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Colecção História e Filosofia da Ciência
Os Fundamentos da Ciência Moderna na Idade Média
Coordenação da Colecção e Revisão Científica Ana Simões e Henrique Leitão
ti PORTO EDITORA
o LEGAI;JO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MEDIA 163
4. O legado de Aristóteles para a Idade Média
Os livros naturais de Aristóteles constituíam a base da filosofia natural nas
universidades e é neles que devemos procurar como é que os estudiosos
medievais compreendiam a estrutura e o funcionamento do Universo. Recor
rendo a hipóteses, principios demonstrados e princípios evidentes em si mesmos, Aristóteles impôs um sentido sólido de ordem e coerência a um mundo
até aí considerado desconcertante. Os discípulos medievais de Aristóteles, que
constituíram a classe dos filósofos naturais na Baixa Idade Média, iriam even
tualmente alargar os principios de Aristóteles a actividades e problemas para
além do que o próprio filósofo considerara.
Aristóteles estava convencido de que o mundo que procurava compreen
der era eterno, sem principio nem fim. Encarava a eternidade do mundo
como algo bem menos problemático do que qualquer assunção de um início
cósmico que implicaria igualmente um futuro fim para o mundo. Era melhor
postular a eternidade do que ser forçado a entrar numa explicação que iria
requerer uma infinita regressão de principios causais. A ideia de que a matéria
pudesse ter um início parecia impossível aos Antigos Gregos porque, se che
gássemos a uma alegada matéria primitiva, isso conduziria inevitavelmente à
questão de saber o que a teria causado, e assim por diante. Entretanto, sem um
início, o mundo não podia ter sido criado, pelo que as ideias de Aristóteles
sobre a eternidade do mundo o colocavam em oposição aos teólogos das gran
des religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. De todas as
questões sobre as quais a filosofia natural e a teologia se debruçaram durante o
século XIII na Europa Ocidental, os teólogos encararam a eternidade do
mundo como a mais difícil e a mais ameaçadora para a fé (ver capítulo
Por outro lado, se o mundo de Aristóteles era eterno e portanto suspeito,
a insistência na sua unicidade colocavam-no em plena concordância com as
escrituras sagradas das três grandes religiões. Encarava o mundo em que vive
mos como único, uma grande esfera finita, para além da qual nada podia
existir. Toda a matéria existente estava contida neste mundo, e nada ficava de
fora. Sem corpo, não podiam existir fora do mundo "nem lugar, nem vazio,
nem tempo" porque as definições de "lugar", "vazio" e "tempo" dependiam
da existência de corpo. Para Aristóteles, o lugar próprio de um corpo era sem
pre a superfície interna de um outro corpo que o rodeava imediatamente e estava em contacto directo com ele. Assim, um lugar é definido como algo em
que um corpo deve estar presente. Sem a existência de um corpo para lá do
641 os FUNDAMENTOS DA CIl'.NCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA
mundo em que vivemos, nenhum lugar pode existir (para mais infomlaçóes sobre a noção de lugar, ver mais adiante neste capítulo). De modo semelhante, um vazio é algo em que a existência de um corpo é possível, embora de forma não actuaL Por conseguinte, se nenhum corpo pode existir, nenhum vácuo é igualmente possíveL Por fim, o tempo é a medida do movimento. Sem corpo não é possível movimento nem, por conseguinte, tempo. Aristóteles concluiu que toda a existência se situa no interior do nosso cosmo, e nada no seu exterior. O "nada" nesta acepção não deve ser concebido como um vácuo, sendo mais bem caracterizado como a total ausência de ser.
A decisão mais importante que Aristóteles tomou acerca do mundo físico eterno foi talvez a de o dividir em duas partes radicalmente diferentes, a terrestre, que se estendia desde o centro da Terra até à esfera lunar, e a celeste, que abarcava tudo desde a Lua até às estrelas fixas. Na região terrestre, a observação e a experiência tornavam evidente que a mudança era incessante, ao passo que na região celeste a mudança era quase inexistente. As observações astronómicas herdadas do passado convenceram Aristóteles de que nunca tinham sido detectadas quaisquer mudanças nos céus (Sobre os Céus
1.3.270b.13-17), pelo que inferiu que as mudanças não ocorriam - nem podiam ocorrer nele. Para compreender melhor o mundo de Aristóteles, será vantajoso descrever primeiro a região terrestre da mudança, o que, por sua vez, tornará mais compreensíveis as propriedades e os atributos imutáveis
da região celeste.
Região terrestre: domínio de incessante mudança
Grande parte da filosofia natural de Aristóteles consiste numa tentativa de identificar e explicar os princípios da mudança na região terrestre, princípios que moldaram as interpretações medievais dos processos que fazem do mundo o que ele é. Embora vivamos num mundo que não teve começo, mesmo assim Aristóteles explica como devemos imaginar o desenvolvimento da matéria e como ela se diferencia nos quatro elementos básicos - terra, água, ar e fogo - que formam as partes constituintes de todos os corpos materiais da região terrestre. A base subjacente a todos os corpos materiais é a matéria-prima que, embora real, não tem existência independente. Aristóteles deduz simplesmente a sua realidade porque era essencial pressupor a existência de algum tipo de substrato em que qualidades e formas podiam tornar-lhe-se inerentes e produzir matéria sensível. A matéria-prima não tem propriedades próprias, estando sempre associada a qualida
des que se lhe tornam inerentes e a definem.
o LEGADO DE ARlSTÓTELES PARA A IDADE Ml'.DIA 165
Que propriedades ou qualidades ergueriam a matéria-prima a um nível mais elevado de existência, digamos ao nível de um elemento? Depois de eliminar uma série de possibilidades, Aristóteles argumenta que dois pares de qualidades contrárias, ou opostas, podiam atingir esse efeito: quente e frio, seco e húmido. Dado que nada poderia ser simultaneamente quente e frio, nem seco e húmido, nenhum par de qualidades opostas se poderia tomar inerente simultaneamente à matéria-prima. Contudo, as combinações de pares não opostos são possíveis e podem produzir elementos. Se as qualidades frio e seco se tomassem inerentes à matéria-prima, produziriam o elemento terra; frio e humidade produziriam água; calor e humidade, ar; e calor e secura, fogo. Assim foram obtidos os quatro elementos. Os corpos da região terrestre não eram, contudo, elementos puros, mas misturas, ou compostos, de dois ou mais elementos, geralmente designados na Idade Média como corpos "mistos".
