir que a norma constitucional X atribui o direito Z a certa classe de par-ticulares P no tempo T1, mas deliberar o contrário em outro tempo T2. No interstício entre T1 e T2, lançamentos tributários foram celebrados, processos administrativos foram instaurados e concluídos, ações foram propostas, decisões liminares e defi-nitivas foram proferidas, coisas julgadas foram formadas.

Diante disso, questiona-se: o que acontecem com as res-pectivas normas jurídicas individuais e concretas? São auto-maticamente eliminadas do sistema jurídico em razão da efi-cácia ex tunc da pronúncia de inconstitucionalidade? Perdem sua validade, sua vigência ou sua eficácia? E se houver coisa julgada? Qual o instrumento jurídico apropriado para a inva-lidação de decisões transitadas em julgado, proferidas com base em determinada interpretação e posteriormente recha-çada pelo STF?

Nosso propósito é examinar especificamente a situação das decisões judiciais transitadas em julgado no tempo T1 face ao entendimento manifestado ulteriormente pelo STF no tempo T2 (mudança de jurisprudência).

2. Coisa julgada

O subsistema constitucional tributário contempla regras e princípios específicos ao direito tributário. São exemplos as

5. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos Fundamentais e Controle da Constitucio-nalidade. São Paulo : Saraiva, 3ª ed., 2009, p. 265

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regras de competência atribuídas à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios, regras de incompetência tributária (imunida-des), princípios que possuem a conotação de limite objetivo (legalidade, anterioridade, irretroatividade) e princípios com conotação axiológica (segurança jurídica, justiça tributária, igualdade)6.

O artigo 150, da CF, ao enunciar as limitações ao poder de tributar, reconhece a abertura do subsistema constitucional tributário (“sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte”), de modo que outras garantias são asseguradas aos contribuintes por todo o texto constitucional7. A segurança jurídica é um dos direitos fundamentais previstos pelo artigo 5º, da CF. A intangibilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada constitui meio para se realizar a se-gurança jurídica, a certeza do direito e a estabilidade das rela-ções jurídicas. O Ministro Moreira Alves8 afirma que o fato ge-rador da obrigação tributária se insere na categoria do ato jurí-dico perfeito, de modo a estar protegido contra leis com eficácia retroativa. Com isso, o STF reconhece a abertura do subsistema constitucional tributário, precisamente por considerar o fato gerador da obrigação tributária um ato jurídico perfeito. Por

6. “(...) “os limites objetivos” são postos para atingir certas metas, certos fins. Estes, sim, assumem o porte de valores. Aqueles limites não são valores se os consideramos em si mesmos, mais voltam-se para realizar valores, de forma indireta, mediata.” (Paulo de Barros Carvalho. Curso de Direito Tributário. 18ª ed. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 155)7. “O Artigo 150, que regula as limitações ao poder de tributar, prevê algumas limitações “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte”. A Constituição institui expressamente um sistema tributário aberto ao invés de estabelecer regras de modo exaustivo e exclusivo. Outras Limitações, dedu-tíveis da Constituição (e compatíveis com as regras constitucionais específicas), especialmente decorrentes dos princípios fundamentais (arts. 1º a 5º) e dos direitos e garantias fundamentais (arts. 5º a 17º), são expressamente recep-cionados no Sistema Tributário (externo). Além disso, o parágrafo 2º do arti-go 5º, que regula os direitos individuais e coletivos no título “direitos e garan-tias fundamentais”, também institui uma manifesta abertura.” (Humberto Ávila. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo : Saraiva, 2010, p.108)8. Representação de Inconstitucionalidade 1451-DF.

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conseguinte, a garantia da coisa julgada tem plena aplicação ao direito tributário, conforme reconhecido pela doutrina, notada-mente Rubens Gomes de Sousa9 e Liebman10.

Não obstante possa e deva ser disciplinada pela legislação infraconstitucional, não se pode ignorar, infirmar ou amesqui-nhar o caráter de garantia constitucional da coisa julgada em prol do direito fundamental à segurança jurídica. A inserção de determinada matéria no texto constitucional, de modo explícito ou implícito, especialmente quando se trata de direito ou garan-tia individual do cidadão, tem o especial significado de impedir que o legislador infraconstitucional possa tomar decisões oca-sionais e momentâneas ao sabor da ideologia vigente. Os direi-tos fundamentais são oponíveis ao Estado como instrumento de preservação dos valores incorporados pela Constituição e tam-bém como defesa contra o arbítrio e intervenções injustificadas, conforme precisa lição de Konrad Hesse11: “Ao significado dos direitos fundamentais como direitos subjetivos de defesa do indivíduo frente às intervenções injustificadas do Estado cor-responde seu significado jurídico objetivo como preceitos nega-tivos de competência. As competências legislativas, administra-tivas e judiciais encontram seu limite sempre nos direitos fun-damentais; estes excluem da competência estatal o âmbito que protegem e, nessa medida, vedam sua intervenção.”

A coisa julgada é cláusula pétrea12, limite objetivo à ação estatal, instrumento de cálculo normativo e confiabilidade no direito, essencial para se alcançar a segurança e a certeza do direito. O afastamento da coisa julgada exige fundamentação reforçada, na medida em que agride ao senso jurídico, compro-mete o cálculo normativo e frustra a confiança depositada no

9. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro : Borsoi, v. 9.10. Eficácia e Autoridade da Sentença e Outros Escritos Sobre Coisa Julgada. 3ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 1984.11. Konrad Hesse. Significado dos Direitos Fundamentais: In: Temas funda-mentais do Direito Constitucional. Saraiva. São Paulo, 2009. p. 3612. RE 146.331-SP, Relator Ministro Marco Aurélio.

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“direito vigente” emanado daquela decisão. Se a jurisprudência reiterada pode ser considerada como “direito vigente”13 (en-quanto interpretação do direito positivo que (con)forma-se em normas jurídicas), o que se dirá então de decisão protegida pela coisa julgada: é direito vigente suficiente para permanecer, vincular e orientar.

Evidente, por outro lado, que os direitos fundamentais, embora essenciais, não são absolutos: o caráter “absoluto” de um direito individual pode implicar sacrifício a outro direito individual e também a direitos coletivos. Ademais, direitos fun-damentais também podem entrar em colisão14. Deve-se consi-derar também que a intensidade e a densidade da segurança jurídica variam quando se tem em vista o passado, o presente e o futuro. O grau de segurança jurídica é certo quando se vis-lumbra o passado, mas contingente quando o foco é o futuro: “O futuro permanecerá sempre contingente e indomável.”15

A Constituição prescreve que “a lei não prejudicará o di-reito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Isso significa que a lei deverá disciplinar a coisa julgada, até para que se possa aferir quando, como e em que medida haverá pre-juízo à garantia constitucional. Mas a intervenção legislativa não poderá afetar a proteção efetiva à coisa julgada, enquanto limi-te objetivo em prol da segurança jurídica. A atuação da legisla-ção infraconstitucional circunscreve-se à concretização e à conformação dessa garantia. Gilmar Mendes16 assinala que quando a Constituição Federal impõe o dever de legislar, também

13. Tércio Sampaio Ferraz JR. Efeito ex nunc e as decisões do STJ. Barueri : Manole, 2008, p. 13-1514. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos Fundamentais e Controle da Constitu-cionalidade. São Paulo : Saraiva, 3ª ed., 2009, p. 77-8215. Celso Fernandes Campilongo. “Aos que não vêem que não vêem aquilo que não vêem”: sobre fantasmas vivos e a observação do direito como sistema diferenciado”. In: Direito, Tempo e Memória (Raffaele De Giorgi). São Paulo : Quartier Latin, 2006, p. 1316. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos Fundamentais e Controle da Constitu-cionalidade. São Paulo : Saraiva, 3ª ed., 2009, p. 13-18

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impõe o dever de preservar e proteger, de modo a “conferir conteúdo e efetividade aos direitos constitucionais com âmbito de proteção estritamente normativo”.

De igual modo, o primado da universalidade da jurisdição assegura que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judici-ário lesão ou ameaça a direito. Por conseguinte, a lei não pode-rá impor condições inviáveis para o exercício do direito de ação. Importante considerar, ainda, que tanto a coisa julgada quanto o direito de ação possuem a natureza jurídica de garantia de pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou estrangeiras; não se trata, pois, de direito do Estado oponível aos particulares17. O Fisco prescinde de exercer o direito de ação para celebrar atos administrativos declaratórios e constitutivos, dentre eles o lan-çamento tributário e o auto de infração, face ao princípio da autotutela18.

A coisa julgada consiste na proteção da norma individual e concreta introduzida por meio da decisão judicial não mais suscetível de recurso e rescisão (limites objetivos). Não se trata de enunciado descritivo, mas de enunciado prescritivo, verda-deira “lei entre as partes” ex vi do artigo 468, do CPC, segundo

17. “Tenha-se, antes de mais, presente que o princípio da universalidade da jurisdição ou da garantia de acesso ao Poder Judiciário, encontra-se colocado no Título II da Constituição que respeita aos “Direitos e Garantias Fundamen-tais”. A invocação de uma pretensa isonomia das posições jurídicas do Estado e dos cidadãos no que concerne às matérias abrangidas pelo art. 5º da Cons-tituição, notadamente a garantia de acesso ao Poder Judiciário, ignora o papel preponderantemente “garantístico” da Constituição, que visa a delimitar os poderes do Estado pela outorga de direitos aos particulares e não a assegurar um tratamento falsamente paritário e isonômico entre Poder público e cida-dãos. A Administração pública é dotada de poderes autoritários para definir o seu próprio direito, poderes estes em que consiste a chamada autotutela declarativa, não carecendo para tanto da proteção do Poder Judiciário, que é uma garantia dos cidadãos contra o Poder Executivo e não um direito do Poder Executivo contra os cidadãos.” (Alberto Xavier. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário. Rio de Janeiro : Forense, 2005, p.143)18. Enrico Allorio. Diritto Processuale Tributario. 5ª ed. Torino : Unione Ti-pografico – Editrice Torinese, 1969, p. 33

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o qual “a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.” Em-bora o artigo 469, do CPC, contenha o enunciado de que a coisa julgada não se estende à fundamentação, verdade dos fatos ou questão prejudicial, “a extensão da res judicata deve ser delimitada com base na fundamentação da decisão, que reflete a causa de pedir contida na inicial. Ou seja, é fora de dúvida que apenas a parte dispositiva da decisão transita em julgado; mas também é fora de dúvida que o dispositivo da decisão só pode ser compreendido e aplicado à luz da sua fun-damentação.”19 Enfim, a causa de pedir e o pedido, nos termos acolhidos pela decisão, integram a coisa julgada, a fim de de-limitar o alcance e a extensão do dispositivo da sentença.20 A autoridade e a eficácia da coisa julgada não alcançam pessoas que não compuseram a relação jurídica processual, nem as beneficiando, nem as prejudicando ex vi do artigo 472 do CPC (limites subjetivos).