Na filosofia natural, ou fisica, de Aristóteles, cada corpo é um composto de matéria e forma, onde a matéria-prima existe como substrato a que a forma se torna inerente. A forma de uma coisa, ou de um corpo, é a soma das suas características essenciais, as propriedades que fazem dessa coisa o que ela é. Natureza, no domínio terrestre, mais não é do que um termo colectivo para a totalidade dos corpos existentes, cada um constituído por matéria e forma. Cada um desses corpos pertence à sua própria espécie e possui as propriedades e características - ou seja, a forma - da sua espécie. Se estiver livre de impedimentos, agirá em conformidade com essas propriedades. Aristóteles atribuiu, pois, aos corpos do mundo o poder de actuarem de acordo com as suas capacidades naturais. Deste modo, concebeu uma causalidade secundária, quando os corpos eram capazes de actuar sobre outros corpos, isto é, quando eram capazes de causar efeitos noutros corpos. Aristóteles acreditava que cada efeito era produzido por quatro causas agindo em simultâneo; nomeadamente, uma causa material, ou aquilo de que alguma coisa é feita; uma causa formal, ou a estrutura básica a ser imposta a alguma coisa; uma causa eficiente, ou o agente de uma acção; e uma causa final, ou a finalidade para a qual se empreende a acção. As causas que produzem uma pedra não só
a fazem pesada, mas, se nada se lhes opuser, também lhe conferem a capacidade de cair naturalmente em direcção ao centro da Terra com um movimento rectillneo. De modo semelhante, os agentes que produzem o fogo conferem-lhe leveza e, consequentemente, a capacidade de se elevar naturalmente para cima, sempre que nada os contrariar.
Aristóteles ocupou-se também dos tipos de mudanças que as quatro causas podiam originar, distinguindo quatro tipos: (1) mudança substancial, quando uma forma suplanta outra na matéria subjacente a esta, como
661 os RJNDAMENTOS DA CIID<CJA MODERNA NA IDADE MeoIA
quando o fogo reduz uma acha a cinzas; (2) mudança qualitativa, quando a cor de uma folha é alterada de verde para castanho na mesma matéria subjacente; (3) mudança de quantidade, quando um corpo cresce ou diminui mantendo sob todos os outros aspectos a sua identidade; e, finalmente, mudança de lugar, quando um corpo sofre mudança ao deslocar-se de um
para outro.
Destes quatro tipos de mudança, só o primeiro e o quarto requerem explicação. A mudança substancial é a forma mais básica de mudança, implicando geração e corrupção. Para Aristóteles, cada mu'dança substancial implicava
que algo tinha passado a existir porque qualquer outra coisa tinha deixado de existir. Este passar-a-existir e deixar-de-existir das coisas era a base de toda a
mudança na região terrestre. Acontecia com todas as substâncias compostas de matéria e forma, o que, na região terrestre, incluía todas as coisas. As formas, ou qualidades, eram potencialmente substituíveis por outras suas contrárias. Quando isto sucedia, uma substância era transformada noutra. Por exemplo, o fogo, que possui as qualidades primeiras de calor e secura, transforma-se em terra, que possui as qualidades primeiras de secura e frio, quando o calor no fogo é substituído pelo frio, sua qualidade, ou forma, contrária. Enquanto uma forma exisk realmente na matéria diz-se da sua contrária que está em privação embora tendo o potencial de substituir a forma actual. Eventualmente, cada forma ou qualidade potencial virá a tornar-se naquilo em que é susceptível de se tomar. De outro modo uma forma permaneceria irrealizada e a natureza tê-Ia-ia produzido em vão. Enquanto uma forma de um par de formas contrárias se realiza em matéria, a sua contráría está ausente e em privação, porque duas formas contrárias não podem existir em simultâneo no mesmo corpo. Virtualmente tudo muda, isto é, geração e corrupção implicam a posse de uma forma, e a exclusão da outra, de um par de formas ou qualidades contrárias.
A última das quatro mudanças, mudança de lugar, representa aqUilO a que geralmente chamamos movimento, a deslocação de um corpo de um lugar para outro. A doutrina do lugar de Aristóteles pode ser encarada de duas maneiras. No seu significado mais lato, diz respeito à estrutura do mundo sublunar; e no seu sentido mais estrito, diz respeito ao lugar específico de um único corpo. O sentido lato de lugar é, na realidade, a doutrina do lugar natural, na qual Aristóteles concebeu a parte do mundo abaixo da Lua como uma região estruturada, dividida em quatro regiões concêntricas, sendo cada uma o lugar natural de um dos elementos, e a região em direcção à qual esse elemento se deslocaria naturalmente se estivesse livre de qualquer impedimento. Assim, o anel concêntrico exterior, localizado logo abaixo da superfície côncava
o LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MI'DIA 167
da esfera é o lugar natural do fogo; o anel concêntrico seguinte é o lugar do ar, para o qual o ar se ergue quando se encontra nas regiões abaixo, e para o qual cairia se, por alguma razão, estivesse localizado na região do fogo; abaixo do ar, fica o anel da água; e abaixo desse a esfera da nossa Terra, cujo centro coincide com o centro geométrico do Universo.
A esfericidade da Terra era uma verdade básica no sistema do mundo de Aristóteles. Como prova observável da esfericidade da Terra, Aristóteles apontou as linhas curvas na superfície da Lua durante um eclipse lunar, inferindo com toda a razão que eram projectadas pela sombra de uma Terra esférica interposta entre o Sol e a Lua. Fez igualmente notar que, ao mudarmos de posição na superfície terrestre, surgiam à vista diferentes constelações, indicando que a Terra possuía uma superfície esférica. A esfericidade da Terra parecia ser ainda confirmada pelo modo como se observava que os corpos caíam para a superfície terrestre, em linhas não paralelas que se encontravam no seu centro. Se todos os corpos terrestres caíam desta maneira, agrupar-se-iam no centro do mundo e formariam naturalmente uma esfera. Os argumentos de Aristóteles em favor de uma Terra esférica foram aceites de imediato.
Mas, e quanto ao lugar de qualquer corpo particular? A doutrina do lugar de Aristóteles baseia-se na convicção fundamental de que o mundo é uma plenitude material na qual a existência de espaço vazio é impossíveL Daqui se
depreende que o lugar de qualquer coisa na região sub-lunar consiste na matéria que a rodeia. Ou, como Aristóteles o descreveu, o lugar de uma coisa
é "o limite do corpo continente em que este está em contacto com o corpo contido".1 O limite, ou superfície interior do continente, devia igualmente ser
destituída de movimento, uma qualificação que levantou sérios problemas na história da doutrina do lugar de Aristóteles. Acontecia frequentemente que
quando a condição do contacto era conseguida, a da imobilidade não era, e vice-versa. No entanto, quando um corpo se adequava a estas condições rigo
rosas, presumia-se que estivesse no seu "lugar próprio", isto é, num lugar que
apenas ele ocupava. Os lugares que incluíam mais do que um corpo distinto eram caracterizados como "lugares comuns". Na medida em que Aristóteles pressupôs que cada corpo estava em algum lugar, foi inevitavelmente levado a
perguntar se a superfície exterior da esfera exterior que continha o mundo
estaria ela própria num lugar, uma questão que equivalia a perguntar se o próprio mundo está em algum lugar. Na convicção de que não existiam corpos para lá do mundo, Aristóteles argumentou que, se nenhum corpo material, e
consequentemente nenhuma superfície de um corpo, podia rodear o nosso
mundo, nenhum corpo poderia funcionar como seu lugar. Paradoxalmente, embora cada corpo no mundo esteja num lugar, a última esfera, ou o próprio
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mundo, não está directamente em nenhum lugar. Aparentemente constran
gido por esta consequência da sua doutrina do lugar, e temendo que o consi
derassem inconsistente, Aristóteles encontrou uma espécie de lugar para a
última esfera, argumentando que a última esfera está indirectamente num
lugar, devido às suas partes, porque "numa orbe cada parte contém outra".2
Muitos dos comentadores de Aristóteles rejeitaram esta sua tentativa enigmá
tica de atribuir um lugar à última esfera. E os que o não fizeram foram fre
quentemente levados a encontrar bizarras explicações para defender o mestre,
como quando Averróis argumentou que a última esfera está num lugar por aci
dente (per acddens) porque o seu centro, a Terra, está num lugar por essência
(per se). São Tomás de Aquino considerou "ridículo dizer que a última esfera
está num lugar acidentalmente, [simplesmente] porque o centro está num
lugar".3 Como poderia um continente estar num lugar em virtude da coisa
que contém?
Movimento na física de Aristóteles
O movimento dos corpos foi um problema que Aristóteles abordou com
frequência, embora em nenhuma parte da sua obra conhecida se encontre um
tratamento sistemático e abrangente desse problema. A explicação que se
segue é baseada em argumentações dispersas por várias das suas obras, sobre
tudo na Física e em Sobre os Céus. Num mundo sublunar que não incluía espaços vazios e era uma plenitude
material, o movimento, ou movimento local como era algumas vezes desig
nado, tinha de ser de um lugar nessa plenitude para outro. Aristóteles distin
guiu dois tipos de movimento: natural e violento (ou antinatural), divisão
que terá provavelmente tido origem na observação comum. A divisão do
movimento local em natural e violento, e o conjunto de conceitos, argumen
tos e hipóteses tisicas associados a estes dois movimentos contrários constituí
ram o cerne da física sublunar de Aristóteles.
Movimento natural de corpos sublunares. O conceito de movimento
natural de Aristóteles dependia de propriedades óbvias que ele observava nos
quatro elementos - terra, água, ar e fogo - que formavam a base material de
todos os corpos terrestres. Via-se que alguns corpos, como as pedras quando
caíam de uma certa altura, se moviam em linha recta em direcção ao centro
da Terra. Outros corpos, tais como o fogo e o fumo, pareciam erguer-se sem
pre em direcção à esfera lunar, afastando-se do centro da Terra. Dado que
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O LEGADO DE ARlSTOTELES PARA A IDADE MIDIA 169
se observara, com base na experiência, que a classe de corpos que caiam
naturalmente para o centro da Terra era mais pesada do que as classes de cor
pos que se erguiam, Aristóteles concluiu que, se não for contrariado, um
corpo terrestre pesado se movia naturalmente para baixo, numa linha recta,
em direcção ao centro da Terra. Assim, o centro da Terra - ou, mais precisa
mente, o centro geométrico do Universo - era o lugar natural de todos os cor
pos pesados. Em contrapartida, os corpos leves moviam-se naturalmente para
cima, em linha recta, em direcção à esfera lunar. Aristóteles descreveu estes
movimentos naturais ascendente e descendente como acelerados.
Apliquemos agora estas generalizações especificamente aos quatro ele
mentos. Sempre que um corpo elementar, composto de terra, estava acima
do seu próprio lugar natural - quer fosse na água, no ar quer na região do
fogo acima do ar - era considerado absolutamente pesado porque, se não
fosse contrariado, cairia em direcção ao centro da Terra. O fogo era conside
rado absolutamente leve; sem ser contrariado, erguer-se-ia sempre para cima
e em direcção ao seu lugar natural acima do ar e abaixo da esfera lunar. Para
sublinhar a absoluta leveza do fogo, Aristóteles declarou ser "um facto palpá
vel" que "quanto maior a quantidade {de fogo], mais leve é a massa e mais
rápido o seu movimento ascendente".' Ao presumir que quanto maior a
quantidade de fogo, mais leve se toma e mais depressa se ergue, Aristóteles
parece ter dissociado a absoluta leveza do conceito de peso, conceito que se
toma ininteligível neste contexto. Quanto à água e ao ar, Aristóteles enca
rou-os como elementos intermédios, dotados apenas de peso e leveza relati
vos. Quando estivesse abaixo do seu lugar natural, algures dentro da terra, a
água subiria naturalmente; mas quando se encontrasse acima do seu lugar
natural, no ar ou no fogo, cairia. Entretanto, o ar cairia quando estivesse no
lugar natural do fogo, mas subiria quando se encontrasse no' lugar natural da
terra ou da água.
Até aqui descrevemos o comportamento natural, idealizado, de cada um
dos quatro elementos. Mas os elementos não existiam naturalmente no seu
estado primitivo. No mundo real, os corpos eram na verdade compostos,
constituídos de proporções variadas de todos os quatro elementos. Os corpos
que caíam naturalmente para o centro da Terra, faziam-no porque o seu ele
mento predominante era pesado (quanto mais pesado o corpo, maior a sua
velocidade descendente); aqueles que se erguiam naturalmente para cima
faziam-no porque eram dominados por um elemento leve (quanto maior a
quantidade de ar ou fogo num corpo aéreo ou ígneo, maior seria a sua veloci
dade ascendente).