Trata-se, portanto, de proteção à norma jurídica introdu-zida pela sentença; não o texto da decisão judicial, mas sim a significação construída a partir da interpretação dos enunciados mediante a identificação do antecedente e do consequente.21 O antecedente contém os fatos e a fundamentação, enquanto o consequente o dispositivo, tendo na fundamentação a elucidação do repertório utilizado (como conjunto de normas gerais e abs-tratas) e as demais marcas da enunciação (elucidações sobre como o ato de decidir foi produzido). A norma individual e con-creta emanada da sentença, com a proteção da coisa julgada, gera efeitos pretéritos – porque toda decisão judicial se reporta ao passado –, presentes – porque a decisão e a coisa julgada são atuais – e futuros, estes circunscritos aos limites objetivos e

19. Gustavo Sampaio Valverde. Coisa Julgada em Matéria Tributária. São Paulo : Quartier Latin, 2004, p. 214-5 20. REsp 795.724, Rel. Ministro Luis Fux21. Paulo de Barros Carvalho. Curso de Direito Tributário. 18ª ed. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 8-10

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temporais da coisa julgada. O enunciado constitucional de que a lei não prejudicará a coisa julgada implica que toda e qualquer norma jurídica (geral e abstrata ou individual e concreta) não poderá ultrajar essa garantia constitucional.

Em matéria tributária, sentenças de procedência em mandado de segurança preventivo e ação declaratória geram invariavelmente efeitos prospectivos. A questão é circunscre-ver os limites temporais da coisa julgada. A esse propósito a Súmula 239 do STF estabelece que “a decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores”. Importante di-ferençar os tributos sujeitos a fato gerador instantâneo (ITBI, p. ex.) de outros tributos cujo fato gerador se prolonga no tem-po (IR, COFINS, PIS, CSL etc.). Nos primeiros não há que se falar em propagação no tempo dos efeitos da coisa julgada, mas nos segundos sim. De fato, o artigo 471, inciso I e II, do CPC, permite excepcionalmente que o juiz venha a se pronunciar sobre questões abrangidas pela coisa julgada, quando “tratan-do-se de relação continuativa, sobreveio modificação no esta-do de fato ou de direito” e também “nos demais casos prescri-tos em lei”.

Assim, sobrevindo modificação fática ou jurídica em relação jurídica tributária continuativa é viável novo pronunciamento a respeito da coisa julgada no sentido de cassar ou alterar ex-clusivamente seus efeitos futuros, sem qualquer ingerência no campo da validade da norma jurídica protegida pela coisa jul-gada. O passado fica preservado, apenas os efeitos futuros podem ser objeto de modificação. Novas circunstâncias fáticas ou jurí-dicas surgem comprometendo a norma individual e concreta protegida pela coisa julgada, de modo a tolher ou comprometer a projeção dos efeitos jurídicos futuros. Pronunciamentos do STF, ulteriores à formação da coisa julgada devidamente cris-talizada pelo decurso do prazo de ação rescisória, podem ser considerados fatos supervenientes para os fins do artigo 471, inciso I, do CPC. Mas, como veremos, há limites para a modifi-cação dos efeitos da coisa julgada.

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3. Ação rescisória

A ação rescisória supõe que a norma jurídica individual e concreta protegida pela autoridade da coisa julgada tenha sido gerada por meio de “processo existente” 22. A formação da coisa julgada pressupõe o devido processo legal, a tomada de uma decisão visando à eliminação do conflito posto à apreciação do Estado-juiz e o esgotamento dos meios de impugnação (recursos e ações). Assim, a “inexistência” não pode ser objeto de impug-nação mediante ação rescisória; sob outra perspectiva, a rescisão pressupõe sentença transitada em julgado e isso pressupõe “processo existente”. Logo, tratando-se de “decisão inexistente”, a impugnação judicial deve ocorrer por meio de ação declara-tória de inexistência, objeto de análise na próxima seção.

Com essas premissas, afirma-se que a ação rescisória supõe que a sentença impugnada tenha sido proferida em “processo existente”, isto é, que tenha percorrido o devido processo legal, ainda que de modo viciado. O rol do artigo 485, do CPC, é taxa-tivo, não comportando analogia, tampouco interpretação exten-siva23. Em consequência, pode-se concluir que não cabe ação

22. A expressão “existência” está sendo empregada em sentido estritamente processual. “Sentença existente” pressupõe “processo existente”, isto é, pro-cesso no qual os pressupostos processuais de existência foram, todos, observa-dos. A “inexistência jurídica”, embora pareça um contra-senso, pode ser ad-mitida sob a perspectiva de um “vício gravíssimo”, conforme reconhece Tércio Sampaio Ferraz Junior: “A norma inexistente é aquela que, por um vício gravíssimo, não se considera objetivamente como válida em nenhum momento. Entende-se, por isso, a objeção de Kelsen: se nunca existiu, nunca foi válida; se nunca foi válida não há que se falar de norma (invalidez = ine-xistência de norma).” (Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo : Atlas, 2ª ed., 1994, p. 215)23. “Depois de passada em julgado a sentença ou acórdão, em alguns casos a correção de possíveis vícios da sentença ainda pode ser provocada mediante propositura da ação rescisória, no prazo de dois anos (art. 495) – quer hajam ou não sido esgotados todos os recursos possíveis. Dos fundamentos para tal demanda, arrolados nos incisos do art. 485 do Código de Processo Civil, alguns são especificamente endereçados a certos vícios processuais, como os desvios de conduta do juiz (inc. I), impedimento ou incompetência absoluta (inc. II),

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rescisória mediante impugnação genérica da sentença protegi-da pela coisa julgada, da mesma forma que não terá cabimento quando a sentença for proferida por pessoa que não seja inves-tida no cargo de juiz, porque “inexistente” e, sendo “inexisten-te”, não impugnável por ação rescisória24: a sentença, para ser objeto de rescisão, deve ter sido proferida por juiz, ainda que impedido ou absolutamente incompetente (art. 485, inciso I, do CPC). Igualmente, a ação rescisória supõe o exercício do direi-to de ação e a citação válida das partes. Com efeito, processo instaurado de ofício pelo juiz (CPC, artigo 2º e 262) ou no qual não tenha ocorrido citação válida é “inexistente” e nessa condi-ção gerará “sentença inexistente”, impugnável por meio de ação declaratória de inexistência. Frisa-se, a ação rescisória supõe “processo existente”, isto é, processo no qual foram observados os pressupostos processuais de existência, mas no qual houve algum defeito de julgamento. Trata-se de ação autônoma, com regime jurídico próprio; logo, não se cuida de recurso. O prazo decadencial25 é objetivamente disciplinado pelo artigo 495 do CPC: dois anos, contados do trânsito em julgado da sentença a ser rescindida. Não há espaço para outro termo a quo.

A sentença de procedência tem efeito dúplice: retira a norma individual e concreta emanada da sentença impugnada e em seu lugar outra norma é introduzida. Tércio Sampaio Ferraz Junior26

ofensa à coisa julgada (inc. IV), falsidade da prova (inc. VI); também na hipó-tese mais ampla, de violação a literal disposição de lei (inc. V), enquadram-se aos casos de defeitos sentenciais decorrentes da desobediência a normas processuais. Mas a ação rescisória, sendo excepcional no sistema porque con-siste em meio de desfazer a coisa julgada (constitucionalmente garantida), só é admissível nos casos estritos da lei, sem possibilidade de ampliações e sempre excluído o reexame de provas (salvo em caso de ação rescisória proposta com fundamento em falsidade probatória).” (Cândido Rangel Dinamarco. Institui-ções de Direito Processual Civil. São Paulo : Malheiros, 2009, p. 722-723) 24. Tércio Sampaio Ferraz Junior. Introdução ao Estudo do Direito. São Pau-lo : Atlas, 2ª ed., 1994, p. 21525. RE 114.920, Rel. Min. Carlos Madeira26. Coisa Julgada, Ação Rescisória e Justiça. In: Direito Constitucional. São Paulo : Manole, 2007, p. 141

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ilustra: “A norma individual que, com o trânsito em julgado, tem força de lei entre as partes, somente pode ter seus efeitos inter-rompidos por outra norma individual desde que referente ao mesmo objeto e às mesmas partes e que adquira essa mesma “força de lei”, ou seja, que tenha percorrido todo o processo de promulgação, com o trânsito em julgado da sentença rescindente.”

Em que pese o texto constitucional tenha se reportado à ação rescisória (artigo 102, I, j; 105, I, e; e 108, I, b)27, trata-se de exceção à coisa julgada e por isso deve ser interpretada de modo estrito e diferenciado28. Uma das hipóteses da ação rescisória é a violação literal a disposição de lei (CPC, artigo 485, inciso V). Interpretando-o, o STF decidiu pelo não cabimento da ação rescisória quando se tratar de tema controvertido nos tribunais. A súmula 343, do STF, estabelece: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.” Não obstante, a jurisprudência passou a excep-cionar a aplicação deste entendimento quando se tratar de matéria constitucional, sob o fundamento de que “a manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpre-tação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional.”29 Embora seja cabível ação rescisória quando o STF, depois da formação da coisa julgada, venha a proferir de-cisão em outro sentido, advirta-se que o termo a quo não sofre qualquer alteração, tampouco tal decisão constitui fundamento de validade autônomo para a ação rescisória.

27. A Constituição de 1988 reportou-se exclusivamente à ação rescisória como meio de impugnação à coisa julgada. Ainda assim, trata-se de exceção. Por essas razões, é duvidosa a constitucionalidade do artigo 475-L, § 1º e artigo 741, parágrafo único, do CPC, os quais permitem o afastamento da coisa jul-gada unicamente em razão de decisão proferida pelo STF em controle difuso e concreto da constitucionalidade, sem eficácia erga omnes e efeito vinculante.28. Niklas Luhmann. Sistema juridico y dogmatica juridica. Centro de Estudios Constitucionales : Madrid, 1983, p. 62-6329. RE 328812-AM, Relator Ministro Gilmar Mendes.

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A coisa julgada constitui limite objetivo a serviço da segu-rança jurídica, enquanto exceções visam à realização da igual-dade e da justiça, especialmente quando o STF se pronuncia de modo distinto àquele manifestado pela decisão transitada em julgado. De qualquer modo, apenas a ação rescisória retira a validade da norma individual e concreta introduzida por sen-tença transitada em julgado, com efeitos ex tunc. Pronuncia-mentos do STF podem comprometer os efeitos futuros da coisa julgada em relação jurídica continuativa, mas não significam a invalidação da norma albergada pela coisa julgada, tampouco constituem termo a quo para ação rescisória.

Dessa forma, a ação rescisória constitui medida excepcional, tem pressupostos específicos, reclama “processo existente” (aten-dimento aos pressupostos processuais de existência), deve ser proposta dentro do prazo de dois anos a partir do trânsito em julgado da sentença impugnada e é cabível em se tratando de controvérsia sobre a interpretação de dispositivo constitucional.

4. Ação declaratória de inexistência

Enquanto a ação rescisória supõe “processo existente” e sentença transitada em julgado, a ação declaratória de inexis-tência (“querela nullitatis”) reclama “processo/sentença inexis-tente”30. Barbosa Moreira31 é incisivo: “Sentença rescindível não

30. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPE-CIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. NÃO CABIMENTO DIANTE DE NULIDADE DECORRENTE DE VÍCIO/INEXISTÊNCIA DE CITAÇÃO NA DEMANDA ORIGINÁRIA. PRECEDENTES DESTA CORTE. 1. A Segunda Seção deste Tribunal Superior firmou entendimento no sentido do “Descabimento da res-cisória calcada em nulidade (...) por vício na citação, à míngua de sentença de mérito a habilitar esta via em substituição à própria, qual seja, a de querella nulitatis.” (AR 771/PA, SEGUNDA SEÇÃO, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJ de 26/02/2007). 2. Agravo Regimental desprovido. (AgRg no REsp 470.522-MG, Rel. Ministro PAULO FURTADO (DESEMBARGADOR CONVO-CADO DO TJ/BA), TERCEIRA TURMA, julgado em 03/08/2010, DJe 20/08/2010)31. Comentários ao Código de Processo Civil. 11ª ed. v. V, Rio de Janeiro : Forense, 2003, p. 107