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10 I os FUNDAMENTOS DA CI1'.NCIA MODERNA NA IDADE M1'.DIA
Três pares de opostos desempenhavam um papel significativo na interpre
tação aristotélica da estrutura do mundo terrestre, ou sublunar. Podem ser
esquematizados como segue:
1. Superfície côncava da esfera lunar Centro geométrico
do Universo (ou centro da Terra)
2. Ascendente Descendente
3. Leveza absoluta (fogo) Peso absoluto (terra)
Estes pares de opostos eram utilizados como condições de fronteira vir
tuais para a explicação de Aristóteles do movimento dos corpos. A coluna da
esquerda diz-nos que um corpo absolutamente leve (fogo) se ergueria natu
ralmente num movimento ascendente rectilíneo em direcção à esfera lunar,
enquanto a da direita nos informa que um corpo absolutamente pesado cairia
naturalmente para baixo, em linha recta, em direcção ao centro da Terra.
Embora Aristóteles soubesse que a terra era mais densa do que o ar e a água,
teria negado que a densidade pudesse explicar a queda de uma pedra através
do ar ou da água. Uma pedra apenas cai porque é absolutamente pesada. O
fogo não se ergue em direcção ao seu lugar natural perto da superfkie da
esfera lunar por ser menos denso do que a terra, a água ou o ar, mas antes por
ser absolutamente leve. Na realidade, o fogo nem sequer possui peso no seu
próprio lugar natural, de modo que, se o ar abaixo dele fosse retirado, o fogo
não cairia nem se moveria para baixo. Retrospectivamente, podemos ver que
a introdução das noções de peso e leveza absolutos feita por Aristóteles dificil
mente conduziria ao progresso da física, embora o próprio Aristóteles a con
siderasse um aperfeiçoamento significativo relativamente a Platão e aos ato
mistas, que tinham atribuído peso a todas as coisas e para os quais o peso era
um conceito relativo. Das duas possibilidades que se lhe apresentavam, Aris
tóteles escolheu aquela que historicamente viria a revelar-se menos útil. Con
tudo, fê-lo por ter tornado o seu sistema dependente em elevado grau de uma
diversidade de contrários absolutos, preferindo evitar as comparações relati
vistas de Platão e dos atomistas.
Para oferecer uma explicação causal para o movimento natural (e, como
veremos, para o movimento violento, ou antinatural), Aristóteles invocou o
princípio geral de que para cada efeito há uma causa e pressupôs que cada
coisa animada e inanimada capaz de se mover é movida por qualquer outra
coisa que se encontra, ela própria, em movimento ou em repouso.5 (Ou, para
citar a versão sucinta medieval deste princípio, "toda a coisa que é movida é
movida por uma outra".) A coisa que fazia mover e a coisa que era movida
o LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MEDIA 111
eram sempre consideradas entidades distintas. Embora pudesse parecer que
os movimentos naturais não requeriam explicações causais na medida em que
são "naturais", Aristóteles atribuiu um agente específico (chamado generans, ou gerador, na Idade Média) como causa primeira do movimento natural. O
agente causador, ou gerador, era a coisa que tinha inicialmente produzido o
corpo agora em movimento. Por exemplo, um fogo produz outro fogo (como
quando se incendeia uma acha) e confere ao novo fogo todas as propriedades
que pertencem ao fogo, sendo uma delas a capacidade espontânea de se
erguer naturalmente quando não constrangido. De modo semelhante, qual
quer agente natural que produz uma pedra confere-lhe todas as suas proprie
dades essenciais, incluindo a tendência natural para cair para a Terra quando
é retirada do seu lugar natural.
Embora tendo identificado o generans, ou gerador de uma coisa, como
uma espécie de remota causa motriz no movimento natural, Aristóteles inter
pretou a queda de um corpo como se o seu peso fosse a causa imediata do seu
movimento natural descendente; e encarou a subida de um corpo como se a
sua leveza fosse a causa imediata do seu movimento natural ascendente. Par
tindo do príncipio que todas as outras coisas são iguais, Aristóteles pôde con
cluir que a velocidade é directamente proporcional ao peso do corpo em
movimento natural e inversamente proporcional à resistência que encontra,
medida pela densidade do meio através do qual o corpo se move, e que o
tempo do seu movimento é directamente proporcional à resistência, ou den
sidade, do meio e inversamente proporcional ao seu peso. Por exemplo, a
velocidade de um corpo podia ser duplicada, quer duplicando o seu peso
(mas mantendo o meio constante), quer reduzindo para metade a densidade
do meio (e mantendo constante o peso do corpo). De modo idêntico, o inter
valo de tempo associado movimento podia ser duplicado, quer duplicando a
densidade do meio (mas mantendo o peso constante), quer reduzindo para
metade o peso do corpo (e mantendo constante a densidade do meio).
Embora reconhecendo que os corpos pesados, não constrangidos, aceleravam
quando se aproximavam do seu lugar natural, Aristóteles discutiu os movi
mentos naturais como se as suas velocidades fossem uniformes.
Movimento violento, ou antinatural, de corpos sublunares. Os movimentos
que são violentos, ou antinaturais, ocorrem quando os corpos são impelidos
para fora ou para longe dos seus lugares naturais. Assim, uma pedra que é
lançada rectilinearmente para cima, para o ar, ou é arremessada numa trajec
tória horizontal, está em movimento violento; o movimento de um fogo que
é de algum modo forçado para baixo a partir do seu lugar natural e em
72 I os FUNDAMENTOS DA CillNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA
direcção à Terra é antinatural, ou violento. De igual modo, o movimento do
ar quando é forçado a sair do seu lugar natural, para baixo em direcção à terra
ou para cima em direcção ao lugar natural do fogo, é caracterizado por um
movimento violento. Aristóteles formulou regras específicas em que descreveu as consequências que adviriam da aplicação de uma força motriz a um
objecto que lhe resistisse. Embora essas regras sejam expressas em termos de
força, corpo resistente, distância atravessada e tempo, em vez de serem
expressas directamente em termos de velocidade, esta última permite um
resumo mais apropriado. A velocidade de um corpo em movimento violento é inversamente proporcional ao seu próprio poder de resistência, que é dei
xado indefinido, e directamente proporcional ao poder motriz, ou força apli
cada. Em símbolos, Voe F/R, em que V é a velocidade, F a força motriz e R a
resistência total oferecida à força aplicada, uma quantidade que, presumivel
mente, inclui o objecto ou corpo resistente mais a resistência do meio externo
em que o movimento ocorre. Para duplicar uma velocidade V, a resistência R
poderia ser reduzida a metade e F mantida constante; ou F duplicada e R
mantida constante. Para reduzir Va metade, F poderia ser reduzida a metade
e R mantida constante; ou R duplicada e F mantida constante.