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se confunde com sentença nula nem, a fortiori, com sentença inexistente. (...) A sentença desprovida de elemento essencial, como o dispositivo, ou proferida em “processo” a que falte pres-suposto de existência, qual seria o instaurado perante órgão não investido de jurisdição, é sentença inexistente, e será declarada tal por qualquer juiz, sempre que alguém a invoque, sem neces-sidade (e até sem possibilidade) de providência tendente a desconstituí-la: não se desconstitui o que não existe.” Assim, a ação declaratória de inexistência parte do pressuposto de que a sentença não transita em julgado, tampouco há prazo prescri-cional ou decadencial para impugnação32: logo, não se confunde com a ação rescisória.

Paulo Conrado33 ensina que os pressupostos processuais de existência (petição inicial, jurisdição e citação) conformam “a precisa ideia de existência, expressando exatamente os re-quisitos sem os quais não se pode conceber uma relação pro-cessual”. Os pressupostos processuais de existência e de desen-volvimento não se confundem com as condições da ação, cate-goria processual autônoma em relação ao processo. Ainda que ambos sejam interligados, processo é relação jurídica, enquan-to ação é garantia constitucional, exercitável por meio da de-manda, indispensável para o exercício da jurisdição civil (CPC, artigo 2º e 262). Se a ação declaratória de inexistência supõe a “inexistência do processo”, evidente que não há discussão quanto

32. REsp 1199884-BA, Relatora Ministra Eliana Calmon33. Introdução à Teoria Geral do Processo Civil. 2ª ed. São Paulo : Max Limo-nad, 2003, p. 222-334. Pensamos também, conforme constou do item 2.1, que as sentenças que são inconstitucionais porque acolhem pedidos inconstitucionais, são sentenças (estas sim!) que não transitam em julgado por que foram proferidas em pro-cessos instaurados por meio de mero exercício de direito de petição e não de direito de ação já que não havia possibilidade jurídica do pedido. (...) Portan-to, segundo o que nos parece, seria rigorosamente desnecessária a propositu-ra da ação rescisória, já que a decisão que seria alvo de impugnação seria juridicamente inexistente, pois que baseada em “lei” que não é lei (“lei” inexis-tente). Portanto, em nosso entender, a parte interessada deveria, sem necessi-dade de se submeter ao prazo do art. 495 do CPC, intentar ação de natureza

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à justiça da decisão, isto é, quanto ao mérito. Apenas se discutem os pressupostos de existência do processo.

Tereza Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Me-dina34 apregoam a tese de que “inexistente” é a sentença profe-rida em um processo que tenha por fundamento norma poste-riormente declarada inconstitucional pelo STF, sob o argumen-to de que a pronúncia de inconstitucionalidade gera efeitos ex tunc. Embora não haja propósito de examinar situação em que houve pronúncia posterior de inconstitucionalidade, mas sim quando houve modificação de interpretação pelo STF, identifi-camos equívocos nas premissas estabelecidas pelos renomados processualistas, a saber: i) a medida judicial apropriada para impugnação de sentença transitada em julgado, ainda que fun-dada em novo pronunciamento do STF, é a ação rescisória; ii) a ação declaratória de inexistência tem por pressuposto a própria “inexistência” do processo e não a invalidade do dispositivo utilizado como fundamento para se deliberar sobre o mérito; iii) admitir-se ação declaratória de inexistência sob o fundamento de que a pronúncia de inconstitucionalidade gera efeitos ex tunc e por isso todos os atos praticados com esteio na norma incons-titucional seriam inexistentes implica confundir pressupostos de existência do processo com efeitos da pronúncia de incons-titucionalidade da norma utilizada para julgamento do mérito, assim como ignorar o princípio da presunção de constituciona-lidade das leis, a boa-fé, a proteção da confiança e, enfim, a se-gurança jurídica.

A eficácia ex tunc da pronúncia de inconstitucionalidade não guarda relação com a “inexistência jurídica”, mas sim com a nulidade. Tércio Sampaio Ferraz Junior35 diferencia inexistência

declaratória, com o único objetivo de gerar maior grau de segurança jurídica à sua situação. O interesse de agir, em casos como esse, nasceria, não da ne-cessidade, mas da utilidade da obtenção de uma decisão nesse sentido, que tornaria indiscutível o assunto, sobre o qual passaria a pesar autoridade de coisa julgada. (O dogma da coisa julgada. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2003, p. 39 e 43)35. Introdução ao Estudo do Direito. 2ª ed. São Paulo : Atlas, 1994, p. 215-6

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e nulidade: “(...) inexistência é um conceito que se aplica à norma que não chega a entrar no sistema, pois o seu centro emanador não é aceito absolutamente como fonte do direito do sistema; nulidade, à norma que, tendo entrado no sistema (o centro ema-nador é aceito como fonte), por um vício essencial de formação não produz nenhum efeito desde o início de sua vigência inde-pendentemente de qualquer requerimento dos atingidos”.