O movimento violento exigiu uma explicação causal radicalmente dife
rente da atribuída ao movimento natural. O motor inicial, ou agente causal,
era identificado de imediato porque tinha de estar em contacto físico directo
com o corpo que fazia mover. Alguém que atira uma pedra para cima ou
empurra um carro por uma estrada é o motor, ou energia motriz, desses
movimentos violentos. Mas a fonte de energia que permitia a um corpo con
tinuar o seu movimento depois de perdido o contacto com o seu motor ini
cial estava muito longe de ser óbvia. Por exemplo, como podia uma pedra
continuar o seu movimento depois de perder o contacto com a mão que a
lançara? Aristóteles defendeu que o meio externo no exemplo da pedra, o ar
-- era a fonte do movimento contínuo. Acreditava que o motor original não só
punha a pedra em movimento como ainda, e simultaneamente, activava o ar.
Aparentemente, a primeira porção, ou unidade, de ar activada empurra a
pedra e, ao mesmo tempo activa a segunda unidade de ar adjacente que faz
mover a pedra um pouco mais para a frente. A segunda unidade, por seu
turno, activa simultaneamente a seguinte, ou terceira, unidade de ar, e assim
por diante. A medida que o processo decorre, a força motriz das sucessivas
unidades de ar vai progressivamente diminuindo até que se atinge uma uni
dade de ar que é apenas capaz de activar a unidade de ar imediatamente a
seguir, mas incapaz de lhe comunicar a força para mover o corpo para mais
o LEGADO DE ARiSTÓTELES PARA A iDADE MeDIA 173
longe. Nesse ponto, a pedra começa a cair com o seu movimento natural des
cendente. Através deste mecanismo, Aristóteles utilizou ao mesmo tempo o
meio como força motriz e resistência. Não só acreditava que o meio, como
força motriz, tinha de estar em contacto constante com o corpo que fazia
mover, como estava também convencido de que o mesmo meio tinha de flm
cionar como um travão do movimento desse corpo a fim de prevenir o impos
sível: a ocorrência de uma velocidade infinita ou de um movimento instantâ
neo. Aristóteles considerou óbvio que a resistência ao movimento aumentava à
medida que aumentava a densidade do meio, e decrescia à medida que o meio
se rarefazia. Dado que uma rarefacção ilimitada do meio resultaria num
aumento da velocidade proporcional e ilimitado, Aristóteles concluiu que se o
meio desaparecesse por completo, deixando um vácuo, o movimento seria ins
tantâneo (ou para além de qualquer proporção, segundo as suas palavras).
O absurdo de uma velocidade infinita foi apenas um entre vários argu
mentos que levaram Aristóteles a rejeitar a existência de um vácuo. Os princí
pios fundamentais que ele considerava activos no mundo seriam inúteis em
espaços vazios. O movimento seria impossível por uma série de razões. A
natureza homogénea de um espaço vazio contínuo significava que cada parte
tinha de ser idêntica a qualquer outra parte. Dado que não poderiam existir
lugares naturais diferenciáveis num espaço homogéneo, os corpos não teriam
qualquer motivo válido para se moverem numa direcção em vez de noutra.
Os movimentos naturais seriam impossíveis, tal como o seriam os movimen
tos violentos, porque o meio externo que Aristóteles considerava essencial
para o movimento violento estaria ausente. Se o vazio fosse infinito e o movi
mento pudesse de algum modo ocorrer, esse movimento ou seria eterno -
pois o que poderia fazer parar um corpo em movimento num vácuo de que
estavam ausentes outros corpos e lugares naturais que o fizessem parar? - ou,
na ausência de resistências externas, seria instantâneo_ Entre os restantes
argumentos de Aristóteles contra o vazio, um é digno de nota. Corpos de
pesos diferentes cairiam necessariamente a velocidades iguais no vácuo, o que
Aristóteles considerava um absurdo, pois deviam cair a velocidades directa
mente proporcionais aos respectivos pesos. Mas esta última relação só podia
ocorrer num plenum, onde um corpo mais pesado abrisse caminho através do
meio material mais facilmente do que o faz um corpo menos pesado. Na
ausência de um meio, Aristóteles não descortinava uma razão plausível para
que um corpo se movesse a uma velocidade maior do que a de outro. Con
cluiu pois que o mundo era necessariamente um plenum cheio de matéria em
todos os seus pontos.
741 OS FUNDAMENTOS DA CItlNClA MODERNA NA IDADE MÉDIA
RegiãO celeste: incorruptível e imutável
A parte do mundo que Aristóteles visualizava para além da superfície convexa da esfera do fogo era radicalmente diversa da parte terrestre acabada de descrever. Aristóteles considerava a região celeste tão incomparavelmente superior à terrestre que lhe atribuiu propriedades que sublinhavam essas profundas diferenças. Se a incessante mudança era básica para a região terrestre,
então a ausência de mudança teria de caracterizar a região celeste. Esta convicção foi reforçada em Aristóteles pela sua crença de que os registos humanos não revelavam modificações nos céus. Dado que os quatro elementos da região sublunar estavam envolvidos em incessante mudança, eram obviamente inadequados para os céus imutáveis. Em Sobre os Céus (livro 1, caps. 2 e 3), Aristóteles estabeleceu o contraste entre o movimento rectilíneo natural dos quatro elementos sublunares (terra, água, ar e fogo) e o movimento circular, regular, observável e aparentemente natural dos planetas e das estrelas
fixas da região celeste. O contraste entre a linha recta e o círculo, a primeira finita e incompleta, o segundo fechado e completo em si próprio, convenceu Aristóteles de que a figura circular era necessária e naturalmente superior à figura rectilínea. Dado que os quatro corpos elementares se moviam num movimento natural rectilíneo (ascendente e descendente), Aristóteles concluiu que o movimento circular dos corpos celestes observado tinha necessariamente de estar associado a uma espécie diferente de corpo elementar simples: um quinto elemento, ou éter.
Como que para sublinhar a importância especial do éter, Aristóteles cha
mava-lhe frequentemente "primeiro corpo". As suas propriedades primitivas
eram quase o oposto das dos elementos terrestres. Enquanto os elementos ter
restres se moviam naturalmente em movimentos rectilíneos, o éter movia-se
naturalmente num movimento circular, um movimento superior porque a
circunferência era uma figura completa em si mesma, ao passo que a linha recta
não o era. Enquanto os quatro elementos e os corpos compostos por eles se
encontravam em estado de fluxo constante, o éter celeste não sofria mudanças
de substância, de quantidade ou de qualidade. A mudança substancial era
impossível porque Aristóteles pressupunha que os pares de qualidades opos
tas, ou contrárias, tais como calor e frio, humidade e secura, rarefeito e denso,
que eram forças básicas para a mudança na região terrestre, estavam ausentes
dos céus e, por conseguinte, não desempenhavam aí qualquer papel. A rejei
ção de qualidades contrárias nos céus levou Aristóteles a negar também a
existência das qualidades contrárias de leveza e peso, de onde concluiu que o
éter celeste não podia ser leve nem pesado. As qualidades leveza e peso na
O LEGADO DEARISTOTELES PARA A IDADEMIDIA 175
região terrestre estavam associadas a movimentos rectilíneos ascendentes e
descendentes: os corpos pesados aproximavam-se da Terra quando se
moviam naturalmente para baixo; e os corpos leves afastavam-se da Terra
quando se moviam naturalmente para cima. Na ausência de peso e leveza na
região celeste, Aristóteles inferiu que os movimentos rectilíneos não podiam
ali ocorrer. Assim, não só era evidente pela observação que os movimentos
celestes eram circulares, como também, de acordo com as propriedades do
próprio éter, era óbvio para Aristóteles que os movimentos rectilíneos eram impossíveis na região celeste.
Dado que se pode observar que planetas e estrelas se movem no céu, Aristó
teles supôs que a mudança de posição era o único tipo de mudança possível nos
céus. Os corpos celestes mudam continuamente de posição, deslocando-se pelo
céu num movimento sem esforço, uniforme e circular. Este movimento circular
uniforme é um movimento natural, tal como os movimentos rectilíneos ascen
dentes e descendentes são naturais para os corpos terrestres. Mas enquanto os
movimentos ascendente e descendente eram movimentos terrestres contrários,
o movimento circular não tinha contrário. Aristóteles concluiu que o movi
mento circular, para o qual não havia movimento contrário, era natural para os
corpos compostos de éter celeste, para o qual não havia qualidades contrárias.
Na ausência de todos os contrários, a mudança, tal como era observada na
região terrestre, não podia ocorrer nos céus etéreos. Os corpos celestes tinham
de se deslocar eternamente através dos céus num movimento natural, uniforme
e circular. Embora mudassem de posição, a ausência de contrários impedia
variações nas suas distâncias. Aristóteles pressupôs, assim, que os corpos celestes nem se aproximavam nem se afastavam da Terra.
Aristóteles associava a mudança à matéria, mas negava que houvesse
mudança nos céus. Deveria concluir-se daí que os céus careciam de matéria e
que o éter celeste, independentemente do que pudesse ser, não devia ser consi
derado como matéria? Quanto a esta importante questão, os comentários de
Aristóteles são inconclusivos e os filósofos naturais da Idade Média tiveram
liberdade para reflectir sobre o seu significado. Ambas as interpretações a de
que a matéria existia nos céus e a de que não existia tiveram os seus apoiantes.
Quer fosse quer não fosse concebido como matéria, o éter celeste levantava
outros problemas. Sendo uma substância perfeita que se estendia desde a tua
até às estrelas fixas, Aristóteles parece ter considerado o éter como homogéneo,
com todas as suas partes idênticas entre si. Um olhar para os céus deveria ter
sido suficiente para eliminar uma tal noção. No mínimo, a região celeste consis
tia em corpos visíveis rodeados por porções de céu vazias, uma configuração
761 os FUNDAMENTOS DA Cl€NCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA
que dificilmente poderia sugerir homogeneidade. Se os corpos celestes e o céu
vazio eram ambos compostos do mesmo éter, porque diferiam? Porque eram
os planetas e as estrelas visíveis e o resto do céu, para todos os efeitos, invisí
veis? Porque variavam as suas propriedades? Talvez estas questões nunca
tivessem ocorrido a Aristóteles, por isso ele não lhes deu resposta nenhuma.
Quando este tipo de questões surgiram aos seus comentadores gregos, árabes
e latinos, estes tiveram de idealizar as suas próprias respostas, um destino
comum a todos aqueles que dedicaram uma grande parte das suas vidas a des
vendar o significado dos textos de Aristóteles. Aristóteles foi, no entanto, muito claro no que diz respeito à natureza dos
espaços celestes vazios. Estavam cheios de esferas etéreas, invisíveis, transpa
rentes, encaixadas umas nas outras e cada uma delas girava num movimento
regular e uniforme. Os corpos celestes - planetas e estrelas fixas - estavam de
algum modo embutidos nessas esferas que os levavam consigo. Aristóteles
baseou o seu sistema nos anteriores sistemas matemáticos de esferas concên
tricas idealizados por Eudóxio de Cnido e Calipo de Cízico no século IV a. C.
No esquema deste último, sobre o qual Aristóteles fundou directamente a sua
cosmologia de esferas concêntricas, ao planeta Saturno, por exemplo, era atri
buído um total de quatro esferas que justificariam a sua posição celeste. Des
tas, uma dava conta do movimento diário de Saturno; outra do seu movi
mento próprio ao longo do zodíaco, ou eclíptica; e as duas restantes represen
tavam os seus movimentos retrógrados, observados ao longo do zodíaco.
Aristóteles transformou as esferas matemáticas de Calipo num sistema de
orbes celestes físicos, reais, centrados na Terra e que eram coextensos com a
regiãO celeste. A fim de impedir a transmissão dos movimentos zodiacal e
retrógrado de Saturno para Júpiter, o planeta logo abaixo de Saturno, Aristó
teles atribuiu a Saturno três esferas neutralizadas que giravam em sentidos
contrários e que anulavam os movimentos das outras. A finalidade destas três
esferas era contrariar o movimento de três das quatro esferas de Saturno, com
excepção da esfera que representava o movimento diário (como o movimento
diário era comum a todos os planetas, a cada um era atribuída uma esfera
especial destinada a dar continuidade, admitindo-se assim que o movimento
diário fosse transmitido através de cada conjunto de esferas planetárias).