De todo modo, a questão discutida é diferente. Não se tra-ta da pronúncia de constitucionalidade/inconstitucionalidade, mas, sim, de modificação da interpretação de determinado pre-ceito constitucional. Absolutamente impróprio atribuir-se a pecha de inexistente a um processo no qual houve respeito ao devido processo legal e sentença de mérito transitada em julga-do. Evidente que o pronunciamento do STF, alterando a inter-pretação de dispositivo constitucional, pode gerar efeitos modi-ficativos com relação aos efeitos futuros da coisa julgada cujo conteúdo se manifesta discordante. Mas, em hipótese alguma, há espaço para ação declaratória de inexistência, tampouco para qualquer suposto efeito retroativo. Também não é o caso de se utilizar a ação declaratória de inexistência para “revisão do que foi estatuído na sentença” (CPC, artigo 471, I), na medida em que eventual modificação superveniente da sentença não pode conduzir à “inexistência ou atenuação da coisa julgada”36, vale dizer, a coisa julgada permanece íntegra, porém seus efeitos cessam total ou parcialmente em razão de modificação nas cir-cunstâncias fáticas ou jurídicas.

5. Efeitos da modificação da jurisprudência do STF frente à coisa julgada e a função da Súmula Vinculante

É viável que o STF altere seu entendimento sobre deter-minado dispositivo constitucional, ainda que seja preciso ar-gumentação reforçada, excetuados os casos de declaração de

36. Sérgio Gilberto Porto. Comentários ao CPC. São Paulo : Revista dos Tri-bunais, 2000, v. 6, p. 208

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inconstitucionalidade. Misabel Derzi37 destaca: “Assim, nada impede que, em outro acontecimento apropriador (nova sen-tença), a partir de um mesmo texto de lei, a decisão judicial inovadora adote um dos significados abandonados na decisão anterior ou encontre sentido novo, até então desconhecido.” O processo de interpretação é complexo, permeado por inúmeros fatores (culturais, ideológicos, históricos, pessoais) e tem no ser humano a fonte da qual emanam as construções de sentido (produto). Paulo de Barros Carvalho38 ressalta a inegostabilidade da interpretação, da qual resulta que “todo texto poderá ser sempre reinterpretado.” Afinal, “somente a norma jurídica, to-mada em sua integridade constitutiva, terá o condão de expressar o sentido cabal dos mandamentos da autoridade que legisla.”39 Precisamente nesse sentido a teoria da mutação constitucional, segundo a qual, embora os enunciados do texto constitucional permaneçam sem modificação, a norma “recebe uma significa-ção diferente”.40

Evidente que quando a interpretação conduz a uma decisão qualificada pelo direito como intangível, a modificação dessa decisão, em que pese a inesgotabilidade que marca a interpre-tação, deverá respeitar os limites objetivos, subjetivos e tempo-rais da coisa julgada. Assim, no caso de nova interpretação sobre mesma matéria, os enunciados prescritivos mantêm-se idênticos em T1 e T2, mas as respectivas normas jurídicas não. Observa-dos os limites da coisa julgada e a possibilidade de interpretação diversa, infere-se que a norma jurídica posterior pode revogar a norma jurídica precedente, não para torná-la nula ou inexis-tente, mas apenas para gerar efeitos diferentes para o futuro. Nesse sentido, tratando-se de relação jurídica que se prolonga

37. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo : Noeses, 2009, p. 310-311.38. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo : Noeses, 2008, p. 19339. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo : Noeses, 2008, p. 19040. Konrad Hesse. Limites da Mutação Constitucional. In: Temas Fundamen-tais do Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2009, p. 151

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no tempo, que se repete a cada dia, mês ou ano, sobrevindo modificações nas circunstâncias fáticas ou jurídicas da decisão transitada em julgado, torna-se viável a readequação da coisa julgada, não no sentido de torná-la inexistente ou inválida, mas sim para cassar seus efeitos futuros. A mudança da jurisprudên-cia do STF não torna inexistente, tampouco rescindível decisão transitada em julgado; torna a coisa julgada, contudo, passível de adequação.

Sobrevindo pronunciamento do STF a respeito da consti-tucionalidade/inconstitucionalidade de determinada regra tri-butária, em sentido contrário à coisa julgada e decorrido o prazo para a ação rescisória, deve-se verificar as circunstâncias da declaração. Com efeito, se a pronúncia de constitucionalida-de/inconstitucionalidade operou-se em sede de controle con-centrado e abstrato (ADIN/ADECON), a eficácia erga omnes da decisão sobrepõe-se à coisa julgada, de modo que depois da publicação do acórdão do STF, a coisa julgada perde sua eficácia futura. Ainda que a decisão proferida pelo STF tenha eficácia ex tunc, a decisão judicial passada em julgado permanece ínte-gra. Não há desconstituição da coisa julgada pela norma con-creta e geral veiculada pelo acórdão do STF, apenas há um corte na produção dos seus efeitos futuros. No entanto, se a decisão proferida pelo STF ocorreu em controle difuso e con-creto, então a respectiva decisão vale exclusivamente para as partes, não promovendo qualquer modificação àquele que for titular de direito protegido por coisa julgada constituída de modo contrário ao pronunciamento do STF. Apenas resolução do Se-nado Federal poderá atribuir efeitos erga omnes à decisão do STF, de modo a cessar os efeitos futuros da coisa julgada. Seja como for, jamais o pronunciamento do STF e eventual resolução do Senado Federal significarão rescisão da coisa julgada, assim como terão efeitos retroativos. Os efeitos serão sempre prospectivos.

O problema proposto, entretanto, não se reporta à ulterior manifestação do STF pela constitucionalidade ou inconstitucio-nalidade de determinado dispositivo frente ao texto constitucio-nal. Nosso escopo consiste em examinar os efeitos produzidos

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por nova interpretação do STF acerca de determinado disposi-tivo constitucional frente à coisa julgada. O Ministro Sepúlveda Pertence41 pontuou a distinção entre declaração de constitucio-nalidade/inconstitucionalidade e “interpretação direta da Cons-tituição: “No caso, não há a questão de constitucionalidade, parece que se trata de interpretação direta da Constituição. O problema é de reversão de jurisprudência.”

Oportuno mencionar que o próprio direito positivo também efetua referidas distinções quando versa o controle abstrato da constitucionalidade pelo STF. O artigo 102, da Constituição Federal, atribui ao STF a competência para julgamento da ação declaratória de constitucionalidade e da ação declaratória de inconstitucionalidade. Observe-se que em ADIN, a petição ini-cial deverá indicar o “dispositivo da lei ou do ato normativo impugnado” (Lei 9868/99, artigo 3º), enquanto em ADECON, a petição inicial indicará o “dispositivo da lei ou do ato normativo questionado” (Lei 9868/99, artigo 14).

As decisões proferidas em ADIN e ADECON têm efeito dúplice, de modo que “proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventu-al ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventu-al ação declaratória” (Lei 9868/99, artigo 24). O julgamento de tais ações implicará sempre a pronúncia de constitucionalida-de ou inconstitucionalidade de determinado dispositivo frente ao texto constitucional. Isso significa dizer que estas ações não poderão ser manejadas quando se tratar de “interpretação direta da Constituição”.

Já o recurso extraordinário constitui o meio próprio para que o STF se pronuncie sobre temas de natureza constitucional, porém visando à solução do caso concreto. Ainda que atualmen-te seja obrigatória a demonstração da “repercussão geral das

41. Recurso Extraordinário 370.682-SC, Relator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes.

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questões constitucionais discutidas no caso”, o recurso extraor-dinário continua com o mesmo perfil de instrumento por meio do qual o STF aprecia a (in)constitucionalidade visando à solu-ção da relação jurídica controvertida. Gilmar Mendes42 ensina: “Assim, a característica fundamental do controle concreto ou incidental de normas parece ser o seu desenvolvimento inicial no curso de um processo, no qual a questão constitucional con-figura “antecedente lógico e necessário à declaração judicial que há de versar sobre a existência ou inexistência de relação jurí-dica.” A pronúncia de constitucionalidade/inconstitucionalida-de ou a prolação de decisão mediante “interpretação direta da Constituição” restringe-se às partes por força da eficácia sub-jetiva da coisa julgada. Para que o pronunciamento do STF possa gerar efeitos vinculantes e eficácia erga omnes, o Senado Federal deve editar resolução, nos termos do artigo 52, X, da CF. Observa-se, todavia, que o campo da resolução circunscreve-se à hipótese em que o STF pronunciar a inconstitucionalidade de lei. Desta maneira, se houver reconhecimento da constitu-cionalidade de dispositivo legal ou “interpretação direta da Constituição” no sentido de se atribuir ou negar determinado direito subjetivo, embora a decisão do STF valha exclusiva-mente para as partes, não haverá possibilidade de edição de Resolução do Senado Federal. Nesses casos a eficácia erga omnes e o efeito vinculante está a depender de novo pronun-ciamento do próprio STF.

Nesse contexto, a súmula vinculante desponta como meio para se transpor do concreto para o abstrato-geral, conforme esclarece André Ramos Tavares43: “Assim, a súmula vinculante parece, à primeira vista, criar uma ponte sólida entre controle-difuso e controle-abstrato-concentrado, no complexo modelo brasileiro de controle da constitucionalidade, o que parece ocor-rer de maneira muito próxima ao “processo de generalização”

42. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo : Saraiva, 3ª ed. São Paulo : Saraiva, p. 246.43. Nova Lei da Súmula Vinculante. 2. Ed. São Paulo : Método, 2007, p. 15

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existente no Direito português vigente.” A súmula vinculante constitui instrumento apto a conferir efeitos vinculantes e efi-cácia erga omnes quando houver pronúncia de constitucionali-dade/inconstitucionalidade, como também quando se tratar da interpretação e eficácia de normas constitucionais. A existência de controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica constitui pressuposto da súmula vinculante (CF, artigo 103-A, parágrafo 2º). A súmula vinculante tem a propriedade de esta-bilizar a compreensão de determinado tema constitucional, especialmente para o futuro e com caráter transcedente44, jus-tamente por representar a “síntese de uma jurisprudência”45. O Ministro Joaquim Barbosa46 esclarece que a estabilização da jurisprudência é assegurada pelo trânsito em julgado, resolução do Senado e também pela súmula vinculante: “Ademais, o qua-dro também era marcado pela falta de estabilização do prece-dente (trânsito em julgado, resolução do Senado, súmula vin-culante), bem como pela inequívoca resistência do Fisco à pretensão do contribuinte.”

Como visto, a coisa julgada sofre o impacto de ulteriores decisões do STF: não o plano da existência ou validade da nor-ma individual e concreta protegida pelos efeitos da imutabili-dade, mas, sim, seus efeitos futuros. Conceder efeitos retroativos aos novos pronunciamentos do STF em detrimento da coisa julgada é mal versar o primado da segurança jurídica e fazer uso indevido da ação rescisória, única via por meio da qual se obtém a invalidação da norma individual e concreta albergada pela coisa julgada. Portanto, os novos pronunciamentos gerarão efeitos sempre prospectivos, jamais retrospectivos.

44. André Ramos Tavares, Nova Lei da Súmula Vinculante. 2. Ed. São Paulo : Método, 2007, p. 39-4045. Glauco Salomão Leite. Súmula Vinculante e Jurisdição Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro : Forense, 2007, p. 16446. Recurso Extraordinário 370.682-SC, Relator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes

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Deve-se ponderar, ainda, que nem sempre as ulteriores decisões do STF gerarão, por si só, efeitos com relação à coisa julgada. Os efeitos da coisa julgada serão obstados apenas se o pronunciamento do STF for dotado de eficácia erga omnes e efeitos vinculantes, por meio de: i) ADIN; ii) ADECON; iii) Resolução do Senado Federal; e iv) Súmula Vinculante. Tra-tando-se de decisão do STF sobre a interpretação de determi-nada regra constitucional, manifestada em controle concreto, a coisa julgada anterior permanecerá íntegra e plena de efeitos, precisamente porque o posicionamento discordante do STF restringe-se às partes. Neste caso, apenas a edição de súmula vinculante será capaz de conferir eficácia erga omnes e efeitos vinculantes, sobrepondo-se a partir de então à coisa julgada, para tolher seus efeitos futuros, desde que se trate de relação jurídica continuativa. Sérgio Shimura47 afirma que a súmula vinculante constitui caminho para se chegar “ao efeito expan-sivo da coisa julgada (...) para albergar outras pessoas, não integrantes do contraditório formado na relação processual posta em juízo.”