Como o explica D. R Dicks:
Assim, para as quatro esferas de Saturno, A, B, C e D, postula-se uma
esfera neutralizante D' colocada dentro de D (a esfera mais próxima da
Terra e que transporta o planeta no seu equador) e que roda em tomo
dos mesmos pólos e à mesma velocidade que D mas na direcção
O LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MÉDIA 177
oposta, de modo que os movimentos de D e D' se anulam um ao outro,
e cada ponto em D parecerá mover-se apenas devido ao movimento de C.
Dentro de D' é colocada uma segunda esfera neutralizante, C', desempe
nhando a mesma função relativamente a C que D' desempenha para D; e
dentro de C' existe uma terceira esfera de movimento inverso ao de B',
que, de modo semelhante, neutraliza o movimento de B. O resultado
final é que o único movimento restante é o da esfera exterior do con
junto, representando a rotação diária, de modo que as esferas de Júpi
ter (o planeta logo abaixo) podem agora descrever as suas próprias
revoluções como se as de Saturno não existissem. Do mesmo modo, as
esferas neutralizantes de Júpiter abrem caminho às de Marte e assim
por diante (sendo o número de esferas neutralizantes, em cada caso,
menor em uma unidade do que o número original de esferas de cada
conjunto) até chegarmos à Lua que, sendo o último dos corpos plane
tários (isto é, o mais próximo da Terra) não precisa, de acordo com
Aristóteles, de esferas neutralizantes.'
Em vez das quatro esferas que Calipo considerou necessárias para explicar
o movimento de Saturno, verificamos que Aristóteles lhe atribuiu sete. De
modo semelhante, pensou ser necessário acrescentar esferas neutralizantes, de
movimento contrário, às de todos os planetas, à excepção da Lua, localizada
directamente acima da região sublunar. Aristóteles afasta-se pois do sistema
de Calipo de trinta e três esferas matemáticas, ou hipotéticas, para os cin
quenta e cinco orbes físicos.
Uma questão importantíssima colocava-se de imediato: que levava os
orbes a moverem-se com um movimento uniforme circular, transportando os
planetas e as estrelas? Aristóteles deixou a este respeito uma herança dupla e
incompatível. No seu tratado cosmológico, Sobre os Céus, recorreu a um prin
cípio interno do movimento ao descrever o éter celeste como um ucorpo sim
ples naturalmente constituído de tal modo que mover-se num círculo é vir
tude da sua própria natureza" (2.1.284 a. 14-15). Mas na Física e na
Metafisica, Aristóteles pressupôs que os motores espirituais externos, ou inte
ligências, eram os agentes causais dos movimentos rotativos dos orbes celes
tes. Neste esquema, Aristóteles presumiu que cada orbe tIsico tinha o seu pró
prio motor imaterial, o qual, se bem que completamente imóvel, estava eter
namente apto a fazer com que o orbe anunciado se movesse sem esforço ao
redor da Terra, num movimento circular uniforme. Estes motores uinamo
víveis" ou uinamovidos" eram únicos no mundo porque eram susceptíveis
de causar movimento sem que eles próprios estivessem em movimento.
781 os FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MEDIA
A regressão potencialmente infinita de causas e efeitos para todos os movimen
tos interrompia-se nos motores inamovidos, que eram pois as fontes últimas e
imóveis de todos os movimentos. Embora Aristóteles se referisse a cinquenta e
cinco motores inamovidos, o seu conceito de Deus concentrava-se no motor
inamovido associado à esfera das estrelas fixas, a fronteira do mundo. Para
Aristóteles, o mais remoto dos motores inamovidos era o "primeiro motor",
que desfrutava do estatuto especial de primeiro entre iguais. No entanto, o seu
papel como motor celeste em nada diferia do dos outros motores inamovidos,
ou inteligências, como algumas vezes eram designados.
Mas como podia um motor inamovido imaterial determinar que um orbe
físico se movesse? "Produz movimento por ser amado" foi a resposta de Aristó
teles (Metafisica 12.7.1072b.3-4). Aristóteles deixou por dizer precisamente o
que pretendia explicar. Como se relacionavam a causa motora e a coisa
movida? Esta sua frase de sentido obscuro não só veio pôr à prova o engenho
dos muitos comentadores subsequentes, como também originou a ideia intri
gante do amor como uma força motriz cósmica que parece ter captado a imagi
nação de poetas e menestréis. No último verso da Divina Comédia, Dante fala
de "O amor que move o Sol e as outras estrelas" (l'amor che move iI sole e l'altre
stelle)' e uma canção anónima francesa proclama "O amor, o amor faz girar o
mundo" (L'amour, {'amour Jait toumer le monde)B. E se bem que não lhe tenha
surgido qualquer contrapartida em lingua inglesa na Idade Média ou na Renas
cença, esta ideia do amor emergiu finalmente na opereta de Gilbert e Sullivan,
Iolanthe, onde ficamos a saber que "Ê o amor que faz girar o mundo".9 Embora
não haja de modo algum a certeza de que Aristóteles seja a fonte destes senti
mentos poéticos, ele é seguramente um - se não o - principal candidato.
Tendo caracterizado o éter celeste como substância divina e incorruptível
e encarado a matéria terrestre como fonte de incessante mudança através da
geração e da corrupção, Aristóteles estava convencido de que a região celeste
imutável exercia uma influência dominante sobre a região terrestre sempre
em mudança. Era próprio de uma coisa mais nobre e perfeita influenciar uma
coisa menos nobre e menos perfeita. Daqui decorria também um reforço
poderoso da crença astrológica tradicional. Os vários modos como o dominio
celeste se efectivava viriam a alimentar as especulações dos filósofos naturais
até ao final do século XVII, altura em que a concepção do Cosmo foi radical
mente alterada. Mas, tal como com a causa do movimento celeste, Aristóteles
deixou a este respeito um legado ambíguo. Embora acreditasse que os cor
pos terrestres estavam sujeitos ao domínio celeste, acreditou igualmente que
pudessem causar efeitos por si próprios, não sendo pois meras entidades
O LEGADO DE ARISTOTELES PARA A IDADE MEDIA 179
passivas, dependentes de causas celestes. Como entidades compostas de maté
ria e forma, os corpos terrestres possuíam as suas próprias naturezas capazes
de causar efeitos. Um corpo pesado caía para o centro da Terra não em vir
tude de qualquer poder celeste, mas porque possuía uma natureza que lhe
permitia fazê-lo sempre que não houvesse qualquer impedimento. Cada espé
cie de ser animado e inanimado tinha aspectos e propriedades característicos
que permitiam aos seus membros individuais agir de acordo com essas pro
priedades.