Enquanto não advier súmula vinculante, atribuindo eficá-cia geral à novel interpretação do STF, permanece integralmen-te eficaz a norma individual e concreta protegida pela coisa julgada. O restabelecimento da igualdade tributária exige edição de norma com eficácia geral, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes. Leonardo Greco48 é incisivo: “Viola a competência constitucional do Senado e a separação dos po-deres a outorga de eficácia ultra partes à decisão do Supremo Tribunal Federal em controle difuso.” Do contrário, prevalece a coisa julgada como imperativo da segurança jurídica. Tal en-tendimento se coaduna também à regra prevista pelo artigo 146,

47. Súmula Vinculante. In: Reforma do Judiciário. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2005, p. 76648. Coisa Julgada, Constitucionalidade e Legalidade em Matéria Tributária. In: Coisa Julgada, Constitucionalidade e Legalidade em Matéria Tributária. São Paulo : Dialética e ICET, 2006, p. 300

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do CTN, segundo o qual “a modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em re-lação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução”. A edição de sú-mula vinculante, norma geral e concreta, configura modifica-ção dos critérios jurídicos, sendo plenamente aplicável a situ-ações futuras (não pretéritas) em se tratando de relação jurí-dica tributária continuativa. Com efeito, o artigo 471, I, do CPC, ao incorporar a cláusula rebus sic stantibus, permite a modificação de efeitos futuros da coisa julgada em relação jurídica continuada.

Dessa forma, o entendimento proposto busca conciliar os princípios da segurança jurídica e da igualdade tributária. A coisa julgada prestigia a segurança jurídica, enquanto a igual-dade está relacionada com a revisão da coisa julgada. A possi-bilidade de revisão da coisa julgada está submetida à igualdade enquanto postulado normativo ou metanorma de aplicação de outras normas49. A igualdade constitui valor fundamental do Estado Democrático de Direito50, sem a qual fica comprometida a própria ideia de justiça enquanto “unidade do sistema jurídi-co como um todo.”51

Lourival Vilanova52 bem destaca a contraposição entre passado e futuro, antigo e novo, transitório e permanente, tra-dição e inovação e o papel do direito de “harmonizar num equi-líbrio instável”: “Pois a vida humana é dinâmica e estática, mudança e hábito, inovação e repetição, renovação e rotina,

49. Humberto Ávila. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo : Malheiros, 2008, p. 135.50. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª ed. Coimbra : Almedina, 416-42151. Niklas Luhmann. Sistema juridico y dogmatica juridica. Centro de Estudios Constitucionales : Madrid, 1983, p. 3752. O Poder de Julgar e a Norma. In: Escritos Jurídicos e Filosóficos. São Paulo : Axis Mundi-IBET, v. 1, p. 359

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desenvolvimento e tradição. Essas duas dimensões estão coe-xistindo em cada época, variando o percentual de uma ou outra. Se é possível vida social rotinizada, em repouso, repelindo a mudança, sociedades relativamente estagnadas, como se o flu-xo da corrente histórica adquirisse a dureza resistente dos só-lidos, não é possível vida social liquefeita numa dinâmica inces-sante, uma como sociedade em permanente revolução. Pois bem, o direito é uma entre outras técnicas para harmonizar num equilíbrio instável, é certo, esses dois contrapesos, essa estru-tura dialética do social, o diálogo entre a rotinização e a inovação. Por isso que parte da cultura social total, dela não se desvincu-la. Se a cultura total pende mais para a tradição, para afastar como demoníaco o simplesmente novo, a justiça será a institu-cionalização da rotina, do venerável só porque é antípoda do novo, do inédito, do criador. Mas, numa sociedade em evolução ou em revolução, que é a evolução em potência maior e num espaço e tempo mais rápido, então, o Judiciário participa tam-bém desse ritmo histórico.”

A coisa julgada gera certeza, estabilidade, segurança, confiança e autoriza o cálculo normativo: os comportamentos adotados segundo a coisa julgada se presumem de boa-fé. Nesse sentido, repele-se qualquer solução que possa gerar eficácia retroativa à revisão da coisa julgada, assim como considerá-la nula ou inexistente quando o STF se pronunciar ulteriormente de modo contrário. Também se refuta a inter-rupção dos seus efeitos por posterior decisão do STF acolhen-do interpretação diferente em sede de controle concreto, em respeito aos seus limites subjetivos. Entretanto, a edição de norma com eficácia geral – tal como a súmula vinculante – sig-nifica modificação do direito de modo a permitir a revisão da coisa julgada em se tratando de relação jurídica continuativa, sempre com efeitos futuros.

Com essas conclusões, entendemos que tanto a seguran-ça jurídica (coisa julgada) quanto a igualdade e a justiça (re-visão da coisa julgada) são prestigiadas. Não se postula ex-tremos, mas também não se pode admitir eficácia retroativa

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aos pronunciamentos do STF, como se não houvesse coisa jul-gada, direito adquirido e ato jurídico perfeito. O passado deve ser preservado; o presente pode ser modificado, para que no futuro a nova norma jurídica venha a prevalecer: admitir o “novo” não implica desprezar, tampouco anular ou tornar ine-xistente o passado.