O responsável pela actividade celeste e pela sua influência nos assuntos
terrestres era indubitavelmente o Sol, cujas influências eram manifestas e pal
páveis. A sua deslocação anual ao longo da eclíptica originava as estações que,
por sua vez, davam origem a várias gerações e corrupções. A geração humana
dependia também do Sol, como o evidencia a muito citada frase de Aristóteles
de que "o homem é gerado pelo homem e igualmente pelo 501".10 A excepção
da Lua, as provas de actividade celeste dos outros planetas eram quase inexis
tentes. No entanto, Aristóteles pressupôs que estavam também activamente
envolvidos na mudança terrestre. Mas foi incapaz de explicar como as activi
dades dos ,corpos celestes, excluindo o Sol, se relacionavam com as naturezas
independentes dos corpos terrestres. Uma vez mais, os comentadores subse
quentes ficavam entregues às suas próprias elucubrações.
A maioria das principais ideias e conceitos de Aristóteles sobre o mundo
físico acabou de ser descrita. Essas opiniões de Aristóteles contribuíram para
moldar a explicação medieval das mudanças que ocorriam na região terrestre
e esclarecer porque não ocorriam mudanças na região celeste. As ideias aqui
descritas formam o cerne da filosofia natural medieval, e algumas delas
impulsionaram novas áreas do pensamento. As ideias de Aristóteles não só
forneceram o esqueleto da filosofia natural medieval como também muitos
dos seus músculos e tecidos. E, no entanto, há temas sobre os quais Aristóte
les pouca orientação deixou, quer porque o tópico lhe era desconhecido, quer
porque pouco tinha a dizer a seu respeito. Noutras ocasiões, foi vago, ou
ambíguo, e os seus comentadores tiveram de tirar as suas próprias conclusões.
Outras vezes, as suas explicações revelaram-se inadequadas e exigiram substi
tuição. Em alguns casos, as suas interpretações foram drasticamente modifi
cadas com base na experiência, como sucedeu com o seu sistema de orbes
concêntricos, ou com base na teologia cristã, como foi o caso da eternidade
do mundo. No entanto, a maioria das ideias de Aristóteles foi utilizada como
o melhor e o mais fiável guia para a compreensão da natureza e das suas
obras. Para os estudiosos medievais, Aristóteles era o verdadeiro Filósofo.
80 I os FUNDAMENTOS DA CI~NC[A MODERNA NA IDADE MllDIA
No seu comentário ao Sobre os Céus caelo), Averróis prestou a Aristóteles
a mais honrosa homenagem, ao declarar que o filósofo era:
A regra e o exemplo que a natureza idealizou para mostrar a perfeição
última do homem ... os ensinamentos de Aristóteles são a suprema ver
dade, porque a sua mente era a expressão última da mente humana. Daí que se tenha afirmado com toda a razão que foi criado e nos foi
dado pela divina providência para virmos a saber tudo o que é possível saber-se. Louvemos a Deus por ter colocado este homem à parte de
todos os outros no que respeita à perfeição e de lhe ter permitido aproximar-se tão perto da mais elevada dignidade que à humanidade foi permitido atingir. J!
David Knowles, um historiador de filosofia medieval, não exagerava ao
considerar este como "o mais impressionante panegírico alguma vez prestado por um grande filósofo a outro».12 Na verdade, Averróis considerou Aristóte
les quase infalível porque, ao longo de mil anos, não fora detectado nenhum
erro nos seus escritos.ll
Aristóteles era também muito admirado no Ocidente Latino. Dante falou por muitos ao descrever Aristóteles como "o Mestre daqueles que sabem"."
São Tomás de Aquino encarava Aristóteles como alguém que atingira o nível
mais elevado do pensamento humano sem o beneficio da fé cristã. Poderia supor-se que, com tão reverentes atitudes, os estudiosos medievais teriam tentado permanecer tão próximo quanto possível do grande mestre. Mas,
pelos motivos já aduzidos, afastaram-se frequentemente. No capítulo 6, irei descrever o modo como os discípulos e os admiradores medievais de Aristóte
les modificaram e expandiram a sua filosofia natural, mesmo defendendo os seus prindpios básicos e permanecendo fiéis ao seu espírito. Antes, porém,
descreverei a introdução turbulenta da filosofia natural aristotélica na Europa durante o século XIII.
ENSINAMENTOS ARISTOTIlLICOS E os TEOLOGOS I 81
5. O acolhimento e o impacto dos ensinamentos aristotélicos e a reacção da Igreja e dos seus teólogos
Existiam importantes pontos de conflito entre a doutrina da Igreja e as
ideias defendidas nos livros de filosofia natural de Aristóteles. A introdução
das obras de Aristóteles na Cristandade Latina no século XIII era potencial
mente problemática para a Igreja e os seus teólogos. O choque, que era quase
inevitável, não tardou e parece ter sido particularmente violento na Universi
dade de Paris, que possuía a maior escola teológica da Idade Média Latina e
uma das melhores e maiores faculdades de artes. No entanto, nunca se deverá permitir que o conflito que se gerou obscureça o facto mais importante, ou
seja, que as obras traduzidas de Aristóteles foram entusiasticamente acolhidas
e muito respeitadas, tanto por mestres em artes como por teólogos. Na reali
dade, a filosofia de Aristóteles foi tão calorosamente recebida que, por
muito que o tentassem, as forças contra ela reunidas viram-se incapazes de
prevalecer.
Condenação de 1277
A luta contra Aristóteles concentrou-se na Universidade de Paris e nos
seus arredores. Em 1210, pouco depois de as obras de Aristóteles sobre filoso
fia natural terem ficado disponíveis em latim, o sínodo diocesano de Sens
decretou que os livros de Aristóteles sobre filosofia natural e todos os seus
comentários não podiam ser lidos em Paris, quer em público quer em pri
vado, sob pena de excomunhão. Confinada à região de Paris, esta interdição
foi repetida em 1215 especificamente para a Universidade de Paris. A 13 de
Abril de 1231, a mesma interdição foi modificada e recebeu uma sanção do
papa Gregório IX que, numa famosa bula, Parens scientiarum (frequentemente chamada, por outras razões, Magna Carta da Universidade de Paris),
ordenou que os tratados ofensivos de Aristóteles fossem expurgados de erro,
para essa tarefa nomeou a 23 de Abril uma comissão de três individuos. Por
motivos até hoje desconhecidos, a comissão papal não chegou a apresentar